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revista BANG!

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Bang! 5
Índice

[ficção] [não ficção]

Eu Sou um Carrasco 04 Publique o Seu Conto na Revista Bang! 08


Telmo Marçal

Senhor Bentley e os Velhos 09 Colecção Bang!


Ágata Ramos Simões Terceiro Trimestre de 2008 16

O Esplendor das Ruínas 12 A Ficção, por Henry James


Vasco Luís Curado e Roberts Louis Stevenson 22
Dan Simmons
Iniciação 14
António de Macedo Literatura Erudita
VS. Literatura Popular 43
Dois Contos de... 18 António de Macedo, David Soares,
Bruce Holland Rogers João Seixas

Anel da Memória 66 À Descoberta do Fórum Fantástico 158


Alexander Jablokov
«O Optimismo é algo
Quem Quer Escrever para Sempre 85 muito difícil de manter!» 160
João Barreiros Entrevista a Richard Morgan

A «Dama Margaret» 113 5 Estrelas


Keith Roberts Crítica a “Carbono Alterado” 168
João Seixas
A Sombra Deslizante 137
Robert E. Howard Muito mais
do que Murmúrios 170
Murmúrios das Profundezas 173 Rui Ramos
Banda Desenhada
5 Estrelas
Crítica a “Os Leões de Al-Rassan 181
Safaa Dib

revista BANG! [  ]
Eu Nobel, tu Nobel,
[editorial]

ele Nobel Luís Corte Real


«Não há que temer experiências novas na literatura.
Há mundos por descobrir. Há grandes autores para conhecer.
Do outro lado. Deste lado.»

O tempo é relativo, dizem. E a periodicidade da


da revista Bang! tem provado isso mesmo:
rapidamente os três meses entre dois números se
nico e noir Richard Morgan, e ainda uma extensa
tertúlia de David Soares, João Seixas e António de
Macedo, sobre Literatura Erudita vs. Literatura Po-
transformam em quatro ou cinco. Mas vamos tentar pular. Com tudo o que de bullshit isso acarreta.
compensar os nossos leitores com tamanho e quali-
dade. O número 5 da revista Bang! oferece mais de
180 páginas de ficção (sempre histórias completas,
E é precisamente sobre bullshit e editoras que pro-
curam envernizar-se de prestígio que termino.
Haverá coisa mais fácil do que gerir uma editora que
acabaram-se os excertos), artigos, críticas e entre- publica autores nobilados? Basta ir à internet e con-
vistas aos melhores escritores a que conseguirmos sultar a lista com os vencedores do prémio. Muitos
deitar a mão. nunca foram traduzidos para português, ou se o fo-

C om A Sombra Deslizante temos o prazer de dar


a conhecer um pioneiro do Sword & Sorcery,
o incontornável Robert E. Howard. Continua a ser
ram, terão bastantes obras por traduzir. E já agora
fazer ofertas pelos vencedores do Booker, Goncourt
e Femina. E pelos finalistas também, afinal, pode-se
lido e a empolgar setenta anos depois. Quantos es- sempre pôr na capa que foi finalista dum prémio de
critores do seu tempo se podem gabar do mesmo? que ninguém pode dizer mal. E pronto, temos uma
Keith Roberts, autor daquele que é considerado um editora de prestígio. Que nem precisa de ler os livros
dos melhores romances de fc de sempre, estreia-se que publica, afinal, alguém já os leu e disse que eram
na Bang! com A «Dama Margaret». Bruce Holland bons. Nem precisa de descobrir os autores, também
Rogers oferece-nos dois pequenos e deliciosos con- já alguém o fez. E o marketing está garantido pelos
tos e mostra-nos que a arte da ficção curta tem as media. Como é tão mais difícil apostar em excelentes
suas próprias regras. Os autores portugueses tam- autores que são discriminados porque estão associa-
bém marcam presença: Telmo Marçal com ironia, dos a géneros alternativos. E publicar livros maravi-
Ágata Ramos Simões com a brejeirice do Sr. Ben- lhosos que são alvo de preconceito porque vão para
tley, Vasco Luís Curado com as suas histórias psico- lá da realidade e se embrenham no fantástico de que
lógicas, António de Macedo com o seu background a crítica actualmente parece ter tanto nojo, aversão,
esotérico, e João Barreiros com a última parte do medo.
seu tríptico explicativo do futuro da literatura e do
presente da Educação em Portugal. P eço aos leitores que abandonem o rebanho. Ex-
perimentem virar as costas aos críticos que pas-

N a não ficção temos um artigo sublime de Dan


Simmons sobre Henry James e Robert Louis
Stevenson, uma apresentação do Fórum Fantástico
toreiam. Não há que temer experiências novas na li-
teratura. Há mundos por descobrir. Há grandes auto-
res para conhecer. Do outro lado. Deste lado. BANG!
(começa já dia 2 de Outubro), uma entrevista a um Luís Corte Real é editor do Grupo Saída de Emergência.
dos melhores escritores de fc da última década: o cí- Depois de quase dez anos a trabalhar em publicidade,
revista BANG! [  ] apercebeu‑se que a vida é curta e decidiu trabalhar
no que gosta: livros. BANG!
Eu Sou um Carrasco
[ficção]

Telmo Marçal
«Mas agora também já não importa. Deram‑me um bom anestésico.
Não me dói nada. E está quase a chegar a minha vez de entrar para o palco
das execuções. Estou um bocadinho descomposto, mas vou fazer os possíveis
para não parecer mal, quando me virem logo à noite nas televisões.»

E u sou um carrasco. Não um daqueles impor-


tantes, que fazem as execuções em directo dos
traidores mais mediáticos, mas tão‑somente um
Faz hoje três dias que fui confrontado com uma
dessas situações, ou pelo menos assim me pareceu
na altura.
funcionário cumpridor, zeloso e anónimo. De- Acabara de tratar o primeiro da lista e esta-
sempenho a minha missão na terceira esquadra do va já na fase das lavagens. Não sei se era por o te-
bairro Sul que, como sabem, é o ninho dilecto de rem deixado descansar demais – os tipos do turno
tudo quanto é malfeitores e sediciosos na nossa da noite às vezes desleixam‑se um bocado na pre-
bela cidade. Só no meu piso, lá na esquadra, faço paração – mas o facto é que aquele cabrão vinha
parelha com mais uns trinta da mesma profis- cheio de ronha e de teimosia. Consequentemente
são. a sessão foi um pouco mais aparatosa do que é ha-
Já lá vão para mais de dez anos desde que bitual, quando se trata de vergar simples meliantes.
me iniciei neste mister. E apesar de nunca ter es- A sala ficou que era uma vergonha, com sangue es-
tado sob as luzes da ribalta, tenho para mim que palhado pelas paredes, as ferramentas todas desar-
consegui atingir um estatuto muito respeitável. rumadas e até bocadinhos de dentes tive de andar
Justifico esta pontinha de vaidade com o facto de, a catar pelo chão. Resmungo sempre um bocado
ainda não há três meses, me terem designado um na fase das limpezas, mas só para espairecer. Sei
gabinete privado, com tudo quanto há de melhor muito bem que, de acordo com a tabela de antigui-
para o desempenho da arte. Até afiançaram que dade, ainda tenho de esperar dias anos antes de me
ficava à vontade para requisitar qualquer equipa- ser atribuído um ajudante em permanência para
mento especial de que viesse a sentir precisão. os trabalhos menores.
A rotina do dia a dia é ocupada quase Enquanto me afadigava de esfregona em
sempre por encomendas das equipas de investi- riste, fui surpreendido por umas insistentes pan-
gação. E já não foram tão poucos como isso, os cadas na porta. Transformei o meu resmungo num
elogios que recebi dos Senhores Comissários, ronco bem audível, recordando com maus modos
pela presteza e desenvoltura com que despacho quais eram as regras da casa:
os trabalhos, por mais bicudos que se adivinhem. ‑ Um quarto de hora entre cada sessão, suas
De quando em vez, e ultimamente com crescente bestas. Esperem aí à porta e é se querem.
regularidade, até me vêm parar às mãos alguns Fiquei muito contrariado por não me li-
casos especiais, do género que costuma ser trata- garem nenhuma. A porta abriu‑se devagarinho e
do no último piso, por colegas mais credenciados. pegado à mão que ousara rodar a maçaneta vinha
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um tenentezito das forças regulares, que ainda por do me preparava para pôr toda aquela gente a de-
cima mostrou cara de enjoado perante o cenário. sandar ocorreu‑me uma coisa:
Quando relanceei os olhos para o fulminar, dei ‑ E então onde é que raio está o processo
conta que o corredor estava apinhado por mais uns do homem?
quantos em uniforme, muito juntinhos à volta de ‑ Que processo? – perguntou o tenente,
um desgraçado todo desfraldado. Bem, com estes deixando a voz libertar‑se da boca pela primeira
parvinhos quase imberbes não precisava de me vez.
coibir de gritar, por isso azucrinei‑lhes a cabeça «Realmente!», consternei‑me para mim
um bocado. próprio. «Um caso importante e mandam tropas
‑ Mas afinal o que vem a ser esta merda? regulares; tem que se explicar tudo a estes imbe-
Pensam que podem entrar por aqui adentro de cis». E foi o que fiz, com toda a calma possível.
qualquer maneira? Eu sou um profissional dos ‑ O processo que acompanha o prisioneiro;
serviços de segurança, tenho um cargo de elevada a pasta onde estão os elementos e as informações
responsabilidade. E há regulamentos a cumprir, que preciso para o meu trabalho. Eu faço um re-
meus senhores. Esperam aí que já vão ver o que a sumo: o documento onde está explicado quais as
casa gasta... – e assim por diante até me fartar. confissões que a hierarquia pretende obter no de-
Quando acabei de desabafar, o senhor te- correr da sessão.
nente estava pela cor dos tomates maduros. Sem Quedaram‑se por instantes a olhar abes-
se atrever a articular palavra limitou‑se a levan- pinhados uns para os outros, até que alguém foi
tar uma sobrancelha e a estender um papel azul, momentaneamente bafejado por um rasgozinho
daqueles que costumam trazer apostas as ordens de inteligência.
de serviço da hierarquia interna. Perante a cor do ‑ Ah! Os documentos. Sabe, meu tenente,
papelucho fiquei um bocadinho arrependido dos deve ser aquela pasta preta que deixámos na car-
meus modos desbragados; por isso quando o re- rinha.
tirei das manápulas do tenente escancarei um sor- ‑ Então vai lá buscá‑la meu parvalhão, e
riso simpático, para lhe começar a amolecer qual- depressa – gritou o chefe dos tropas para aliviar o
quer ressentimento. nervoso. – Será que tenho de pensar em tudo?
«Máxima urgência – o prisioneiro VFE- Uma excursão ao estacionamento na cave,
645XDRH deve ser interrogado imediatamente. A àquela hora, com todos os postos de controlo a
confissão, depois de devidamente assinada, deve funcionar, era aventura para demorar uma meia
ser entregue ao Magistrado Farlg Untus ao princí- hora das grandes. Muito polidamente gastei um
pio da tarde.» bocadinho de vocabulário a conseguir que o resto
‑ Ora vamos lá a entrar para despacharmos da maralha tomasse lugar no corredor, sossegadi-
isto, meus caros senhores – convidei eu, acrescen- nhos, e fechei‑lhes a porta na cara com um suspiro
tando uma pequena vénia de humildade em bene- de alívio.
fício do oficial, enquanto diligenciava para arredar Estava decidido a ir adiantando os prelimi-
a tralha de cima da marquesa. nares enquanto o outro andasse à cata da papelada.
O tenente afastou‑se para o lado e os quatro Depois logo se fariam os ajustes mais convenien-
soldados que sustinham o esbracejar do homenzi- tes, consoante o necessário.
nho amontoaram‑se no meio da sala. Para ganhar ‑ Então, então meu rapaz! – larguei à laia
o tempo necessário a acabar de compor a barafun- de cumprimento para o prisioneiro, que me fitava
da, pedi‑lhes para irem despindo o interessado e com uns olhos muito aparvalhados. – Parece que
para o instalarem devidamente. Mas os anjinhos andámos a asneirar, não foi? Deixa estar que não
não se entenderam com os fechos da bancada, pelo tarda muito a ficar tudo resolvido.
que até isso sobrou para os meus cuidados. Quan- Não é que mal virei costas, a fim de prepa-
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rar os instrumentos, lhe deu para desatar aos ber- poimentos, muitas vezes só com o instinto para
ros? Despejou‑me em cima a conversa do costume: nos orientar. A partir de certa altura os sujeitos já
que se tinham enganado, que estava inocente, que não dizem coisa com coisa e é uma dor de cabe-
me faria cobras e lagartos, etc., etc. Pus‑lhe logo ça dar alguma coerência à salganhada. Num caso
uma mordaça; não estava com cabeça para aturar como este bastava persuadir o visado a assinar
gritarias. Naquela fase já era um luxo ele conseguir tudo muito direitinho e depois compô‑lo um bo-
acenar sim ou não. cado para ler o depoimento resumido perante as
Não me alonguei muito no exame prelimi- câmaras.
nar: apalpei‑lhe o fígado, verifiquei se tinha lesões, Mirei o tipo e até fiquei com a ideia que o
espreitei para dentro dos ouvidos, apliquei‑lhe o intróito podia ter sido suficiente para os meus in-
estetoscópio, testei os reflexos – estava tudo bem. tentos. Mas joguei pelo seguro. Apliquei‑lhe uma
Podia apertar o rapaz um bocado que não havia de porrada na articulação do joelho e esperei que
se ir abaixo às primeiras. acabasse de se contorcer. Depois recitei‑lhe umas
Mal lhe mostrei o primeiro ferro aguça- partes salteadas do texto da confissão e sacudi os
do, um dos pequeninos, para enfiar por baixo das ombros interrogativamente:
unhas, começou a tremer e a suar muito. Por expe- ‑ Então? Estamos prontos para assinar a
riência e instinto fiquei de imediato ciente que ti- papelada? O que acabei de dizer corresponde à
nha nas mãos um dos fracotes, um tipo sem gran- verdade verdadinha?
de carácter. Melhor para mim. Despachava a coisa Ele quis dizer qualquer coisa, mas pela ex-
num instante e ainda tinha tempo de apanhar o pressão ainda o achei muito hesitante. Dei uma
bar aberto para um cafezinho a meio da manhã. passada em direcção ao controlo remoto das ma-
Só para ir entretendo espetei‑lhe uma unha ao de quinetas de perfurar mas mudei de ideias. Naquela
leve, e depois desenhei umas marcazitas artísticas manhã estava tomado de nostalgia pelos métodos
na sola dos pés, com a ponta em brasa. tradicionais. Usei a serra manual para lhe cortar o
Finalmente chegou o soldadeco de giro dedo pequenino do pé direito, e guardei‑o numa
metido a agente, com o processo tão bem agarrado caixinha apropriada, não fosse alguém vir depois
que tive de lho arrancar das mãos. Sim senhor! Po- pedir uma recordação.
dia até nem dar ares disso, mas aquele rapazinho Quando me voltei a inclinar sobre a mesa
da marquesa era um belo malandrete. Rezavam os de trabalho achei o indivíduo com melhor cara.
autos que fora apanhado em manobras de altíssi- Tinha perdido as cores das bochechas e o olhar es-
ma traição. Comia à farta da gamela do inimigo e tava a ficar baço. Mal o brindei com um sorriso co-
de tão agradecido não se poupava a esforços em meçou a abanar a cabeça a toda a velocidade, para
estratagemas para derrubar as estruturas sociais. cima e para baixo, muito convicto.
Era pau para toda a obra, desde sabotagem para O movimento de assentimento dos mús-
desmoralizar os combatentes até tentativa de as- culos do pescoço acompanhou toda a ladainha
sassínio de dirigentes. E o melhor do molho de que tive de voltar a repetir, acerca das razões que
papelada eram as quatro últimas páginas: uma o faziam convidado aos meus humildes aposentos.
confissão já redigida com todos os pormenores. Quando findei a prédica tinha a boca tão seca que
Adoro quando a nossa gente do escritório se apli- fui forçado a puxar pela garrafinha do licor, para
ca. Não faltava nada: circunstâncias, motivações, uma golada medicinal.
datas, nomes, enfim... tudo quanto um bom car- ‑ Ora então muito bem – disse logo a se-
rasco pode desejar. Podia‑me aplicar de coração guir ao arroto. – Agora fica quieto um bocado
na minha arte, sem queimar tempo em ninharias enquanto te dou esta injecção para paralisar tem-
da burocracia. Tudo se torna mais complicado porariamente os membros inferiores. Só depois é
quando somos nós a recolher e a redigir os de- que te solto; com escumalha da tua laia não posso
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correr riscos. Vais ver que ficas um bocadinho me- O colega começou a balbuciar umas coisas
lhor das dores. entredentes, mas eu não percebi nada.
Quando lhe retirei a mordaça pareceu‑me ‑ Porra homem! Aclara lá a garganta. Fala
que fazia tenções de recomeçar com a lengalenga. mais alto.
Tive de franzir a testa e dar‑lhe um toque ao de leve ‑ Garlus – disse‑me ele então, – este é o
com as ponteiras dos electrochoques. Foi quanto novo director dos guardas internos! É o meu chefe.
bastou. Saltou da marquesa e ficou estendido a um Tenho a certeza.
canto, sem tossir nem mugir. ‑ Estás é a ficar maluquinho – respondi‑lhe
Depois de ter todas as folhas rubricadas e eu, muito agastado com a atitude parva do homem.
três ou quatro takes do depoimento para os téc- – Puxa lá por ele que já vais ver o que te diz.
nicos de acusação escolherem as melhores par- Bem, e o que o prisioneiro lhe disse não era
tes, carreguei no botão para chamar alguém que realmente nada daquilo que eu estava à espera. Foi
me carregasse o tipo dali para fora. Chegaram no mais ou menos assim:
preciso instante em que eu terminava o preen- ‑ Guarda Yurnus! Tire‑me imediatamente
chimento das cruzinhas no impresso do relatório as algemas e leve‑me para a enfermaria. – E depois
da sessão. Quem assomou à porta foi um colega virou‑se para mim, com um ar diabólico e a ranger
veterano, um velho conhecido ali do serviço, que os dentes: ‑ Estás bem fodido.
me costuma pedir para assistir às sessões quando Pronto, foi assim que tudo se passou! Eu
a coisa mete raparigas jeitosas. Mal entrou, acom- sou apenas um carrasco. Pertenço a uma família
panhado por um ajudante estagiário, passei‑lhe o com uma grande tradição no serviço público. Já
processo para as mãos. Informei‑o que dali a dois o meu pai era carrasco e a minha mãe fez toda a
ou três minutos o prisioneiro já se havia de ter de carreira como zeladora dos Bons Costumes. Só ela
pé e apontei ostensivamente para o esconderijo da denunciou mais de duzentos cidadãos, por graves
garrafa. Ao ajudante destinei pior sorte: cabia‑lhe indícios de comportamento sedicioso. Tenho até
dar um mangueirada de água tépida no paciente e um irmão que conseguiu estudar para Acusador.
depois enfiar‑lhe umas roupinhas. Podem pensar o que entenderem, mas eu no ínti-
‑ Não pões nada no pé do gajo? – pergun- mo continuo a considerar que me limitei a cum-
tou o meu compincha. – Vai cagar o corredor todo prir o meu dever.
de sangue. É claro que não foi nada disso que me vi-
‑ Está bem! – aquiesci eu, e dei mais uma ram jurar no depoimento da confissão. Até à me-
ordem ao novato: ‑ Trá‑lo aqui que é para lhe pôr mória do meu avô pedi desculpa, que um herói
uma pomada na pata. condecorado ao serviço da Causa não é merecedor
Quando o rapazito ergueu o sujeito nos de ser ascendente de neto tão execrável.
braços e o aproximou da marquesa, ouviu‑se um Acabei agora mesmo de rever na televisão
estrondo logo seguido de um tilintar. O meu di- a montagem integral do meu depoimento. Até não
lecto colega perdera de súbito a força nos dedos e me saí nada mal, para um tipo com o olho fura-
tanto a garrafa medicinal como os nossos cálices do por um prego e a quem tinha sido arrancado
cristalinos se tinham estraçalhado no chão. Muito a sangue frio o braço esquerdo. Profissionalmente
atónito, assisti de boca calada ao curto trajecto que falando, achei que no meu caso o carrasco levou
fez em câmara lenta na direcção do paciente, e ao demasiado longe as fantasias. Ainda antes de me
repentino gelar dos movimentos quando ficou a esmigalhar os dedos já eu tinha gritado mais de
menos de dez centímetros da cara deste. dez vezes que confessava tudo. E não tinha perí-
‑ Então pá! – atirei‑lhe eu sem me aguentar cia nenhuma a manobrar o equipamento: furou
mais. – Nunca tinhas visto um traidor sair daqui em duas ocasiões o plástico da bancada, sem que a
tão bem tratado, hem? broca sequer me raspasse no tronco.
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Publique
[convite]
Mas o que é que querem? Os nervos são
traiçoeiros. Sempre defendi que um carrasco não
deve trabalhar sob pressão. Imaginem por exem-

