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Às quatro em ponto tem início o saimento [...] O velho Antunes acompanha, com a mão direita
pelo caixão. Faz força para caminhar ereto e com passadas firmes. Sente-se exausto mas feliz.
Seu sonho de tantos anos finalmente se realiza; já pode morrer em paz.
O caixão está enterrado. Dentro dele estão um paletó e um par de sapatos do Roberto. Seu
corpo nunca foi encontrado.
No recesso do gabinete ela disse tudo. Não conseguiu parar de falar. Mostrou os hematomas nos braços e nos
tornozelos, falou das palmadas, dos choques nos seios e na vagina, da ameaça de estupro, da simulação de
fuzilamento, dos afogamentos, dos onze dias na solitária.
Por fim falou da advertência do torturador. Disse que para lá não voltava, preferia morrer. Se a levarem de volta
se mata, se atira pela primeira janela; se não tiver janela, se mata batendo a cabeça na parede; se não tiver
parede, corta os pulsos; se não tiver com que cortar; morde com os dentes; se não der certo, faz greve de fome
até morrer.
Juiz, procurador e advogado negociaram longamente. Por fim, o juiz emitiu um alvará, ordenando que ela seja
transferida para o presídio feminino. Não voltará ao Dops. Assinou na frente de todos. Só então ela se acalmou
e concordou em ser conduzida para o camburão.
De novo está só no camburão. Percebe que é o mesmo que a trouxe e se inquieta. Passa a observar o trajeto
pela grade de ventilação. Vê, aterrorizada, entrarem pelo mesmo portão através do qual haviam saído para o
tribunal.
O camburão para, a porta se abre.
O torturador diz, sorrindo:
- Eu disse que você ia voltar pra mim, não disse?
Vem, benzinho, vamos brincar um pouco.
Ele a agarra pelas canelas e a arrasta para fora.
Os outros em volta riem.
Joana era jovem quando assassinaram Raimundo. Eu não a conheci nesta época. Dizem que
era muito bonita e nunca quis outro homem. Sim, pensando bem, acho que essa é sobretudo
uma história de amor, um desses amores intensos quem nem o tempo nem a ditadura
conseguiram extinguir.
Toda realidade (social) produz, automaticamente, uma espécie de “universo paralelo”: o
acervo de experiências não incluídas nas práticas falantes. Experiências loucas, desviantes,
proscritas ou simplesmente doentias. Pois mesmo aquilo que temos de mais singular, o modo
de cada um padecer e adoecer, nem sempre pertence a nós.
Nesse “universo paralelo” [...] vivem também, pelo menos parcialmente, os que tiveram seus
um resto que ela deixa de dizer. O recorte que a linguagem opera sobre o real, pela própria
definição de recorte, deixa um resto – resto de gozo, resto de pulsão – sempre por simbolizar.
“Leve um homem e um boi ao matadouro; aquele que berrar é o homem. Mesmo que seja o
“Morte, vela, sentinela sou/ do corpo desse meu irmão que já se foi [...]” (Milton Nascimento)
A necessidade da difusão da “cultura do medo” auxiliou no estabelecimento de critérios para a
TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir. O que resta da ditadura: a exceção brasileira. – São Paulo:
Boitempo, 2010.