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Meu nome não é Johnny
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Ebook384 pages11 hours

Meu nome não é Johnny

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About this ebook

O livro que deu origem ao filme sucesso nos cinemas, estrelado por Selton Mello.
A vida real de João Guilherme Estrella, nascido em bom berço do Leblon e convertido em personagem graúdo da vida bandida carioca, é a história de MEU NOME NÃO É JOHNNY, de Guilherme Fiuza. Filho adorado pelos pais e jovem querido pelos amigos, João entrou pelos anos 80 buscando liberdade a qualquer preço, e desembarcou nos 90 como barão da cocaína pura na Zona Sul do Rio.
LanguagePortuguês
PublisherRecord
Release dateJul 20, 2020
ISBN9786555870978
Meu nome não é Johnny

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    Meu nome não é Johnny - Guilherme Fiuza

    9ª edição

    2008

    CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

    SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

    Fiuza, Guilherme, 1965-

    F585m

    Meu nome não é Johnny [recurso eletrônico] : a viagem real de um filho da burguesia à elite do tráfico / Guilherme Fiuza. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Record, 2020.

    recurso digital

    Formato: epub

    Requisitos do sistema: adobe digital editions

    Modo de acesso: world wide web

    ISBN 978-65-5587-097-8 (recurso eletrônico)

    1. Estrella, João Guilherme, 1962-. 2. Narcotraficantes - Biografia - Brasil. 3. Livros eletrônicos. I. Título.

    CDD –920.93645

    CDU: 929:343.575

    20-65283

    Camila Donis Hartmann - Bibliotecária - CRB-7/6472

    Copyright © Guilherme Fiuza, 2004

    Fotos do encarte: Arquivo de família, exceto a foto Nos bastidores das filmagens de Meu nome não é Johnny (ver link), de Fernando Rabelo/Design do encarte: Gisela Fiuza/GF Design

    Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

    Fotos do encarte do filme: Pedro Molinos

    Fotos da capa: Armando Prado

    Arte da capa: Espaço Z

    Direitos exclusivos desta edição reservados pela

    EDITORA RECORD LTDA.

    Rua Argentina 171 __ Rio de Janeiro, RJ – 20921-380 __ Tel.: 2585-2000

    Produzido no Brasil

    ISBN 978-65-5587-097-8

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    e receba informações sobre nossos

    lançamentos e nossas promoções.

    Atendimento e venda direta ao leitor:

    sac@record.com.br

    Para João, Maria e Gisela

    Sumário

    NOTA DO AUTOR

    O GOSTO AMARGO DA VITÓRIA

    NO LADO ESCURO DA LUA

    BRILHANDO NO TOPO DO MUNDO

    UM TREM FANTASMA EM COPACABANA

    O ELDORADO É MAIS EM CIMA

    SÓ PARA OS LOUCOS, SÓ PARA OS RAROS

    SANTA CLARA, ESTAÇÃO TERMINAL

    MUNDO CÃO COM MORTADELA

    O MICK JAGGER DA PRAÇA MAUÁ

    RÉQUIEM PARA O MALUCO BELEZA

    FOTOS

    ENTRE EXU CAVEIRA E JESUS CRISTO

    EXCELÊNCIA, A COCAÍNA É MINHA

    O BUROCRATA E O GENERAL DO MORRO

    MORRENDO DO PRÓPRIO VENENO

    MORTE SÚBITA, ALEGRIA DO POVO

    FUI AO PARAÍSO E JÁ VOLTO

    A DOIS PASSOS DO INFERNO

    A VOLTA DO MICK JAGGER

    GUARANÁ PARA O DEMÔNIO

    A DESTRUIÇÃO DO ESPELHO

    NOTA DO AUTOR

    Em julho de 2001, procurei João Guilherme Estrella e lhe propus que publicássemos a sua história. Considerando traumas, feridas abertas e riscos que estavam em jogo, não sabia como ele reagiria à minha condição central: revelar seu nome verdadeiro. Minha intenção era explicar-lhe que não desejava contar uma história verossímil, parecida com a realidade, ou apenas baseada em fatos verídicos (por mais excitantes que eles fossem): só me interessava a própria história real. E a verdadeira identidade do protagonista seria a pedra fundamental dessa autenticidade.