o seu conto
plo que a mão treme, e que em vez de um buraco
na barriga, para aquele número clássico de tirar
os intestinos, a lâmina rompe o pulmão ou acerta

na revista
numa veia importante... Pode ficar em risco toda a
operação; o paciente safa‑se à grande sem ter tem-
po de desembuchar as vergonhas. O que aconteceu

Bang!
na minha sessão foi que o tal Senhor Director fez
questão de supervisionar tudo pessoalmente. Por
mais que eu concordasse com as alíneas dos au-
tos, dava sempre ordem para prosseguir os traba-
lhos. O raio do homem não tem sentido de humor
nenhum. Não conseguiu encaixar que algum dos
amigalhaços lhe pregou uma partida de mau gosto
e eu é que paguei as favas.
Mas agora também já não importa. De-
A revista Bang! está à procura de novas vozes
na literatura fantástica. Envie‑nos o seu con-
to (de horror, ficção‑científica, fantasia, história
ram‑me um bom anestésico. Não me dói nada. alternativa, realismo mágico, etc) e, se for escolhi-
E está quase a chegar a minha vez de entrar para do para publicação, para além da glória eterna ao
o palco das execuções. Estou um bocadinho des- imortalizar‑se nas páginas da única revista de lite-
composto, mas vou fazer os possíveis para não pa- ratura fantástica em Portugal, ainda recebe 3 livros
recer mal, quando me virem logo à noite nas tele- grátis na sua caixa de correio. São eles:
visões. BANG! • Os Ossos do Arco-Íris de David Soares;
• Sr. Bentley, o Enraba-Passarinhos de Ágata Simões;
• Fragmentos de uma Conspiração de José Lopes;
Um grande livro de horror, um grande livro de hu-
mor e um thriller bem português serão suficientes
O tipo que se esconde por trás do para tirar cá para fora o que de mais fantástico há
pseudónimo Telmo Marçal faz-se passar em si?
por um vulgar pai de família, pequeno-bur‑
guês, afável e bem comportado. Para lhe
toparmos a manha é preciso apanhá-lo pela
calada da noite, agarrado ao computador,
que é quando escrevinha as suas barbari‑
dades descabeladas e subversivas. Os que
lhe editam os devaneios também não estão
isentos de culpa. Se não existissem esses fan‑
zines, e-zines, blogues, revistas… nunca lhe
tinha dado na veneta armar-se em escritor.
Foi assim que tudo começou, em 2003, no
Hyperdrive. Seguiu-se o Dragão Quântico, o
Hyperdrivezine, o sítio Neolivros, a Scarium,
o Tecnofantasia, o Phantastes, o Somnium e
a Nova. Até participou na antologia Os contos candidatos devem ser submetidos para
“Por Universos Nunca Dantes Navegados”,
joaog@saidadeemergencia.com, tendo o email o
e agora já vai na BANG, imaginem.
(Será que não arranjavam nada melhor seguinte título “submissão de conto para revista
para publicar?) BANG! Bang!” E agora, boa inspiração! BANG!
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Senhor Bentley
[ficção]

e os Velhos
Ágata Ramos Simões
O Sr. Bentley, personagem tão vil quanto deliciosa, está de volta às
paginas da revista Bang! Esperemos que gostem... e que tenham vómitos.

