Documenti di Didattica
Documenti di Professioni
Documenti di Cultura
Didier Bloch
Abril de 2008
Índice
Resumo 5
Siglas 7
Introdução 9
Contextualização 14
• O peso e a diversidade da agricultura familiar brasileira 14
• De que agricultores familiares estamos falando aqui? 16
• Alguns elementos da economia da agricultura familiar nordestina 19
• Políticas públicas para a agricultura familiar 20
• O contexto nacional e internacional: fatores favoráveis e desfavoráveis 23
• As polarizações brasileiras 25
• A produção agroecológica 44
• Um ambiente favorável para a produção agroecológica 48
• Avanços e dificuldades na produção agroecológica 51
• Lições para a sustentabilidade 56
Conclusão 172
Anexo 189
Essas três iniciativas fornecem a base empírica para discutir três modos de comercialização da
produção agroecológica: o mercado local (feiras); o mercado institucional (a compra direta pelo
governo) e o mercado justo internacional, com ou sem certificação orgânica.
Uma das principais constatações do estudo é de que em todas as etapas existem sérias
dificuldades. Apesar desses empecilhos, as três iniciativas mostram que é possível falar em
viabilidade da produção agroecológica e da sua comercialização, no âmbito de experiências
localizadas (grupos de produtores familiares ou de assentamentos). Sua viabilidade em escala
maior fica, porém, na dependência de políticas públicas ainda incipientes e que, apesar da
presença de forças favoráveis à agroecologia em instâncias governamentais, permanecem
minoritárias.
AAOEV Associação dos Agricultores Agroecológicos Oeste Verde (no Rio Grande do Norte)
ADEC Associação de Desenvolvimento Cultural (de Tauá)
AMTR Associação das Mulheres Trabalhadoras Rurais de Lago do Junco e Lago do Rodrigues (MA)
AMTR Associação de Mulheres Trabalhadoras Rurais (no Maranhão)
ANA Articulação Nacional de Agroecologia
ASA Articulação no Semi-Árido
ASSEMA Associação em Áreas de Assentamento no Estado do Maranhão
ATES Assessoria Técnica, Social e Ambiental (para assentamentos da reforma agrária)
BSC Bases de Serviço de Comercialização (no SECAFES)
CEB Comunidade Eclesial de Base
CMDR Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural
CONAB Companhia Nacional de Abastecimento
COOPAESP Cooperativa dos Pequenos Produtores Agroextrativistas de Esperantinópolis (Maranhão)
COPPALJ Cooperativa dos Pequenos Produtores Agroextrativistas de Lago do Junco (Maranhão)
EES Empreendimento Econômico Solidário (no SECAFES)
EFR Empreendimento Familiar Rural (no SECAFES)
EMATER Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (do Governo Federal)
GAM Grupo Agroecologia e Mercado (vários municípios do sertão cearense)
GCO Grupos de Consumidores Organizados (no SECAFES)
GIPAF Grupo de Interesse em Pesquisa para Agricultura Familiar
IBD Instituto Biodinâmico
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas
INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
MAPA Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento
MDA Ministério do Desenvolvimento Agrário
Ainda são poucas as ONGs que resolveram desbravar esse universo complexo e fazer da
comercialização um eixo prioritário de seu trabalho. Essa situação pode mudar rapidamente
como atesta, por exemplo, o número cada vez maior de discussões vinculando economia
solidária com agricultura familiar e agroecologia. O que fala mais alto aqui é a força da
necessidade: a comercialização é um assunto incontornável e muitas perguntas permanecem
sem respostas satisfatórias. Onde vender os excedentes das culturas de subsistência? Como lidar
com os “atravessadores”? De que maneira introduzir novas culturas de renda? Criar um
mercado local diferenciado para a produção orgânica é sempre possível? Vale a pena procurar
outros mercados mais distantes? O comércio justo é uma opção viável para todos? Até que ponto
é possível atuar fora da economia capitalista?
As três experiências visitadas fazem parte do Programa Meios de Vida Sustentáveis (PMVS) da
OXFAM-GB no Brasil, que apoiou essas e outras iniciativas na região semi-árida do Nordeste do
Brasil entre os anos 2000 e 2007. O texto é produto da sistematização dessas três experiências,
do diálogo com os responsáveis pelo PMVS na Oxfam e de consultas da literatura. Pedimos
também aos responsáveis pelas três iniciativas em foco uma revisão das informações que lhes
dizem respeito. Além disso, é preciso agradecer a Guillermo Gamarra, que dedicou parte de seu
Estrutura do texto
O estudo oferece um amplo panorama que sistematiza a prática em suas etapas sucessivas –
produção, transformação, comercialização, difusão das experiências – e levanta questões, por
vezes polêmicas, ultrapassando o estrito âmbito das três experiências. Os boxes inseridos no
texto principal fornecem informações complementares e sintetizam teorias suscetíveis de
alimentar a reflexão. Em diversos momentos, o autor toma também deliberadamente partido,
com o intuito de provocar debates sobre questões ainda insuficientemente discutidas.
Depois de tratar da agricultura familiar em geral, a primeira parte apresenta rapidamente as três
experiências sistematizadas e, nesta base, inicia a discussão sobre a produção agroecológica e
seu eventual beneficiamento ou processamento.
O caminho fica então aberto para, na segunda parte, abordar efetivamente o acesso aos
mercados, focando mais especificamente três dentre eles: orgânico, institucional e justo. A
prática da comercialização mostra que, quem ambiciona “vender sem se vender”, deve sempre
levar em consideração as duras realidades econômicas e procurar equilibrá-las com aspectos
políticos, sociais e ambientais. Nesta segunda parte, são também destacados dois grandes
temas: os desafios organizacionais da comercialização e as relações entre gênero e mercado.
A terceira e última parte amplia a reflexão além do âmbito local e atual, indagando sobre o futuro
dos jovens agricultores, a expansão das iniciativas agroecológicas e as conquistas políticas. O
destaque é a atual tentativa de construção de políticas públicas na confluência da agricultura
familiar, agroecologia e economia solidária.
É comum dividir a agricultura brasileira em dois segmentos opostos. Por um lado, a agricultura
“patronal” ou “empresarial”. Por outro, a agricultura familiar, onde “a propriedade, a gestão e a
maior parte do trabalho vêm de pessoas que mantêm entre si vínculos de sangue ou de
casamento”3. Feito esse recorte, um estudo da Universidade de São Paulo mostrou que:
O mesmo estudo destaca também o fato de que a agricultura familiar representa “a base de
importantes cadeias de produtos protéicos de origem animal”, sendo até majoritária no caso dos
suínos (59% do PIB da cadeia), do leite (56%) e das aves (51%). É preciso ainda destacar que a
agricultura familiar, apesar de possuir apenas 30% das terras, ocupa 75% da população agrícola
ativa e produz 60% dos alimentos consumidos no país. Ou seja, é equivocada a imagem “de uma
agricultura familiar descrita como um setor pouco produtivo, limitado ao abastecimento do
mercado local.5”
Esse retrato corresponde parcialmente à realidade. Mais da metade dos 4,14 milhões de
estabelecimentos familiares brasileiros, “os 2,8 milhões correspondentes aos segmentos mais
pobres, produzem apenas 7,7% do valor bruto da produção agropecuária”7. Além disso, “de fato,
os agricultores familiares do Sul concentram metade dos créditos destinados à agricultura
familiar do país, 47% dos agricultores familiares do Sul utilizam assistência, e somente 2,7% no
Nordeste”. Mas, para Sabourin, esta tripla dicotomia (patronal/familiar, moderna/tradicional,
Sul/Norte), por demais caricatural, esconde uma realidade muito mais heterogênea.
Além do mais, para esse mesmo autor, quando se trata de agricultura familiar é preciso examinar
os números com muito cuidado, já que “as estatísticas oficiais e os estudos de cadeia não levam
em conta o papel do autoconsumo e da redistribuição não monetária e não mercantil na
consolidação da segurança alimentar”. Essa visão, limitada ao mercado capitalista de grande
É preciso ressaltar, porém, que, diferentemente do Sul do Brasil, são muito poucas as
cooperativas rurais econômica e politicamente bem sucedidas na região Nordeste. Assim, a
COPPALJ, cooperativa de óleo de babaçu de Lago do Junco, no Maranhão, e a ADEC,
associação de comercialização do algodão orgânico de Tauá, no sertão do Ceará – duas das três
experiências aqui focadas – podem ser consideradas como exceções na região Nordeste. Ao
contrário, a terceira experiência, no Rio Grande do Norte, aproveita e reformula uma tradição
muito antiga na região, que é a feira local.
No Estado do Rio Grande do Norte, como em todo o Brasil, a quase totalidade do fumo é
produzida pela agricultura familiar “integrada” à agroindústria. No Rio Umari, na área de
atuação da Diaconia, cerca de cem famílias estão produzindo fumo para uma grande empresa, a
Souza Cruz, que exige contratos de três anos, financia o sistema de irrigação, fornece as
sementes e compra a totalidade da produção. Mesmo assim, segundo a equipe da Diaconia,
“muita gente está querendo sair do fumo e vem buscar nossa assistência técnica.” A razão é
sanitária – pois muita gente ficou doente com as altas quantidades de veneno usadas no plantio –
mas é também econômica. Por um lado, o fumo tem altos custos: o equipamento de irrigação
custa 18 mil reais, é preciso contratar muita mão-de-obra, os insumos são caros, e as bombas
gastam muita energia elétrica. Por outro lado, o preço do fumo depende da sua qualidade,
determinada pela própria Souza Cruz.
Lázaro, que já cultivou 2,5 hectares de fumo irrigado durante oito anos, diz que não compensa
mais:
“Antes um quilo de fumo pagava uma diária. Hoje a diária custa 15 reais, e o quilo de
fumo nove reais.”
Graças à assistência técnica da Diaconia, numa área menor, Lázaro ganha mais plantando
hortaliças e frutas. Com um kit de irrigação mais simples, mão-de-obra exclusivamente familiar
e custos muito mais baixos, consegue receitas da ordem de mil reais mensais vendendo nas
feiras. Ou seja, o novo negócio é mais saudável, mais simples e mais rentável que o fumo.
Para Ricardo Abramovay, a integração pode até ainda oferecer vantagens econômicas, mas é
social, ambiental e até eticamente pouco sustentável.
John Wilkinson, especialista em mercados agrícolas, observa por sua vez que, se a integração
vertical da agricultura familiar com o “agronegócio” permanece crucial, ela vai perdendo sua
força..
§As atividades extrativistas (madeira, pedras, coco babaçu...) para uso da família e
geração de renda.
§As migrações sazonais durante o verão seco, em direção às áreas urbanas (serviços
domésticos para as mulheres, serviços pouco qualificados para os homens) ou rurais
(fruticultura irrigada, por exemplo).
Outro elemento essencial na economia familiar nordestina são os “anos ruins” de seca no sertão.
São anos (e, por vezes, vários anos seguidos) em que as chuvas de inverno são insuficientes ou
“Nos anos de chuva regular, os pequenos produtores, rendeiros e parceiros produzem mas
não conseguem acumular. Descapitalizados ao final de cada ciclo produtivo, são
incapazes de enfrentar um ano seco”13.
O acesso ao mercado, desses agricultores mais vulneráveis, é precário. Ele se dá através das feiras
e pelo intermédio dos “atravessadores” que compram a produção a preço baixo diretamente nas
comunidades. Outra prática comum é a venda em “cantinas” (ou “barracões”), onde a produção
pode ser trocada por mercadorias.
“na maioria das vezes, o acesso a ativos (terra, crédito e transferências diretas de renda)
não consegue romper com as formas tradicionais de inserção nos mercados que
caracteriza a pobreza”15.
Sem negar a importância dessas políticas sociais e, menos ainda, do princípio de redistribuição da
riqueza pelo Estado, não podemos deixar de falar de seus efeitos colaterais. As transferências de
renda, junto com os salários pagos pelas prefeituras do interior, configuram o que Maia Gomes
chama de “uma economia sem produção”16, que seria muitas vezes superior à economia mais
“moderna” nos sertões (somando a agricultura irrigada, a indústria de calçados e têxteis, a soja, e,
até, a maconha...). Maia Gomes mostra também que
As análises que recolhemos nas três experiências visitadas indicam que as políticas
compensatórias podem até, em alguns casos, desestimular as atividades produtivas. A escolha das
famílias é bastante racional: por que trabalhar horas e dias a fio no sol escaldante do sertão, se o
governo fornece mensalmente o suficiente para sobreviver? Quando isso ocorre, representam um
obstáculo para as Ongs e associações que procuram incentivar a agroecologia – que oferece
retornos bons, porém lentos e limitados, e é bastante exigente em termos de tempo,
conhecimentos, esforços e cuidados.
Por outro lado, se é verdade que essas políticas aquecem a demanda, nem sempre beneficiam a
produção local. Assim, no âmbito do Fome Zero,
“os 50 reais mensais distribuídos às famílias pobres (....) não viram em dinheiro, mas na
forma de um cartão magnético de uso limitado aos supermercados conectados às redes
bancárias. Essa medida só fez aumentar a compra de alimentos e produtos manufaturados
provenientes da agricultura empresarial e não da produção local...”18
Sabourin alerta, então, para o perigo de uma visão dicotômica herdada das agências multilaterais,
levando a
É verdade que há uma real preocupação do governo em incluir a agricultura familiar no Programa
Nacional de Produção e Uso de Biodiesel (PNPB). É verdade também que o governo incentiva o
agricultor a, por exemplo, associar a mamona com culturas de subsistência como o feijão ou
milho. Existe, mesmo assim, uma polêmica quanto a saber se a produção de mamona (ou de
pinhão ou de dendê) para biodiesel se dá ou não em detrimento da produção alimentar. Para não
prejudicar a diversidade e a sustentabilidade da agricultura familiar, seria preciso, na prática, a
presença maciça de assistência especializada em sistemas integrados de produção de alimentos e
energia19, o que é muito distante da realidade de assistência técnica e extensão rural no Brasil.
“em 2000, o hectare de terra valia cerca de R$70,00 e, hoje [2006], custa até R$2.000,00.
(...) Muitos moradores, ou foram expulsos, ou ficaram animados com as ofertas dos
empresários do sul do país e venderam suas terras. Sem terra, a opção é ir para a cidade,
para a beira de estrada ou para lugares bem distantes. Os que permanecem, em pouco
tempo, estão cercados de uma paisagem bem diferente, de solos nus, onde antes havia
mata”20.
Na região Nordeste, ocorre o mesmo com a expansão do eucalipto no Espírito Santo, da soja no
Piauí e do algodão na Bahia. Essa nova onda da “Revolução Verde” é também acompanhada pela
difusão dos transgênicos.
O mesmo ocorreu com o algodão, o que, como veremos adiante, pode criar sérios problemas de
contaminação da produção nordestina, acabando com a possibilidade de certificação
agroecológica.
Dito isso, o cenário nacional e internacional apresenta também outra face, bastante favorável para
os agricultores familiares. O crescimento vertiginoso do consumo de produtos orgânicos, tanto
no exterior como no Brasil é uma boa notícia. Tem repercussão positiva, não apenas para quem
consegue se organizar para exportar (caso do algodão e do óleo de babaçu nas organizações
pesquisadas), mastambém para quem vende verduras e frutas nas feiras de pequenos municípios
nordestinos. Com efeito, a mídia tem divulgado de várias formas os benefícios dos alimentos
Por outro lado, o comércio justo e solidário está crescendo rapidamente no exterior e também, se
bem que de forma mais tímida, no Brasil. De modo mais amplo, a economia solidária está
passando, no Brasil, da fase de discussão e estruturação para a fase de implementação. Ganhou
muita força em 2002, quando a sociedade civil obteve do Governo Lula a criação da Secretaria
Nacional de Economia Solidária (SENAES), e a indicação do seu titular.
Por fim, vale notar que o Brasil conta com um bom número de iniciativas de cooperativas de
produção21, empresas de insumos orgânicos22 e, até, redes de consumo solidário23. A maior parte
dessas iniciativas, contudo, está concentrada no Sul e no Sudeste do Brasil.
As polarizações brasileiras
Sintetizando, podemos dizer que o contexto brasileiro exibe fortes polarizações Há muita
miséria ao lado de uma das maiores produções agroalimentares do mundo. Existem também dois
ministérios da agricultura distintos: o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento
(MAPA) para a agricultura empresarial, e o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA)
para a agricultura familiar. Além disso, as realidades das zonas rurais do Sul e no Nordeste do
Brasil são também muito diferentes.
Devido à enorme desigualdade que reina no país, o Brasil é ao mesmo tempo um global player no
mercado agrícola internacional e, por outro, um país que ainda conta com mais de 50 milhões de
desnutridos. Sua política agrícola não deixa de ser esquizofrênica, com dois ministérios, um
patronal e outro familiar. Mesmo se os recursos destinados à agricultura familiar (sobretudo, o
PRONAF) aumentaram bastante ao longo dos últimos anos, a agricultura patronal é tratada com
toda a consideração de carro-chefe da economia: ela dispõe de muito mais recursos que a
agricultura familiar em todos os âmbitos (pesquisa, ensino, crédito...).
As três iniciativas receberam o apoio da OXFAM, no âmbito do seu Programa Meio de Vida
Sustentável (PMVS). O PMVS, na sua versão brasileira, beneficia um conjunto de dez
organizações e tem quatro linhas de ação: 1) Segurança Alimentar e Acesso a Mercados 2)
Acesso à Água (P1MC - Programa Um Milhão de Cisternas) 3) Políticas agrárias, agrícolas e
comerciais e 4) Igualdade de gênero. Entrelaçadas, essas quatro linhas procuram mostrar de que
forma é possível assegurar meios de vida sustentáveis para a agricultura no semi-árido brasileiro.
O PMVS brasileiro é parte do PMVS global da OXFAM- GB (Grã Bretanha), que atua através de
alianças com organizações parceiras nacionais e locais. A abordagem do PMVS é baseada em
direitos: direito de dispor de meios de vida sustentáveis (sustainable livelihoods), direito de ser
escutado e direito à igualdade de gênero. Ela parte do pressuposto de que o acesso ao mercado
pode ser benéfico para os pequenos produtores que, na maioria dos casos, são explorados pelo
mercado. Daí, a proposta de que os pobres venham a ter mais “poder nos mercados”,
reorganizando a relação com os intermediários e contribuindo para que os pequenos produtores e
A primeira razão é que mais de 30 milhões de pessoas, quase um sexto da população do Brasil,
ainda vivem na zona rural, onde muita gente está envolvida na agricultura familiar (85% dos 4,86
milhões de estabelecimentos agropecuários brasileiros são familiares, conforme o censo
agropecuário de 1995). Além disso, a agricultura familiar responde por boa parte da produção de
alimentos e tem um papel crucial na economia das pequenas e médias cidades.
O mundo rural conheceu diversas mudanças demográficas nos últimos anos, algumas delas
surpreendentes, como a existência em certas regiões de uma migração de retorno de quem foi
trabalhar na metrópole e voltou. Durante a fase de campo do presente estudo, pudemos observar
No Médio Mearim, a partir dos anos 40, chegaram várias levas de migrantes, fugindo das secas do
Sertão, em busca de melhores condições climáticas e de terras férteis. Nos anos 70, o Estado
resolveu apoiar a chegada de grandes empresas pecuárias, que grilaram terras públicas até então
ocupadas pelos agricultores familiares. Estes perderam o direito tradicional de livre acesso à
terra, e os babaçuais dos quais tiravam a maior parte da sua renda foram substituídos por pastos.
Iniciou-se um período de lutas violentas pela terra e pelos recursos naturais. A situação só se
abrandaria um pouco em meados dos anos 80, com a criação de assentamentos da reforma
agrária. Em diversos municípios do Médio Mearim, porém, os conflitos continuaram. Não raro,
os fazendeiros eram também os comerciantes que controlavam o mercado da amêndoa de babaçu
Os resultados impressionam. Vinte anos atrás, o babaçu, principal produto de renda, era vendido
por um preço irrisório e as famílias viviam em condições miseráveis. Era preciso vender dez
quilos de babaçu para poder comprar um quilo de arroz. Hoje, a proporção é de um quilo de
amêndoa por um de arroz, graças à COPPALJ, a cooperativa de produção e comercialização do
óleo de babaçu, que, após enfrentar todo tipo de adversidades desde a sua criação em 1991,
conseguiu firmar-se. É essa cooperativa que, através de sua própria rede de cantinas
comunitárias, passou a comprar a amêndoa de babaçu por um valor bem acima do preço de
mercado, forçando assim os atravessadores a fazer o mesmo.