    Mas não precisei explicar nada. João Guilherme foi logo dizendo: Pode botar o meu nome. Topou no ato. Mesmo assim, para resguardar o projeto de eventuais reviravoltas, propus que ele refletisse sobre o assunto sem pressa, e amadurecesse sua decisão junto à família, aos amigos, ao seu advogado. Tivemos algumas conversas preliminares para delimitar o escopo do livro, e só voltei a procurá-lo três meses depois. João estava firme, mais decidido do que nunca a contar tudo: sua ascensão ao baronato da cocaína no Rio de Janeiro, suas aventuras entre a elite boêmia e o submundo carioca, seus voos, seus tombos. E a mostrar sua cara.

    Com a mesma convicção com que João aceitou o projeto, Luciana Villas-Boas apostou nele de saída, desde a primeira vez que lhe propus a publicação da história. Contei com seu incentivo nos menores detalhes, inclusive na decisão de que o livro trafegaria em mão dupla: mergulhando no fato criminal em si, mas também se distanciando dele — para procurar, à sua volta, a conjunção de tempo, espaço e gente da qual aquela história provinha.

    Agradeço especialmente ao leitor número um deste livro, cuja agenda no final de 2003 mal lhe permitia ler as manchetes dos jornais, mas que o atravessou detidamente, página por página, devolvendo-nos seus comentários, seu parecer e — pretensão nossa — sua bênção: Zuenir Ventura.

    A história foi escrita a partir de cerca de 30 horas de entrevistas gravadas com João Guilherme Estrella e com autoridades policiais e penitenciárias, familiares do protagonista e frequentadores da noite carioca, além de registros da imprensa e documentos da Justiça. Os personagens que são apresentados sem sobrenome tiveram seus nomes verdadeiros trocados, por questões de privacidade e de segurança. Os que aparecem com sobrenome estão com seus nomes autênticos. Todos os fatos narrados são reais.

    O GOSTO AMARGO DA VITÓRIA

    Guadalajara, 3 de junho de 1970.

    O avião que sobrevoa a Guatemala rumo à cidade mexicana, trazendo um punhado de brasileiros para ver a Copa do Mundo, é repentinamente sacudido. Não há sinal de turbulência no ar. O que abala a aeronave é uma comunicação extraordinária do piloto aos passageiros: ele anuncia que a Copa começou, e a seleção brasileira acaba de derrotar a Tchecoslováquia por quatro a um. Explosão de alegria a bordo. Era o primeiro passo para a histórica conquista do tricampeonato, que daria ao país a sonhada posse definitiva da Taça Jules Rimet.

    Do aviso da cabine em diante, cada grito de Pelé! transforma sumariamente dois desconhecidos vizinhos de poltrona em amigos de infância. No meio de uma congregação de brasileiros íntimos que nunca tinham se visto antes, fundada nos céus do México em menos de dois minutos, João Rodrigues Estrella está dividido. Brinda calorosamente com os que, como ele, teriam o privilégio de ver a Copa ao vivo. Mas não consegue parar de imaginar o que o pequeno João Guilherme estaria fazendo àquela hora. Com a goleada sobre os tchecos, aquele espoleta estaria no mínimo escalando as paredes do apartamento no Leblon.

    Aos 38 anos, João era um profissional de finanças em rápida ascensão. Tornara-se gerente especial do Banco Nacional, e em pouco tempo era homem da confiança de José Luís Magalhães Lins, um dos principais banqueiros do país. O banco do guarda-chuva, como ficaria conhecido o Nacional, encontrava-se em franca expansão, e João Estrella era figura de proa nessa ofensiva. Frequentemente, era o nome escalado para levantar a mais nova agência do banco em algum ponto do Rio de Janeiro. Além da excelência técnica, seu carisma e seu charme lhe rendiam bons negócios e amizades a cada esquina. Gostava de gente. E de futebol.

