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J. B. Libanio
[texto publicado in: João Batista Libanio La teologia contestuale della liberazione, in G.
Alberigo, G. Ruggieril, R. Rusconi (dir), Atlante del Cristianesimo, Collana Grandi Atlanti
Tematici. Atlante del Cristianesimo. La Teologia Contestuale della Liberazione, Torino,
UTET, 2005.]
Toda teologia é contextual, por ser palavra humana situada em determinado tempo e lugar.
A teologia bíblico-cristã é ainda por outro título contextual ao fazer do mundo, assumido
definitivamente no mistério da Encarnação, matéria interna do próprio pensar a fé. Nem
sempre, a teologia atendeu à sua natureza contextual, pensando-se como abstrata e
universalmente.
Até a modernidade, as perguntas que ela se levantava vinham antes da relação entre suas
verdades num esforço de “analogia fidei” do que do contexto sociopolítico cultural. O
contexto começa a preocupar a teologia quando se lhe tornou fonte de questionamentos.
Surgem questões que a razão científica, a razão histórica, a razão iluminista, as experiências
significativas das pessoas levantam a uma teologia baseada fundamentalmente na
“tradição”, nas “auctoritates”. O contexto da modernidade torna-se fonte contínua de
perguntas que a teologia moderna intenta ir respondendo. Perguntas de fora do ambiente
da fé, mas feitas à fé.
Nascimento e desenvolvimento.
Uma teologia contextualizada na A. L. remonta à década de 60, quando surge a TdL. Liga-
se a dois eventos fundamentais da Igreja mundial – ao Concílio Vaticano II e sua teologia –
e à Conferência Geral do Episcopado Latino-americano em Medellín (Colômbia, 1968). A
Igreja do Continente vivia sob o impacto dos movimentos sociopolíticos de libertação, da
teoria da dependência (Cardoso, Faletto, 1970), da pedagogia de Paulo Freire (Freire, 1975,
1982) e de outros fatores culturais. Na gênese está o livro programático de G. Gutiérrez
(Gutiérrez, 2000) que define o método e as principais pautas temáticas.
Segunda fase.
Enquanto a terceira fase prossegue com a preocupação com o novo paradigma, a expansão
e o fortalecimento do neoliberalismo, como pensamento único e com as medidas de ajustes
pesados nos países em desenvolvimento, geram exclusão e miséria. Então a TdL levanta a
pergunta: “Onde dormirão os pobres” (Gutiérrez, 1998)? Ela retoma, em novos termos, a
problemática dos pobres que foi a sua inspiração inicial. A Igreja e a TdL sentem-se, nesse
momento de exclusão em termos globalizados e de maior opressão e dominação, ainda
mais responsáveis de ser a voz defensora dos pobres. São pessoas e povos que continuam
existindo em condições desumanas ainda piores. A contradição maior no momento já não
vem da polarização do mundo socialista e capitalista, nem o capitalismo necessita maquiar
sua dominação para contrapor-se ao atrativo socialista. Defende exclusivamente seus
interesses e só promove desenvolvimento onde lhe resultem vantagens. Com isso a
exclusão dos pobres se radicaliza e o conflito maior se faz em torno do binômio morte e vida.
Quem – pessoas, camadas, países, continente – não se encontra no campo dos interesses
do mercado está fadado à exclusão, a ser prescindido, à morte. Já não é Terceiro ou Quarto
Mundo, mas o Não-Mundo. A TdL surge como teologia da, pela, para a vida para todos,
enquanto o capitalismo promete vida para alguns. E quando um país tem condições de
produzir superávit, mesmo à custa do sacrifício e morte de seus membros, o capitalismo
central exige tal sacrifício. É a questão das dívidas externa e interna que se articulam em
torno dos mesmos interesses e que estrangulam o real crescimento e as possibilidades de
vida de todos. Por outro viés encontra-se o binômio vida e morte. A TdL desmascara a
dimensão idolátrica do capitalismo que consome vítimas sacrificais.
Método da TdL.
Princípios programáticos.
Estas fases já anunciam o fato de que a TdL teve de reformular em vários pontos sua
metodologia. Define-se por sua natureza contextual. Reconhecendo toda teologia ser um
saber sapiencial e racional, ela pretende superar as deformações sofridas ao longo da
história para afirmar-se como reflexão crítica sobre a práxis histórica. Processa uma
deshelenização da fé. A história humana, aberta ao futuro, é tarefa e como tal implica um
que-fazer político. Ao construí-la, o ser humano “orienta-se e abre ao dom que dá sentido
último à história: o encontro definitivo e pleno com o Senhor e com os demais” (Gutiérrez,
2000: 66). A transformação do mundo na linha da fraternidade – ortopráxis – verifica – verum
+ facere = faz verdadeira - nossa fé. Ela é uma reflexão crítica sobre tal práxis de fé. Assume-
se o sentido crítico em dois níveis: do próprio pensamento e de seus próprios fundamentos
– aspecto epistemológico – e da sociedade e da Igreja, enquanto convocadas e interpeladas
pela Palavra de Deus, portanto como uma "teoria crítica, à luz da palavra aceita na fé,
animada por uma intenção prática e, portanto, indissoluvelmente unida à práxis histórica” –
aspecto teológico (Gutiérrez, 2000: 68). Ela não é um sistema, mas um espírito, um
movimento que carrega intuições fundamentais. Não se restringe à AL, nem engloba toda
teologia aí produzida. A prática é ato primeiro e a teologia vem depois. O consenso busca-
se na prática apesar de divergências teóricas.
Libertação da teologia.
A TdL inicia seu projeto por uma “libertação da teologia” (Segundo, 1978), ao desideologizar
os conceitos e concepções de Deus, graça, pecado, Igreja, etc. presentes nas teologias em
curso para que toda a teologia seja libertadora e não prenda os fiéis nas malhas de seus
conceitos. Para tanto, o pobre é colocado no centro da reflexão teológica como objeto
material – tema - e formal – perspectiva - no sentido de preocupação principal, movente
último.
Nos seus inícios a TdL quis marcar a diferença em relação às outras teologias. Fê-lo
distinguindo-se da teologia liberal européia pela pergunta fundamental. Aquela responde às
perguntas advindas da ciência, da razão iluminista, da subjetividade, da intersubjetividade:
como crer honestamente no mundo moderno? A TdL pergunta-se: qual o significado de ser
cristão num Continente de tanta injustiça social, em que os pobres são oprimidos, mas em
busca de sua libertação? Diferencia-se das teologias política (J. M. Metz), da violência (R.