Aos poucos, a ASSEMA, a COPPALJ e o movimento das quebradeiras de coco babaçu passaram
a figurar entre as principais forças econômicas e políticas da região. Conseguiram a votação de
leis municipais inéditas que, superando o princípio sagrado da propriedade privada, autorizam o
livre acesso aos babaçuais nas grandes fazendas. Iniciaram uma série de experimentos com roças
orgânicas, consórcios agroextrativistas e outras iniciativas agroecológicas. Além de duas
cooperativas de processamento do babaçu (respectivamente, de óleo e de farinha) abriram uma
fábrica de sabonetes em plena zona rural e uma loja na capital São Luis. Hoje, estão exportando
parte do óleo orgânico de babaçu para grandes empresas internacionais de cosméticos.
A voz de Diocina faz-se mais dura quando evoca as lutas passadas e as humilhações pelas quais
teve que passar.
Toinho estudou até a oitava série, casou, trabalhou e voltou a estudar para cursar o magistério.
Sócio da COPPALJ desde 1994, já administrou uma cantina, foi vice-presidente da cooperativa
A Diaconia, ONG evangélica fundada em 1967, tem sede em Recife e escritórios nos Estados de
Pernambuco, Ceará e Rio Grande do Norte. Neste último, a Diaconia está presente há mais de
trinta anos na região de Umarizal, na parte mais ocidental do Estado, chamada Médio Oeste
Potiguar ou “tromba do elefante” devido à sua forma peculiar no mapa. Essa região semi-árida
muito pobre apresenta uma grande diversidade de ambientes – caatinga, várzea, brejo, serra,
arenoso... – onde as condições de vida também variam, seja de uma área para outra, seja ao longo
do ano ou de um ano para outro, como é comum no sertão. O milho, o feijão e os animais são
onipresentes. Mas a cera da carnaúba, outrora uma boa fonte de renda para as famílias de
agricultores, só se encontra nas áreas de brejo, onde essa palmeira vem sendo fortemente
dizimada. O cajueiro, que prospera em solos profundos e férteis, vê a sua produtividade
ameaçada devido a ausência de manejo dos solos e de conservação da biodiversidade, que
redundou na ampla dispersão da mosca branca, provocando ultimamente uma queda brutal da
produção28. Quanto à cultura do fumo, ela se dá na beira do rio Umari, onde uma centena de
agricultores familiares verticalmente integrados à empresa Souza Cruz, endividaram-se para
A Diaconia trabalha com todo tipo de famílias, inclusive as mais pobres, aquelas que não
possuem terra, não pertencem a nenhuma associação e vendem a força de trabalho nas fazendas
da região para sobreviver. As intervenções da Diaconia são múltiplas. Antes de se interessar pela
comercialização, a tônica do trabalho era a água, insumo fundamental no semi-árido Os
territórios onde a Diaconia concentra a sua atuação contam agora com mais de cem barragens
subterrâneas29 e cacimbões construídos em parceria com o governo federal, o governo estadual, e
com associações comunitárias. A perenização do rio Umari por barragens sucessivas ao longo de
50 quilômetros, também já foi iniciada. Além do mais, enquanto Unidade Gestora
Microrregional da Articulação no Semi-Árido (ASA), a Diaconia já construiu cisternas para
captar a água da chuva em praticamente todas as comunidades da região. Além da água e do apoio
à organização, abriu também outras frentes, como a criação animal ou, mais recentemente, a
retomada do cultivo do algodão. Os avanços mais espetaculares, porém, se deram graças à
combinação de quintais produtivos irrigados por sistemas simples e baratos, com o acesso ao
mercado local na forma de barracas de produtos orgânicos na feira. Através de doações ou de
fundos rotativos solidários, dezenas de famílias puderam adquirir motor, canos e micro-
aspersores para irrigar suas hortaliças e frutas, vendidas semanalmente nas quatro feiras
municipais da região. A simples possibilidade de ter ingressos monetários modestos, porém,
seguros e regulares, tem mudado a vida dessas famílias e incentivado a criação de associações,
entre elas a Associação de Agricultores e Agricultoras Agroecológicos Oeste Verde (AAOEV).
Mesmo modestos, esses ingressos provocaram uma rápida mudança nas faixas de renda das
famílias (Maiores detalhes abaixo no quadro “O trabalho da Diaconia em números”).
“Saía às 3 horas da manhã e voltava às 8 h da noite, sem ter certeza de conseguir serviço no
dia seguinte”.
“Peguei a minha chance. No início, o solo do meu quintal não prestava; tive que carregar
toda a terra no carrinho de mão para dentro do quintal. Também não tinha sistema de
irrigação: molhava as plantas com o galão.”
Com o dinheiro da feira e da venda na comunidade (ao todo, cerca de 500 reais por mês), sentiu-se
seguro e adquiriu um kit de irrigação, junto com uma cisterna calçadão. Hoje, no quintal de 650
m2, produz coentro, alface, cebolinha, macaxeira, milho, feijão, guandu, batata doce, mamão,
cana, maracujá, goiaba e várias plantas medicinais. A alimentação da família melhorou e a
incerteza financeira praticamente acabou. O principal problema agora é o transporte. Pagar o
frete para vender na feira não compensa e Ivanildo percorre todo sábado 50 km – ida e volta – no
sol escaldante do sertão, com a bicicleta supercarregada! Já que não há perspectiva da prefeitura
providenciar transporte coletivo, o sonho de Iranildo é adquirir uma moto e uma carrocinha.
Na mesma comunidade, seu Lázaro plantava fumo até pouco tempo atrás.
“O fumo já foi um bom negócio, quando a inflação era alta. Depois de um tempo, só dava
para pagar as despesas, e o veneno estava acabando com a minha saúde”.
curto prazo, seria criar ovelhas. Isso representaria um avanço na conversão agroecológica na
medida em que subprodutos da criação de sequeiro seriam redistribuídos para a horticultura
irrigada.
·Através das feiras, calcula-se que um total de 7.300 pessoas tem acesso a uma alimentação
mais saudável, além das 500 famílias de agricultores que consomem a própria produção.
·Uma pesquisa mostrou que, em 2004, 49,17% das famílias tinham renda inferior a um salário
mínimo, 42,84% tinham entre um e três salários mínimos, 7,98% tinham mais de três salários
mínimos. Em 2007, 41,63% das famílias tinham renda inferior a um salário mínimo, 40,81%
ganhavam entre um e três salários mínimos e 17,55% (10% a mais, comparando com 2002)
ganhavam mais de três salários mínimos.
O ESPLAR foi fundado em 1974, em plena ditadura militar, para prestar serviços às organizações
de trabalhadores rurais no Estado do Ceará. Concentra-se inicialmente nas Comunidades
Eclesiais de Base e, mais tarde, nos sindicatos e organizações ligadas à Igreja. Em 1984, redefine-
se como entidade autônoma da sociedade civil e participa da criação da Rede PTA, pioneira em
agroecologia. Em 1990, organiza o primeiro “grupo de pesquisa do algodão” com 12 agricultores
em 7 municípios cearenses, visando a implantação de consórcios agroecológicos31. Em 1993, no
município de Tauá, no Sertão Central, a ADEC, Associação de Desenvolvimento Educacional e
Cultural de Tauá, que até então abrigava grupos de produção artesanal, reestrutura-se para
implementar o Plano de Desenvolvimento Agroecológico e Participativo dos Pequenos
Produtores de Tauá, em parceria com o ESPLAR. Uma das atividades desse plano é o cultivo de
algodão em consórcios. Aos poucos, a ADEC vai adquirindo equipamentos e experiência até
tornar-se o elemento central do beneficiamento do algodão orgânico na região.
“O setor seguramente mais penalizado pela crise foi a agricultura familiar, que tinha na
exploração do algodão arbustivo uma das suas principais fontes de renda e que, até agora,
não encontrou outra alternativa econômica”33.
Ao longo de muitos anos de pesquisa, tentativas, erros e acertos, o ESPLAR foi experimentando
e divulgando no sertão cearense uma boa quantidade de consórcios agroecológicos, onde o
algodão (desta vez herbáceo) é o elemento central. A produção é inteiramente beneficiada na
ADEC, em Tauá. Toda a pluma de algodão é vendida, como orgânica, principalmente para uma
pequena empresa francesa do comércio justo, a Veja, que fabrica tênis. Outra parte, menor,
constitui o primeiro elo da cadeia produtiva solidária brasileira Justa Trama, que produz
camisetas. Graças aos contratos com a Veja e com a Justa Trama, a ADEC pode pagar aos
agricultores duas vezes o preço de mercado. Tem à sua frente um futuro promissor na medida em
que a demanda por algodão orgânico é muito superior à oferta. Além disso, os consórcios
agroecológicos produzem alimentos para o consumo das famílias e uma renda adicional com o
gergelim (que, além de combater pragas, tem um bom valor de mercado) e o nim (um inseticida
João Félix e Dona Antônia, melhor preparados para conviver com as secas
João Félix de Souza, 42 anos, e Antônia Dantas de Souza, 40 anos, da comunidade do Riacho do
Meio, a 17 km da sede do município de Choró, implantaram o seu consórcio agroecológico em
2003, depois de uma visita de intercâmbio em outra comunidade.
“Vi algodão, gergelim, milho, feijão, fava, guandu, tudo isso em um hectare. Entendi o
quanto eu estava errado e comecei também a plantar com curvas de nível, valas de
retenção, cobertura morta... Em 2004 tive uma safra boa de tudo. Vendi 23 arrobas (345
kg) de algodão por 17 reais a arroba. Antes, plantava algodão, mas perdia quase tudo e
usava veneno no milho e no feijão.”
“Em 2007, faltou chuva; perdi 70% da safra de milho e feijão. Mas o algodão deu certo.
O bom do consórcio é isso: sempre se colhe algo.”
Influenciados por João Félix – e pelo bom preço do algodão – 11 das 63 famílias da comunidade
também criaram consórcios e a associação local implantou um banco de sementes. Além do
mais, para poder certificar o algodão como orgânico, as famílias precisam deixar de usar veneno
e de praticar a queimada.
·Sua sede fica em Fortaleza, capital do Ceará, e sua equipe é formada por 22 funcionários. Na
área de desenvolvimento de sistemas agroecológicos, além dos consórcios com o algodoeiro,
o ESPLAR acompanha cerca de 950 famílias em atividades como o manejo de caprinos e
ovinos, a criação de abelhas, o manejo e armazenamento da água (cisternas de placas) e o
manejo e conservação de sementes crioulas.
·Em 2007, 245 consórcios com cerca de um hectare cada produziram 42,6 toneladas de
algodão em 256 hectares. Depois de processado na ADEC, o algodão em rama rendeu 15
Três
Agroecologia
experiências
e acesso
na agricultura
a mercadosfamiliar da região Nordeste do Brasil 41
04
toneladas de pluma, das quais 13 foram vendidas para a Veja (tênis) e dois para Justa Trama
(confecção).
·Em 2005, 148 famílias cultivaram 180 hectares e venderam a sua produção por R$70 mil
(U$40 mil). A renda bruta adicional foi cerca de R$500,00 (U$285,00) por família.
Há, porém, diversas limitações, sobre as quais voltaremos na seqüência deste estudo. Entre elas,
podemos desde já destacar a fragilidade das cadeias produtivas envolvidas e a escala reduzida
O desafio do mercado
Seguem-se trechos de um artigo escrito por Ricardo Abramovay em 199834, cujo teor permanece
plenamente atual.
“É na construção de novos mercados – tanto para os produtos até aqui predominantes, como,
sobretudo, para as atividades que apenas começam a se desenvolver – que se concentra o mais
importante desafio do desenvolvimento rural. Esta construção não vai resultar da ação
espontânea dos agentes privados, mas sim da organização dos produtores apoiada de maneira
decisiva pelos movimentos sociais e pelo poder público.”
“Até recentemente, os agricultores eram profissionais da produção, mas não da venda, da qual se
encarregavam grandes organizações, como as cooperativas e as agências públicas às quais, com
freqüência, destinavam seus produtos. Hoje, ao contrário, os agricultores e suas organizações,
bem entendido, cada vez mais precisam saber qual é o seu cliente, em que nicho de mercado vão
inserir seus produtos, a que demanda da sociedade serão capazes de responder. Em suma, sua
afirmação econômica não está mais apenas da porteira para dentro, mas supõe um profundo
conhecimento do mercado com o qual se relacionam. A idéia de que os agricultores produzem e
os mecanismos da política agrícola garantem sua renda – tão arraigada até hoje na consciência das
lideranças rurais brasileiras – está definitivamente ultrapassada.”
Para poder vender, é preciso produzir. Na perspectiva agroecológica não é o lucro a variável
prioritária. Nessa ótica, segurança alimentar, meio ambiente e mercado são indissociáveis. Para
algunas até, uma vez que o paradigma da Revolução Verde está em crise, o modelo agroecológico
seria o único sustentável. Entretanto, a chamada “transição” ou “conversão” agroecológica não é
óbvia, nem rápida. O primeiro elo da cadeia, a produção agroecológica propriamente dita, já
representa um belo desafio para os agricultores e as Ongs sob pelo menos dois aspectos: a prática
experimental e sua difusão em maior escala.
A produção agroecológica
As várias dimensões da agroecologia
As ambições do ESPLAR e das outras ONGs deste estudo são certamente mais modestas, porém,
em todas elas, as dimensões técnico-produtivas, ecológicas, econômicas, políticas, sociais e
culturais estão presentes. Todas também se contrapõem ao modelo da Revolução Verde e põem
em prática, aos poucos, o que pode vir a ser um novo paradigma para a agricultura sustentável.
(Ver abaixo o box “A insustentabilidade da agricultura convencional”). A agroecologia como
caminho para a sustentabilidade nas suas mais variadas dimensões, é o que buscam as 500
famílias cultivando algodão nos consórcios do Esplar; as 1.550 famílias do programa de
produção agroextrativista da ASSEMA; e as 300 famílias que, com a ajuda da DIACONIA,
produzem frutas e hortaliças, verduras e plantas medicinais.
Falar em produção agroecológica não é o mesmo que falar em produção orgânica. Numa primeira
aproximação, podemos dizer que toda produção agroecológica é orgânica, sendo que o inverso
não é verdadeiro. A produção estritamente orgânica preocupa-se com aspectos técnicos mais
ligados às dimensões de ambiente e saúde, substituindo agrotóxicos por insumos naturais. A
rigor, a prática da monocultura de, digamos, goiabeiras, importando esterco de uma fazenda
distante e explorando trabalhadores sazonais na época da colheita poderia vender a sua produção
como “orgânica”, desde que não se use insumos químicos37. A agroecologia, como visto acima,
vai muito além.
O Brasil tornou-se em poucos anos um dos maiores produtores e possui a oitava maior área, com
842 mil hectares (em 2000 eram apenas 100 mil hectares). Haveria também um forte potencial de
crescimento, estimado a 30% por ano, e a área poderia atingir 3 milhões de hectares a curto prazo,
segundo o Instituto Biodinâmico39. Além disso, o país teria o maior potencial de produção do
mundo, com 90 milhões de hectares prontos para o cultivo. No mercado mundial, que já
movimenta cerca de U$ 30 bilhões, a fatia de mercado do Brasil ainda é pequena (U$ 250
milhões), mas o potencial de crescimento de anual seria de 25%. Atualmente, o Brasil exporta
60% da sua produção orgânica, essencialmente para o Japão, EUA e Europa.
Como se pode ver, os dados existentes dizem respeito à produção orgânica. E a produção
agroecológica brasileira? Logicamente, deveria ser menor que a orgânica. Um artigo publicado
em julho de 2005 pela revista Carta Capital40 começava, porém, com a seguinte informação: “O
Brasil é o vice-campeão mundial em área de produção orgânica, com 6,5 milhões de hectares. À
sua frente, só a Austrália.” Essa informação destoante com as estatísticas até então conhecidas,
tinha como origem o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (o MAPA, voltado
para o agronegócio de grande porte) que decidiu “incluir 5,7 milhões de hectares do extrativismo
sustentável, onde há açaí, látex e outros produtos da floresta. Isto ajudou, segundo o ministério, a
dar visibilidade para a agroecologia, que tem no mercado externo o principal alvo.”
A polêmica estava lançada, cada um tentando puxar a sardinha para a sua brasa. A maior
certificadora orgânica brasileira, o Instituto Biodinâmico (IBD), declarou que “seriam números
sérios, se todas as áreas extrativistas fossem auditadas” (melhor ainda, se fosse pelo IBD?...). “A
produção agroecológica é subestimada” respondeu um técnico do Ministério do
Desenvolvimento Agrário (o MDA, ou seja, o outro ministério brasileiro da agricultura, mais
preocupado com o componente familiar e com a reforma agrária).
Por outro lado, a matéria traz interessantes informações oriundas de uma pesquisa de doutorado
de Renato Linhares de Assis sobre agroecologia. O pesquisador comparou os produtores filiados
a duas associações orgânicas, com pequenos agricultores familiares não certificados, apoiados
pela ONG AS-PTA, todos da região Sul do Brasil. Constatou o seguinte:
“A agroecologia tem práticas menos intensivas no uso de capital e mais intensivas no uso
de mão-de-obra. Ponto a favor da agricultura familiar. Para grandes produtores, o
processo de conversão é investimento de risco. A terra viciada com agroquímicos pode
levar três anos para ser descontaminada. E o custo da mão-de-obra pesa.”
Outro doutor citado pela revista, Manoel Baltasar Costa, da USP de Piracicaba, avaliou quatro
décadas de agricultura em 25 municípios da região metropolitana de Curitiba. Primeiro
resultado:
“O agricultor foi o mais prejudicado. Em 40 anos, todos os preços agrícolas caíram. Mas
os insumos agrícolas encareceram”.
Costa conclui que a agricultura orgânica “é menos impactante, mas, não basta”.
Um dos elementos que encontramos nas três regiões visitadas é a presença de uma firme base
política e organizacional, anterior ao apoio técnico e econômico das ONGs. Foram assim as lutas
políticas que levaram à criação da ASSEMA no Maranhão. Vale também para o Sertão Central
cearense, onde os sindicatos de trabalhadores rurais representam uma força importante desde os
anos 60 e, ainda, para o Médio Oeste Potiguar, onde o tecido associativo rural sempre foi robusto.
Nas três regiões pesquisadas, organizações da Igreja também deixaram a sua marca, sejam elas
Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), entidades pastorais ou organizações evangélicas como a
Diaconia presente em Umarizal desde os anos 70. Duros conflitos reforçaram a organização
política, os sindicatos rurais e a influência social das igrejas, criando laços de solidariedade. Este
é o alicerce sobre a qual o trabalho produtivo repousou inicialmente. Depois veio a “conversão”
(com um quê de conotação religiosa?) à agroecologia e a preocupação com a comercialização da
produção.
O consumo de produtos orgânicos não é reservado à classe média do hemisfério norte. Se as feiras
agroecológicas estão se espalhando muito rapidamente pelo interior do Nordeste é por que nelas
se praticam preços acessíveis. Mas é também por que a onda ambiental já atingiu o sertão através,
por exemplo, de programas de televisão como o Globo Rural ou o Globo Ecologia, que figuram
entre os favoritos das famílias rurais. Ou seja, até nos municípios e comunidades mais distantes,
consumidores e produtores estão sensibilizando-se pouco a pouco aos benefícios ambientais e às
melhorias na saúde ligadas à qualidade da produção agrícola. Por isso, um número crescente de
consumidores mais conscientes prefere comprar, pelo mesmo preço e na mesma feira municipal,
um molho de coentro orgânico produzido e vendido diretamente por pequenos agricultores do
município, do que um molho aparentemente idêntico, vendido por um comerciante, que o
comprou de um atacadista, que foi buscá-lo numa fazenda irrigada da beira do rio, distante em
mais de 200 km de distância, onde foi produzido com muito veneno.
Numa demonstração de grande clareza41, Peter Rosset diagnostica a dupla face – ecológica e
socioeconômica – da crise da agricultura convencional. A partir daí, critica a mera substituição de
insumos (o enfoque estritamente orgânico) e argumenta em favor do enfoque agroecológico.
Para começar, Rosset levanta vários indícios da crise do modelo convencional, tomando como
referência a agricultura norte-americana. O primeiro deles, envolvendo as dimensões econômica
e social, é a considerável redução do número de agricultores por motivos econômicos.
