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= CAPITULO 4 - A PERSPECTIVA DE CIENCIA EM SARTRE 4.1 ADEFINICAO DE CIENCIA Ciencia 6 definida, de maneira geral, como a produgéo coordenada deconhecimentos relativos a determinado objeto, ou ainda, como “corpo de conhecimentos sistematizados que, adquiridos via observacio, identificagto, pesquisa e explicagio de determinadas categorias de fendmenos ¢ fatos, so formulados metédica e racionalmente” (HOUAISS, 2002). Portanto, se queremos discutir 0 que é ciéncia é preciso partir da elucidagio da “problematica do conhecimento”. No entanto, esta s6 pode ser pensada tendo por base uma ontologia, pois teremos de elucidar primeiro “o que arealidade”, para depois alcangar o “como € possivel conhecé-Ia". De nada ajudacia, portanto, pactis-se diretamente para a discuss dae “teorias do conhecimento”, jé que, ao nio se explicitarem os pressupostos ontolégicos que subjazem a elas, se resumiria a uma espécie de “discussto de sucristia’: quem estaria certo, Selick, Carnap, 08 teéticos da Escola de Frankfurt, Khun, Popper? Semethante debate nao auxiliaria em nada a encontrar a definigao de ciéncia. Sartre nio se permitiu ser seduzido pelas veredas tragadas pelos “filésofos da cigncia’, optando por abordar dirctamente a raiz da questio: enfrentar a problemética do conhecimento pela via da ontologia, conforme descrevemos no capitulo anterior e que seré, na introdusao deste, objeto de uma breve sintese. Por que Sartre propde uma ontologia “fenomenolégica” para resolver 4 problemitica do conhecimento? Porque, para ele, é preciso conceber 0 -98- SanrRn EAPSICOLCGIA cLINER conhecimento como um fendmeno, ou seja, como uma das formas de o ser aparecet. O conhecimento implica sempre em um sujeito cognoscente (a quem o ser aparece) e em um objeto cognoscivel (0 ser que aparece ~ fendtmeno de set) ou, como no dizer de Hussecl, envolve dois polos ~ 0 noético (consciéncia) ¢ 0 noemético (objeto). Sendo assim, Sartre postula {que para viabilizar o conhecimento objetivo da realidade, c isto significa dizer, viabilizar a cigncia, tem-se que trabalhar com a nogio de fendmeno © portanto, com a fenomenologia (BERTOLINO, 1995). Como vimos, em suas investigagdes ontolégicas, 0 existencialista toma como ponto de partida de suas reflexdes o fondmeno de ser, jé que essa é a maneira como 0 ser nos aparece de imediato. Questiona-se Sartre (1997); através do fenomeno singular é possivel conhecer o ser, chegar sua universalidade? Ao buscar responder a essa questo primeira, acabou por estabelecer a relasio existente entre o ser do fendmeno e o fendmeno de ser, demonstrando que o ser € transfenoménico, quer dizer, nfo se reduz a0 seu aparecer, mas que, no entanto, s6 ¢ captavel, compreensivel, sistematizavel, | enquanto fendmeno de ser, 20 aparecer em frente de uma consciéncia. Set ¢ fendmeno sio, assim, coextensivos, quer dizer, sto relativos um ao outro, cou ainda, o fendmeno de ser tem como seu fundamento o ser do fendmeno que lhe da suporte e que, por sua vez, s6 pode aparecer enquanto fenémeno de sex. Conclusio: 0 ser é um absoluto, existe independente do homem e, portanto, nio se reduz ao conhecimento que se tem dele; sendo assimn, © ser € ontologicamente primeiro, € anterior a qualquer conhecimento que dele se tenha, No entanto, s6 ¢ captivel, conhecivel, enquanto se faz fendmeno, quando € apanhado por uma consciéncia. O conhecimento 6 assim, segundo ontologicamente, é prodiszido, Ou ainda, como ditia Bachelat (1996, p. 116), professor de Sartre e uma mediagao fundamental em suas discussdes epistemolégicas, “é 0 real e néo o conhecimento que traz # marca da ambiguidade”, Dessa forma, a0 esclarecer a relago entre o fendmeno e sua esséncia (Seu ser), Sartee supera definitivamente as teorias de conhecimento ‘dealistas, ja que essas se sustentam no equivoco metatisico da “primazia do conhecimento’, que pressupde um conhecimento a priori, que transforma © real em mero reflexo das ideias € o homem como sendo habitado pelo conhecimento ¢ nunca um “sujeito do conhecimento”. Supera, também, 45 teorias realistas, pois a0 colocar o papel da conciéncia como essencial, faz com que esta deixe de ser uma “tabula rasa”, simplesmente moldada | canfrvio +99: pela matéria, o que retiraria do homem, de novo, a sua condigao de “sujeito Jo conhecimento”. Superacio essa, alids, hai muito exigida pela histéria da filosofia. Sua realizasa torou-se possivel em fungio de Sartre ter estabelecer uma nova ontologia, essa definitivamente dialética, buscando laa resolugio da problemitica do conhecimento. wee ene procura, ainda, desfazer a confusto estabelecida pelasflosofias metafisicas entre a dimensio ontolégica ea epistemoldgica. ‘Quando estas investigam a relagao entre sujeito e objeto ~ discussio do plano epistemolégico ~ deduzem dai conceitos que s40 ontol6gicos; por exemplo, a0 conchuirem que as “possibilidades de conhecimento do ser sto infinitas”, devidas ao fato da propria cealidade ser continua ¢ inesgotvel, deduzem desse fato que o ser € infinito, aqui entendido como eterno, imutavel. Ou seja, tomam um aspecto inelutével da relagio do homem com a realidade ~ a possibilidade infinita do conhecimento ~ ¢ a transformam ema airmacto peremprria acre da realidade, como aabou por fazer Husserl. Embaralham, com isso, os dois niveis de investigagao. E preciso distinguilos, sob pena de nio se viabilizar 0 conhecimento rigoroso da realidade (BERTOLINO, 1996). Além dls, € pres dstiagtso problems do conhesimento do sma da verdade, que as filosofias metafisicas costumam, também, eatin ‘ma questic a possibildade deconhecerarealidade, dada pela dimensio ontolégica, como vimos acima; outra & a de esse conhecimento ser verdadeiro ou nao, dada pela dimensio moral ou histérica (algo € verdadeiro ou falso em uma dada circunstincia, dentro de certas regras, ou em determinado momento histérico). Descartes, por exemplo, em seu método, quer chegar as “verdades claras e distintas”, que Ihe seréo ditadas por Deus ¢ nio 20 conhecimento rigoroso da realidade. Popper, com seu principio de refutabilidade, mistura hipétese cientifica com verdade cientifica. Dessa forma, traduzem-se conhecimentos que deveriam ser pautados na investigaco das propriedades transcendentes da matéria, em ‘um conjunto de afirmativas dependentes do sujeito, de sua situagao ¢ de ‘seu momento histérico (BERTOLINO, 1996b). Nao que essa discusséo ‘Go seja importante para a ciéncia, mas ela nfo pode resumir a questio epistemolégica ¢ cientifica : Sartre desenvolve suas reflexées explicitando a condigao ontoligica para se efetivar a ciéncia, ou seja, 0 fato de a sealidade ser composta por uma “multiplicidade de elementos que por si s6 se impée a nds como -100- Santas &arstcotosta cuca conjuntos.