Shaull), da esperança (J. Moltmann), insistindo “na articulação dos elementos de análise da
infraestrutura da realidade com as mesmas fontes da fé” (Assmann, 1973: 24). Distingue-se
da teologia moral, da pastoral e da doutrina social da Igreja por não visar à simples ação,
mas por ser uma interpretação de todo o conjunto da fé, embora provocado pela práxis
(Libanio, 1987: 44). É uma teologia materialmente global por tratar de todos os temas
teológicos na perspectiva particular formal da libertação teologal. Sua força questionadora
advém de interpelar a todas as teologias, aos cristãos e à consciência mundial a partir do
pobre, realidade fundamental da Revelação biblicocristã e de extrema gravidade na
sociedade atual. É mais que conjuntural, já que toca elemento essencial da Revelação. A
ótica primeira e originária da TdL é a fé numa ótica segunda e derivada do pobre. O seu
objeto é toda a fé no seio da história de opressão e libertação e toda esta história à luz da
Revelação de um Deus libertador.
A tríplice mediação.
A TdL elabora uma teoria do seu método, ie., uma epistemologia com os princípios teóricos
e as regras da sua gramática teológica. Esta formaliza e estrutura a linguagem da TdL a
partir de três dimensões constitutivas: mediações socioanalíticas (MSA), mediações
hermenêuticas (MH) e mediações da práxis (MP) (Boff, 1978a). As primeiras estabelecem a
relação com o objeto material, o político. A MSA é a operação teórica pela qual a TdL
assume para dentro de sua própria prática teórica os resultados-produtos das ciências do
social. Por meio dessas ciências se tem acesso ao conteúdo real sociopolítico, evitando o
empirismo crasso e a armadilha ideológica da carência das ciências do social. A MSA
permite construir um discurso teológico sobre o político. A MH é o específico da prática
teórica teológica. Esta consiste na operação pela qual um dado objetivo (matéria prima) é
transformado em dado teológico (produto) pela positividade da fé, pela MH (meios
simbólicos de produção). A MH se constitui pela refundição crítica das fontes cristãs na
perspectiva (política) da TdL. Para tal segue-se o modelo da “correspondência das
relações”, ao interpretar para a situação de hoje um sentido que se capta no ontem da
Revelação. Cria-se um sentido que nem foge da Revelação nem simplesmente é aplicado
ao hoje, mas que surge do embate hermenêutico entre a Revelação e a situação atual. A
TdL quer iluminar a prática cristã. Enlaça-se com ela pela MP. A MP possibilita que se
ilumine a prática de fé e que esta, por sua vez, influencie a configuração da própria teologia.
A práxis se alça ao nível de critério da verdade teológica. Isso se alcança por correta relação
entre “lugar social”- a prática do cristão – e “lugar epistêmico” – constituição interna da
teologia. Caso concreto da relação entre “teoria e práxis”. A práxis da fé influencia a teoria
teológica porque a teoria e o seu produtor estão objetivamente situados no interior de
relações sociais. A teologia está submetida à influência da práxis no nível do engajamento
social do teólogo, da relevância histórica de um tema e da sua destinação política.
Vulgarização do método.
A vulgarização do seu método permitiu a produção de uma TdL pelas próprias comunidades
populares - teologia da enxada – (Comblin, 1977) e – do pé-no-chão (Boff, 1984) - e que as
alimentou. Influenciou a prática pastoral dos agentes. Sustentou as lutas populares em nome
da fé. Ofereceu munição teológica para enfrentar a repressão política durante os regimes
militares nas décadas de 60, 70 e inícios de 80. Trouxe, porém, problemas teóricos e
práticos. Produziu certo mecanicismo e reducionismo teórico, ao querer-se aplicar para cada
fato um texto de fé sem nenhuma real hermenêutica. Certas práticas pastorais enrijeceram-
se, rejeitando todo pluralismo.
Até o final da década de 80, a TdL adotara um paradigma antropolibertador. Ele era fruto da
experiência histórica da práxis libertadora que nascia do compromisso evangélico com os
pobres; exigia uma análise da realidade social utilizando as ciências sociais, particularmente
a teoria da dependência; era consciente da influência das condições socioeconômicas sobre
a produção teológica; punha sua reflexão teológica a serviço da transformação da
sociedade; entendia o povo pobre como sujeito transformador no interior da Igreja e da
sociedade; acreditava num projeto utópico de corte socialista; assumia categorias dialéticas
de origem marxista nas suas análises da realidade social; articulava a libertação eticopolítica
com a soteriológica (Sung, 1994: 67-85; Boff, 1990). As mudanças começaram com a
ampliação do seu instrumental de análise socioestrutural, inserindo nele elementos
antropológicos, etnicoculturais, de gênero. A TdL assume diálogo com as novas ciências da
Terra, com a ecologia, com as biociências, com a nova cosmologia e com o fenômeno
religioso crescente. Inicia-se a configuração do paradigma teoantropocósmico, em que as
preocupações com os pobres se articulam com as da Terra (Boff, 1995).
Teoria da dependência.
A TdL nos seus primórdios assumiu a teoria da dependência (Cardoso, Faletto, 1970) da
qual tirou o conceito de libertação, ressemantizando-o. A AL viveu nas décadas de 50 e 60
sob o impacto da teoria desenvolvimentista. Considerava o subdesenvolvimento como etapa
prévia ao desenvolvimento de modo que este seria alcançado pelos países
subdesenvolvidos desde que tivessem capital, tecnologia e mercado. E as Corporações
transnacionais estavam aí a oferecer esses três ingredientes, daí a necessidade de
implantá-las nos países subdesenvolvidos. Depois de um período de aplicação de tal teoria,
constatou-se a existência de real desenvolvimento de certa camada social que teve acesso
aos bens de consumo conspícuos. Ao mesmo tempo, verificou-se o crescimento da massa
de empobrecidos, - pessoas, classes e regiões. E estes se tornavam dependentes das
pessoas, classes e regiões desenvolvidas, que funcionavam como centros. E os países,
então chamados em desenvolvimento, cresceram em dependência diante dos países
centrais. A solução, portanto, não era desenvolvimento, mas libertação das dependências
internas e externas. Nesse solo nasce a palavra “libertação” que a TdL incorpora em seu
vocabulário teológico.
