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111
1984
Copyright e Giangiacomo Feltrinelli Editore, Milano.
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editora brasiliense s.a.
01223 - r. general jardim, 160
são Daulo - brasil
A ideologia;
a hipo-estrutura e o cinema
a fim de exercer uma função de controle no terrreno da cultura e de psicocultural da atual sociedade, têm canais subterrâneos de
poder em face da totalidade das pessoas às quais se dirige, sem comunicação através dos quais o passado consegue influenciar o
nenhuma exceção. Aliás, ela é obrigada a isso, na medida em que presente. O homem sempre teve necessidade de ideologias, desde
alcança uma plena satisfação, adequada ao seu conceito e à sua quando - com a afirmação da consciência de si - contrapôs-se
utilidade, somente quando realiza esse movimento dialético total e, à natureza e aos outros homens, a fim de exercer sobre ambos
ao mesmo tempo, quando o esconde com o máximo cuidado.' ua própria dominação.
Por isso, a ideologia - mesmo sendo "falsa" (e, aliás, preci- Assim, a ideologia - mesmo não sendo redutível a uma lei de
samente por isso) - é práxis concreta de classe e de parte, que, a natureza, apesar das ambições dos primeiros ideólogos (e dos
partir do terreno das idéias, atua sobre as relações sociais e culturais últimos) - prolonga a motivação mais profunda da sua origem até a
em seu mais vasto significado antropológico. Essa relação social - oposição entre o homem social, histórica, especificamente deter-
a ideologia - tem uma substância material de origem arcaica, que minado, por um lado, e a natureza objetivamente dada, por outro.
penetra no interior do pensamento mágico e mitológico; para Natureza com angústia, como aquele "outro" irredutível que deve
compreender isso, é preciso que se deixe de confundir esse conceito ser domado, controlado, tornado funcional aos interesses da civi-
de "material" com algo brutalmente físico, mas se estenda a noção lização. Natureza que não é somente a objetividade externa, mas
ao conjunto das conexões histórico-estruturais e psicoculturais. também a que é interior ao homem, o qual, em seus esforços para
Se é verdade que a origem do termo "ideologia" pode ser dobrar a natureza às suas próprias necessidades, dobra também a si
datada historicamente no interior da dinâmica da Revolução mesmo.' Desse modo, as raízes da ideologia mergulham até a mais
Francesa - e, em certo sentido, é seu resultado mais puro e arcaica mitologia, que pela primeira vez se colocou como tarefa a
"espiritual" -, isso não quer dizer que foi a era burguesa, nos conexão entre explicação e dominação da natureza, e daí se
locais e nos tempos de seu máximo heroísmo, que inventou, por transferem para a religião, a filosofia, as ciências humanas e sociais.
assim dizer, essa questão." A ideologia, portanto, não é absoluta, Os ideólogos franceses -les idéologues" - afirmavam que se
como o pretendem muitos "materialismos" que a ligam apenas à deveria aplicar também à ciência das idéias aquele mesmo rigor
burguesia, ou tantos "idealismos" que a consideram uma condição científico que, no século XVIII, estava sendo cada vez mais aplicado
perene do ser humano: ao contrário, é algo que se transforma .a qualquer ramo da ciência da natureza, para com isso realizar a
historicamente. Por um lado, é necessário dilatar sua invenção mesma otimização de resultado "cientificamente objetivos". A
temporalmente, a fim de situar seus inícios no interior das formas ideologia - para Destutt de Tracy, inventor do termo e um dos
mais arcaicas da cultura humana; por outro, seu uso atual se maiores idéologues - deve ser uma parte da zoologia e da botâ-
expande sociológica e psicologicamente, envolvendo vários estratos
sociais, que não mais podem ser definidos somente com base em
inserções específicas nas relações de produção. Finalmente, essa (3) Cf. o trabalho de A. Schmidt, /I concetto di natura in Marx, Bári,
dilatação no tempo, no interior da dimensão histórica e pré-histórica laterza, 1969. Nele, a reconstrução não acadêmica do pensamento de Marx
da humanidade, e essa expansão no espaço, no interior da dimensão sobre a natureza chega à conclusão de que a relação entre história e natureza,
entre sujeito e objeto, não é uma relação entre entidades cindidas entre si, mas
sim mediatizadas pela práxis.
(4) Uma importante análise histórica sobre esse tema, que vai das
(1) Como veremos mais detalhadamente em seguida, essa acepção do origens. ao crepúsculo dos idéo/àgues, está em S. Moravia, Tramonto dell'
conceito de ideologia torna-a singularmente afim ao conceito de máscara, tal II/uminismo, Bári, laterza, 1966. Bem mais penetrante, contudo, de um
como, em particular, esse último foi desenvolvido num interessante ensaio de ponto de vista sociológico caracterizado por uma forte marca interdisciplinar, é
Alessandro Fontana: "Assim, a máscara ao mesmo tempo mostra e esconde, toda a obra da Escola de Frankfurt, para a qual o estudo da ideologia é uma
numa figura ambígua e inapreensível, o não-dito do discurso, o não-enunciável constante difusa em toda pesquisa ou reflexão. Mais sistemático é o capítulo
da história, aquilo que a razão nega, recusa ou rechaça" (Ula Scena", in Storia sobre a ideologia das Lezioni di Sacio/agia, do Instituto para a Pesquisa Social
d'/ta/ia, vol. I, Turim, Einaudi, 1972, p. 850). de Frankfurt, editadas por Adorno e Horkheimer, Turim, Einaudi, 1966, pp.
(2) É óbvio que a lei da gravidade existia antes de Newton, assim como 147-166led. brasileira: M. Horkheimer e Th. Adorno (orqs.), Temas Básicos da
aIel da relatividade existia antes de Einstein. Sociologia, São Paulo, Cultrix, 1973, pp. 184-204).
10 MASSIMO CANEVACCI ANTROPOLOGIA DO CINEMA 11
nica.? Aplicando matemática e física aos produtos das idéias, A miséria da burguesia reside nisto: ela conseguiu chegar aos
pode-se finalmente chegar a uma objetividade universalmente conceitos de liberdade, justiça, igualdade, a usâ-los para seus
aceita, que suceda a "superstição" religiosa. O aspecto progressista próprios interesses de classe (ou seja, de absoluta parcialidade), mas
desse materialismo sensualista reside no fato de que, embora não foi imediatamente obrigada a bloquear aquele movimento histórico-
faça distinções entre músculos, plantas e idéias, afasta essas últimas social que, de sua parte, levara a sério esses conceitos, pretendendo
- ou pretende afastá-Ias - da sua suposta origem metafísica. sua imediata realização material. A paralisia e a posterior re-priva-
Desse modo, as idéias - consideradas não mais como divinamente tização dos conceitos de liberdade, felicidade, etc., obrigou assim
criadas e, portanto, em certa medida, como algo sempre incon- tanto o pensamento quanto o Estado burguês a fazerem um acordo
trolável por causa da sua origem transcendente - tomam-se todas com as formas pré-capitalistas da ideologia, em particular com a
elas socialmente utilizáveis e fungíveis, sob a jurisdição da racio- religião. Com efeito, essa é uma forma de ideologia mais complexa
nalidade laica. E, todavia, essa utopia zoológica (que, entre outras do que a propriamente burguesa, na medida em que tem uma elas-
coisas, diz muito sobre os aspectos mais revolucionários do espírito ticidade interior que lhe permite adequar-se a modos de produção
burguês) foi vista com suspeita por aquele mesmo poder que, muito diversos entre si (especialmente quando é depurada de seus
desembocando no bonapartismo, encarou como um perigo essa próprios "pecados" temporais), qualidade que lhe provém em
tentativa "objetivista" empiricamente projetada. Assim, por mais grande parte do fato de ter resolvido, mais do que qualquer outra
moderados que fossem os idéologues - com relação, por exemplo, ideologia, a questão universal da morte, que o materialismo, por
ao radicalismo dos "iguais" -, também eles foram postos fora exemplo, obstina-se em liqüidar como um dado inelutável e
da lei. 6 "normal". Além disso, a religião desloca a conciliação entre
conceito e realidade para o Apocalipse ou, mais banalmente, para o
Reino dos Céus: por isso, por exemplo, a felicidade - negada
(5) Destutt de Tracv, Eléments d'ldéologie, Bruxelas, 1826; cf. Adorno-
explicitamente neste mundo - pode continuar a existir no outro.
Horkheimer, Lezioni di Sociologia, cit.: "O termo 'ideologia' deve-se a um dos E, precisamente por causa dessa defasagem, a ideologia burguesa-
maiores idéologues, Destutt de Tracy. Ele se vincula ao empirismo filosófico, cujos interesses são todos profanos - conseguirá inicialmente
que atomizava o espírito humano para esclarecer o mecanismo do conhe-
cimento e relacioná-Io com os critérios da verdade e adequação do
quebrar a hegemonia religiosa. Por isso, é "lógico" que a clareza
pensamento; mas a intenção de Destutt de Tracy não é nem gnosiológica nem terminológica e projetual da ideologia nasça somente na era da
formal: ele não busca no espírito as simples condições de validade dos juízos, revolução burguesa, e que sua aporia insolúvel resida em tornar
mas quer chegar até a observação dos próprios conteúdos da consciência, até
os fenômenos ideais, decompô-Ios e descrevê-Ios tal como se faz no caso dos
pública a verdade (por exemplo, a igualdade) e, imediatamente
objetos naturais (como, por exemplo, um mineral ou uma planta). A ideologia depois, em reprimi-Ia. Desse modo, não realizando a utopia de
- escreveu ele, de certa feita, com formulação intencionalmente provocativa universalidade objetiva segundo suas intenções, a ideologia regride
- é uma parte da zoologia" (/bid., pp. 208-209). E ainda: "A sua ciência das
idéias - a ideologia - deve alcançar certeza e segurança semelhantes às da
cada vez mais a ser justificação, terminando por se aliar com a mais
matemática e da física; o rigor metodológico da ciência deverá pôr termo, velha e desgastada religião.
de uma vez por todas, à arbitrariedade e à variabilidade indiferente das O destino da ideologia será o de não ser jamais completamente
opiniões" Ubid.).
(6) Diz Napoleão, numa passagem citada por Pareto: "É à ideologia,
verdadeira, nem, ao contrário, completamente falsa. Isso significa
Í'
essa tenebrosa metafísica que, investigando com sutileza as causas primeiras, que não é certamente falso o conceito de liberdade, mas também
visa a fundar a partir delas a legislação dos povos, ao invés de adequar as leis que não é certamente verdadeira a sua realização histórica. As
ao conhecimento do coração humano e às lições da história, que se devem
remontar todas as desgraças sofridas pela nossa bela França. Esses erros
ideologias "podem ser verdadeiras 'em si', como o são as idéias de
deviam levar - e efetivamente levaram - ao regime dos sanguinários. Com
efeito, quem proclamou o princípio da insurreição como um dever? Quem
adulou o povo, proclamando-lhe uma soberania que ele é incapaz de exercer?
Quem destruiu a santidade e o respeito pelas leis, fazendo-as depender não dos conhecimentos das leis civis, criminais, administrativas, políticas e militares?"
sagrados p.rincípios da justiça, da natureza das coisas e do ordenamento civil, .(cit. em V. Pareto, Tratatto di sociologia generale, Milão, Comunità, vol. li, §
mas apenas da vontade de uma assembléia composta por homens alheios aos 1793, nota).
12 MASSIMO CANEV ACCI ANTROPOLOGIA DO CINEMA 13
liberdade, de humanidade, de justiça, mas não são verdadeiras na tem de controlar o trabalho assalariado; ao lado dessa origem, sob
medida em que têm a pretensão de já serem realizadas" .7 ela e, em parte, dentro dela, pode-se entrever como algo cada vez
Em conclusão, a essência do significado da ideologia deve ser mais autônomo e essencial a ideologia originária, ligada tanto aos
estendido e articulado com o conjunto das conexões histórico- modos de produção pré-capitalistas quanto à mais ampla relação
sociais e psicoculturais, que não se referem apenas à dimensão homem-natureza, que se realiza como dominação sobre a natureza,
ontogenética do indivíduo singular, biológica e socialmente deter- sobre os outros homens e sobre o próprio Si Mesmo. Os sedimentos
minado, com suas articulações dicotõmicas relativas à estrutura de mágicos e mitológicos dessa extensão da dominação chegaram, com
classe, às relações de produção, à divisão do trabalho, mas também toda a sua carga subversiva-regressiva, até nossos dias, transfi-
com a dimensão filogenética (pouco materialisticamente ignorada gurados na e pela moderna ideologia.
pelo materialismo), relativa à gênese da espécie, à dialética sujeito- Talvez os próprios Marx e Engels tenham liqüidado de modo
objeto, assim como essa se constituiu desde a mais arcaica huma- muito apressado e otimista aquela reprodução de ideologias que
nização do homem, quando este se cindiu e se contrapôs ao resto do continua a ocorrer dentro deste modo de produção, mas cuja origem
mundo animal. 8 Aliás, pode-se definir a pergunta sobre a origem do - estando fora dele - remete àquela relação homem-natureza que
homem, a sua finalidade e o seu fim, como a pergunta das é mediatizada, mas não anulada, socialmente. Por isso, as questões
perguntas, que se reproduz em cada geração, independentemente colocadas pela morte (que tinham sido enfrentadas pelo materia-
dos diversos modos de produção, e que coloca todas as condições lismo antropológico de Feuerbach) ou pelo sexo (que o serão pela
filo genéticas com base nas quais qualquer resposta dada não pode psicanálise de Freud) não são determinadas apenas pelo sistema de
deixar de ter uma forma ideolôgica.? produção. Nem mesmo "em última instância". O homem "natural"
Isso significa que a ideologia não é determinada somente pelo não é reassumido pelo homem "social", segundo o esquematismo
capital, a partir do momento em que - conquistado o poder - ele sociológico imperante, assim como tampouco ocorre o inverso,
apesar das fixações de algumas escolas etológicas.
Com relação aos problemas com que nos defrontamos nesta
(7) Adorno-Horkheimer (eds.), Lezioni di sociologia, cit., p. 221. E
mais: "a ideologia, com efeito, é justificação" (ibid., p. 212). O grifo é dos sociedade tardo-capitalista, deve-se rechaçar a ilusão - também
autores. ela ideológica - segundo a qual a ideologia seria o reflexo, ou
(8) "Se quiséssemos datar mais especificamente a gênese do Homem, "imediato" ou "dialético ", dos vários modos de produção. Uma vez
escolheríamos o momento em que, entre os mamíferos, a família dos
homínidas distinguiu-se das outras famílias da ordem dos primatas. Essa descoberto o truque - de resto, tão banal -, as massas teriam de
separação dos caminhos genéticos assinala um ponto do qual mais se sair facilmente da "prê-histôria" para retomar em suas mãos o
retrocederá. Para os homínidas, ela eliminou a possibilidade de se tornarem próprio destino. Ao contrário, isso não ocorreu e jamais ocorrerá,
hylobatidae (por exemplo, gibões) ou pongidae (por exemplo, orangotangos,
chipanzés, gorilas). Uma vez que os progenitores dos hornínidas superaram porque as coisas são mais complicadas: qualquer pessoa de escola-
essa bifurcação (e a superaram tomando precisamente o caminho dos rização recente é capaz de pronunciar uma filípica contra a mani-
homínidas), restaram-Ihes apenas duas alternativas: ou tornavam-se humanos pulação de massa, com a mesma seriedade ritual com que outrora
ou não conseguiriam sobreviver. Com efeito, o único gênero da família dos
homínidas quesobreviveu foi o gênero homo e, no interior do genus homo, a recitava o ato de dor. E, todavia, a manipulação continua
única espécie que ainda sobrevive é a do homo sepiens" (A. J. Toynbee, 1, a se difundir hierarquicamente sem obstáculos. A denúncia apenas
Mankind and Mother Earth, Oxford University Press, 1976; trad. italiana, " histórico-estrutural da ideologia é, por sua vez, ideológica. 'Trabalha
racconto de/!'Uomo, Milão, Garzanti, 1977, p. 32).
(9) Sobre essasquestões, cf. Robin Fox Ied.), 8íosocial Anthropology, astuciosamente para reforçar a dominação que se tornou cada vez
Association of Social Anthropologist of Commonwealth, Londres, 1975; trad. mais complexa e difusa em comparação com a clareza dicotômica do
italiana, Antropologia biosociale, Roma, Armando, 1979. Deve-se ressaltar, em tipo "operário e capital" de oitocentista memória (se é que alguma
particular, o conceito de "imprinting", segundo o qual o organismo humano
parece ter per.íodos críticos para aprender certas coisas em determinados vez o foi).!O A indignação contra a manipulação é o último "scoop "
momentos e não em outros. E, ainda, C. S. Coon, The Story of Man, 1954
(trad. italiana, Storia de/!'Uomo, Milão, Garzanti, 1956), em particular a sua
(10) M. Tronti, Operei e capitale, Turim, Einaudi, 1966, p. 33.
explicação do mito de Pandora em relação à consciência da morte (pp. 78-79).
Essa análise é interessante no que se refere à justa crítica da regressão
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flllOAtlU CLOVIS SAlGADO
SUA - 81BlIOlfCA
ANTROPOLOGIA DO CINEMA IS
14 MASSIMO CANEV ACCI
adesão mimética e socializada com um estilo prático e asséptico. s subjetivizações, ou seja, o processo entre mutações natural-
Nenhum ideólogo e nenhuma forma de ideologia buscam mais, ulturais através do qual os indivíduos se estratificam em classes,
como no passado, objetividade; as tensões universalistas do passado xos, raças, idades, etc., interagem com as objetivações, isto é, com
heróico cedem lugar à operacionalidade fungível. Não são mais as li processos materiais de intercâmbio orgânico do homem com a
idéias das classes dominantes que são dominantes; e isso não apenas natureza. Essa dialética total foi ignorada, removida, censurada.
por causa da decadência e da inutilidade das idéias produzidas por issemos que a ideologia consiste numa falsa consciência que tem
essas classes, mas essencialmente porque as idéias parecem ser ambição de definir o universal, quando, na realidade, esconde não
geradas a partir do interior das mercadorias e situar-se sobre elas. só precisos interesses de classe, mas também desejos, necessidades,
Tal como Atena nasceu da cabeça de Zeus, a ideologia brota do tensões culturais de grupos humanos genéricos (ou seja, enquanto
espírito interior das mercadorias. O modelo é a partenogênese: parte do gênero humano). Portanto, ela não é própria apenas do
o mito parece realizar-se nas reificações. apitalismo, mas também das pretensões de controle do universal
Por um lado, a produção de mercadorias é também produção través ou de facciosismos organizados ou de individualidades
de ideologia; por outro, a produção de ideologia contém sempre o singulares. Aliás, o modelo originário da ideologia, que pretende
momento formal das mercadorias em seu "corpo". Mudando sua sujeitar o todo à parte, é aquele experimentado na infância - e
própria natureza, a ideologia já não organiza tanto a adesão ao mesmo antes dela. A restauração da onipotência originária, na qual
consumo existente, mas se tornou sobretudo mercadoria entre as criança é o único centro e tudo o mais é periferia a seu serviço,
mercadorias; foi subsumida à produção de valor, no sentido de que O modelo primário de toda, ideologia, inclusive daquela que põe o
se produzem mercadorias-ideologias como se produzem televisões e spírito do capital como onipotente e eterno.
blue-jeans. Pode-se dizer que a ideologia realiza mais intensamente A história dos vários modos de produção, em particular deste
a finalidade para a qual fora forjada no capitalismo na medida em último - o tardo-capitalismo -, interage com a natureza da
que se reifica, 13 O sucesso das mercadorias-ideologias é o melhor "natureza", tanto externa quanto interna ao homem, vizinha e
impulso da produção ao consumo, à ideologia das mercadorias. passada, similar e diferente. O campo da pesquisa sobre a ideologia,
E, desse modo, também as mercadorias - os produtos mais mate- do ponto de vista crítico da transformação, não pode se esgotar na
rialistas do capitalismo - sofrem um processo de "espirituali- sfera da ontogênese, mas deve enfrentar toda a perspectiva filo-
zação"; essa nova relação histórica entre mercadorias e ideologia, genética. Espécie e capital. Se a ideologia encontra sua razão de ser
numa espécie de viagem antropológica que não elimina as etapas inicial a partir da cisão entre sujeito e objeto (e já que tal drama é
precedentes, mas as conserva todas com seus efeitos específicos, vivido por cada indivíduo singular a partir de sua fecundação),
articula-se com a própria origem da ideologia: a contradição entre a formação ontogenética do homem, ou seja, o seu ser individual e
sujeito e objeto," No interior dessa contradição das contradições, historicamente determinado aqui e agora, deve relacionar-se com a
fundação filogenética da espécie, ou seja, com sua constituição
enquanto homo sapiens,
(13) Na sociedade atual, entrou em decadência a antiga função da
ideologia; por isso, é necessária sua reformulação, adequada à transfor-
mação do conceito: "A falsa consciência, socialmente condicionada, de hoje
não é mais espírito objetivo I. . .l: ao contrário, trata-se de algo cientificamente
adaptado à sociedade, Essa adaptação se opera mediante os produtos da
indústria cultural: cinema, revistas,jornais ilustrados, rádio, televisão, literatura
de grande difusão dos mais variados tipos, entre os quais têm um papel
especial as biografias romanceadas" (Adorno-Horkheimer, Lezioni di Socio- pesquisaa dialética realentre materialismo antropológico e critica da economia
logia, cit., p. 223). pol/tica (trabalho que, em parte, já foi iniciado por A. Schmidt em /I
(14) A ideologia alemã deveria ser menos "alemã" e mais crítica da materialismo antropologico di L Feuerbach, Bari, De Donato, 1975). Muito
ideologia em geral, tal como era afirmado no primeiro capítulo de Die Deutsche facilmente se pensou que essa última "crítica" pudesse conter, em sua
Ideologie, Roma, Editori Riuniti, 1958. Em particular, a relação de Marx e parcialidade, a solução total para a libertação dos indivíduos, das classes, da
Engels com Feuerbach deve ser reavaliada. Seria um importante objeto de humanidade.