    Foi dessa combinação que surgiu, na circulação pelos salões da elite carioca, a aproximação com João Havelange. Do todo-poderoso comandante do futebol nacional (e depois mundial), então presidente da CBD (Confederação Brasileira de Desportos), viria o convite para ir assistir à Copa do México. João fora sozinho, com o coração pela metade e uma câmera Super-8 na mão. Chegara a uma fase da vida em que certas emoções só lhe pareciam reais se divididas com os três filhos — mesmo que em videotape. Festejou no avião o jogo que não chegara a tempo de ver, mas só sentiu de fato o sabor do triunfo sobre a Tchecoslováquia quando pisou numa agência dos correios em Guadalajara.

    Dali despachou o primeiro cartão-postal para João Guilherme, 9 anos, seu filho mais velho e depositário de seus melhores sonhos e projetos: "Eu só fiquei imaginando os gritos que você deu a cada goal que o Brasil marcava. Sinto muito a sua falta. Do pai que te adora, João." O menino não só tinha gritado muito, como, para o espanto de sua mãe, Maria Luiza, parecia ter assumido o lugar de João Estrella como promotor-geral da bagunça. Sem nenhuma combinação prévia, tomara sozinho a iniciativa de arregimentar a rua em torno de fogos, bandeirolas e batucada. Saíra fazendo tudo exatamente como seu pai faria se estivesse ali. E a chegada do cartão-postal o motivaria ainda mais. Além da mensagem triunfal, impressionara-o no verso a imagem imponente do estádio Azteca, templo daquela que seria, na Cidade do México, a última de uma arrebatadora sequência de vitórias brasileiras.

    João era um obcecado por vitórias, comemorava até par ou ímpar. Queria ensinar o primogênito a também tomar gosto por elas. Subira na vida impulsionado, antes de tudo, pelo desejo simples e bruto de estar no topo. Competir era importante, vencer era fundamental. E o futebol era uma ótima escola para mostrar que o que vale é ser o primeiro.

    Qualquer que fosse o páreo, sempre que podia, João Estrella chegava na frente. E não poderia deixar de ser o primeiro da rua a ter uma TV em cores, quatro anos depois da viagem ao México. O Brasil ia disputar o tetracampeonato na Alemanha, e só na casa dele, comprada num belo condomínio do Jardim Botânico pouco mais de um ano antes, os vizinhos saberiam que o amarelo era amarelo, e o azul era azul. Estava armado o circo para mais uma vitória ao lado de João Guilherme. Mas era chegada a hora, no futebol e na vida, de adiar os sonhos. Alguns, para sempre.

    Rio de Janeiro, 17 de julho de 1994.

    O Brasil finalmente é tetracampeão mundial de futebol. Vinte anos depois da primeira TV em cores de João Estrella. Dez anos depois da sua morte. Num casarão no bairro de Santa Teresa, João Guilherme é mais uma vez o organizador da bagunça. Só que desta vez, em lugar dos fogos e bandeirolas, ele distribui cocaína pura em bandeja aos presentes. O menino criado para vencer chegara ao topo. Mas agora o alvo dos melhores sonhos do pai é o alvo dos melhores homens da Polícia Federal.

    Em Los Angeles, contra a mesma Itália que João Estrella vira cair diante de Pelé e companhia, o Brasil ganha a Copa dos Estados Unidos. Naquele exato momento, entre os desconhecidos íntimos que a euforia da conquista produzia, João Guilherme conhece a pessoa que virá a ser a ponte para a chegada da sua droga à Europa. Enquanto o Brasil voltava a ter um futebol de primeira linha, ele se firmava como traficante de primeira grandeza.