Ideologia da Segurança Nacional (ISN) .
Comissão trilateral.
As violações aos direitos humanos transpiraram fora dos porões da repressão e provocaram
em países capitalistas liberais repulsa de modo que já não se podia legitimar o
desenvolvimento econômico por esta via. A ideologia da Comissão Trilateral substitui a da
ISN. A ambigüidade de tal ideologia foi criticada pela TdL no sentido de uma defesa
unicamente dos direitos individuais e um olvido dos direitos sociais que continuavam sendo
violados gravemente pela política desenvolvimentista que mantinha os países em
desenvolvimento –periféricos - em estrita dependência dos países centrais (Assmann,
1982).
Teoria marxista.
A TdL enfrentou suas maiores dificuldades com as autoridades civis, militares e eclesiásticas
por causa de sua relação com o marxismo. Não houve uniformidade na TdL. Em termos
genéricos, distinguindo as tendências socioanalíticas em funcionalista e dialética, a TdL
optou pela dialética que “coloca no centro a idéia de conflito, de tensão, de luta e que vê a
Sociedade como um todo complexo e contraditório” e não como a funcionalista que
“privilegia a idéia de ordem, de harmonia, de equilíbrio e que procura analisar a Sociedade
sob a forma de um todo orgânico cujas partes seriam complementares” (Boff, 1978a: 122).
Os teólogos rejeitavam o marxismo na sua forma de sistema global de “visão de totalidade
da história, do homem, do mundo, da natureza que interpreta o passado, dá inteligência ao
presente e anuncia o futuro” por ser “ateu, materialista, imanentista, humanista puramente
intra-histórico” (Libanio, 1987: 182, 191) incompatível com a fé cristã. A causa da libertação
dos pobres, coração da TdL, convive com a ideologia revolucionária marxista
estrategicamente dentro de certos limites. A TdL rejeitava também a filosofia materialista
marxista e a análise marxista na sua totalidade. Retinha de ambas alguns elementos que
ajudavam a compreender melhor as contradições da realidade social capitalista. Apesar
desse uso fragmentário do marxismo, o Magistério ordinário da Igreja censurou a TdL pela
ilusão e perigo de “aceitar os elementos de análise marxista sem reconhecer as suas
relações com a ideologia” (Paulo VI, 1971: 34), da “ideologização a que se expõe a reflexão
teológica” (Puebla, 1979: 545). Dois documentos da Congregação para a Doutrina da Fé
trataram da TdL. Um primeiro adverte diretamente “dos desvios e perigos de desvios,
prejudiciais à fé e à vida cristã, inerentes a certas formas da TdL” (Congregação para a
Doutrina da Fé, 1984, Introdução). Estes consistem no reducionismo da dimensão de
libertação ao puramente terrestre, numa nova hermenêutica da fé e existência cristã por
contaminação de categorias marxistas acriticamente assumidas. Um segundo documento,
em perspectiva positiva, põe “em evidência os principais elementos da doutrina cristã acerca
da liberdade e da libertação” com brevíssima menção à reflexão teológica sem especificar
a TdL (Congregação para a Doutrina da Fé, 1986, n. 2). João Paulo II, escrevendo aos
bispos brasileiros, menciona explícita e positivamente a TdL (João Paulo II, 1986: 12).
Neoliberalismo globalizado.
Com a queda do socialismo, o capitalismo reina sozinho sob a forma neoliberal, apoiado na
globalização econômica. Aumentou a integração dos sistemas econômicos com exigências
de flexibilização e ajustes fiscais nos países periféricos. A centralidade do mercado está a
gerar exclusão de continentes, países, regiões e, em nosso Continente, de gigantescas
massas. A TdL analisa as causas da exclusão (Assmann, 1994) e propugna uma cultura da
solidariedade. Critica o neoliberalismo por ser estruturalmente pensado e só viável com a
exclusão das camadas e países pobres. O fato da automação das empresas pela
modernização eletrônica em busca de maior competitividade aumenta a exclusão dessa
forma capitalista. A quebra de muitas empresas no IIIo mundo agrava o desemprego. O
enfraquecimento do Estado impede a defesa dos interesses nacionais e das classes
populares. E o modo de produção orienta-se para bens cada vez mais sofisticados, deixando
os pobres na triste situação de não poderem comprá-los, nem de encontrarem outros a seu
alcance financeiro. O efeito-demonstração provoca o desejo de os pobres copiarem o tipo
de consumo dos países ricos com nefastas conseqüências. Aí está uma das causas da
crescente violência unida à indústria das drogas que tem sido fonte de emprego,
sobrevivência e enriquecimento de marginalizados do sistema.
Toda teologia privilegia temas conforme seu contexto histórico e geográfico. A TdL tem
alguns que a perpassam desde seus inícios até o momento, embora com acentos diferentes.
Pobres.
Libertação.
Disciplinas teológicas.
Cristologia da libertação.
Cristo libertador (Boff, 1972b) traça as linhas da cristologia da TdL. Estabelece a primazia
da referência ao novo homem que se está gestando na AL sobre o modelo eclesiológico
europeu. Valoriza antes o aspecto utópico de futuro a ser criado ao passado europeu de
colonização. A dimensão crítica prevalece sobre a dogmática, consolidada em tradições
eclesiásticas fixas. O social leva a primazia sobre o pessoal e a ortopráxis sobre a ortodoxia.