[.] A realidade ¢ tal, que nenhur elemento € nico, vai sempre se incluir em um conjunto de elementos que se fuzem semelhantes pela sua propria materialidade” (ERLICH, 1998, p. 43). Ou seja, 0 fendmeno | singular sempre implica em uma série, um conjunto ou um universo, Uma rvore singular me remete a todas as drvores ¢ 4 esséncia dessa espécie. ‘Ao investigar o fenémeno da emogiio, para dar um exemplo no campo da psicologia, a experigneia do sujeito emocionado se inscreve num conjunto maior do que é a emogio eo sujeito humano. Portanto, a realidade tem segularidades que permitem que ela seja estudada e conhecida. As pesquisas de ponta sobre a clonagem, por exemplo, s6 s40 possiveis em fungio da existéncia das regularidades da genética animal e humana: a ovelha Dolly serve de amostra para verificar as possibilidades e as consequéncias da clonagem em animais ¢ humanos, logicamente levando em consideracio as especificidades das espécies. Se cada existente singular, idiossinerético, nido estivesse inscrito em um conjunto, ou seja, se cada um fosse isolado do restante, seria impossivel o conhecimento cientifico. Sartre destaca, portanto, a relagio intrinseca entre o singular ¢ 0 universal, Defende que nio é preciso conhecer a totalidade da série, que sempre serd infinita, para conhecer objetivamente os fendmenos, que sio singulares, finitos. Estes, no entanto, nos permitem alcangas, a partir de diferentes s{nteses, asua esséncia, isto é, a sua universalidade. Assim, pois, 40 se investigar uin elemento da série, obtém-se tanto o singular quanto o universal. Tal abordagem viabiliza o conhecimento objetivo ¢, portanto; cientifico, a realidade, e compe com o “recurso ao infinito” no qual Hlusserl 2 fenomenlogia tinham incorrido. Além disso, nos auxilia a esclarecer 1 condigao epistemolégica do fazer cientifico (ERLICH, 1998), ou seja, © necessidade de o sujeito da investigacio recortar 0 seu objeto de estudo enquanto um elemento singular/universal, a partir de suas propriedades: 4 materiais, sociais sociolégicas (essas duas tiltimas mais especificamente ‘no caso do homenr). © primeiro passo da ciéncia é, portanto, a delimitaséo € definigio do fendmeno estudado. Diz. Erlich que “se a delimitacéo do objeto nao for necessariamente © primeiro passo para a ciéncia, nos perdemos na descrigio dos fatos, néo ultrapassamos o empirismo © nfo damos o ponto de partida para a citncia” (ERLICH, 1998, p. 49). ‘Outro aspecto fundamental na definicto da problemética em discussio € a distingo estabelecida por Sartre entre consciéncia ¢ conbecimento, A consciéncia deve ser distinta do conhecimento: a primeira € cartruvo 4 -201 sndescartivel da realidade, posto que é uma regio ontoldgica, é o absoluto de subjetividade. Jé o conhecimento é um produto humano, resultante da relagio da consciéncia com a realidade. Portanto, a consciéncia éirredutivel to conhecimento que dela se tenha e, por isso, é transfenomenal, assim como o sero 6. Na medida em que a consciéncia ¢ 0 absoluto em relaséo to qual todo fendmeno aparece, inclusive o conhecimento, é ela que € 0 _fundamento ontelégice deste. Resumamos, enti, a resolugéo da problemética do conhecimento encontrada pela ontologia sartriana: o ser & 0 “absoluto de objetividade’; existe independente da realidade humana; portanto, 0 ser nfo se reduz fo conhecimento que dele se tenha (superagio do idealismo, no qual a realidade é um desdobramento das ideias; por exemplo 0 de Husser! e seu “eu transcendental”); no entanto, 0 ser 96 se organiza, 86 se essencializa so aparecer para uma consciéncia, “absoluto de subjetividade’, que ¢ pura transparéncia, pura relagio as coisas. Dessa forma, 0 conhecimento, que aio existe a prior, é produzido e sé € possivel pela relagio que a consciéncia estabelece com 0 mundo. A consciéncia é, assim, 0 fundamento de todo conhecer (superagio do realismo, que postula a consciéncia como simples reflexo da matéria). No entanto, esse conhecimento nio € “tirado das entranihas da consciéncia”, mas sim produzido a partir das “propriedades transcendentes” dos objetos. Com isso, a ontologia tem condigbes de romper com suas amarras metafisicas, estabelecendo as condigdes de possibilidades do conhecimento cientifico, viabilizando-o. Foi Bachelar (1996), 20 refltir sobre 0 “novo espirito cientifico”, coneretizado pelo avango das cigncias, que postulou a necessidade da constituigao de uma epistemologia pds-cartesiana. Diz ele: fo pensamento objetivo, desde que se eduque diante de uma natureza orginica, revela-se de uma singular profundidade; por isso mesmo que este pensamento & perfective retficvel e sugeze complementos. & ainda meditando 0 objeto que osujeito tem mais, chance de aprofundar. Em lugar de seguir o metafisico que entra fem seu quarto, pode-se, pois, ser tentado a seguir um matemético aque entea no laboratério. Sartre seguiu os conselhos de seu mestre ao deixar de lado o Pantanoso chio da metafisica e da epistemologia cartesiana, para perseguir 08 passos daqueles que produzem conhecimenttos objetivos~ os cientistas -, =102- Samraas a peiconocta cuinica redefinindo as bases ontologicas que, assim, ajudam a viabilizar uma nova epistemologia pos-cartesiana. 4.2 CIBNCIA E PSICOLOGIA Esclarecidas as novas bases ontolégicas seus desdobramentos na compreensio do fazer cientifico, podemos partir para a compreensio das proposigdes para a ciéncia da psicologia em Sartre. No Eshogo de wma teoria das emogdes que, como jé sabemos, foio extrato do livro nto terminado La psyche, Sartre traca sua perspectiva de ciénci para esta disciplina, ao realizar uma critica & pretensio “pseudocientifica” da psicologia empirica. O Empirismo, surgido como modelo da ciéncia classica, em tomo do século XVII, marcava a necessidade da producio de conhecimentos a partir da experiéncia e nfo mais de especulacdes racionais, além de estabelecer como recurso tinico os fates e nfio mais o sujeito, como faz.0 Racionalismo, modelo ao qual se opunha. O Empirismo, na medida em que descobriu o valor da descrigo dos fatos e dados, assumiu uma légica classificatéria que 0 caracterizou. No entanto, ficou restrito 2 caracterfsticas descritivas, mas nfo compreensivas. ‘A ciéncia moderna, estabelecida a partir do final do século XVIIL ¢ século XTX, realizou um processo de ruptura com o modelo empirico, a0 efetivar um corte epistemolégico com seus pressupostos, como Foucault (1987) bem exemplificou na ciéncia médica, instaurando, enfim, 0 modelo experimental. Nao basta descrever os dados, & preciso formular bipéteses, realizar experimentagdes, buscando entender as determinantes dos fenémenos, entendidos enquanto conjunto de dados articulados por relagdes de fungio (BERTOLINO, 2004). O existencialista, influenciado pelas Investigasdes de Husserl, serd lum critico ferrenho do empirismo e da psicologia empirica, disciplina que foi objeto de seus estudos iniciais ¢ alvo de scus questionamentos, como veremos logo adiante, O empirismo, como vimos, tem como principio lunificador a premissa de que investigago deve partir de fatos, perspectiva que dominari o censrio da psicologia no inicio do século XX. Declara Reuchlin (1965), um historiador da psicologia de origem francesa: “se € Possivel distinguir algumas tendéncias comuns sob a diversidade dos trabalhos que foram evocados, parece que uma das fundamentais seja 103 - ccanfruto4 ue conduz 0 psicélogo @ escala dos fatos”. E continua, referindo-se Ba priedlogo treks foal do elo XIX, com grande influencia ‘nx aplicasdo do método clinico ena divulgasao da psicologia médica: “L..] a pricologia deve separarse da metafsica, deixando-Iheo estudo das ‘enusas ‘meiras’ ¢ limitar-se & observacio cientifica de fatos” (REUCHLIN, 1965, p. 62). Tais citagses explicitam 0 cenério da psicologia francesa 4 qual Sartre dirige sua critica. O existencialista concordaria que é preciso separar-se da metafisica, mas chama atengio para a situasio da pscologia, que, 20 isolar-se como disciplina, fragiliza-se na apreensio fos seus fundamentos ontol6gicos e antropolégicos na medida em que hnio consegue nem definit, nem delimitar seu objeto com anterioridade 0s fatos que pesquisa, acabando por aceitar, com isso, uma concepgio de hhomem completamente empirica: hi pelo mundo afora um certo nimero de eriaturas que apresentam caracteres anélogos & experiéncia. De resto exister outrasciéncias, como a sociologia ¢ a fisiologia, que nos ensinam a existencia de lagos objetivos entre esas eriaturas. Isso basta para que o psic6logo, ‘com prudéncia e« titulo de simples hipétese de trabalho, aceite a Timitagio proviséria das suasinvestigagSes a esse grupo de criaturas, (GARTRE, 1938, p. 9) Sendo assim, os psicélogos nao discutem se a sua nogo de homem € atbitréria ou no. Tanto a observacio objetiva quanto a introspec¢io servem para thes fornecer os dados que pretender unificar. Alcangam, dessa forma, uma “coleso de fatos heterogéneos” (SARTRE, 1938, p. 4). Nao conseguem perceber que essa atitude metodologica inviabiliza a consolidagio da ciéncia, pois