    Nos jornais, estouravam as primeiras denúncias do escândalo do Banco Nacional. Fraudes contábeis e um rombo de quase 10 bilhões de dólares levariam a instituição à falência em menos de doze meses. Também no ano seguinte, não muito depois do primeiro aniversário do tetracampeonato, as páginas policiais estampariam a prisão de um peixe-grande do reinado da cocaína no Rio de Janeiro. Com um lauto churrasco na delegacia da Praça Mauá, a Polícia Federal comemorava a captura de João Guilherme. O mundo de João Estrella tinha virado do avesso.

    NO LADO ESCURO DA LUA

    No Natal de 1972, aos 41 anos, João Rodrigues Estrella podia ser um garoto-propaganda do milagre econômico brasileiro. Às vésperas do primeiro choque do petróleo, que reduziria drasticamente o dinheiro em circulação no mundo no ano seguinte, o país vivia a euforia do progresso acelerado. O ministro da Fazenda, Delfim Netto, anunciava um crescimento extraordinário de 10,4% do PIB (Produto Interno Bruto), e João anunciava à sua família a mudança do apartamento alugado no Leblon para uma bela casa própria no Jardim Botânico.

    Naquele fim de ano, como sempre fazia, ele atualizaria as fichas em que registrava, passo a passo, o crescimento dos filhos. Estava especialmente orgulhoso de ter mandado João Guilherme pela primeira vez à Disneylândia. E ainda mais orgulhoso da performance dele, que aos 11 anos viajara sem os pais e voltara triunfante, dono de si, cheio de histórias para contar. Não havia dúvidas: aquele ia longe.

    Filho de comerciantes portugueses, João Estrella já ultrapassara com folga os pais na escada social. Apesar de ter sido um mau aluno na escola, e de ter passado a adolescência muito mais dedicado à rua do que aos estudos, revelara-se um profissional abnegado. A turma da rua São Clemente mal reconhecia um de seus líderes debruçado sobre uma máquina de escrever, entretido em seu primeiro emprego. Numa agência bancária ali mesmo em Botafogo, esquina de Voluntários da Pátria com rua das Palmeiras, se algum parceiro de boemia e confusão o cumprimentava da calçada, ele apenas levantava ligeiramente os olhos e mergulhava-os de novo nas teclas. Agora, com vinte anos de carreira bem-sucedida, o graduado funcionário do Banco Nacional preparava o terreno para que seus filhos também o ultrapassassem na escada social.

    Força, competitividade, personalidade incisiva eram alguns dos atributos valorizados em casa. Em parte, uma forma de reverter um sentimento atávico de humildade, herdado da colônia portuguesa. A paixão fanática pelo Vasco da Gama — clube de massa com alma de minoria — era a tradução futebolística desse salto da modéstia para a afirmação total. Frequentando os Magalhães Lins e outras famílias da elite carioca, com um arco de relações que se estendia até o campo artístico (tinha boas amizades no grupo MPB-4 e na Jovem Guarda), João ia abrindo as melhores portas da sociedade para os filhos.

    No condomínio do Jardim Botânico, na rua Pacheco Leão, ao lado da sede da TV Globo, eles se acostumariam a ver seu pai jogar futebol aos sábados com o vizinho Renato Aragão (também vascaíno). Cresceriam ao lado dos filhos do trapalhão, do diretor Daniel Filho e de outros notáveis. A porta da escola também levava aos círculos da burguesia culta do Rio de Janeiro. No Instituto Souza Leão, colado ao Parque Lage, netos do ex-governador Carlos Lacerda, filhos do jornalista Hélio Fernandes, dono da Tribuna da Imprensa, e do cirurgião plástico Ivo Pitanguy estavam entre os colegas de João Guilherme. Repetindo o pai, o colégio seria para ele um lugar menos propício ao estudo que à proliferação de grandes amizades e a dedicação às artes (no sentido endiabrado do termo).