O senhor Bentley (que é uma besta), casadi-


nho de fresco com uma aristocrata belga
(oh la lá), nem sempre pára em casa. A mulher
todo), escapulia‑se da sala de aula, à socapa, todo fe-
chado, e ia ter com o senhor Bentley.
Bentley ao menos era mais divertido.
até prefere. Não é que a queira deixar. Ele até gos- Tinham aventuras.
ta da tipa: tem vontade de se ajoelhar e orar‑lhe Com Bee passava o raio do dia inteiro fechado
com os olhos em alvo, fazendo um mimoso beici- na escola, às vezes na sala de aula, a ronronar quieta-
nho com os lábios e sussurrando cânticos pagãos mente aos pés de Bee, às vezes estupidamente pen-
esquecidos ‑ quem o ouvisse julgaria estar a de- durado à entrada com os outros chapéus e casacos e
bitar o Pai‑Nosso. Infelizmente a bela da esposa gorros.
não admite o comportamento e vai ele a genu- Mas hoje o senhor Bentley leva apenas o cha-
flectir‑se, no início do gesto, ela põe‑lhe o pé de péu‑de‑coco que também possui a habilidade do
salto baixo no rabo, empurra‑o para o chão, onde voo.
ele fica de cu para o are orelha em contacto com Infelizmente o chapéu‑de‑coco só sabe dormir.
o solo, como se escutasse o lento aproximar dos Está o dia inteiro ferrado no sono. Costumava res-
elefantes. Após uma saraivada de insultos belgas sonar de modo que o senhor Bentley foi ao médi-
o senhor Bentley retira‑se como um cachorrinho co que lhe receitou uns comprimidos e o problema
obediente e vai, feliz da vida, para a rua. resolveu‑se.
Procurar criancinhas. A quem escarrar. Às vezes o chapéu acorda e desata a voar por
Sobretudo petizes irrequietos. Dos que se me- todo o lado, excitado como um cachorrinho que vi-
xem e gritam muito. Os que, com a sua voz de que- sita o jardim. ´Tadinho do senhor Bentley ‑ tem de
rubim, estilhaçam cristal a um quilómetro de distân- correr atrás dele feito um louco e já é velho, é velhi-
cia. nho, as pernas não aguentam maratonas. Lá ia ele a
Os quietinhos, moscas mortas, a esses também tentar deitar a mão ao magano, que cirandava de um
gosta de cuspir, mas dá menos gozo, têm a moleza lado para o outro numa velocidade de colibri dopa-
dos bovinos, serão os encornados de amanhã. do.
Hoje, por exemplo, vai sem guarda‑chuva por- ‑ Sacana, anda cá! ‑ e saltava, pulava, mudava de
que não é dia de usá‑lo, a Bee levou‑o para a escola. direcção, esticando os braços o mais que podia.
Às vezes o chapéu, aborrecido das brincadeiras dos ‑ Um gajo sem chapéu não é gajo! ‑ gritava fu-
meninos (puxam‑lhe o pano e as varetas e agarram‑se ribundo e tornava a correr. Até que enfim o apanha-
ao cabo, os pequenos monstrinhos arranham‑no va.
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Suado, enfiava‑o no crânio e atava‑o com um esses tipos todos com uma grave serenidade de
lenço que cobria chapéu e queixos. quem compreende a Impermanência da Vida e da
O chapéu‑de‑coco refilava: Morte, de quem é um Buda Vivo e Iluminado. Vê e
‑ Bzz? Bzz‑bzz! Bzz‑bzz‑brr!?! decide gritar como que a fazer de conta.
Mas o senhor Bentley não lhe dava ouvidos. Que se importa.
‑ Nove mil quinhentas e setenta e seeeeis! É a Mas dentro de um homem iluminado só ha-
taluda, senhores, é a taluda! ‑ entoou depois de ter bita o Universo e a Pla‑Ci‑Dez.
cuspido a outro fedelho. Acertou‑lhe em cheio no ‑ Um pedófilo que não fornique os filhos e ne-
olhinhos. O puto não protestou e estava na idade tos não é pedófilo! ‑ ó, a vozinha de cigano, a vozi-
de pôr tudo na boca. Espalhou a mistela repelente nha de vendedor de feira! ‑ Só as criancinhas des-
nos dedos e ia levá‑la à boca quando a avó, enojada protegidas?! Restaurador Olex resolve a situação!
e furiosa, o impediu e limpou. Caro pedófilo, companheiro, amigo, camarada:
‑ Paneleiro de uma figa! ‑ disse para Bentley use Restaurador Olex a Bem da Nação! Restaura a
com o punho levantado. verdadeira natureza do seu natural instinto. Com
‑ Olha uma comunista... ‑ murmurou sorri- o Restaurador Olex ‑ ó vozinha de apresentador de
dente enquanto se afastava o mais possível e se co- têvê dos anos cinquenta! ‑ poderá Finalmente for-
lava às paredes. nicar qualquer criancinha que lhe apareça à frente!
Hoje era prudente ser observador do mundo, Mesmo os seus, sobretudo os seus, antes de mais
ir ter com amigos, escutar. Sem guarda‑chuva não os seus! No conforto da sua casa ‑ a voz aligeira,
podia cometer as habituais patifarias e escapulir‑se suaviza ‑ na santa paz da sua real natureza enfim
em seguida. realizada.
Foi ter com os Velhos, o fino e o da papada. Um silenciozinho de morte. As câmaras
Muito ele gosta de os ver em acção! apontadas à varanda onde Bentley se empoleirava
‑ Mas que nojo... ‑ diz de repente o senhor e agarrava tremelicante ao chapéu‑joaninha. Antes
Bentley quando passa por uma equipa televisiva de levantar voo disse na direcção de uma câmara:
que faz a cobertura do ProcessoPedofilar (e subitâ- ‑ E depois, sabes, pá, é de graça. Hi, hi, hi.
neo vem à mente o sublime slogan para qualquer
campanha autárquica: VamosPedofilarLisboa! Ve- Allez‑hop!
nha, Cidadão, desopile e Pedófile também!)
Arrepia‑se ao ossos: ‑ Lá vem o parvalhão... ‑ anuncia serenamen-
‑ Nojice... ‑ diz ele ‑ criancinhas, puhá ‑ pare- te o Velho da papada quando Bentley aterra com
ce que lhe subiu o fel à boca. a suavidade de uma pluma no terraço do antigo
Pergunta‑se: como podem tocar nessas cria- ediífio lisboeta.
turinhas infectas, nesses vermes ranhosos?! Estão ‑ Este gajo não nos deslarga... ‑ acrescenta de
pejadinhos de doenças, micróbios, vírus. E a ino- olhos mortiços o Velho fino. Fino como um cor-
cência! Sobretudo é a inocência que os polui ‑ diz del.
Bentley de olhito arregalado e desenhando um ‑ Fossemos nós da matéria do que não tem
gesto melodramático com o braço erguido em ân- matéria! ‑ sauda Bentley num vozeirão (sem me-
gulo recto e a mão como se fosse apanhar a laranja gafone. A esposa escondeu‑o).
da árvore. ‑ E ainda por cima vem com filosofias! ‑ ener-
E de repente vê o Político Que Não foi Acu- va‑se o da papada. ‑ O demónio do velho, só filo-
sado e o Outro Político Que não Foi Acusado e sofias!
o Magistrado Que Não Foi Acusado E Um Gajo ‑ Seria talvez conveniente chamar a criadita
Qualquer Que Não Foi Acusado e Outro Gajo, francesa...‑ sugere amenamente o fino.
semelhante à maralha, Que Não Foi Acusado ‑ vê ‑ Ah não! Isso não admito! Ficam os dois ali
revista BANG! [ 10 ]
a conversar, conversar, a filosofar até altas horas da ‑ Estupor ‑ (o da papada.) E novo pontapé.
noite! ‑ diz ele a revirar‑se na cadeira como se ti- ‑ Estupor ‑ (o fino) e mais outro.
vesse uma pulga no rabo. ‑ Estupor.
‑ O Tao... o Tao...‑ entoa Bentley de olhos en- ‑ Estupor.
levados e as pontas dos dedos a tocarem‑se leve- ‑ Estupor.
mente num ritmo lento e compassado. São um relógio a marcar horas. Relógio suíço.
‑ É terminar a malfadada conversa agora! ‑ diz ‑ Estupor.
o da papada com um murro na mesa que fez saltar ‑ Estupor.
as chávenas e o açucareiro. ‑ Estupor.
‑ O que propõe? ‑ pergunta o fino chegan- ‑ Estupor.
do‑se à frente. ‑ Cabrão.
‑ Diga à criadita para trazer o estupor. E de súbito perdem o ritmo.
Ele sai e regressa. Senta‑se. ‑ Porque disse isso? ‑ perguntou o fino. Este
Segundo depois surge um belíssimo par de encolheu os ombros e confessou que se tinha cha-
pernas, encimado por um tronco bem delineado teado. Olharam ambos para o monte de carne en-
num traje negro de criada minúsculo, com uma colhido a contorcer‑se no chão.
cabeça perlada de caracóis de boneca de porcela- O senhor Bentley recorda a manifestação
na. anti‑gay onde os Velhos o caçaram: viu‑os ao lon-
Pela trela traz um homem dos seus vinte e ge com uma enorme rede de apanhar borboletas
cinco anos, sem cabelo, com cruzes suásticas tatu- e outra de pesca. Ficou à espreita, curioso (até um
adas nos bícepes. homem iluminado é vitima de curiosidades...).
Caçaram‑no numa manifestação anti‑gay e ‑ Cházinho? ‑ diz o fino.
pontapearam‑no de imediato, antes de o trazerem ‑ Cházinho ‑ concorda o da papada.
para o Covil, com uma força inaudita para dois ci- Bentley alçou dali para fora, as garras presas
dadãos séniors. Talvez tivesse sido o treino militar na orla do chapéu‑de‑coco volante. Ao longe avis-
austero que lhes providenciou a vitalidade na ve- tara alguém parecido, parecidíssimo!, com Miss
lhice. Joyce.
Bentley ponderou ir atrás da criadita, mas (Graças a Deus não era ela.) BANG!
limitou‑se a segui‑la com os olhos gulosos de ve-
lho sátiro. Com pena viu as pernas e o rabiosque
arrebitado desaparecer pela porta. Antes de se fe-
Ágata Ramos Simões gosta de livros
char vislumbrou um livro grosso entreaberto. Ah, estranhos, esquisitos. Tem por hábito tomar
Wittgenstein. Anda a lê‑lo. banho. Tem [teve] um gato que não é [era]
Entre filosofia e divertimento o seu coração dela. Fala de si na terceira pessoa. Gosta
balança, indeciso. Sentou‑se no solo (os Velhos ja- da Britney Spears. Do Brad Pitt. Tem ódio
mortal a Angeline Jolie por causa do Brad
mais o convidam a sentar‑se com ele), a apreciar o Pitt. Gosta do som e cheiro da chuva. Gosta
espectáculo. do som e do cheiro do mar. Pode estar muito
Dois velhos militares a darem uma carga de tempo, alheada, a olhar para o vazio, sem
porrada a um neo‑nazi jovenzeco, com menos de fazer nada. Não gosta que a chateiem. Detes‑
ta que apareçam sem avisar. Tem um grande
metade da idade deles e musculadíssimo! Porém sentido de justiça. É mais casmurra do que
‑ incapaz de se defender. sei lá o quê. Já mencionei que adora o Brad
‑ Estupor ‑ disse o da papada e pregou‑lhe um Pitt? Devia ler mais. E escrever também.
pontapé no estômago. É autora do romance Sr. Bentley,
O Enraba-Passarinhos, publicado pela Saída
‑ Estupor ‑ disse o fino e espetou‑lhe um pon- de Emergência, e colaboradora frequente
tapé nas costas. da revista Bang! BANG!
revista BANG! [ 11 ]
O Esplendor das Ruínas
[ficção]

Vasco Luís Curado


«Abraçamo‑nos com força, Sara e eu.
O silvo aumenta vertiginosamente, é quase ensurdecedor.
Vai cair ali mesmo! Vai cair agora! Estamos preparados.»