18 MASSIMO CANEV ACCI
ANTROPOLOGIA DO CINEMA 19
Hlpo-estrutura e cinema:
sua tese - que, de resto, é normalmente negligenciada
a dialética antropológic~"triádica" ias sociais - tem precedentes também nas pesquisas
Para realizar uma tal dialêtica entre espécie e capital, entre 1IIIullcltlspelo Instituto de Frankfurt sob a direção de Horkheimer.
conceito de natureza e consciência de classe, é necessário um novo NUIII cios "apontamentos e esboços" da Dia/ética do Iluminismo,
materialismo, que leve até o fim a autocrítica do materialismo 1I1I11l1I\(10 "Interesse pelo corpo", afirma-se que, "sob a história
legitimado. Dessa perspectiva, não só a ontogênese - isto é, a I'lIl1hdclcla da Europa, corre uma história subterrânea. Ela consiste
componente subjetiva do indivíduo como exemplar da espécie - 1111 dUNUno dos instintos e das paixões humanas reprimidos e
deve ser posta no centro da prâxis do ponto de vista da transfor- dllllrlUlIl'Ildos pela civilização" .17 No atual sistema autoritário, volta
mação social, mas também a sua base filogenética, que mergulha 111'1, "o que está oculto"; e "inclusive a história evidente aparece em
suas raizes na própria constituição da humanidade, chegando até a' 'li relnção com aquele lado noturno", 18 obrigando também a
origem da espécie. Essa base funda uma hipo-estrutura tão impor- rfl\~'n progressista a tomar consciência dele. O caráter subterrâneo
tante quanto as duas únicas consideradas pelo materialismo tradi- dllll"" história é determinado essencialmente pela necessidade social
cional (estrutura e superestrutura), muito mais complexa não só do d" exercer, através da divisão do trabalho, a mutilação de sua
ponto de vista de sua transformação, mas também por causa das 11111I«;nO com o corpo.
li
enormes dificuldades que coloca para a modificação substancial do orpo, como o que é inferior e subjugado, é ainda iro-
presente histórico. Com o conceito de hipo-estrutura, entendemos o IIl\!illdoC maltratado, e, ao mesmo tempo, desejado como o que é
momento biológico-instintual do homem em seus aspectos compor- III'olbldo, reificado, alienado. Somente a civilização conhece o corpo
tamentais, ou seja, aquele patrimônio bio-psíquico que não se '1lI11t) uma coisa que pode ser possuída, somente nela ele é separado
esgota na dimensão econômica ou cultural, mas compreende em si dlll)HPll'ito - quintessência do poder e do comando - como objeto,
também a dimensão da natureza, segundo um enfoque meto- '1I1Na morta, corpus. Com a autodegradação do homem a corpus, a
dológico pelo qual ela só é o que é na medida em que é mediatizada uutureza se vinga por ter sido degradada a objeto de dominação,
por uma relação consciente ou inconsciente com o homo sapiens, O I 11I Méria-prima" .19
legado de memórias pré-capitalistas, de tipo instintivo-ritual, é
onceitos análogos - embora no interior de um sistema ló-
herdado, transformado, mas não anulado em sua validade ori-
diverso - foram desenvolvidos por Lêvi-Strauss. Na introdução
ginária - que conserva sempre um determinado nível de autonomia
1\ \I ma série de escritos de M. Mauss (que, por sua vez, já haviam
- pela atual fase tardo-burguesa. Marcuse - que, em parte,
Ilfluenciado Adorno e Horkheimer), e referindo-se em particular ao
aproximou-se da fixação desse conceito, mas que não o explicitou -
juxto sobre "As técnicas do corpo", ele afirma que a constituição de
afirma, no capítulo sobre a Origem da civilização repressiva (filo-
rquivos internacionais das técnicas corporais, além de se contrapor
gênese), que a análise da estrutura psíquica "é obrigada aremontar
preconceitos raciais, forneceria "informações de uma riqueza
para além da primeira infância, indo da pré-história do indivíduo à
nsuspeítada sobre migrações, contatos culturais e empréstimos, que
da espécie". 15 Isso para afirmar que "a civilização continua a ser
situam num passado longínquo; e gestos aparentemente insigni-
determinada pela sua herança arcaica; e essa herança, segundo a
ficantes, transmitidos de geração em geração e protegidos por causa
afirmação de Freud, compreende 'não apenas disposições, mas
de sua própria irrelevância, dão freqüentemente informações mais
também conteúdos ideativos, traços de memória das experiências
passadas'. As implicações dessa concepção são de amplo alcance no
que se refere ao método e à substância das ciências sociais" .16 (17) Adorno-Horkheimer, Dialettica dell'illuminismo, Turim, Einaudi,
1966, p. 247. A citação é exemplificativa das pesquisas sobre o anti-semitismo
obre o autoritarismo, que haviam imposto a necessidade de ter de "sair"
(15) H. Marcuse, Eros e civiltà, Turim, Einaudi, 1964, p. 97 (ed. brasi-
também da sociedade contemporânea para compreender a origem dos
leira: Eros e civilização, Rio de Janeiro, Zahar, 1968). mesmos.
(16) Ibid. A citação de Freud é extraída de L 'uomo Mose e Ia religione (18) Ibid.
monoteista, Turim, Boringhieri, 1977. (19) Ibid., p. 249.
20 MASSIMO CANEV ACCI ANTROPOLOGIA DO CINEMA 21
confiáveis do que as próprias jazidas ideológicas ou os monumentos . 1I111t1INI'II,nlu, dos traços de memória não faça pagar o seu preço:
erigidos" . 20 1111dtl!lrOl'l'L\ contra qualquer real ou hipotética transformação
Uma pesquisa arqueológica sobre os hábitos corporais na 11I11I1I'1I1-lIllpOl'estrutural. A possibilidade de afirmação dessa
Europa e em outros lugares poderia dar "ao historiador das culturas 11\til 1\ 111111 l!'lftdica tornou-se ainda mais difícil por causa da práxis
conhecimentos tão preciosos quanto os da pré-histôria ou da 11111 ,"111 aomente estrutural (ou, de fato, dialética monista), que o
filologia". E, desse modo, a antropologia poderia voltar a ser "um 1IIIIIIItlldHtno sociológico imperante impôs, fazendo com que já a
sistema de interpretação que levasse em conta simultaneamente os IIIIIIIVI'II",vl4perestrutura seja sinônimo de secundário e inessencial.
próprios aspectos físicos, fisiológicos, psíquicos e sociológicos de IJ'\'"ltl~'(t() jilogenética deve irromper como objetivo articulável na
todos os comportamentos". 21 1'!lI'IH!I'tlvll da práxis e da cultura, tendo como referência uma
"O fato social total, portanto, apresenta-se com um caráter /';'111 ostrutura que não se esgota inteiramente na pura vida coti-
tridimensional. Ele deve fazer com que coincidam a dimensão 01111I111, embora não esteja cindida dela. A autonomia filogenética
propriamente sociológica com os seus múltiplos aspectos sincrô- 11I"11 1',\IIII(ural da espécie é a grande ausente do materialismo
nicos, a dimensão histórica ou diacrônica, e, finalmente, a dimensão til 11l1(IHk'I),razão pela qual este último tende a fracassar na
fisio-psicolôgica" . 22 Ii)1I11 '.II"nt) do todas as suas premissas (e promessas) críticas, todas as
Mas essa colocação, embora apresente afinidades com a nossa IIIU se faz poder positivo. Na voragem determinada dessa
_ com a explícita vontade de introduzir o lado psicofisiológico ou 11111/'11('1/1. sempre cultivaram seu reino indisturbado ou a ontologia,
bíopsíquico no interior da pesquisa social (reflexos, secreções, 1111111I11/0 ciência da imutabilidade, ou, no melhor dos casos, a arte,
hábitos corporais, remoções orgânicas, representações individuais e 1lIIIIIIIIto anticiênia do eterno retorno. Ao contrário, com essa
coletivas inconscientes e não só conscientes) -, afasta-se dela IIVIII'""Oradical do materialismo, o ser humano pode se reconciliar
substancialmente, na medida em que restringe a dimensão histórica '"111 Nlltlessência, não mais dada como imutavel no reino da forma,
a um só nível e a exclui da dimensão sociológica e psicofisiológica. É ,. 1l~lIdll (quase "sujada") somente. nas partes "inessenciais" à
o limite do estruturalismo, jamais resolvido, que anula o ponto de 'IIJlthlHGncia histórica, apenas à qual pertenceria a possibilidade de
vista da transformação consciente, quase como se a tarefa das III1.dllllÇ/lS110 sub-reino dos conteúdos. Ao mesmo tempo, a antro-
ciências sociais fosse a de fazer com que o indivíduo e o coletivo I'lIloUlll pode escapar do círculo mágico de "ciências das inva-
aderissem à aceitação das estruturas inconscientes. Ao contrário, a 111I1I10N",assim como experimentou a falência de ciência das
dimensão histórica ou diacrônica está presente - ainda que com "dIrIlSOOS relativas", das "evoluções unilineares" ou da "tautologia
tempos e modos diversos - em todos os três níveis. Imclcuaüsta" , para ser refundada como principal ciência crítica
Para a reconsideração do materialismo, a dialética dual IJIlll busca a compreensão na raiz da contradição entre sujeito e
revelou-se insuficiente precisamente em seu mais íntimo objetivo, ou I1hJtllO, entre capital e natureza, entre espécie e cultura. E jamais
seja, no momento mesmo em que a compreensão de um deter- PIlI'1Ianular, ex cathedra ou ex politburo, de tanto em tanto, um
minado aspecto da vida histórico-social deveria significar também a IUlIsesp6los, mas sim para exaltar sua especificidade humana de
colocação das bases para a sua superação. Em seu lugar, deve-se vkln, a autonomia deles, assim como a sua dialética "triádica", com
organizar teórica e praticamente uma dialética triádica hipo-supra- 1 única finalidade de superar os sistemas de dominação histori-
infra-estrutural, única capaz de compreender a totalidade das nuuente determinados e os sistemas de mutilação arcaicamente
articulações humanas; e isso para evitar que, no momento decisivo ronstuuidos .23
da superação, a história "secreta" das pulsões, do instinto, do Do que foi dito, deduz-se que também para o cinema -
máximo produtor de ideologias mercantilizadas do século xx: -
_--_.
'--'•....
22 MASS:!MO CANEV ACCI ANTROPOLOGIA DO CINEMA 23
vale a regra segundo a qual ele não pode ser explicado nem, como profissão de jornalista, inteiramente esvaziada de qualquer irredu-
muitos tecnocríticos gostariam, no interior do sistema "cinema" (do tibilidade ao poder constituído.
cinema ao cinema, através do qual se chegaria a nada menos do que Estética do cinema e filme singular se fundiram na mesma
ao imaginário coletivo); 24 nem como desmascaramento inteiramente identidade ideológica. A paralisia da crítica deriva de ela não mais
"politizado" das ignomínias executadas em favor do sistema dos conseguir se deslígar da viscosidade de seu objeto, precisamente o
partidos (da política ao cinema); 25 nem como recorrente hiperva- cinema. Ela, embora modernizada pelo job enrichment, pelo qual
lorização da "crítica da economia política", que se ilude em poder muitos críticos mudam seus papéis, não consegue compreender a
explicar o cinema através do simples desmascaramento das escolhas mutação ocorrida na função da ideologia, agora mercantilizada
seletivas do investimento pelo sistema de produção fílmica, como como qualquer "res" reprodutível. A crítica não mais se distancia
qualquer outra atividade produtiva (da economia ao cinema). do cinema, porém se confunde cada vez mais com ele; depois de ter
A estética no cinema - que outrora, em seus melhores momentos, sido subsumida no interior da objetividade reificada de qualquer
tentou uma síntese entre autonomia fílmica, política progressista, filme, tornou-se seu apêndice. Isso se manifesta não só na parte
crítica ao oligopólio produtivo das major companies - foi reduzida "ingênua" da resenha, onde o crítico deve contar o enredo, mas
ao "me agrada" ou ao seu contrário, "não me disse nada", como também na parte "técnica", onde a presunção do juizo parece ainda
afirma o público distraído dos museus. A isso se reduziu o debate mais seguir a decifração da linguagem autônoma do filme na
que teve lugar sobre o "belo": os profissionais da morte da arte, por medida em que é um prolongamento dele. Por sua vez, o leitor
todos mal-entendida como apologia da morte da "aura" e vitória da desencantado, bem treinado desde criança no jogo da repetição,
reprodutibilidade, acreditaram ter de orientar os seus "patroci- passa rapidamente a vista pelo artigo com o único objetivo de
nadores" em favor da operosidade industrializada dos produtos em descobrir o "me agrada" (ou não) do crítico conhecido, com o qual
série. Nesse sentido, a estética do filme, mesmo em suas melhores - como se diz - ou se está de acordo ou se está contra. A crítica
componentes "críticas", adequou-se ao modo de produção do está agora domada pelas leis da distribuição, que, por sua vez, estão
cinema, à natureza de sua ideologia, à cultura das invariantes. sempre cada vez mais vinculadas com as da produção. O "mínimo
A estética, cujo nome já remete ao sensível, foi transformada garantido", que o olígopólio dos cinemas metropolitanos que
em prolongamento das mesmas coisas-reificadas das quais inutil- lançam um filme pela primeira vez oferece ou recusa à produção de
mente, outrora, tentavam se distanciar mediante a "crítica". "Crí- filmes que já se sabe que conseguirão o máximo coeficiente de
tica" que, por sua vez, sobrevive apenas como termo designador da utilização dos lugares para projeção, tornou-se o não mais oculto
financiador "de massa" e "de elite" do cinema mundial, que
seleciona a imodificabilidade do "enredo garantido". Finalmente,
quanto mais o filme custa, tanto mais a "crítica" está predisposta à
(24) O sucesso de um espetáculo como Massenzio em Roma, organi- apologia. Não porque seja corrupta, como quer o moralismo de tipo
zado pelos cineclubes e pela prefeitura, é semelhante à incapacidade de saber
explicá-Io. Sobre esse tema, voltaremos detalhada mente no último capítulo; cominformista, mas precisamente porque é o puro esplendor do
mas não devemos silenciar, de imediato, a mais incrível das mentiras - agora capital investido a ser irresistível. E, depois, não se pode brincar
convertida infelizmente em "lugar-comum esquerdista" -, que afirmava a com a atual recessão, se não se quer ser corresponsâvel pela
realização de uma simbiose entre imaginário coletivo e cinema. Ao contrário, é
precisamente o cinema enquanto Super-Ego que, aliando-se às zonas mais demissão de outros profissionais do ramo. A crítica deve relaxar, e
infantis do ld, tornou-se instrumento de conspiração contra a autonomia do não ser muito exigente; assim, será possível sair da crise cíclica
Ego e de sua imaginação. sem rupturas e do modo já conhecido: com o fortalecimento dos
(25) Os vários festivais foram sempre semelhantes nessa função.
Todavia, foi sempre mais significativa a diferença entre, por exemplo, a Feira fortes.
de Verona e a Mostra de Veneza (que, ao contrário, para os hipereconomicistas A refundação da crítica só pode ser antropológica. Uma
do cinema, é insignificante), na medida em que a segunda trata de um sistema antropologiafílmica. O cinema deve ser reconsiderado globalmente,
de "res" cujo mercado é a autovalorização da mercadoria-ideologia. É o
mercado do novo "Espírito" que, enquanto tal, busca o auto-reconhecimento i
não apenas em relação à conexão canônica estrutural superes-
(o Leão de Ouro). trutura, mas também em face da terceira dinâmica, a hipo-estru-
J
ANTROPOLOGIA DO CINEMA 2S
24 MASSIMO CANEVACCI
tural. A triplicação dos planos materiais remete à dialética que deve agora. E isso porque, em sincronia com essa cisão, funda-se a
ser constituída - para cada filme, assim como para o cinema em mímese originária, cuja "lógica" sobrevive nas relativas transfigu-
seu conjunto - entre: 1) estrutura do indivíduo e estrutura da rações, para se recompor ao lado e no interior do enigma do cinema.
espécie; 2) composição de classe e composição da natureza; Entre outras coisas, o cinema é - por sua "natureza" - antro-
3) sistema de produção de valor e das mercadorias-ideologias. pológico, na medida em que não lhe é estranha a possibilidade de
representar qualquer momento cultural da história do homem no
A critica antropológica, portanto, deve produzir uma síntese espaço e no tempo, com um envolvimento da percepção bem
entre: 1) a critica interna às leis de movimento próprias do seu superior às anteriores formas de narração. O enfoque globalista é
conceito de cinema, na consideração da especificidade de suas próprio de sua "razão interna", ou seja, tanto de sua técnica como
técnicas, de sua morfologia estética 26 e de sua produtividade de de seu espírito. Technai e Logos são agora sintéticos no cinema, no
valor; 2) a crítica externa a todo não-cinema, tendo em vista a duplo sentido de unificados, serializados e descarnalizados pela
reconsideração global de qualquer forma de expressão e sucessivas reprodução em laboratório (estúdios e exteriores). A critica antro-
ritualizações históricas, incluindo o modo de vida cotidiano; 3) a pológica, portanto, deve tender a quebrar a ligação que envolveu a
crítica ao implícito, que tem como referência particular, mas crítica enquanto tal, fazendo dela um prolongamento do tripcito
não exclusiva, a dinâmica hipo-estrutural. Com esse termo, en- ideologia-mercadoria-filme: ela deve alcançar o máximo distancia-
tende-se mais detalhadamente aquele complexo hereditário, tanto mento possível em relação à obra singular e, ao mesmo tempo,
biologicamente (no terreno dos instintos, das pulsões, do incons- mergulhar as mãos - como os antigos arúspices - nas vísceras da
ciente) quanto culturalmente (no terreno do comportamento vivido forma-cinema, até o último fotograma, a fim de compreender o
II
mas não conhecido, cuja história é subterrânea, oculta entre as enigma mítico do seu poder de atração. Desse modo, a forma-
dobras do indivíduo, da espécie e da História oficial). Considerada cinema se apresenta como uma totalidade cujos membra disiecta
pela oficialidade acadêmica materialista como "não-existente" ou pela ideologia - e pelas infinitas publicações especializadas -
como "lumpen", essa torrente hipo-estrutural tende constantemente devem ser recompostos numa nova síntese, porém não mais apenas
a escapar do implícito e a impor sua existência "pública" de modo com base na história do cinema, mas também na sua essência. A
cada vez mais dramático. representação mimética sempre se deu formas de duplicação, na
A crítica do cinema, como dialética entre uma nova sociologia medida em que sua ambição consiste em reconciliar numa síntese
da natureza e uma nova antropologia da sociedade, deve explicar as mágica a separação originária entre sujeito e objeto, que cada indi-
formas - ambas mediatizadas historicamente - da composição de víduo revive em sua própria experiência, assim como revive a
classe e da composição da natureza, de cujos "interiora" nasceram identidade arcaica entre orgânico e inorgânico. Trata-se, em última
as representações miméticas: o mito, o teatro, a fábula, a religião, instância, do pressuposto daquela angústia sintética entre classe e
o enredo romanesco, chegando até a forma-cinema. capital, entre trabalho vivo e trabalho morto, entre mercadoria e
indivíduo, exigida pelo atual modo de produção. Angústia sintética
Somente a globalidade radical, que vai até a separação
que elimina toda diferença, numa identidade perversa, entre o ser
originária entre o homem e a natureza, para refazer o percurso das
humano e o ser das coisas. Desde sua origem, as imagens preten-
mutações dos fetiches, pode compreender a máquina-cinema aqui e
deram não apenas capturar, mas também ser arealidade. A dupli-
cação que o cinema produz - capturando a consciência do espec-
tador ~ deve ser interpretada a partir da função originária exercida
(26) Para evitar equívocos, é bom dizer imediatamente que a meto- pela mímese, a qual, por assim dizer, refloresce em todo filme
dologia de Propp sobre a fábula não é a adequada a essa finalidade, como
alguns desejavam, por causa da ilusão forma lista de aplicar ao estudo singular. Também por isso, a ideologia do imaginário fílmico -
morfológico da fábula (ou seja, a uma expressão da cultura humana) o mesmo como, por bondade da lingüística, algo que é feito derivar do mesmo
cânone "morfológico" usado para a botânica (cf. V. J. Propp, Morf%gia della étimo "imagem", que caracterizaria o filme e o seu duplo -
fiaba, Turim, Einaudi, 1966, p. 3). Como vimos, trata-se do erro mais clássico
dos idéoloçues. é a última vulgaridade adequada à massificação escolarizada.