se sustentar em fatos, diz Sartre, ¢ “priorizar 0 isolado, preferir o acidental 20 essencial, 0 contingente a0 necessirio, a desordem A ordem”. E acrescenta: “os psicblogos nfo se dio conta que é téo impossivel atingir a esséncia por simples acumulagio de acidentes como chegar & unidade juntando indefinidamente algarismos & dircita de 0,99 (SARTRE, 1938, p. 12). Quer dizer, fazer ciéncia nfo € somente colecionar dados, elencar fatos, & preciso saber questionar esses dados, compreendé-los em seu contexto, 0 que, na verdade, a psicologia clissica ‘nao soube fazer. i (© existencialista esclarece, assim como fez a fenomenologia housserliana, que, se 0 estudioso comesar suas investigagoes pelos fatos, ‘nunca chegars as esséncias, que é onde qualquer ciéncia deve chegat, pois os -104 ‘SaRTRE B APSICOLOGIA cute fatos so elementos isolados que nfo permitem uma sintese compreensiva, Afirma, assim, a “incomensurabilidade entre esséncias e fatos” (SARTRE, _ 1960, p. 16). Acrescenta ainda que o métode fenomenolégico, “sem renunciar a ideia de experiéncia, necessita flexibilizé-la e dar lugar a experiéncia das esséncias e dos valores”. (SARTRE, 1960, p. 17). Porém, esclarece Moutinho (1995, p. 100), que o existencialista “insiste em que uma interrogasio fenomenologica do psiquico deve apenas preceder ¢ no substituir uma psicologia experimental”. Essa interrogacao fenomenolégica é fundamental de ser levada a cabo, ja que o primeiro passo de uma ciéncia 6, sempre, definir seu objeto, ou ainda, dissecar a sua eiséncia, ou seja, detectar as caracteristicas e os aspectos que fazem com que um fendmeno seja o que ele € € nfo outra coisa. Uma imaginaeio, por exemplo, é um fendmeno distinto de uma reflexio; cada um deles tem caracteristicas proprias. Um homem tem uma especificidade propria em relagio 4 de um animal comum, assim como uma tempestade, sendo um fendmeno meteorol6gico, como um furacko, dele difere em suas caracteristicas especificas. Saber definir ¢ delimitar © fendmeno investigado, diferenciando-o de outros, € 0 primeiro passo primordial da cigncia. E 0 que € definir um objeto? E recorté-lo em um conjunto singular/universal, inserir o especifico num conjunto, organizé- Jo em um universo, definir regularidades que levam as generalizacdes, para entio poder estabelecer previsées e predigdes. Essa é a base para se realizarem intervengdes sob controle, Sem isso, o conhecimento cientifico inviabiliza-se (BERTOLINO, 20014). Dessa forma, o que a ciencia deve realizar em primeizo lugar é a demarcagio ¢ a definigdo precisa de seu objeto, pois, sem isso, anda as cegas. Este ¢, justamente, um dos maiores problemas epistemologicos da psicologia: a indefinigdo de seu objeto, que leva a “disperstio do saber”, e a diversidade metodolégicae teérica que a caracterizam. A psicologia perde- s¢ 20 legitimar a “mmultiplicidade epistemolégica” como o seu maior trunf> « assim, néo seguir o principio primeiro da ciéncia ~ a necessidade de definigio ¢ demarcasio precisa do seu objeto. E 0 que podemos verificar, por exemplo, no caso do diagnéstico em psicologia elinica: por néo ter bem definido o que é uma personalidade, nem quais as suas possibilidades de patologizaso, pautando-se geralmente em nosologias psiquidtricas que descrevem um infindvel mimero de sintomas (fatos isolados), sem uma sfntese eficiente acerca dos problemas psicolégicos, acaba por ni ter ccartrore 4 one precisio nos diagnésticos. Hé estudos que demonstra que se um mesmo Cliente frequentar diferentes psicélogos, receberd tantos diagnésticos {quantos psicélogos consultar." Sartre esclarece que foi exatamente por reagdo as insuficiéncias da psicologia e do psicologismo que a fenomenologia se constitu. © que, entio, Sartre entende por ciéncia? “As ciéncias da natureza néo visam conhecer 0 mundo, mas sim as condigées de possibiidade de certos fendmenos de ordem geral” (GARTRE, 1938, p. 13), afirma o existencialista, demarcando a diferenca entre 0 papel da flosofia (conhecer 0 mundo) e 0 da citncia. Mas e 0 que slo condizées de possibilidades? Sto aqueles fatores sem os quais o fendmeno io ocorretia, quer dizer, sio as variveis que determinam que o fendmeno se estabelega, se desenvolva da forma como deve ser (BERTOLINO, 20012), Uma tempestade de verdo, por exemplo, para ocorrer depende de certas condigées de temperatura e de pressio atmosférica, sem as quais cla nio acontece. A cigncia meteozolégica deve conhecer essas condigdes, pera poder prever as tempestades. © quadro depressivo, para falar de um fendmeno psicoldgico, depende de o sujeito experimentar-se impedido de se langar em directo ao futuro, ou se, seu projeto e seu desejo de ser devem estar, por alguma razto, cortados,inviabilizados. Essas sto as condigdes de possibilidade de ocorréncia de uma depressto. Se a situagio nfo estiver implicando 0s fatores acima descritos, entio 2 pessoa provavelmente estaré experimentando um outro tipo de emogio: uma tristeza passiva, por exemplo, em que chora muito, tranca-se no quarto, etc., podendo ser ircunstancial, mas que néo apresenta as caracteristicas de um quadro depressivo, por mais semelhangas que existam, conforme Sartre esclarece ‘em seu Eshoro de uma teoria das emogéese, portanto, a intervengio terapéutica no processo deve ser diferenciada. Eim oposigéo ao empirismo e ao psicologismo, a fenomenologia faz ‘oestudo de fendmenos e nio de fatos. Entende por fendmeno “aquilo que se denuncia a si mesmo, aquilo cuja realidade é precisamente a aparéncia” (SARTRE, 1938, p. 22). Vale lembrar, como ja vimos na descrigio da ontologia sartriana, que o ser do existente nao € algo por detris da aparéncia; esta, na verdade, 0 revela, 60 pr6prio ser. Existir, para Husser, “é aparecer a si proprio” (SARTRE, 1938, p. 22). Portanto, € 2 aparéncia, ou seja, 5 Thomas Stasz descreve estudos semelhantes sobre a imprecisio do “diagnéstico psigudtrico” em sea livro O mito de doenga mental -108- SanmaRRa rsiconocta cuties | © proprio fenémeno que deve ser descrito ¢ interrogado, Os fendmenos, conforme esclarece Sartre (1960) em seu Questéa de métods, no sto jamais aparigées isoladas, produzem-se sempre em conjunto. Fendmeno 3 6, assim, um conjunto de ocorréncias articuladas por relagoes de funcio | (BERTOLINO, 20048). E preciso, pois, como em Mars, fazer uso do ‘espitito sintético”, a fim de poder apreendé-los em seu contexto € em seu § conjunto. Sendo assim, a ciéncia deve estudar “a situagio em particular no quadro de um sistema geral em evolugao”, Sua fungio € fornecer “[...] a cada acontecimento, além de uma significacio particular, um papel de revelagfo: [..] cada fato uma vez estabelecido ¢ interrogado ¢ decifrado ‘como parte de um todo” (SARTRE, 1960, p. 27). Essa perspectiva revela conforme vimos na ontologia. Ainda no Queso de método,o existencialista reforga que a ciéncia deve situar os fendmenos que investiga, ou seja, deve determinar o lugar real do fato no processo total em que esté inserido. Isso significa que o contexto que envolve o fendmeno € objeto primordial de anilise. © existencialista propée, para dar conta dessa necessidade de contextualizac&o, que o préprio fenémeno singulas/universal est a exigir um método dialético baseado nas reflexdes do marxista Henry Lefebvre, a0 qual denomina de “método progressivo-regressivo”. “Seu primeira cuidado é recolocar o homem em seu contexto’, explica, ao atestar que set movimento de investigagio & progressivo e regressivo ao mesmo tempo: “Ele nfo teré outro meio senfio o vai-e-vem: determinaré progressivamente a biografia (por exemplo) aprofundando a época e a época aprofundando a biografia” (SARTRE, 1960, p. 87). Realiza, portanto, um movimento continuo entre a singularidade e a totalizagio. O método dialético recusa reduzir os fendmenos a fatos isolados; ele supera as situagdes conservando as aquisigSes antigas e realizando novas sinteses. Dessa forma, a