A crise do modelo convencional tem também uma dimensão ecológica. Aqui, o principal indício
é “a desaceleração dos rendimentos médios das lavouras”, devido a “uma constante degeneração
da base produtiva da agricultura através de práticas insustentáveis”. Vários problemas surgiram:
erosão do solo, salinização, desertificação, redução da eficácia dos agrotóxicos, doenças, e assim
por diante.
As causas dessa dupla crise residem na lógica que orientou o nascimento e o desenvolvimento da
agroindústria moderna:
Sob vários aspectos, a transição do sistema tradicional para o agroecológico parece vantajosa
para o agricultor familiar. É, de fato, possível observar avanços importantes nas famílias que
adotaram essa abordagem inovadora para o desenvolvimento dos seus sistemas. Contudo, muitas
não aceitam esse desafio e, entre aquelas que o fazem, a distância entre teoria e prática não se
percorre tão fácil ou rapidamente.
Em termos ambientais, os avanços são nítidos. Conseguiu-se plantar algodão sem veneno,
testando todo tipo de defensivos naturais (nim, gergelim, urina de vaca, dentre outros),
alimentando assim pesquisas acadêmicas originais. Nas comunidades, houve o que os
economistas chamam de “externalidades positivas”. Mesmo nas propriedades que não aderiram
à proposta agroecológica, muita gente deixou de usar veneno e o uso do fogo diminuiu.
À pergunta “O que mais mudou?”, lideranças camponesas e responsáveis sindicais que circulam
muito nas comunidades respondem, de forma um tanto surpreendente, “o conhecimento das
“quem avança mais na questão política e fala mais em público, é geralmente quem
estudou mais e sabe ler e escrever. Mas entender a proposta do consórcio agroecológico
não depende de alfabetização: a técnica é clara.”
Em Choró, os bons resultados dos consórcios agroecológicos com algodoeiro serviram também
de barreira concreta contra os argumentos da Secretaria Municipal de Agricultura, do Banco e da
EMATER, para quem o uso maciço de produtos químicos na agricultura é sinônimo de
progresso. Por sua vez, Eronilton Buriti, presidente do sindicato no município vizinho de
Quixadá, acha que o que mais mudou foi “a visão das pessoas”. Como conseqüência, “vêem a
possibilidade de permanecer no campo, para elas e para os filhos”.
Para a equipe técnica da DIACONIA, os avanços se medem também pelo fato de que “é mais
fácil convencer o agricultor hoje do que quatro anos atrás”. É verdade, mas quem visita as
comunidades pode constatar que a transição para a agroecologia é longe de ser majoritária.
Também, entre as famílias dispostas a mudar de sistema, o mais comum é a mudança parcial.
Tanto é que a ASSEMA faz a diferença entre “transição” e “evolução” agroecológica.
“Das 1500 famílias com as quais trabalhamos, 110 estão em processo de transição, diz
Ronaldo Carneiro, Coordenador técnico do programa de produção agroextrativista da
ASSEMA. Estas famílias intensificam as práticas, consorciam o babaçu com fruteiras,
plantam hortaliças, recuperam o solo com leguminosas e não usam mais nem fogo, nem
agrotóxicos, nem trator em boa parte da sua terra. Ao lado, tem aquelas que consideramos
em processo de 'evolução” que, por exemplo, não usam mais veneno nem trator, mas
ainda queimam.”
“O uso do fogo era sustentável até os anos 60. Depois, com a pecuarização, o tamanho das
terras agricultáveis diminuiu e o tempo de pousio caiu para cinco anos. Hoje, não é mais
sustentável usar o fogo, mesmo se o hábito permaneceu.”
·Muita gente ainda não conhece as experiências bem sucedidas. Mas até quem conhece e vê –
inclusive parentes próximos – pode não acreditar ou não querer acreditar.
“As outras famílias não acreditavam quando comecei, me chamavam de doido. Diziam
que eu ia matar a família de fome porque não pensavam que uma terra ruim feito essa ia
dar. Até meu irmão e meu pai não acreditavam.”
“O INCRA deixou o assentamento, que ficou muitos anos à toa. O povo se criou
trabalhando para o patrão, criando gado, plantando milho e feijão. Só sabe fazer dessa
forma.”
“É preciso trabalhar todos os dias e participar de muitas reuniões. Tem pessoas que não
querem vir para a discussão, acham perda de tempo.”
“Para o algodão, a catação manual do bicudo é o principal fator limitante. O veneno tem
custos, mas dá resultados mais rápidos.”
“Pessoas acham melhor plantar fumo porque a Souza Cruz financia tudo que precisa e
compra todo o fumo. Não precisa sair da comunidade para comprar insumos ou vender a
produção”.
“Arrisquei, apostei, fiz muito esforço. Pouca gente está disposta a fazer isso.”
“Quem conseguiu o básico, acha que está bem assim, há certa acomodação”.
“A idéia inicial era de que as famílias, ao ver os benefícios dos kits de irrigação, fossem
buscar doações ou financiamentos via políticas públicas. Mas não há políticas públicas
“É preciso deixar a pessoa à vontade, livre para escolher o que quer fazer, diz Élson,
técnico da Diaconia.. Até livre para errar, e depois discutir o erro com ela. Hoje não
chegamos mais com o kit completo de irrigação. O agricultor decide se quer ou não um
motor, ou um tanque. Há um fundo solidário para financiar esses equipamentos. Antes,
gastavam-se 3000 reais para a família irrigar. Hoje gastam-se 300 e aproveita-se todo o
potencial da família .”
Por isso, de modo geral, o trabalho é lento, leva vários anos. Trata-se de mudanças de
comportamento. Trata-se, também, de recuperar terras muito desgastadas:
Por outro lado, se a resistência e a resiliência estão de fato melhorando, até mesmo nas
propriedades agroecologicamente mais avançadas, ninguém está preparado, ainda, para
enfrentar três anos sucessivos de seca, como ocorreu no início dos anos 90. Haverá com toda
As ameaças externas à transição agroecológica também são múltiplas: desde a adoção dos
transgênicos, até incertezas em relação à implantação do biodiesel; desde ameaças já bem
conhecidas como o avanço rápido do eucalipto e da soja (chegando agora no sul do Maranhão),
até ameaças mais surdas como a criação industrial de aves, poderoso império econômico que
lentamente estrangula o mercado da galinha caipira42. Essas são discussões que precisariam ser
travadas urgentemente, tanto em Brasília, como nas comunidades.
Na ADEC, em Tauá, o algodão “em rama” passa por uma descaroçadeira que separa a rama da
pluma e da semente. A pluma é prensada antes de ser estocada e vendida para empresas do
comércio justo. Na COPPALJ - Cooperativa dos Pequenos Produtores Agroextrativistas der
Lago do Junco, no Maranhão, a amêndoa (semente) de babaçu também passa por processos
sucessivos (aquecimento controlado, prensagem, armazenamento em tonéis selados). O óleo
assim produzido tem vários destinos: a maior parte vai para uma fábrica local de sabão comum;
30% é vendido como óleo orgânico certificado para empresas do comércio justo e uma pequena
parte constitui a principal matéria prima da fábrica de sabonete “Babaçu Livre”, dirigida e
operada por quebradeiras de coco.
processamento do babaçu, e a casca é usada ou vendida pelas famílias como matéria prima para
fazer carvão. Além do mais, a Cooperativa dos Pequenos Produtores Agroextrativistas de
Esperantinópolis (COOPAESP), também assessorada pela ASSEMA, aproveita a parte mais
delicada do babaçu, o mesocarpo, transformado em farinha, condicionado e vendido em lojas de
produtos orgânicos, com excelente aceitação46.
Tecnologias novas podem ser necessárias “para tornar economicamente viável a gestão de
sistemas mais complexos como o exigem as regras da gestão ecológica”47. Como vimos
anteriormente, as tecnologias de produção agroecológica estão relativamente bem adiantadas: já
foram testadas diversas opções para o manejo da água, dos solos, da vegetação nativa, para
adubar, plantar, selecionar e armazenar sementes. Em comparação, para o beneficiamento e o
processamento da produção familiar, a carência é enorme.
A saída foi procurar os serviços de um torneiro em Bacabal, cidade situada a100 km de Lago do
Junco. Até hoje a COPPALJ continua ajustando a prensa feita sob medidas, melhorando aos
poucos o desempenho da máquina.
A COPPALJ recebe muitas visitas de Ongs e grupos de produtores rurais de outros estados, que
desejam transformar a sua produção. Todos se empolgam frente à imponência do galpão e das
máquinas da cooperativa. O diretor da cooperativa precisa sempre colocar as coisas no seu divido
lugar:
“Quem vem, vê a estrutura, que não é o mais importante. Explicamos a história, toda a
luta para constituir a cooperativa. As máquinas são de menos, o mais importante é pensar
no coletivo.”
Resta que o princípio de diversificação, que vale para a produção agrícola, valha também para a
comercialização. “È preciso fugir de um só produto e promover a diversidade de produtos para o
mercado”, insiste Pedro Jorge, agrônomo do ESPLAR, pioneiro no apoio à produção do algodão
orgânico no Brasil. Daí a importância do processamento do nim e do gergelim em óleo, para uso
próprio e para a venda.
O nim já é usado como inseticida natural nas plantações consorciadas e como vermífugo e
carrapaticida na criação animal. Sua transformação em óleo concentrado pode facilitar a
“Já houve duas capacitações sobre como fabricar e usar o óleo de nim, mas ninguém
adotou. Talvez este não seja o bom modelo para eles, talvez a maioria só queira ser
agricultor e vender apenas as sementes.”
Ou seja, mais uma vez, os aspectos técnicos e econômicos são indissociáveis de aspectos
relacionais, culturais e organizacionais. Não adianta o ESPLAR querer criar um mercado ainda
inexistente se não for o que os agricultores desejam ou precisam. O caso do óleo de gergelim é
diferente. Existe um mercado constituído, onde o alto preço (100 reais o litro) atraiu alguns
produtores, justificando assim o investimento do ESPLAR em capacitação e equipamentos para
o processamento caseiro.
Essa situação vivenciada pelo ESPLAR, suscita questionamentos sobre as relações entre
conhecimento tradicional, conhecimento científico e inovação. Estão em jogo atitudes, idéias e
crenças, tanto por parte dos agricultores como dos técnicos das ONGs e dos organismos
governamentais de ensino, extensão e pesquisa50.
O apoio da Fundação pode ser providencial para a COPPAESP, que produz farinha de mesocarpo
de babaçu. Por razões ligadas à tecnologia e à produtividade, essa cooperativa está passando por
um momento paradoxal. Por um lado, a demanda tende a crescer e o mercado oferece um preço
de venda relativamente elevado. Por outro, a produção não acompanha essa tendência e tende até
a cair, porque a extração manual do mesocarpo é muito trabalhosa e o valor da hora trabalhada
não compensa o esforço.
Para o algodão, o gargalo tecnológico fica mais a montante, na fase de cultivo. Nenhum dos
biodefensivos até então testados – nem o gergelim, nem o nim, nem os sofisticados feromônios –
foram plenamente eficazes contra duas pragas que ameaçam a produção de algodão: o bicudo,
um inseto que ataca os botões florais, e a lagarta rosa. Como conseqüência, a produtividade
permanece baixa.
O método mais eficaz até agora contra o bicudo é a catação manual, desde que feita logo no início
da infestação – o que supõe um cuidadoso monitoramento, nem sempre óbvio quando a área
cultivada é distante da moradia. Este é o principal fator limitante, já que a área produtiva do
consórcio com algodoeiro fica restrita, no máximo, aos dois hectares em que uma família
consegue catar o inseto manualmente. Ou seja, enquanto não houver uma solução agroecológica
para melhor controlar o bicudo e a lagarta, a produção de algodão por unidade familiar vai ficar
estagnada.
Para o agronegócio, a principal utilidade do babaçu é o óleo feito a partir da amêndoa extraída
manualmente pelas quebradeiras. Nesse mercado, a COPPALJ consegue concorrer, mesmo com
uma produção relativamente baixa, graças ao diferencial no preço de venda do mercado orgânico.
Está tentando promover tecnologias mais eficazes que o machado, de modo que as quebradeiras
possam obter uma renda melhor. Mas se um dia surgir uma máquina eficaz de extração da
amêndoa em grande escala, os proprietários de grandes babaçuais (mil hectares ou mais) podem
muito bem resolver quebrar o babaçu por conta própria. Essa é a razão pela qual a ASSEMA
sempre associa à questão técnica a luta política e jurídica em prol do livre acesso aos babaçuais
privados – de onde vêm 85% do babaçu da COPPALJ. Já conseguiu ganhar várias batalhas, na
forma de leis municipais, porém, a guerra, ainda não: em nível federal a lei da propriedade
privada continua vigorando.
Outra ameaça é o risco de devastação do babaçual natural, devido ao avanço das plantações de
soja, milho, dendê e eucalipto. A estratégia da ASSEMA consiste em procurar a votação de uma
lei de preservação dos babaçuais enquanto áreas de preservação florestal.
Os protagonistas nas três experiências sistematizadas inspiram-se em parte nessa visão. A sua
prática, porém, trouxe à tona uma diferença fundamental: sabem que, queiram ou não, a
comercialização da produção agroecológica se dá no mercado capitalista (Ver abaixo o box”A
monetarização crescente das relações econômicas”). Sem excluir os outros grandes princípios de
comportamento econômico (autoconsumo, redistribuição e solidariedade), não negam a força do
mercado capitalista e procuram vender, porém sem “se vender”.
A partir daí, o desafio é duplo. Primeiro, enfrentar sem receios a (dura) realidade do mercado, que
tem regras e exigências próprias para as quais as Ongs e organizações de agricultores não estão a
priori bem preparadas. Em segundo lugar, lidar com esse universo vasto e complexo, mantendo
os valores éticos, políticos, sociais e ambientais, que são a razão de ser das Ongs e dos
movimentos.
Mais do que maximizar o lucro, já vimos que as experiências aqui examinadas buscam a
estabilidade, resistência e resiliência dos sistemas produtivos, com base na agroecologia.
Procuram também estabilizar a renda num nível capaz de tirar a família da descapitalização
crônica. Para Marcus Vinícius, do ESPLAR, no semi-árido é essencial dispor de várias fontes de
renda ao longo do ano:
“Além de milho e feijão na estação chuvosa, é preciso trabalhar com uma cultura de renda
(algodão ou mamona, por exemplo) na época da estiagem, no segundo semestre.”
A visão de Sabourin52 sobre as práticas de economia solidária no meio rural brasileiro está em
consonância com a vivência dos protagonistas nas três experiências que visitamos.
“Por certo, pode-se defender um projeto renovado de agricultura camponesa mais autônoma do
mercado capitalista, menos dependente de insumos externos, mais respeitosa do meio ambiente e
Apesar dos esforços, nas três regiões aqui destacadas, os mercados convencionais e os
atravessadores continuam com peso muito forte nas cadeias produtivas trabalhadas pelas Ongs
(algodão, babaçu) e, mais ainda, fora delas. “A melancia vai diretamente para o supermercado, e
boa parte do coco é comprada pelos atravessadores”, observa Joseilton, coordenador do PAAF, o
Programa de Apoio à Agricultura Familiar, da Diaconia. Alguns produtos da agricultura familiar
Seria um erro considerar a presença dos atravessadores como algo aberrante ou irracional. Pelo
contrário, há boas razões para o agricultor familiar continuar vendendo a esses intermediários
que pagam mal, porém, pagam no ato da venda, sem que o agricultor precise se deslocar para a
cidade. Os técnicos da equipe de campo da Diaconia em Umarizal sabem muito bem disso.
É o caso, por exemplo, dos assentados da Zona da Mata na sua relação de dependência com os
usineiros da cana.
A partir daí, ele levanta duas grandes questões relativas, respectivamente às práticas necessárias
para vender e às relações a serem estabelecidas entre associados. Em seguida, faz uma pergunta
que nos interessa particularmente aqui: “Quais os conhecimentos que o atravessador tem, e que
não temos?”. A seguir, a síntese das respostas do autor.
“O atravessador conhece cada produtor, sabe onde mora, o quanto produz, a qualidade de
sua produção. (...) É muito grande o número de associações/cooperativas que não têm
esse conhecimento a respeito de seus próprios associados. O atravessador sabe mais sobre
as organizações do que elas próprias!”
“Quando o atravessador sai para comprar sua mercadoria, ele já sabe o preço que pode
pagar aos produtores, porque tem a informação do preço pelo qual vai conseguir vender.
(...) Ele está em constante contato com seus compradores, busca informações sobre as
safras, faz telefonemas, enfim, mantém-se informado”. Do outro lado, “muitos
produtores não sabem o valor real de seus produtos.”
“Ele sabe quem são e onde estão seus compradores. A pergunta que se põe é: como ele
adquiriu esse conhecimento? A resposta é uma só: viajando. Só se pode conhecer o
mercado saindo para procurá-lo. Só se aprende a vender vendendo. (...) Aqui reside o
investimento a ser feito em coletivo: uns poucos produtores que façam viagens para
conhecer onde estão os compradores retornarão com informações úteis para todos os
demais.”
·A importância da informação.
“O que primeiro circula são as informações. Não se mexe no produto antes de se ter as
informações sobre preço, frete, quantidade que cada produtor tem para vender e a
quantidade que o comprador quer comprar etc. O produto só se desloca por último...”
“Existem muitos atravessadores que (...) trabalham com caminhões de terceiros. O ganho
do atravessador não está no frete e sim na diferença entre os preços que paga e os que
recebe. (...) Ele sabe que o caminhão parado dá prejuízo, que tem custos fixos elevados e
os riscos próprios a qualquer veículo, como acidentes e quebras.”
A entrada nesses três mercados diferenciados fez com que agricultores familiares saíssem da
pobreza e passassem a ganhar um pouco mais. Mas o principal fator, em termos de
sustentabilidade, talvez seja a estabilidade desses novos mercados. Com a quase certeza de poder
vender o produto nos dias, meses e anos seguintes por um preço razoável, um novo horizonte
econômico se abre e a existência fica menos incerta para as famílias e as comunidades. Quando o
futuro de médio e longo prazo passa a existir, faz sentido planejar a produção, é possível arriscar-
se mais, contratar um crédito, investir na propriedade e na casa.
A principal diferença entre esses três mercados está no grau de complexidade; é mais fácil para
uma associação de agricultores incentivar o cultivo de hortaliças e criar uma feira orgânica, do
que lidar com consórcios, máquinas pesadas e mercado internacional. Contudo, não se deve
subestimar a dificuldade de criar uma “simples” feira. De modo geral, desenvolver um novo
mercado, por mais local que seja, demora vários anos. Um tempo geralmente maior que o ritmo
eleitoral de quatro anos que pauta a maioria das políticas governamentais. Por isso, mesmo se a
implicação dos governos municipais, estaduais ou federal é importante, os novos
empreendimentos não devem repousar inteiramente sobre apoios públicos. Além disso, aqui
também, é preciso buscar a diversificação, desta vez dos compradores. Esta é uma das regras
básicas de sustentabilidade da comercialização, nem sempre respeitada. Por exemplo, os
agricultores de Umarizal, atraídos pelos preços e a facilidade de entrega ao programa
governamental de compra direta, deixaram por um tempo de priorizar a feira orgânica, que
chegou a enfraquecer perigosamente.
·“As experiências de intervenções de maior sucesso são as que têm o caráter sistêmico, isto é,
adotam ações que buscam coordenar todo o sistema produtivo de dentro e fora da “porteira”.
Além disso, o aumento do poder de barganha com a união dos produtores se alia à estratégia
de fuga para mercados diferenciados.” Entre os exemplos citados figuram os agricultores de
Capanema, no Estado do Paraná. Integrados ao mercado por meio de cooperativas e
agroindústrias e até então produzindo commodities, fizeram a transição para lavouras
orgânicas e o processamento dos produtos. Abramovay cita também a experiência do
ESPLAR com algodão, e ressalta a importância de estimular a “organização dos agricultores
e o aumento da escala de produção”.
·As feiras representam modos de inserção ao mercado, dos agricultores mais pobres, de duas
formas: “um circuito mais longo inclui a figura do atacadista e do feirante, em geral em
localidades maiores. A outra se refere a circuitos mais curtos em que o próprio agricultor
comercializa pequenas quantidades de seus produtos.”
·Dessa forma, “a produção dos mais pobres é praticamente destinada aos mercados locais e
centrais de abastecimento.”