~
26 MASSIMO CANEV ACCI ANTROPOLOGIA DO CINEMA 27
Toda mímese é uma tentativa de anular a cisão originária; mo do público, através precisamente do encantamento mimético
e as imagens foram, sempre, o instrumento da mímese para realizar da representação.f
sua "paixão". Nas máscaras funerárias dos reis de Micenas de Já na era da livre concorrência, o Espírito Absoluto se revelava
dezesseis séculos antes de Cristo (entre as quais a do célebre falso s olhos da crítica como versão idealista do Capital Absoluto.
Agamênon), feitas com uma sutil folha de ouro aplicada à face do A expressão de Marx é muito menos metafórica do que habitual-
rei recém-morto, a fim de capturar através de uma mimese áurea a mente se crê. O capital, com efeito, pode se constituir enquanto tal e
imagem eterna do indivíduo e subtraí-Ia à decomposição, fundem-se orno "governo" somente se se colocar como universal. E, para se
- apesar da imobilidade que, de resto, já está presente em todo rganizar nessa dimensão, é fundamental - como vimos - a ideo-
fotograma fixo - o espírito e a técnica, a estrutura ea função, logia, cuja finalidade consiste em universalizar a particularidade de
o significante e o significado, que serão próprios, mutatis mutandis, classe do próprio capitalismo, e que, nesse movimento, realiza a
da era das tecnologias reprodutíveis. A atração que aparecer em um perfeição que lhe faltara nos estágios precedentes. Desse modo,
filme exerce - uma atração que envolve aristocratas e proletários, como vimos, também a mímese mítica dos reis micênicos era
burgueses e intelectuais - não deriva tanto da satisfação do desejo ideológica, na medida em que pretendia fazer passar como algo
de se tornar momentaneamente público, mas na crença de alcançar dado a reconciliação entre particularidade contingente do indivíduo
a imortalidade. Por isso, com justiça, o astro e a estrela são (contanto que seja rei, de onde resulta o caráter arcaico da
chamados assim e deles se diz que as obras (os filmes) lhes ideologia) e a universalidade do Tempo e da Morte. A essência desse
sobreviverão. E esse é também o significado profundo de toda momento ideológico consiste em expor a representação do cadáver
.1 "identificação" do espectador, enquanto transmissão e captura de como algo imortal através do seu decalque em ouro. Ao contrário,
papéis imortais. na fase revolucionária da burguesia, a relação entre Espírito e
O público dos espectadores é esmagado num status filoge- Capital colocou-se como conflito pela hegemonia em face de dois
nético e não resiste à mimese conjugada com a reificação. Ele não é diferentes modos de organizar tanto a produção como o conjunto
apenas nem sobretudo reprimido numa condição interclassista que dos valores humanos. Conflito que cedo se resolveu em um pacto,
prescinde de sua relação real com- a produção; porém, de modo formalizado naturalmente do ponto de vista do vencedor, que fará
ainda mais profundo, sofre uma homogeneização enquanto espécie, do Espírito o melhor aliado do Capital, ambos unidos contra as
que elimina como supérfluos os resíduos da biografia." Em todo ameaças do trabalho vivo que recusava sua própria reificação.
filme, repercorre-se - no interior da psicologia, da natureza e da E assim se produz uma transubstanciação do Capital em Espírito
cultura do espectador - toda a história das mímeses humanas, por meio da Ideologia, como um revival do mistério da Santíssima
desde as objetivações icônicas arcaicas até as inquietantes holografias Trindade. Esse movimento é necessário para completar, na esfera
feitas com laser, que reproduzem toda a tridimensionalidade em das idéias, aquele outro movimento mais sangüíneo, realizado na
movimento do corpo humano. O mais agudo dos críticos não esfera do social e dirigido no sentido de representar o capital como
consegue deixar de se envolver - apesar de sua extrema malícia e um dado "de natureza", inelutável e ineliminável. O capital
desencanto - pelo terror evocado pelo filme "de horror", que torna-se verdadeiro deus e verdadeiro homem.
continua a derrubar todas as barreiras de defesa tanto do indivíduo Assim, a ideologia é a alienação do capital; o capital como se
revela quando é o outro que não ele. E a natureza é, para o
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28 MASSIMO CANEVACCI ANTROPOLOGIA DO CINEMA 29
idealismo, o tormento de deus. Com o tardo-capitalismo, ou seja, IHll quadro à pintura?): entre um e outro, constituiu-se, hâ algum
com a extensão - entre outras coisas - da produção das merca- 11lll1PO, uma síntese entre a sincronia estrutural do seu ser cinema e a
dorias também ao mundo das ideologias, essa alienação alcança sua lIucrÔnicamutabilidade de toda individualidade filmica.
máxima dilatação e, portanto, também sua máxima eficiência, A crítica antropol6gica do filme deve partir, em suas análises,
"revelando-se" também no "espírito filmico". Tem-se o Estado IIn auto-alienação do capital - como resumo/concentrado de
autoritário: mas se tem também a coerção mediatizada e cada vez mtmese. religião e filosofia - em sua relação de intercâmbio
mais "espiritualizada". nico com a natureza e inorgãnico com a espécie. O juízo
O cinema é mímese que retorna não sob forma "eterna", mas olaresco sobre o "me agrada" ou o seu contrário deve ser
como reprodutibilidade técnica e espiritual, que mantém em seu ubstituído pela fixação do olhar nas feridas provocadas pela cisão
interior toda a mem6ria do passado mais remoto. ujeito-objeto (que estão presentes em toda verdadeira obra de arte,
S mitos, nas fâbulas, e não apenas como tentativa de superar essa
O cinema é a forma fenomênica que sucede Cristo, a sua
:11)10); nos horrores produzidos no "tempo livre" para realizar a
representação sensível que assume como pr6prios todos os pro-
blemas da humanidade, que desnuda todos os pecados da carne dentidade forçada entre trabalho vivo e trabalho morto; e no modo
para absolvê-los, dissolvendo-os na espiritualidade e na expansão do orno precisamente o filme busca fazer com que aquelas feridas e
capital. sses horrores se tornem suportáveis aqui e agora. A crítica deve
aptar o nexo entre séculos de civilização (o filão subterrâneo dos
A transcedência religiosa do cinema se conjuga com a
instintos e das mem6rias arcaicas, hipo-estrutura) e a tela produti-
III reificação moderna e torna-se irresistível. Nenhum público pode
vamente triunfante (estrutura e superestrutura). Tomadas em si,
resistir-lhe. Assim como a religião expressava a alienação do homem
as leis de ferro do ciclo econômico - assim como as mais elâsticas
em face de sua relação com uma natureza não compreensível, do
do "cinéma pour le cinéma" - não bastam para explicar os valores
mesmo modo a fenomenologia do cinema - sucessor dela - repre-
que devem ser reproduzidos pelos filmes individuais. E isso em
senta a auto-alienação do capital na época da reificação ideol6-
medida tanto maior quanto esses "valores" foram submetidos à
gica.
expansão da valorização; e, por outro lado, foram ignorados pela
O cinema, além do mais, é o herdeiro legítimo da filosofia pesquisa sociolôgica, um pouco por prevenção, um pouco por causa
clâssica alemã (depois de ter submetido outros herdeiros presun- da dificuldade em traduzir a pesquisa em questionário.
tivos), mais do que se continua a crer. Por exemplo: o cinema A articulação sistemática do cinema - ou seja, o fato de ser
continua a representar aquele mal-entendimento do corpo, que - subsistema interno ao sistema das ideologias reificadas - tem
como dizia Nietzsche -, jâ fora o pecado filos6fico por excelência, necessidade das reflexões globais e radicais, que adeqüem seu
embora ele possa falar de tudo, inclusive no mais audacioso hard julgamento aos quase quarenta anos transcorridos desde a última
core; mas com a seguinte diferença em relação à filosofia: que tentativa nesse sentido. As pesquisas especializadas sobre aspectos
aquele mal-entendimento foi socializado, produzindo uma gigan- particulares do fenômeno "cinema", mesmo quando boas, tendem a
tesca secularização da repressão, como não poderia ocorrer nos mais ser engolfadas pela enorme produção jornalística cada vez mais
audaciosos imperativos dos anciens philosophes, Ou seja: o cinema aguerrida e fungível, à qual, em última instância, também essa
venceu, teve êxito - onde a filosofia clâssica fracassou - na tarefa tentativa corre o risco de capitular. O que deve ser esclarecido é a
de criar um mundo modelado pelos seus pr6prios valores espirituais, natureza do cinema, o seu ser e o seu "telos". Por isso, é preciso
conquistando a consciência pública. responder às perguntas sobre a relação entre máquina-cinema e as
O cinema - e, em geral, os media - é uma das formas categorias e dimensões centrais da humanidade: o tempo, o espaço,
assumidas pelo capital que se auto-aliena. Assim, as antigas dis- o rito, a fábula, a vida, o riso, o comportamento na sala, o trabalho,
tinções entre cinema e filme (para mim, a arte - para ti, o corpo, a morte, as classes sociais. E, por isso, qualquer tentativa
a indústria), embora sempre tenham sido falsas, tornam-se agora de compreensão do cinema tem de se colocar num plano antropo-
ridículas (quem jamais pensaria em contrapor o livro à literatura ou 16gico, na condição de que a antropologia das invariantes seja
30 MASSIMO CANEV ACCI
o "espírito" do cinema
"Aliás, uma tradição pretende que foi precisamente no
Largo de Castelo que aquele pregador, abandonado
pelos seus ouvintes em troca de um polichinelo, teria
exclamado, mostrando o crucifixo, as famosas palavras:
'Aqui, aqui, este é o verdadeiro polichinelo!'''
B. Croce
"Espírito"
finalmente, para o revival parapsicológico, é a essência desincor- ssante do homem a superar a sua forma de existência dada, cuja
porada de um morto que retoma. Iusposta pode ser metafísica com o Apocalipse, social com a Revo-
O espírito, portanto, pode ser em cada oportunidade e ao IIICllo,ou fílmica com o tardo-capitalismo: ou seja, o modo como
1\ civilização busca negar seus horrores apresentando-os como
mesmo tempo Natureza, Deus, Idéia, Capital, Fantasma. Pois bem:
todos esses conceitos são resumidos sinteticamente no cinema. Para untertainement. O espírito do cinema tem a sua epifania no cone
parafrasear a terminologia hegelo-marxiana, o espírito do cinema é piramidal luminoso que se forma a partir do vértice do projetor e
a forma alienada através da qual o capital se manifesta em sua termina na base da tela. Uma figura geométrica e simbólica, afim à
fenomenologia; é a ideologia do capital que põe a si mesmo como 10Kubrick em Odisséia no espaço. Um feixe de luz bem delimitado
contingência, como aparição milagrosa, como parábola-fábula- , apesar disso, interiormente ultramóvel, que ilumina quem quer
mito. É espírito porque sua potência não é tanto de natureza que nele se introduza, do mesmo modo ofuscante com o qual, no final
físico-material imediata, porém mais insidiosa, impalpável, lumi- de Contatos Imediatos, os "imortais" sobem na astronave. Um sin-
nosa, como que transfigurada. Nos séculos passados, a auréola na ular "sólido" de luz com o qual todo espectador pelo menos uma
pintura hagiográfica desempenhava uma função análoga, embora vez, divertiu-se, tentando inutilmente cortâ-lo com a mão. Quem o
ainda numa rigidamente simbólica, mas que parecia quase invocar toca inadvertidamente, recua de imediato, como se houvesse
um resultado diverso, subentendido em sua representação gráfica: metido um pecado público; ao contrário, quem o faz de propósito
um feixe de luz solar, que se espalha do centro da cabeça. Por outro tem a mesma atitude descarada do pecador calejado. Ambos obtêm
lado, o conceito de imaterialidade não exclui o de realidade, como apenas silhuetas involuntárias ou feias sombras chinesas: em
pensam muitos materialismos de tipo positivista, que consideram qualquer caso, coros de protestos. Somente mergulhando em sua
como sinônimos matéria e realidade. O caráter "espiritual" no curso antítese, a escuridão igualmente significativa da sala, é que é dado
do filme é determinado pelo fato de que o espectador não percebe o ao espectador participar do rito. Disso resulta a ambivalência entre
momento "materialista", na medida em que remove o operador, o prazer desenfreado que leva ao gozo quando se fica imóvel e a
o "foco" (com exceção do iniciado), o projetor, que simbolicamente angústia apática de quem ainda permanece ligado à intuição da
(e não só fisicamente) estão atrás dele; aliás, o público tende a se pôr unidade entre prazer e movimento.' Diz Jung: "Como os espíritos e
em dócil sintonia com a alienação de luz, vento, ar móvel que a alma dos mortos, segundo a opinião antiga, são feitos de matéria
constitui o "fluxo pneumático" das imagens. Assim como a auréola sutil como um sopro de ar, ou uma fumaça, assim também para os
expressa a natureza interior divina, essas imagens elevam-se a uma alquimistas o spiritus significa uma essência sutil, volátil, ativa e
potência psíquica que penetra docilmente na alma do espectador, vivificadora, tal como, por exemplo, eram concebidos o álcool e
até as zonas mais profundas.
Um novo materialismo deveria entender o espírito não como
verdade em-si e para-si, mas como coágulo ambivalente - assim precisamente com a expressão "espírito" definia uma essência sutil, volátil,
vivificadora, ou seja, o álcool. Espiritismo e espiritual, sempre afins (como, por
como se formalizou na palavra e no significado 1 - daquele impulso outro lado, também o Verbo e o Logos), foram utilizados unitariamente pelos
primeiros experimentos da fotografia oitocentista (que, com toda sua ingenui-
dade positivista, começou precisamente a fotografar "esplritos" no sentido de
espectros), e, finalmente, foram sintetizados pelo cinema (bem superior à
(1) Em nossa cultura, o significado originário de "espírito" deriva do vulgaridade daqueles truques), que produz com o seu sopro pneumático uma
termo grego pneume, que significa "ar movido", enquanto nas culturas ditas imago espectral, divina e filosófica, intelectual e alcoólica.
"primitivas" o espírito é sentido como uma presença invisível similar a um (2) Por seu turno, a palavra e o conceito de cinema ligam-se aos de
"sopro"; o espírito pode ser tanto o que se opõe à matéria (e, portanto, em movimento, que pode ser representado por esse medium em sua forma
última instância, sinônimo de Deus), quanto o conjunto dos bens intelectuais absoluta, ainda que imperceptível pelo olho humano. Sobre a afinidade entre
de uma determina civilização; mas, em ambos os casos, não foi superada sua movimento e prazer, recorde-se o final do filme Zabrinskie Point de Antonioni,
essência de imago, ou seja, de espectro, enquanto personificação da indi- onde - graças à técnica de uma "super-reõentv" - a explosão final dos
vidualidade, de espírito como fantasma ou alma de um morto. Finalmente, ~Ie objetos-mercadorias quer expressar um momento espasmódico de libertação
pode pertencer ou à fisiologia cerebral endopsfquica, 0l,!. à alquimia, que análogo ao orgasmo. .
fUIOAtAo CLOVIS SAL GAOO
SOA - BIBlIOlEtA
1-
34 MASSIMO CANEVACCI ANTROPOLOGIA DO CINEMA 35
todas as substâncias arcanas. Sobre esse plano, espírito é espírito "eterno retorno" à origem, sempre igual a si mesma enquanto dado
de vinho, espírito amoniacal, fórmico, etc.".? perene da condição humana" (que somente a arte pode intuir em sua
Finalmente, para a moderna ciência produtiva dos media, ele irracionalidade irredutível à ordem lógica das coisas), mas como
se torna filme; e, com efeito, involuntariamente, o mesmo Jung nos recíproca, sutil dialética com os modos de produção. Ê um enigma
dá uma preciosa definição de cinema: "Conforme a sua primitiva - esse sim, materialista - que está entre história e não-história.
natureza de vento, o espírito é sempre essência ativa, alada e móvel, Essa aliança entre coerção libidinal à repetição e consumo ritual do
que vivifica, estimula, excita, inflama e inspira. Para usarmos uma sempre igual é tão poderosa aqui e agora na medida em que teve uma
expressão moderna, o espírito é dinâmico, constituindo assim o longuíssima experimentação no processo global de desenvolvimento
clássico oposto de matéria, isto é, de sua estaticidade, inércia e cultural, desde o mito até a fábula e a religião. A unidade estrutural
ausência de vida. Trata-se, em suma, do contraste entre a vida e a dos mitos, assim como a identidade morfológica das fábulas da
morte"." E ainda: "Ao ente espiritual, pertence em primeiro lugar magia, são o campo de estudo no qual a interação entre "eterno
um princípio espontâneo de movimento e de atividade; em segundo, retorno" e invenções históricas foi amplamente analisada.' Ora,
a propriedade da livre criação de imagens para além da percepção a mesma interação produziu a forma cultural do cinema, cujo
dos sentidos; em terceiro, a autônoma e soberana manipulação das terreno, precisamente, foi adubado por séculos de civilização.
imagens". 5 Também Hegel - ainda que em sua construção idealista,
O fluxo de ar luminoso que se aliena do projetor e se manifesta a qual, porém, está mais perto da verdade do que muito estru-
na tela - tal como se fosse uma moderna máscara tecnológica que, turalismo - afirmava que "o espírito é o eterno voltar a si através da
como a antiga, continua a esconder e a mostrar - pesa como uma negação da negação". 8 Assim, o "espírito" do cinema põe em
substância superior por sobre a cabeça dos espectadores. movimento a síntese entre o eterno retorno do inorgânico, para além
A potência desse fluxo não se esgota na sala ritual, mas se do princípio da história, e a reificação reproduzida monotonamente,
estende tanto no modo de vida explícito e implícito das dimensões para além do princípio do prazer. Ê a reificação orgânica.
sociais e culturais, quanto na profundidade da dinâmica intra-
individual. Ele primeiro inibiu, depois pôs a nu a especulação
filosófica, ironizou a meditação teológica, confundiu a práxis histó- "Máscara", ou a genealogia
rico-materialista; finalmente, resumiu numa nova síntese a antro- de imagens inconscientes não arquetipíeas
pologia tardo-burguesa: é a ideologia reificada e luminosa.
A tela do cinema é um véu de Maia que esconde por trás de si Em épocas recentes, nenhuma corrente de pensamento foi
o fato de que não há nada a esconder, a não ser a potência mim ética mais longe do que a psicologia junguiana na tentativa de dar uma
da repetição. A repetição do igual como conteúdo do cinema é assim maior dignidade científica à potência da imutabilidade, ainda que
arrebatadora e transcendente, na medida em que reformula em no interior da ideologia religiosa, a qual, por seu turno, tem o mérito
termos modernos um enigma constante, que a humanidade sempre de haver estudado e instrumentalizado em profundidade a irre-
arrastou consigo e que sempre atualiza: como a potência da sistível atração mimética do sempre igual. Seu interesse atual reside
monotonia consegue aliar-se com aquela "zona" que Freud situou precisamente na evidente falsidade das teses junguianas, já que -
além do princípio do prazer. Ê a questão da tendência à regressão
inorgânica como essência do prazer, que porém - diferentemente
(6) S. Freud, AI di là deI principio dei piecere, Turim, Boringhieri, 1975.
das hipóteses freudianas - não pode ser declarada imutável, como (Há edição brasileira das obras completas de Freud.)
(7) Cf. toda a obra de Lêvi-Strauss, e, em particular, Antropologia
strutturale, Milão, 11Saggiatore, 1966; V. J. Propp, Mortologia della fiaba,
Turim, 1966, que contém a fundamental polêmica entre o autor e o mesmo
(3) C. G. Jung, La simbolica dello splrito, Turim, Einaudi, 1959, p. 19. Lévi-Strauss.