problematizacio da ciéncia deve ser feita em termos dialéticos: 1 elaboracto da equacdo em torno dos fenémenos investigados deve ser pensada enquanto “tese, antitese, sintese", como Sartre nos deixa claro em. sua Critica da raxao dialética, ___Essas sio as bases para a critica de Sartre a0 idealismo, que nio satisfaz 20 existencialismo porque nfo tira seus conceitos da observagio direta da realidade, mas de um a priori, em que os dados sio apresentados 4 partir de “esquemas constitutivos’, enquadrando-se como se fossem cantroio -107- smoldes pré-fabricados’. Essa critica ao idealismo ¢ 0 fundamento de suas principais ressalvas 4 psicandlise e seu determinism, bem como 4 psicologia do ajustamento, Sartre reafirma que € preciso “ir as coisas ‘mesmas”, abandonar os pressupostos ¢ preconeeitos, como preconiza a fenomenologia. Aliés, em A Imaginardo, ele marca aimportancia de que “o smétodo mesmo da fenomenologia possa servir de modelo aos psicélogos” (GARTRE, 19871, p. 97) Sendo assim, a ciéncia depende do sujeito, na medida exata em que é preciso uma consciéncia constituinte para produzir 0 conbecimento, mas este, no entanto, no deve ser pautado sobre as “ideias” de quem pesquisa, mas deve ser rigorosamente sustentado no préprio fenémeno, ou seja, 20 objeto com suas propriedades materiis. Dessa forma, Sartre assinala em Oureo nada, que“o fendmeno é absolutamente indicativo de si mestno". Entra em questio, assim, o papel do sujeito da pesquisa, sendo que “a tniee teoria do conhecimento que pode ser hoje em dia validavel G aguela que funda sobre esta verdade da microfisica: o experimentador faz parte do sistema experimental, E a dnica que permite descartar toda a iusto idealista, a nica que mostra o homem real no meio do mundo real” (SARTRE, 1960, p. 30). Significa, portanto, que nfo podemos cesquecer a proximidade absoluta entre 0 inquiridor € o inquirido ~ como Heidegger jé havin chamado a atengio ~ ou seja, 6 preciso levar em conta 0 {ato privilegiado de que a realidade humana consiste em nés pr6prios. Esta tomada de consciéncia é pautada sobre o modo de ser compreensivo, nilo € uma atitude exterior, mas é a prépria maneira de o homem existir. Dessa forma, para captar 0 sentido da experimentagio concreta dos sujeitos & preciso, diz Sartze, dispor daquilo que os psiquiatras ¢ flésofos alemaes, Jaspers ¢ Heidegger, por exemplo, chamam de compreensdo. “Bste conhecimento ¢ simplesmente o movimento dialético que explica 6 ato por sta significasio terminal a partir de suas condigbes de partida” (GARTRE, 1960, p. 96). O processo de desenvolvimento dialético das investigagoes dos fendmenos deve resultar, portanto, na sua compreensio, ou seja, em uma totalizasio resultante de um movimento sintético, como cima jé haviamos assinalado. A compreensio é originalmente progressiva (em ditegso 20 contexto, & sua dimenséo universal) para, logo em seguida, voltar a ser regressiva (retomada da situagio singular, original). ‘Assim, a sintese compreensiva pauta-se na investigagio do fendmeno ‘em suas miltiplas dimens6es, procurando aleangar © homem concreto, no -108- SaxrnE 2 ApsicoLocia cLisica mundo, como ser psicofisco, O seu fundamento € a concepgiio de que 6 individuo se encontra inteiro em todas as suas manifestacdes; portanto, a partir de qualquer ato, de qualquer experimentagio psicofisica do sujeito, € possivel chegar & sua significagdo ou ao seu projeto originario, como detalharemos mais adiante. A compreensio deve revelar, assim, “a profandidade do vivido” (SARTRE, 1960). Fazer ciéncia , portanto, conhecer as condigées de possibilidade dos fendmenos, compreendendo-os em seu contexto. Com base nesse conhecimento, que € generalizavel, jé que pautado no aspecto singular/ universal do objeto © na realizagio da sintese das diversas varidveis levantadas, criam-se condigdes para se realizar a intervengio nas situas6es, Esse € 0 objetivo maior da ciéncia: intervir com seguranga na realidade, para poder alteri-la no que se fizer necessizio. O conhecimento objetivo deve nascer, portanto, da préxis ¢ a ela retornar para esclarecé-la. Assim, iio deve haver teoria sem pritica, nem pritica sem teoria. Esse processo flo se dé “ao acaso ¢ sem regras”, mas como em todas as disciplinas, segue 0s prineipios norteadores do fazer cientfico, Se assim nio fora, argumenta Sartre, “a separario da teoria e da prética teria por sesultado transformar esta ema um empirismo sem principio e, aquela, em um saber puro ¢ fixo” (SARTRE, 1960, p. 25). Portanto, nfo basta estudar o fendmeno, preciso transformé-lo, A ciéncia nfo pode ficar somente na investigagio, € preciso ir para a intervengéo Sartre assevera que a cigncia deve ser “heuristica”, ou seja, sua pesquisa, seus principios e seu saber devem aparecer como reguladores na produsio do conhecimento ¢ na resolusao de probleméticas. (© que seria preciso, portanto, para fazer ciéncia em psicologia ¢ nio cair no empirismo que a domina, questiona Sartre (1938, p. 18)? Seria preciso estudar as condig6es de possibilidades dos fendmenos psicolégicos (as emosées, por exemple), “[.] ou seja, questionar-se se a prépria estrutura da realidade humana torna possivel as emogdes e como é que as torna possiveis”. Tal perspectiva pareceria aos olhos dos psicélogos clissicos “uma inutilidade ¢ um absurdo”, acostumados que esto 4 énfase na sistematizagio de dados esparsos, sem interrogé-los mais a fundo. E preciso destacar que os fendmenos psicolégicos tém sua esséncia, suas cestruturas particulares, suas leis de aparigfo, seu significado; so uma forma organizada de existéncia humana e, portanto, no poderiam provir de fora da realidade humana, nem se constituirem estruturas sustentadas cxstrano 4 -109- ‘em si mesmas. Sendo assim, € preciso primeito questionar a realidade fhumana, situé-la enquanto embasamento antropolégico para o saber da psicologia, para entéo investigar os fendmenos psicoldgicos. Diz Sartre fue “{ol 2 pscologia encarada como cigncia de certos fatos humanos aio pode ser um comeso porque o8 fatos psiquicos que encontramos nunca sio bs primeitos” (GARTRE, 1938, p. 18); antes temos que defini, portanto, o que éa realidade (ontologia) ¢o que é 0 homem (antropologia), enquanto conceitos que the subjazem. O existencialismo, dessa forma, encontra-se femtuma situagio inversa a dos psicdlogos clissicos, pois ‘parte da totalidade Sintética que é o homem ¢ estabelece a esséncia deste, antes de ensaiar os primeiros passos na psicologia” (SARTRE, 1938, p. 22). Nao se pode confundir a tarefa da ontologia com a da ciéncia. Na verdade, é preciso delimitar muito claramente suas diferentes fungbes. No fentanto, uma ciéncia que nio esclarega seus fundamentos no tem como ter seguranga de suas realizagbes. Em O sere 0 nada, no capitulo “Psicanlise existencial’, no qual propde uma metodologia para a psicologia (portanto, faz uma proposta no campo da ciéncia), Sartre esclazece os limites da investigagao ontolégica: ‘A verdade humana da pessoa deve poder ser estabelecida, como ‘nds temnos tentado, por uma fenomenologia ontol6gica. [.] Que se possa submmeter um homem qualquer a usna investigasio, isto € uma possbilidade da realidede humana em geral ou, se se prefere, isto pode ser estabelecico por uma ontologia. Mas « investigagio cla ‘mesma e seus resultados sio, por principio, fora das possibilidades de uma ontologia. (SARTRE, 1997, p. 695). F por isso que ele esereve, em seu Questo de métedo, que “resta, ainda, tudo por fazer: é preciso encontrar o método e constituir a ciéncia’ GARTRE, 1960, p. 33) Esclarecidas as bases da ciéncia para Sartre, bem como os fundamentos ontolégicos para a ciéncia psicolégica, temos condigoes de partir para a sua descriga0 e discussio. PARTE I [A psicologia em Jean-Paul Sartre - CAPITULO 5 - O HOMEM COMO SER-NO-MUNDO- Em sua ontologia, contida em O ser ¢ 0 nada, Sartre descreve 0 hhomem como um ser “em-si-para-si”, ou