·“A inserção dos produtores ao mercado externo já pressupõe um grau maior de coordenação
diante da burocracia necessária para exportação. Além de questões sanitárias, a necessidade
de informação das regras que regem diferentes mercados extrapola os limites das relações
pessoais que ocorrem em boa parte das experiências já realizadas.”
“Os agricultores-experimentadores estavam produzindo cada vez mais. Foi daí que
surgiram as primeiras discussões em 1999. A AAOEV foi criada em 2002 com o apoio da
Diaconia e com o objetivo de comercializar a produção. Demoramos mais dois anos
vendendo nas comunidades e na cidade, de porta em porta, para não vender para os
atravessadores que compravam pela metade do preço. Não se sabia como fazer para criar
uma feira. Tínhamos muitas dúvidas: se havia condição, se a produção era suficiente...
Tinha também que providenciar toda a infra-estrutura: barracas, balança, sacolas, faixas,
transporte, fazer a divulgação...”
A Diaconia contando com apoio financeiro da Oxfam acompanhou todo o processo, que incluiu
uma pesquisa de mercado. A pesquisa mostrou que a maioria das frutas e hortaliças
Existem hoje dez feiras em todo o Estado, das quais quatro são iniciativas dos agricultores
apoiados pela Diaconia. Nas três principais, 27 famílias oriundas de 17 comunidades vendem
semanalmente hortaliças, frutas, ovos, queijos e bolos. Uma rápida pesquisa no início de cada
feira indica o valor dos produtos naquele dia. Por exemplo, a alface pode custar entre 30 e 65
centavos a depender da época do ano. Dessa forma, o preço das hortaliças orgânicas é sempre o
mesmo que o preço das hortaliças comuns. A diferença é que, no caso do produto orgânico, uma
vez fixado, o valor não varia entre o início e o final da feira.
A renda média bruta por família é da ordem de 400 reais por mês, apenas com a feira. Pode
parecer pouco, comparando com as feiras orgânicas das grandes cidades (ver box abaixo). Mas
Joseílton, coordenador do programa de agricultura familiar da Diaconia lembra que esses
empreendimentos são “muito diferentes da feira agroecológica de uma capital como Recife,
onde a feira tem espaço próprio e uma demanda por produtos agroecológicos muito maior do que
num pequeno município do interior.” Com efeito, no sertão riograndense, as feiras orgânicas
acontecem dentro das férias livres, de modo que “a clientela não é da classe A ou B, como em
Recife. No interior, todo mundo freqüenta a feira livre.” Os agricultores agroecológicos se
diferenciam dos outros comerciantes apenas pelo espaço separado ocupado dentro da feira e
pelas faixas indicando o caráter orgânico da produção. Um dos aspectos ressaltados pela
Diaconia é a maneira como usou a feira para atrair quem cultivava fumo na região.
“São mais ou menos cem produtores de fumo na beira do Rio Umari. Essa é uma
monocultura que esgota os solos, usa muita água e muito veneno. Rende bastante, mas
tem custos muito elevados. Agricultores agroecológicos que vendem nas feiras estão
servindo de exemplo, de modo que cada vez mais pessoas estão saindo do fumo. O fumo
Vender hortaliças na feira, produzidas com custos relativamente baixos, é hoje mais vantajoso do
que plantar e vender fumo para a Souza Cruz. É menos trabalhoso, não cria a dependência típica
da relação de integração com uma grande empresa, o lucro é maior, é mais saudável e, com a
consolidação da feira, a renda passou a ser tão segura quanto a do fumo:
Mesmo que numa escala ainda pequena, a experiência mostra que melhorias rápidas são
possíveis para um conjunto de produtores agroecológicos, até nos locais mais remotos do sertão.
Há, contudo, sinais de saturação dos produtos de ciclo mais rápido, como o coentro e a alface, que
tendem a predominar em detrimento da diversidade dos produtos. Essas dificuldades têm a ver
com o rápido crescimento do número de associados e a fragilidade da AAOEV, a associação dos
produtores.
As três primeiras feiras surgiram em 1997, primeiro em Umari e Gravatá, no Agreste, e logo
depois na capital, Recife. Pegando emprestado bancadas da feira dominical tradicional, dez
agricultores de Umari iniciaram a venda de produtos agroecológicos durante a semana.
Relações difíceis com a Prefeitura e mobilização dos consumidores. Em Recife, foi preciso,
desde o início, levar em conta a lei municipal que proíbe a realização de feiras em praças
públicas. Na terceira feira, quando a autorização provisória venceu, a polícia foi acionada para
impedir a comercialização. O fato mais interessante foi que “os consumidores se mobilizaram e
impediram a ação policial.” Ou seja, no início, o Espaço Agroecológico não tinha o apoio da
Prefeitura, mas já podia contar como o apoio dos fregueses. A partir de 2000, com a mudança na
Tabela 1: Renda dos agricultores familiares nas feiras agroecológicas de Recife e Serra
Talhada57
En R$ de 2003) Receita bruta Transporte Outras despesas Renda líquida
(US$1=R1,75 em (2 meses) (2 meses) mensal
fevereiro de 2008) (2 meses)
RECIFE
Família de 2.860 200 78 1291
maior renda
Família de
menor renda
1.030 320 85 312
Média das
famílias
SERRA TALHADA
Família de
maior renda 2.860 200 78 1291
Família de 1.030 320 85 312
menor renda
Média das
famílias 2.542 356 91 825
“instrumentos com os quais o estado, por meio da administração pública, pode decidir
comprar em prioridade bens ou serviços produzidos [pelos] empreendimentos
[solidários], eventualmente com preços mínimos garantidos. Este mecanismo protege os
empreendimentos solidários da concorrência do mercado capitalista. Tem a vantagem de
existir em vários níveis do Estado e de poder ser administrado de maneira
descentralizada: na escala municipal (merenda escolar, creches, mobiliário escolar), na
escala estadual (hospitais, colégios, administração e empresais estaduais) e na escala
federal (mercados da administração federal e da regulação de estoques).”
O governo Lula criou o Programa de Aquisição Antecipada de Alimentos (PAA), uma forma de
mercado institucional que, para Sabourin “se tornou o melhor instrumento do Projeto Fome Zero
a favor do apoio aos agricultores familiares mais pobres.” A feição que o PAA tomou em
Umarizal (RN) confirma em parte essa avaliação, mas mostra também os limites do PAA e os
riscos de interferência desse programa governamental com as feiras agroecológicas.
No Rio Grande do Norte, onde o PAA chama-se “Compra Garantida”, os produtos adquiridos
pelo governo – mel, raízes, carne, queijo, bolos e, principalmente, hortifrutigranjeiros –
complementam a merenda escolar e as refeições de centros de idosos, creches e organizações
beneficientes em geral. Em Umarizal, mais da metade dos dez mil habitantes da cidade teriam
sido beneficiados pelo programa. O princípio do PAA é simples: as organizações previamente
cadastradas vão buscar os produtos no mesmo ponto onde os produtores os entregam. O valor
total das mercadorias não pode ultrapassar R$3.800,00 (U$2.170,00) por família de produtor. O
Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural (CMDR) seleciona os beneficiários e é o
responsável pelo controle social do processo no seu conjunto. A EMATER, Empresa de
Assistência Técnica e Extensão Rural cuida da logística, cadastra os produtores e emite as notas
O programa tem tudo para dar certo, uma vez que funciona com a lógica win-win, ou seja, todos
ganham. Faz circular dinheiro no município, estimulando a economia local, e é menos exigente
que os supermercados quanto à quantidade e freqüência de entrega da produção. “O PAA pega os
produtos da época, garante o pagamento e paga melhor”, resume um técnico da Emater. E para a
associação de produtores, “é bom ter mais uma forma de comercialização”.
Já vimos que as políticas assistenciais do programa federal Fome Zero como o Bolsa-Família
têm efeitos tanto positivos (ao injetar dinheiro na economia local, incentivam o consumo e
Resta que o orçamento do Bolsa- Família é muitas vezes superior ao do PAA. Segundo Marcus
Vinicius, do ESPLAR, apesar das vantagens apresentadas, é pouco provável que essa política
cresça muito, devido às pressões internacionais:
Outra questão é de que o PAA é muito sensível às flutuações políticas (mudança de equipe
governamental) e à conjuntura político-administrativa (funciona razoavelmente no Rio Grande
do Norte e muito mal no Ceará). Em Umarizal, apesar das advertências da DIACONIA quanto à
volatilidade dos programas governamentais, o apelo do dinheiro foi mais forte e revelou
potenciais efeitos perversos desse programa. Várias famílias deixaram de abastecer a feira
semanal para vender sua produção ao PAA, colocando assim em xeque o bom atendimento e a
fidelização do consumidor na feira orgânica. Ao descuidar da diversidade, qualidade e
regularidade do abastecimento, colocaram em risco a sustentabilidade da feira. Além do mais, o
episódio mostra também que, se a palavra de ordem “diversificar os mercados” parece sensata,
ela traz também desafios organizacionais. Como produzir coletivamente para vários mercados
(PAA, feira, porta a porta, supermercado, loja própria) que têm ritmos, lógicas e exigências
diferentes? Quem deveria responder esta pergunta são as associações de produtores como a
AAOEV, que serão cada vez mais exigidas em termos de planejamento da produção,
profissionalização da comercialização e administração de negócios em geral, como mostra
claramente a história das feiras agroecológicas em Pernambuco (ver box anterior ).
O comércio justo postula que o comércio convencional é injusto, sobretudo em relação aos
pequenos produtores dos países em desenvolvimento. As causas dessa desigualdade são de dois
tipos. Há fatores locais (pobreza e isolamento dos pequenos produtores, preços baixos, poder
dos intermediários, mercados mal organizados, monopólios...) e fatores internacionais ligados à
organização do comércio mundial e às condições de troca desfavoráveis entre o Norte e o Sul
(preços baixos, fortes variações do valor das commodities e das taxas de câmbio...).
Com base nessa análise, Lecomte define o comércio justo como uma prática que consiste em:
Um dos principais pressupostos do comércio justo é de que a melhor maneira de ajudar famílias a
viver com dignidade “passa pelo desenvolvimento econômico e a justa remuneração dos atores
da cadeia.” O seu objetivo seria então “o desenvolvimento local dos pequenos produtores”, como
também “a regulação dos mercados internacionais, o desenvolvimento de normas e de uma
certificação social internacional.”
Na realidade, há duas grandes tendências do comércio justo. A primeira, mais crítica para com o
sistema capitalista, “reserva o comércio justo a um circuito alternativo especializado”. A segunda
exige “ajustes no processo de criação de valor do sistema liberal” sem, porém, criticar seus
fundamentos e “propõe a integração dos produtos do comércio justo nos circuitos de distribuição
convencionais”61.
Por fim, Lecomte ressalta que o comércio justo inspirou-se em temáticas do desenvolvimento
sustentável, seja na sua dimensão econômica (valorizar os produtos, intensificar e diversificar os
cultivos), como social (remuneração suficiente para poder viver dignamente em termos de
nutrição,
Durante os dez primeiros anos, o interesse dos agricultores pelo consórcio é extremamente
irregular. O número de interessados salta de sete em 1997 para 154 em 200063. No mesmo
período, o algodão recebe a certificação orgânica, financiada por dois compradores, a Baobá
Tecidos Artesanais (SP) e a Tribal Company (PR). No ano 2000, a proposta parece consolidada,
faltando apenas capital de giro para pagar os produtores no ato da entrega. O Banco do Nordeste
do Brasil promete um crédito para o capital de giro, mas não cumpre o seu compromisso e o
número de produtores de algodão cai para 17 em 2001, para subir novamente para 119 em 2002,
quando o ESPLAR resolve emprestar capital de giro à ADEC e passa a oferecer subsídios a quem
for plantar algodão nos moldes do consórcio agroecológico.
Graças ao apoio do ESPLAR a oferta volta a crescer, resolvendo metade do problema. Metade
porque, naquele momento, a demanda vai passar a ser problemática. Quando a empresa
brasileira Osklen adquire 3,6 toneladas de algodão orgânico para confeccionar as roupas de um
badalado desfile de moda em São Paulo em 2002, os técnicos do ESPLAR e os agricultores da
ADEC comemoram: desta vez, o empreendimento está decolando para valer. Mas eles vêem logo
suas expectativas frustradas quando a mesma empresa desiste repentinamente de comprar a safra
em 2003, cinco meses depois de ter apalaravado a compra da pluma. A situação só se estabilizaria
com a chegada da empresa francesa de comércio justo, a Veja Fair Trade, recém-criada, à procura
de algodão orgânico para fabricar calçados esportivos no Brasil, destinados ao comércio justo
europeu.. Em 2004, depois de uma longa conversa com os agricultores em Tauá, a Veja compra as
No mesmo ano, a Univens, empresa brasileira de comércio justo, lança a Justa Trama, marca da
cadeia ecológica do algodão. (Ver o box abaixo) Pedro Jorge, engenheiro agrônomo do ESPLAR
que incansavelmente procurou novos mercados para a ADEC, enfatiza a importância desse
momento, verdadeiro ponto de inflexão na trajetória de comercialização do algodão orgânico:
“Até então, havíamos encontrado alguns compradores decentes, porém eram empresas
convencionais, não do comércio justo. Quando entram a Veja e a Univens, muita coisa
muda.”.
“Antes o preço era ligado à bolsa de Nova York; hoje não, graças ao comércio justo. A
proposta feita em 2004, R$6,00 (U$3,40) o quilo de pluma, era, na época, 2,5 vezes maior
que a cotação na bolsa.”
“Logo na primeira visita em Tauá, lembra Chagas Maia, gerente da ADEC, o pessoal da
Veja apresentou aos agricultores o circuito de fabricação e comercialização do tênis. A
partir dessas informações discutimos o que seria um preço justo. A gente sempre
conversa, é uma relação aberta e flexível. Mesmo com o sucesso da venda dos tênis, e a
escassez de algodão orgânico no mercado, por solidariedade, a Veja sempre cede uma
parte da produção à Univens, da Justa Trama.”
O contrato de três anos, ao garantir a demanda, forneceu um chão firme para ampliar a oferta. O
ESPLAR que já havia incentivado a criação de consórcios nos municípios vizinhos de Choró,
Quixadá e Massapê, pôde estimular sua implantação em Canindé e em outros três municípios da
Juntos, o GAM, a ADEC e o ESPLAR estão contribuindo para firmar o primeiro elo de duas
cadeias bastante distintas. Por um lado, a venda dos tênis da Veja em lojas especializadas,
espalhadas mundo afora, vai crescendo muito rapidamente, o que praticamente garante um preço
alto e estável para o algodão nos próximos anos. Por outro lado, o esquema de venda de
confecções da Justa Trama é bastante improvisado e não oferece as mesmas perspectivas. A
diferença é fundamental e o último elo da cadeia (a comercialização) influi sobremaneira sobre o
primeiro (a produção). Com efeito, a venda de tênis para a juventude relativamente bem abastada
(porém ambiental e socialmente consciente) do Norte, garante o preço justo pago aos agricultores
familiares do sertão cearense e permite contornar os atravessadores graças ao adiantamento do
capital de giro. No final das contas, é também o contrato com a Veja que viabiliza o primeiro elo
da Justa Trama. Sem o dinheiro adiantado pela Veja, a ADEC não teria como agüentar os atrasos
de pagamento da Univens e todos os elos da Justa Trama, do primeiro ao último, ficariam na
dependência das receitas irregulares e imprevisíveis da venda das confecções em feiras e eventos
da economia solidária.
O primeiro elo da cadeia do tênis (Veja) e das confecções (Justa Trama) é o algodão orgânico
cearense da ADEC. Com esse algodão, uma única empresa, a CONES, fabrica os fios, grossos e
finos.
Com o fio grosso fabrica-se a lona do tênis da Veja, em Americana (SP). Em seguida, uma
indústria de Nova Hamburgo (RS) usa a lona orgânica e a borracha oriunda de uma reserva
extrativista da Amazônia para montar os tênis. Estes são vendidos em torno de 30 euros para lojas
de varejo da moda, na França, Espanha, Itália, Holanda, Inglaterra, Suécia e outros países, e
chegam aos consumidores por cerca de 80 euros o par.
Os fios mais finos viram malha e tecido em Sant André (SP). Aí, a cadeia produtiva da Justa
Trama divide-se. Por um lado, a Univens, cooperativa de costureira de Porto Alegre (RS),
confecciona roupas, adornadas com sementes decorativas compradas na AÇAÍ´, uma
cooperativa do Estado de Rondônia, que também integra a cadeia da Justa Trama. Essas roupas
são vendidas em feiras de economia solidária ou deixadas em consignação em algumas lojas de
Porto Alegre e São Paulo. Vale notar que a produção orgânica da Univens representa apenas 10%
da sua produção total (o resto não é orgânico) Por outro lado, a Fio Nobre, cooperativa de Itajaí
(SC), também membro da Justa Trama, usa o fio de algodão e as sementes para confeccionar
roupas.
A própria Veja sempre ressalta que não deseja ter a exclusividade da compra do algodão da
ADEC, mas é importante que tenha a prioridade. Os contratos ressaltam esse aspecto, quando
definem um percentual da produção total da ADEC destindado à Veja.
Felizmente, graças à ampla divulgação dos bons resultados na mídia, o algodão orgânico está de
vento em popa: no segundo semestre de 2007, um grande número de novos compradores estava
na fila de espera. A pergunta agora é: como administrar o crescimento? A ICCO, uma importante
agência de cooperação holandesa que apóia cadeias produtivas, está exigindo da ADEC a
elaboração de um plano de negócio para os próximos anos. A Fundação Banco do Brasil está
querendo financiar um novo galpão e uma descaroçadeira a fundo perdido. Mas não é tão fácil
transformar agricultores em empreendedores. Na ADEC, por exemplo, apesar da insistência do
ESPLAR, as planilhas de custos ainda não fazem parte da rotina.
Essa não é apenas uma questão econômica ou administrativa. A pergunta, reformulada, poderia
ser: como resistir à tentação de aumentar a produção descuidando dos outros parâmetros –
políticos, sociais e ambientais? “Vamos crescer de acordo com o tamanho do mercado justo”,
responde Pedro Jorge. Não é tão simples, pois a produtividade do consórcio familiar é limitada.
Isto é, o único jeito de aumentar a produção é aumentar o número de produtores. O que significa
mais assistência técnica e mais formação dos agricultores. Ambas funcionam na base de
momentos de capacitação, visitas de acompanhamento, intercâmbios, trocas de conhecimentos
entre pares – que são lentos por natureza, enquanto a demanda está crescendo muito rapidamente.
Se houver desatenção, a forte demanda pelo algodão pode chegar a atropelar o consórcio no seu
princípio mesmo. Chagas Maia, gerente da ADEC não gostaria de repetir o que ocorreu na safra
Duas grandes ameaças externas também preocupam. Como será que o algodão reagirá à forte
seca que, irremediavelmente, vai chegar, como já chegou inúmeras vezes desde que o sertão é
sertão?
“Acho que, se houver uma seca, a produção vai diminuir, mas não vai acabar, responde
Chagas Maia. Precisamos persistir no plantio de algodão arbustivo, que dura três anos, e
não cair na armadilha de plantar apenas o herbáceo, que rende mais mas é anual. E para
dar sustentabilidade ao algodão, devemos também cuidar melhor da comercialização de
outros produtos do consórcio, como o gergelim.”
Outra grande preocupação é o algodão transgênico, que pode inviabilizar o cultivo orgânico.
“Vamos exigir do governo federal que o sertão seja decretado zona de exclusão para os
transgênicos, como já ocorre em outras regiões como o Pantanal e a Amazônia”, continua
Chagas Maia.
O ESPLAR, Ong veterana criada em 1974, não tem medo de lidar com o mercado.
“Na década de 80, já havia essa discussão. Diferentemente de outras Ongs, o ESPLAR
sempre defendeu que, tanto a relação com o Estado como a relação com o mercado, são
necessárias. Hoje, lidar com o grande mercado passou a ser comum para nós. Não temos
medo porque existe uma grande clareza, e porque o agricultor se beneficia.”