A partir dessas balizas, constrói-se uma cristologia libertadora que pretende superar as
imagens alienantes de Cristo – um Cristo abstrato, reconciliador e absolutamente absoluto
(Sobrino, 1996: 30-34) - e a ineficiência de cristologias que não souberam enfrentar a miséria
e a opressão, nem questionar como “um escândalo e uma contradição com o ser cristão a
brecha crescente entre ricos e pobres” (Puebla, n. 28). Nela a identificação de Jesus com
os pobres faz-se critério hermenêutico de interpretação da sua pessoa, vida, pregação. A
realidade do “Reino de Deus é o horizonte objetivo e estrutural do que é preciso fazer e o
seguimento é a forma de viver” (Bombonatto, 2001: 29) . O seguimento se constitui categoria
epistemológica e chave hermenêutica, já que a cristologia se faz inteligível no momento em
que se faz “real o que existe no conceito”. Num continente de excluídos e vítimas da história,
a cristologia põe a questão fundamental da continuidade da prática de Jesus por meio do
seu seguimento que é o “lugar por excelência da fé” (Bombonatto, 2001: 30). Realidade que
está na origem do Cristianismo e constitui dimensão básica da existência cristã. Recuperam-
se a densidade teológica e o significado revelador da vida terrena de Jesus, em continuidade
com o movimento de volta ao Jesus de Nazaré da era pós-bultmaniana (E. Käsemann), mas
diferentemente. Não pretende como a cristologia européia “encontrar solução para a
problemática do NT sobre como relacionar o Cristo pregado no querigma com o Cristo que
prega, que é Jesus de Nazaré” (Sobrino, 1996: 79), mas pelo conhecimento de Jesus recriar-
lhe a prática hoje para prosseguir sua causa. Não é tanto desmitologizá-lo como
“despacificá-lo” e desidolatrizá-lo para que ele não nos pacifique perante uma realidade de
miséria e nem para que em seu nome não se oprima. Segue-se a Jesus de Nazaré,
recolhendo pela ação do Espírito a sua memória e no mesmo Espírito recriando-a hoje pela
imaginação a partir dos pobres. O mais histórico de Jesus é sua prática e o espírito com que
a executou” (Sobrino, 1996: 83). O lugar social e eclesial da fé em Jesus Cristo é parcial,
concreto e interessado: “as vítimas deste mundo” ( Sobrino, 2000: 13). A ressurreição de
Jesus permite que vivamos o seguimento do Crucificado, como ressuscitados, já que “o
Ressuscitado se pode fazer vitoriosamente presente no seguimento do Crucificado de modo
que o seguimento pode estar penetrado já agora daquilo que na ressurreição de Jesus há
de triunfo” (Sobrino 2000: 26s). Traz a esperança, a liberdade e a alegria para as vítimas da
história contra a resignação, o desencantamento, a trivialidade, as ataduras históricas do
amor, a tristeza e a caducidade (Sobrino 2000: 25.27). Na ressurreição, realizou-se uma
utopia humana do homem novo, libertado das amarras do tempo e do espaço. Ele, como
nó-de-relações-com-o-universo, atinge pela ressurreição o próprio cosmos à espera de uma
consumação final (Boff, 1972a: 107). No Cristo ressuscitado emerge o homem novo e
definitivo, esperança para todos nós e por ser Ele o Crucificado traz esperança para todos
os crucificados, pessoas e povos, vítimas da história. O novo paradigma ecológico reforça
a compreensão da ressurreição de Jesus como “total patência e transparência” daquilo que
se escondia em Jesus de Nazaré, a saber “a universal e máxima abertura para toda a
realidade cósmica, humana e divina” (Boff, 1972a: 215). Reconhece-se uma presença de
Cristo no processo cosmogênico e antropogênico para ganhar forma e consciência em
Jesus. Há um elemento crístico na natureza de caráter objetivo, ligado à estruturação do
próprio universo. Transforma-se em cristológico por causa da Encarnação do Filho que
sempre acompanhou o processo evolucionário – Christus evolutor (L. Boff, 1995: 272). Para
a emergência do cristológico, o cosmos gerou uma consciência. Esta alcançou níveis de
universalização, interiorização e sintetização significando um avanço do todo e para todos
quando da emergência do cristológico pela Encarnação do Filho. Sem perder o traço
histórico característico da TdL, afirma-se que “o Cristo da fé se assenta sobre o Jesus
histórico” e este por sua vez se liga à história do universo. Ele se compõe dos mesmos
elementos cosmogônicos com os quais são tecidos todos os outros seres e corpos. Tanto o
corpo de Jesus tem a mesma origem ancestral das substâncias quanto sua interioridade e
subjetividade “está habitada pelos movimentos de consciência mais primitivos, pelos sonhos
mais arcaicos, pelas paixões mais originárias, pelos arquétipos mais profundos, pelas
imagens e idéias mais antigas”. Insere-se na compreensão do “verdadeiro homem” de
Calcedônia os dados de uma antropologia cósmica (L. Boff, 1995: 273s).
Eclesiogênese e CEBs.
Papa
Padre
.......................................................................
Fiel esfera secular
é substituída pela figura triangular:
Bispo
Fiel Padre
Os três termos estabelecem uma rede de relações entre si numa circularidade envolvente.
Propõe-se uma compreensão de Igreja como “sacramento do Espírito Santo”, tendo o
carisma como princípio de organização (Boff, 1981), confiando na presença criativa do
Espírito. Esta eclesiologia demanda um aprofundamento da pneumatologia. Permite o
surgimento de ministérios leigos em grande abundância, liberdade e criatividade, sem pôr
em questão a natureza do ministério ordenado, embora se tenha levantado a questão da
presidência da ceia do Senhor “ad actum” por um leigo escolhido pela comunidade. Tal
questão mostrou-se mais grave por causa do fato de 70% das celebrações dominicais nas
comunidades católicas não contarem com ministro ordenado. As comunidades eclesiais de
base (CEBs) encarnam uma Igreja dos pobres. A TdL tem dupla relação com elas.
Fundamenta-as teologicamente e se alimenta de suas experiências. A eclesialidade das
CEBs funda-se nas suas características básicas. Vivem em comunhão entre si e com os
pastores. Possuem mártires, vítimas das repressões militares, policiais e dos latifundiários.
Sinal de testemunho da sua autenticidade cristã e eclesial, pensado teologicamente na sua
dupla face de pecado – por parte dos algozes - e de graça – por parte das vítimas. Imitam o
protomártir Jesus. O martírio permite desmascarar o absolutismo idólatra da lógica da
exploração e dominação do capital, embora os perseguidores se digam defensores da
própria civilização cristã. Vive-se o paradoxo de católicos martirizando defensores da justiça,
ligados ao Reino, mas não necessariamente à Igreja. As CEBs reatualizam as notas da
unidade a partir da missão libertadora, da santidade animada pela caridade na luta contra
os mecanismos de exploração, da catolicidade de uma vocação universal pela justiça e
direitos dos pobres e explorados e da apostolicidade enviada a viver a vida do seguimento
de Jesus. As CEBs são povo de Deus, dando ao termo um novo significado de povo-classe
subalterna que se define por ser excluída da participação e reduzida à massificação e
coisificação. Transformam essa massa em povo pela força da Palavra de Deus e ação
pastoral, dando-lhe consciência de sua dignidade de povo. Constituem-se a Igreja dos
pobres e dos fracos que são a sua imensa maioria. O pobre é realidade mais que
sociológica, ao significar uma epifania do Senhor, lançando ao resto da Igreja um desafio ao
compromisso por sua libertação. Mais que pobres, são empobrecidos e espoliados de suas
terras, de seus trabalhos, pelas perversas relações sociais. Apelam pela justiça e libertação.