seja, como “corpo/consciéncia”. Portanto, pela sua propria estruturagio pricefisica, o homem & um ser em sclagto: relagdo entre consciéncia e corpo, relagio com o mundo que © cerca, relacdo com a exterioridade. O homem é, assim, um ‘ser-no-mundo", nogio heideggeriana adotada por Sartre que pressupée a compreensio rigorosa do principio da intencionalidade. |A base dessa concepgio de ser-em-relagio encontra-se na nocio de conscincia, que é “sempre consciéncia de alguma coisa", quer dizer, sempre relagio a algo, & exterioridade, ao em-si. Ser intencionalidade Ihe é, portanto, constitutive, implicando que a consciéncia nfo se encerra em si mesma, ela € sranscendéncia. Ela, portanto, néo contém o mundo, que lhe 6 exterior, ainda que relativo a ela; as coisas, pois, néo sio seu conteido; so, sim, a realidade concreta com a qual ela se relaciona. Essa nogo de consciéneia & essencial para rompe com a filosofia idealista e racionalista predominante na nossa cultura, ainda hoje embasamento de boa parte das Psicologias e da psicandlise freudiana, ‘Nao existe mando sem homem nem homem sem mundo (SARTRE, 1968). O mundo s6 se constitui, se organiza, através do homem; se no cexistisse o homem, teriamos, somente, @ realidade bruta, indiferenciada. S6 ha mundo porque o homer transcende aquilo que esté “dado” e estabelece significagdes, ordenamentos; organiza, com isso, a realidade, tornando-a humana, Da mesma forma, 0 homem sé se humaniza por estar inserido em um mundo que Ihe possibilita contornos sociais ¢ sociolégicos. Nao existe nenhum individuo que no esteja situado em urn certo Local, em um dado tempo, em uma certa sociedade. a4. SaRTRB BA RsIcOLOGIA CLR 5.1 O HOMEM INSBRIDO EM UM PROCESSO DB RELACOES © homem, antes de qualquer coisa, esté inserido em um processo de relag6es, como jf vimos. A condicéo para a ocorréncia desse fendmeno | €0 fato de o homem ser, inelutavelmente, corpo/consciéacia, O corpo € seu primeizo contato com o mundo, a consciéneia € sua condigio de estabelecer relapses, Dessa forma, o sujeito € um conjunto de relagées: com a materialidade, com seu corpo, com os outros, com a sociedade, com tempo. ee 5.2.1 RELAGAO COM A MATERIALIDADE A relagio com a materialidade que nos cerca éa primeira condigdo de existéncia de alguém. Todos nascemos inseridos em uma dada sociedade, ‘num certo momento histérico, incluidos aum certo conjunto de relagées sociais que nos remetem, necessariamente, aos objetos ¢ as condigées ‘materiais que nos cercam. Por exemplo, nascer na Franca, em termos de estrutura produtiva, econémica, social, cultural é muito diferente de nascer ro Brasil; ou ainda, viver em uma favela, sob condigSes socioeconémicas Precérias ou viver em condigbes socioecondmicas de classe média-alta sio situagées bastante diferenciadas ¢ oferecem subtratos diferentes para 0 processo de subjetivagio; assim como viver no inicio do século KX implica ‘em outra materialidade do que a que do século XVII. Sio possibilidades materiais, antropolégicas ¢ sociolégicas diferentes. Essas condiges materiais, em am primeiro momento, nfo sio por 1s escolhidas, nascemos no meio delas. Mas, no entanto, devemos nos «apropriardelas, i que essas quest6es objetivas sho aspectos definidores de nossa subjetividade. Os sujeitos apropriam-se dessas condigdes de uma ‘mancita singular, particular. A maneira de processar essa subjetivagao tem. « ver com 2 histéria individual, com a sua rede de mediagiies sociolégicas com 0 projeto de cada um. E exatamente essa apropriagao singular que deve ser esclarecida pela psicandlise existencial, na busca de encontrar 0 ser do sujeito, Portanto, 0 que deve ser esclarecido é a diatica entre a objetividade ¢ a subjetividade, Declara Sartre, em seu Questto de métede: “0 acaso nio existe, ou, pelo menos, nao como se acredita: a crianga torna-se a3) aqucla porque vive o universal como particulas” (SARTRE, 1960, eantso.0 5 fae Cada sujeito € um singular/universal, o que quer dizer que é um dividuo idiossincratico, mas também é 0 fruto de seu tempo, das relagdes fociais que o engeadram, € um universal. © existenciaista tece aqui Gitieas contra 0 marxismo, acusando-o de reduair a andlise do sujeito &s jnfraestruturas da sociedade. Dizer que Flaubert ¢ um escritor pequeno- ‘burgués ou que Genet um escritor contra os valores burgueses slo fatos ineontestéveis, mas isolados nfo ajudam a compreender quem foram ‘fetivamente Flaubert e Genet, nem como eles chegaram a elaborar suas Soras. © existencialismo pretende, assim, “sem ser infel a teses marxistas, encontrar as mediagdes que permitem engendrar o concreto singular, a vida, a ura real e datada, a pessoa a partir das contradigées gerais J” da familia, do local onde vive, enim, da sociedade (SARTRE, 1960, p. 44). ‘Sendo assim, o subjetivo € apenas urn momento do processo objetivo. [A subjetividade nfo é uma entidade em si, uma estrutura mental; ela ¢ tum processo dialético de apropriasio da objctividade, de inteciorizagio da exterioridade, portanto 36 existe enquanto subjetividade objetivada. Quer dizer, sujeito encontra-se inserido em condigées materiais, antropalégicas, cociolégicas, existenciais concretas, ¢ € no processo de apropriagao dessas condigdes que constitui sua subjetividade, que imediatamente se objetiva, através de seus atos (@ua praxis), seus pensamentos, suas emogoes. Dai que para compreender o ser de um sujeito devemos, em primeiro lugar, verificar 0 contexto material, antropoldgico onde ele se encontra ¢, para tanto, investigar a fungao dos objetos em seu ser; pois © homem esta rediado pelas coisas na exata medida em que as coisas estio mediadas pelo hhomem, Ou seja, a materialidade que 0 cerca, os objetos do seu mundo sio fandamentais para ajudarem a definir seu ser, da mesma forma que 10s objetos s6 adquirem sentido porque 0 sujeito se relaciona com eles. O homem, por exemplo, que viveu muito tempo em situasio de escassez material ou aquele que passa por um processo de faléncia financeira fica, fem geral, obsecado pelo dinheiro; aquele que esté apaixonado nao pode sentir o perfume da pessoa amada que fica afetado, ou no pode ver sua foto que o corasio dispara, ¢ assim por diante, Bsse processo & portanto, psicofisico, o ser do sujeito € imbricado do valor dos objetos para ele, Para entender melhor a mediasio dos objetos para o sujeito, mais especificamente com relacio & sua dindmica psicol6gica, utilizarse-& um exemplo que, apesar de longo, nos ajudara a elucidar a nossa temética, reticado do tivro de Van Den Berg, um psiquiatra fenomenolégico: -116- SARTRE BA PSICOLOGIA CLINECA E inverno. A noite esté caindo e eu me levanto para acender a kz. Othando para fora vejo que comegou a nevar Tad ents coberto pela neve brilhante, que esté caindo silenciosamente do céu encobert. LJ] Esfrego as miios e aguardo a noite com satistasio, pois, fez alguns dias, telefonei a um amigo convidando-o a vir ter comigo cesta noite, Dentro de uma hora estaré batendo & minha porta ‘Ontem compzei uma boa garrafa de vinho, que coloquei i distincia apropriada do fogo.