(4) Ibidem, p. 20. (8) G. W. F. Hegel, Fenomenologia delta spirito, Florença, La Nuova
(5) Ibidem, p. 22. Italia, voi. 11,capítulo "O Espírito", 1973, pp. 1-196.
36 MASSIMO CANEVACCI ANTROPOLOGIA DO CINEMA 37
precisamente na evidência do absurdo - tornam-se públicas as 11"1f\lllollns carregadas de energia que, mesmo sem serem conhecidas,
exigências secretas ou "secundárias" que são uma verdadeira mina 111111111 na alma. Aliás, confinados no inconsciente, atuam de modo
para a reflexão crítica. Há mais verdade em compreender a .1111I1,1 mais poderoso do que quando se tornam conscientes"."
alienação religiosa, precisamente enquanto distorção de demandas J 1\ para Kerényi, o protótipo se concretiza na máscara -
culturais reais, do que nas censuras ou na indiferença "mate- 1'11 11 1unto "flutuação de imagens enrijecidas por excesso" 12 -, que
rialista" diante de tudo que se refere às questões do ser ou do uhentende, na sua fixidez, as transformações perenes do Ego. Nela,
patrimônio hereditário simbólico. 1I'IllIsciência do "estar fundido" com o mundo sensível adquire uma
É necessário sublinhar, desde já, que - em sua relação entre 1111'111(\ determinada, tal como no caso da máscara áurea do falso
imagens e imutabilidade - o cinema não realiza um prolongamento unênon ou das máscaras com linhas do teatro kabuki," onde já
do arquétipo, num plano de fenomenologia ritual de tipo substan- :oloca o problema cinético dos olhos, das sobrancelhas, da boca
cialmente mítico-religioso, em conexão com a pretensa metodologia HlN mestres artesãos, e que prosseguiu agora com a técnica repro-
da imodificabilidade que é própria do ser junguiano. Todavia, o dlllfvel. O filme é uma ulterior flutuação da máscara, onde a sua
cinema entra em "sintonia" com aqueles protótipos "da maneira metamorfose consegue escapar ao enrijecimento graças às 24 imagens
humana do existir", 9 os quais, precisamente enquanto determi- pOl' segundo.
nados pelo homem, elevam-se a atividade simbólica em mudança do :f: preciso não só "demolir" a colocação determinista do
conflito e da aliança entre essência originária e transformação lealismo irracional e mitológico, mas também saber captar seus
histórica. O protótipo ritual - que, do mítico-oral, chega até o momentos casuais de verdade, que consistem na vontade de pes-
fílmico-reificado - não é configurável como hipóstase ou variação [uisar uma genealogia das imagens inconscientes não arquetipicas,
cultural insignificante do arquétipo; mas, enquanto é criado pelo Elas não são mais constituídas como formas eternas do espírito, mas
homem, "não vai ao encontro de uma sua suposta fundação lm num código hereditário genético 14 que se consolida, enriquece e
extra-humana em formas perenes; vai ao encontro de sua fundação transforma ao entrar em contato com as novas formas das imagens.
somente enquanto se funda, contemplando - em figuras que ele Assim, por exemplo, a relação entre as atuais imagens reificadas e a
mesmo inventa - o próprio estar fundido com o mundo". 10 O enealogia das imagens prototípicas cria inicialmente uma fase de
cinema realiza à perfeição uma invenção mecanizada do "estar inovação fluida, até alcançar a estabilidade em um novo equilíbrio.
fundido", inventada indiscutivelmente pelo homem, que traz Essa é a dialética entre sincronia e diacronia. O que acabamos de
consigo a ressurreição dos mitos arcaicos no interior da nova afirmar pode ser facilmente experimentado fazendo-se com que uma
capacidade produtiva e reprodutiva. pessoa adulta, que jamais assistiu a um filme, seja levado a fazê-Io.
Não existem arquétipos invisíveis e incriados, mas visões que
- a partir do filme - estabelecem uma gigantesca ponte entre a
alienação vivida nessa vida e a angústia existencial de séculos de (11) K. Kerényi, op. cit., p. 298.
(12) F. Jesi, "Introdução" a Miti e misteri, op, cit., p, 19.
civilização alienada. Para além do rito - de qualquer rito -, não (13) S. M. Eisenstein interessou-se pela expressão das máscaras japo-
está o desconhecido, matriz invisível e arquetípica de tudo o que é nesas, através das quais estabelecia conexões entre teatro kabuki e cinema.
visível, mas o homem "responsável por toda imagem". O arquétipo Segundo o A. com efeito, enquanto o cinema japonês carece de montagem -
e o cinema é, "em primeiro lugar, montagem" -, "o princípio da montagem,
é uma forma determinada do espírito, cujas imagens pertencem ao todavia, pode ser considerado como a alma da cultura figurativa japonesa"
território do inconsciente coletivo, do sonho, de onde foram reco- (Forma e tecnica deI film e lezioni di regia, Einaudi, Turim, 1964, p. 28). Desse
lhidas e modeladas pelo mito: "Segundo Jung, os arquétipos são modo, Eisenstein estabelece conexões entre os ideogramas e os princípios do
cinema antes da sua invenção; desse modo, ele conseguiu "escrever um livro
formas determinantes da psiquê, mas, ao mesmo tempo, também sobre o cinema de um país que não tem cinematografia; sobre o cinema de um
país que tem, na própria cultura, uma quantidade infinita de caracteres
cinematográficos, mas espalhados por toda parte, salvo... em seu cinema"
tibidemt,
(9) K. Kerényi, Miti e misteri, Turim: Boringhieri, 1979, p. 298. (14) Sobre a "gramática" do código hereditário genético, cf. Robin
(10) F. Jesi, "Introdução" a Mitie mlsteri, op. ctt., p. 17. Fox, Antropologia biosociale, op. cito
JL
38 MASSIMO CANEVACCI ANTROPOLOGIA DO CINEMA 39
Béla Balázs conta dois interessantes exemplos (que cada vez mais difi- Hm nossa civilização, não mais levamos em conta "o compli-
cilmente reaparecerão), o primeiro de um inglês numa colônia e o I I,dlll)l'ocesso de adaptação que foi necessário à consciência para se
segundo de uma jovem siberiana: "Durante a Primeira Guerra lnutlllarlzar com' a sucessão visual. Tratava-se, em substância, de
Mundial, um funcionário colonial britânico encontrou-se numa 1"'\IHnpOr na consciência imagens decompostas em seus elementos
fazenda do centro da Ãfrica, isolado do mundo, e, mesmo em IIHlI!nres e vistos em sucessão temporal, dando-Ihes unidade e
seguida, foi obrigado a permanecer lá por um certo tempo. Era 11111 Unuidade". Em pouco tempo, afirmou-se uma nova cultura
um homem culto, recebia regularmente livros e revistas. Estava unl.
também a par dos progressos do cinema e pode-se dizer que "Hoje" - conclui Balázs - "não sabemos mais nem mesmo
conhecia, através das fotos dos jornais ilustrados, todos os astros e '111110 foi possível aprender em poucos anos a linguagem das
estrelas da época. Lera enredos de filmes e críticas cinemato- ruugens, e reconhecer as perspectivas, as metáforas e os símbolos
gráficas, mas jamais fora ao cinema. Quando teve oportunidade de tllI/! Imagens." 17
ir à cidade, dirigiu-se imediatamente ao cinema. O filme que estava O desequilíbrioentre imagens do "presente" e imagens do
sendo exibido era simplíssimo: os meninos que estavam sentados a °
"passado" recente cria incompreensão ou medo, até momento em
seu lado assistiam-no com extremo interesse. Por seu turno, o une se reproduz um novo equilíbrio sintético, que chega não apenas
funcionário colonial - homem culto e instruído - fixava a tela não tanto a penetrar no interior das imagens, mas sobretudo a
com os olhos esbugalhados e fazia um visível esforço para com- Iransformâ-las. Para o cinema, isso está se realizando cada vez mais
preender o que se passava. No final do espetáculo, estava lite- m escala mundial (restam bem poucas exceções do tipo da jovem
ralmente esgotado". 15 beriana), homogeneizando culturas muito diferentes entre si, e,
Ocorrera que não havia compreendido o filme, já que não m geral, diferentes da cultura cristã-burguesa onde o cinema
conseguia apreender o desenvolvimento da ação narrativa sob forma nasceu; trata-se agora de reconstituir brevemente aquele movimento
visualizada, o que qualquer criança da cidade era capaz de fazer de imagens pré-fílmicas de conteúdo ritual, que permitiu a síntese
sem esforço. do gênero-cinema. E isso tem também o objetivo de contrastar o
r,
I•• irresistível avanço da categoria de "imaginário coletivo", versão
"Um dos meus amigos moscovitas me contou o caso de sua
cinematográfica do arquétipo junguiano e, vice-versa, de fixar essa
. '
nova empregada, que chegara à cidade pela primeira vez, vinda de
um colcós siberiano. Era uma jovem inteligente, freqüentara a
metodologia de imagens prototípicas em transformação .
escola com proveito, mas - por uma série de estranhas circuns-
tâncias - jamais vira um filme. Seus patrões mandaram-na ao
cinema, onde se projetava uma comédia popular qualquer. Voltou "Rito": Mysteria - Tragédia - Missa
para casa palidíssima e abatida. 'Gostaste?', perguntaram-lhe. Ela
ainda estava emocionada e, por alguns minutos, não conseguiu Numa perspectiva globalmente antropológica, o rito se define
emitir nem uma sílaba. 'Horrível', disse finalmente, indignada. "como o conjunto daqueles esquemas que estruturam e organizam o
'Não consigo compreender por que aqui em Moscou permitem que 'modo' de desenvolver certas atividades coletivas do ponto de vista
se assistam a tantas monstruosidades.' 'Mas o que viste?', retru- simbólico do sentimento e da imaginação, (que) caracteriza todos os
caram os patrões. 'Vi' - respondeu a moça - 'homens feitos de elementos de uma cultura prática, desde os materiais (tecnolôgicos e
pedaços: a cabeça, os pés, as mãos, um pedaço aqui, um pedaço ali, mágicos) até os sociais e pessoais (institucionais, interindividuais,
em lugares diferentes. ' " 16 . internalizados)" .18
II
41
40 MASSIMO CANEV ACCI ANTROPOLOGIA DO CINEMA
Por sua vez, articulam-se no rito uma componente sagrada - ntre quem age e quem é agido, entre quem é publicamente
o culto - e uma profana - a cerimônia -, que correspondem "à quem é privadamente imóvel. Quem participa da ação
necessidade de manutenção do equilíbrio social (coesão, solida- _ assim como da embriaguez orgiástica em honra de
riedade) e de mecanismos de segurança, coletivo e individual", com 1110111110 - mantém originariamente a dialética de ser sujeito e
a ulterior função específica de "restauração do equilíbrio" nos IIhh,to da história. Ao alcançar o entusiasmo, 23 o homem sai de sua
momentos de crise." É conhecido como a religião cristã, onde quer "I"pda individualidade para ligar-se a deus, graças ao êxtase. Na
que se tenha afirmado, teve a capacidade de levar a uma nova "riMem, diz o filólogo e amigo de Nietzsche, Rhode, "a ecstasis é
síntese sua própria origem mística com os ritos sagrados e profanos IlIlIfl condição na qual a alma parece estranhada de si mesma.
prê-cristãos." O ato de nascimento do rito deriva daquela invenção pressão, que no uso posterior perdeu muito de sua força, era
cultural que permitiu institucionalizar, graças ao excedente social- 11I'IHlnariamente usada em sentido próprio e indicava que a alma
mente produzido, a figura doxamã, o qual não apenas era isento do "vI/ta' do corpo". 24
trabalho, mas devia se dedicar principalmente, através da mímese, a O êxtase era um estado orgiástico de excitação, uma loucura
pacificar e/ou domar o incognoscível. Os mysteria da força da pussageira - aliás, unia "loucura sagrada" -, na qual a alma,
natureza tinham na antiga Atenas o nome de determinadas festas apando do corpo, une-se a deus, a Dioniso: quem alcança o
em honra de divindades particulares: 21 essas festas "mistéricas", Ilfllusiasmo "goza da plenitude de uma vida infinita", está no deus.
antes de se enrijecerem num rito de aspecto apenas cerimonial De modo análogo, para Nietzsche, a "matriz originária da
no período helenístico, eram - em sua característica essencialmente ragêdia" realiza "a objetivação de um estado de espírito dionisíaco
"um ato ritual que, todavia, não se esgotava na imagem cultural da (através da) submersão do indivíduo e de sua unificação com o Um
divindade ( ... ), mas em pessoas humanas que, desse modo, tornam- primigênio".25 "É uma tradição incontestável que a tragédia grega,
se elas mesmas, de um modo particular, objeto e sujeito da festa. O m sua forma mais antiga, tinha como objeto exclusivamente as
'mystes' (ou seja, o participante no rito - M.C.) sofre os Mysteria: dores de Dioniso, e que, por um longuíssimo período de tempo,
ele se torna seu objeto, mas ao mesmo tempo participa ativamente o único personagem cênico existente era precisamente Dioniso."26
dele". 22 Todas as mais diversas figuras do herói trágico - Prometeu,
Essa dialética sujeito-objeto na ação ritual situada na origem Êdipo, etc. - são diferentes representações ou, para usar o termo
da civilização helênica será decisiva para a posterior dinâmica nietzscheano, diferentes máscaras do herói originário Dioniso; este
histórico-cultural da pólis. A não-excepcionalidade dessa dialética nos ritos mistéricos, experimenta em si "as dores da individua-
pode ser demonstrada por um outro rito, que servirá como lização". Na morte e na ressurreição de Dioniso, narra-se a sua
fundamento para o teatro ocidental: a tragédia, cuja origem unifi- "paixão" e, com ela, a de toda a humanidade, na medida em que,
cava o momento do culto com o da cerimônia. Sagrado e profano para Nietzsche, "temos de considerar o estado da individualização
eram indistingüíveis, unidos na "paixão" de Dioniso. A origem da
tragédia não conhece rigidez na cisão entre quem olha e quem é
(23) O significado etimol6gico da palavra entusiasmo está em en-tou-
siesmos, ou seja, numa forma que, "como todas as religiões místicas, busca
fazer todo seu o seu deus", razão por que "a alma que escapa do corpo se une
(19) lbidem, p. 94. à divindade. Agora ela está em, está dentro do Deus"; o que "foi tomado está
(20) Sobre a elasticidade ritual do cristianismo, há uma enorme lite- entbeos, vive e é no deus" (E. Rohde, Psiche, cit., p. 355).
ratura. Cf., em particular, J. G. Frazer, 1/ramo d'oro, Turim, Boringhieri, 1965; (24) E. Rohde, op. cit., p. 356. Desse modo, pretendia-se explicar
V. J. Propp, Edipo aI/a luce deI folclore, Turim, Einaudi, 1975; C. Ginzburg, aqueles fenômenos fora do comum, nos quais a alma dos "obcecados"
"Folklore, magia, religione", in Storia d'ltetie, vol. I, pp. 603-678, Turim, não estava mais "em", mas sim "fora" do seu corpo. E, originariamente, os
Einaudi, 1972; A. Metraux, Religione e riti magici indiani nell'America gregos queriam dizer precisamente isso quando falavam de "êxtase" diante
meridionale, Milão, 11 Saggiatore, 1971. desses estados orgiásticos de excitação. Esse êxtase é uma "loucura passa-
(21) Cf. o já citado livro de Kerényi, Miti e misteri, assim como a obra de geira", assim como "a loucura é um êxtase duradouro" (ibidem).
E. Rohde, Psiche, Bari, laterza, 1970. (25) F. Nietzsche, La nascita del/a tragedia, Bari, Laterza, 1971, p. 89.
(22) Kerényi, op. cit., p. 148. (26) lbidem, p. 101.
42 MASSIMO CANEVACCI ANTROPOLOGIA DO CINEMA 43
como a fonte e o fundamento de todo o sofrimento't.ê? A unidade Através do coro como "coro de sâtiros", do herói como
originária do universo, da natureza, resulta desse modo "rompida "máscara de Dioniso", o público restaura sua própria identidade
em indivíduos"; a solução dos mistérios trágicos, dos ritos dioni- mímétíca com o deus, por meio do entusiasmo e do êxtase.
síacos, revela que "a teoria fundamental da unidade de tudo que A identificação dos espectadores é, portanto, uma mímese sagrada e
existe (... ) julga a individualização como a causa originária do mal, mpre idêntica a uma única história que, apesar das variações
enquanto a arte aparece como feliz esperança de que o curso da parentes, é contínua e obsessivamente reproposta, com o objetivo
individualização seja rompido, como pressentimento de uma restau- de escapar da maldição do próprio ser individualizado e separado: a
ração da unidade". 28 "paixão" de Dioniso. A mímese é restauração da unidade origi-
A unidade ritual originária, cujo desenvolvimento representa a nária da natureza. Desse modo, a tragédia grega é arte ritual na
celebração de Dioniso, fundava uma relação estreita com a medida em que coro, herói, público são aspectos diversos de uma
não-separação dos papéis. Todos são atores e, ao mesmo tempo, única verdade: a totalidade dionisíaca.
espectadores da paixão de Dioniso, Somente mais tarde é que se A Igreja Católica compreendeu mais do que qualquer outra
formaliza uma divisão entre "os espectadores dionisíacos" e o coro instituição apotência daimutabilidade, o seu fascínio irresistivel de
trágico dos atores como representação dos sâtiros: "O coro dos atração e de mímese. Depois do período revolucionário inicial,
sátiros é inicialmente uma visão da multidão dionisíaca", 29 "Só que durante a fase paleocristã, na qual as relações de comunidade se
é preciso ter presente que o público da tragédia atávica via a si inseriam na tradição mais criativa e solidarista das formas rituais
mesmo no coro da orquestra e que, no fundo, não existia nenhum precedentes, a formalização católica conseguiu conciliar numa
contraste entre o público e o coro, já que o todo não era nada mais síntese genial cultos e cerimônias pré-cristãs com a rigidez obsessiva
do que um grande coro elevado de sátiros dançarinos e cantores dos próprios "mysteria". A dialética entre tolerância em face dos
e de espectadores que se sentiam representados naqueles sátiros." hábitos arcaicos e absolutismo em face dos próprios produziu uma
Por isso, "o coro é o 'espectador ideal', na medida em que é gradual absorção e/ou sobrevivência dos ritos pagãos dentro da
o único espectador, o espectador do mundo de visões evocado totalidade católica, conseguindo finalmente dobrar a infinita varie-
no palco. Um público de espectadores como é hoje o nosso era dade dos hábitos cultuais presentes em várias partes do mundo -
algo desconhecido pelos gregos: em seus teatros, dada a forma uma vez iniciadas as missões cristianizadoras - à unitariedade do
concêntrica da construção do espaço reservado aos espectadores, dogma. Instrumento principal da triunfante homogeneização cató-
cada um estava perfeitamente em condições de abarcar com o lica foi a centralidade da repetição cotidiana da missa. Cedo esgo-
olhar todo o mundo cultural que lhe estava em tomo; e podia, tada a instância comunitária, que fazia reflorescer aquela tradição
em satisfeita contemplação, crer e sentir-se ele próprio como membro própria dos momentos mais criativos dos "mysteria" e das tragédias
do coro". 30
- ou seja, a condição dialética de sujeito e de objeto dos iniciados
num determinado rito -, o que se reproduz é a potência da
monotonia da missa. Esse rito - fortemente simbólico e funcional,
(27) Ibidem, p. 102. Toda a história da humanidade e, em particular, da por sua capacidade de restaurar os equilíbrios abalados pelas crises
civilização ocidental foi acompanhada pela necessidade de afirmação do
indivfduo, sob o signo da dominação e do sacrifício, estreitamente articulada "temporais" - consegue produzir uma nova e original síntese entre
ao desejo de anular a própria individualidade. Essa dialética do indivíduo tem vida cotidiana e eterno retomo, entre sagrado e profano. Jamais
em Nietzsche um dos seus primeiros grandes intérpretes.
uma tal metodologia da imodificabilidade foi aplicada cotidiana-
(28) Ibidem, pp. 102-103. Esse tema será retomado, de um ponto de
vista psicanalítico, no conceito de narcisismo de Freud, ou na metapsicologia mente com tanto esforço e com tanta capacidade profissional em
"além do princípio do prazer". Mas, com essa ótica, também é possível ler os todos os recantos da terra. Seu código cultural e cerimonial é por
movimentos do espírito absoluto de Hegel, em particular na alienação e na excelência monótono, popular, faustoso: ele é executado por um
supressão de tal alienação.