    Crianças no poder. Este era um dos lemas da infância dourada criada por João Estrella para os filhos. Se algum deles tinha um plano, era encorajado a levá-lo até o fim. Pingue-pongue na cama dos pais? Tudo bem. Um voluntário para trazer as madeiras e outro para buscar as raquetes, comandava o dono do quarto. Futebol na sala de estar? Ok, deixa que eu afasto os móveis. João Guilherme levava a filosofia ao pé da letra, e naquela mesma Copa do México, quando Jairzinho fez o gol salvador contra a Inglaterra, ouviu-se um estrondo sob a televisão. O menino tinha explodido uma bombinha de São João dentro de casa.

    João amava ver seus moleques voando solo, passando alto por sobre as convenções e voltando aos seus braços agradecidos, lambuzados de liberdade. Cada vez mais, os filhos eram a sua vida. Muito antes do que ele pudesse imaginar, porém, João Guilherme voltaria alto demais de seu voo. E já não seria mais possível alcançá-lo com seus braços.

    Durante 15 anos, João Estrella foi o gerente-geral da bagunça. Às vezes anunciava uma surpresa com uma semana de antecedência, e os meninos sabiam que valia a pena esperar. Podia ser uma viagem relâmpago a São Paulo para um passeio inesquecível pelo Simba Safari, vendo leões passeando à solta através do vidro do carro. Ou a inauguração no Brasil do Walk Moon, no Aterro do Flamengo, um pula-pula gigante simulando a gravidade lunar — com direito a ficarem acordados até meia-noite, num dia de semana em que seus coleguinhas já estariam há horas na cama. Mal trocara seu Volkswagen TL por um Ford Corcel do ano, João abarrotava o carro novo de crianças para uma jornada numa praia mais distante e vazia, apresentando de cara seus estofados ao lado selvagem da vida.

    Provia tudo aos filhos, mas queria também vê-los exercitando as próprias pernas. Aos 13 anos, graduado em matéria de praia, João Guilherme pediu-lhe uma prancha de surfe.

    — Eu topo — respondeu o pai —, desde que você pague a metade.

    — Eu? Mas eu não tenho dinheiro, pai.

    — Bom, aí é problema seu.

    O garoto mexeu, virou e acabou descolando um emprego de entregador de jornais. Pegava uma kombi do Jornal do Brasil às cinco horas da manhã e era deixado com a mercadoria no alto da rua Lopes Quintas, vizinha ao seu condomínio. Pulava então em seu skate e seguia ladeira abaixo, arremessando os exemplares de casa em casa.

    Em seis meses tinha sua prancha, e continuava acordando às cinco da manhã, agora para madrugar na praia, com dois ou três amigos mais arrojados. Largou o JB, mas como ainda tinha alguns boletos para cobrança das assinaturas, resolveu fazer algumas visitas extras por conta própria. Batia na porta do cliente uns dois dias antes do vencimento, convencia a vítima a liquidar logo a fatura, embolsava a grana e convidava os amigos para alguma sessão pornô no cinema.

    Para ver o sol nascer no mar, na maioria das vezes iam a pé do Jardim Botânico até Ipanema. O point era o píer, estrutura erguida para a construção do emissário submarino, que produzia uma ondulação especialmente boa. A caminhada eventualmente se estendia até a Barra da Tijuca, cobrindo mais de dez quilômetros — cumprindo à risca o script de andar com as próprias pernas. Numa dessas epopeias, João Guilherme fumou maconha pela primeira vez, aos 14 anos. Tinha medo, mas um dos colegas surfistas em quem mais confiava, dois anos mais velho, garantiu que não tinha nada demais. Na ligação do Canal de Marapendi com o Quebra-Mar, onde seu pai o ensinara a pescar, ele agora queimava fumo e delirava sobre as ondas. O gerente da bagunça começava a não caber mais na sua agenda.