A guerra, que dura há já alguns anos, habi-


tuou‑nos aos bombardeamentos aéreos, às
sirenes que nos chamam para os abrigos, à rotina,
As ruínas, na sua própria aniquilação, desprezam
as fronteiras: condensam e misturam o sagrado e
o profano, o alto e o baixo, o torto e o direito, o
sucessora da angústia, de esperar nos abrigos que limpo e o sujo, o belo e o feio, embora nelas, devi-
o bombardeamento acabe. Nas últimas semanas do a essa mesma condensação de formas, ângulos,
o inimigo, certamente empenhado em acelerar estruturas, tudo se torne belo. Pisando o ferro re-
o fim da guerra, aumentou a intensidade e a fre- torcido, contornando buracos, resgatamos peças
quência dos bombardeamentos. Cada vez mais várias: moedas romanas, sarcófagos de ouro, mú-
é difícil despertarmos a cidade dos escombros, mias novamente trazidas à luz do dia. Das ruínas
porque novo ataque se abate sobre nós antes que do Museu de Egiptologia trouxemos para a luz,
tenhamos tempo de desobstruir uma rua, recons- pela segunda vez, mais do que um faraó ressusci-
truir uma casa, enterrar os mortos. Tornou‑se tado. Somos arqueólogos da nossa própria cidade,
frequente o inimigo bombardear ruínas, trans- e os tesouros de civilizações antigas, que dantes
formar os escombros e o entulho em fragmentos víamos atrás de vitrinas brilhantes ou apenas em
ainda mais pequenos e esboroados do que já es- postais ilustrados, recuperamo‑los agora do sub-
tavam. solo e do entulho.
Vemos, com orgulho, que as ruínas são As crianças, sujas, esfomeadas, órfãs,
dignas da nossa cidade, antiga capital de império, ajudam‑nos, porque podem chegar aonde nós
fustigada pelas bombas e os mísseis do inimigo. não podemos. Eu e a Sara, a minha namorada,
A catedral gótica, privada do tecto e dos vitrais, dizemos às criancinhas: “Um doce por cada frag-
estende para os céus sombrios as suas paredes, mento de louça!” E elas trazem o que encontram,
como mãos erguidas a querer tocar o alto e o in- rindo, transportam nas mãos pedaços de porce-
finito, agora, mais do que nunca, próxima de uma lana chinesa, cristais, azulejos finos. Chega a ser
elevação divina. Os nossos sapatos rotos e sujos comovente ver, no meio do negrume em que se
de lama pisam o que resta dos frescos e das pin- tornou a cidade, aquelas mãozitas sujas e trému-
turas valiosas que antes costumávamos ver lá em las trazerem peças tão frágeis. Descobrimos que
cima, só tocadas pelo olhar reverente e submisso as crianças partem ainda mais as peças que en-
daquele que visitasse a catedral. contram, de propósito, para obterem mais frag-
Um palácio histórico, cheio de riquezas, mentos e, portanto, receberem mais doces. Mas
pode agora estar confundido com casas vizinhas. não nos importamos; não lhes ralhamos por isso.
revista BANG! [ 12 ]
A alegria de rever aqueles fragmentos, por peque- mos dos mais activos. Desde que descobrimos
nos que sejam, é o mais importante. aquilo que as ruínas podem oferecer, as mesmas
Na imensa ruína que é a cidade, tudo se ruínas que mataram os nossos entes queridos, os
condensa. Os objectos que, esgaravatando e re- belos olhos da Sara perderam a expressão de tris-
mexendo, resgatamos, convivem uns com os ou- teza incontível e adquiriram um brilho semelhan-
tros sem que os cataloguemos ou classifiquemos te às jóias escavadas. Esquecemo‑nos de chorar os
rigorosamente. Dezenas de crucifixos, cravejados mortos, porque as ruínas são um manancial ines-
de diamantes, foram colocados numa prateleira gotável de História viva, onde, paradoxalmente,
poeirenta do sapateiro da nossa rua, ao lado das os mortos recuperam uma vida nova e nos entre-
botas velhas que aguardam conserto. Foi o pró- têm com tesouros já não distantes, intocáveis, mas
prio sapateiro que os pôs ali, e quando soubemos misturados com o nosso quotidiano.
que ele estava a coleccionar esses crucifixos, que Não há distância entre nós e aquilo que
tinham pertencido ao tesouro de uma das mais desenterramos. Caídas as paredes dos museus,
notáveis igrejas da cidade, ajudámo‑lo. Dizíamos estilhaçadas as vitrinas, expostas as caves blinda-
uns aos outros: “Todos os crucifixos que encon- das que encerravam riquezas, os tesouros são‑nos
trarmos, entregamos ao sapateiro.” E a colecção acessíveis e tornam‑se, mesmo, objectos utilitá-
aumentava, irradiando brilho no tugúrio escuro rios. Um vizinho meu levou para casa tapeçarias
que era a sua oficina. Depois, quando uma bom- valiosíssimas porque precisava de qualquer coisa
ba devastou o prédio de três andares, soterrando com que se tapar nas noites frias. Vi pessoas ves-
a oficina, tivemos de recuperar novamente os seus tidas com paramentos de cardeais e papas porque
crucifixos e as suas botas, que encontrámos con- precisavam de roupas. Crianças brincam com ar-
fundidos, ainda mais danificados do que antes, maduras medievais. Vi uma mãe procurar comida
mas conservando muito do esplendor antigo. Foi no entulho com a filha de cinco anos e que tendo
a melhor homenagem que podíamos fazer ao de- encontrado uma caixa cheia de bonecas de porce-
funto sapateiro, devolver à vida os seus queridos lana, que pertenceram a uma princesa, deu‑as à
objectos. filha. E vi um homem na rua a assar um chouriço
Não enterrámos o sapateiro; deixámo‑lo espetado numa adaga árabe enfeitada com pedras
enterrado. Não havia espaço para enterrar todos preciosas.
os mortos e, além disso, queremos dedicar mais A Sara pode vestir a roupa que uma canto-
tempo a procurar objectos entre os escombros. ra famosa usou na sua ópera preferida e ofereceu
Amanhã podemos ser nós a morrer, sem maravi- a um museu, calçando ao mesmo tempo as socas
lharmos os nossos olhos com as riquezas de outras de uma camponesa medieval e pondo na cabeça
eras. Não é forçado dizer que os mortos já estão, um diadema etrusco. Um dia, depois de um bom-
por assim dizer, enterrados. As casas que eram as bardeamento, fiz‑lhe uma surpresa. Vesti‑a com
deles, quando vivos, tornam‑se muitas vezes os peças de várias épocas e lugares, vesti eu próprio a
seus sepulcros. E se as bombas e as derrocadas farda de gala de um Czar e levei‑a a passear num
matam e, no mesmo acto, enterram os mortos, coche do século XVIII, feito de madeira pintada a
numa notável economia de esforços, também tra- ouro. O coche era puxado por velhos cavalos co-
zem para a superfície os mortos antigos: túmulos xos e semi‑cegos que encontrei perdidos no meio
de reis e rainhas saltam para o ar livre, não sendo da cidade devastada.
raro que os restos mortais fiquem a céu aberto. Le- Não há distância nem diferença entre nós
vei para casa o crânio de um imperador do século e estes objectos. Nós, com as roupas rotas e os ca-
XIV. Arrancaram tiaras e diademas aos esqueletos belos cheios de poeira e estuque, somos parte das
e ao pó. ruínas da cidade. Manipulando objectos confun-
Nesta arqueologia diária, eu e a Sara so- didos e danificados, não delapidamos tesouros
revista BANG! [ 13 ]
Iniciação
[ficção]
mas participamos na vida quotidiana das ruínas.
Surpreendidos por um ataque aéreo sem
termos tido tempo de fugir para um abrigo, per-
didos no meio do fumo e do pó, vendo paredes
ruírem à nossa volta como se já não tivessem von-
tade de estar em pé, prédios a desintegrarem‑se,
António de Macedo
o solo a levantar‑se como um mar revolto, eu e
a Sara tropeçámos nos túmulos de reis merovín-
gios; estão nas ruínas do único sector que estava in-
tacto de um museu. Não há tempo a perder. Quem «Tantas palavras para quê?
sabe se a próxima bomba tornará a esconder estas
Toda a gente sabe que o excesso de
maravilhas. Começámos a enfeitar‑nos com as jóias,
coroámo‑nos a nós próprios no meio do tumulto sapiência cega o entendimento para a
cego. Coloquei no rosto uma máscara de ouro e ofe- fatal simplicidade das coisas.»
reci a Sara os mais belos brincos, colares e pulseiras.
A tempestade de fogo continua a atroar no
espaço à nossa volta. A qualquer momento, a parede
periclitante, atrás da qual estamos, pode cair‑nos em N enhum dos Discípulos adivinhava qual
era a prova seguinte. Dir-se-ia, aliás, que
nem sequer sabiam que uma prova os aguarda-
cima. À pressa, procuramos mais coisas. Ouvimos
um silvo que, caído lá dos ares, vem para perto de va. Apesar da longa ascese, do domínio sobre
nós, e é sem dúvida uma bomba. Vai cair mesmo no os sentimentos e os desejos, da imposta indi-
outro lado do paredão e provocar a sua derrocada ferença adestrada por anos de treino e medita-
sobre nós. Mas que belo holocausto! Que esplên- ção, não conseguiram evitar um íntimo tremor
dida emulação! Vamos jazer soterrados num sono — ainda que ligeiro e indefinido, mas bem real
cheio de sonhos dourados, resplandecentes, e pode e embaraçante —, ao contemplarem o interior
ser que um próximo bombardeamento devolva os do Palácio.
nossos corpos à superfície, magníficos nas suas ves- Maravilharam-se porque o Palácio foi para
tes e máscaras de ouro, como imperadores ressusci- eles uma visão tão imprevista como gloriosa, e
tados. sobretudo desconcertante: «Mas quem — in-
Abraçamo‑nos com força, Sara e eu. O silvo terrogaram-se os Discípulos — se lembraria de
aumenta vertiginosamente, é quase ensurdecedor. chamar Palácio àquilo?»
Vai cair ali mesmo! Vai cair agora! Estamos prepa- Não havia paredes, apenas cachos de Anjos
rados. BANG! feitos de nevoeiro a emergirem, como arpões,
de cortinas de água despenhando-se da altura
de montanhas; corpos vivos de muitos animais
sem nome estremeciam e atapetavam um chão
inexistente; descargas eléctricas ziguezaguea-
vam e faziam brotar frutos iguais em forma e
tamanho a crianças recém-nascidas que estou-
ravam como bolhas de sabão e desapareciam,
Vasco Curado nasceu em 1971. Publicou, no
domínio da ficção, o livro de contos “A Casa espalhando revoadas de demónios gargalhantes
da Loucura” (Ausência, 1999) e o romance em todas as direcções; por sua vez as gargalha-
“O Senhor Ambíguo” (Escritor, 2001). das expeliam turbilhões de mólhos de palha e
Psicólogo clínico, publicou uma tese de mes‑ moedas de ferro que obscureciam os ares…
trado em Psicopatologia, “Sonho, Delírio e
E os Discípulos descobriram, com surpre-
Linguagem” (Fim de Século, 2000).BANG!
revista BANG! [ 14 ]
sa e algum desdém, que afinal se encontravam cem como redimem. Na forma imbricada da
dentro duma cabana miserável cheia de buracos Rosa, no Número místico das suas pétalas e na
no colmo por onde entrava a chuva, e rendilha- beleza incomparável das suas proporções reside
da de frinchas nas tábuas desconjuntadas das o segredo da infinita Grandiosidade Cósmica!
paredes por onde assobiava o vento. — Oh Mestre! — contrapôs o segundo
O Mestre erguia-se à frente deles enver- Discípulo ao ser-lhe feita a mesma pergunta —,
gando uma túnica grosseira, já muito usada e o mais notável na Rosa é o perfume! O orva-
rota. Tinha nas mãos uma taça de boca larga, lho matinal, impregnando a terra, gera a prima
de platina, de cujo interior voavam pássaros materia ; deste acto de amor exala-se o Perfume
continuamente, espalhando-se pela cabana em Primordial de toda a criação. Por sua vez a fra-
voos tresloucados e ensurdecendo com uma grância dos oceanos, em contacto com a terra,
insuportável chilreada quem se encontrasse no sobe às nuvens, daí desce às florestas e une-se
exíguo aposento. como doçura salgada ao Perfume Primordial:
Porém, quando os Discípulos concentra- eis o segredo da Núpcia Alquímica, ou Místi-
ram a atenção nas Mãos do Mestre verificaram ca Gestação, de tudo quanto vive. O inebrian-
que ele segurava uma Rosa, em vez duma taça te aroma da Rosa é a quintessência subtilizada
donde jorravam pássaros chilreantes. desse Mistério!
Fez-se silêncio na Cabana, ou no Palácio, — Oh Mestre! — disse por sua vez o ter-
ou no Tabernáculo. ceiro Discípulo —, o que de mais notável há na
O sorriso do Mestre revelava tanta bene- Rosa é a cor. O branco e o vermelho em todas as
volência, tanto conhecimento e tanto amor que suas gradações, desde as lágrimas de prata à pe-
os Discípulos sentiram concentrar-se nos seus dra de ouro-rubi, o Divino Sangue refulgindo
corações a enormíssima quantidade de paz e to- sobre o Túmulo nacarado do Redentor, a chuva
lerância que pairam no mundo e que os huma- de sémen Celestial e o leite virginal da Deusa-
nos quotidianamente deitam fora, como cascas Terra, misturando-se no sobrenatural cadinho
de amendoins. do Grande Amor Sagrado, condensam num
A força da felicidade que os inundou foi Brilho Único o inviolável Enigma da Eternida-
tamanha que caíram de joelhos diante do Mes- de; a cor aveludada da Rosa, em qualquer dos
tre. seus matizes, confere, a quem o saiba decifrar, o
O Mestre apresentou-lhes a Rosa, cuja co- dom da Imortalidade.
rola de belos tons contrastava com o caule es- O Discípulo seguinte dissertou sobre a Be-
curo cruzado por duas folhas divergentes, de leza da Rosa, um outro sobre a delicada volú-
um verde de chama — uma corola sobre uma pia do seu Nome feminino, um outro sobre a
cruz —, e deixou que a examinassem longa- incomparável doçura da sua Fragilidade, outro
mente. ainda sobre a sua misteriosa Leveza, e assim por
— O que há de mais notável na Rosa? — diante. Quando chegou a vez do último Discí-
perguntou por fim o Mestre. pulo (um corcunda de olhar febril que se man-
O primeiro Discípulo, um velho muito ve- tivera afastado e silencioso enquanto os outros
lho de comprida barba branca, tão comprida discorriam) o Mestre sorriu, exactamente com
que tivera de lhe dar vários nós para não trope- o mesmo sorriso perfeito com que sorrira a to-
çar nela, prostrou-se e disse: dos os outros, e perguntou uma vez mais:
— Oh Mestre, o mais notável na Rosa — O que há de mais notável na Rosa?
é a forma. Nela se concentram as Coroas e as — Os espinhos — respondeu o corcunda
Espirais do universo, a Magia das nebulosas e sem hesitar.
das galáxias, os Labirintos que tanto enlouque- O Mestre ofereceu-lhe a Rosa transcenden-
revista BANG! [ 15 ]
Colecção
[informação]
te e disse, inclinando a cabeça com reverência:
— Guarda-a. Tu é que sabes.

Q Bang!
uando o Mestre repetiu esta história na
classe seguinte, para o segundo recruta-
mento de candidatos, o candidato mais novo
murmurou à parte, desiludido:
— Tantas palavras para quê? Toda a gente
sabe que o excesso de sapiência cega o enten-
Apresentação
dimento para a fatal simplicidade das coisas.
BANG! do terceiro trimestre
de 2008

Nomes consagrados da ficção


científica, autores premiados da
fantasia, criadores incontornáveis
do horror... o terceiro trimestre
deste ano oferece um pouco de tudo,
incluindo duas edições especiais.
Escritor, cineasta e prof. universitário,
nasceu em Lisboa em 1931. Frequentou a
Faculdade de Letras da Universidade Clás‑
sica e a Escola Superior de BA de Lisboa
onde se formou em Arquitectura em 1958.
Inclui na sua extensa filmografia dezenas
de documentários, programas televisivos
e filmes de intervenção, bem como onze
longas-metragens de ficção. Paralelamente,
especializou-se na investigação e estudo
das religiões comparadas, de esoterologia, O Prestígio [Edição Especial]
de história da filosofia e da estética audio- Christopher Priest
visual, e das formas literárias e fílmicas de
«speculative fiction», temas que tem abor‑ Edição com capa exclusiva, tiragem limitada e o verdadei-
dado em inúmeros colóquios e conferências, ro nome da obra na capa (adeus à edição tie-in do filme!)
e em diversas publicações. Tem leccionado
em diversas instituições de ensino desde O Prestígio é uma história de segredos obsessivos e curiosidades
1971. Iniciou em 2005 um doutoramento em insaciáveis. Actuando nas luxuosas salas de espectáculos vito-
Sociologia da Cultura pela mesma Facul‑ rianas, dois jovens mágicos entram num feudo amargo e cruel,
dade. Foi homenageado pelo 30.º Festival cujos efeitos podem ser ainda sentidos pelas respectivas famílias
Internacional de Cinema da Figueira da Foz, mais de um século depois.
em Setembro de 2001, pela relevância da sua Os dois homens assombram a vida um do outro, levados ao ex-
carreira e pelo contributo prestado à cultura tremo pelo mistério de uma espantosa ilusão que ambos fazem
cinematográfica portuguesa.e. BANG! em palco. O segredo da magia é simples, mas para os antago-
revista BANG! [ 16 ]
nistas o verdadeiro mistério é outro, pois ambos os homens têm “Penso que o autor que mais me influenciou como
mais a esconder do que apenas os truques da sua ilusão. escritor foi Richard Matheson. Livros como Eu Sou a
Publicação dia 21 de Julho. Lenda foram uma inspiração para mim.”
– Stephen King

Robert Neville é o último homem vivo na Terra... mas


não está sozinho. Todos os outros homens, mulheres e
crianças transformaram-se em vampiros e estão sequiosos
pelo sangue de Neville.
De dia, ele é o predador, caçando os mortos vivos pelas
ruínas abandonadas da civilização. De noite, Neville
barrica-se em casa e reza para que chegue a manhã.
Durante quanto tempo pode um homem sobreviver num
mundo de vampiros?
Os Leões de Al-Rassan Publicação dia 11 de Agosto
Guy Gavriel Kay

“Uma aventura elegantemente escrita e bem trabalhada...


tão rápida e ritmada como pensativa”
— San Francisco Chronicle

“Brilhante e profundamente comovente… um romance épico


dramático.”
— The Edmonton Journal

Inspirado na História da Península Ibéria, Os Leões de Al-


Rassan é uma épica e comovente história sobre amor, lealdades A Tormenta de Espadas
divididas e aquilo que acontece aos homens e mulheres quando George R. R. Martin
crenças apaixonadas conspiram para refazer – ou destruir – o
mundo. O quinto volume da melhor saga de fantasia dos últimos
Lar de três culturas muito diversas, Al-Rassan é uma terra cinquenta anos!
de beleza sedutora e história violenta. A paz entre Jaddites,
Asharites e Kindath é precária e frágil; assim como é a sempre Os Sete Reinos estremecem quando os temíveis selvagens do
presente sombra que divide os povos mas, ao mesmo tempo, lado de lá da Muralha se aproximam, numa maré inter-
consegue juntar indivíduos extraordinários. Ammar ibn minável de homens, gigantes e terríveis bestas. Jon Snow, o
Khairan – poeta, diplomata e soldado, Rodrigo Belmonte Bastardo de Winterfell, encontra-se entre eles, debatendo-se
– um famoso líder militar, e Jehane bet Ishak – uma física com a sua consciência e o papel que é forçado a desempe-
brilhante. Três figuras cuja vida se irá cruzar devido a uma nhar.
série de eventos marcantes que levam Al-Rassan ao limiar da Todo o território continua a ferro e fogo. Robb Stark, o Jo-
guerra. vem Lobo, vence todas as suas batalhas, mas será ele capaz
Publicação dia 11 de Agosto de vencer as mais subtis, que não se travam pela espada? A
sua irmã Arya continua em fuga e procura chegar a Correr-
rio, mas mesmo alguém tão desembaraçado como ela terá
dificuldade em ultrapassar os obstáculos que se aproximam.
Na corte de Joffrey, em Porto Real, Tyrion luta pela vida,
depois de ter sido gravemente ferido na Batalha da Água
Negra, e Sansa, livre do compromisso com o rapaz cruel que
ocupa o Trono de Ferro, tem de lidar com as consequências
de ser segunda na linha de sucessão de Winterfell, uma vez
que Bran e Rickon se julgam mortos.
No Leste, Daenerys Targaryen navega na direcção das terras
da sua infância, mas antes terá de aportar às cidades dos es-
Eu Sou a Lenda [Edição Especial] clavagistas, que despreza. Mas a menina indefesa transfor-
Richard Matheson mou-se numa mulher poderosa. Quem sabe quanto tempo
falta para se transformar numa conquistadora impiedosa?
Edição com capa exclusiva, tiragem limitada e contos inéditos. Publicação dia 11 de Agosto
revista BANG! [ 17 ]
Dois
[ficção] [tradução de Luís Rodrigues]

contos de...
Bruce Holland Rogers
Os Melhores Contos de H. P. Lovecraft
Howard Phillips Lovecraft