(29) Ibidem, p. 87. pessoal altamente especializado, que se diferencia cada vez mais, do
(30) Ibidem. E continua: "A forma do teatro grego assemelha-se a um ponto de vista profissional, da originária comunidade participante,
vale solitário que se abre num anfiteatro de montanha".
até o momento em que o clero irá se contrapor - como único "ator"
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MASSIMO CANEV ACCI 4S
ANTROPOLOGIA DO CINEMA
socialmente reconhecido - a uma massa dos fiéis, bloqueados em lIl!lul rigidamente predeterminados e imutáveis. Na arte, isso se
sua condição de espectadores laicos. E o coro só pode sobreviver no 1lil'nQ ainda mais claro: Buda é representado em meditação interior,
sacristão, personagem de segundo plano, enquanto os cantores são I'um os olhos fechados, enquanto Cristo - nos mosaicos bizantinos
escondidos dos olhos, um pouco por pudicícia, um pouco para não aparece bem em pé e tem os olhos completamente abertos. A
afastar os olhos do único sujeito pré-escolhido. A genealogia das nlusticidade da organização católica prevê também uma válvula de
imagens inconscientes não arquetípicas sofre uma nova formidável rape para a rigidez das funções hierárquicas do olhar, com a
estruturação historicamente bem determinada, com a obsessiva possibilidade de ser admitido em seu vértice através do milagre.
repetição do consumo ritual do sempre igual: a forma-missa. :om efeito, o poder da visão concede também ao povo - jamais ao
A divisão do trabalho entre trabalho intelectual do clero e trabalho lulco genérico, mas sempre a um representante dos estratos sociais
manual do laico enrijece-se cada vez mais - em estreita conexão mais baixos - a oportunidade de ser pré-selecionado entre os
com a estrutrua de classe determinada pelo modo de produção _, leitos. Simultaneamente admitindo, tolerando e por vezes favore-
na medida em que a interpretação dos textos e a ação cênica ndo a veridicidade de tais "milagres" por parte das hierarquias
tornam-se patrimônio exclusivo da classe sacerdotal. Tende a se nstitucionais, o clero não apenas obtém a confirmação, mas um
afirmar uma nova relação sócio-cultural, que divide e contrapõe os multiplicador socialmente "entusiasta" da sua própria supremacia
homens não só em relação aos respectivos papéis no processo de na hierarquia das visões. Não casualmente, quem "vê" o milagre
produção, mas também numa cada vez mais nova e poderosa alcança o "êxtase"; e é figurado de tal modo nas representações
hierarquia do olhar, que penetra com incrível facilidade no interior ingênuas - de joelhos, braços abertos, olhos esbugalhados - que
da estrutura psíquica e aí se liga às imagens prototípicas. Entre (como muitos sublinharam com facilidade) assimila cada vez mais o
quem olha e quem é olhado estabelece-se uma relação dicotômica e estado extático com o orgásmico, em fiel conexão com a tradição
hierárquica informal, ligada ao comportamento vivido mas não pagã. Por sua vez, ele será objeto do culto do olhar por parte de
conhecido, e precisamente por isso ainda mais poderoso e aceito. outros fiéis que acorrerão de toda parte para "ver quem viu", ou -
Q ser objeto de olhares dirigidos para a própria pessoa dá poder e post mortem - para "ver os lugares" onde o miraculado viu.
prestígio e, ao mesmo tempo, reforça a subjetividade do próprio No curso de toda a missa, o olhar assume uma função central
papel. 31 Quanto maior for a quantidade de olhares capturados, na divisão entre sacerdote e fiéis - que estende a divisão do
tanto maior será o reconhecimento social da própria hegemonia. trabalho manual e intelectual àquela entre quem olha e quem é
Ao contrário, quanto mais se for obrigado ao papel de olhar, tanto olhado -, numa relação a dois feita de oposição e de convergências,
mais o feixe do próprio olhar estabelecerá a aceitação da própria de acordo com as fases do rito, mas sempre com uma rígida subor-
subordinação. O fluxo dos olhares estabelece as relações de poder e dinação dos últimos ao primeiro. E também toda a estrutura interna
prestígio. Diferentemente das religiões orientais, onde o olhar é da igreja é construí da segundo uma ordem precisa, de modo a
interior e os olhos ficam fechados para alcançar a plenitude da encaminhar e predeterminar os fluxos dos olhares: em particular,
visão.V a religião católica se funda nos fluxos públicos do olhar
o "palco" onde ocorre a representação sagrada é bem separado da
"platéia", onde se organiza a participação cada vez mais passiva
(31) Sobre a função hierárquica do olhar entre os primatas sub- num rito transformado em espetáculo, com tudo previsto num
humanos, cf. M. R. A. Chance, "Coesione sociale e struttura dell'attenzione", roteiro recitado infinitas vezes. Bem diverso era o espaço reservado
in Antropologia biosociale Ied. por R. Foxl, cit., pp. 125-150.
(32) A capacidade de envolvimento, também em nossa cultura oci-
aos espectadores no teatro ático, onde a forma concêntrica e em
dental, dessa potência interior do olhar é verificável numa declaração feita mais arquibancadas os elevavam a um status onde o olhar podia se
ou menos ironicamente por Mario Rostagno, o qual - diante do guru indiano espraiar, como dizia Nietzsche, por "todo o mundo cultural que lhe
Rashnish - afirma que basta "olhá-Ia" (mesmo numa simples fotografia) para
compreender como sua mensagem é boa. Não se podia expressar um conceito
estava em volta". O espectador católico, ao contrário do espectador
mais adequado (embora apologético) da civilização da "visão". E, não trágico, sofre uma mutação que o torna progressivamente cada vez
casualmente, foi precisamente Rashnish a tentar a enésima síntese entre mais passivo em face dos efeitos mim éticos e de ensimesmamento
técnica ocidental e espírito oriental.
"entusiástico". Torna-se um "fiel", ao contrário do coreuta, o qual
46
MASSIMO CANEVACCI
ANTROPOLOGIA DO CINEMA 47
- ao sair de si e atingir o deus - habitua-se, geração a geração, a rito da missa funcionou como protótipo do cinema em-si e
ser esmagado pelo poder divino e por aquele de quem o representa. O desenvolvimento da teogonia fascina e atrai precisamente
11I1I'''oSi.
A missa não mais permite a mímese, mas a aceitação pública da 1111 medida em que é sempre igual. O modelo cultural forjado em
subordinação do espectador laico com relação à hierarquia já nível multigeracional impele o crente, através da coerção, a repetir,
pré-selecionada. O católico não se identifica com o padre oficiante, ,I mmarar a réplica dos mesmos eventos durante o drama do Gôlgota,
mas sofre a danação da condenação da e na própria carne, até o 1110modelo espiritual será reproduzido durante todas as fases do
momento da absolvição segura na confissão, premissa a uma igual- l/IIw filmico. O fato de que também nesse caso a história repro-
mente inevitável danação.
dU'I,idaseja sempre a mesma não é algo indiferente, mas sim uma
No rito da missa, a hierarquia do olhar alcança a máxima gGnciaindispensável, com a finalidade de mostrar como sempre
potência formal "catolicamente" reconhecida no momento da reconfirmada a eterna e imutável ordem das coisas. A própria
elevação: quando o clero-ator eleva o cálice, a hóstia e o olhar irqultetura das duas salas é idêntica. Há platéia, galerias e
(verdadeiro sangue, verdadeira carne e verdadeira visão de Cristo), l'm'J'adoresno meio. Como se costuma dizer, para ambos os ritos o
a cabeça dos fiéis-espectadores deve inclinar-se para baixo em sinal utportante é participar, não no sentido de transformar a própria
de homenagem e de resignação à própria condição humana. Nesse presença em práxis, mas de adaptar-se. O sentido do drama
clímax, quem recebe uma reconfirmação da própria investidura cosmolôgico divino - nascimento, afirmação e morte do herói,
autoritária não é tanto a simbologia divina, mas aquele que eleva e lepois o sacrifício da ressurreição até à vitória do bem - é mime-
que ativa os olhares.
tlzado pelo espectador em seu comportamento para consumir o rito:
O protótipo ritual originário, posto em conexão com a monó- apresentação do ingresso, a entrada na grande e escura sala de
tona potência da missa, alcança uma significativa metamorfose projeção, a reconfirmação da aventura, a saída para o ar livre à
cultural em sua atividade simbólica em transformação. Também uisa de ressurreição, o feliz retorno para casa. Talvez a única
nesse caso, a oposição monotonia-transformação, culturalmente distração seja permitida pelo ingresso na sala do último degrau na
produtiva, resolve-se num fortalecimento atualizado do protótipo. hierarquia das respectivas instituições: o velhinho que vende doces e
O consumo do sempre igual tem na missa a forma ideal que pipocas, e o sacristão. E ambos esses marginais, discreta mas
acompanhou a constituição de uma hipo-estrutura caracterial _ irresistivelmente, tomam-nos os últimos níqueis. O fato de que se
modelada por séculos de repetição cotidiana daquele "espetáculo" volte sempre ao cinema (ou à missa) para ver sempre a mesma
-, desde modos de produção pré-capitalista até a invenção capi- história, saber que é preciso revê-Ia e desejar a coerção para poder
talista da "forma-cinema". o enredo da missa é fixo, os perso- suportar a ordem de coisas existente, tem sua origem na articulação
nagens são sempre os mesmos, resumíveis num cânone que, por seu ntre hábitos imprimidos nos anos da puberdade e hábitos herdados
turno, é análogo em suas linhas gerais tanto à "paixão de Dioniso" hipo-estruturalmente desde a gênese da civilização. A pena prevista
quanto ao roteiro de qualquer filme: o herói como transubs- para a infração é danação eterna, como para qualquer genealogia da
tanciação da "paixão de Cristo"; o seu antagonista como anti- moral que funcione." A modificabilidade da história é permitida,
Cristo; o princípio da realidade de tipo patriarcal e instrumental, para ambos os ritos, pela combinação de elementos já preesta-
que produziu uma determinada sociedade, com suas idéias, seu belecidos e universalmente conhecidos, além da tolerância em face
habitat, suas regras; o momento passional, usualmente feminino ou
das variabilidades culturais. Exceções são possíveis somente graças
"expressivo", com seus valores antiutilitaristas, eternos ou "na- a maciços investimentos financeiros e à participação dos mais
turais". Também a sucessão dos elementos que compõem o rito é importantes "atores" disponíveis no mercado para o remake da Via
sempre a mesma, cuja irreversibilidade canônica é análoga ao
enredo fílmico. A única variação cotidiana admitida é o sermão _
que, em algumas exceções, chegou mesmo a quebrar as regras _, (33) Diz Nietzsche: "Põe-se algo em foco para que reste na memória:
mas cujo sistema mergulha suas raízes na dogmatização da Bí- apenas o que não deixa de fazer ma/ continua na memória. Esse é um axioma
blia. da mais antiga (e, infelizmente, também da mais longa) psicologia da terra"
(Genea/ogia della mora/e, Milão, Mondadori, 1979, p. 44).
48 MASSIMO CANEV ACCI ANTROPOLOGIA DO CINEMA 49
Crucis no Coliseu ou do Quo Vadis em primeira apresentação. A agrado recorre agora ao profano, descobrindo que a
transmissão direta da Missa do Galo, ou a premiação em Hollywood mais realista do que a língua original; e assim,
na noite das estrelas, são homôlogos pela quantidade de investi- , conforme o seu método, a Igreja decidiu-se a "dublar"
mento necessária e pelo sucesso de público garantido. Ninguém do latim para as línguas nacionais, a fim de atrair mais a
pode objetar nada ao slogan que faz propaganda do Jesus Cristo t"\I~"1) do público para o desenvolvimento do drama e tentar frear a
Superstar como o maior espetáculo do mundo. O capital investido wlftuuln ao afastamento.
nos exteriores desse filme, rodado nos locais originais, é da mesma "Sobre o caráter espetacular intrínseco às vicissitudes de
"natureza" e do mesmo "espírito" do investido no retorno do papa à IIIIlu", escreve, por exemplo, no século XVII, o padre jesuíta
Palestina. E a taxa de juros é a mesma. O fascínio da autenticidade, IIIMtllds: li 'Theatrum circumductile factus et mundo; / deserere te
ainda que mediatizado pelo cinema e pela televisão, assegura o 'I/Wtt avidi spectatores, / quibus identidem aperis / in novo
aumento do índice multinacional de audiência. Indignar-se com IIIlIfl/'lllo novam scenam. / Orchestra divinítatis tu es / in qua sub
uma coisa e comover-se com a outra, como fazem com gosto rétro os , ",ma triplicis / idem semper te Deus actor exercet' ." 35
católicos integristas, significa continuar a não perceber que _ As autoridades eclesiásticas, através de rígidos procedimentos
apesar da diferença de estilos - é cada vez mais clara a identidade IIló"lco-administrativos. buscaram - com pleno êxito - purificar
entre os gêneros. No hic et nunc, o sagrado - que, durante séculos, smo tempo salvaguardar a liturgia de contaminações pagãs.
esteve na vanguarda da capacidade de penetração cenográfica uni- :111cUiode Trento sancionou a imodificabilidade das regras, bem
versal - não poderia dispensar o profano, o qual, em sua genial 111110 o cânone da "repetição (e não da comemoração, como será
aplicação nos media, continua por sua vez o mesmo sulco traçado nelonado pelo Concílio de Trento, contra a prática protestante) do
por aquele. O risco que corre o sagrado, na progressiva univer- vento radical, fundador. primigênio da vida de Cristo, sob o olhar
salização do palco, é ser marginalizado das consciências. E do \tI Pai presente e dos fiéis" .36 A dialética da "encenação'í" -
desenvolvimento do Espírito.
1110 pretende a síntese entre o momento profano do rito (cerimônia)
Assim, a aliança entre o sagrado e o profano, para a qual estão t) momento sagrado (culto) - está bem presente precisamente em
atentos os católicos progressistas, pode mostrar no filme uma 1"0 deve cuidar da "direção", quando a Contra-Reforma impõe a
Madalena um pouco feminista e um pouco asiática, capaz de tocar olha de sacralizar ainda mais a cena. Assim. com efeito, observa
na carne de Cristo, somente na medida em que foi sublimada em I) jesuíta Juglaris: "São músicos que cantam as Vésperas, mas com
película. E o Judas formato black power consegue contentar a todos: 118 mesmos tumultos das comédias ou dos bailes; quem não dorme se
conquista tanto as minorias raciais, a sociologia avançada e os Ita, ri, faz burla ou negocia; os bancos das mulheres parecem a
amantes do rock pesado quanto os reacionários silenciosos que república das cigarras, as mais modestas recitam a crônica semanal
sempre haviam pensado que não se pode confiar nos nigger. Já suas aldeias; e as mais livres, que vieram apenas para se mostrar,
Cristo, louro e de olhos azuis, tranqüiliza a estereotipia; e a obscura retêm os olhos e os ouvidos da juventude licenciosa; assim.
malvadez e a pose de barítono de Caifaz confirmam a imutabilidade transformam-se em carnavais do diabo as maiores solenidades de
ontológica da corruptibilidade, da perfídia de todo político e de toda risto" ,31
razão de Estado. Ã parábola, corresponde a moral do filme, assim
como corresponde à interpretação concedida exclusivamente ao
clero, no caso das sagradas escrituras, o crítico oficial, inscrito no Piacentini, n? 66-67, 1978, pp. 135-141. E também o comentário posterior do
catálogo de profissionais, como condição para estar habilitado à seu tradutor A. Berardinelli; "Chirurgia estetica", ibidem, pp. 143-147.
(35) PadreJuglaris, Christus, hoc est Dei homini elogia, Lugduni, 1642,
exegese encomendada do filme.:" Numa contínua inversão de
cito em A. Fontana, "La Scena", in Storia d'ltalia, cit., p. 807.
(*) No original, há um jogo de palavras com "messs in scene", que
pode ser tanto "encenação" como" missa em cena" . (NT)
(36) A. Fontana, op. clt., p. 806.
(34) Sobre a crítica da interpretação, ver H. M. Enzensberger, "Una (37) lbkiem, p. 848. "Mas o belo é que - escrevia P. P. Vergerio
modesta proposta per difendere Ia gioventu dalle opere di poesia", in Quaderni em 1552 - "aquele evangelho da paixão é representado na forma de um
I
\1
50 MASSIMO CANEV ACCI ANTROPOLOGIA DO CINEMA 51
Mas esse escândalo tem uma razão interna ineludível, que tem térlo do quarto"
uma rigidez simétrica à litúrgia: "Defendendo o caráter cênico da
dramaturgia religiosa em si, dos mistérios medievais, das repre- (I. dialética passado-presente que se produz no curso da mis-
sentações sagradas do século XV, a missa tridentina se constitui I I!lu'a n6s, também do filme) foi compreendida por Jung, ainda
essencialmente como espetáculo da morte presente de Cristo. Se a un lnteríor do seu habitual esquemaarquetípico. Diferentemente
missa ortodoxa é sobretudo uma iniciação mistérica, e a ceia I" I'wlustantismo, temos no catolicismo, "antes de mais nada, o rito
protestante é sacramento e comunhão, na qual, através da palavra ti 11 I Nua função sagrada, que permite representar o vivo evento
de consagração que associa intimamente a comunidade de fiéis ao ido pelo arquétipo e que, com isso, toca diretamente no
rito, Cristo concede a salvação, mas não se oferece em holocausto, a 11II11I1It4clcnte. Quem é capaz, por exemplo, de escapar da impressão
missa romana - fundada no princípio da transubstanciação das IllJssa, contanto que dela se aproxime com um mínimo de
espécies eucarísticas - tem sua essência na idéia sacrificial de nmprccnsão?" .40
Cristo". 38 u seja: a missa tem a função de ligar a psiquê de quem dela
O caráter cênico-simbôlico da missa romana deriva do fato de IlItl'tlclpa com o arquétipo; por isso, poucos conseguem resistir ao
que "a comunidade, não chamada a 'morrer' com Cristo, mas a hlNOfuio de seu rito (ainda que estejam presentes passivamente). De
'assistir' à sua morte, toma parte na missa como num espetáculo, e ntportãncía central é o conflito entre o Bem e o Mal, que passa do
será inútil a tentativa de pregadores e moralistas, ao longo dos sécu- lI"lIlSl\mentosimbólico-religioso - com um maniqueísmo ainda
los, para pôr fim a tal atitude". 39 Essa tradição dará os seus frutos. IIllllN absoluto - para o cinema. Diferentemente da linguagem
Feuerbach afirmara que a especulação inteiramente humana sobre o 1I1ilrltria- à qual pertencem, no interior da sua forma-escrita, a
problema de Deus revela as angústias da humanidade, já que é o ulrospecção psicológica, as problemáticas do absurdo ou da angús-
homem que cria Deus e não o contrário: por isso, Deus é o espelho IIn -, o cinema não enfrentou (a não ser como exceções) as grandes
<do homem. Ora, transformadas as relações culto-cerimônia em [uestões da crise de civilização que atravessamos, com a formação
favor do segundo ritual, é o cinema que irá transformar-se, por seu rltlca adequada de um tipo antropológico-radical, em parte por
turno, em espelho do homem. Deve-se mudar o modo de assistir a iusa da especificidade de sua linguagem e, em parte, porque
essas cerimônias modernas: ver o filme deve significar refletir-se nele mplesmente não interessa. A máquina de filmar era e é etnocên-
os tormentos dos desejos, da violência, da morte, que ressurgem - trica; e o centro em torno do qual gira a representação fílmica é a
,,'
ainda que deformados - nas figuras da tela. Mas, mesmo para esse lvilização patriarcal cristã-burguesa, sob condições reificadas,
moderno espelho feuerbachiano, vale a objeção que Marx já mesmo quando por trás da câmara está o "dialético" Eisenstein ou
apresentara, segundo a qual esses tormentos refletidos não são os do lho "maoísta" do "Destacamento Vermelho Feminino". Ê difícil
homem abstrato, mas aparecem como resultado da dialêtica hu- dizer com precisão quais são as componentes estruturais internas ao
mana entre homem cultural, produtivo e hipo-estrutural. O filme, medium específico (sua forma lingüística que predetermina os
filiação do cinema, é também filho de Deus. A hipo-estrutura onteúdos), ou, ao contrário, quais são as componentes de tipo
"missifica" o cinema, ao passo que o cinema "massifica" o rito. cultural ou hipo-estrutural; mas, certamente, não se pode afirmar
que a constância com a qual a problemática gira em torno das
questões do Bem e do Mal seja redutível apenas ao aspecto técnico
do ato de fazer cinema. A insuficiência da reflexão e do aprofun-
damento cultural é certamente importante, mas não explica sufi-
palco". Citado na p. ~. Ainda em 1565, recorda A. Fontana em seu belo cientemente a dialética dogmática dos brancos cavaleiros teutônicos
ensaio, "no primeiro sfnodo milanês. proibe-se aos clérigos o uso da máscara e contra os negros soldados da grande Rússia, ou a fisionômica mais
a participação em qualquer tipo de entretenimento profano (... ). Em 1585,
Sisto V reafirma a proibição de que o clero use máscaras" (citado na p. 848).
