As etnociências sempre incluem nas suas ações o conceito de multidisciplinaridade de ações acadêmicas, no sentido de gerar retorno às comunidades de onde partiu o conhecimento vivenciando sobre o determinado assunto.
A etnobotânica visa as questões relativas ao
uso e manejo dos recursos vegetais quanto a sua percepção e classificação pelas populações locais. A etnobiologia é uma disciplina voltada ao estudo, no mais amplo dos sentidos, do complexo conjunto de relações de plantas e animais com sociedades humanas do presente e passado (Berlin, 1992).
Dentre as ramificações da etnobiologia tem-se a
etnobotânica, que pode ser definida como o estudo das relações entre povos e plantas (Balick e Cox, 1996).
Este termo foi usad pela 1a vez em 1895, por
biólogos europeus, para designar o estudo do uso das plantas por aborígenas ou nativos. Etnobotânica é a ciência que analisa, estuda e interpreta a história e a relação das plantas nas socidades antigas e atuais, abordando a forma como diferentes grupos humanos interagem com a vegetação e preservando sua cultura e conhecimento tradicional, envolvendo profissionais da ecologia, botânica, antropologia, história, etc, tendo uma importância crítica para as populações regionais no que toca à exploração e manejo de recursos para a obtenção de remédios, alimentos e matérias-primas para a sobrevivência. A fonte de difusão e aplicação da medicina popular, em especial da fitoterapia, encontra-se no interior brasileiro, onde frequentemente a única medicina existente é a exercida pelos curandeiros, as curiosas e as benzedeiras.
Obs.:Dos 3950 municípios do Brasil, 1895 não
possuem médicos e enfermeiros, 2191 não têm hospitais (estimado). Ferro, 2006
A difusão desta medicina ocorre também nas
grandes cidades, entre os detentores deste saber popular, onde existem feiras, mateiros, raizeiros ou nas poucas lojas especializadas (ervanarias). . Obs.: muitos comerciantes populares de ervas são pouco confiáveis quanto à identificação adequada das plantas e indicação, colocando em risco a confiabilidade da fitoterapia.
Etnofarmacologia
Um ramo da Etnobiologia e da Etnobotânica é a
etnofarmacologia, que trata de práticas médicas, especialmente remédios, usados em sistemas tradicionais de medicina A etnofarmacologia também pode ser definida como “a exploração científica interdisciplinar dos agentes biologicamente ativos, tradicionalmente empregados ou observados pelo homem” (Bruhn e Holmsted, 1982).
Como estratégia para investigação de plantas
medicinais, a abordagem etnofarmacológica consiste em combinar informações adquiridas junto a comunidades locais que fazem uso da flora medicinal com estudos químicos/farmacológicos realizados em laboratórios especializados. Dentre as 119 substâncias obtidas de 90 espécies de plantas diferentes que são usadas como fármacos, 77% foram obtidas como resultados de estudo etnomédico e ainda são usadas de forma bastante semelhante ao uso original (Farnsworth et al, 1995; Cordell, 2000). O método etnofarmacológico permite a formulação de hipóteses quanto à(s) atividade(s) farmacológica(s) e à(s) substância(s) ativa(s) responsáveis pelas ações terapêuticas relatadas pelas populações usuárias (Elisabetsky, 1987).
A seleção de espécies vegetais para pesquisa e
desenvolvimento (P & D) baseada na alegação de um dado efeito terapêutico em humanos pode se constituir num valioso atalho para a descoberta de fármacos, já que seu uso tradicional pode ser encarado como uma pré-triagem quant à utilidade terapêutica em humanos. Cultura popular versus ciência
O que torna o conhecimento tradicional de interesse
para a ciência é que se trata do relato verbal da observação sistemática de fenômenos biológicos feito por pessoas “não cientistas”.
A ausência de educação e cultura formais não é
sinônimo de ausência de conhecimento; de fato somos todos ignorantes quanto à culturas que não conhecemos.