    João Estrella jamais exigiu satisfações, mas pressentia os acontecimentos. Enxergava as pegadas do filho se afastando dos seus domínios, e o peito apertava. De repente, estava descobrindo que não se preparara para ser coadjuvante nas peripécias dele. Tentou não perder o passo, e ao sentir que o negócio do surfe ia ficando sério, deu uma de suas cartadas espetaculares. Importou dos Estados Unidos uma prancha Garry Lopez, a grife do maior surfista do mundo, raridade no Brasil. Fundo laranja, frente branca com um raio vermelho, quilha móvel e shape para enfrentar as ondas do Havaí, a nova prancha de João Guilherme era a sensação da praia do Leblon, e foi parar nas primeiras revistas de surfe do país.

    Mas não havia mais como virar o jogo. E o golpe fatal tinha que ser no terreno do futebol, centro da roda de emoções em que construíra sua relação com os filhos. Se essa relação tinha um templo sagrado, ele era o Maracanã. Os meninos eram íntimos do maior estádio do mundo. Mal haviam tirado as fraldas, já frequentavam-no para vibrar com o Vasco e a seleção brasileira. Mas agora, aos 15 anos, João Guilherme vinha com o pedido profanador: o Vasco ia jogar, e ele queria saber se poderia ir ao Maracanã sozinho com os amigos. O pai absorveu o soco no estômago, engoliu a dor calado, e respondeu simplesmente:

    — Claro. Toma aqui o dinheiro.

    Deixou para soltar as lágrimas à noite, ao falar do episódio com Maria Luiza, que poucas vezes o vira tão devastado:

    — Acabou. Não tem mais lugar pra mim. O João Guilherme não precisa mais de mim.

    Tocou o sinal do recreio e o grupo pôs imediatamente o plano em prática. Um colaborador, contratado por um picolé, saiu na frente para executar a estratégia diversionista. Foi até o porteiro do Souza Leão e avisou-lhe que tinha caído um galho de árvore enorme no meio do campo de futebol. Levou-o até lá, onde não havia galho nenhum, enquanto no lado oposto do terreno três alunos e uma aluna do primeiro ano científico pulavam o muro que dava para o Parque Lage. Já do outro lado, numa pequena clareira entre duas grandes árvores, cercados de mata por todos os lados, João Guilherme acendeu o baseado. Era a terceira vez que executavam a operação clandestina, e àquela altura não podia haver nada mais emocionante do que cometer a infração tripla num só ato: fugir da escola, invadir o Parque Lage e fumar maconha.

    João estava sempre na tropa de elite das armações. Para o bem ou para o mal, a lealdade e a criatividade eram traços claros de sua personalidade. Por isso, tinha sempre bons amigos e ótimos planos. E quando dava tudo errado, não costumava se esconder da responsabilidade. Só não gostava de ser culpado pela encrenca dos outros. Certa vez, uma colega de ginásio chamada Astrid, descendente de alemães, entrou na sala aos prantos dizendo que haviam roubado um álbum de fotos suas numa corrida de Stock Car em Berlim. A professora acompanhou-a numa varredura de carteira em carteira, mas na sua vez João recusou-se a abrir a sua.

    — Estou dizendo que não fui eu. Estou falando a verdade. Não vou deixar mexer nas minhas coisas.

    A professora e a garota então tiveram a certeza de que tinham encontrado o culpado. João foi levado com sua mochila à sala do diretor, professor Roberto, que se encarregou da intimação:

    — Sabemos que as fotos estão com você. Se entregar por bem, não vai te acontecer nada.

    Os olhos de João se encheram d’água e ele despejou todo o conteúdo de sua mochila na mesa do diretor.

    — Uma escola que não acredita na palavra tem mesmo é que revistar aluno. Pronto, tá tudo aí, podem começar o exame — desabafou, retirando-se da direção e deixando seu material para trás.

    No fim do dia, foi chamado novamente pelo diretor, dessa vez para um pedido de desculpas. E para receber a mochila de volta, devidamente arrumada.