(38) Ibidem.
(39) Ibidem. (40) Jung. La simbolica dellospirito, cit., p. 267.
52 MASSIMO CANEV ACCI ANTROPOLOGIA DO CINEMA 53
vulgar na representação do inimigo. A concepção de tipo lombro- dois, a origem do mal". 43 Desse modo, segundo Jung, não há mais
siano do herói e do seu antagonista unificou todos os grandes dúvidas sobre o fato de que "de vida comum não respiram apenas o
diretores (além- naturalmente, dos pequenos), das mais diferen- Pai e o Filho luminoso, mas também o Pai e a criatura tenebrosa".
ciadas concepções politicas. Talvez a compreensão dos elementos Por isso, é necessário combater o "reino do pensamento trinitário",
hipo-estruturais - que estão presentes, inclusive, nos autores que reconstruir ajusta relação entre Cristo e o Diabo, e restabelecer sua
vivem as situações subjetivamente mais revolucionárias - possa nos relação originária de "opostos equivalentes". A antítese entre eles
aproximar da solução do problema. deve representar "um conflito levado ao extremo e, com isso,
Isso coloca para o cinema a necessidade de resolver o também uma tarefa secular para a humanidade, até àquele ponto ou
"mistério do quarto". Já expressamos nossas idéias sobre Jung. Ele àquela virada do tempo em que bem e mal começam a se relativizar,
representa o que Marcuse definiu como a ala direita da psicanálise, a se colocar em dúvida, e eleva-se um grito dirigido a um 'para além
fautor de uma "pseudomitologia obscurantista": mas é ainda mais do bem e do mal' " . 44
obscurantista continuar a ignorar todos os problemas simbólicos Esse objetivo, sempre segundo Jung, não é possível na era
(mito, rito, dogma), que as inquietantes ressurreições religiosas cristã, na medida em que a aceitação do mal numa "relação lógica
demonstram que são muito enraizados na hipo-estrutura e são com a Trindade" provocaria conflitos demasiadamente violentos.
perigosas quando dela escapam. Por motivos de espaço, mas Todavia, conserva-se a verdade que é pretendida pelo símbolo da
também de relativo interesse com relação à nossa argumentação, especulação religiosa, não mais - e nem mesmo jamais - em
remetemos à leitura direta do texto original para todas as inter- forma trinitária, mas sim segundo o modelo dessa formação
pretações junguianas sobre a simbólica dos números três e quatro. 41 quaternária:
Aqui basta recordar como, em substância, ele critica a ausência -
na história oficial da teologia cristã, da figura de Satanás, o "adver-
sário de Cristo": "O diabo é autônomo; ele não pode ser sujeito à
soberania de Deus, já que, de outro modo, não seria adversário de
Cristo, mas apenas um instrumento de Deus. O um, o indefinível,
na medida em que se desenvolve em dualidade, torna-se algo
definido, ou seja, o homem Jesus, o Filho e o Logos. Essa afirmação
FUius +Pater
Spiritus
Disbolus
é possível somente por meio de um outro, que não é Jesus, nem Filho
ou Logos. Ao ato de amor no filho, contrapõe-se a negação de Diz Jung: "Quando Deus revela seu ser e se torna algo deter-
Lúcifer" . 42 minado, ou seja, um homem determinado, então seus contrários
Deus, tal como é descrito no Velho Testamento, no segundo devem se cindir: aqui o bem, lá o mal. Assim, os contrários latentes
dia, depois de ter criado as águas inferiores e superiores, não disse, na divindade separaram-se na geração do Filho e se manifestaram
como nos demais dias, o que era bom: "e não o disse precisamente na antítese Cristo-Diabo" .45
porque, no segundo dia, Deus teria criado o Binarius, o número
A simbólica da quaternidade, com muito maior força que a da ainda identificava com as funções primigênias: 'a interpretação
trindade, volta a revelar a existência do diabo como verdade teoló- materna reduziria o sentido específico do Espírito Santo a um
gica originária: com efeito, o quatro é o duplo de dois e "Binarius é o modelo primitivo', diz Jung. A Trindade - enquanto oscilação/
diabo do dissidio e também o feminino". o catolicismo oficial trégua entre antropomorfismo e seu contrário (o Logos) - funciona
buscou atenuar essa sua verdade (utilizando a figura da Madona), como dogma precisamente enquanto assexuada- Já na virgem
ao passo que a concreticidade do modo de viver e de pensar Maria, ao contrário, resiste o lado antropomórfico, que pode
cotidianos, ao contrário, conseguiu conjugá-Ia no curso de todo o reivindicar os velhos direitos matriarcais, na condição de renunciar
processo de civilização cristã-burguesa, Em todo dito popular ou à penetração" .46
filosófico, o diabo é mulher e a mulher é o diabo. A unidade da Todavia, há mais verdade para a compreensão de séculos de
figura dos dois é sincrônica e estrutural, e não separável da repressão nessas análises abertamente reacionárias de Jung do que
I1
contemporânea figura viril de Cristo. Jung temo mérito de explicitar na História oficial, tendente a ocultar com suficiência e embaraço a
I11
uma verdade conhecida mas silenciada, naquela que define como função "mal-estarmente civilizadora", * que teve o "espírito diabô-
I "a busca do quarto perdido", cuja solução consiste em redefinir o lico" . A racionalidade cristã-burguesa não soube resolver essas suas
"Lúcifer caído" . escórias interiores; e, em todas as vezes que se pôs em movimento
Se invertemos agora a interpretação ideológica de Jung através uma dinâmica sócio-cultural que deu forma e organização pública ao
de uma colocação antropológico-dialética, poderemos realizar uma chamado "retorno do reprimido" ,47 a totalidade do universo oficial
descoberta de grande interesse acerca da razão pela qual, no dogma _ Estado, religião, intelligelltsia - capitulou sem excessiva resis-
:1 da Trindade, o Espírito Santo substitui a mulher na relação que, de tência. Toda a cultura de massa - positiva, metafísica, materialista
I'
.i! outro modo, apareceria "familiar por excesso" de Pai - Mãe - _ continua a ter por objeto a demonização do outro e a beatificação
i
Filho: a troca é determinada pela preocupação de eliminar qualquer do próprio si mesmo e do próprio grupo.
dúvida sobre a origem da vida em geral e do Cristo em particular, Deve-se dizer, finalmente, que Jung não consegue mais
I
que poderia levar à certeza de ter sido o resultado de um acopla- globalmente - controlar as relações entre os quatro elementos, de
II
mento sexual. Nem formas simbólicas da natureza primordial modo que, depois de ter compreendido a natureza simbolicamente
,il
(exemplo: Urano e Gea) , nem muito menos da família normal feminina de Spiritus, volta a lhe emprestar a definição tradicio-
1:'\\ (exemplo: o Pai e a Mãe) têm dignidade mistérica capaz de poder nalmente lógica (ou seja, teológica) enquanto "explicitação da
II
representar a origem da vida. Ela, pela simbólica do Spiritus, deve unidade do Pai na multiplicidade do Espírito Santo". 48 Todavia, o
"ii ter a forma e o conteúdo da partenogênese. Assim, a expulsão da quanto o esquema quaternário ou "satânico" tenha influenciado o
sexualidade como origem causal da vida pode ser tornar modelo sistema hipo-estrutural do gênero humano de cultura cristã-bur-
geral de condenação da sexualidade enquanto tal, do princípio do guesa (e a natureza do cinema é, como veremos, etnocêntrica por
prazer, que termina por se concentrar apenas no corpo da mulher. excelência) é algo que pode ser verificado se aplicarmos o mesmo
Desse modo, a "fêmea" eleva-se a símbolo de "natureza" e de esquema, certamente em sua forma invertida, ao cinema enquanto
"diabolus" e sofrerá a condenação de toda uma civilização: "De tal. Esse método quer ser apenas uma espécie de chave que penetra
nosso oposto ponto de vista, o dogma da Trindade deve ser facilmente no cofre onde se oculta o segredo da demonização,
finalmente dissolvido enquanto expulsão drástica de qualquer
referência à sexualidade a fim de motivar a geração do mundo. A
(46) M. Canevacci, Dialettica dell'individuo, Roma, Savelli, 1978, p. 93
Trindade foi inventada e dogmatizada contra a 'conjunção' de [ed. brasileira: Dialética do Indivíduo, São Paulo, Brasiliense, 1981).
elementos naturais (inorgânicos) ou da carne (orgânicos): e, para (*) Jogo de palavras com o título da famosa obra de Freud, O mal-estar
esclarecer esse conceito, a mulher foi expulsa da imagem trinitária. na civilização. (NT)
(47) Os erros de nossa civilização são como minas que é necessário
A família arquetípica substituiu a gravidez feminina pelo mistério explorar _ ainda que dolorosamente - a fim de compreender a origem do
da gravidez espiritual. O Espírito Santo é o sucedâneo sublimado do fascínio que, apesar de tudo, exerceram e ainda exercem sobre o homem.
destronamento do amor materno (e material), que o mito grego (48) Jung, op. cit., p. 254.
56
MASSIMO CANEVACCI
ANTROPOLOGIA DO CINEMA 57
precisamente enquanto ela, por seu turno, é também demonizada.
similar à morte, mas também ao prazer. A validação, por assim
Um uso, portanto, nem neutro nem instrumental do esquema
dizer, jurídica de seu antagonismo ao herói lhe vem diretamente de
quaternário, mas literalmente satânico. O similar é interpretado
sua geração contemporânea à ação. Mais uma vez, o Id se alia com o
pelo seu similar; o sistema lógico-teológico lê seu resultado
Super-Ego contra o Ego. No mito, é a Esfinge; na epopéia, o
empírico. Mas, antes, é necessário dar uma leitura de transgressão
(ou transversal) dessa simbólica quaternária, a fim de explicitar os Ciclope, a Sereia, Circe, os Comedores de Lótus; na fábula, Baba
conteúdos formais e materiais nela presentes - ainda que em forma Jaga; na religião, Satanás; na economia, o trabalho morto. No
invertida e espiritualizada, mas nem por isso menos concreta _, e cinema, é a síntese disso tudo.
4) Spiritus: é a negação da negação, o elemento feminino
os modelos produzidos pela ordem do discurso da cruz arquetípica:
irracional e irrefletido, a fenomenologia da natureza. Como prê-
1) Pater: é tanto a origem de todas as coisas (arqui-fálica) consciente, está entre o Ego e o Id: alia-se com Fi/ius para derrotar
como a determinação histórico-social do ser, num contexto contem- (negar) a negação, e reconduzi-lo à condição sintética de Pater; mas,
porâneo à ação. Em termos psicanalíticos, representa o Super- ao mesmo tempo, a histeria binária de sua natureza feminina leva-o
Ego; em termos idealistas subjetivos, é o a priori, condição do tempo aos braços de Diabo/us. Aliás, é o seu alter-ego, nas formas da
e do espaço; e, em termos idealistas objetivos, é a síntese primigênia, tentação. No mito, é Jocasta; na epopéia, Penélope; na fábula, a
que começa a dar lugar ao processo de alienação de si, de princesa; na religião, o Espírito Santo (mas também, numa heresia
I manifestação fenomenológica do mundo enquanto paixão de deus, a secreta tolerada, a Madona enquanto ressurreição de Deméter); na
:1: partir do qual o seu sofrimento e o seu tormento darão forma àquela
'11 economia, o tempo "livre". No cinema, é a síntese de tudo isso.
,11 "viagem" que fará o mundo retornar à sua realidade originária.
'",
Portanto, ele é - de qualquer ponto de vista - o poder. Assim, Não é certamente nossa intenção chegar a "fórmulas" que
para as relações de parentesco, é a potência genital que dá vida à consigam explicar tudo e elaborar uma síntese que compreenda a
sucessão das gerações. No mito, é Laio; na epopéia, é Laerte; na ampla multiplicidade de filmes. Em qualquer fórmula - como na
fábula, o rei; na religião, Deus; na economia, Capital: e, final-, Mandala, o círculo mágico que pretende dividir a sacralidade do
mente, no cinema, é a síntese de tudo isso.
I conhecimento da vulgaridade da empiria -, conserva-se a ilusão da
1 2), Fi/ius: é a individualidade positiva, o Ego, ou o herói; ele reductio ad unum diante da multiplicidade do sensível. 49 A desva-
"I representa um status intermediário, de passagem, que encontra sua lorização do que é material é a outra face da supervalorização do
origem no Pater, e sua finalidade em se tornar, por seu turno, que é espiritual. Todavia, é interessante verificar a correspondência
sempre pater: e, com efeito, a viagem é a sua condição normal na que se estabeleceu - apesar e contra nossas intenções - entre uma
ordem da narração. Ele viaja no conflito, dentro do esplendor e da simbólica do cinema (que reflete, conscientemente e não, o etno-
miséria do sensível; as provas que deve superar servem para centrismo cultural de um modelo de vida que produziu certamente a
conquistar a meta da consciência individual e da racionalidade. Na máquina-cinema, mas que remonta bem mais profundamente às
figura do herói, concretiza-se aquele processo que deve ter como fim memórias arcaicas e estratificadas das ritualizações) e uma simbó-
o restabelecimento do status inicial de tipo paterno, mas com um lica do espírito (cuja definição pertence à reação psicanalitica e
nível superior de autoconsciência, determinado pelo fato de ter mitológica fundada sobre o arquétipo, sobre a remoção "civilizada"
sofrido a "paixão" do mundo fenomênico. No mito, é Êdipo; na do mistério do quarto excluído: a dupla oposição entre Diabo/us e
epopéia, Odisseu; na fábula, Ivã; na religião, Cristo; na economia, o
trabalho vivo; e, finalmente, no cinema, é a síntese de tudo isso.
3) Diabo/us: é contraposto a Filius , mas também lhe é (49) Sobre a simbólica do número Um - que, não casualmente, Jung
contemporâneo. Ê a individualidade negativa anti-Cristo e antí- não enfrenta mais do que em termos de hagiografia religiosa - e sobre sua
função prático-política, haveria muitíssimo a dizer no âmbito da esquerda em
herói, zona indistinta e incontrolada, pulsionante e rebelde do Id. geral, tanto na hierarquia dos partidos comunistas chinês e soviético
As tendências à regressão pré-individual configuram-no como (respectivamente para Mao e Stálin), como na hierarquia do "centralismo
I .democrático".
1
1I
ANTROPOLOGIA DO CINEMA
S9
S8 MASSIMO CANEV ACCI
Filius c entre Pater e Spiritus). Esse sistema quaternârio determinou 2) [vã o Terrível
os modelos de vida mais profundamente do que muita cultura
"culta", oficial ou implícita (costume). O problema que nos
colocamos é o de saber como interpretar a singular correspondência
entre elementos aparentemente tão diferentes e tão distantes entre si
(cinema e espírito), para compreender que enigma de civilização se
oculta por trás dele. A cruz de quatro figuras elaborada por Jung
transforma-se numa espécie de peneira hipo-estrutura/, que filtra e
lvã +Estado
Mãe Rússia
Bol"do,
:Iilq
II
I' '
.I! ~I
como inter e intra-individuais. Os sistemas rituais têm uma
dimensão filogenética, não apenas ontogenética. Talvez essa peneira
hipo-estrutural possa conseguir derrubar aquela máscara rígida
(mas, apesar disso, expressiva) que oculta as muitas repressões filo-
genéticas unidas e distintas das historicamente determinadas pelo
modo de produção; que "retomam" ou continuam a reproduzir-se
Luke
+ Leia
Oarth
Vader
",
ilill
,,'
tomando como exemplos cerca de trinta filmes, de estilos e épocas
diversos, e conjugando os quatro elementos da cruz arquetípica
(Pater - Diabo/us - Fi/ius - Spiritus) com as quatro simbólicas
que todo filme reproduz, e que redefinimos anteriormente numa
interpretação "transversal" .
Kane + Poder
Rosebud
Poli""/
Capital
(Infância)
1) 2001: Uma Odisséia no Espaço
Herói
espacial
+ Terra
Hal
(Computador)
Herói
(não-consciente)
+
Proletariado
Czarismo
Mãe
Revolução
60
MASSIMO CANEVACCI
ANTROPOLOGIA DO CINEMA 61
6) O Encouraçado Potemkim
10) Contatos Imediatos de Terceiro Grau
,,+
Povo
M"'oh,'eo, ---+- I
Oficiais/ Padres/
Fardasczaristas Herói~
"normais
Ciência e técnica
Incredulidade
Revolução
Imortalidade
7) Walt Disney
11) Western "padrão"
i!/
','
"
i
'''.'
I'
I I":
1, I
1
Mkk,y +
Ordem
(Coronel Garcia)
Minnie
.João B.fo~d,~Ooça
Herói
soldado
+
EUA (Oeste)
Mulheres-Fé-Amizade
índios
+
'1IIi!
1;:11 O Poder da Gang' Estado
I!I! i
Italiano
Herói
Lumpen
+ Natureza
(campo)
Anti-herói
-burguês
+
Prazer
+
(sexo-droga-rock)
Sexo
Herói Sul/
"a-normal" Normalidade Homem F.lo
Moto-Estrada
Mulher
63
ANTROPOLOGIA DO CINEMA
62 MASSIMO CANEV ACCI
Herói
guerrilheiro +
Antifascismo
Mulher
N";",,
Caçador
soldado
+Pittsburg
Amor viril e
Vietcong
(roleta russa)
amor heterossexual
:!Il'"
I
Heroína +
Comunismo
Consciência
Patrão
Ator
bailarino
+
Cinema
(Show)'
Som
de classe Música-Dança
+
Comunismo Guerra
li!.I "'I
'111
real
+
,1:1'
H,d .ru
Pessoas
Hippie caretas
Podre;", Burocracia
Sexo-Droga-
A diretora Rock
Macho +Thanatos
Hetaira
Joe + Pater
Mater
Dr.oga +
Edipo
Eros (melodrama)
u
\
64
MASSIMO CANEV ACCI
ANTROPOLOGIA DO CINEMA 65
22) Hanging Rock
+
Estúdio
Hierarquia
Co'"""+ Diretora
Rocky Campeão
"pró"
Montanha
(fálica) Boxe
,
:iII:::
,
M,,,,," + Cosmos
Caos
O'.u""" Vivos + Policia
Natureza
Morto,
+
1111,/
+
Classe
NewDeal
K,." A,"-"",,,"mo
Popeye Brutus
Raça
Olivia
Casal
"homo"
+
Sociedade
Famnia
Casal
"hetero"
Anti-herói +
EUA (Oeste)
Custer
Cheyenne
ANTROPOLOGIA DO CINEMA
67
66 MASSIMO CANEV ACCI
+
Kane Rosebud/lnfãncia
4) Poder Czarismo
Herói não·consciente M~e/ Revolução
5) Proletariado Oficiais/ Padres/
Estudante Pai-A. Sordi Marinheiros Revolução
6) Povo Fardas Czaristas
Roma-Norte Tédio-Vanguarda
Minnie João Bafo-de-Onça
7) Ordem Mickey
(casa e famnia)
Portorriquenha Capacetes
Cultura 8) Gang Power Herói Lumpen
Sul-Normalidade
Herói a-normal Moto-Estrada
"de esquerda" 91 Prazer (sex-
droga-rock) Incredulidade
Her6is normais, Imortalidade
10) Ciência e técnica
meninos, empregados
Mulheres-Amizade-Fé- Indios
11) EUA (Oeste) Herói soldado
31) A Árvore dos Tamancos Natureza
Natureza (campo) Anti-herói burguês
+
121 Estado italiano Herói proletário
Mulher Falo
13) Sexo Homem
Deus Herói guerrilheiro Mulher Nazistas
14) Antifascismo Patrão
Heroina Consciência de classe
15) Comunismo Burocracia (partido +
Birkut A diretora
'I'·'· 16) Comunismo real sindicato)
(pedreiro)
'1,1::,
!II' Herói
camponês Pecado Macho Eros Hetaira
17) Thanatos Vietcong (roleta russa
Caçador / soldado Amor viril e
I! 18) Pittsburg
soldado e amor heterossexual
" Música-Dança Som
19) Cinema (show) Ator (bailarino)
Fé Hippie Sexo-Droga-Rock Pessoas caretas
201 Guerra
Esperança Joe Mater (melodrama) Droga-Édipo
21) Pater Diretora
Caridade 22) Estúdio Colegial Montanha (fálica)
Caos Orquestra
23) Cosmos Maestro
Anti-semitismo
i~"
I 24) Classe Klein
Casal "horno"
Raça
Famnia Casal "hetero"
tlll 25) Sociedade Campeão "pró"
'11 Rocky Boxe
:'I':!:! Coloquemos agora sob os respectivos protótipos hipo-estruturais as 26) Hierarquia
Natureza Mortos
,1:11 I, i 27) Polícia Vivos
Brutus
Iflllll, várias determinações que conseguimos obter, articulando a simbó- 28) NewDea/ Popeye Olivia
+
rísticas dos quatro personagens arquetípicos tPater-Filius-Spiritus- Capital
Diabolus) é evidente, apesar da variação quanto ao tema. Essa
estereotipia se conserva mesmo se, em vez da peneira arquetípica,
usarmos um sistema de oposições mais "moderno", válido sob Burquesi P<oI",,"OO
diversos pontos de vista e dotado de maior relativismo cultural.