É verdade, porém os ganhos para o agricultor familiar não são tão grandes e, até, destoam em
relação à forte empolgação em torno do consórcio agroecológico, do comércio justo e do
mercado internacional orgânico. Com um hectare de consórcio, uma família apura um valor
bruto da ordem de 800 a 950 reais (US$460,00 a US$540,00) por ano65. O que pode, no máximo,
ser qualificado de complemento de renda razoável. O processamento do óleo de gergelim
oferece certamente boas perspectivas para incrementar a renda oriunda dos consórcios. Mas este
é um negócio totalmente diferente do algodão: são outros tipos de máquinas e os mercados do
gergelim precisariam ser melhor conhecidos.
A onda do comércio justo levanta várias questões. Autores como Lecomte insistem muito no fato
de que “o comércio justo não é caridade” porque trata-se de “um novo modelo econômico
eficaz”. A proposta consiste em introduzir os agricultores no mercado, com o objetivo de que se
tornem empreendedores autônomos. Talvez seja possível para alguns, organizados em
cooperativas. Não temos certeza de que seja possível para a maioria, nem mesmo que seja esse o
seu desejo. É como se os adeptos do comércio justo quisessem universalizar uma única via, a do
mercado, dotada de maiores virtudes que as outras - a redistribuição, o autoconsumo, a
solidariedade – para promover o desenvolvimento sustentável. Sem negar as virtudes do
comércio justo, evidentes na experiência do ESPLAR e da ASSEMA, a “hibridação” de vários
princípios econômicos – mercado, redistribuição pelo Estado e solidariedade – talvez seja uma
via mais flexível e mais promissora66.
No início dos anos 90, a ASSEMA já discutia a comercialização dos excedentes de arroz e farinha
de mandioca. Logo, deu-se conta de que havia um mercado interessante para o babaçu, desde que
se conseguisse sair das garras do atravessador. A COPPALJ nasceu em 1991, em Lago do Junco.
Comprava acima do preço convencional o carvão da casca do babaçu e a amêndoa, através de
uma rede de cantinas espalhadas nas comunidades. Nas cantinas, o produtor podia trocar a
amêndoa e o carvão de babaçu por dinheiro, ou por produtos básicos, como sal, café, açúcar,
sabão, arroz...
Demoraria muitos anos até a COPPALJ tornar-se autosuficiente. Nos seus primeiros anos,
cometeu erros, corrigiu o rumo, sofreu desvio de dinheiro, contraiu dívidas, um acidente destruiu
o caminhão, o número de cooperados caiu e depois subiu novamente, a cooperativa passou por
várias crises e por longos processos de avaliação para, no final das contas, firmar-se como
referência nacional e internacional do movimento agroextrativista.
Em 1992, um ano após a criação da COPPALJ em Lago do Junco, três outras cooperativas
nasceram em três municípios vizinhos. As duas que comercializavam amêndoas de babaçu
faliram, vítimas de uma visão irrealista do mercado e da falta de compromisso dos seus membros.
A COOPAESP, de Esperantinópolis, sobreviveu e continua viva até hoje. No início,
comercializava apenas os excedentes da produção de arroz. O arroz deu prejuízo, e os assessores
da ASSEMA voltaram-se para a extração do mesocarpo de babaçu, com os quais as mulheres
costumavam fazer mingau. Firmaram uma parceria com a EMBRAPA, analisaram o produto,
estudaram o mercado e partiram para a produção de mesocarpo em maior escala, rumo ao
aproveitamento integral do babaçu.
A COPPALJ começou realmente a firmar-se a partir de 1995, quando a Bodyshop, uma empresa
inglesa de cosméticos, resolveu comprar 63 toneladas de óleo de babaçu por ano, por um preço
três vezes superior ao do mercado convencional.
Hoje, a COPPALJ vende um terço da sua produção de 150 toneladas de óleo para outras empresas
do comércio justo como a Natura, por cerca de 3 dólares o quilo. Os dois terços restantes vão para
o mercado local, por um dólar o quilo, valor médio da cotação internacional. Graças ao comércio
justo e à prática do pagamento adiantado, foi possível superar um dos maiores gargalos das
cooperativas populares: a falta de capital de giro.
“No início a Bodyshop deu folga. Hoje, fazendo a média entre o mercado justo e o
mercado local convencional, dá para enfrentar o atravessador.”
Comparados com o mercado do óleo de babaçu da COPPALJ, que faturou mais de um milhão de
reais em 2006, os demais mercados apoiados pela ASSEMA são muito pequenos. O segundo
mercado mais importante é o da torta de babaçu, subproduto da extração do óleo. Essa ração de
primeira qualidade, vendida prioritariamente aos cooperados, rendeu quase R$100 mil em 2006.
Os sabonetes, que têm no óleo de babaçu sua principal matéria prima, são fabricados por
mulheres na comunidade do Ludovico. Algumas caixas já foram exportadas para os Estados
Unidos, mas a principal saída são as lojas da capital maranhense. O faturamento foi da ordem de
R$40 mil em 2006. Em 2007, a fábrica foi embargada pela Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (ANVISA), que exigiu reformas no prédio por um valor superior a R$100 mil! A fábrica
teve que parar a produção até achar uma solução. Tem capacidade suficiente para produzir até 40
mil sabonetes por mês, faturados um real cada. As quebradeiras que nela trabalham não são
remuneradas pelo volume da produção. Elas recebem um valor fixo de R$12,00 por diária de
trabalho e trabalham por encomendas. A título de ilustração, para atender uma encomenda de
9.000 unidades, foram necessárias 60 diárias de trabalho. As seis pessoas que trabalharam
durante duas semanas receberam R$120,00 cada. O maior custo de produção são as essências
(100 a 600 reais por quilo, quantidade necessária para fabricar pouco mais de 1000 sabonetes de
90g). Por isso, as mulheres do Ludovico já estão se capacitando para produzir as essências
localmente.
O mercado justo nacional do óleo orgânico está crescendo. Atendê-lo, desde o Maranhão, não
tem sido fácil, segundo Valdener, da ASSEMA.
“O mercado justo nacional são pequenos grupos muito distantes, do Sul do Brasil. Aqui
no Maranhão o transporte é um problema. Por exemplo, um grupo de Botucatu (SP) pediu
180 quilos de óleo por mês durante quatro meses. A quantidade é pequena, mas a
encomenda significa muita logística para nos. Perdemos um dia só para levar a
mercadoria para São Luis; quando chegamos lá, às vezes, a transportado ainda não está.”
“A economia solidária se realiza no mercado. Mesmo quando se procura articular redes, estas têm
que confrontar-se com o mercado”, provoca Armando de Melo Lisboa67. Essa foi, de fato, a dura
lição aprendida pela ASSEMA com sua loja em São Luis, a Embaixada do Babaçu Livre,
tecnicamente falida. “A loja está no mercado capitalista e deve seguir as regras desse mercado”
reconhece Francinaldo, secretário executivo da ASSEMA. Uma dessas regras elementares é
vender acima do valor de custo, ou então compensar a perda em um item, com o lucro em outro.
Parece óbvio. Mas não é. Na prática, nem sempre ocorre, pelas mais diversas razões. Uma delas é
que ninguém sabe exatamente o valor dos custos de produção. Outra tem a ver com a
segmentação do circuito devido à distância geográfica e social entre quem produz e quem vende,
com as subseqüentes dificuldades de comunicação. Francinaldo diferencia claramente a venda na
loja da “relação com a Body Shop, construída dentro dos parâmetros do mercado justo”. Há de
fato uma grande diferença entre o mercado justo, onde a troca se dá “entre atores organizados”, e
uma loja onde os “produtos oriundos da economia solidária constituem simples mercadorias
destinadas ao mercado”68, e são submetidos às suas leis.
Sabemos também que, se por um lado o comércio justo traz uma maior estabilidade dos preços
em benefício dos produtores, por outro, ele continua se dando na economia capitalista e não é
isento de influências macroeconômicas. Assim, o desmoronamento do dólar em 2007 provocou
uma queda brutal do faturamento da COPPALJ com óleo de babaçu.
A ASSEMA é uma ONG pioneira na relação entre pequenos produtores e grandes empresas
internacionais do comércio justo, a começar pela Body Shop, em 1994. Desde então, um dos seus
papéis é buscar novos mercados. Ora, se é relativamente fácil vender óleo de babaçu para a
fábrica local de sabão em barra, o mercado justo é complexo e bastante exigente.
Foi exatamente dessa maneira, debatendo-se com novos problemas à medida que eles se
apresentavam, que a ASSEMA foi acumulando conhecimentos sobre os meandros do mercado
internacional.
“As forças do mercado apontam para uma necessidade de melhor capacitação das
organizações para negociações.”
.Essa foi uma das lições aprendidas pelo ESPLAR depois de ficar com a safra de 2003 encalhada,
quando a empresa Osklen, de última hora, desistiu da compra. Saber negociar, comprar e vender,
aprender a planejar a produção em função da conjuntura e de projeções de mercado, tudo isso faz
parte da longa lista de habilidades requeridas pelo mercado.
“O mercado tem dono: é quem faz o preço, aprendeu Marcus Vinicius, ao longo dos anos
de contato com empresas capitalistas. O preço do algodão convencional é ditado pela
bolsa de Chicago, e o da castanha de caju, pelos grandes compradores.”
A COPPALJ também descobriu essa regra básica logo no início dos anos 90, quando quebrou
depois de meses de dumping por parte dos atravessadores. Depois desse episódio, boa parte de
seus esforços consistiram justamente em fazer o inverso: impor ao mercado local um preço alto
para a amêndoa de babaçu. Conseguiu essa façanha graças à transformação da amêndoa em óleo,
porém apenas na sua área de influência, circunscrita a seis ou sete municípios.
“Para a COPPALJ, poder pagar à quebradeira um real por quilo de amêndoa, precisa
vender o óleo acima de R$3,15/kg” calcula Valdener.
Para tanto, a COPPALJ compensa eventuais perdas no mercado local de óleo com ganhos
maiores no mercado justo. Essa estratégia é semelhante à do atravessador, que compensa o preço
alto da amêndoa na região de influência da ASSEMA, pagando preços mais baixos para as
quebradeiras fora dessa região.
Não precisa insistir nesse tema, já muito comentado. È simples: famílias pobres que entregam sua
produção hoje não gostam e, muitas vezes, não têm condição de receber amanhã.
“Não pode demorar demais, senão acabam vendendo mais barato para atravessadores,
por isso precisa de capital de giro” constata Pedro Jorge.
Venda prematura, fuga de cooperados, licores à espera de frascos: os exemplos não faltam.
“Sem capital de giro, é impossível crescer e manter o quadro de sócios”, conclui Chagas
Maia, da ADEC.
“A economia solidária não é diferente da economia clássica: tem que atrair e satisfazer o
cliente” provoca Marcus Vinicius.
Idem do lado do Maranhão: em 1995, quando a COPPALJ quebrou e deixou de produzir óleo
durante seis meses, “o cliente de Fortaleza foi comprar de outros fornecedores.”
A concorrência faz parte do jogo. Por um lado, consumidores cada vez mais bem informados são
potenciais clientes dos mercados orgânicos e justos. Por outro lado, nunca deixam de ser
consumidores que, em troca de dinheiro, querem achar na prateleira os produtos que procuram,
gostam de ser bem atendidos e exigem qualidade. Daí a necessidade de desenvolver métodos de
capacitação dos produtores agroecológicos que têm contatos diretos com os consumidores na
feira e, também, de fazer regularmente pesquisas junto à clientela.
Ainda há muito caminho para andar até chegar ao “consumo solidário” que, segundo Mance, visa
“satisfazer as necessidades e desejos do consumidor” buscando, ao mesmo tempo, “o bem-estar
dos trabalhadores que produzem e distribuem os produtos ou serviços; o equilíbrio dos
ecossistemas; uma sociedade justa e solidária70”.
É também distinto do consumo “crítico”, em que o consumidor procura não ser “cúmplice de
ações desumanas ou ecologicamente nefastas.”, mas eventualmente continua comprando
produtos de empresas capitalistas.
Não se pode evitar os riscos, mas é possível minimizá-los, uma vez que, como Abramovay
adverte,
Este é, aliás, um dos principais motivos da venda para os atravessadores, que é “uma forma de
reduzir o risco”. Por isso,
É o que o ESPLAR busca através dos consórcios, até então centrados no algodão, porém
oferecendo aberturas para o comércio de gergelim e outros cultivos no futuro.
Diversificar os mercados pode ser uma falsa boa idéia se essa diversificação for excessiva ou
descontrolada. Em Umarizal, por exemplo, o mercado institucional, interessante, porém
ocasional, colocou em risco a feira, que tem freguesia semanal. Na mesma região, a diretoria da
associação dos produtores sonha em abrir um ponto de venda fixo com câmara fria, onde a
produção poderia ser entregue diariamente. A tentação é grande, mas toda cautela é pouco. Os
investimentos e as habilidades requeridas para esse novo modo de comercialização são muito
diferentes de uma feira onde o produtor traz e vende a própria produção. Quem cuidará da loja?
Essa pessoa será remunerada? Ou haverá um sistema de rodízio? Como garantir a regularidade do
abastecimento? Como dividir o valor da venda dos produtos entre produtores? E também, como é
que os agricultores distribuirão a sua produção entre a feira semanal, a venda na comunidade, o
mercado institucional e a loja? Antes de tudo, seria prudente acompanhar de perto a experiência
do Caatinga, uma ONG do sertão pernambucano, que abriu recentemente um armazém de venda
de produtos da agricultura familiar.
Os municípios do interior do Nordeste têm uma grande extensão, péssimas estradas e um sistema
de transporte precário. A distância, o isolamento, o custo do frete dificultam sobremaneira a
comercialização da produção rural. A pé, de bicicleta, de burro, de moto, de carro, de camionete
ou de caminhão, as famílias fazem o que podem para escoar seus produtos. Uma prefeitura
municipal com um pouco de visão dinamizaria bastante a sua economia investindo, o mínimo que
seja, no acesso às comunidades e no transporte coletivo. Evitaria assim que os “Iranildos” da vida
pedalassem todo sábado 50 quilômetros debaixo do sol sertanejo, em suas bicicletas abarrotadas
com isopores e sacolas cheios das frutas e verduras do quintal. Só porque, devido à distância,
fretar um carro não compensaria, e não existe o serviço elementar de transporte coletivo.
Este é um vasto tema, que não vamos esgotar aqui. Apenas constatamos que, tanto o ESPLAR
como a ASSEMA, acabaram certificando a sua produção orgânica com selos convencionais. Foi
exigência das empresas internacionais do comércio justo, que a bancaram, pois esse tipo de
certificação é caro.
Vale notar, contudo, que durante quatorze anos, o algodão da ADEC não precisou desse tipo de
selo. A própria Veja, que fabrica os tênis, não o exigiu. Não há problemas, pois a sua relação com
a ADEC está baseada na confiança, e a distribuição dos tênis se dá através de pequenas lojas de
varejo. Já a Alter Eco, outra empresa francesa do comércio justo, sempre exige um selo
internacional FLO72, indispensável para distribuir produtos em supermercados. Neste caso, a
confiança que brota do contato direto não é mais suficiente. As grandes redes de distribuição
querem contratos, garantias, selos oficiais. É a sua imagem que está em jogo: imagem positiva de
protetora do meio ambiente, solidária com os mais pobres, se tudo correr bem. Mas, se houver
qualquer contratempo, essa mesma imagem pode se tornar negativa e este é exatamente o tipo de
risco que uma multinacional exposta à mídia não quer correr – daí a obrigatoriedade do selo nesse
tipo de mercado.
Chagas Maia, gerente da ADEC, aprecia essa obrigatoriedade da certificação: “Ela vai no sentido
da agroecologia e impõe uma adaptação rápida.” Francinaldo, da ASSEMA, também enxerga
nela várias vantagens:
Outra discussão a ser travada diz respeito aos registros e outras exigências legais. Dispensáveis –
ou pelo menos, dispensados de fato – no início da comercialização, quando o volume ainda é
baixo, tornam-se imprescindíveis para produzir e vender em grande escala.
“A rede nacional de supermercados Pão de Açúcar quer comprar dez mil unidades de
nossos sabonetes por mês, diz Valdener. Para ingressar nesse mercado, vamos precisar
regularizar a situação junto à ANVISA, que exige mudanças na fábrica. O problema é que
essas mudanças custam mais de 100 mil reais! Estamos tentando um financiamento a
fundo perdido, pelo Projeto de Incentivo ao Desenvolvimento Local do governo do
Maranhão.”
Abramovay, por sua vez, fala dos fatores de sucesso e fatores limitantes de diversas
“experiências de integração dos pobres aos mercados74”. Os fatores de sucesso são ligados à
educação, organização, preservação ambiental, assistência técnica, agregação de valor,
promoção da comercialização e valorização do produto orgânico. Os fatores limitantes têm a ver
com organização, capital, mudanças de governo, custos de certificação, pequena escala, infra-
estrutura, escoamento e pragas.
A contabilidade da COPPALJ e a da ADEC são rigorosas. Balanços mensais e anuais das receitas
e despesas permitem monitorar o desempenho da produção e da comercialização. A partir desses
dados, podemos saber quanto as famílias ganham com a comercialização do babaçu ou do
algodão. Em outros termos, podemos calcular o valor da renda bruta média por família com
aquele produto. Mas calcular os custos de produção e de comercialização para chegar à renda
líquida é muito mais difícil. Precisaria levar em conta as doações, pesquisas, horas de assessoria,
intercâmbios, custos organizacionais. Como nota Domingos Armani75 num livro que trata de
mobilização de recursos:
“Quanto vale a massa orgânica que o solo ganha com a produção agroecológica?”
pergunta Marcus Vinicius, do ESPLAR.
Em nível individual, notamos um fenômeno curioso. São poucos os produtores que calculam
custos e benefícios na ponta do lápis. Mesmo assim, parecem saber se estão ou não perdendo
dinheiro. A equipe da Diaconia notou, por exemplo, que
“Os produtores não colocam um preço à altura do que vale realmente o produto
agroecológico, que dá mais trabalho e é mais saudável. Mas quando o atravessador quer
comprar o molho de coentro por 5 centavos, respondem que preferem dar para os animais.
Parece que, para eles, o valor mínimo que compensa é 7 centavos. Comparam com o preço
na feira, com o valor do dia de serviço e com o valor de outros produtos como o fumo.”
Da mesma forma, quando chegam na feira, em Umarizal, começam por se informar do valor dos
produtos nas outras bancas, não orgânicas, e fixam esse mesmo preço para a sua mercadoria.
Quando fomos entrevistar o dono do mais próspero supermercado de Umarizal, ele confessou
que, como os produtores, ele não faz uma contabilidade precisa: “Faz sete anos que estamos
abertos, mas é só agora que o contador está organizando as coisas. Sei o que ganho pelo que
consigo comprar para mim, o tipo de carro, por exemplo. Sei também que preciso ter oito
produtos de base com preços melhores que a concorrência, pois são eles que o consumidor olha
mais.”
Parece ser esse tipo de benchmarking – comparação com a concorrência, muito usada pelas
grandes empresas – que permite a todos se situarem e que, também, regula em parte o mercado.
A escassez de informações mais precisas também vem do fato de que, para as ONGs e os
agricultores, o ingresso para valer no mercado significa adentrar um universo inteiramente novo,
cheio de potencialidades, mas com exigências próprias para as quais não estão bem preparados.
De certa forma, as ONGs estão ainda menos preparadas que os agricultores, cuja renda sempre
dependeu do contato com o mercado – atravessador, armazém, feira de animais... – enquanto o
dinheiro das Ongs sempre veio através de projetos e doações.
Outro fator: poucas são as ONGs, mesmo entre aquelas que obtêm bons resultados, que se
preocupam em mensurar mais precisamente esses resultados. A entrada no mercado levanta uma
nova pergunta, de ordem quantitativa: o negócio é economicamente viável ou não? A sanção do
mercado é objetiva – novidade um tanto assustadora num universo ainda fortemente marcado
pelo político e que não incorporou indicadores de desempenho na sua rotina (e, não raro, recusa-
se em fazê-lo).
É preciso ainda ressaltar que as equipes técnicas das ONGs raramente têm a formação necessária
para lidar com o mercado, isto é, para poder dar o apoio que as cooperativas, associações, lojas e
outras empresas “solidárias” precisam. Surge o dilema: onde achar aquele técnico ideal que,
primeiro, tem a alma militante e compartilha os valores políticos, sociais e ambientais; segundo,
conhece bem o mercado; terceiro, aceita as condições salariais pouco atraentes das ONGs e, por
fim, está disposto a viajar sertão adentro e possui as habilidades didáticas e relacionais que
requer o diálogo com os agricultores? A ASSEMA não conseguiu achar a resposta: seis
vendedores se revezaram na Embaixada do Babaçu em menos de quatro anos.