    Com a moda das incursões clandestinas ao Parque Lage, os professores pelo menos podiam começar a se despreocupar com as cruentas guerras de giz. Havia chegado um momento em que alguns mestres mal conseguiam adentrar a sala de aula, tal a intensidade do fogo cruzado. Mas Fernandes, um professor de Física com pouco mais de metro e meio de altura, conseguira uma misteriosa trégua. Os outros professores não entendiam como, em suas aulas, não era disparado um só bólido branco. Seu segredo: um belo dia subiu numa cadeira e, aos gritos, sugeriu um pacto.

    — Rapaziada, proponho um cessar-fogo. Se vocês toparem, prometo patrocinar uma grande guerra no fim do semestre, e aí eu vou entrar também — radicalizou o mestre.

    Ele garantia ainda que a tal batalha final teria o dobro da munição, divisão da sala em trincheiras e duração de duas aulas seguidas. O acordo foi aceito e cumprido por ambas as partes. Fernandes vendera a alma ao diabo.

    Agora as guerras de giz, como transgressão, tinham perdido a graça. Iam ficando para trás, junto com as pescarias ao lado do pai. O garotão que viajava na mata do Parque Lage e ia ao Maracanã sozinho reforçava, com sua brusca transformação física, a sensação de perda de João Estrella. O cabelo tinha encrespado e ficado totalmente preto, perdendo as mechas castanho-claras adquiridas na praia. O corpo gorducho agora era esguio, já com os definitivos 1,73m de altura. As bochechas haviam sumido. O sorriso largo continuava doce, mas os olhos verdes contrastados à pele morena tinham perdido a candura. A rebeldia logo migraria do surfe para a música. Nada contra a família, apenas não tinha mais tempo para ela. Queria rua, vida direto na veia. De certa forma, cumpria regiamente o mandamento de liberdade que seu pai lhe transmitira.

    Country Club, Souza Leão, Hípica, Praia do Pepino. Esses se tornariam os pontos cardeais de João Guilherme e sua imensa turma de amigos, algumas dezenas de jovens que viviam em bando, numa espécie de pátria particular e itinerante. Eram parte de uma geração que misturava saúde e boemia na virada dos anos 70 para os 80, bando do qual sairiam talentos para as artes, os negócios e o esporte — dentre os quais os pioneiros do voo livre no Rio.

    Havia também os que se perderiam pelo caminho, como um herdeiro de tradicional família do Parque Guinle. Querido por todos, bonito e inteligente, ele se envolvera com tráfico de drogas e acabara ligando-se a uma perigosa quadrilha de estelionatários. Sua trajetória impressionara João, mas ele não se surpreendeu quando soube que o amigo fora achado morto por overdose de cocaína. Era um filme pesado chegando ao seu final óbvio.

    Desde que testemunhara o histórico show da banda inglesa Genesis no Maracanãzinho, em 1977, João estava cada vez mais voltado para a música. Começou a aprender cavaquinho junto com o irmão André, que se especializava rapidamente no chorinho, enquanto ele insistia em tentar extrair rock’n’roll do delicado instrumento. Quando conheceu o violonista Alexandre Quental, irmão da cantora Dulce Quental, ambos excelentes intérpretes de rock, compreendeu que Pink Floyd não podia ser tocado em cavaquinho. Para alívio dos fãs de Brasileirinho, comprou um violão.

    E assistiu da primeira fila à revolução do pop-rock brasileiro, que até então se resumia aos furacões Rita Lee e Raul Seixas. Viu Lulu Santos surgir em 1982 num pequeno palco da boate Papagaio, de Ricardo Amaral, cantando Tempos modernos (Vamos viver tudo o que há pra viver, vamos nos permitir...). A vida na rua prometia tudo sob o sol. Mas o tempo em casa fechava rapidamente.