Assim, por exemplo, podem-se construir os seguintes esquemas
Sociedade
mais "laicos" e mais ou menos conservadores: civil
II 1
68
MASSIMO CANEV ACCI I!II
ANTROPOLOGIA DO CINEMA 69
2) Esquema político
História
B"",""" Pênis -1-
Corpo
Vagina
ÃO"'
3) Esquema psicanalítico Mas nenhum esquema resume de modo mais eficaz do que o
IIllNIOul "junguiano" (em sua interpretação invertida, decerto, e não
111 hllloxa) aquela crise antropológica de civilização que a forma-
Super-Ego
1 I111'11I U revela e reproduz nesse modo de produção. A monotonia do
u·'"
'90+"
Pré-consciente
(entre o Ego e o Id)
".11 AteI' dos personagens quaternários consiste na reproposição de
1111111 estrutura prototípica, no interior de aparência de mudança
1111111 sistema de variações quantificáveis e intercambiáveis ad infi-
Illlum.so Desse modo:
- Filius é camponês, guerreiro, proletário, lumpen, sol-
dUdo, guerrilheiro, empregado, cosmonauta, maestro, estudante,
how-man, animal antropomórfico, atleta, homo ou heterossexual,
macho.
4) Esquema progressivo e/ou regressivo
+
(50) No plano dos manuais técnico-profissionais, publicou-se nos
Cultura
tados Unidos uma série de volumes que cobrem o inteiro ciclo produtivo
Inematogrâfico, do diretor ao ator, do roteiro ao extra, com particular atenção
para a quantificação dos enredos. Veja-se o volume Industria culturale e
Homem M"'he, cInema in Usa negli anni dieci e venti, Materiais docurnentários editados por
A. Abruzzese e B. Placido, Edizioni "La Biennale" di Venezia, 1975. "Nesses
manuais norte-americanos, assistimos ao ponto de chegada daquele processo
Natureza de expansão social da arte, que Hegel definira como sua morte; e, assim como
daquele processo ganhou vida, precisamente enquanto papel profissional e
técnico, a figura do diretor, do mesmo modo deriva dá tal processo a
possibilidade de 'fixar' trinta e seis situações dramáticas, a partir de cujas
5) Esquema moral combinações pode-se construir o rotéiro do filme, ou seja, 'pescar' a
matéria-prima necessária para a produção de uma determinada obra." (lbidem,
p. 68.) Os volumes didáticos são o Palmer Plan Handbook e as duas Photoplay
Ente Supremo Plot Encyclopaedia, publicadas pelo Departrnent of Education de Los Anqeles.
Por exemplo: analisa-se, com detalhes de tipo quase "estruturalista", a
"Terceira situação: crime perseguido por vingança", que prevê quinze tipos de
fílmico"
fundamentais,
da metodologia
Exemplo: segundo uma "lei" que G. Polti formulou
é reproduzido por
da
cujos matizes
Vida
formam a base de todo o drama humano" tlbldern, p. 95).
70
MASSIMO CANEV ACCI ANTROPOLOGIA DO CINEMA 71
Diabolus é boiardo, capitalista, czarista, padre, policial, inversão das máscaras, do mesmo modo como na tradição carna-
índio, nazista, vietcongue, pecador, integrado, computador, gangs- valesca se usava (mas com uma desordem bem diversa) a inversão de
ter, falo erecto, pai, monstro, droga, comunista, hetaira. papéis entre o servo e o senhor. A genealogia das imagens
- Pater é ciência, Estado, poder, povo, ordem, classe, inconscientes não arquetípicas adequa-se às exigências de novos
guerra, cinema, cosmos, hierarquia, new deal, plano qüinqüenal, "arrepios" organizados pela aplicação managerial do job enrich-
comunismo "real", comunismo "ideal", anticomunismo, Deus. ment e job enlargement. Ê a rotação das funções aplicada à
Spiritus é terra, pátria, mãe, revolução, infância, imorta- industrialização do tempo "livre". Filius e Diabolus são intercam-
lidade, natureza, consciência de classe, música, montanha, raça, biâveis, mas continua sempre idêntica a função deles no interior do
amizade, família, sexo, caos, fé-esperança-caridade. esquema, na medida em que continua a mesma a lógica (ou o espí-
Em síntese, pode-se afirmar que o protótipo atua no estereó- rito) que os constituiu nessa contraposição ideológica, que é tanto
tipo e que, vice-versa, a estereotipia reificada está no interior do mais o que é na medida em que se põe como eterna. A evidência
sistema arcaico de protótipos. dessa conclusão teria sido ainda mais clara se tivessem sido esco-
Para superar a estereotipia, é necessário destruir os modelos lhidas "máscaras" simbólicas ainda mais variáveis de acordo com o
Prototípicos que a nossa civilização arrasta antropologicamente contexto político-cultural que as produz. Ê o mecanismo de
COnsigo;e, ao mesmo tempo, para superar o protótipo é necessário representação interno às quatro figuras simbólicas que tende a
destruir os modelos estereotípicos que o nosso modo de produção reproduzir o retorno do idêntico, independentemente de o ponto de
reproduz continuamente. partida ser racista, fascista, comunista, de ficção científica ou de
li.
O Cristo dos Evangelhos, canonizado todos os dias nos altares, história em quadrinhos. O esquema de relação permanece imodifi-
e o Gary Cooper de Matar ou morrer, reproduzido todas as noites cado, marcando o caráter "diabólico" do antagonista, não nos
nas telas, são modelos muito mais afins do que se possa supor. O traços interiores, mas naqueles exteriores, públicos, por assim dizer,
protótipo-Cristo e o estereótipo-xerife fortalecem-se numa interação precisamente porque o público reconhece nessa dimensão o mal, de
funcional, como "cisão inteligente" de uma única exigência que acordo com esse preceito: a fisionômica filmica deve uniformizar
Ilil' fOrtalece os laços subterrâneos entre religião e cinema. A superação todas as componentes ideológicas do cinema, no mesmo momento
li"
da alienação mítico-religiosa (é o homem que cria deus, projetando em que a' antropologia criminal de tipo lombrosiano - equivocada
nele angústia e desejos que se reproduzem de geração em geração, de modo demasiadamente .evidente - é "oficialmente recusada",
mas que mergulham suas raízes nas memórias arcaicas) não A potência interior da máquina de filmar esmaga todas as
cOincide com a superação da alienação tardo-capitalista (é o homem diferenças sob o medium do seu objetivo.
qUe cria as mercadorias, mas isso não lhe é reconhecido, nem ele Mas o que surpreende ainda mais não são apenas as con-
mesmo o reconhece, razão pela qual, em vez de destruir o caráter de clusões, em parte até mesmo previsíveis, sobre a monotonia do
fetiche, é por ele subjugado a ponto de nele projetar a satisfação dos caráter <;10 herói, assim como a inversão de suas funções, mas
mesmos desejos e angústias). Tornou-se necessário reivindicar a sobretudo os resultados que se obtêm relacionando entre si as
sUPeração de ambas, enquanto dois momentos separados e a simbólicas das oposições binárias - ou sej a, Spiritus e Diabo/us -,
separar, mesmo que se apresentem como cada vez mais mesclados as quais, enquanto números pares, são afins entre si. Vimos como
entre si, porém nunca unificados - como ainda podia pensar Marx Jung se contradiz, referindo-se à natureza "secreta" feminina como
- Pelo homem social. essência de Spiritus, de onde deriva a conexão arquetípica entre
Mesmo as recentes inversões das funções da caracteriologia Satanás e Mulher, enquanto posteriormente reflui - talvez
qUaternária - que fazem com que as características que foram as temendo as conseqüências, no plano das conclusões lógicas - ao
do herói; na fase do cinema que é precisamente chamada de entender Spiritus segundo a ortodoxia religiosa. E, com efeito, as'
"heróica", tornem-se aquelas de seus antagonistas na fase mais conseqüências são precisamente temíveis, na medida em que
propriamente multinacional da indústria cinematográfica _ não desmascaram - se não são mais usadas sob o signo repressivo do
são mais do que atualizações no interior do mesmo esquema. Ê a arquétipo, mas da tentativa de compreender nossa crise de civili-
70 MASSIMO CANEV ACCI ANTROPOLOGIA DO CINEMA 71
Diabolus é boiardo, capitalista, czarista, padre, policial, inversão das máscaras, do mesmo modo como na tradição carna-
índio, nazista, vietcongue, pecador, integrado, computador, gangs- valesca se usava (mas com uma desordem bem diversa) a inversão de
ter, falo erecto, pai, monstro, droga, comunista, hetaira. papéis entre o servo e o senhor. A genealogia das imagens
- Pater é ciência, Estado, poder, povo, ordem, classe, inconscientes não arquetípicas adequa-se às exigências de novos
guerra, cinema, cosmos, hierarquia, new deal, plano qüinqüenal, "arrepios" organizados pela aplicação managerial do job enrich-
comunismo "real", comunismo "ideal", anticomunismo, Deus. ment e job enlargement. É a rotação das funções aplicada à
- Spiritus é terra, pátria, mãe, revolução, infância, imorta- industrialização do tempo "livre". Filius e Diabolus são intercam-
lidade, natureza, consciência de classe, música, montanha, raça, biáveis, mas continua sempre idêntica a função deles no interior do
amizade, família, sexo, caos, fé-esperança-caridade. esquema, na medida em que continua a mesma a lógica (ou o espí-
Em síntese, pode-se afirmar que o protótipo atua no estereó- rito) que os constituiu nessa contraposição ideológica, que é tanto
tipo e que, vice-versa, a estereotipia reificada está no interior do mais o que é na medida em que se põe como eterna. A evidência
sistema arcaico de protótipos. dessa conclusão teria sido ainda mais clara se tivessem sido esco-
Para superar a estereotipia, é necessário destruir os modelos lhidas "máscaras" simbólicas ainda mais variáveis de acordo com o
prototípicos que a nossa civilização arrasta antropologicamente contexto político-cultural que as produz. É o mecanismo de
consigo; e, ao mesmo tempo, para superar o protótipo é necessário representação interno às quatro figuras simbólicas que tende a
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reproduz continuamente. partida ser racista, fascista, comunista, de ficção científica ou de
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O Cristo dos Evangelhos, canonizado todos os dias nos altares, história em quadrinhos. O esquema de relação permanece imodifi-
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e o Gary Cooper de Matar ou morrer, reproduzido todas as noites cado, marcando o caráter "diabólico" do antagonista, não nos
nas telas, são modelos muito mais afins do que se possa supor. O traços interiores, mas naqueles exteriores, públicos, por assim dizer,
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protótipo-Cristo e o estereétipo-xerife fortalecem-se numa interação precisamente porque o público reconhece nessa dimensão o mal, de
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l'il·i!I!'1 nele angústia e desejos que se reproduzem de geração em geração,
mas que mergulham suas raizes nas memórias arcaicas) não A potência interior da máquina de filmar esmaga todas as
coincide com a superação da alienação tardo-capitalista (é o homem diferenças sob o medium do seu objetivo,
que cria as mercadorias, mas isso não lhe é reconhecido, nem ele Mas o que surpreende ainda mais não são apenas as con-
mesmo o reconhece, razão pela qual, em vez de destruir o caráter de clusões, em parte até mesmo previsíveis, sobre a monotonia do
fetiche, é por ele subjugado a ponto de nele projetar a satisfação dos caráter do herói, assim como a inversão de suas funções, mas
mesmos desejos e angústias). Tornou-se necessário reivindicar a sobretudo os resultados que se obtêm relacionando entre si as
superação de ambas, enquanto dois momentos separados e a simbólicas das oposições binárias - ou seja, Spiritus e Diabolus -,
separar, mesmo que se apresentem como cada vez mais mesclados as quais, enquanto números pares, são afins entre si. Vimos como
entre si, porém nunca unificados - como ainda podia pensar Marx Jung se contradiz, referindo-se à natureza "secreta't.íemínína como
- pelo homem social. essência de Spiritus, de onde deriva a conexão arquetípica entre
Mesmo as recentes inversões das funções da caracteriologia Satanás e Mulher, enquanto posteriormente reflui - talvez
quaternária - que fazem com que as características que foram as temendo as conseqüências, no plano das conclusões lógicas - ao
do herói; na fase do cinema que é precisamente chamada de entender Spiritus segundo a ortodoxia religiosa. E, com efeito, as'
"heróica", tornem-se aquelas de seus antagonistas na fase mais conseqüências são precisamente temíveis, na medida em' que
propriamente multinacional da indústria cinematográfica - não desmascaram - se não são mais usadas sob o signo repressivo do
são mais do que atualizações no interior do mesmo esquema. É a arquétipo, mas da tentativa de compreender nossa crise de civili-
74
MASSIMO CANEV ACCI
~
genero
(1) Sobre essa questão, cf. Eibl-Eibesfeldt, Amore e odio, cit., em par-
ticular o capítulo "Filogênese e ritualização", pp. 51-76. Sobre a interpretação
simbólica do rito, cf.R. Firth, I simboli e le mode, Bari, Laterza, 1977, em
(51) Jung, op. cit., p. 261. particular o capítulo "Posições da antropologia moderna sobre os processos
simbólicos", pp. 149-187;e o já citado texto de Frazer," ramo d'oro,
76 MASSIMO CANEV ACCI ANTROPOLOGIA DO CINEMA 77
A função que a fábula exerceu no passado pré-capitalista, lidade da mais perversa e perigosa das alianças, que é reproduzida e
assim como o esquema narrativo do rito religioso, é exrecida agora socializada em escala de massa no tardo-capitalismo: pulsões, ins-
pelo cinema enquanto alienação do capital industrial em conexão tintos, inconsciente são prê-formados no momento de sua "saída
sintética com todo esse passado. A morfologia do cinema impõe a pública" da estrutura produtiva em funcionamento, até o seu "rein-
conclusão de que a história narrada - seu significado oculto e gresso privado" por obra do Super-Ego, transformado agora em
evidente - é sempre a mesma, e que somente o acessório pode ser agente da reificação no interior de cada indivíduo. Desse modo, a
uma variação socialmente aceita." A essa regra, adequou-se (de cultura (supra-estrutura) do gênero cinema forma um sistema de
resto, como veremos, há séculos) o público espectador, impelido por relações que o articula, por um lado, com a produção de merca-
uma secreta pulsão a ver reconfirmado o retorno do sempre idêntico, dorias (estrutura) e, por outro, com a reprodução de pulsões e
que não é apenas socializada na infância pela família e pela socie- memórias ihipo-estrutura),
dade, mas que parece também confirmar a hipótese de uma gramá- A cisão estratificada entre cinema "sério" e cinema "leve" tem
tica genética do comportamento. A enorme variabilidade de mitos, a mesma função, no plano da qualidade socialmente mascarada,
parábolas, fábulas escondia uma íntima essência unitária, que a que a da programação em salas de "primeira" e de "segunda"
análise estrutural e morfológica teve o mérito de ser a primeira a exibição, no plano universalmente aceito da quantidade. Falar de
destacar; mas talvez não tenha tido o mérito de sabê-Ia explicar "gênero" no cinema só tem sentido se se usar a categoria única da
definitivamente com credibilidade, já que as relações entre cultura, estandardização: "Para todos é previsto algo, a fim de que ninguém
estrutura e inconsciente eram insuficientes. 3 possa escapar: as diferenças são cunhadas e difundidas artificial-
O eterno retorno, mais do que manifestação de subversão mente. O fato de oferecer ao público uma hierarquia de qualidade
social ou vontade de penetração nos mistérios do ser, tornou-se há em série serve apenas Para a quantificação mais completa. Cada um
muito um funcionário que organiza os media. e, em particular, o deve comportar-se, por assim dizer, espontaneamente, de acordo
, li
cinema, com garantia patenteada de sucesso." As respostas que o com o seu levei determinado previamente por índices estatísticos, e
gênero cinema consegue dar à ideologia do eterno retorno, revives- dirigir-se para a categoria de produtos de massa que foi preparada
cência sub specie artística das conhecidas "invariantes antropoló- para seu tipo. Reduzidos a material estatístico, os consumidores são
gicas" (além de continuar a mascarar as questões hipo-estruturais distribuídos, no mapa geográfico da administração dos estúdios
reais, que ele entende mal, mesmo contribuindo involuntariamente (que não mais se distinguem das agências de propaganda); por
para explicitar a falta de análise nesse nível), reconfirmam a centra- grupos de renda, em campos vermelhos, verdes e azuis". 5
Essa auto-seleção é a única adequada à máxima funcionali-
dade do mercado. O significado de todos os filmes é o de imprimir
(2) A essa componente "genérica" do cinema tendem também aquele{ "com letras de fogo" a onipotência do capital investido, de sua.
filmes que parecem pôr em discussão qualquer regra precedente, mas que ideologia, das pulsões reificadas, no "coração de todos os expro-
servem para experimentar as novas técnicas que - aperfeiçoadas e seriali-
priados em busca de emprego (. .. ), independentemente do enredo
zadas - poderão entrar a pleno título no "gênero oficial". Cf., por exemplo,
a utilização de técnicas experimentais por Kubrick nas tomadas tanto da que a direção da produção escolhe em cada oportunidade"." O
"viagem" final intergalática e interindividual, em Odisséia do Espaço, quanto o
interior da tenda apenas com a luz da vela, em Barry Lindon; ou Warhol do
under ao overground; ou, finalmente, N. Moretti e a "ingenuidade" dos pri-
meiros super-8. (5) Adorno-Horkheimer, Dia/ettiea dell'il/uminism(), cit., p.133.