“Uma obra tão importante como a de Edgar Allan Poe ou «E assim tem sido desde
Tolkien.”
-Robert Bloch
então. A qualquer noite,
com a cabeça cheia de recados,
“Lovecraft é um autor perturbante. Criador de um mundo cós-
mico de terror cuja única saída é a insanidade.” o menino morto pode bater
-Clibe Barker
a qualquer janela para lembrar
Terceiro volume da obra completa de Lovecraft. Com organi- alguém—para te lembrar a ti, quem
zação do Prof. José Manuel Lopes, da Universidade Lusófona,
Os Melhores Contos de Howard Phillips Lovecraft - Volume sabe—de um amor que sobrevive
3, traz até junto do público nacional alguns dos contos mais
emblemáticos deste escritor marcante da literatura fantástica,
à memória, de um amor que
como por exemplo Para lá das Fronteiras do Sono, A Casa não carece de nomes.»
Maldita, Os Gatos de Ulthar, e a fabulosa novela Nas Monta-
nhas da Loucura.
Publicação dia 18 de Agosto

O menino morto à tua janela

N um país distante onde as cidades tinham nomes


improváveis, uma mulher contemplou a figura
inerte do seu bebé recém‑nascido e recusou‑se a ver
o mesmo que a parteira. Era o seu filho. Trouxera‑o
E não perca no próximo número da revista ao mundo em agonia, e agora ele tinha de mamar.
Bang!, as sinopses dos lançamentos da Encostou‑lhe os lábios ao seio.
— Mas ele está morto! — disse a parteira.
Colecção Bang! até ao final do ano:
— Não — mentiu a mãe. — Ainda agora o
senti mamar. — A sua mentira era como leite para
Pavana, Keith Roberts o bebé, que na realidade estava morto, mas abria
agora os olhos e pontapeava com as pernas. — Está
Lisboa Triunfante, David Soares
a ver?
A Glória dos Traidores, George R. R. Martin E obrigou a parteira a chamar o pai para co-
nhecer o seu filho.
O Clube de Hemingway, Dan Simmons O menino morto nunca chegou a mamar no
Sebastian, Anne Bishop seio da mãe. Nunca bebeu água, nem provou comi-
da de nenhuma espécie, e por isso, claro, nunca cres-
Tangled Webs, Anne Bishop ceu. Mas o pai, que tinha jeito para coisas mecânicas,
revista BANG! [ 18 ]
construiu uma armação para o esticar, para que, com O ar parecia cinzento e encoberto. O menino morto
o passar dos anos, pudesse ser da altura das outras inclinou‑se para o lado e abanou‑se até o pau lhe cair
crianças. da camisa. Enrolou o cordel que tinha puxado atrás
Tendo visto seis Invernos, os pais mandaram‑no de si e esperou pelo nascer do Sol. Com o alongar das
para a escola. Embora fosse da altura dos restantes horas, viu apenas o mesmo ar pardacento. Começou
alunos, o menino morto era uma coisa estranha de se por isso a vaguear.
ver. A cabeça calva era quase do tamanho certo, mas o Encontrou um homem muito parecido consi-
resto do corpo era delgado, como uma tira de couro, go, uma cabeça calva a encimar membros como ca-
e seco como um pau. Tentava compensar a fealdade bedal.
com diligência, e ficava acordado até tarde a ensaiar as — Onde estou? — perguntou o menino morto.
letras e os números. O homem olhou o ar cinzento em redor.
A sua voz era como o restolhar de folhas secas. — Onde? — perguntou. A sua voz, tal como a
Por ser tão difícil escutá‑lo, a professora obrigava os do menino morto, parecia o sussurro de folhas mor-
outros alunos a prender a respiração sempre que ele tas.
dava uma resposta. Ela chamava‑o muitas vezes ao Da névoa, surgiu uma mulher. Também a sua
quadro, e ele estava sempre correcto. cabeça era calva, e o corpo ressequido.
Como é natural, as outras crianças despreza- — Isto! — disse em voz rouca, tocando a cami-
vam‑no. Por vezes, os rufias faziam‑lhe esperas à saída sa do menino morto. — Eu lembro‑me disto! — Pu-
da escola, mas bater‑lhe, mesmo com paus, nunca lhe xou pela manga. — Tinha uma coisa destas!
causava dano. Nem chegava sequer a gritar. — Roupa? — perguntou o menino morto.
Certo dia de vento, os rufias roubaram um no- — Roupa! — gritou a mulher. — É isso!
velo de cordel da secretária da professora e, depois da Outras pessoas encarquilhadas surgiram do
escola, prenderam o menino morto ao chão com os ar cinzento. Juntaram‑se para ver o estranho menino
braços esticados em forma de cruz. Enfiaram‑lhe um morto que envergava roupa. O menino morto sabia
pau pela manga esquerda da camisa até sair pela direi- agora onde estava.
ta. Esticaram‑lhe as abas da camisa até aos tornozelos, — É a terra dos mortos.
ataram tudo no sítio, prenderam o novelo de cordel à — Porque tens tu roupa? — perguntou a morta.
casa de um botão, e lançaram‑no ao ar. Para grande — Chegamos aqui sem nada! Porque tens tu roupa?
alegria sua, o menino morto fazia um papagaio exce- — Sempre estive morto — disse o menino —
lente. Só os alegrava mais ver que, devido ao peso da mas passei seis anos com os vivos.
sua cabeça, voava de pernas para o ar. — Seis anos! — disse um dos mortos. — E só
Quando se fartaram de ver o menino morto agora te juntaste a nós?
voar, largaram o cordel. O menino morto não voltou — Conheces a minha mulher? — perguntou
ao solo, como um vulgar papagaio de papel. Pairou. um morto. — Ela ainda está entre os vivos?
Era capaz de se guiar um pouco, embora estivesse so- — Dá‑me novidades do meu filho!
bretudo à mercê dos ventos. E não conseguia descer. — E que é feito da minha irmã?
Na verdade, o vento impelia‑o cada vez mais para o Os mortos aproximaram‑se mais.
alto. Disse o menino morto:
Pôs‑se o Sol, e o menino morto continuou a ser — Como se chama a tua irmã?
levado pelo vento. Nasceu a Lua, e ao luar viu sucede- Mas os mortos não se conseguiram lembrar
rem‑se prados e florestas. Viu cordilheiras passar por dos nomes dos seus entes queridos. Não se lembra-
baixo de si, oceanos e continentes. Por fim, os ventos vam sequer dos próprios nomes. De igual maneira, os
acalmaram, e depois cessaram, e ele aterrou a pairar nomes dos lugares onde tinham vivido, os números
no chão de um estranho país. O chão estava despi- dos seus anos, as modas e costumes das suas épocas,
do. A Lua e as estrelas tinham desaparecido do céu. tudo isso tinham esquecido.
revista BANG! [ 19 ]
— Bom — disse o menino morto — na cidade casa, reuniu mensagens para dar aos mortos. Pela ma-
em que nasci havia uma viúva. Se calhar era a tua mu- nhã, encontrou uns rapazes para o pôr a voar, para o
lher. E sabia de um rapaz cuja mãe tinha morrido, e devolver à mercê do vento, para assim levar estas no-
uma velha que podia ter sido a tua irmã. vas mensagens de regresso à terra dos mortos.
— Vais voltar? E assim tem sido desde então. A qualquer noite,
— Claro que não — disse outra pessoa morta. com a cabeça cheia de recados, o menino morto pode
— Nunca ninguém volta. bater a qualquer janela para lembrar alguém—para te
— Acho que sou capaz — disse o menino mor- lembrar a ti, quem sabe—de um amor que sobrevive à
to. Explicou‑lhes o seu voo. — Mal sopre o vento… memória, de um amor que não carece de nomes.
— O vento nunca sopra aqui — disse um ho-
mem falecido há tão pouco que ainda recordava o O Rei Duende
vento.
— Então corram com o meu cordel.
— Isso resulta?
— Dá um recado ao meu marido! — disse uma
Q uando era pequeno, o meu pai contava‑me his-
tórias ao deitar, e a minha mãe perguntava‑lhe
de outra divisão:
morta. — Não lhe estás a ler o poema, pois não?
— Diz à minha mulher que tenho saudades — É o preferido dele! — respondia o meu pai
dela! — disse um morto. com um piscar de olho.
— Diz à minha irmã que não a esqueci! Não sabia muito bem por que achava o meu
— Diz ao meu namorado que ainda o adoro! pai que o poema do Rei Duende era o meu preferido.
Deram‑lhe os seus recados, sem saber se os Todas as noites, depois de o ouvir, ficava muito tem-
seus entes queridos continuavam vivos. Na verdade, po acordado, atento à escuridão. Acordava frequen-
dois amantes falecidos bem podiam estar lado a lado temente numa choradeira durante a noite, e a minha
na terra dos mortos, passando mensagens um ao ou- mãe vinha para me abraçar. Ainda assim, todas as
tro através do menino. Ainda assim, memorizou‑as noites depois da última história, o meu pai abria o li-
a todas. Os mortos recolocaram‑lhe então o pau nas vro de poemas infantis e lia baixinho os versos sobre
mangas da camisa, ataram tudo no sítio e desenrola- os espiões do Rei Duende:
ram o cordel. Correndo tanto quanto as pernas encar-
quilhadas lhes permitiram correr, lançaram o menino A Lua é um olho para o Rei Duende
de volta ao céu, soltaram o cordel e ficaram a vê‑lo Ver como te estás a portar.
afastar‑se com o seu olhar morto. E se amuas, choras, berras ou gritas
O menino pairou muito tempo sobre o cinzen- As aranhas vão‑lhe contar...
to da morte até que, por fim, uma aragem o levantou,
e um sopro de vento o levantou ainda mais, e uma ra- A maior parte do poema era dedicada aos me-
jada o levou até onde podia ver a Lua e as estrelas. Lá ninos que se comportavam mal e ao que lhes acontecia
em baixo, viu o luar espelhado no oceano. Ao longe, quando o Rei Duende se apercebia disso. Um rapazi-
erguiam‑se os picos das montanhas. O menino morto nho desaparecia chaminé acima, apanhado por uma
aterrou numa aldeola. Não conhecia ninguém ali, mas abominação negra. Uma menina era puxada para o
foi à primeira casa que encontrou e bateu na persiana fundo de um poço. E depois havia a Annie.
do quarto. Disse à mulher que lhe abriu a janela:
— Um recado da terra dos mortos — e trans- A pequena Annie partia os pratos
mitiu‑lhe uma das mensagens. Ao jantar, era endiabrada.
A mulher chorou e, em troca, deu‑lhe outro Os pais mandaram‑na para a cama.
recado. Ai dela! Teve a sorte traçada.
Casa a casa, entregou as mensagens. Casa a O Rei Duende tem pés de areia
revista BANG! [ 20 ]
E nunca faz um som.
E quando a Mãe desfez a cama,
Eis o que ela encontrou:

Uma bola de cabelo encarquilhada,


Um dente, uma unha e um osso.
Mais nada restava da Annie
A não ser, talvez, um soluço.

O livro tinha uma figura do Rei Duende. Sen-


tava‑se, sorridente, no seu trono no bosque. A não ser
pelo amarelo dos dentes e dos olhos, era feito de ele-
mentos da floresta—ramos, erva, areia, lama e folhas Bruce Holland Rogers nasceu em Tucson (Ari-
secas. Era difícil perceber onde acabava o bosque e zona, USA), em pleno deserto de Sonora, em
começava o Rei Duende. 1958. Especializou-se na escrita de curtíssimas
histórias, que lhe valeram inúmeros prémios,
Certa noite, faltou a luz no nosso bairro mesmo entre os quais o Pushcart Prize, dois Nebula
antes da hora de ir dormir. Eu já estava de pijama, e o Awards, o Bram Stoker Award, dois World
meu pai levava‑me ao colo para o quarto. Não havia Fantasy Awards, e nomeações para o Edgar Al-
luz para me contar uma história, porém declamou de lan Poe Award e o Premio Ignotus, em Espanha.
Vive actualmente entre o Oregon e Londres.
memória o poema:
BANG!

A Lua é um olho para o Rei Duende


Ver como te estás a portar.
E se amuas, choras, berras ou gritas
As aranhas vão‑lhe contar...

A lua tinha surgido à janela. Àquela luz morti-


ça, tudo o que podia ver eram as córneas nos olhos do
meu pai e os dentes a brilhar.

E quando a Mãe desfez a cama,


Eis o que ela encontrou:

Enquanto declamava o poema, foi esboçando Pequenos Mistérios


um sorriso cada vez mais largo. Os dentes adquiri- Bruce Holland Rogers
ram luz própria, e os olhos tornaram‑se enormes. O Mestre da prosa concisa, rica e envolvente, o autor apresenta-se
resto do corpo desvaneceu‑se até eu deixar de perce- com esta colectânea de quarenta contos inesquecíveis, que lhe
ber onde acabava a escuridão e começava o meu pai. valeu o muito cobiçado World Fantasy Award em 2006 (na
Concluiu o poema, depois afagou‑me o cabelo categoria de “Colectâneas”), no mesmo ano em que Haruki
Murakami venceu na categoria de “Romance” por Kafka on
e disse o que sempre dizia quando me deixava a sós the Shore. No prefácio, escrito exclusivamente para esta edição,
com as palavras do poema a pairar no ar negro. Jeff VanderMeer (autor de A transformação de Martin Lake)
— Porta‑te bem — disse ele. — Porta‑te muito, escreve: “invejo todos aqueles que se deparam com este livro pela
muito bem. BANG! primeira vez”.