    Seu pai tinha perdido um pulmão para o cigarro (Hollywood sem filtro, dois maços por dia) e, antes disso, começara a perder algo mais vital: sua vontade de se divertir e divertir os outros. Uma combinação de circunstâncias, tendo à frente o crescimento dos filhos e sua ociosidade como capitão da bagunça, apagara aquele João Estrella carismático, romântico e sarcástico. A depressão foi ganhando terreno, combinada com um enfisema no pulmão que escapara do câncer. Ele se tratou, voltou a dar expediente no banco, mas seu velho ânimo para o trabalho não voltaria com ele. Retornava cada vez mais cedo para casa, de onde não saía mais.

    Na contramão dele, João Guilherme quase não parava em casa. Se não estava em Petrópolis, em Angra dos Reis ou na Bahia, chegava e saía rapidamente, às vezes só para trocar de roupa. Seu quarto ficava colado ao dos pais, na ala frontal do segundo andar, e num desses encontros a jato no corredor João Estrella colheu-o com um abraço silencioso. Surpreendido, sentiu o pai, com lágrimas nos olhos, segurá-lo com força. Por alguns instantes, parecia querer ter o filho de novo para si. Com a voz embargada, pondo de lado o orgulho e o protocolo, conseguiu dirigir algumas palavras a João Guilherme, basicamente dizendo que estava tudo muito difícil para ele. Era o pai, enfim, pedindo ajuda. Mas o filho não estava preparado para corresponder. Esperou o abraço afrouxar e fugiu.

    A vida não podia esperar. Desde que vira a performance de Lulu Santos, desenhara-se para ele pela primeira vez a figura do showman brasileiro. Passou a trabalhar tecnicamente sua voz grave e sonora, e a derramar no papel a expressão poética que lhe ocorria desde menino. Como vocalista e letrista, encaixou-se com perfeição numa banda formada pelo irmão André (que trocara o cavaquinho pela guitarra), pelo baixista Rodrigo Santos (que mais tarde integraria o Barão Vermelho) e pelo ator Marcelo Serrado (gaita e vocal de apoio). Era o Prisma — citação ao símbolo do antológico disco The dark side of the moon, do Pink Floyd —, que estrearia no Teatro Galeria em 1984, ano da morte de João Estrella.

    A atmosfera musical não evitaria que, nos dois anos anteriores, a casa número 13 do Parque Residencial Jardim Botânico vivesse também seu filme pesado — com final razoavelmente previsível. O funcionário exemplar do Banco Nacional decidira se aposentar, confinara-se em casa e logo se restringiria ao raio do seu próprio quarto. A doença separara-o de Maria Luiza, que fora morar com a mãe. Alérgico ao vazio e ao desalento, João Guilherme recolonizou o espaço à sua maneira. Promovia rodadas de pôquer na sala de jantar madrugada adentro, liberando a maconha e qualquer outra droga que os visitantes quisessem consumir.

    O clima de cassino e a ausência total de censura foram transformando o primeiro andar de sua casa numa espécie de território livre. O portão passara a ficar aberto e ninguém precisava mais se anunciar. Gente de todo tipo batia ponto lá, dos amigos de fé aos parasitas absolutos. Havia sempre música e fumaça no ar. Ainda que involuntariamente, o demolidor do status quo deixava ali, mais uma vez, sua inconfundível assinatura — agora em seu próprio quintal.

    Embora ainda preferisse fumar maconha, João já tinha experimentado cocaína. Achava a maior graça nos versos malditos de Jackson Browne que descobrira num disco, com a gravação de narizes fungando ao fundo e uma curiosa submissão do sexo ao vício:

    You take Sally and I’ll take Sue/ There is no difference between the two:/ Cocaine/ Running ’round my brain (Você fica com a Sally, eu com a Sue/ Não há diferença entre as duas:/ Cocaína/ Correndo pelo meu cérebro).

    Achava incrível como um manifesto daquele pudesse ter sido gravado e comercializado sem repressão. Antes de tomar gosto pelos efeitos do pó branco, encantara-se com a

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