(3) Sobre essas questões, cf. o debate sobre Propp, Lévi-Strauss, (6) tbid., p. 134: "Os detalhes se tornam funglveis. A breve sucessão de
Kerényi, Freud e Jung, do qual já fornecemos as referências bibliográficas. intervalos que se revelou efiçaz num motivo, o fracasso temporário do herói,
(4) Quem se situa genialmente nessa contradição, tanto no cinema que ele aceita esportivamente, as bofetadas que a bela recebe das robustas
como no teatro, é Carmelo Bene, do qual é lícito esperar uma "suma ritual", mãos do astro, seus modos rudes com a herdeira viciada: tudo isso são, com
onde o eterno retorno seja colocado em antítese consigo mesmo mediante uma todos os detalhes, clichês prontos e acabados, a serem empregados a bel-
mutação ritual-atropológica. Veja-se sua entrevista em Scena, Editrice Scena, prazer aqui e ali, e definidos inteiramente, em cada oportunidade, pela finali-
Milão, n? 3/4,1978, realizada por Sergio Colomba; e em La Repubb/ica, dade que desempenham no esquema. Confirmar tal esquema, enquanto o
19.8.1979, por R. Di Giammarco. compõem, é toda a sua realidade. Pode-se sempre compreender imediata-
79
ANTROPOLOGIA DO CINEMA
78 MASSIMO CANEV ACCI
deixar de construir o enredo do filme sobre o mistério de "Rose-
consumidor fílmico tem de adequar-se e de absorver aquela dife- bud", como verdade profunda do Poder (e não apenas do poder da
renciação aparente de histórias que há muito já fora predisposta imprensa), diante do momento fatal da morte, solitário em seu
pela programação das casas de produção e pelo seu budget. castelo "eterno". E o enigma se dissolve na evocação de felicidade
. O sucesso atrai o sucesso. Não se pode deixar de assistir àquele que aquela palavra misteriosa refere ao pequeno trenó, como infân-
filme que bate recordes de bilheteria. Mas a análise não pode parar cia lúdica, onde o calor matemo protege contra maus padrastos e
no registro desse dado, já que - precisamente ao assistir ao cam- contra o inferno do capital. Essa nostalgia da infância como verdade
peão de bilheteria - descobre-se que filmes como Guerra nas Es- última do poder está trucada, como todo "final" que decante a
trelas ou Contatos Imediatos falam de um assunto tratato infinitas potência do eterno retorno: isso vale para as espigas de trigo que
vezes, desde o tempo do primeiro diretor "imaginário", G. Meliês, ondulam ao sol na última cena de O Grande Ditador, depois do
com uma única modificação: a tecnolôgica.' Essa última aparece apaixonado discurso de pacificação do judeu Chaplin; ou para o
como significante histórico adequado ao nível do conhecimento gelo que se dissolve em A A1ãe de Pudovkin, como fluxo da revo-
científico dado como socialmente compreensível e normalmente 7
lução, que, por ser "natural", não pode ser contido.
muito menos "aventuroso" de qualquer manual de introdução à Essa "marca de eternidade" enquanto copyright do cinema
física contemporânea. A diferença de qualidade entre esses dois como tal é a outra face da inelutabilidade da produção cinemato-
filmes consiste apenas no uso, por Spielberg, de uma câmara cujos gráfica, como grande metáfora da ineliminabilidade do nexo pro-
movimentos são programados por um computador, somente (pelo dução-repressão, como apologia da eternidade da natureza contra a
menos, por enquanto) no clímax. Todo o resto é há muito arqui- barbárie transitória. É o triunfo de um medium que se realiza como
conhecido. E vale também para filmes mais empenhados, como o Santa Aliança entre a inteligência laica de Welles e de Chaplin e a
2001 de Kubrick: o seu sólido "metaíisico", o slogan "use a força" , metafísica grosseira dos contatos de "terceiro grau". Se o velho
a paz externa "extraterrestre", são o triunfo do idêntico. Seu capitalismo fazia derivar a bondade do seu sistema do fato de ser
"truque" mais refinado não consiste, decerto, nos modelos espa- natural e, portanto, imutável, o neocapitalismo declara-se imedia-
ciais, mas sim na utilização do "carecimento de religião" de modo tamente indestrutível, como o poliedro liso e perfeito de Kubrick ou
instrumental, com o objetivo de neutralizar aquele potencial de
a esfera de Welles.
libertação que não deixa de estar contido na ciência aplicada; de O retorno cíclico do filme célebre, ao qual ninguém pode
ignorar o uso militar maciço da esmagadora maioria dessa ciência; escapar graças reprodução adicional da TV e dos cineclubes,
à'
de martelar na "alma" dos espectadores o conceito de que, mesmo reconfirma a identidade e a interfungibilidade dessas entidades
numa hipotética sociedade pós-revolucionária, os problemas seriam invariáveis (os filmes). Atualmente as televisões "livres"* - afir-
sempre os mesmos, com aquele da imortalidade em primeiro lugar; mando-se em sua real função demagógica - anularam a aristo-
de absorver essa última dimensão, mostrando como é o próprio ~- cracia do filme" de autor" contraposto à democracia do filme "po-
cinema, enquanto mediação entre indústria e natureza, que é indes- pular", para afirmar, com a força do non-stop ; o triunfo da quan-
trutível e imortal. A esse "truque" não resiste sequer o Cidadão tidade sempre igual. Essa impressionante seqüência de filmes uni-
Kane de Orson Welles, ainda que ele apareça aqui "laicizado":
apesar de todos os seus movimentos de câmera, "ilegais", não pode
(7) A humanização marxiana da natureza não poderá jamais ser - tal
como o cinema, mais do que qualquer outro" mediam", vem propagandeando
mente, num filme como irá acabar, quem será recompensado, punido ou com base numa tradição milenar - a sua antropomorfização. Desse modo,
esquecido; para não falar da música ligeira, onde o ouvido preparado pode, continuaria a dominação do homem sobre a natureza, objeto de projeção ins-
desde as primeiras execuções do motivo, adivinhar a continuação e sentir-se trumental de nossos vícios e virtudes. Cf'. K. Marx, Manoscdtti economico-
feliz quando ela ocorre. O número médio de palavras da short story é deter- filasofici de/I844, Turim, Einaudi, 1968, p. 113. .
minado· e não pode ser alterado. Também as gags, os efeitos e as piadas são (*) Depois de uma época de monopólio estatal, multiplicaram-se;recen-
calculados, assim como sua estrutura. São administrados por peritos especiais; temente na Itãlia as emissoras de televisão privadas, conhecidas como "livres"
e sua escassa variedade é, em princípio, dividida no escritório de adminis-
tração" (íbid., p. 135). (NT).
MASSIMO CANEV ACCI ANTROPOLOGIA DO CINEMA 81
80
formes esconde, por trás da técnica do controle remoto, uma vídeo- privilégios, prêmios, discriminações, gratificações, entre todos os
dependência ainda mais fisiológica do que psicológica a um sistema seus produtos (de arte, de massa, de ficção científica, para crianças,
de reprodução de imagens sem fim nem origem. Elas, nem buscadas para a natureza e para a indústria, etc.), segundo aquela lei funda-
nem interpretadas, acompanham todo mínimo fragmento do espaço mental da produção que reduz o heterogêneo, o belo, o qualitativo a
e do tempo do ciclo vital. O filme intercambiável adequa-se, e se grandezas abstratas, a fim de traduzi-Ios de modo domesticado na
torna - mais ainda do que autoritário - eterno. certeza do direito. Sabe-se que as equações que regulam a justiça
As salas dos cinemas de arte não só não escapam desse des- burguesa foram extraídas da - se não "inspiradas" pela - troca
tino, mas continuam a proliferar conscientemente para sofisticar e das mercadorias no mercado. A quantificação do equivalente, do
completar até a utopia do esgotamento a rede de distribuição, a fim justo salário para um número determinado de horas de trabalho,
de que cada vez menos espectadores escapem aos vários "circuitos". torna démodé a própria expressão "filme de autor", conferindo-lhe
Os cineclubes, conquistado o poder, afirmaram na prática de massa um verniz forte e heróico, como que para evocar os irmãos Lumiêre.
e não mais nas salas of! a vitória do cinema de Hollywood em O filme mais "révolté" é uma idéia nova para a indústria cinema-
Massenzio, como nova confirmação de que todo o resto é miserável tográfica, que pode se revelar um bom negócio, como Sem Destino
detalhe no interior do gênero cinema, ao qual, no melhor dos casos, tEasy Rider); e mesmo o filme mais ignóbil pode fazer uma bela
serve como experimentação técnica." "Não terás outro cinema fora figura na Mostra de Veneza.
do meu": com essa palavra de ordem - assinada M.G.M. -, os Hoje, o cinema d'essai é inculcado a preços reduzidos à parte
cineclubes romanos dizem mais verdade sobre o cinema made in mais relutante do público. Ou seja: a quem não gostaria de ser
"i I USA do que eles mesmos podem imaginar: eficientes e self-couns- reduzido a espectador e que, com freqüência, na vida cotidiana, é
cioness, eles levam adiante o ponto de vista da apologia. Não o da protagonista da transformação numa sociedade onde os papéis já
" I critica. Elogiando a profissionalidade técnica - como' o fazia o estão dados. No ato formal de inscrição no cineclube ou na retros-
sindicato dos anos SO e o mais recente - in progress, mas ocul- pectiva -juntamente com a gratificação "clânica" de pertencer ao
tando os conteúdos das obras singulares em suas aparentes varia- clube, com carteirinha individual onde se lê nome, sobrenome,
ções, assim como o gênero cinema em seu conjunto, os cineclubes endereço -, parece sobreviver o segredo dos ritos de iniciação, que
congelam a identidade da reificação no tempo de trabalho, no distinguem os iniciados de todos os demais e acompanham sua pas-
11~I tempo livre e no Tempo em geral. sagem de uma vida para outra. Morte e ressurreição. Embora
O número médio dos elementos de dramatização é aquele e ambas diluídas, na medida em que a fratura entre cinema e socie-
não pode ser tocado, a não ser no caso de investimentos crescentes dade (apesar das agências do imaginário) desapareceu. Pertencer a
de capital para efeitos especiais, número de stars ou paisagens exó- um cinec1ube - melhor ainda, a todos os cineclubes - significa
ticas. A seqüência bem conhecida de pontos altos no interior/do afirmar a própria co-participação no clã cinéfilo, cujo Tótem, mítico
enredo, até chegar à conclusão ultraprevista, tem o mágico e regres- e sagrado antepassado comum, não é mais o sangue, como outrora,
sivo poder de fazer sentir dentro do espectador a reconfirmação dos e sim a película. Que também no étimo conserva, ainda que sob
modelos de comportamento socialmente permitidos. Com relação ao forma de diminutivo, a referência ao corpo. Já o seu contrário,
possível "final", a implacabilidade ,substituiu a inelutabilidade, o Tabu, é idêntico ao arcaico: rigorosa proibição de misturar "subs-
desde que o happy end entrou em desuso, porque socialmente muito tâncias" diversas entre si, rigorosa obrigação de respeitar as regras
comprometido. O filme estratificado é interior ao gênero cinema; e de parentesco. Num espectador astucioso, assistir a um filme de
esse, por sua vez, tal como qualquer atividade humana que tenha Franchi e Ingrassia pode provocar até o vômito, somatizando a
uma relação com a produção no quadro do capitalismo, distribui infração das "regras" do mesmo modo pelo qual um homem "primi-
tivo" rejeita o alimento que havia ingerido sem perceber que violou
uma norma precisa. De modo análogo, um espectador "de massa",
(8) O imaginário no poder. Esse é o resultado histórico-social de uma simplório e sem pretensões, que assista inadvertidamente ou por má
parte da geração que viveu a utopia e a prática da imaginação. informação a um filme de Bergman, só pode sobreviver anulando a
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própria consciência, adormecendo ou fugindo horrorizado diante de comando dos princípios da reprodução ampliada. E do estilo que é
tanta crueldade. Desse modo, ele sublinha sua estranheza e não- seu aliado fiel: a repetição. Com deformada razão, portanto, o filme
responsabilidade diante de um malefício semelhante ao que poderia é analisado apenas do ponto de vista técnico: o conteúdo é o este-
lhe proporcionar o contato involuntário com o imprevisto sangue reótipo, enquanto o que varia é o incessante desenvolvimento da
menstrual de sua própria mulher. A afinidade entre o comporta- tecnologia fílmica. A ideologia industrial inverteu as prédicas do
mento do "primitivo" e do "civilizado", que assume as formas idên- idealismo: não é mais a forma que é invariante, enquanto emanação
ticas do vômito, do mal-estar, do sono, está no fato de que ambos do Espírito, ao passo que o conteúdo seria o reino da variável
consideram urna infração mortal a mistura de "gêneros", corno contingência mundana. E também o materialismo histórico - pelo
comer certos alimentos ou tocar no sangue menstrual. Na realidade menos em suas formas estatizadas -, com sua dialética forma-
fisiológica, não há nenhum perigo para aquele alimento, aquele conteúdo (que, de resto, sempre privilegiou de muito esse último e
sangue, aquele filme, já que idêntico é o gênero cinema, corno relegou à acusação infamante de "formalismo" a primeira), foi
idêntico é o sangue humano, enquanto o único perigo é de natureza atropelado pela neutralização do enredo operada pelo gênero ci-
cultural. Isso não deve levar a concluir com simplificações, já que - nema. Não importa "o que" narrar, mas "como" Iazê-lo. Afirma-se
ao contrário - as questões de ordem cultural se apresentam corno a arte de adequar o esquema fixo às variadas condições histórico-
bem mais complexas, na medida em que levam à autodestruição, geográficas, para além do uso da "grande angular". Assim, N. Mo-
contanto que não se ponha em discussão a imodificabilidade uni- retti pôde refazer Pobres mas Belos, adequando aos anos 70 as
versal da própria cosmogonia. piadas e a composição juvenil, sobre um pano de fundo divertido-
Não existe urna autonomia do filme de autor, a não ser corno "esquerdês". A Última Valsa, de Scorsese, mostra os músicos do
exceção. Ela é cada vez mais ideológica do que no passado, na me- Band, que acompanharam as mais audaciosas inovações de poesia
dida em que tem a ambição secreta de contrapor-se à pressão das musical nos anos 60-70, no interior daquele extraordinário move-
necessidades das classes e dos sujeitos dominados, que torna a aura ment político-cultural (feminismo, questão juvenil, não-violência,
da categoria "de autor" urna derrisão para quem trabalha e vive na antiautoritarismo, etc.), dar entrevistas no auge da fama e antes de
pura alienação. Nenhuma síntese é possível entre duas esferas fíl- "deixar" cenas que - por monótono sexismo e obtuso conformismo
micas - urna "séria" e outra "ligeira", dicotomia que vale também - são inferiores aos triviais acasalamentos tipo Bob Hope, Frank
para outros gêneros, corno a música -, exceto a já realizada pelo Sinatra, FranchilIngrassia. Dentro de não muito tempo, seremos
gênero cinema, que a buscou e realizou com programada premedi- obrigados a rever aventuras estelares, realismo erótico e musicais no
tação. Finalmente, aquelas componentes dicotômicas - como para esplendor "vivo" da holografia a laser, assim como Hair de Forman
os filmes de amor ou de guerra, "on the road" ou "on the room", inova com a tetrafonia na sala de projeção o "esplendor" de My Fair
de aventuras ou político-social - são ainda uma muda denúncia dil Lady. E já a Polaroid é capaz de revelar instarÍtaneamente as pelí-
má consciência tanto da indústria cinematográfica como da socie- culas, o que antes só ocorria com as fotografias ...
dade inteira, na medida em que remetem à divisão do trabalho de O cinema, como expressão alienada e "espiritualizada" do
tipo manual e intelectual, bem como à divisão, também dicotômica, capital, deve-se adequar a seus novos níveis. Dentro dessa adequa-
dos tipos de escola. Dicotomias estruturais que o gênero cinema tem ção e dessa alienação tecnológica, estão contidas as contradições que
precisamente a ambição de esconder. abalam essa sociedade enquanto "roteiro" principal' a repetir e
.Ao público ingênuo, deverá mais uma vez ser fornecida a dife- imitar. As grandes temáticas da libertação, portanto, são usadas
renciação culinária e funcional, em relação direta com a estratifi- pelo gênero cinema em seu conjunto, numa forma invertida e
cação espiritual das consciências de classe, para domâ-lo e reificá- "suja", a fim de neutralizá-Ias e de inculcar a inelutabilidade do
10. Já para o público popular e distraído, tudo é mais simples, porém fracasso. Na Itália, na vanguarda dessa direção estão os irmãos
também mais custoso. Taviani, os quais - bem mais "dignamente" do que o católico
Desse modo, arte e diversão - nascidas sob os princípios da Ermanno Olmi ou o italianista Federico Fellini, já que "atuados"
reprodução simples - são finalmente reconciliadas, sob o férreo pelo suposto carisma/salvo-conduto de serem "de esquerda" -
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consagraram-se à tarefa precípua de afastar qualquer hipótese revo- lizados contra a crise do setor, que atingiu pesadamente os níveis de
lucionária, não somente desse período histórico, mas de qualquer emprego, exclamou fortemente - recebendo uma clara ovação unâ-
época e de qualquer lugar, mostrando a necessidade do fracasso nime dos presentes - que a questão da crise do cinema italiano é
ridículo de qualquer tentativa de transformação que não se inclua uma só: crise de quantidade. Não vale a pena perder tempo em vãs
no estilo da apologia biográfica, que até mesmo nos Estados Unidos discussões sobre filme de autor ou comercial: somente a possibili-
está há muito em descrédito, em favor do self-made-man , com ponto dade de produzir o maior número possível de filmes é qualitativa-
de partida tão desfavorável, com estudos severos e difíceis, antes da mente nova. Isto é o gênero. 9
apoteose final (Pai Patrão).
Ê o mais difundido lugar-comum do espectador, agora ren-
dido à evidência dos fatos, declamar - com relação a um filme no
qual a crítica oficial e o êxito de bilheteria colocaram o imprimatur
do sucesso de qualidade - a convicta "excepcionalidade da foto-
grafia", denunciando desse modo, inconscientemente, mas do modo
mais írrefutâvel, a indiferença pela estandardização dos conteúdos e
a infalibilidade da técnica. De resto, quando - raramente - ocorre
que algum autor consiga realmente inovar num campo onde foi dito
"I'"
quase tudo, poucos irão vê-lo e pouquíssimos perceberão inovações
de fundo - por causa da potência da estereotipia -, razão por que
técnicas e conteúdos são inseparáveis e convertem-se uns nos outros
II
com recíproca verdade. Não casualmente isso vale para Anghelo-
polos, que compreendeu o laço secreto entre mito, cultura popular e
cinema, e que, ao mesmo tempo, revela ciumentamente as próprias
peliculas sob seu controle, a fim de que não percam aquelas tonali-
dades mediterrâneas filmadas na aurora - como em O Recital (que
nenhum "filtro" pode recriar). Para ele, a montagem e o plano-
seqüência dissolvem as categorias centrais da era moderna - o
espaço e o tempo -, tornadas cientificamente repressivas com o
a priori, e realizam um conteúdo formal sintético, onde os fluxos
I: temporais dos planos-seqüências contêm em seu interior, sem-solu-
ção de continuidade (cortes de montagem), os fluxos espaciais,
numa dialética entre mito e história, passado e presente. O mito re-
toma; ele não se resolveu na epopéia, nem foi superado pela racio-
nalidade técnico-científica. Para eliminar a causa originária da sua
alienação, o gênero cinema deveria se tornar consciente de sua (9) Deve-se refletir sobre essa observação de Adorno-Horkheirner:
própria funcionalidade em relação ao retorno reificado do idêntico, "Para a história dos esquemas da atual indústria cultural, pode-se remontar em
em vez de ser seu dócil instrumento. particular à literatura popular inglesa em suas primeiras fases em torno de 1700:
nessa já estão presentes, na maior parte, os estereótipos que hoje nos apre-
Como para outras questões, freqüentemente o bom senso sentam sua face caricatural nas telas de cinema e televisão" tLezioni di socio-
comum de um cândido conservador fala de modo mais nítido - logia, cit., p. 223). Um tema análogo foi abordado há algum tempo também em
e, por que não, mais verdadeiro - do que muitas análises de tipo La Repubblica, 19.8.1979; cf. "11 cavaliere di Scozia che ha inventanto il
western", de B. Placido, e "Combattendo per Dio e per Ia propria donna",
psicológico, estrutural ou lingüístico sobre a "questão cinema": N.
de T. Kezich, ambos em parte argutos e em parte prejudicados pelo "jargão
Loy, no curso de uma assembléia dos trabalhadores do cinema mobi- profissional" .
ANTROPOLOGIA DO CINEMA 87
terreno extra-humano, de modo a que não se possam resolver as desgastada da cegueira do olho cic1ópico. Mas, em parte, há uma
causas dos vícios etnocêntricos: aos deuses com olhos azuis e cabelos profunda divergência: HAL representa a identidade forçada de tra-
vermelhos, sucedem-se as luzes coloridas e intermitentes dos com- balho vivo e trabalho morto. A angústia em face dessa monstruosi-
putadores. HAL é filmicamente "individualizado" por uma luz dade - que se tenta realizar nessa sociedade computadorizada -
vermelha, como o olho único do ciclope. Assim como a análise da causa a violenta reação do neo-Odisseu, que mata o "diverso", a
mitologia antiga é importantíssima para a compreensão da cultura "testemunha", que ainda traz "na garganta" os cantos improdu-
grega, igualmente importante se torna a análise antropológico-cul- tivos da infância. E o trauma por tal homicídio só é superável pelo
tural das "projeções" fílmicas nas modernas máquinas cibernéticas homem com a sua divinização: na identidade entre feto e universo,
para a compreensão do atual modo de vida. Com efeito, a analogia entre microcosmo e macrocosmo, segundo a tradição alquimista, o
entre a Odisséia épica e a cinematográfica pára nos umbrais das culpado se auto-absolve. O computador perfeito - que é huma-
"metáforas monstruosas" relativas a HAL e Polifemo. A viagem de nizado com a mesma lógica através da qual os antigos humanizavam
Odisseu - como único sobrevivente entre os seus companheiros de os elementos da natureza (o céu, o mar) -, projetado no futuro,
aventuras - representa o início épico do processo de civilização reflete o horror diante das formas atuais da automação. Os "nossos"
"iluminista", que apaga os monstros através da dialética produtiva heróis recusam tanto a tradição dialética iluminista entre sacrifício e
de auto-sacrifício e auto-afirmação de si: "O prolongado percurso desenvolvimento, quanto a dialética antropológico-revolucionária
errante de Tróia a Ítaca é o itinerário do sujeito - infinitamente que quer superar a alienação das máquinas através da expansão
débil, do ponto de vista físico, em face das forças da natureza, e que liberada de toda individualidade. O moderno Odisseu, no período
está apenas em ato de formar-se como autoconsciência _, o itine- da "automação da sobrevivência", conserva-se não mais negando a
rário do