(..] Meia hora mais tarde toca o telefone. Eo meu amigo, adizer que no poder vir. Trocamos algumes palevras ‘© marcamos novo encontro para outeo dia.. Quando torno a colocar © fone no gancho,o siléncio do meu quarto ficou mais profando. As préximas horas se parecem mais longas e mais vazias [.] Dentro de alguns momentos estou absorto num livzo, O tempo passa lentamente. Ao levantar os olhos por um momento, para refletir sobre um trecho pouco claro, a garrafe, perto do fogo, chama a ‘minha atenglo, Percebo mais uma vez que o meu amigo nfo vird e volto & minha leitura. (VAN DEN BERG, 1981, p. 36) A expectativa em relagdo 2 visita do amigo, a solidio momentinea, todas essas experiéncias so mediadas pelos objetos, que tem fungdo sobreo ser do sujeito. Enquanto espera o amigo as condigSes do tem or méveis, vio desenhando um dado ambiente, que ofrece, pouco a mae 6s contornas de atmoyfira em que 0 personagem € langado: quando fica sabendo que o amigo nio vem, 0 quarto ganha outro contorno afetivo, que tem fungio em nosso personagem ~ ele fca triste ~; antes tudo era mais brithante, mais acothedos, depois do telefonema tudo passa a ser cinzento, fio. Eseaafetagio s6 ocorze porque jé no momento da combinagio da visita hhava e armado uma atmosfera de expectativa em relacio ao encontro com. seu amigo. Quer dizer, eventos objetivos, mediados pela materalidade, foram desencadeando a atmosfera que envolveu nosso personagem: um telefone que foi usado para falar com o amigo, a compra de uma garrafa de vinho, 2 arrumaséo da casa para recebé-Io, um ambiente acolhedor com 0 fogo crepitando na larera, ete. Quando 0 amigo avisa de seu n20 comparecimento, o sujeito jd esté dentro daquele ambiente que tem funga0 no seu ser, daf sua afetagio pela sua auséncia, Bssa afetagio € medida pela mesma materialidade: telefone, ambiente da exsa, ivro sendo lido, ere. Dessa forma, basta olhar para a garrafé de vinbo que the aparece auséncia do amigo. A. gazvafa de vinho a sua auséncia; ela nlo é uma representasio, a auséncia € uma objetividade da garraa cooiroro s su Para compreender melhor devemos utilizar 0 conceito de situagta, ‘Um objeto, no caso a garrafi, sempre se encontra em uma dada situasio: «uma garrafa em um supermercado é um objeto para ser comprado, parece até que ela fala ‘me compre, me compre"; para qualquer pessoa que vi fo supermercado ela aparece como uma garrafa para ser comprada. No ‘entanto, para aquela pessoa que pensa em dar uma festa ou receber um amigo 4 garrafa ganha um poder de atrasio maior do que para aquele aque nfo bebe ou que nfo esti nesse contesto de comemoragao. Assim, a garsafa de Van Den Berg € objerioamente a auséncia do amigo, pois ela ests Cuidadosamente colocada em cima da lareira, comprada exatamente para recebé-lo. Se fosse um grupo de pessoas que estivesse esperando o amigo, para todo o grupo a garrafa quando observada seria a auséncia do amigo. No entanto, para alguém de fora daquela situagio, que entrasse na casa de Van Den Berg naquele momento, ela poderia ser simplesmente uma garrafa a ser bebida. Portanto, a situagio se faz objetiva na medida em que € social, sociolégica e material. A funsio dos objetos sobre o ser dos snjetos depende, portanto, do contexto em que se inscrevem, mas umna vez constituida esca relagdo de fangéo se impde objetivamente. Nao ¢ algo que esti na “cabega de cada um”, mas nas propricdades objetivas (materiais, antropolégicas, sociolégicas) dos objetos. ‘Un psicdlogo empirico diria que essas afirmagées so pura poesia, que o personagem descrito estaria contaminando sua percepgio do objeto 20 “projetar”nefe a sua decepgto ou desilusto, Pergunta Van Den Berg: “se fosse minha projesio que eu estava vendo, nto teria eu observado minha solidio mais distintamente, menos adulterada, com mais realidade ¢ mais diretamente, se ex tivesse perguntado como me sentia, nfo’ garrafi, masa mim mesmo?” (VAN DEN BERG, 1981, p. 37). Sabemos que a resposta é nao, Percebemos a dimensdo da decepgio experimentada quando olhamos para aquela garrafa; ela nos incomoda. Quando perguntamos sobre nds mesmos, a resposta est no mundo que nos cerca, afirma Van Den Berg, “Cada esforgo que fago para concentrar-me no meu puro intimo resulta na tomada de consciéncia do meu ambiente: 0 quarto, 0 fogo, a garrafa dentro de tudo isso, © meu amigo ausente” (VAN DEN BERG, 1981, p. 37). Quer dizer que na busca da definigo de “quem somos” nfo chegaremos a lugar algum se olharmos para “dentro de nds mesmos"; devemos, sim, othar para a realidade circundante, para o significado que atribuimos as -18- Sanrnee r coisas, para o nosso conjunto de relagbes de fungdes que os obj cost bes de fungdes que os objetos tém Sendo assim, as coisas adquirem significado conforme a situagio em gue seth inserdo implica na experimentastopscofiea que dla e tem. 5.1.2 ARELAGAO CoM 0 coRPO ___ Arrelasio com 0 corpo € outra condigao existencial primordial. Jé vimos anteriormente que o homem ¢, inelutavelmente, corpo/consciéncia; portanto, é uma totalizasio dessas duas dimensbes de seu ser. O cozpo 6, assim, mediagio essencial na relagio do sujeito com o mundo. ; _ Como entender azelasiodohomem com seu corpo? Assunto debatido por varias filosofias, transpassado por diferentes perspectivas, foi o modelo cartesiano que predominou até recentemente, consolidando a perspectiva dualista, duramente crticada pela fenomenologia e existencialismo. Van Den Berg (1981), sustentado em Sartre, demonstra que ha duas possibilidades de o syjeto selacionar-ae com Seu corpo, que levam a concepgdes diversas: uma é 0 ponto de vista externo, de fora da experimentago concreta do corpo; é o ponto de vista dos outros ou dos meédicos sobre meu corpo, ou 2té meu proprio ponto de vista quendo penso sobre minha vivéncia corporal. E 0 corpo tomado em abstrato, reflexivamente, fora de seu contexto, de sua experimentagio psicofisica de ser. E 0 que nosso jé conhecido psiquiatra chamaria de “o cozpo que tenho” ou o que Sartre chamaria de “corpo como ser-para-o-outro”. Outra, ordem é justamente a da experimentacio psicofisica concreta, cxperiéncia do corpo tomado na espontaneidade, corpo que vivencio todo dia, que é meu instrumento no mundo. E 0 “corpo que sou” ou 0 corpo como "ser~ par-si®. Sartre alerta que € preciso no confundir esses diferentes niveis; portanto, devemos examinar separadamente 0 corpo como ser-para-o- ‘outro € 0 corpo como ser-para-si. “ack Pieeiso estar atento, no entanto, em oposigfo ao cartesianismo, que “[..] 0 para-si deve ser todo inteiro corpo e todo inteiro consciéncia: io poderia ser ‘unido’ a um corpo. Similarmente 0 ser-para-o-outro & todo inteiro corpo; nao hé aqui ‘fenémenos psiquicos’ a serem unidos a um corpo; nada ha detrés do corpo. O corpo € inteito psfguicc” (SARTRE, 1997, p. 388). Podemos, agora, buscar compreender por que o dualismo caviruLo 5 suse cartesiano € uma falsa solugio dada a uma questio efetiva que se impde 20 homem. Quando adoto em selasio a0 corpo uma pestura réffexiva, quando penco sobre minha beleza, sobre meus defetos, sobre minha vergonha, ere, estou tomando uma distincia do corpo, tomando-o em abstrato {o corpo que tenho). Dessa forma, ele aparece como outra coisa que eu snesma, como se eu fosse um outro me olhando. Nao que ele seja de fato outra coisa que eu, mas € 0 ponto de vista abstrato que adoto sobre ele. Descartes tomou essa verdade advinda de uma das possibilidades de o sujeito relacionar-se com o corpo ~ a relagdo abstrata ~ que & sempre uma possibilidade humana (nfve! antropolégice), como uma definigio de sua {strutura ontoldgica, quet dizer, uma definigao em relagio ao ser do corpo ¢ fo serda alma, bem como sobre o que é@ relasdo entre cles. Deduziu dat que ‘corpo € uma coisa (res extensa), separada, diferente do meu ser ou do meu teu, 0 ainda, separado da alma, que € minha esséncia (mas que tambérn é ‘tubtincia, 6 que pensante) E. preciso estar atento ao fato de que, quando Descartes chegou 20 cagito, na quarta parte do Discurso do método, ele estava adotando um ponto de vista reflexivo, a0 duvidar das coisas que o cercavam, (etitude reflexiva) e, dat, deduzir (atitude reflexiva) seu “penso, logo sou’. A. préxima dedugto é desdobramento dessa atitude e dessa confusto de niveis ontol6gicos: “[.] compreendi por af que era uma substincia cuja esséncia fou natureza consiste apenas no pensar e, que, para ser, nfo necessita de nenhum lugar, nem depende de qualquer coisa material, De sorte que esse eu, isto é, a alma, pela qual sou o que sou, ¢ inteiramente distinta do corpo” (DESCARTES, 1987, p. 47). 