As CEBs vivem a “koinonia do poder” por meio da circulação dos papéis de coordenação e
animação, sendo o poder função da comunidade e não de uma pessoa. Entendem-se em
diáspora, não no sentido de minoria em países secularizados, mas de pobres e sem
relevância para a sociedade burguesa e para setores de poder da Igreja. A dimensão de
libertação atravessa todo o dinamismo das CEBs. Nascem, vivem, alimentam-se da
experiência bíblica da libertação no meio da dominação. São Igreja samaritana no
sofrimento e na solidariedade, ao compadecer-se das misérias do povo, partilhá-las e curá-
las; Igreja-lar que abre espaço de fraternidade, afeto e festa, acolhendo, responsabilizando-
se uns pelos outros, reconciliando e celebrando; Igreja-santuário que favorece o encontro
com Deus na oração, no sacramento; Igreja missionária que anela pela boa nova, ouvindo
sua convocação, fazendo-se presente, dialogando, convidando a participar e lendo o
evangelho com a vida; Igreja profética na luta por uma sociedade nova, julgando os fatos e
situações, anunciando a esperança, exigindo conversão e ação, no conflito e nas
perseguições (Muñoz, 1993: 161-179). A TdL tem explicitado o significado teológico das
CEBs na Igreja, como seu princípio estruturante. Não é uma Igreja unicamente com CEBs,
excluindo dela todas as outras realidades. Posição radical que não respeita o pluralismo
eclesial. As suas estruturas de organização se moldam pela maneira como as CEBs
funcionam. O poder central paroquial consubstanciado na matriz de onde se irradiam os
comandos cede o lugar para uma coordenação feita por membros eleitos por tempo
determinado de todas as CEBs. Cada CEB oferece o ministério ou serviço de que é capaz
e recebe das outras o de que necessita. Não há nenhuma que seja o centro de todos os
serviços. Ela se concebe toda ela ministerial. O ministro ordenado não é o coordenador
único da paróquia. Cumpre fundamentalmente a missão ligada a seu ministério ordenado:
celebrações sacramentais e a pedido das CEBs sem que tenha uma sede de poder. A
mudança substancial se dá no nível do poder, fazendo-o decisoriamente participativo, eletivo
e provisório. As CEBs são “grupos cuja identidade reside na similaridade entre seus
membros e cuja coesão se funda na relação de aliança”. “Gera um nós que de certo modo
existe independentemente de seus membros individuais e é maior que seu somatório”. As
CEBs cumprem de modo diferente a função que a paróquia ainda exerce hoje no modelo
tradicional (Oliveira, 1997, 141, 146s). Elas têm criado um ecumenismo na base pela
presença de católicos e evangélicos numa mesma luta e compromisso. Vivem eles a mesma
situação de pobreza e de dentro dela armam ações em comum para superá-la como
mutirões, movimentos populares, práticas reivindicatórias ou propositivas. Os círculos
bíblicos têm criado nos católicos o hábito arraigado de ler a realidade a partir da Palavra de
Deus. Aí conseguem dialogar com os evangélicos. No círculo bíblico apenas se percebem
as diferenças de denominação religiosa, já que o esforço comum é iluminar a situação com
a Palavra de Deus.
Exegese militante.
Questões relevantes.
Religiosidade popular.
A opção da TdL pelos pobres se faz num continente de fé, de maioria católica. Vive-se um
catolicismo popular. Carrega três heranças importantes religiosoculturais: ibérica, indígena
e negra. O catolicismo ibérico veio ainda sem as reformas tridentinas que só se implantaram,
no caso do Brasil, no século XIX por obra de bispos reformadores. É um catolicismo
medieval com elementos tridentinos e mais recentemente recebeu a influência do Vaticano
II. A partir de Medellín (1968) por influência da TdL, agentes de pastoral enfrentaram-no
numa perspectiva criticopolítica. Envolvida pela pedagogia libertadora e conscientizadora e
tocada por elementos da crítica religiosa feuerbachiana e marxista, a TdL manteve reserva
diante do catolicismo popular. Considerava-o alienação e ignorância com suas formas
devocionais e de promessas, tão alheias a um processo de transformação da realidade.