“Talvez um vendedor puro não sirva para a gente, se pergunta Francinaldo. A ASSEMA
não é uma empresa. Ao mesmo tempo, a loja está no mercado capitalista.”
“Ainda temos que aprender muito. Além da feira, estamos entrando agora no mercado do
algodão. Nossa formação como técnicos não tratou disso.”
Existe todo um universo oculto de práticas de reciprocidade nas três experiências em foco, quase
sempre ignoradas na medida em que vêm mescladas às práticas do mercado capitalista e de
redistribuição pelo Estado. No Rio Grande do Norte, podemos citar, entre outras práticas
solidárias, os fundos rotativos para kits de irrigação e as trocas de produtos entre agricultores no
final de cada feira.
Da mesma forma, no Ceará, o lucro não é o que fala mais alto: a empresa do comércio justo Veja,
apesar da alta demanda de algodão orgânico, faz questão de não comprar toda a produção da
ADEC, incentivando assim a diversificação dos compradores. O mesmo vale para a Cones, da
Justa Trama, que aceita fazer a limpeza completa de suas máquinas para rodar, durante um dia
apenas, todo o fio de algodão orgânico da ADEC. No Maranhão, a COPPALJ criou um fundo de
assistência social para outras entidades e a ASSEMA recebe o apoio de um grupo de dezenas de
voluntários que escrevem livros, filmam, discutem, dão uma força na loja... E nesses três estados
como em todo o sertão, agricultores agroecológicos recebem visitas, discutem, trocam sementes
e conhecimentos...
Para Sabourin, práticas econômicas gratuitas como essas não são ornamentais ou meramente
complementares. Não “relevam o altruísmo ou qualquer tradição camponesa. São necessárias ao
processo de produção (...) e para garantir a coesão da organização social a partir da produção de
valores humanos ou éticos comuns”78 . Adverte, contudo, para não cair no extremo oposto,
pensando que a solidariedade resolve tudo. O crédito solidário, por exemplo, depende de
voluntariado e reciprocidade, mas também não dispensa boas capacidades operacionais e
técnicas.
Na ASSEMA, a luta política pelo livre acesso ao babaçu não se dissocia da luta econômica para
garantir a matéria prima para a fábrica de óleo, da luta social por melhores condições de vida na
região e da luta ambiental contra os agrotóxicos, as queimadas e o uso do trator.
“Já recusamos muitas demandas de grandes volumes de óleo orgânico. Várias empresas já
ficaram aborrecidas conosco por causa disso, mas nosso objetivo é manter a base, o
babaçual”.
Para o gerente da COPPALJ, Toinho, o objetivo também não é crescer, e sim “a qualidade de vida
dos sócios”.
“A comunidade indica a pessoa, que só se torna sócia após seis meses, com a condição de
participar ativamente das reuniões, explica Francinaldo. Ao longo dos seis meses, várias
pessoas desistem e quem ficou ainda precisa ser aprovado pela assembléia da
cooperativa.”
Por isso, o quadro de sócios da cooperativa cresce muito lentamente, apenas quatro ou cinco
novos cooperados por ano. A primeira vista, os efeitos são positivos: engajamento político e
eficácia econômica parecem progredir juntos.
No seu livro sobre mobilização de recursos, escrito a pedido da Oxfam, Domingos Armani
resume os princípios da Assema para a comercialização de produtos em um quadro, reproduzido
abaixo.
·Respeito ao modo de vida da população
·Uso do conhecimento tradicional
·Geração de renda a partir das potencialidades da comunidade
·Foco na melhoria da qualidade de vida das pessoas, na melhora da renda e na redução das
desigualdades
·Criação de novos sistemas de produção e de novas relações de trabalho
·Instrumentos de gestão dotados de significado para as pessoas das comunidades, com
capacitação destas para seu uso consciente
·Plano de Negócios como instrumento de transformação social, com discussões políticas em
sua elaboração e adoção
·Sistematização da tecnologia social desenvolvida, possibilitando que mais pessoas sejam
incorporadas ao empreendimento social
Ao oferecer preços acima da média, o programa de compra garantida do governo federal atraiu
agricultores familiares, que passaram a descuidar da freguesia, esvaziando assim por um tempo a
feira agroecológica semanal de Umarizal. No mesmo município, alguns agricultores, inclusive
entre aqueles que pertencem à associação, tendem a se pautar mais pelo ganho rápido do que pela
ética. Por falta de consciência coletiva e na ausência de uma boa coordenação pela associação,
não resistem à tentação de vender para atravessadores e comerciantes que fazem concorrência à
feira.
No Ceará, em razão de dificuldades com o capital de giro, houve um ano em que o número de
sócios da ADEC despencou de 350 para 50 em poucos meses. Foram poucos os sócios dispostos
a agüentar tempos melhores em nome de ideais mais elevados. No Maranhão, o mesocarpo de
babaçu está em falta por razões semelhantes: “É trabalhoso e a renda não é tão atrativa: é mais
fácil vender a amêndoa ou receber o bolsa-família”, lamenta Francinaldo. Pior ainda: já houve
casos de famílias vendendo galinha orgânica para comprar galinha “industrial”. Um absurdo em
“Trabalhamos a geração de renda com a família de modo que integre o lado político,
porque é o econômico que puxa. A ASSEMA puxa para o lado político e a família puxa o
outro lado, o econômico.”
“Já trabalhei com família que, antes, não tinham feijão o ano todo e que, hoje, tem
segurança alimentar, casa, um animal no terreiro para vender em caso de necessidade,
conta a socióloga Silvianete, da ASSEMA. Mas, hoje, estão lidando com a economia de
mercado: ou têm poder de concorrência ou não geram renda suficiente.”
Na fábrica de sabonetes, por exemplo, as mulheres pretendem, é claro, gerar renda para suas
famílias, mas querem também continuar a quebrar coco, criar galinhas e participar de reuniões
políticas.
“Não querem trabalhar oito horas por dia na fábrica e virar operárias, continua Silvianete.
Mas aí, sem virar operária em tempo integral, como atender o cliente em dia, na
quantidade pedida?”
“Podemos fazer um rodízio: somos mais de 20 sócias, nem todas precisam trabalhar ao
mesmo tempo”, dizem as quebradeiras-operárias.
E se vier um pedido maior, implicando em meses de produção intensiva, qual seria a decisão?
Atender ou não? Na COPPALJ como na ADEC, onde a fama trouxe muita demanda, a resposta é
clara:
atender, sim, porém, na medida das possibilidades, ainda bastante limitadas. Toda cautela é pouca
para não atropelar um processo lento por natureza, que supõe tomar decisões de forma colegiada,
crescer de modo orgânico, priorizar o mercado justo... “É uma construção progressiva”, resume
Chagas Maia, da ADEC.
O trabalho dos consórcios ficou muito mais fácil a partir de 2004, quando o preço do algodão
estabilizou-se num patamar atrativo. Ao mesmo tempo, porém, o crescimento do número de
consórcios foi tão rápido que a assistência técnica não teve pernas para acompanhar o
movimento. Resultado: em 2007 houve “transições agroecológicas irregulares”, com consórcios
apresentando taxas de 90% de algodão. Nessas condições, será que o ganho econômico pode ser
considerado um ponto de entrada interessante para a conversão agroecológica?
“O bom preço ajudou, foi provavelmente o principal fator motivador para o crescimento
do plantio de algodão em 2007, responde Pedro Jorge. Até 2006, o avanço se dava mais
pelos intercâmbios ou entre vizinhos. Mas o ganho econômico não é tão significativo
assim, não explica tudo. As pessoas também tomam consciência dos benefícios da
agroecologia a partir da experimentação concreta. Aos poucos, vão criando uma nova
identidade. Além disso, os sindicatos fizeram muita sensibilização nas comunidades.”
Chagas Maia, gerente da ADEC, compartilha esse anseio, mas fica preocupado com o
crescimento anárquico da produção em detrimento da qualidade do produto.
“O problema é que o dinheiro que o cliente mandou foi para primeira qualidade e alguns
sindicatos mandaram algodão de segunda.”
Chagas Maia é a favor de certa flexibilidade no primeiro ano da transição agroecológica, para
sensibilizar novos sócios. “Mas se não fizerem o consórcio corretamente ou se continuarem
queimando no segundo ano, teriam que sair.” A certificação, além do forte atrativo econômico,
também ajuda a trabalhar a qualidade e o respeito ao meio ambiente:
Então, atrair novos adeptos da agroecologia pelo dinheiro é uma boa estratégia? Pedro Jorge acha
que sim, porém, sob certas condições:
Ou seja, trata-se de atrair novos adeptos a fim de aumentar a produção, mas sem descuidar, nem
da qualidade do produto, nem do equilíbrio da formação dos consórcios. Pedro Jorge reconhece,
“Os transgênicos são uma grande ameaça, que pode acabar com a nossa cadeia produtiva.
Mas sua chegada pode também ser vista como uma oportunidade para dar um salto
qualitativo no trabalho do ESPLAR, que ficou muito no econômico e no organizacional, e
pouco no político.”
Ora, são precisamente as dimensões políticas e ambientais que fazem a diferença. Sem elas, o
ESPLAR ou a ADEC tornar-se-iam uns atravessadores a mais, que atraem o agricultor familiar
com argumentos meramente econômicos.
Na mesma linha, o ESPLAR já pagou subsídios aos agricultores para incentivá-los a criar
consórcios e compensar os riscos que comporta toda experimentação. A ASSEMA lança mão de
uma estratégia
semelhante para incentivar a produção agroextrativista e a COPPALJ paga prêmios para seus
sócios todo final de ano. Subsídios e prêmios são importantes incentivos econômicos. Sem eles, o
número de famílias praticando a agroecologia certamente seria menor. Mas são também
criticáveis por representarem estímulos individuais e voláteis, distribuídos em detrimento de
outras estratégias mais coletivas e sustentáveis. Por exemplo, a ADEC, pelo fato de pagar
prêmios, nunca conseguiu acumular reservas para formar seu capital de giro. O ESPLAR se viu,
então, compelido a emprestar esse capital para a ADEC, numa estratégia pouco sustentável, que
acabou junto com as reservas do ESPLAR.
“Antes, na época das lutas, as pessoas falavam de uma só voz e pensavam mais no
coletivo. Faziam dez quilômetros a pé para participar das reuniões sem receber um
centavo. Hoje ninguém mais faz isso; as pessoas estão desmobilizadas.”
Toinho, gerente da COPPALJ, não sabe bem o que motiva os sócios hoje em dia. “Antes era a
opressão os cooperados tinham princípios políticos.”. E hoje, é o dinheiro? Quando a luta política
arrefece, resta apenas a motivação pelo mercado?
Ao mesmo tempo, porém, a COPPALJ não teria como se sustentar apenas com 156 sócios
“conscientes”. Do ponto de vista econômico, ela precisa dos dois mil não sócios, de quem compra
amêndoas de babaçu. É nessa tensão permanente entre o político (a exigência de que os sócios
sejam realmente comprometidos) e o econômico (o volume mínimo de amêndoa para que o
negócio seja viável) que a COPPALJ vai crescendo lentamente. Para Toinho, “um esforço maior
deve ser feito para aumentar o número de sócios conscientes.”
Criar uma dinâmica de reequilíbrio permanente do econômico pelo político e pelo ético
“Andar juntos” significa criar uma dinâmica de reequilíbrio entre esses dois pólos. Assim a
ASSEMA já teve que “rever os ideais e discutir alguns posicionamentos: de quem aceitar
recursos financeiros? A quem vender os produtos?” Depois de longas e, por vezes, polêmicas
discussões internas, a ASSEMA já recusou o dinheiro de grandes empresas. O mesmo aconteceu
na Diaconia que, por razões éticas e políticas, não quis receber o dinheiro da fundação de uma
grande companhia de sementes e fertilizantes químicos, para apoiar as feiras no Rio Grande do
Norte. Discutir esse tipo de tensão até criar consenso na equipe leva tempo. Requer também certa
habilidade e flexibilidade para não inviabilizar os negócios.
“Para a venda do óleo de babaçu não podemos escolher os clientes, senão a cooperativa
quebra. Estamos agora com 30 toneladas armazenadas e sem capital de giro. Vamos
vender a quem for aparecer.”
No caso, a COPPALJ vende para fábricas de sabão comum, que não estão interessadas em saber
se o óleo é orgânico ou não e, talvez, não sejam exatamente empresas amigas do meio ambiente...
Mas, no momento, para a COPPALJ, é o possível. A quebra da cooperativa seria pior e
prejudicaria milhares de famílias agroextrativistas.
Na esfera não governamental, quando se quer lidar com o mercado – que, muitas vezes, quer
respostas rápidas – é preciso ter certo cuidado com o tempo que se leva em reuniões e discussões.
Conviver com essa tensão é um dos papeis mais delicados das assessorias (ESPLAR, ASSEMA
ou Diaconia). Trata-se, por um lado, de resistir às pressões do mercado para preservar a
democracia interna e a ética, fazendo também com que isso, por outro lado, não inviabilize a saída
comercial em benefício dos agricultores.
Nada fácil, devido às dificuldades de comunicação dessas assessorias com as comunidades rurais
e, sobretudo, às agendas superlotadas das lideranças. Em Choró, a presidente do sindicato faz um
retrato que dispensa comentários:
Há controvérsias sobre onde e para quem vender a produção agroecológica. Em lojas mais
sofisticadas ou circuitos especializados freqüentados por “consumidores conscientes” com
melhores condições econômicas? Em espaços militantes, nem sempre de grande expressão e
nem sempre bem administrados? Em supermercados, que são freqüentados por todas as classes
sociais, e estão tentando estabelecer uma imagem de empresa social e ambientalmente
responsável?
Por outro lado, as lojas da economia solidária podem não ser tão solidárias assim. Ali também
encontramos jogos de poder, organizações defendendo seus próprios interesses econômicos ou
simplesmente desorganização. Quando o Movimento dos Sem Terra (MST) abriu a própria loja,
retirou todos seus produtos da Embaixada do Babaçu, que deixou de se beneficiar com o valor da
consignação e com a diversificação dos produtos. Há também o caso de produtos como a
castanha de caju que, sem serem da ASSEMA, são sucessos de venda, mas podem sumir das
prateleiras durante meses, sem que haja notícias dos produtores.
Por outro lado, as Ongs falam bastante da dificuldade de achar quem financie projetos de
comercialização. O ESPLAR é a exceção que confirma a regra. Estima-se sortudo porque o
ICCO, uma das poucas agências que trabalha com cadeias produtivas, escolheu trabalhar
Outra fonte de renda seria a mobilização de recursos nacionais junto a doadores privados,
individuais ou institucionais. Apesar da insistência nessa tecla, salvo raras exceções, os
resultados das Ongs ficaram muito aquém do esperado. O programa de mobilização de recursos
da ASSEMA, por exemplo, a julgar pelo volume de recurso arrecadado, pode ser qualificado de
fracasso. Como última opção, muitas Ongs brasileiras estão agora se voltando para fontes
governamentais, com o risco não desprezível de perda de autonomia política. Voltaremos a esse
assunto na Terceira Parte.
Se levarmos em conta os custos da assessoria pelas Ongs, não temos certeza de que as três
experiências de comercialização aqui focadas sejam capazes de sustentar-se apenas através do
mercado. O que é compreensível, pois não são apenas empreendimentos econômicos. Devem,
também, ser consideradas nas suas dimensões políticas, sociais e ambientais. Resta, então, uma
pergunta fundamental em termos de sustentabilidade: quem se importa com o papel dessas
experiências de comercialização da agroecologia em suas múltiplas dimensões, a ponto de
bancá-las no longo prazo, sem interferir na sua autonomia? Em outros termos quem, no futuro,
vai bancar iniciativas de comercialização desse tipo?
Queda de braço com atravessadores, falência, dívidas, desvio de dinheiro, hemorragia de sócios:
a COPPALJ sobreviveu em mares muito revoltos antes de conhecer um período de (relativa)
calmaria. A ADEC, no Ceará, também conheceu altos e baixos extremos até recentemente. Não
fosse a teimosia de algumas pessoas, já teria fechado há tempo: em 2001, por exemplo, quando
quase todos os sócios saíram, ou em 2003, quando ficou com muitos sócios mas sem
compradores e com uma safra inteira de algodão encalhada.
Foi na adversidade que ambas aprenderam e reforçaram a sua estrutura. Em 2001, no auge da
crise, a ADEC, que até então trabalhava com sócios e não sócios, se deu conta de que que havia
muitos “passageiros clandestinos”. Eram não sócios que se beneficiavam com os apoios e não
avançavam na transição agroecológica. A partir de então, para ter direito à assistência técnica, a
adesão à ADEC passaria a ser obrigatória. Um subsídio gradual foi instaurado: 204 reais por
hectare de consórcio para quem aplicasse o conjunto das técnicas agroecológicas, e um valor
menor se a família deixasse de aplicar uma ou outra das técnicas preconizadas.
O que é a ASSEMA?
“Essa é uma boa pergunta, responde Francinaldo, secretário executivo dessa organização
à parte. Fazemos questão de não nos encaixarmos em uma definição única. A ASSEMA é,
ao mesmo tempo, uma rede regional de organizações da agricultura familiar, uma ONG
que tem uma equipe técnica e assessora outros grupos e cooperativas, e um movimento
social com forte capacidade de mobilização. Além disso, é nordestina e amazonense, ou
talvez seja nem uma nem outra, a depender do ponto de vista. O Maranhão faz
oficialmente parte da região Nordeste, mas é também contemplado por diversos
programas beneficiando a região amazônica, por ser um estado onde se opera a transição
entre Nordeste e Amazônia.“
Nas experiências estudadas, à cadeia produtiva mercantil (vinculada ao mercado) está associada
uma “cadeia social” não mercantil (porém monetária) que possui mais ou menos a seguinte
estrutura:
Agências internacionais como a Oxfam, ICCO e Action Aid são os principais financiadores de
projetos de comercialização da produção apresentados pelas Ongs, que ficam encarregadas de
implementar e monitorar esses projetos. Com o apoio dessas Ongs, cooperativas ou associações
cuidam mais diretamente do beneficiamento e da comercialização. O papel dos sindicatos de
trabalhadores rurais é mais de “difundir o novo modelo agroecológico, organizar e conscientizar
os agricultores através de intercâmbios, planejamentos, campanhas de mobilização, muitas
visitas e muito diálogo nas comunidades e assentamentos.”, como explica Eronilton Buriti, o
jovem diretor do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Quixadá, no Ceará.
Eventualmente, outros parceiros vêm completar essa cadeia social. São, entre outros,
pesquisadores, consultores autônomos ou agentes governamentais.. Assim, o Projeto Dom
Helder Câmara (PDHC) do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) é um parceiro
importante para o desenvolvimento da agroecologia no sertão nordestino. Por outro lado,
pesquisadores da Universidade Federal do Ceará estão com o ESPLAR desde a primeira hora,
quando em 1990, um entomologista participou, ao lado das famílias de agricultores, do grupo de
pesquisa do algodão. Foram assim produzidas dissertações e, até, fórmulas de produtos à base de
nim, usados como inseticidas naturais.
Atualmente, nessa cadeia social, o primeiro elo, o financiador, está dando sinais de
enfraquecimento, como visto acima (“Quem vai financiar a comercialização?”).
Conseqüentemente, sem recursos financeiros suficientes, a assistência técnica pelas Ongs,
Outros elos da cadeia social também apresentam fraquezas. Podemos citar, entre outros, a alta
rotatividade dos técnicos nas Ongs (é difícil a atração e permanência de técnicos experientes em
municípios perdidos no meio do sertão, onde as opções de estudo e lazer são muito reduzidas); a
dificuldade de achar sindicatos determinados em apoiar novas formas de produção (a maioria
prefere continuar cuidando de aposentadorias); o enorme desafio político da democracia que
tenta fazer dialogar várias categorias de atores (Ongs, cooperativas, sindicatos, agricultores,
governos) e a subseqüente morosidade dos processos decisórios.
No ESPLAR como na ASSEMA, dos primórdios até hoje, existe uma figura proeminente. Sem a
teimosia de um Pedro Jorge, no Ceará, e de um Valdener, no Maranhão, ninguém sabe o que seria
da ADEC e da COPPALJ hoje. Articular, mediar conflitos, sistematizar informações, procurar
financiadores, explorar novos mercados, cuidar de contatos internacionais, animar os sócios nos
momentos em que tudo parece perdido...: ao longo de mais de quinze anos Pedro Jorge e Valdener
tornaram-se figuras incontornáveis.
