Primeira edição de “Os Sertões”, de Euclides da Cunha.
Romance sem ficção – “Consórcio entre Ciência e Arte”.
• A narrativa do jornalista Euclides da Cunha sobre o triste evento conhecido como “Insurreição de Canudos”, no qual brasileiros mataram brasileiros em “uma hecatombe”, segundo o próprio autor, é delimitada pela objetividade, mormente influenciada pelo preciosismo “cientificista-positivista” que marcou, ora mais, ora menos acentuado, as composições literárias do final do século XIX. • “Os Sertões” é um romance caracterizado pelo tom enciclopédico dado às descrições do ambiente e do sertanejo, marcado por certo juízo valorativo advindo das teorias raciais da época, explicitamente posto por Euclides, quando, em nota preliminar da segunda edição, destaca que um dos objetivos primários do livro era esboçar “os traços atuais mais expressivos das sub-raças sertanejas do Brasil”. • Apesar de a narrativa estar a serviço da verdade, as incursões feitas por meio da linguagem literária, de forma esmerada e extremamente adornada, alicerçadas pela estrutura narrativa típica do romance, conseguem captar a ambiência do conflito de forma profícua, para além da descrição pura caso o autor optasse por manter o discurso frio e frívolo de um mero noticiário. • Ressalta-se a necessidade e o esforço do autor em “descobrir o Brasil”, o que justifica em grande parte a objetividade científica, e em inscrever sua obra na historiografia brasileira. • O enredo divide-se em três partes essenciais: “A Terra”, “O Homem” e “A Luta”. Essa divisão não se dá por acaso: para entender o homem, primeiro é necessário entender o meio, para depois entender o momento; uma clara aplicação da lógica determinista à narração. A Terra “É uma paragem impressionadora. As condições estruturais da terra lá se vincularam à violência máxima dos agentes exteriores para o desenho de relevos estupendos. O regime torrencial dos climas excessivos, sobrevindo, de súbito, depois das insolações demoradas, e embatendo naqueles pendores, expôs há muito, arrebatando-lhes para longe todos os elementos degradados, as séries mais antigas daqueles últimos rebentos das montanhas: todas as variedades cristalinas, e os quartzitos ásperos, e as filades e calcários, revezando-se ou entrelaçando-se, repontando duramente a cada passo, mal cobertos por uma flora tolhiça - dispondo-se em cenários em que ressalta, predominante, o aspecto atormentado das paisagens”. O Homem “O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral. A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas. É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gingante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente. A pé, quando parado, recosta-se invariavelmente ao primeiro umbral ou parede que encontra; a cavalo, se sofreia o animal para trocar duas palavras com um conhecido, cai logo sobre um dos estribos, descansando sobre a espenda da sela. Caminhando, mesmo a passo rápido, não traça trajetória retilínea e firme. Avança celeremente, num bambolear característico, de que parecem ser o traço geométrico os meandros das trilhas sertanejas. Esse na marcha estaca pelo motivo mais vulgar, para enrolar um cigarro, bater o isqueiro, ou travar ligeira conversa com um amigo, cai logo -- cai é o termo -- de cócoras, atravessando largo tempo numa posição de equilíbrio instável, em que todo o seu corpo fica suspenso pelos dedos grandes dos pés, sentado sobre os calcanhares, com uma simplicidade a um tempo ridícula e adorável. É o homem permanentemente fatigado”. A Luta “Estava conquistada a montanha após três horas de conflito. A vitória, porém, resultava da coragem cega junta à mais completa indisciplina de fogo -- e compreende-se que mais tarde a ordem do dia relativa ao feito desse preeminente lugar as praças graduadas. Os seus cabos de guerras foram os cabos de esquadra. Sobre os jagunços em fuga confluíram cargas em desordem: soldados em grupos, turbas sem comando, disparando à toa as carabinas, num fanfarrear irritante e numa alacridade feroz de monteiros no último lance de uma batida a javardos. Os jagunços escapavam-se-lhes adiante. Perseguiram-nos. A artilharia, embaixo, começou a rodar, puxada a pulso, pelas ladeiras acima”. Sobre a queda de Canudos “Tinha-se neste momento a impressão de uma entrada em velha necrópole que surgisse, desvendando-se de repente, à flor da terra. ... Dizia-os, mais expressiva, a nudez dos cadáveres. Estavam em todas as posições: estendidos, de supino, face para os céus; desnudos os peitos, onde se viam os bentinhos prediletos, inflexos no último crispar da agonia; mal vistos, às vezes, caídos sob madeiramentos, ou de bruços sobre as trincheiras improvisadas, na atitude de combate em que os colhera a morte”. Sobre a morte de Conselheiro “Jazia num dos casebres anexos à latada, e foi encontrado graças à indicação de um prisioneiro. Removida breve camada de terra, apareceu no triste sudário de um lençol imundo, em que mãos piedosas haviam desparzido algumas flores murchas, e repousando sobre uma esteira velha, de tábua, o corpo do “famigerado e bárbaro” agitador. Estava hediondo. Envolto no velho hábito azul de brim americano, mãos cruzadas ao peito, rosto tumefato, e esquálido, olhos fundos cheiros de terra – mal o reconheceram os que mais de perto o haviam tratado durante a vida”. Rio de Janeiro no final do século XIX. Avenida Central, atual Avenida Rio Branco. Vista parcial do arraial de Canudos em 1897. Flávio de Barros/Acervo Museu da República. Morador de Canudos/Belo Monte em 1897.Flávio de Barros/Arquivo da Biblioteca Nacional. Imagem: membros do 12º Batalhão da Infantaria na trincheira. Flávio de Barros/Acervo Museu da República. Arraial de Canudos incendiado (1897). Flávio de Barros/Acervo do Museu da República. Mulheres e crianças prisioneiras do Exército em Canudos, um dos poucos grupos que tiveram a vida poupada. Por Flávio de Barros/Acervo Museu da República. Cadáveres nas ruínas de Canudos. Flávio de Barros/Acervo Museu da República Escombros da Igreja do Bom Jesus, localizada no Arraial de Canudos (1897). Flávio de Barros. Conselheirista prisioneiro do exército, provavelmente pouco antes de ser degolado. Fotografia de Flávio de Barros Cadáver de Antônio Conselheiro. Fotografia de Flávio de Barros. Parque estadual de Canudos; Canudos/BA. Google Imagens Ruínas de Canudos (2013). Google Imagens O medo dá origem ao mal O homem coletivo sente a necessidade de lutar O orgulho, a arrogância, a glória Enchem a imaginação de domínio São demônios os que destroem o poder bravio da humanidade.