Projetava-se para uma ação sobrenatural de Deus, de Nossa Senhora ou dos santos aquilo
que era responsabilidade humana. Uma Igreja tradicional e conservadora alimentava tais
práticas, aumentando a desconfiança. Já a partir do final da década de 70, modificou sua
posição, exercendo um discernimento entre os elementos alienantes e as sementes
libertadoras. O teólogo assumiu uma postura de quem aprende da própria religião do povo,
percebendo a complexidade de suas práticas e reconhecendo antes sua ignorância e
preconceitos iluministas diante dela. Dedicou-se a estudos mais sérios sobre as diversas
formas religiosas marianas, devocionais a santos canonizados ou simplesmente
reconhecidos pelo povo, como são no Brasil os casos do Padim Cícero e Frei Damião. Em
articulação com a religião, nas últimas décadas, tem-se agitado mais explicitamente a
problemática do sincretismo e da inculturação. O sincretismo adquire o caráter positivo ou
negativo segundo seu ponto de leitura. Visto da oficialidade teológica ou institucional, é
negativo. Visto do povo que o realiza, é sua vida. A TdL, ao aproximar-se do povo, o vê
como um processo de sua vida religiosa. Não aceita o conceito mais comum no mundo
acadêmico de ser uma adição de elementos de várias religiões numa identidade indefinida
e até contraditória. Nem se entende como verdadeiro sincretismo uma forma muito comum
entre os escravos de acomodação e adaptação da religião por estratégia de sobrevivência
e/ou resistência, sem desestruturar a própria identidade original, mas realizando simples
adoção de elementos da religião dominante até mesmo incompatíveis. Também é um
conceito pobre entendê-lo como uma mistura superficial sem identidade alguma, a não ser
uma crença difusa e interior do fiel. Nem responde ao correto conceito de sincretismo a
busca de criar uma religião universal pelo concordismo religioso de fórmulas, ritos,
expressões em harmonia de significantes, sem descer à estrutura, experiência e identidade
das religiões. Tampouco é sincretismo o uso por parte de uma religião de categorias,
expressões cultuais e tradições de outras religiões para exprimir-se e traduzir sua própria
mensagem essencial, compatível com a identidade própria. Fato presente em todas as
religiões. Na religiosidade popular busca-se um sincretismo como longo processo vital de
produção religiosa por assimilação, reinterpretação, refundição de diferentes expressões
religiosas desde sua própria identidade. É procedimento válido e inclui e ultrapassa os
anteriores (Boff, 1981: 147-149). O sincretismo mostra como uma fé estabelece uma relação
não simples e unicamente com uma cultura (inculturação), mas com uma religião. Esta é o
coração da cultura e presente em todas as culturas tradicionais. A cultura moderna ocidental
é a única que quis prescindir da religião e até mesmo negá-la para constituir-se. Na AL, mais
corretamente na América Latino-afro-índia, a fé cristã se inculturou sincreticamente nas
religões afroindígenas, tendo já sido trazida com aspectos sincréticos da Península Ibérica
e mais recentemente tem recebido elementos de religiões orientais. O sincretismo reflete
sobre a incidência da dimensão religiosa da cultura sobre a fé cristã. Fato que está
permanentemente acontecendo (Miranda, 2001: 110). A mídia, o efeito-demonstração, a
insatisfação lacunosa com as formas oficiais das religiões e com seus significados religiosos,
o modismo, a acelerada ressemantização dentro da cultura pós-moderna, a emergência da
consciência negra e indígena nos próprios cristãos com busca de suas raízes
religiosoculturais, as parecenças entre as formas religiosas, a maior liberdade na
constituição da identidade religiosa de indivíduos e grupos, a consciência da transitoriedade
e reflexividade das teorias, o surgimento de problemas novos numa sociedade plural e
tecnocientífica têm afetado profundamente a identidade da fé cristã. A TdL se pergunta pelo
“sincretismo legítimo” a fim de salvaguardar a identidade cristã. Considera-o um processo
que é parte da inculturação da fé. Sua legitimidade se define pelo fato de tender a
desaparecer no momento em que é integrado na inteligibilidade e na expressão da fé
(Miranda, 2001, 114, 123) e não permanecendo nela de maneira incompatível ou produzindo
uma nova expressão de fé já não cristã em seus traços fundamentais. O fundamento
teológico da atitude de abertura diante das formas religiosas é o Absoluto de Deus que todas
elas tematizam e a imperfeição de toda expressão religiosa – inclusive do Cristianismo - que
pode ser enriquecida. No contexto da religiosidade popular, a TdL tem desenvolvido a razão
simbólica mais próxima e acessível à cultura popular, recorrendo aos pequenos relatos tão
comuns nos círculos bíblicos.
Teologia indígena
Teologia negra
Nas regiões de presença dos negros, vindos como escravos para as Américas, a teologia
negra denuncia a dupla condição de opressão racial e econômica do negro. E no caso da
mulher negra acrescenta-se ainda uma terceira dominação machista. A teologia negra parte
dos dados estatísticos que apontam a persistência do racismo e da dominação sobre os
negros, embora legalmente tenham os mesmos direitos que os brancos. A situação de
inferioridade econômica, medida por receberem salários inferiores e ocuparem a maior
margem de desempregados, repercute diretamente na dificuldade de promoção cultural. O
ethos do povo, livros escolares, a mídia, padrões de beleza, a ideologia do branqueamento,
o mito da democracia racial, a imagem do negro ligada ao esporte, malandragem, samba e
criminalidade, a desintegração da família negra por causa das condições precárias de
habitação, o peso histórico dos séculos de escravatura e tantos outros fatores produziram e
produzem a discriminação e a opressão dos negros. Por isso, a teologia negra é
necessariamente TdL que ultrapassa a dimensão socioestrutural e incorpora a étnica. Ela
tem trabalhado para modificar o imaginário social e religioso do país a fim de que o negro
ocupe mais espaço tanto na sociedade como
Teologia mariana
Teologia e economia
Partir da realidade para fazer teologia obrigou a TdL pensar sua relação com a economia.
Desde o início defrontou-se com o desenvolvimentismo, com a teoria da dependência. O
neoliberalismo entrou em cena nas últimas décadas. Uma tendência da TdL ocupa-se em
desmascarar as teologias presentes nos sistemas econômicos. Estas teologias servem para
justificá-los e legitimá-los. Há uma “religião econômica” no capitalismo de corte sacrificalista,
sem transcendência. Traveste os sonhos e desejos religiosos da sociedade tradicional
anunciando a salvação imanente da abundância de bens de consumo, prometendo
satisfazer todas as necessidades e desejos. Essas promessas “transcendentes” do
capitalismo a serem vividas na imanência justificam o sacrifício pedido aos pobres. Erige
como deuses o mercado, o capital de modo que o problema fundamental já não é o ateísmo,
mas a idolatria. A TdL vai fundo no coração humano e desvenda-lhe o mistério do desejo,
que é o mistério da religião. Aponta o hedonismo e o consumismo como sua realização,
portanto, como a sua religião. A queda do socialismo permitiu a “messianização do
mercado”, a naturalização das estruturas históricas do presente e a retomada do discurso
do “fim da história” de caráter teológico-escatológico por parte do capitalismo. O evangelho
do neoliberalismo prega a trindade do capital (deus pai), do mercado (messias) e da livre
iniciativa (espírito). Anuncia a realização de uma lógica benfazeja para todos,
deslegitiminando e desclassificando os opositores como demoníacos e que devem ser
exorcizados. Observando a própria linguagem neoliberal, percebem-se termos religiosos
camuflados, sobretudo a exigência de um sacrifício presente em vista de um paraíso futuro.
Para os que já possuem muito, abre-se-lhes um horizonte de acúmulo ilimitado de bens,
satisfazendo desejos sempre despertados por uma tecnologia fantástica. Entra-se na
engrenagem infernal da tecnologia que gera novos desejos e estes açulam a tecnologia. A
sede indômita de satisfação intermedia os dois pólos. Aos pobres, pedem-se sacrifícios na
espera ilusória do dia auroral da satisfação de necessidades e sonhos. Espiral também
interminável. (Sung, 1994). A TdL desmascara essa perversão teológica, que abençoa os
ricos e pune os pobres. É o deus antípoda do Deus da vida, dos pobres, da tradição
biblicocristã.