Mas o que fez a sua força representa também uma fraqueza dessas organizações, que ficaram
dependentes de um assessor externo ímpar, com experiência única e que, por isso mesmo, tornou-
se muito difícil de ser substituído. Hoje, sua saída provavelmente não acabaria com a ADEC ou a
COPPALJ (como seria o caso alguns anos atrás), mas provocaria um enorme retrocesso em
termos de visão estratégica.
Além da dependência em relação a indivíduos com determinadas personalidades, existe nas três
experiências a mesma simbiose, muito forte, entre a organização que comercializa e a Ong que
assessora. É sintoma dessa simbiose, essa declaração na primeira pessoa do plural, de um técnico
da ASSEMA, com relação à produção da COPPALJ: “Nós produzimos 300 toneladas de óleo este
ano”, como se não houvesse diferença entre assessor e assessorado. Na ADEC, o próprio gerente
reconhece a dependência institucional:
”Se o ESPLAR fosse desaparecer seria uma perda enorme, porque não é apenas
assistência técnica, é assessoria de gênero, meio ambiente, direitos... ao longo de mais de
30 anos. Seria muito difícil achar outro parceiro como este. O ESPLAR é companheiro,
irmão, tem compromisso e experiência.”
Acrescenta, porém, logo depois, “mas não podemos depender dele...”. Está bem resumido um
dilema que, provavelmente, não tem solução em curto prazo.
A Diaconia que ajudou a criar a AAOEV em 2002, tem a intenção de que esta associação se torne
autônoma. O estatuto da associação foi recentemente alterado nesse sentido. Na prática, porém,
ela continua precisando da ajuda organizacional da DIACONIA para diversificar e planejar a
produção. Precisa também da sua capacidade de articulação como do seu apoio financeiro.
Da mesma forma, a ASSEMA vai continuar por um bom tempo ainda a participar de feiras
internacionais de agricultura biológica e de articulações de economia solidária. A estratégia que
Além dessas três cooperativas ou associações com as quais estão em simbiose, as três Ongs
tentaram criar outros arranjos ligados à comercialização da produção. Em todos, encontraram
dificuldades.
O caso de maior sucesso, mesmo assim bastante problemático, é o GAM, na região de Tauá. Peça
central da expansão dos consórcios agroecológicos, está atravessado por tensões em torno da
qualidade e do peso do algodão, e por jogos de poder que requerem mediações.
A cadeia Justa Trama é emblemática no universo da economia solidária, por ter produzido as
sacolas de algodão para o Fórum Social Mundial de Porto Alegre. A equipe do ESPLAR a vê
como uma organização importante, porém frágil, “com problemas estruturais”. Além de
dificuldades na comercialização das pecas de confecção e da fragilidade dos elos intermediários,
a produção de algodão orgânico pela ADEC também apresenta fragilidades, capazes de debilitar
o conjunto da cadeia. Com efeito, a ADEC é o único produtor. Se falhar – em razão de
adversidades climáticas, por exemplo – toda a cadeia fica comprometida. Por isso, a expansão da
produção de algodão para outros estados do Nordeste é vital para a Justa Trama.
A maioria das tentativas de apoio citadas acima – o GAM, a cadeia Justa Trama, a Cooperativa
Babaçu Livre – visa ultrapassar o nível da cooperativa de produção e criar novos arranjos
econômicos para trabalhar na articulação de várias organizações. Esses exemplos mostraram que
as Ongs de assessoria estão ainda engatinhando nesse novo patamar. Ao mesmo tempo, porém,
ultrapassar o nível de uma única organização comercial para chegar à cadeia, rede, agrupamento
comunitário ou territorial, parece ser uma etapa incontornável na busca do desenvolvimento
sustentável. Por outro lado, já vimos que o apoio continuado, de longo prazo, da ONG para a
cooperativa/associação, é um elemento essencial para a sustentabilidade da comercialização dos
produtos da agroecologia.
“falta um olhar feminista para desvelar o papel da mulher no meio rural” e “grande parte
das estatísticas (...) não apresenta a diferença entre as dinâmicas femininas e masculinas”.
Por sua vez, Felipe Jalfim, no seu estudo sobre a criação de galinhas pelas mulheres, ressalta a
força da cultura patriarcal no semi-árido nordestino. As mulheres têm pouca voz nas tomadas de
decisão em geral, em particular com respeito à comercialização da produção. Outro elemento
característico dessa cultura tradicional é a nítida divisão sexual do trabalho, com as mulheres
cuidando mais da casa (trabalhos domésticos, crianças, água...), do quintal (hortaliças, frutas,
plantas medicinais, manejo dos pequenos animais) e da comercialização dos produtos na
comunidade e na feira. Os homens “ficam responsáveis pelos animais maiores, os cultivos e seus
respectivos processos de comercialização”. Mesmo assim,
Na Diaconia onde “o olhar de gênero é recente”, o trabalho ocorre, sobretudo “no âmbito
familiar” e versa sobre “os direitos da mulher, do homem e dos filhos”. É feito “em conjunto,
diferentemente de certas vertentes do movimento feminista, que trabalham sem a presença dos
homens.” A Diaconia também atua junto a grupos de mulheres que produzem e comercializam
hortaliças na feira.
Os avanços mais nítidos em termos de gênero se deram no campo político. Dentro da família, a
divisão do trabalho, das responsabilidades e das decisões pouco evoluiu, e o comportamento dos
homens não mudou muito. No campo econômico, os ganhos também têm sido lentos, apesar da
presença cada vez maior de grupos de mulheres que se organizam para produzir e comercializar,
de casos em que a mulher é chefe de família, e de famílias onde a mulher comercializa os produtos
na feira.
Hoje, no Sertão, não é mais uma raridade achar uma mulher presidente de associação ou de
sindicato de trabalhador rural. Nas áreas de atuação das três ONGs, que são regiões com tradição
de mobilização política e social, talvez haja uma maior concentração ainda de lideranças
femininas. Em Lucrécia, perto de Umarizal, no Rio Grande do Norte, há muitos grupos de
mulheres e elas têm forte presença nas associações. Em Canindé e Choró, no Ceará, as
presidentes dos sindicatos de trabalhadores rurais coordenam o trabalho com os consórcios de
algodão. “São duas lideranças que se destacam”, enfatiza Adriana, responsável pelo tema de
gênero no ESPLAR. Na região do Médio Mearim, no Maranhão, as quebradeiras sempre tiveram
papel de destaque. A ASSEMA atuou como uma espécie de incubadora de lideranças, tanto
masculinas como femininas.
“O MIQCB85, que cobre quatro estados, surgiu de um grupo de estudo na ASSEMA. Hoje,
está firmado como força política.” constata Valdener. Ivete Ramos Silva, atual presidente
da COPPALJ, também é uma liderança política conhecida, que passou pelos programas
de formação da ASSEMA. A própria ASSEMA, como também a DIACONIA e o
ESPLAR, adotaram um sistema de paridade entre homens e mulheres no seu quadro de
pessoal. A cota de 30% de mulheres, adotada pelos sindicatos, também ajudou na
Nos consórcios de algodão no Ceará e nos babaçuais maranhenses, progressos econômicos e nas
relações familiares foram registrados, porém, permanecem tímidos quando comparados aos
avanços políticos. Na relação com o mercado, a desigualdade de gênero se perpetua. O algodão,
cultura valorizada, é sempre comercializado pelos homens.
“O trabalho de gênero nos consórcios familiares ainda está engatinhando. As mulheres são mão-
de-obra para a limpeza, o plantio e a colheita. Ainda precisa mapear e vizibilizar seu trabalho, e
incluí-las em processos de capacitação. Nos consórcios coletivos, contudo, em alguns
municípios, as mulheres são referência.” analisa Adriana, que coordena o trabalho de gênero no
ESPLAR. No Maranhão, segundo Silvianete, responsável pelo programa de mulheres na
ASSEMA, a quebradeira é reconhecida:
“Hoje, ela consegue discutir em eventos públicos, se coloca, discorda, diz que produz –
não apenas que ajuda na produção –, reconhece seu próprio trabalho produtivo.” Mesmo
assim, na comercialização houve poucos avanços; ainda é feita pelos homens. A não ser
quando a mulher é chefe de família (são muitas nesta situação) e também para os
pequenos animais e a amêndoa de babaçu, que valem menos dinheiro. O que vale mais – o
gado, a safra grande – continua na mão dos homens.” Por outro lado, mulheres estão à
frente de muitos empreendimentos produtivos, como a fábrica de sabonetes e a de
mesocarpo de babaçu, onde tomam todas as decisões produtivas. Mas elas não estão
diretamente envolvidas na comercialização da sua produção e – talvez por isso mesmo? –
Olhando agora do lado da região de Umarizal, no Rio Grande do Norte, mudanças mais marcadas
podem ser observadas nas famílias rurais a partir da introdução de sistemas de captação de água.
Uma pesquisa da Articulação no Semi-Árido (ASA) mostrou que a proliferação de cisternas,
graças ao Programa Um Milhão de Cisternas, que a ASA anima, teve um grande impacto na
liberação do tempo da mulher e, em menor grau, do homem também. Em média, na época da
estiagem, a família economiza três horas de trabalho por dia. Por outro lado, segundo Edjane, da
Diaconiaa relação com o mercado estaria contribuindo para empoderar as mulheres.“Nos três
municípios onde a Diaconia trabalhou apoiando a comercialização da produção, há mulheres
cultivando hortas, mulheres nas feiras, e indícios de que as mulheres estão começando a se sentir
importantes”
Se, de modo geral, houve avanços nas áreas de atuação das três Ongs, talvez nem todos sejam
imputáveis às iniciativas da assessoria. Omar Rocha, coordenador do Programa Meios de Vida
Sustentáveis, na Oxfam GB, programa que certamente contribuiu bastante para os avanços nas
relações de gênero, reconhece a existência de outros possíveis fatores, entre os quais figuram os
novos programas sociais do Governo Lula.
“O Programa Luz para Todos expandiu o acesso à televisão na zona rural. Junto com os
novos programas de educação, aumentou a freqüência nas escolas noturnas. O programa
Saúde da Família também trouxe novos papeis para as mulheres. E o aumento da
sindicalização (para conseguir a aposentadoria rural), junto com a as cotas de 30% de
mulheres nos sindicatos, levaram muitas mulheres para o espaço público.”
Omar lembra também que o movimento de mulheres trabalhadoras rurais é forte no sertão e que,
todo ano, a Marcha das Margaridas leva centenas de produtoras sertanejas e suas reivindicações
para Brasília.
“Sem dúvida, as mulheres se sentem importantes quando contribuem para gerar renda.
Também, quando comercializam estão dialogando fora da família.”
Na verdade dever-se-ia falar em quádrupla jornada, acrescentando as novas funções políticas que
exigem a participação em um grande número de reuniões. O que está em jogo aqui é a divisão do
trabalho na família.
“Para estar no mercado, as mulheres vão ter que sair, e alguém vai ter que fazer as
atividades de casa. A grande questão é a divisão sexual do trabalho doméstico e produtivo.
É preciso discutir isso, senão, em vez de libertá-la, o trabalho da mulher só faz aumentar;
ela faz as tarefas de casa antes de sair para comercializar ou discutir política” diz Adriana,
do ESPLAR.
Por isso, acha que “Não adianta fazer um plano de negócio com mulheres caprinocultoras se essa
realidade não muda.” Ora, no sertão nordestino, mudar a realidade da relação de gênero
representa um longo trabalho. O que significa, por tabela, que avanços maiores na produção e na
comercialização da produção agroecológica podem também ser muito lentos.
Ao tratar de “Economia solidária e relações de gênero86”, Isabelle Guérin fala dessas obrigações
familiares e nota que “em nome dessa responsabilidade, vista como verdadeiro dever, a liberdade
individual das mulheres tem sido sacrificada em prol da eficácia coletiva...”. Guérin propõe uma
saída original, que ultrapassa o estrito âmbito familiar. Seu raciocínio é o seguinte:
“Se reconhecemos que a liberdade feminina tem o mesmo valor que a liberdade
masculina, então precisamos também reconhecer que parte das obrigações familiares, em
particular os cuidados para com pessoas dependentes, é um bem público, no sentido de
que beneficia o conjunto dos contribuintes, (...) Administrar este bem público supõe, por
um lado, uma divisão de responsabilidades entre a família, as autoridades públicas, e
também o mercado e a sociedade civil e, por outro lado, uma divisão das
responsabilidades intrafamiliares.”
Para promover a maior igualdade ente homens e mulheres, Guérin propõe, primeiro, “revalorizar
práticas de reciprocidade e de cuidado do outro” como formas genuínas de ação econômica (de
que nem o mercado, nem o Estado estão dando conta) e, dessa forma, “reconhecer que ações não
utilitaristas participam ao bem estar individual e social”. Em segundo lugar, incentiva a criação
de “espaços intermediários” (nem da família, nem do Estado) para a “expressão e reivindicação
das necessidades (...) e a autogestão coletiva de problemas particulares”.
“(...) com minha visão de feminista, vejo que a idéia de um “empréstimo mínimo” só poderia ir a
um “objetivo mínimo”, em mãos das mulheres numa sociedade dominada pelo patriarcalismo.”
“O empowerment é uma dessas palavras-chave que crescem como uma bola de neve de
significados, fazendo tudo colar por onde passa. No lançamento do modelo de microcrédito, o
discurso era de que o acesso ao recurso monetário faria com que essas mulheres se tornassem
independentes do poder patriarcal, como se esse acesso fosse modificar as relações intra-
familiares, por exemplo. Evidentemente, uma falsa idéia. Mas por trás desse argumento há uma
questão fundamental: como as mulheres vão articular essa mudança de uma renda ´in
natura´(normalmente elas antes produziam os alimentos para auto-consumo da família) a uma
renda monetária, basicamente com o mesmo fim? E elas terão de continuar fazendo o trabalho
doméstico, que não resulta nem em remuneração, nem em produtos que podem ser trocados, além
agora de se preocupar com uma produção para vender no mercado externo.”
Nas três experiências, o acesso aos mercados – orgânico, institucional, justo, local, nacional,
internacional – de comercialização da produção agroecológica, é essencial para a qualidade de
vida das famílias beneficiadas pelos projetos. Tem também importantes repercussões nas
comunidades onde moram essas famílias. Mas o impacto desses modos alternativos de
comercialização permanece marginal na economia municipal, e é insignificante no contexto da
economia regional – sem nem falar do conjunto da economia brasileira. Quais são, então, as vias
possíveis para ampliar o raio de ação além da família e da comunidade?
As três Ongs deste estudo já são referências regionais, nacionais e internacionais. Outras
organizações públicas ou privadas conhecem suas atividades e algumas as replicaram ou
adaptaram à sua realidade. Para tanto, as três Ongs lançaram mão de estratégias de multiplicação
e difusão, criando assim uma massa crítica de vivências bem sucedidas capazes de interessar os
jovens, provocar novos experimentos e influenciar políticas públicas.
O tempo das grandes lutas já passou. No mundo rural, os filhos dos militantes históricos têm
inserção política tímida, e sua motivação é diferente daquela que levou seus pais a lutar. Esse é o
quadro desenhado por Didi, responsável pelo Programa de Juventude Rural da ASSEMA,
“Os pais lutaram para mudar a realidade e garantir certo “modo de vida”. Hoje, isso já não
é tão forte.”
“Há jovens que não estão muito interessados pelo político. Perguntam: 'o que é que vou
ganhar com isso', chegando ás vezes a desestimular os colegas”.
A maioria não quer permanecer no campo, muitas vezes associado a uma imagem de “atraso”. A
escassez de políticas públicas para a juventude rural e a apatia dos governos municipais não
ajudam.
“O êxodo não é tão catastrófico como alguns previam, diagnostica Marcus Vinícius, do
ESPLAR, mas existe um problema real: a identidade de agricultor não é vista pelos
jovens como algo interessante. A TV veicula outras coisas. Chega, via parabólica, um
modo de viver atrativo, mesmo que irreal. As roupas são as mesmas no Rio de Janeiro e
em Tauá. As lanhouses também.”
Além disso, as três Ongs – ASSEMA, ESPLAR e Diaconia– já estão pensando na integração dos
jovens nos empreendimentos cooperativos e associativos. Seja como produtores,
administradores, comerciantes, pesquisadores ou multiplicadores, todos sabem que, sem a
inclusão dos jovens, não há como sustentar os avanços na agroecologia.
Antes de ilustrar essas duas vertentes da expansão, cabe uma indagação: “Expandir o que?”. É
preciso relembrar aqui a dupla face da tecnologia social: a face visível, sólida (o hardware); a
outra, invisível, conceitual, organizacional, processual, relacional (o software). Quando a
Diaconia traz o consórcio de algodão do Ceará para o Rio Grande do Norte, não está apenas
importando sementes ou máquinas debulhadoras. Está também levando em conta um conjunto de
saberes adquiridos pelo ESPLAR e pela ADEC, ao longo de mais de quinze anos de experiência.
Esses saberes dizem respeito à mobilização dos agricultores, à organização do beneficiamento, às
relações com o mercado ou, ainda, aos contatos com financiadores.. É esse tipo de preocupação
que Francinaldo, secretário executivo da ASSEMA, expressa quando delegações de
organizações populares desejosas de reproduzir a experiência da COPALJ se deslumbram frente
ao galpão e às máquinas da cooperativa:
“Para replicar a nossa experiência, é preciso enxergar que, por trás da fábrica de óleo de
babaçu, existe toda uma organização, um trabalho ambiental e social; a fábrica não é só o
que parece: um galpão com máquinas.”
Esclarecido esse ponto, podemos voltar ao primeiro tipo de expansão da experiência, para dentro
dos limites institucionais e geográficos existentes, intensificando o que já foi feito, preenchendo
espaços desocupados e, sobretudo, experimentando novas alternativas de produção
agroecológica Por exemplo, sem sair dos atuais limites institucionais, nem das áreas de consórcio
já cultivadas, o ESPLAR pretende intensificar o trabalho com o gergelim e o nim e,
paralelamente, avançar na transformação e comercialização desses dois produtos. Poderia
também aumentar a densidade dos cultivos nos consórcios, acrescentando uma nova forrageira,
por exemplo. Nesse mesmo sentido, a ASSEMA, está incentivando a diversificação da produção,
consorciando o babaçu com fruteiras, e um maior cuidado com a segurança alimentar através de
hortas e quintais produtivos. Está também procurando novos mercados para a produção de óleo
da COPPALJ, a fim de aumentar o percentual de vendas para o comércio justo:
“Não é aumentar a produção, é o mesmo volume, mas trabalhando cada vez mais com
consumidores conscientes e buscando melhorar a renda dos produtores”, precisa
Valdener.
O segundo tipo de expansão das experiências agroecológicas se dá para fora dos limites atuais.
Um dos principais empecilhos para tanto é o fato de que a qualidade do trabalho das Ongs
depende muito da qualidade da assistência técnica junto aos agricultores familiares. Essa é a
razão pela qual, na ASSEMA, a expansão para novas áreas sempre foi complicada:
Resultado: expansão da equipe e do trabalho para novas áreas quando chegam novas verbas, e
retraimento quando as verbas acabam. Em meados de 2007, 13 dos 25 membros da equipe eram
bancados pelos recursos federais do ATES, terminando no final de 2007. Há tímidos sinais de
“São pessoas que já trabalharam em Ongs e fizeram o concurso da EMATER. Temos uma
parceria forte com eles para o algodão.”
Não dá, porém, para se empolgar demais, pois “há muita gente fechada ainda”. Por isso, a
Diaconia conta, antes de tudo, com suas próprias pernas para difundir a agroecologia na região.
Pernas que o sucesso, paradoxalmente, torna cada vez mais curtas... “Nos anos 80, a Diaconia
começou a fazer algo em que ninguém acreditava – recuperar solos, diversificar a produção...
conta Joseilton. Hoje, o número de famílias sensibilizadas e produzindo é muito grande; a
Diaconia não dá mais conta do acompanhamento de todas.”
Como fazer então? As famílias mais experientes estão se tornando multiplicadores para outras
famílias menos experientes, numa lógica de descentralização da assistência técnica. Também, os
técnicos da Diaconia passaram a acompanhar, cada vez mais, grupos de famílias (e, cada vez
menos, as famílias individualmente) e estão começando a formar jovens como agentes
multiplicadores de agroecologia.