Ex: Programa Farmácias Vivas (UFCE) e adotado no
sistema público de saúde de Fortaleza. O estudo etnofarmacológico envolve os seguintes passos:
1.Coleta a análise de dados etnofarmacológicos
2. Identificação botânica (depósito de material-testemunha em herbário) 3. Pesquisa bibliográfica em bancos de dados de química e biologia em geral, e de plantas medicinais em particular (ex.: Chemical Abstracts, Biologica Abstracts, Index Medicus, IPA, NAPRALERT) 4. Análise química preliminar para detectar as classes de compostos presentes na parte da planta usada medicinalmente e na própria preparação tradicional ( a interpretação do significado químico de modo de preparo popular é útil na definição de marchas fitoquímicas para a 5. Estudo farmacológico preliminar do(s) extrato(s) em modelos experimentais relevantes relacionados à(s) ações sugeriadas na análise da informação popular. 6. Fracionamento químico por métodos diversos com base nos resultados das análises farmacológicas; as frações de interesse são mais profundamente estudadas com uso de técnicas analíticas. 7. Estudo farmacológico abrangente e toxicologia pré-clínica de fraçòes padronizadas (e/ou compostos isolados) com objetivo de subsidiar os estudos clínicos (comitê de ética) 8. Elucidação das estruturas químicas das Historicamente a região amazônica tem sido ocupada por diversos grupos indígenas e por caboclos, um grupo que resultou da miscigenação de índios com os primeiros colonos portugueses e mais tarde com nordestinos de descendência africana. Daí também surgiram os curandeiros (agentes tradicionais de saúde: benzedeiras – melhoras por meio de rezas; puxadoras ou massagistas – distúrbios músculo-esqueléticos; raizeiros ou ervateiros, especialistas em plantas medicinais; parteiras e pajés – xamãs indígenas). As causas das doenças mais relatadas por caboclos são choques de temperatura (do corpo), correntes de ar, ingestão de comidas, textura do sangue, flechadas de bicho (entidades malignas que vivem na mata), quebranto ou mau- olhado, feitiçaria, espíritos ou sombras (de pessoas mortas) Ex.: Mal-de-guta: um pescador que sofre deste mal não pode pescar só, pois se tiver um ataque, perde os sentidos e morrerá afogado. Durante o ataque da doença os membros se movem ritmicamente (como ondas de águas agitadas) e sai espuma da boca, tal como espumas das ondas do mar.
Estes dados etnofarmacológicos levaram à hipótese de que
o mau-de-guta seja um distúrbio epiléptico com convulsões generalizadas. Identificou-se uma receita indicada para o mau (sumo das folhas frascas de cipó-pucá – Cissus sicyoides, de arruda - Ruta graveolens, da catinga de mulata Aeolanthus suaveolens e uma colher de gergelim preto. Filtrar e ingerir). Esta receita , bem como as plantas individualmente foram analisadas quanto a presença de compostos anticonvulsivantes, resultando na identificação de lactonas com tal ação, que corroboram o uso popular (Elisabetsky et al, 1995) Ex.: Uso de placenta seca de ovelhas na prática de parteiras nigerianas. Após experimentos com preparações de placenta seca conclui-se que contém substância coriônica oxitócica (contrações uterinas).
A comparação de resultados obtidos com coleta de plantas
ao acaso ou quimiotaxonomicamente orientadas com aquelas obtidas com base no uso em medicina popular tem gerado dados que demonstram que o conhecimento tradicional é indicativo de spécies que acumulam compostos bioativos.
Analisando compostos com potencial anticancerígeno Spjut
(1976) verificaram que aporcentagem de gêneros e/ou espécies vegetais ativas citadas em compêndios de plantas medicinais é cerca do dobro daquelas de triagem ao acaso. Vlietinck e Berghe (1991) relataram que a seleção de plantas com atividade antiviral baseada no uso tradicional mostrou uma porcentagem 5 vezes maior de substâncias ativas. A criação de instrumentos legais, no âmbito nacional e internacional, para a proteção dos conhecimentos e tradições das comunidades locais e indígenas é um aspectos que tem merecido maior atenção no contexto da implementaçào da Convenção da Biodiversidade, firmada no Rio de Janeiro em junho de 1992.
O respeito ao meio ambiente e ao estilo tradicional de vida de
comunidades são essenciais ao desenvolvimento sustentável e manutenção da biodiversidade do planeta.
O valor comercial decorrente da exploraçào acadêmica e
industrial de tais conhecimentos é imensurável, o que aumenta a responsabilidade de todos no manejo de informações etnofarmacológicas. Comissão de Etnobotânica da Sociedade Botânica do Brasil (CEB/SBB)