Mais informações na página da editora:


[contos integrantes da antologia Pequenos Mistérios] www.livrosdeareia.com
revista BANG! [ 21 ]
A ficção,
[ensaio] [tradução de Luís Filipe Silva]

por Henry James


e Robert Louis Stevenson
Dan Simmons
Dan Simmons, um dos maiores escritores de literatura fantástica,
oferece-nos um ensaio que dá que pensar... e que também dá origem
à tertúlia que desenvolvemos a partir da página 43.

“Não há géneros, apenas talentos” dez títulos considerados pelo jornal como sendo os
‑ Jean‑François Revel, mais interessantes de 2007. Fantástico!
Le Voleur Dans La Maison Vide Depois a Book Sense indicou‑me que The
Terror encontrava‑se em 12º lugar na lista anual de

O ano de 2007 terminou relativamente bem para


mim, em termos literários e de carreira literá-
ria. É verdade, acabei o ano envolvido num combate
livros mais vendidos por livreiros independentes.
Perfeito!
E a Entertainment Weekly colocou The Ter-
mortal com o meu extenso romance Drood – adian- ror na sua lista dos Dez Melhores. Óptimo!
do o prazo até 1 de Fevereiro de 2008, e rolando no E Stephen King incluiu, evidentemente, The
chão em luta com este livro difícilimo, aos chutos e Terror nas suas recomendações pessoais a respeito
pontapés, enquanto Drood e eu tentávamos acabar dos dez livros mais assustadores de 2007, nessa mes-
um com o outro; pela minha parte, insistia em que ma edição da Entertainment Weekly. Obrigado, Ste-
ele teria de nascer e teria de ser brilhante, ou es- ve!
trangularia o #%%$&$&$ com as minhas próprias E a Amazon.com listou The Terror em pri-
mãos. meiro lugar dos seus Top 10 – Fixe! – na secção de
Até aqui, nada de novo. Ficção Científica e Horror.
Mas precisamente no final do ano, quer FC/Horror. Bem. . . isso é que já não é tão
meu agente quer o meu editor da Little, Brown, co- bom.
meçaram ambos a enviar‑me notícias sobre o meu Não quero, com esta afirmação, mostrar‑me
romance The Terror, o qual tinha sido publicado em elitista. Sou autor de FC e Horror. O meu único e so-
edição de bolso no início do ano e cuja versão em litário Prémio Hugo (pelo romance Hyperion) é um
trade paperback saíra para as livrarias em princípios dos meus galardões mais apreciados. As casinhas as-
de Dezembro. A edição de livro de bolso ia já na ter- sombradas de cerâmica, representando os prémios
ceira tiragem. Boas notícias, portanto. que a associação dos Horror Writers of America me
Mais interessante ainda foi a informação da atribuiu, observam‑me neste preciso momento en-
USA Today de que The Terror constava da lista dos quanto escrevo estas palavras, e os meus «Howies»
revista BANG! [ 22 ]
– designação do Prémio Mundial de Fantasia, uma E porque me incomoda isto? Bem, uma
edição limitada de bustos de H. P. Lovecraft pela mão loja que esconda os livros dos leitores que poderiam
do fabuloso cartonista Graham Wilson – também apreciá‑los incomoda qualquer autor, mas de onde
me sorriem, à sua maneira «Ilha da Páscoa». Gosto vem esta profunda irritação em ser‑se classificado,
de todos eles e dos géneros que representam. Con- encostado a um género, e afastado da secção de Lite-
tudo, The Terror, embora contenha definitivamente ratura?
elementos do fantástico e do horrendo, não se trata É tudo por causa do ego? É um sentimento
de FC de modo algum, e sim, 80% romance histórico de inferioridade? Inveja mesquinha?
e 20% fantasia/horror. No mesmo dia em que fiquei Pensando nisto enquanto transladava dis-
a saber da lista de FC/Horror da Amazon.com, en- farçadamente alguns exemplares de The Terror para
trei numa livraria da cadeia Borders e notei que The as estantes de Literatura, de forma a que repousas-
Terror estava enfiado nas prateleiras da secção de Li- se junto de gigantes literários como Danielle Steele,
teratura Geral; pensei para comigo – Pronto, assim lembrei‑me, não pela primeira vez (e certamente
está bem – antes de perceber que a loja acabara de que não pela última), de algo que George R. R. Mar-
alterar o sistema de arrumação nas prateleiras, mas tin me disse no Verão de 1981, aquando da minha
não efectuara ainda a mudança das designações das participação no Workshop, de uma semana, dos Es-
secções. The Terror encontrava‑se na secção de Ro- critores de Milford destinado a autores profissionais
mances de Horror e nem sequer um exemplar podia (uma singular excepção prestada à minha pessoa,
ser encontrado sob a etiqueta de Literatura Geral. pois ainda não tinha sequer publicado o meu pri-
Jean Auel e os seus Caçadores de Mamutes era osten- meiro livro).
tada nesta última secção, mas The Terror, com toda a Alguns dos verdadeiros autores ali presentes
pesquisa cuidada histórica que tem por base... (Connie Willis encontrava‑se lá, em início de carrei-
Merde! Scheisse! ra, bem como Edward Bryant e George R. R. Mar-
Sim, Virginia, nós, escritores, somos uma es- tin, que se tinha iniciado na FC e recentemente se
pécie picuinhas e patética. transferira para o género do horror, o qual voltara a
Pronto, depois da pequena birra, parei para tornar‑se popular nos inícios dos anos 80) debatiam
pensar porque é que este tipo de assuntos é tão im- o familiar argumento de que «ninguém nos respei-
portante para nós, escritores. Parei para reflectir ta», ao qual certas pessoas dentro do género acabam
porque é que tenho tanto orgulho em que Hyperion, por sucumbir. (Eu não, obviamente – nessa época,
Ilium, Olympos, Worlds Enough & Time e alguns dos em que ainda não publicara nada, teria vendido a
meus outros livros se encontrem na secção de FC, e minha avó aos árabes se me fizesse ser publicado em
particularmente satisfeito por ver Carrion Comfort, que género fosse.)
Children of the Night, Summer of Night, e outros, na «Parece‑me que a ficção se dividiu nestas
secção de Horror, mas contudo me sinta incomoda- duas formas de pensar com Henry James e Robert
do quando encontro os meus outros romances – The Louis Stevenson», afirmava George Martin nesse
Crook Factory, por exemplo (uma história sobre a dia de Estio de 1981. «Antes deles, não se podia falar
presença de Hemingway em Cuba, em 1942, e o pa- verdadeiramente em géneros. Mas actualmente, ou
pel que desempenhou enquanto espião) ou Phases of se é descendente de James... um autor sério... ou um
Gravity ou The Terror erradamente emprateleirados, descendente de Stevenson, um mero autor de géne-
tendo ainda como consequência o facto de que nun- ro.»
ca serão descobertos pelos leitores de literatura geral. Essa afirmação ficou‑me no espírito. Mais
Algo que percebi há muito: no que toca a tarde, conduzi uma breve pesquisa para ficar a sa-
computadores e empregados de loja, assim que fi- ber se Henry James e Robert Louis Stevenson se co-
camos conhecidos como autores de FC ou Horror, nheciam, e, em caso afirmativo, o que pensavam um
seremos sempre autores de FC e Horror. do outro e das respectivas obras. E uma vez que um
revista BANG! [ 23 ]
dos géneros em que me movo é a Ficção Científica, the Fine Arts» («Ficção como uma das Belas Artes»)
melhor retratada por FC do que pela epítote execrá- da autoria de um romancista vitoriano de sucesso,
vel de «sci‑fi» que os não‑leitores do género nos es- hoje completamente esquecido, de nome Walter
tampam na testa, para a finalidade deste ensaio irei Besant.
incluir H. G. Wells também ao barulho enquanto re- Besant argumentava que a escrita devia
presentante desta, enquanto Robert Louis Stevenson pertencer à categoria das restantes belas artes, e
poderá representar a aventura e a ficção imaginativa que todos os romances deviam possuir um «pro-
de todos os tipos. pósito moral consciente». Também urgia forte-
Conhecia Henry James estes homens? O que mente que todos os escritores apenas abordassem
pensavam uns dos outros? Talvez ainda mais impor- o que realmente conheciam, e que os autores das
tante, o que pensavam eles dos tipos de escrita que os classes inferiores se abstivessem de escrever sobre
colegas produziam? personagens do mundo da alta sociedade ou de
outros locais que o autor pouco conheceria e nos
«Se o Sr. James nunca partici- quais, nem ele nem os seus personagens seriam
pou numa aventura em busca de te- desejados.
Henry James rejeitou quase todos os te-
souros enterrados», escreveu, «poderá oremas de Besant e respondeu nas páginas da
então ser demonstrado que nunca foi Longman’s Magazine com o seu ensaio definitivo,
verdadeiramente criança.» «A Arte da Ficção», uma obra que, se não poder
ser considerada como o manifesto de todos os «au-

H enry James conheceu Robert Louis Stevenson


em 1879, pouco depois de James ter publicado
o romance extremamente popular e influente Daisy
tores sérios» dos séculos XX e XXI, tornou‑se de
certa forma o pater familias contra o qual a ficção
moderna é impelida a revoltar‑se.
Miller. Então, a Treasure Island de Stevenson encon- James argumentava no ensaio que qualquer
trava‑se ainda distante quatro anos no futuro, e The ficção nasce da experiência mas não se encontra cir-
Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde, bem como cunscrita por esta:
Kidnapped, a sete anos de distância. «A experiência nunca é limitada, mas tam-
Não foi um começo particularmente auspi- bém nunca é completa; é uma sensibilidade imensa,
cioso para o relacionamento. uma espécie de teia de aranha imensa feita dos mais
Amigos de Stevenson afirmam que este terá finos fios de seda suspensos na câmara da consciên-
voltado do breve encontro com uma opinião pouco cia, prendendo toda e qualquer partícula que atra-
favorável a respeito de Henry James. Por seu lado, Ja- vesse o ar na sua malha. É a essência da atmosfera do
mes referiu‑se assim a um amigo sobre Robert Louis espírito; e quando o espírito é imaginativo – muito
Stevenson: «. . . uma pessoa agradável, mas um boé- mais se pertencer a um génio – assume os mais ligei-
mio sem colarinho e em grande medida (embora de ros indícios de vida, converte as pulsações do ar em
forma inofensiva) um pedante.» revelações.»
A falta de admiração mútua poderia ter‑se Entre os leitores deste ensaio encontrava‑se
tornado num desprezo explícito – poucos homens Robert Louis Stevenson, então em convalescença em
eram tão díspares em personalidade quanto Steven- Bournemouth. O autor da Treasure Island não dis-
son, boémio, tísico, irrequieto, aventureiro, incomo- cordava da citação de Henry James atrás citada, mas
dado pelos espaços urbanos, e James, muito ciente James prosseguia com a afirmação de que, embora
da distinção entre as classes, preciso, rotundo, sau- o romance não se igualasse à vida, deveria mesmo
dável, urbano e por vezes efeminado – se, em 1884, assim reproduzir «a ilusão da vida». James afirmava
Henry James não tivesse sentido a necessidade de ainda que a qualidade mais admirável e esplêndida
responder a um ensaio chamado «Fiction as One of do romance enquanto formato era a sua «… perso-
revista BANG! [ 24 ]
nalidade extensa e livre com uma correspondência tuberculose. Não muito longe de Bournemouth, Ali-
imensa e rica à da vida.» ce, irmã de Henry James, também se encontrava em
James usara a recém‑publicada Treasure Is- convalescença. Alice chegara recentemente dos Esta-
land para expandir este argumento. Ainda que elo- dos Unidos, pretendendo convalescer em Inglaterra,
giasse a qualidade da escrita e o brilhantismo da cria- e não nas Américas; era uma mulher que dedicara a
tividade do conto de Stevenson, James demonstrava juventude à tarefa da invalidez e de ir morrendo aos
o modo como violava os limites da ficção realista... poucos, embora não lhe encontrassem um proble-
«Em tempo fui criança», escreveu James, ma físico naquela idade (quando um caroço cance-
«mas nunca participei em aventuras em busca de te- rígeno no peito foi descoberto anos mais tarde, Alice
souros enterrados.» chegou a mostrar‑se contente por finalmente estar
Stevenson retorquiu a James num ensaio‑res- na posse de um diagnóstico físico que se enquadrava
posta intitulado «Uma Admoestação Humilde.» no seu particular estilo de morrer).
«Se o Sr. James nunca participou numa Mas como o melhor (ou pelo menos, o mais
aventura em busca de tesouros enterrados», escre- exaustivo) biógrafo de Henry James, Leon Edel, es-
veu, «poderá então ser demonstrado que nunca foi creveu a respeito desse ano de 1884...
verdadeiramente criança.» «Foram assim declaradas em público, no
R.L.S. continuava, refutando o ímpeto do decurso deste ano, três perspectives distintas sobre
argumento de James a respeito da emulação da vida o romance; a de Besant referia‑se à perspectiva do
pela arte. O segredo da arte, afirmava, é que não ten- escriba popular e bem intencionado, o “fazedor” de
ciona «competir com a vida». Dizia Stevenson que ficção popular; James argumentou que o roman-
a vida «…é monstruosa, infinita, ilógica, abrupta e ce devia ser uma obra de arte com o objectivo de
pungente», enquanto que uma obra de arte «deverá re‑criar a realidade; e Stevenson, a partir da sua pró-
ser elegante, finita, contida em si mesma, racional, pria fórmula, advogou a criatividade pura».
fluída e castrada». Creio que é justo dizer, passados 114 anos,
Aquele termo final, «castrada», foi – receio que estes três polos magnéticos distintos ainda divi-
– bastante preciso ao descrever tanta da dita «ficção dem o mundo dos romances e os romancistas.
séria e literária» da segunda metade do século XX Contudo, não se instalou nenhum antago-
e deste curto começo de século. Tornou‑se quase nismo entre James e Stevenson porque, a seguir ao
numa certeza que, para ser respeitada, uma obra de debate animado nas páginas da Longman, o primei-
ficção contemporânea terá ser pequena em escala, ro escreveria ao segundo, revelando o seu encanto
vazia de aventura e de visões grandiosas, de âmbi- «perante a leitura de tudo o que [Stevenson] escreve.
to deliberadamente modesto, e com um certo tom É um luxo, nesta época imoral, encontrar alguém
introspectivo de natureza feminina. John Updike que sabe escrever – que é realmente conhecedor
mencionou em tempos a necessidade de ser‑se «pe- dessa formosa arte.» James diria a respeito dos seus
queno e de escrita densa o suficiente» para se conse- próprios argumentos no ensaio «A Arte da Ficção»
guir aparecer no The New Yorker. que constituiam principalmente uma moratória pela
«Nada poderá ser mais deplorável», acres- liberdade dos romancistas e que representavam ape-
centava Robert Louis Stevenson na sua «admoesta- nas metade das suas opiniões sobre o assunto.
ção humilde» a Henry James, «do que abandonar as «Um dia tentarei exprimir o que falta. . . A
vissicitudes da vida e encontrar refúgio num estúdio ligeireza intrínseca de tudo o que escreve é‑me deli-
cuja temperatura se encontra regulada.» ciosa», James acrescentou na carta, sabendo o quão
Mas era precisamente num tal estúdio de doente Stevenson se encontrava.
temperatura regulada, em Bournemouth, que Ste- Robert Louis Stevenson retorquiu que os
venson procurava recuperar da sua querela recente seus próprios esforços literários eram modestos
com o que (pensamos hoje) seria quase certamente quando comparados com os de Henry James, e dis-
revista BANG! [ 25 ]
cursava sobre «o desespero com o qual escritores excesso epistolar. E mais interessante ainda para os
como eu contemplam (digamos) a cena do parque académicos modernos e aspirantes a doutores, era,
em Lady Barberina. Cada toque surpreende‑me pela obviamente, a paixão eterna, exigente e obsessiva
sua precisão instantânea.» com a aia, Katharine Loring. (Os estudiosos de Ali-
No que tocava às discordâncias de ambos, ce James deixam pegadas lamacentas sobre o peito e
Stevenson comentava: «Todos os homens perse- barriga proeminente do irrelevante Henry James na
guem objectivos diferentes, e eu persigo os meus; sua pressa para abordar Alice e as suas tendências
mas quando medirmos o desempenho, reconheço lésbicas.)
que, comparado consigo, não passo de um pregui- Dada a época e os tempos, seria pouco pro-
çoso e incapaz de primeira ordem.» vável que essas tendências fossem alguma vez postas
Stevenson acrescentou que, por se encontrar em prática fisicamente, permanecendo sublimadas,
doente, apreciava a companhia de visitas, e convidou quase de certeza, mesmo perante um espírito tão
James a dirigir‑se a Bournemouth onde o poderia al- ciumento e exigente como o de Alice James; contu-
bergar e oferecer‑lhe uma «justa garrafa de clarete.» do, será também pouco provável que os estudantes
E assim começava a verdadeira amizade en- actuais consigam perceber isso. Nunca, como hoje,
tre Henry James e Robert Louis Stevenson. conseguiram os académicos ignorar o contexto e
realidade de épocas passadas como actualmente
«No seu ponto de vista, a criança acontece, pelo que Alice acabou por tornar‑se numa
estrela fixa no firmamento dos estudos lésbicos (em-
normal é aquela que se ausenta do bora a pobre Alice possivelmente tivesse tido uma
círculo familiar.» síncope antecipada – e conseguindo assim antecipar
o objectivo pessoal de morrer –, se soubesse que este