Tanto para a produção como para a comercialização, métodos de expansão que já se tornaram
clássicos continuam sendo usados. O intercâmbio entre comunidades, as visitas a agricultores-
experimentadores bem sucedidos ou, ainda, os fundos rotativos são elementos essenciais de uma
estratégia de expansão a partir do que poderia ser chamado de “ilhas agroecológicas”, espalhadas
em diversas comunidades no território. Élson, da Diaconia, notou que, raramente uma família se
sensibiliza por um sistema completo ou um conjunto de tecnologias, mas “sempre começa com
um elemento, uma barragem subterrânea, por exemplo.” Depois, vai expandindo para outros
elementos.
Em outra frente, vale notar que as Ongs nordestinas já têm uma longa história de criação de redes
regionais (água, sementes, mel...) bem sucedidas. No caso da comercialização do algodão, uma
nova articulação está nascendo entre o ESPLAR (CE), a Diaconia (RN e PE), o Caatinga (PE), a
AS-PTA e a Arribaçã (PB). Ela vai poder se beneficiar das conexões internacionais do ESPLAR
no âmbito do comércio justo. Por exemplo, uma reunião da Organic Exchange88 está prevista em
Tauá, em pleno sertão cearense!
Pedro Jorge, do ESPLAR destaca ainda novas possibilidades de parcerias com pesquisadores da
Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), onde também entrou gente nova:
“Na EMBRAPA, vinte ou trinta técnicos que estão elaborando um marco referencial para
a pesquisa em agroecologia, o que deve significar novos recursos orçamentários para o
tema.”
Todos os avanços citados acima são tímidos. Para sustentar seu trabalho e ampliar seu raio de
ação, as Ongs continuam contando com métodos artesanais, como o intercâmbio e seu
insubstituível cara-a- cara, ao mesmo tempo em que procuram atuar na arena política.
A ASSEMA, por sua vez, tem sido uma verdadeira incubadora de lideranças, graças ao esforço de
capacitação política embutida no projeto cooperativista. A formação ao associativismo, às
políticas públicas, à ecologia e à organização coletiva, junto com a participação em muitos
eventos externos, acabou gerando uma massa crítica de pessoas conscientes de seus direitos e
preparadas para reivindicá-los. Resultado: a ASSEMA pôde criar um fórum regional que
consegue ter peso nas decisões políticas numa área abrangendo sete municípios. Na hora de
reivindicar a construção de uma estrada rural junto ao INCRA, o Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária, ou de mobilizar recursos estaduais para a fábrica de sabonetes,
não são a representação do assentamento ou a diretoria da fábrica que negociam e, sim, o fórum
no seu conjunto. O mesmo princípio vale para o Movimento Interestadual das Quebradeiras de
Coco Babaçu (MIQCB).
Se quem pratica a agroecologia vê nela muito mais do que técnicas de manejo ecológico dos
recursos naturais, alguns estudiosos vão muito mais longe e chegam a considerá-la como um
projeto completo, político, econômico, social e cultural, de transformação da sociedade. Eros
Marion Mussol considera assim que o futuro da agricultura familiar é “praticamente
incompatível com o modelo de crescimento econômico atual”90 e “passa por uma revisão
profunda do paradigma de desenvolvimento que, sem dúvidas, indica as dimensões da
agroecologia e da sustentabilidade como fatores fundamentais de viabilização de um novo
modelo agrário e de sociedade, ambientalmente são e com justiça social.” Da mesma forma, para
o sociólogo espanhol Eduardo Sevilla Guzmán, a agroecologia visa “estabelecer formas de
produção e consumo que contribuam para enfrentar a destruição ecológica e social atualmente
gerada pelo neoliberalismo”91. A base para tanto seriam as sociedades rurais na sua dimensão
local, pois
Significativamente, Tygel dedica seis das nove conclusões do seu estudo ao papel do consumidor
em “sistemas solidários de comercialização” e “cadeias solidárias”, apelando para a diminuição
da “assimetria entre quem consome e quem produz”. Reconhece, ao mesmo tempo, que
realizações como as “redes de distribuição solidárias, exigiriam uma complexificação (bastante
exigente) das entidades interessadas em buscar transformações sociais (isto envolve não só redes
de comunicação, mas também de transporte – distribuição – e venda).” Acreditamos que a razão
dessa insistência no estreitamento da relação com o consumidor seja a seguinte: sem esse
fechamento da cadeia, que passaria a incluir um consumidor consciente e solidário, a economia
solidária está fadada a permanecer encravada ou pelo menos fortemente vinculada ao mercado
capitalista. Como bem explica Lisboa:
A rigor, as iniciativas aqui descritas não caberiam dentro de concepções mais restritivas da
economia solidária, por exemplo, aquela expressa em outra conclusão do estudo de Tygel: “É
preciso fazer um alerta com relação às iniciativas que visam o estabelecimento de um comércio
justo e solidário, que é o perigo de repetir o ciclo de ver os consumidores como “clientes”, ou seja,
há o perigo de se trabalhar muito mais pressionando os produtores (selos verticalizados,
exigência de que não tenham ambição de lucro, que saibam se organizar e trabalhar
coletivamente, etc.) do que os consumidores, alimentando uma elitização dos produtos
agroecológicos e um acirramento da assimetria entre quem consome e quem produz.“
O pessoal da ASSEMA (que é membro do Fórum Brasileiro de Economia Solidária) sabe disso,
mas sabe também que, se for exigente demais ao escolher os clientes, terá que fechar a
cooperativa. Para a ASSEMA, a entrada no comércio justo internacional, mesmo com “selos
verticalizados” e fortes “assimetrias” entre produtores e consumidores, fez muita diferença. Mais
ainda: um dos objetivos da ASSEMA é ampliar as vendas para o comércio justo internacional.
Entre “disputar com o capital”96 (melhorar a qualidade, aumentar o valor agregado, concorrer nos
mercados) e “instituir outra economia” (criar redes autônomas de construção conjunta da oferta e
da demanda), é a primeira opção que, por hora, predomina amplamente. A possibilidade de
expansão em grande escala da segunda ainda está para ser demonstrada.
“... mesmo sendo a economia solidária um projeto de sociedade, um projeto político (...),
precisamos dar maior atenção à sua dimensão (ou porção) econômica. Jamais
consolidaremos a economia solidária apenas a partir da política. (...) Sem
empreendimentos fortes economicamente, não teremos movimento social e político
forte. (...) Precisamos enxergar os agentes que fazem a economia solidária, não apenas
como sujeitos políticos, mas, sobretudo, como agentes econômicos – produzindo ou
consumindo...98”
Ou seja, a economia solidária, que teve no Brasil uma rápida e impressionante trajetória política99,
precisa agora confrontar-se com suas práticas econômicas concretas, analisar e debatê-las
abertamente, sem deixar-se cegar pelo próprio discurso político. Para tanto, os SECAFES –
Sistemas Estaduais de Apoio à Comercialização da Agricultura Familiar e Economia Solidária, e
o SCJS – Sistema Nacional de Comércio Justo e Solidário, dois programas governamentais
tratando diretamente de comercialização dos produtos da agricultura familiar e elaborados
conjuntamente com o movimento de economia solidária, representam uma oportunidade ímpar
de amadurecimento pela prática.
9) Por fim, percebe-se no estudo que entidades de mobilização popular e assessoria técnica
têm, além das entidades de conscientização e de animação de coletivos de consumidores, um
papel importante na luta pelo estabelecimento de redes de comercialização/consumo solidários.
Várias destas entidades já lidam com muitos agrupamentos de produtores.
O SECAFES, tal como foi implantado a título experimental no estado de Santa Catarina, no sul
do Brasil, visa “articular as (sub)regiões em torno da complementaridade de produtos, serviços
de gestão, assistência técnica, e outros meios facilitadores da comercialização de produtos com
origem nos empreendimentos solidários dos meios urbano e rural, cooperativas, grupos e
agroindústrias de base familiar”101. Mais concretamente, o projeto-piloto pretende, por exemplo,
“sensibilizar consumidores através de oficinas temáticas, buscar espaços para feiras livres e
estabelecimentos comerciais interessados em adquirir produtos ecológicos, estruturar rotas de
produtos e dinamizar a logística de acesso aos produtos e alimentos.”
“Os BSCs são organizações, existentes ou a serem constituídas, que serão estruturadas de
forma a suprir limitações dos EFR, EES e dos GCO nas áreas de comercialização. Por isso
podem se especializar em funções como logística, organização do consumo/centrais de
compra, organização/planejamento da produção, centrais de venda ou pontos de venda,
pesquisas e sistemas de informação, comunicação e promoção, processamento e outras,
ou atuar em diversas funções simultaneamente. Elas poderão atuar como organizações
(com ou sem fins lucrativos) de prestação de serviço – como o desenho de um rótulo ou de
uma nova embalagem – como unidades agroindustriais, como empreendimentos
comercializadores com as mais diversas formas e outras consideradas adequadas. Uma
premissa dessa proposta é que as BSCs não podem funcionar no médio prazo somente
com a injeção de recursos governamentais. Independente das funções que venham a
“O apoio à estruturação dos sistemas estaduais (assim como das bases de serviço) deve
buscar incentivar manifestações endógenas visando que a ação do Estado seja apenas
indutora/catalizadora e que todos os aspectos operacionais de execução sejam realizados
com elevado grau de autogestão dos EFR, EES e GCO.”
“um sistema ordenado de parâmetros para promover relações comerciais de base justa e
solidária, articulando e integrando os Empreendimentos Econômicos Solidários em todo
o território brasileiro”105.
Este sistema, cuja implementação está prevista para o ano de 2008, está sob a responsabilidade da
Secretaria de Economia Solidária (SENAES). Suas sete diretrizes são resumidas a seguir:
4. Favorecer a prática do preço justo para quem produz, comercializa e consome os produtos
e serviços.
Como se vê nesta última diretriz, os dois sistemas, SECAFES e SCJS, estão interligados.
Sabourin106 faz três grandes propostas, das quais duas nos interessam mais especificamente.
A primeira visa fomentar uma maior autonomia para a agricultura familiar e pede
Por outro lado, “nada impede o Estado de criar mercados internos politicamente protegidos”
como o PAA. Outra linha de diferenciação dos produtos é “a qualificação em função da origem,
do processo ou de especificidades locais”, que constitui também uma modalidade de redução da
Ricardo Abramovay, por sua vez, conclui seu estudo dos “mercados do empreendorismo de
pequeno porte no Brasil”108 com a seguinte pergunta: “De que maneira transferir recursos para
regiões e famílias pobres, de forma a estimular a revelação de suas capacidades produtivas e a
manifestação destas capacidades em mercados promissores?” Responde com quatro propostas
de mudança:
1) “É preciso que o Governo Federal possa estabelecer relações com grupos de municípios
e não só com cada município, isoladamente, (...) pois, um município de 10 mil habitantes não
pode ser considerado uma unidade apta a planejar o processo de desenvolvimento.
4) “É preciso que os projetos sejam aprovados por seu mérito e não pela condição de
precariedade em que se encontra a população que justificou sua elaboração.”
"Até aqui, não se tem notícia de projetos cuja premissa seja a junção das forças vivas —
convém repetir: dos empresários, do setor associativo, e dos eleitos locais — em torno de
projetos sobre cuja base se estabeleça um contrato a ser avaliado (e eventualmente
renovado) a partir de seus resultados. As organizações internacionais de desenvolvimento
— tanto as agências multilaterais, como as que financiam as ONG's — precisam repensar
o formato de
Depois de dedicar um capítulo ao crédito solidário e seus limites, Sabourin aborda o tema da
comercialização para constatar que, “apesar dos processos de mercantilização capitalistas,
existem ainda mercados socialmente controlados”, como as feiras locais. As relações diretas
entre produtor e consumidor nas feiras estabelecem “laços de sociabilidade”. São também
“valores humanos”. que deram origem ao comércio justo onde, contudo, nem sempre
conseguiram ser reproduzidos.
“Em vez de monetarizar e mercantilizar serviços já realizados pelo agricultor para dar
lugar a uma remuneração individual, o apoio público (financeiro ou não), seria outorgado
ao dispositivo institucional que mantém a estrutura de reciprocidade.”
Sabourin nota ainda, que nem tudo é cor-de-rosa nas prestações reguladas pela dádiva e a
reciprocidade, uma vez que “existem formas de alienação específicas aos sistemas de
reciprocidade que precisam ser criticadas e analisadas”.
“Na proposta de economia solidária existe uma contradição entre reciprocidade (interna,
na unidade de produção) e intercâmbio mercantil (fora da unidade) que precisa ser
reconhecida, para poder colocar a questão das articulações ou interfaces entre os dois
sistemas.”
O presente estudo apontou fatores que limitam, e outros que reforçam a sustentabilidade da
cadeia de produção/processamento/comercialização de produtos agroecológicos. Do ponto de
claro é a possibilidade para a maioria das famílias que apostam na “transição agroecológica”, de
rapidamente aumentar a sua segurança alimentar e sair da pobreza. Ainda falta efetuar balanços
econômicos mais precisos para o conjunto dos elos da cadeia, levando em conta todas as
despesas, inclusive as ocultas (assessoria técnica, pesquisa...), como também as externalidades
positivas (benefícios para o solo, a água, o ar, a fauna, a saúde da família e da comunidade...) – se é
que faz realmente sentido contabilizar elementos naturais a priori incomensuráveis...
No âmbito social e cultural, a análise, pelo enfoque de gênero, tende a mostrar que, sem uma
melhor divisão das tarefas domésticas, sem o reconhecimento do trabalho “invisível” da mulher e
sem a discussão do lugar que ela ocupa no sistema produtivo, os avanços na produção familiar e
na sua transformação e comercialização permanecerão limitados.
Do ponto de vista político houve progressos nas áreas de atuação direta dos três projetos. Para
além do raio da ação imediata, constituído pelas comunidades beneficiadas, também pudemos
verificar avanços pontuais em escala municipal (leis beneficiando a agricultura familiar,
conselhos, secretarias de agricultura ocupadas por representantes do movimento social) ou
microrregional (novos fóruns, associações e grupos de pressão).
Esse conjunto de fatores talvez explique a simbiose existente nas três experiências, entre a
associação/cooperativa e a ONG que a apóia, entre o empreendimento econômico e a assessoria
técnica que cumpre – improvisando, errando e aprendendo – todos os papeis imagináveis: desde a
concepção de máquinas inéditas e a provisão de capital de giro até a abertura de contatos
internacionais. No caso das feiras locais, a experiência de Pernambuco demonstra a possibilidade
de autonomização progressiva das associações de produtores (depois de vários anos de assessoria
muito próxima). Nos casos mais complexos de transformação da produção (aqui, de algodão e de
babaçu) em unidades de médio porte e sua comercialização no mercado nacional e internacional,
Outro embate, maior ainda, é aquele já amplamente comentado entre os dois ministérios
brasileiros da agricultura, o MDA e o MAPA. Essa esquizofrenia política se traduz no campo por
situações em que uma política pública (como o PDHC) pode favorecer a abordagem
agroecológica e, outra, do mesmo governo, pode ser-lhe nefasta a curto prazo (a expansão rápida
de cultivos transgênicos, por exempo). Infelizmente, essa é uma luta muito desequilibrada: a
agricultura familiar (apoiada pelo MDA), apesar de ter-se beneficiado de orçamentos cada vez
maiores nos últimos anos, continua a anos-luz do tratamento preferencial da agricultura patronal
(apoiada pelo MAPA). O jogo das forças políticas será determinante para o futuro da
agroecologia no Nordeste. Por enquanto, os defensores da agroecologia formam uma tendência
muito minoritária. Em tempos de globalização econômica, o Brasil, gigante agrícola, foi
claramente seduzido pelo mercado, na sua versão mais primitiva, isto é, a busca imediata de lucro
a curto prazo com enormes custos ambientais e sociais. É com parte dos ganhos auferidos com
essa política que o governo brasileiro financia suas políticas sociais compensatórias, numa aposta
que funciona bem dentro dos prazos eleitorais, mas pode vir a ser catastrófica além. Em tempos
de aquecimento global, quem dá as cartas mais importantes não é mais o mercado: a própria
natureza entra no jogo e responde às agressões. No semi-árido brasileiro, é preciso se preparar
para conviver com secas e enchentes mais fortes ainda do que no passado – lembrando que as
grandes secas mais recentes ocorreram em 1990-93 e em 1998, e que houve enchentes
devastadoras em 2004. Essa é, sem dúvida, a principal razão pela qual, nessa área do tamanho da
1
Entre os documentos e autores mais citados neste estudo podemos destacar: ABRAMOVAY, R.
Mercados do empreendorismo de pequeno porte no Brasil, CEPAL. Março de 2003. KÜSTER, J.;
MARTÍ, F., FICKERT, U. (Org). Agricultura familiar, agroecologia e mercado no Norte e Nordeste do
Brasil. DED. Fortaleza. 2004. TYGEL, D.. Levantamento inicial de entidades que trabalham com a
comercialização ou consumo de produtos agroecológicos no Brasil (em busca de iniciativas dentro da
perspectiva da economia solidária). Caldas-MG, novembro 2003. Disponível em
http://www.fbes.org.br/component/option,com_docman/task,doc_download/gid,572/ acessado em 22
de novembro de 2007. SABOURIN, E.. Economia solidária no meio rural brasileiro: uma análise a partir
da noção de reciprocidade. VII Congresso Latinoamericano de Sociologia Rural (Alasru). Quito, 20-24
de novembro de 2006, GT 09 “Asociación productiva, economía solidaria y cooperativas”.
2
(INSEE, 2007)
3
Esta é a definição muito simples citada por (ABRAMOVAY, 2007c). A definição de “agricultura
familiar” usada pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) para ter acesso ao Programa
Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) é a seguinte: Produzir na terra, na
condição de proprietário(a), posseiro(a), arrendatário(a), parceiro(a) ou assentados(as) do Programa
Nacional de Reforma Agrária e Programa Nacional de Crédito Fundiário; Residir na propriedade ou
em local próximo e ter no trabalho familiar a base da produção. Possuir no máximo 4 módulos fiscais
(ou 6 módulos, no caso de atividade pecuária), cujo tamanho varia conforme a região. Ter parte da
renda gerada na propriedade familiar (de 30% até 80% a depender do tipo de crédito). Ter renda bruta
anual compatível com aquela exigida para cada grupo do PRONAF (conforme tabela do MDA).
Fonte: http://www.mda.gov.br/saf/arquivos/1137912740.doc, acessado em 23/11/2007.
4
(AZZONI, 2006)
5
(SABOURIN, 2007b)
6
(WILKINSON, 2007)
7
(FICKERT, 2004)
8
(SABOURIN, 2007b)
9
Mais de 4.000 dos 5.561 municípios brasileiros têm menos de 20 mil habitantes e mais de 5.000
possuem menos de 50 mil habitantes (ano 2000). Fonte: IBGE, ano 2000.
10
(ABRAMOVAY, 2007c)
11
(WILKINSON, 2007)
12
(PDHC, 2004)
13
(BLOCH, 1998)
http://revistagloborural.globo.com/GloboRural/0,6993,EEC597286-2344,0 acessado em 23 de
novembro de 2007.
http://www.fbes.org.br/component/option,com_docman/task,doc_download/gid,572/
http://www.ingentaconnect.com/content/brill/luso/2007/00000014/00000002/art00005
LECOMTE, 2004– LE COMMERCE EQUITABLE. Lecomte, Tristan. Ed. Eyrolles. Paris. 2004
LISBOA, 2006 – MARCHÉ SOLIDAIRE. Lisboa A.M.. in Dictionnaire de l´autre économie – Laville
J., Cattani A.D..Ed. Gallimard, Folio. Paris. 2006
OMC, 2007 – O ACORDO AGRÍCOLA DA OMC. in Guia Prático sobre a OMC e outros acordos
comerciais para defensores de direitos humanos. 3D, Conectas Direitos Humanos. Maio 2007
Fertilizante
Amido
Mesocarpo Farelo
Fibras
Epicarpo
Carvão
Combustível ativado
Coque
Carvão Gases
combustíveis
Ácido
Gases acético
Coco
Babaçu combustíveis Acetatos
Acetona
Endocarpo
Glicerina
CAROÇO ÓLEO
(38%) (35 a 40%)
ALGODÃO
EM RAMA TORTA
SEMENTES RAÇÃO
(60 a 65%)
(25%)
SEMENTES
(2%)