Teologia e ecologia
O susto da devastação ecológica e o surto das novas ciências despertaram a TdL para a
problemática ecológica. A partir dos pobres, a Terra é vista na sua condição de explorada e
ameaçada por uma concepção de progresso, de desenvolvimento que beneficia os ricos e
empobrece os pobres. Imperam um modelo de convivência, um modo de produção e de
relações com a natureza que geram violência sistemática sobre pessoas, classes sociais,
países, ecossistemas e a própria Terra. O grito dos pobres se une ao da Terra. A nova
cosmologia desloca o antropocentrismo, que está na origem do modelo anterior de
exploração da Terra, não para um cosmocentrismo, mas para nova compreensão do ser
humano no gigantesco teatro cósmico. O ser humano se entende numa comunhão com todo
o cosmo, inserido no processo evolutivo que parte de um caos inicial de incomensurável
instabilidade e desordem, mas generativo. Através de diferentes momentos chegamos ao
momento biológico e antropológico que se expande criando os ecossistemas. Hoje vive-se
um momento de globalização rumo a uma única grande sociedade mundial (Boff, 2000).
Nesse contexto, emerge nova consciência ecológica. Defronta-se imediata e criticamente
com a atitude agressiva do ser humano em relação à natureza, reinterpretando o Gênesis
(1,28) na linha do louvor, da gratuidade diante do Deus criador e não como ordem de
exploração da Terra. O ser humano é guardião e administrador e não dominador e
escravizador da natureza em seu benefício sem medida. A consciência amplia sua dimensão
para uma ecologia social em articulação com os movimentos sociais que defendem a vida.
O Deus da vida, que se posta na defesa dos que a têm mais ameaçada – os pobres -, se
tornou tema central da TdL em conexão com a dimensão da ecologia. A ecologia mental vai
mais fundo. Descobre no interior do ser humano a maior ameaça para a destruição da sua
vida: sua terrível ganância, açulada por um sistema econômico fundado na competição, na
concorrência, no lucro, na exploração dos recursos da Terras. A TdL se posiciona
ecologicamente em prol de uma nova aliança cósmica e solidária, passando da dominação
para a benevolência, do conflito para a harmonia, do sobrepor-se e impor-se para o com-
pôr-se, da guerra para a paz, da exploração para o respeito, do secularismo destrutivo para
a sacralidade reverente. A ecologia integral e espiritual busca uma compreensão da
totalidade que articule todas dimensões humanas até as esferas espirituais e místicas. A
TdL entra aqui por meio da ecologia em diálogo com experiências espirituais de outras
tradições religiosas não cristãs, que conhecem e veneram a sacralidade do cosmo. Sem
abraçar nenhum panteísmo, mas assumindo um pan-en-teísmo, responde com um traço
cristão à montante Nova Era (Boff, 1993: 17-52). Afirma-se verdadeira relação com o Deus
trino, comunhão e comunidade. “No princípio está a comunhão dos Três e não a solidão do
Um” (Boff, 1988: 23). A perspectiva trinitária insere no coração da espiritualidade cósmica a
fé cristã. Reapropriam-se na TdL intuições teilhardianas, fazendo retroceder a posição de
Cristo na história da salvação aos inícios do processo evolutivo, como o seu Alfa e Ômega.
Diálogo inter-religioso
A TdL encontrou as religiões não-cristãs na forma das tradições afroindígenas. Não se falou
logo em diálogo interreligioso porque essas tradições, embora estruturalmente
conservassem sua origem não-cristã, tinham assumido expressões cristãs. Só num
momento seguinte, distinguiram-se as formas cristãs sincréticas afroindígenas e as
expressões que conservaram sua origem pagã. Com estas estabelece-se verdadeiro diálogo
interreligioso. Com o fenômeno de globalização cultural, tradições religiosas orientais,
muçulmanas e outras formam o novo cenário religioso do Continente até então unicamente
cristão ou mesmo católico. Some-se um surto religioso eclético carregado de crenças as
mais diversas. Há uma reflexão sobre o diálogo interreligioso que reflete simplesmente a
discussão teológica européia do papel salvífico das religiões, da superação do
eclesiocentrismo rígido, da unicidade e universalidade da salvação de Cristo. O traço original
da TdL lhe vem do paradigma teoantropocêntrico. A realidade é relacional. A teologia e as
religiões precisam estreitar sua comunicação para testemunhar o mistério de comunhão que
rege a vida e devolver-lhe o caráter sagrado. O encontro e o diálogo entre as religiões são
exigência da nova cosmologia (Terra é superorganismo vivo em que tudo se relaciona com
tudo), da compreensão do ser humano aí dentro (nó-de-relações), da concepção
panenteísta e comunial de Deus e da triste situação dos pobres. A responsabilidade social
das religiões em relação à libertação dos pobres, a mundialização possibilitada pela
consciência planetária, a percepção de uma fraternidade para além das nações, a função
de re-ligação e de dialogação das religiões não podem deixá-las nos seus guetos e
oposições. Há uma exigência estrutural da natureza das religiões e uma conjuntural exigida
pela nova consciência planetária de fraternidade universal e pela insuportável exclusão dos
pobres. Há uma unidade e diversidade que fundamenta todo encontro e dialogação: em
Deus a unidade de ser e a diversidade de pessoas (Trindade comunial), no cosmos e no ser
humano (origem, destino e constituição únicos e biodiversidade, culturas, religiões).Visto do
lado da fé cristã, a fé bíblica é marcada pela aliança iniciada por Moisés e levada à plenitude
por Jesus. A um Cristianismo de dominação e conquista, opõe-se um Cristianismo
“universalizável”, da libertação, como rede-de-comunidades, benfazejo à planetarização
pelo vigor da mensagem de Jesus (Boff, 1992). Propugna-se uma práxis do dialógo
interreligioso no nível místico, no nível do encontro fraterno de todos e de tudo e no nível
ético, alimentada por uma nova sensibilidade baseada no cuidado e na compaixão. A cultura
multiétnica e multi-religiosa da AL favorece tal práxis, sem falar dum Cristianismo sincrético
de cara indígena e morena. A oração e a mística são o ponto de partida da religação para
um diálogo interreligioso. O encontro com o Mistério situa as religiões na atitude de súplica,
de louvor, de gratidão, de esperança de encontrarem uma comunhão entre si. Sem essa
força da mística, o diálogo não se sustenta. Ela possibilita o perdão – pedido e oferecido -,
a percepção da unidade na diversidade, o real encontro entre diferentes. Ela conduz a uma
ética que hoje tem exigências de paz mundial, de defesa da vida em todas as suas
dimensões e de modo especial dos pobres. A experiência do pobre perpassa os níveis da
práxis do diálogo. Não há experiência mística do Mistério sem que não se perceba a
sacralidade e primariedade do pobre. Todo encontro é abertura, acolhimento, cuidado e
compaixão que se exprimem em grau maior no pobre. E finalmente toda ética defronta-se
com a maior injustiça da atualidade: a exclusão dos pobres – pessoas, classes, nações,
continentes. O Cristianismo é chamado junto com todas as religiões e seres humanos a
salvar a vida e, portanto, a humanidade sob grave ameaça de destruição.
