O Homem da areia
By E. T. A. Hoffmann and Fernando Sabino
4/5
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Aclamado como um dos mais expressivos novelistas alemães, Hoffmann influenciou uma série de grandes escritores com suas histórias de terror e mistério – de Baudelaire, Maupassant, Poe e Dostoievski a Álvares de Azevedo e Fagundes Varella, para citar dois brasileiros –, graças a um "poder de imaginação que o levava às fronteiras da clarividência", conforme destaca Fernando Sabino no texto de apresentação do livro. De fato, seu "senso do grotesco, do mórbido, do fantástico, do sobrenatural – e sua extraordinária intuição ao penetrar nos domínios do subconsciente, como verdadeiro precursor das explorações da moderna psicologia", novamente nas palavras de Sabino, garantiram ao escritor lugar de destaque na literatura universal.
O homem da areia reúne as principais características da obra de E. T. A. Hoffmann. Nesta novela, publicada em 1817, o autor apresenta o jovem Natanael por meio de cartas escritas ao amigo Lothar, irmão de sua noiva Clara. Perturbado por uma visita inesperada que o remete a uma sinistra lembrança de infância e provoca nele os mais inquietantes pressentimentos, Natanael conta em suas cartas a história do Homem da Areia, segundo a família do menino um homem perverso que jogava areia nos olhos das crianças para depois arrancá-los e comê-los, quando elas não queriam dormir. Mergulhando o protagonista numa espiral de medo, tensão e loucura que o leva ao manicômio, Hoffmann conduz a trama para um desfecho assustador e surpreendente.
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O Homem da areia - E. T. A. Hoffmann
AREIA
Natanael para Lothar
Vocês devem estar bem preocupados, pois não lhes escrevo há muito tempo. Minha mãe deve estar zangada. Clara deve estar pensando que vivo num turbilhão de prazeres e que esqueci inteiramente sua figura angelical e doce, impressa de forma profunda em meu coração e em minha mente.
Mas não é nada disso. Todos os dias, a cada hora, penso em vocês e a encantadora figura de Clara aparece e torna a aparecer em meus devaneios. Seus olhos límpidos sorriem para mim com tanta graça quanto antigamente, assim que eu entrava em casa. Mas como poderia lhes escrever com esta violenta perturbação de espírito que me destrói a mente?
Uma coisa horrível aconteceu comigo! Pressentimentos inquietantes, terríveis, ameaçadores, passam-me pela cabeça como nuvens negras no temporal, impenetráveis aos raios alegres da amizade. Você me pede que lhe conte o que me aconteceu. É necessário que eu conte, bem sei. Mas só de pensar nisso começo a rir como demente. Ah, meu querido Lothar! Como conseguiria fazer você entender, apenas um pouquinho, que o acontecido há poucos dias pode complicar terrivelmente a minha vida?
Se – pelo menos – você estivesse aqui, poderia ver com seus próprios olhos. Mas, tenho certeza, vai pensar que sou um louco visionário. Para ser breve: a pavorosa visão que tive, e cuja fatal influência tento em vão descartar, consiste simplesmente em ter visto – no dia 30 de outubro, ao meio-dia – um vendedor de barômetros, que entrou em meu quarto e me ofereceu seus instrumentos. Além de não ter comprado nada, ameacei jogá-lo pelas escadas abaixo, no que partiu bem depressa.
Você pode imaginar: unicamente circunstâncias muito particulares – e que me marcaram bem lá por dentro – poderiam ter feito com que esse pequeno acontecimento tenha se tornado importante. O que é verdade. Estou juntando todas as forças para lhe contar, com calma e paciência, alguns fatos da minha infância que lhe esclarecerão tudo.
Agora, ao começar a narrativa, posso ouvir você rindo e Clara dizendo:
Isto é criancice!
Pode rir, eu lhe peço. Pode debochar de mim, eu lhe peço. Mas Deus do céu!... meus cabelos ficam de pé e tenho a impressão de que se suplico a você para debochar de mim é porque estou em crise de desespero, de loucura, igual à de Franz Moor ao suplicar a Daniel[1]. Mas vamos aos fatos.
Fora da hora das refeições, quase não víamos papai, sempre muito ocupado com seu trabalho. Depois do jantar, servido às sete horas, à moda antiga, íamos com mamãe ao gabinete de papai e nos sentávamos em volta da mesa redonda.
Papai fumava, enquanto bebia grandes copos de cerveja. Às vezes, contava histórias maravilhosas, ficando tão distraído que o cachimbo se extinguia. Cabia a mim a tarefa de acendê-lo com um pedaço de papel, o que me divertia bastante. Outras vezes, nos dava livros ilustrados, permanecendo imóvel e silencioso em sua poltrona, soprando nuvens espessas de fumo, que nos envolviam como nevoeiro. Nestas noites, mamãe ficava muito triste e às nove horas em ponto nos dizia:
– Vamos para a cama, crianças. O Homem da Areia está chegando, posso ouvir seus passos.
Realmente, eu também escutava aquele passo lento, arrastado, subir os degraus. Era o Homem da Areia. Certa vez, o barulho me amedrontou demais e perguntei a mamãe, que nos acompanhava:
– Mamãe, quem é esse Homem da Areia que sempre nos separa do papai? Como é que ele é?
– Meu querido, não existe nenhum Homem da Areia – respondeu mamãe. – Quando eu digo o Homem da Areia está chegando, quero dizer apenas que vocês estão com sono sem conseguir mais ficar com os olhos abertos, como se tivessem jogado areia em seus olhos.
A resposta não me deixou satisfeito. Pouco a pouco, minha imaginação de criança me fez acreditar que mamãe nos dizia aquilo para não ficarmos amedrontados, pois eu