0 filésofo racionalista ficou o resto dos seus dias debatendo-se para explicar as experimentages concretas com © corpo, a vivencia do “corpo que sou” (As paixées da alina), preocupado em estabelecer a relagio entre corpo e psique, o que buscou realizar de uma forma “mecinica”, através da glandula pineal. Eis o equivoco cartesiano que ce perpetuou na histéria da filosofia moderna ¢ contemporinea, com claros desdobramentos na constituicéo do campo da psicologia (BERTOLINO, 1996b). Voltando a Sartre, passamos a descrever © corpo como separa. Subemos que o para-si é-no-mundo, sendo o corpo nossa relagio primeira com esse mundo. Dizer que estou no mundo, que vim ao mundo ou que ha um mundo ¢ dizer que sou um corpo é uma s6 e mesma coisa. © corpo € o instrumento ¢ a meta de nossas agbes. Nés no empregames esse instrumento: 0 corpo, nds o somes, inteiramente. Nao é uma relagio -120- Samra ea psicoLocia cites de uso, é uma experimentacio de ser. © corpo esti presente em todas as nossas agbes, 6a sua condigao, s6 que é tomado espontaneamente e, assim, por isso nfo ¢ apropriado. Quando acelero meu cazro, quando escrevo, quando penso, hi um pé que acelera, uma mio que escreve, neurdnios que funcionam. Se estivermos absorvidos no que estamos fazendo, no tomamos distancia de nosso corpo, simplesmente somos 0 corpo, eu e ele somos uma ¢ a mesma coisa, Nao somos primeiro dotados de um corpo, para depois captar o mundo, ele ndo é uma tela entre nds e as coisas. Nao! corpo € nossa relagio origindria com as coisas, € a revelagio de nossa relago com o mundo, Sendo assim, 0 corpo é a perpétua condigéo de possibi pique. Todos os fenémenos da psique sio priafisicas. O exemplo mais claro ‘so as emogdes: quando esté triste ou com ume alegria intensa 0 sujito é essa tristeza, essa alegria, enquanto corpo e consciéncia, Por exemplo, uma pessoa com raiva fica com os misculos tensos, ruborizada, sua fisionomia fica “carregada”, tem uma experimentagio como se fosse explodir; uma pessoa alegre fica saltitante, a fisionomia fica leve, sorridente, tem uma experimentagio de prazer, de estar bem naquele momento, Dessa forma, as qualidades psicologicas so condigées do corpo. A pessoa timida nfo gesticula, nfo se movimenta, como faz uma pessoa expansiva; uma pessoa autoritatia geralmente tem uma voz forte, agressiva, ¢ assim por diante. Sartre descreve com detalhes a experimentagio psicofisica de ser ema seu livro d ndusea, em que seu personagem Roguetin, jovem sem raizes, solitirio, em tédio com sua vida cotidiana, comeca 2 experimentar, em diferentes situagSes, uma violenta sensagio de néusea, Essa reagio toma conta dele frequentemente e nada mais é, ele descobre, do que a expressio de sua relagio insipida com o mundo, Argumenta o existencialista: “é 0 compo que aparece logo que designamos o psiquico; € o corpo que se acha nna base do mecanismo e do quimismo metaféricos a que recorremos para classificar ¢ explicar os acontecimentos da psique; é o corpo que visarnos e informamos nas imagens (consciéncias imaginantes) que produzimos a fim de visar e presentificar sentimentos ausentes” (SARTRE, 1997, p. 425). ‘Meu corpo nao existe s6 para mim, existe também para 0 outro, €0 corpo-para-outro. E na relagio com 0 outro que o sujeito surje como corpo em situaco; quer dizer, sempre como inserido em um contexto. ‘Dessa forma, o corpo de alguém que amamos nao é somente os seus bracos fortes, 0 seu peito largo, etc., mas um corpo vivo, de uma pessoa especifica, lade da exttros sim. ‘com sua idiossincrasia no mundo, O que nos atraf nao é somente uma parte do corpo, por mais que essa possa chamar a atenso, mas o conjunto a pessoa. Por mais que tentemos reduzir 0 corpo do outro a uma parte (como a famosa bundinha brasileira, explorada em comerciais ¢ misicas), tinda assim 0 outro aparece inteizo, definindo os contosnos desse objeto de desejo (a garota que sebola na frente da televisio, por exemplo). Isso indica que © compo do outro € sempre significante, remete a um sentido que 0 franscende, indica o serde alguém. Nao existe um corpo como puro ems; ge assim fosse nfo passaria de um cadaver. O cadaver nfo esti em situacao, é pura coisa, : ‘ (© outro é uma transcendéncia (posto que é um para-si que se lanca sempre para além do que € dado, da situagio) transcendida (posso fazé- Jo de objeto para mim). O corpo é a facticidade dessa transcendéncia transcendida, na medida em que ¢ através dele que eu estabelego meu contato mais imediato com o outro, que eu 0 objetifico. Existe ainda uma terceira possibilidade de experimentaro meu corpo, queé quando 0 outro se desvelaa mim como um sujeito que me faz de objeto Sartre descreve essa atitude através da aparigo do olhar do outro, através do qual experimento meu ser-objeto, minha transcendéncia transcendida, minha alienagio. Sartre exemplifica essa experiéncia com 2 conhecida situagdo do “buraco da fechadura”: alguém espia, pelo buraco da fechadura, ‘uma cena que se desenrola dentro do quarto; esté totalmente absorvido na observagio da cena, nem se da conta de que, por estar agachado jé ha alguns minutos, seus joelhos e suas pernas doem (experiencia do corpo que sou — conscincia de primeiro grau). Mas eis que escuta passos de alguém se aproximando. Sua atitude se transforma radicalmente. A cena do quarto deixa de ser seu principal objeto de atengio, volta-se para si mesmo, part a dor nas pernas, para a posigio agachada, sabe que o outro o vera nessa posigio (experiéncia do corpo que tenho — consciéncia de segundo grau), dé-se conta, nesie momento, do ridiculo que esté fazendo. A vergonha toma conta do seu ser. E a experiéncia do corpo alienado. © outro me faz de objeto ¢ cu estou em poder do outro. A experiéncia de minha alenasto se dé, geralmente, através de estruturas afetivas: a timidez, a vergonha, a raiva, “Sentir-se enrubescer, sentir-se transpirando, ete. so expressbes impréprias que o timido usa para explicar 0 seu estado: 0 que ele quer Sine ‘com isso & que tem consciéncia viva e constante de seu corpo tal como é, ro para si mesmo, mas para o outro” (GARTRE, 1997, p. 443). -122- A discussio da alienacio através do corpo nos remete & relagio com 8 outros €, através dela, com a sociedade. Devido a importincia dessa relagio para a compreensio da psicologia em Sartre, ela seri tema de um capitulo exclusivo. Passemos, entio a discutir a temporalidade. 5.13 ARELACAO COMO TEMPO A temporalidade € outra relaglo fundamental do homem com 0 mundo, O em-siesté no tempo, mas nao é temporal. Entendamos melhor! Por exemplo, uma cadeira em-si mesma pode ter duzentos anos ou ter sido fabricada ontem, mas isto nio é questéo para a propria cadeira, E para o hhomem que a cadeira seri velha ou nova, moderna ou cléssica. Uma roupa pode ter sido costurada hé trinta anos; em-si mesma ela no é moderna, nem esté na moda ou € démodé. E na telacio com os padrées estéticos estabelecidos por uma certa ldgica de consumo, por uma dada sociedade, «que se define a pertinéncia da roupa para certas ocasiées, sua modernidade, Portanto, quem dita a tempotalidade das coisas é 0 homem, jé que é através dele que a temporalidade ver ao mundo. Haviamos visto, na primeira parte deste trabalho, que o homem € | uma totalizasio em curso, Cabe-nos, agora, comecar a especificar melhor © significado dessa afirmasao, Totalizar-se significa temporalizar-se, o¥ seja, produzir uma sintese dialética das experiéncias passadas, presentes e futuras que definem os contornos de quem é o sujeito, produzindo-o, Ser, ara o homem, é estar localizado no tempo, € ter realizado certas coisas, fugido de outras, aprendido algo que nio se sabia, ter amado alguém, sofrido em certas circunstancias, enfim, ter sido detetminada pessoa; também ¢ planejar fazer certas coisas, projetar ser alguém, Sendo assim, a humanidade do syjeito constedi-se pela sua temporalidade. O homem s6 existe para o homem em circunstancias € em condigdes sociais dadas; isso significa que toda relagio humana é demarcada temporalmente, é histrica. Sartre concorda com Marx quando