Moral
História da Igreja
Teologia-objeto
Em poucos anos, a TdL, que produzia suas reflexões, passou a ser objeto de pesquisas, de
dissertações e teses doutorais. Interessou pesquisadores de vários continentes que se
debruçaram sobre ela. Há publicações que se referem a seu método e sua produção
temática e a outras que se concentram em alguns de seus corifeus. A bibliografia nesse
campo escapa da possibilidade de uma referência objetiva pela diversidade e abundância.
Significa que ela já despertou o interesse para além do seu âmbito. Outros trabalhos tentam
estabelecer contacto e comparações entre teólogos da libertação e europeus de monta,
descobrindo afinidades e divergências.
Vida religiosa
Críticas
Apesar de poucos anos de história, a TdL sofreu críticas de fora e de dentro. As críticas
externas vieram tanto de setores conservadores e ideológicos como independentes. As
críticas conservadoras mais comuns acusam a TdL de adotar a análise marxista, produzindo
uma politização e redução da fé cristã ao economicopolítico; de identificar as libertações
sociopolíticas com a libertação evangélica; de encurtar a dimensão pessoal do pecado e da
reconciliação diante da exigência social de conversão. A própria opção pelos pobres é
criticada pelo seu caráter ideológico, ao reduzir o pobre à condição econômica e ao ver neles
a classe revolucionária transformadora da realidade social e da Igreja. Assaca-lhe o
exclusivismo de tal opção e seu caráter conflituoso, que lhe desvirtua a natureza evangélica.
A TdL condenou o moralismo do sexto mandamento, dizem os críticos, e acabou caindo no
do sétimo. Distanciou-se da neocristandade de direita para defender um clericalismo político
de esquerda. Mantém um discurso político que não atinge a cultura atual hegemônica nem
a converte. Sua repercussão não lhe vem de sua eficácia transformadora, mas do jogo que
os adversários da Igreja fazem para dividi-la e enfraquecê-la no seu genuíno papel
evangelizador. Vê-se na TdL a incentivadora de uma Igreja popular com um magistério
paralelo em oposição à Igreja hierárquica. Ela nasceria das camadas populares entendidas
com o sabor marxista de classe e não pela via sacramental institucional. Falta à TdL uma
clareza teológica a respeito da categoria Povo de Deus, interpretando-a sociologicamente e
não biblicoteologicamente. Atribui-se-lhe uma leitura materialista da Escritura, esvaziando-
lhe o sentido transcendente de Revelação. A liturgia, ao ser apropriada pela Igreja popular,
perde o caráter sagrado, sendo instrumentalizada para finalidades políticas. Outra confusão
apontada pelos críticos se refere à identificação do Reino de Deus com utopias
sociopolíticas de corte socialista, subtraindo-lhe a dimensão transcendente e escatológica.
A dimensão utópica e messiânica da TdL encerra riscos de autoritarismo, despotismo,
fanatismo e violência. A TdL valoriza a ortopráxis, ao submeter a Palavra de Deus, as
doutrinas teológicas, a ortodoxia ao seu crivo. Padece de certo positivismo, horizontalismo.
Ao defender a unidade da história e valorizar o compromisso com a história humana, ela
diminui ou nega a ação sobrenatural da graça. Não escapa de certo imanentismo historicista
de corte dialético marxista e utópico. A história caminha por negações dialéticas até sua
plenitude intraterrena. E o socialismo aparece no horizonte da superação do capitalismo à
qual a TdL serve. Em vez de colocar no centro o eixo do presente da Encarnação, vê-o sob
o ângulo da implacável luta de classe com a vitória do bem – classes populares - sobre o
mal – classes burguesas. O apreço em relação às mediações socioanalíticas se faz à custa
das mediações filósoficas, tornando-se mais frágil e vulnerável nas suas elaborações
teóricas. A sua própria base empírica socioanalítica é simplificada, com uma leitura
monocolor da realidade. Não dá conta da complexidade da sociedade capitalista moderna
superindustrializada com economias interligadas. Sua proposta de transformação da
sociedade acaba por ser idealista e ingênua em relação ao mundo socialista e à solidez
consistente do capitalismo. O próprio fracasso do socialismo real mostrou sua insuficiência
teórica e erros programáticos. É o seu método teológico que a desvirtua, ao partir da ótica
do oprimido e ao tomar como fonte e critério supremo da verdade teológica uma certa
interpretação da práxis libertadora que exige uma releitura essencialmente política da
Palavra de Deus, de toda a existência cristã, da fé e da teologia. Esta politização radical é
agravada pelo recurso não-crítico a uma hermenêutica bíblica racionalista que prescinde
dos critérios exegéticos básicos que são a Tradição e o Magistério da Igreja. A categoria
central da práxis não foi elaborada com rigor, reduzida a uma de suas vertentes modernas,
desconhecendo a sua origem aristotélica. Na sua relação com o Cristianismo histórico,
acusado de alianças com as classes dominantes sobretudo burguesas, ela incorre na ilusão
maniquéia de dissociar Cristianismo e história, ao querer libertá-lo dos pecados históricos e
restituir-lhe a pureza essencial do evangelho. Trabalha com o conceito de sociedade e
homem novos, sem elaborar uma correspondente antropologia. Antes parece pagar tributo
à concepção antropológica prometeica moderna. Desconhece a problemática da sociedade
tecnológica avançada, a dimensão da subjetividade. Muitas dessas críticas foram assumidas
pela Congregação para a Doutrina da Fé (1984).
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