N ão há dúvida que Henry James gostava profun-


damente da sua irmã Alice, mas perdoem‑me
a minha insensibilidade e dureza (e honestidade)
boato impensável a seu respeito andaria na boca do
mundo).
De qualquer modo, sabemos que as visitas
se referir que Alice James era uma maluca irritante de Henry James à cabeceira do leito (ou do sofá) de
e cansativa. Visitá‑la com frequência, como Henry Alice em Bournemouth eram permanentemente
James fazia – quer estivesse em Londres a praticar cansativas e com frequência exasperantes para a sua
a sua sua forma de morrer, ou em Bournemooth, pessoa, embora em 1885 conseguisse aliviar a me-
onde Alice e a sua aia tinham alugado uma casa de lancolia ao tornar‑se num visitante regular da vizi-
campo – deve ter sido o equivalente familiar de ir ao nha Skerryvore, terra onde Robert Louis Stevenson
dentista todas as semanas. mantinha um cadeirão especial reservado para Ja-
Atentem, por favor, que os meus comen- mes. R.L.S. tinha trinta e cinco anos então, sete anos
tários são feitos na plena consciência de que Alice mais novo que H.J., e James não era o único amigo de
James é muito admirada pelos académicos da era Stevenson a notar que o tuberculoso mantinha todo
moderna, em particular pelos que se dedicam ao o entusiasmo, irrequietitude e paixão pelo mundo
estudo do feminismo, da história e da política dos do faz‑de‑conta de um miudo.
cinco géneros. Para ser justo, Alice era uma pessoa Alice James passou anos a fingir que mor-
bastante animada, considerando que era uma invá- ria; Robert Louis Stevenson estava a efectivamente a
lida profissional – sempre interessada nos últimos morrer, mas mostrara e continuaria a mostrar uma
boatos que os irmãos William e Henry lhe traziam, capacidade impressionante, vez e outra, de se erguer
sempre interessada no mundo do teatro, e sempre a do abismo final. E para alguém assim tão doente,
escrevinhar todos esses boatos em montes de cartas, Stevenson era admiravelmente prolífico– escreven-
entradas em diários, e pequenos ensaios, de volume do entre os ataques de tosse, febres, e fraqueza (afir-
impressionante, mesmo naquela era vitoriana de mava não sentir muitas dores).
revista BANG! [ 26 ]
Stevenson e esposa habitavam uma estrutura nhos de homens mais velhos que os conduzem em
vívida, coberta a marfim, com dois andares e tijoleira aventuras excitantes.
amarelada (e um telhado de ardósia azul) dependu- «Embora tenha um interesse enorme na
rada quase sobre a berma, ou garganta, de Alum Chi- vida juvenil, não tem qualquer interesse na vida jun-
ne. Deram ao local o nome de Skerryvore, em honra to à lareira», escrevia James. «No seu ponto de vista,
do famoso farol construído por um antepassado de a criança normal é aquela que se ausenta do círculo
Robert Louis Stevenson. Era aqui que James e Ste- familiar.»
venson se encontravam e mantinham conversas, na Nesse mesmo ano, em Bournemouth, James
sala azul, as respectivas reflexões acompanhadas por escrevia ao editor americano e velho amigo William
um grande espelho venesiense que James oferecera Dean Howells:
ao casal. Stevenson ficaria sentado num dos lados da «O meu único recurso social nesta terra é
mesa a enrolar cigarros, sendo habitual formar uma Robert Louis Stevenson, que se encontra mais ou
imagem pitoresca no espelho com os seus compri- menos moribundo e que (caso chegue a falecer) me
dos bigodes louros, envergando casacões boémios passou no outro dia uma mensagem de natureza
de veludo, com um xaile marrom lançado sobre os amistosa – muito amistosa – que devia entregar‑lhe
ombros como se fosse um poncho mexicano. a si quando proximamente nos víssemos. Aguarda-
Stevenson gostava de dedicar a James versos rei até esse momento – é demasiado longo para esta
laudatórios da sua autoria, honra que o escritor mais carta tão pequena. Trata‑se de uma criatura interes-
velho aturava com graciosidade. Muitos desses poe- sante e charmosa, mas receio que esteja nas últimas;
mas celebravam a amizade entre os dois. embora em aparência menos perto da morte do que
já pareceu no passado.»
Agora com graça desmedida James e Stevenson faziam o que quaisquer
Antevejo o fogo estaladiço autores que se têem em consideração mútua cos-
Na sala azul de Skerryvore; tumam fazer desde a invenção do pergaminho: en-
Onde aguardo que pela aberta viavam um ao outro os respectivos livros e liam‑se
Porta, o Príncipe dos Homens com apreço genuíno. No ano de 1886, em Sker-
Henry James, de novo surja. ryvore, Stevenson entregou a James uma cópia de
Kidnapped, inscrevendo nela – «Oxalá tivesse uma

J ames admirava a escrita de Stevenson, mas –


como era hábito nas suas reacções ao trabalho de
outros escritores – era honesto sobre o assunto, quer
melhor obra para oferecer ao melhor dos homens.»
Essa cópia, ainda preservada na biblioteca de James,
encontra‑se inscrita com observações e notas margi-
perante terceiros quer perante o autor em questão. nais – algo comum aos livros que Henry James tinha
James poderia estar a referir‑se à ficção científica e na sua posse e que respeitava.
outros géneros futuros quando apontou que havia
uma quase total ausência de heroínas na ficção de «Não tornou o Sr. Rider Haggard
Robert Louis Stevenson. «A ideia do faz‑de‑conta»,
escrevia James, «é‑lhe mais atraente que a ideia de agradável inclusive a carnificina
fazer amor.» africana?»
Refiro‑me a esta situação como sendo o fac-
tor «Universo do Pato Donald» da nossa FC e dos
géneros de aventuras, até há bem pouco tempo – um
mundo no qual não existem mulheres importantes,
N ão se deverá assumir, neste ponto, que Henry
James seria um artista literário com um gosti-
nho escondido por romances de cordel.
nem famílias, por assim dizer (e certamente nenhu- Apesar da forma rígida como hoje o enca-
ma das restrições que as mulheres e os pais impõem ramos, James não era, de modo nenhum, um puri-
na vida real), e no qual todos os rapazes são sobri- tano. Embora cauteloso em seguir as convenções da
revista BANG! [ 27 ]
época, foi Henry James quem, naqueles últimos anos o que então pensaria do tsunami incessante, nos nos-
da era vitoriana, concluiu que «o lado carnal do ho- sos dias, de todo e qualquer tipo de acto de violên-
mem parece demasiado característico se o olharmos cia, tortura, e depravação imagináveis, que jorram
ao pormenor; mas se o olharmos ao pormenor não dos ecrãs de cinema e da televisão e das músicas rap
vemos o outro lado, o lado pelo qual reage contra as e dos romances bestseller, vinte e quatro horas por
suas fraquezas e derrotas.» dia?
Mas se Henry James podia defender a ex- Mas o meu argumento era simplesmente
pansão dos limites dentro dos quais a literatura se mostrar como a admiração de Henry James pelo
debate com a sexualidade – e como efectivamente o faz‑de‑conta juvenil dos livros e contos de Robert
fez durante a reescrita posterior dos seus primeiros Louis Stevenson não se estendia aos restantes escri-
contos e romances para a dita Edição Nova Iorquina bas básicos de ficção sensionalista, inclusive aos da
da sua obra coligida –, abominava contudo o uso de sua própria época.
violência na ficção. James abominava a violência de
uma forma geral, mas era a sua sensibilidade artística «Uma criança poderia tê‑lo escrito
que se sentia violada quando os autores distorciam
a realidade – incluindo o efeito realista da violência
se essa criança fosse capaz de observar
infringida sobre pessoas reais – para provocar res- a infância pelo lado de fora».
postas básicas nos leitores.
«Não tornou o Sr. Rider Haggard agradável
inclusive a carnificina africana?» comentou James a
Stevenson sarcasticamente por carta, em 1886. H.
E ntretanto, as carreiras de ambos os autores to-
mavam rumos inesperados. Henry James co-
meçava a ser considerado e reconhecido como «o
Rider Haggard era um autor de sucesso da época; Mestre», embora encontrasse enormes dificuldades
James tinha lido as Minas de Salomão na totalidade e em ganhar dinheiro com a maestria de prosa. Em
She até meio, antes de desistir. O facto de She ter ven- 1886, quando o romance The Bostonians se encon-
dido mais de 40 000 exemplares, disse a Stevenson, trava a ser publicado em partes na Century Magazi-
provocava‑lhe «uma indignação divina.» ne, o editor de James, Richard Watson Gilder, escre-
James ironizava: «não é tão bom que algo tão veu‑lhe a informá‑lo que «nunca tinham publicado
vulgarmente banal seja precisamente o que tem mais nada que parecesse despertar tão pouco interesse
sucesso junto dos ingleses actuais.» Sentia‑se, pelas nos leitores».
suas palavras, incomodado com a «sanguinolência No ano de 1888, James encontrava‑se numa
animal dos livros de Haggard.» tal situação que confessou a um amigo que os seus
«Tanta matança perpétua e tanta fealdade próprios romances tinham «reduzido o desejo, e a
perpétua! Será válido, ao escrever‑se um conto de procura, de tudo o que escrevia, a zero».
aventuras fantásticas, que até incluía um persona- Decidiu ganhar dinheiro pela escrita de pe-
gem cómico, etc, sustentado na premissa mais ténue, ças – uma tentativa que lhe traria a humilhação mais
que se mate assim 20 000 homens, como acontece terrível e profunda de toda a sua vida – e pela crí-
em Salomão, apenas para ajudar os heróis na deman- tica de livros. Um desses livros que criticou para a
da! Em She, o Narrador mata pelas costas (penso) o Century Magazine em 1888 foi Kidnapped:
próprio servo, o fiel Maomé, para impedir que seja «… [trata‑se] de facto uma prova evidente
cozido vivo, e descreve como saltou no ar como um do que o romance pode conseguir na sua melhor
veado sob a força do disparo. Parecem‑me obras nas forma, e que nada mais é capaz de conseguir tão
quais a nossa raça e era se apresentam como figuras bem. Na presença deste tipo de sucesso percebe-
vis – e inesperadamente, deprimiram‑me.» mos o seu imenso valor. É (o romance) capaz de
Há que parar neste ponto. Se as obras de H. uma transparência rara – capaz de ilustrar os as-
Rider Haggard realmente deprimiam Henry James, suntos humanos em situações tão delicadas e com-
revista BANG! [ 28 ]
plexas que em qualquer outro veículo se tornariam lacionamento posterior entre Henry James e o Pai da
inadequados.» Ficção Científica, Herbert George Wells.
E de facto, Robert Louis Stevenson tinha Tanto quanto saiba, os rumos de Henry Ja-
estado em maré de sorte. Em 1885, o ano seguinte mes e Herbert George Wells cruzaram‑se pela pri-
ao do debate com James nas páginas da Longman’s meira vez a 5 de Janeiro de 1895. Para Henry James
Magazine, Stevenson dera à luz The Strange Case – e por razões que em nada se relacionavam com
of Dr. Jekyll and Mr. Hyde, acabando‑o em apenas Wells – foi talvez a pior e mais humilhante noite da
três dias após «um sonho particularmente vívido.» sua vida.
Mostrou‑o à esposa, que respondeu dizendo que lhe Vou tentar explicar porque esta noite foi tão
«faltava alegoria» e por conseguinte era um esforço terrível para Henry James antes de iniciar a descri-
falhado. Stevenson queimou o manuscrito de ime- ção da passagem de H. G. Wells pela vida do Mes-
diato. tre.
Depois pensou melhor e escreveu‑o de novo, Conforme mencionei anteriormente, Ja-
novamente demorando três dias, e passou os meses mes andava desesperado a tentar ganhar dinheiro
seguintes a procurar um editor, um editor qualquer, através da escrita de romances e contos, e pensou
que fosse capaz de lidar com um tópico tão pertur- dedicar cinco anos da sua vida a tentar alcançar a
bante. fama com uma peça de sucesso. Destes cinco anos,
Encontrou‑o. O livro revelou‑se um sucesso foram efectivamente motivantes para o mestre da
de vendas imediato. Dr. Jekyll and Mr. Hyde granjeou prosa escrita os dois primeiros, apesar de ter pas-
a Stevenson a reputação que ainda hoje tem, tornan- sado por desilusões genuínas. Nas cartas a amigos
do‑o num dos autores populares do seu tempo, e e demais escritores, entre os quais se encontrava
conduziu ao sucesso ainda maior de Kidnapped, en- Robert Louis Stevenson (que então tinha emigra-
quanto os romances de Henry James faziam ador- do para os mares do Sul), James declarava o seu
mecer a base de leitores deste, que cada vez era mais entusiasmo com este novo meio – um pouco como
reduzida. acontece com os romancistas de hoje ao começa-
James não nutria ressentimentos, pois perse- rem a trabalhar no cinema – e que a escrita para o
guia a sua própria visão sobre a arte da ficção. Numa teatro recorria a métodos que o romance não per-
outra crítica sobre a obra de Robert Lous Stevenson mitia. E no tocante à sua opinião, nos anos de 1893
que James publicaria na North American Review, o e 1894, seria dramaturgo durante o resto da vida.
autor mais velho comentava: Não voltaria atrás.
«...na linguagem da arte que depende es- Mas no sábado de 5 de Janeiro de 1895,
sencialmente da observação directa, personalidade, a peça na qual trabalhava e reescrevia e refinava e
personalidade, eis o destingue!» ensaiava há tanto tempo, chamada Guy Domville,
E ao escrever uma crítica de um livro de ri- estreou‑se em Londres.
mas infantis que Stevenson publicara, Henry James A estreia gerara um interesse público muito
honrou‑o com o que é possivelmente o maior elogio positivo e a perspectiva inicial era favorável. O famo-
a um escritor de ficção imaginativa que se apoia na so actor‑empresário George Alexander concordara
santidade do faz‑de‑conta – «Uma criança poderia em financiar Guy Domville em grande parte porque
tê‑lo escrito se essa criança fosse capaz de observar a a peça lhe permitiria representar uma diversidade de
infância pelo lado de fora». personalidades e emoções: romântico no primeiro
acto, deprimido no segundo acto, e um visionário e