este afirma que “o homem faz a histéria na exata medida em que esta 0 faz”. O existencialista, no entanto, chema a atengio dos marxistas, que acabaram por valorizar sobremaneiza 0 papel da histéria em detrimento do papel do homem. Essa frase 36 tem valor se a compreendermos dialeticamente (SARTRE, 1960). © homem, com sua prixis individual Cotidiana, é que fiz com que os acontecimentos ocorram em determinada SaRTRS BA PSICOLOSIACLINNEA cartroro s “ums diresfo, engendrando a histéria. A relagio sado-masoquista, por exemplo, s6se mantém enquanto pritice social porque individuos a utilizam, adotam posturas sidicas ou masoquistas em relaggo uns aos outros, compram objetos de uso sidico, fazem filmes enfocando a tematica, escrevem livros sobre ela, etc. Sendo assim, definem certo perfil para a experiéncia sexual, existencial, de nossos tempos. Ao mesmo tempo, é 0 conjunto de determinagées histéricas (celages de produsio capitalist, que engendram, légicas culturais nas quais o individualism, a falta de reciprocidade sio marcantes) que fazem com que individuos adotem o sadomasoquismo. A dialética hist6rica no pode ser deixada de lado. Definimos, assim, a dimensio antropologica da temporalidade. Mas como se dé a dinamica temporal? Vamos, antes, precisar alguns conceitos. ‘A temporalidade ndo é um todo castico; a0 contrério, éuma estrutura organizada nos trés elementos “ek-sedticos” do tempo: passado, presente, futuro, que no existem isolados, nao se dao como uma soma de dados, mas sim como momentos de uma sintese original. E preciso compreender, portanto, 0 que sio esses trée elementos como se produz essa sintese Oprocessodetemporalizasio antropol6gica, ouseja,atemporaizagio real, como ocorre efetivamente a constituigio do tempo, se da através da ocorréncia de forgas reais advindas de um futuro que vio zealizando a histéria e, portanto, ativando o passado e suas foreas virtuais. Ou seja, 2 temporalizagio real se dé do futuro para o passads (BERTOLINO, 2005). ‘No entanto, a experimentagio concreta que o sujeito tem de seu movimento no mundo, levando ® sua temporalizasio psiquice, que acaba por estabelecer-lhe o cagito psicolégico, & como se as forgas virtuais do passado fossem as que forjacem o seu set; definissem suas atitudes, emoySe © pensaento essen se ite Dai se considered como uma temporalizasio aparente, pois, na realidade, como vimos acima, temporalzacto s€ dé do future para passado (BERTOLINO, 2005) © sujeito concreto, absorvido em suas experimentagSes_psicofisicas cotidianas, tem a certeza de ser determinado pelo passado, assim como tum observador lego, ao olhar para 0 movimento no céu, pereebe coro se 0 sol girasse a0 redor da terra. Nao é um engano dos sentidos, nem um equivoco, mas sim uma condigfo de constatagéo do fendmeno tomada a partir dos elementos empiricos, sem produzir uma abstracio da situacio, sem levar em consideragio 0 conjunto de fatores que ali esto atuando. Dai a certeza do sujeito de ser determinado pelo passado, sem que tenba -124- ‘SenTaE EA PstcoLociA cut condigdes de verificar que, na realidade, essas situasbes passadas ganharn forsa em fungio de sua correla¢io noemética com acontecimentos futuros, que levam a afetasio do sujeito. Por exemplo, um paciente com agorafobia, ou seja, com fobia de situagées piblicas, de situagoes em que esté exposty 4 muitas pessoas (como énibus, sala de esperas, etc), tem a certeza de que seu medo advém de seu passado de doenga, de ter sido sempre medeoso, antecipando que néo conseguir modificar essa situaglo. Ble nfo consegue. verificar 0 conjanto dos elementos que o remetem a essas experimentagées_ psicofisicas de medo, no consegue ver, por exemplo, que 0 desejo (Futuro) de “ficar normal”, de ser uma pessoa comuzm, com condigGes de ir a vir aos lugares como qualquer outro, é tio forte, que cada vez que ele entra em um Gnibus comeca a prestar atengio sobre como esto 08 outros ¢ como cle esti, 0 que vai deixando-o desconfortavel na comparacio, jé que tem & certeza de ser diferente, gerando seus sintomas psicofisicos. Foi o futuro (Gesejo de ficar bom) que injetou forgas na sua histria da doenga ¢ the potencializa a propriedade noemitica de afetar o paciente, ‘Dessa forma, o passado versa sobre os fatos j& acontecidos, que devem, ser apropriados pelo sujeito e, nesse movimento, ganha a propriedade de ‘sfetar 0 sujeito (relagio noematico-noética). Sendo assim, 6 tém passado setes que em scu ser esteja em questio seu ser, ou seja, sexes que possam por gem questzo seu passado, Portanto, s6 0 homem tem passado. O passado Ji fi, o que indica um modo de ser: eu era assim ou assado, eu fz isto ou | aquilo. E preciso compreender que na experiéncia cotidiana eu nio tenbo passado, mas sim, sou meu passado. Ele me impregna de todos os lados, e © experimento psicofisicamente de maneira permanente e no posicional Ele nao ¢, portanto, uma representagdo que fago da tninha histéria, nfo estd na ordem das ideias; ele sou eu, no se desgruda de mim, Sendo acsim, nés temos-de-ser-nosso-passado. Na medida em que ele jé aconteceu, ele é um dado, wm fato, Dessa forma, torna-se um em-si. O passado € 0 em-si que somos. Mas, mais do que iss0, & 0 em-si que temos-de-ser. Nio tenho nenhurma possibilidade de ‘nfo o sex. O passado que eu era é 0 que é. Somente no passado, portanto, ou © que sou, Meu passado ¢ minha histéria. Por outro lado, paradoxalmente, ‘lo sou meu passado, jé que jé 0 fui, posso estabelecer uma distancia do que eu era, posso buscar ser diferente do que fai, meu Futuro me abre essa possibilidade. : fpeame, j& que a forma como “me sei sendo quem sou” passa pela nara sbjetva que as situagées anteriores tém sobre 0 a Acai re ac as condigds para queo process psiorerapeutca tea cia ¢ preciso descrever com detalhes as situagbes passadas, como elas dconrram em st mundo, distinto da consciéncia. Suas caracterstcas, sm divide, dite das. dos seres espaso-tempori, como um objeto qualquer ou um sec da natureza, porém no é menos (BERTOLINO, 1996). i O ex 6 asim, a dimensto do suit, enquanto 4 conciéacia Ea dimensio da subjetividade. Assim, subjerfvidade e suiitosdo aspects dstints em Sastre. , . Cound ectunny desrevendo a realidede humana ou 0 se a " homem, temos que recordar que ele inelutaelnet, eoepo/ consinci, ou sj, vem rotlizao em curso qu & sempre priya e, portanto, € nessa condisio que ele estabelese ‘consciéncias de primeiro e segundo graus! ‘ll Busquemos compreender melhor-ainda 0 que & 0 et. existencialista: lidades ¢ atos. © jue entendemos 0 ego, seus estados, qual Epub , na psicologia existencialista, € um fendmeno itncia. § 4 sabmon que tod comencia€ sempre cocina de sigue ct ou ira relagio com as i n niin: seja, pura relagi 5 coisas; logo, a emogio € uma das formas possiveis de estabelecermos relasio cor do. s com o mundo, Mesm 4 : 10 que uma pe Ce aeratter aac dda teeceoea de dean tues eneentann econ canes epcticas, ue ae enor, Est lag - ‘ : . Essa relagdo com 0 rd pic de er esx aga del nya iguém, a paix € por alguém ou por alguma cas, a vergonha €de certa situagdo diante de alguém e assim por diante. Mas que tipo de relag i Je relago com 0 mundo estabelece a emoric? Quand ec ef e od gi mor coin po ae gpeacotemosE pore a emopo fue cmd tei (eonsciencia me ru ‘grau), uma experiéncia espontinea, posicional do objeto crea nt snd no pxnal oe. pe a bandona one reli pr ver emo. seseo da pessoa éade que aemogao lhe ocore, tom i Peon ade seo gs tmacon oases experinentaa A emogio 6, na verdade, uma transformagio do mundo. dando ot saminhos passe tora mito de 2 quando ne dscortnans cana algun no podemo perme nn oto urgent difel, Todas as va exto vedadhs, entero, 6 necessirio atuar. Entio,tentemos mudar o mundo, isto 6, vivé-lo ccomo se as relagées entre as coisas ¢ as suas potencialidades nfo esti ivessem reguladas por ; segladas por procevon

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