R egressaremos à amizade entre Henry James e


Robert Louis Stevenson quando dos capitulos
finais e do final agridoce em Dezembro de 1894,
mártir no terceiro. E com cada mudança de persona-
lidade, assim mudaria de vestimenta. Alexander era
muito vaidoso com a presença em palco – particular-
mas gostaria de passar agora adiante e analisar o re- mente no que tocava a mostrar as pernas – e muitos
revista BANG! [ 29 ]
dos seus apreciadores eram mulheres que assistiam go a estalar de actor para actor, como o chicote de
às peças apenas para ver a sua figura masculina e as Indiana Jones. Na peça relativamente obscura de
ditas pernas em vestes elaboradas. Henry James, os personagens estavam a entrar e sair
Os restantes actores variavam de serem com- constantemente – tinha problemas com entradas e
petentes a inconsequentes. James quisera desespera- saídas de cena, e Alexander estava continuamente a
damente a participação de Elizabeth Robbins – uma mudar de roupa como um manequim de desfile dos
actriz muito profissional, muito popular, e uma ami- tempos actuais – e quando um personagem falava,
ga muito recente do romancista – no papel principal tendia a ficar parado e despejar grandes quantidades
feminino de Guy Domville, mas uma série bizarra de algo que parecia, mas não era, uma fala natural.
de confusões dignas de um artigo no moderno Na- Não continha nada da mistura de poesia perfeita, do
tional Perspirer fizeram‑na «dispensar» a oferta em linguajar diário e intensidade bruta que Shakespeare
favor de uma actriz mais jovem e sem experiência mostrara aos dramaturgos ser possível de criar.
relevante. No cômputo geral, a peça teve um tremendo
E contudo, uma produção de George Ale- azar.
xander de uma peça de Henry James atrairia a nata Quem aprecie teatro ao vivo já viu desastres
da Londres artística e literata à noite de estreia. Mui- como este. Estou recordado de uma produção mu-
tos dos amigos famosos de James estavam presentes sical londrina, muito cara, de E Tudo o Vento Levou
nessa noite – incluindo os artistas Lord Leighton, há alguns anos, na qual as saias‑balão dominavam o
Burne‑Jones, George du Maurier (o artista‑ilustra- palco e na qual, durante a cena em que Rhett con-
dor tornado recentemente famoso e rico pelo ro- duz Scarlett para longe de uma Atlanta em chamas,
mance bestseller Trilby, cuja adaptação aos palcos se o cavalo que puxava a carroça parou para aliviar os
tinha tornado num dos maiores sucessos do século) intestinos durante um tempo interminável.
e John Stinger Sargent. A vertente literária estava re- O público começou a rir e não conseguiu
presentada por nomes igualmente conhecidos. parar. A seguir, no final desse segundo acto, quan-
Mas uma qualquer razão ainda hoje não do Scarlett disparou contra o soldado ianque que
completamente compreendida, a noite de estreia lhe invadira a mansão de Tara, o actor, ao tombar,
também atraiu rufias – literalmente, vândalos. Nun- não atingiu a marca que devia. Ficou no caminho do
ca se compreendeu exactamente quem lhes compra- pano, que começou a descer; o ianque morto aper-
ra os bilhetes e qual o seu propósito. Houve quem cebeu‑se que as quase 2,5 toneladas de tecido iriam
sugerisse que George Alexander ofendera agiotas ou cair precisamente sobre ele. O actor tinha uma es-
outro tipo de gangsters e que os vândalos e a arraia colha – ou rodava para a direita, directamente para
miúda tinham sido enviados para ridicularizar a fi- cima do estrume ainda fumegante que ali tivera de
gura peralvilha do actor (que, de facto, fora alvo de ficar durante o longo segundo acto, ou seria esmaga-
sérias ameaças antes da peça ter início nessa noite, do pelo pano. Escolheu o estrume.
incluindo uma coroa funerária de flores.) Quando o pano voltou a subir passados 15
De qualquer forma, era uma mistura estra- minutos de intervalo, o publico ainda se estava a rir.
nha numa audiência de noite de estreia. E Tudo o Vento Levou: o Musical não sobreviveu.
E a peça não era das mais fáceis. Apesar de Guy Domville não foi assim tão mau. Não se
ter alguns diálogos requintados, o arco dramático viu estrume a ser depositado ou atirado para o palco.
era curioso – amador e obscuro, poderia afirmar‑se Foi algo bastante diferente.
– e a percepção de diálogo de Henry James não con- As dúzias de mudanças de roupa de Geor-
seguira ainda dominar as exigências do palco. Oscar ge Alexander, sempre a mostrar as barrigas perfeitas
Wilde estreara recentemente um conjunto de peças das suas pernas envoltas em meias de seda, provo-
de sucesso – coisas triviais – mas as audiências mo- caram o riso na plateia (riso que não era intencional
dernas ainda hoje podem assistir e apreciar o diálo- na peça, tal como James a escrevera) – em particular,
revista BANG! [ 30 ]
no grupo de vândalos sentados nos lugares baratos. so entusiástico que se seguiu, voltou para o Teatro
E então surgiram as saias‑balão da matrona da Sra. St. James, no qual Guy Domville estava prestes a ter-
Domville – demasiado grandes para caber na por- minar e dirigiu‑se para os bastidores, pensando que
ta, demasiado retesadas para lhe permitir sentar‑se poderia ser chamado ao palco.
quando era necessário que o fizesse. E além dessa A peça terminou. Também nesta se verificou
saia imensa que enchia o palco, a actriz avantajada aplauso entusiastico. Alexander – desfeito em suor
era forçada a usar um altíssimo e desengonçado cha- com tanta troca de roupas e completamente perple-
péu, ornado com imensas plumas. Cada vez que a xo pela hostilidade do publico durantes os três actos
Sra. Domville virava a cabeça, havia alguém no pal- – regressou para as chamadas a palco. Os amigos de
co que ficava com a cara cheia de penas, e o chapéu James e a audiência começaram a pedir «Autor, au-
pendia tão selvaticamente que o publico começou a tor».
rir‑se mesmo durante os momentos mais sérios da Alexander, que devia dar a James um sinal
peça. que lhe indicasse se era apropriado para o autor apa-
recer, estava irritado. Talvez, alguns especularam,
«As gentes rudes e plebeias do público odiasse Henry James tanto naquele instante, que
atingiram James com escárnios, vaias, quis que este passasse pela mesma agonia que o ac-
tor tinha sofrido naquelas horas em cena, tendo sido
apupos, e tudo de mau que tinham propositado no que fez a seguir.
ao dispor, excepto vegetais podres.» De qualquer forma, saiu de palco, tomou
Henry James pela mão e conduziu o romancista‑tor-
E por fim chegou a cena da bebedeira. Era nado‑dramaturgo para palco sem que este suspeitas-
suposto ser um momento cómico, durante o qual se do que se passava.
Alexander tentaria embebedar um outro actor, e este Directamente para uma emboscada.
tentaria retribuir‑lhe o feito, enquanto cada um deles As gentes rudes e plebeias do público atingi-
deles iria despejando surrepticiamente a sua bebida ram James com escárnios, vaias, apupos, e tudo de
nas plantas junto a si, pensando ambos que estavam mau que tinham ao dispor, excepto vegetais podres.
a ludibriar o rival para o tornar, de acordo com as Os amigos de James e as «pessoas‑bem do
anotações de Henry James, «intelectualmente ébrio» público» responderam com uma ovação em pé e um
– mas por esta ocasião na peça tanta coisa tinha cor- aplauso mais intenso. As duas metades do público
rido mal que a audiência ria‑se dos próprios actores tinham declarado guerra uma à outra. John Singer
e não da história, tendo Alexander interpretado a Sarget chegou a virar‑se para a galeria e a mandá‑los
cena (nas palavras de um novíssimo critico teatral calar; parecia que o famoso artista de retratos ia dar
chamado George Bernard Shaw) «com a sobriedade inicio a uma tremenda briga. De acordo com o que
do desespero.» James relatou posteriormente ao irmão William
No final da peça e ao completar o que deveria – «Todas as forças da civilização no teatro encetaram
ter sido uma peruração belíssima, George Alexander uma batalha pelo aplauso mais galante, prolongado
excedeu o dramatismo da deixa – «Milorde, sou o e sustentado contra as vaias e assobios e apupos da
último dos Domvilles!» – e surgiu da escuridão uma raia‑miuda, cujos berros (como os de uma jaula de
voz alta e áspera vinda do balcão – «Ainda bem que bestas de um zoo infernal) foram ainda mais exacer-
és!» bados pelo conflito.»
Henry James não assistiu a este desastre. Ti- E no meio deste pesadelo, um dos homens
nha ficado tão nervoso até ao momento da estreia mais timidos e compenetrados em toda a literatura
que teve a «brilhante ideia» de assistir à estreia de – em toda a Inglaterra – em todo o mundo – mante-
uma peça de Oscar Wilde e não à da sua. Tendo per- ve‑se ali enquanto «a barba escura acentuava a pali-
manecido nesta até ao final e testemunhado o aplau- dez do rosto e o domo alto da sua calvície» e tentava
revista BANG! [ 31 ]
recuperar a dignidade. Houve quem mais tarde se brilhantemente escrita mas era demasiado delicada
referisse à «frieza desdenhosa» de James enquanto para ser colocada em palco, «e se é culpa do actor ou
se cobria de berros, mas um dos actores secundários do encenador, é uma questão muito interessante.»
nos bastidores descreveu James, quando saiu final- Tudo, dizia, indicava um «cancelamento antecipa-
mente de palco, como estando «verde de desalen- do».
to». Nisso Wells estava certo.
Foi preciso que se passassem anos antes que Em breve, Wells abandonaria a Pall Mall Ga-
James finalmente ultrapassasse esta noite e outros zette e o trabalho como crítico teatral – julgo que foi
anos para ultrapassar o completo fracasso do seu o único emprego assalariado que teve – e começou
sonho de se tornar um dramaturgo galardoado e de a carreira nas letras. E foi neste contexto que ele e
sucesso. Henry James voltaram a cruzar caminho.
Em 1898, James transferira‑se de Londres

E ncontravam‑se dois novos críticos na audiência


da peça: George Bernard Shaw, que mencionei
anteriormente, que se tornara no crítico de teatro
para o campo – para a sua Lamb House, pictores-
ca mas isolada, sobre o Rye –, como acontecera com
outros autores, incluindo Stephen Crane, Ford Ma-
da Saturday Review, embora aquela fosse apenas a dox Hueffer (que em breve se tornaria Ford Maddox
quinta noite com esse cargo, e um rapazola farripas Ford), e H. G. Wells, no final da rua em Sandgate, na
«com pernas curtas, bigodaça comprida, e uma voz costa inglesa.
de rato», chamado Herbert George Wells, que aca- James e Wells encontrar‑se‑iam em eventos
bara de ser contratado como critico teatral pela Pall sociais nos anos seguintes, e partilhavam um inte-
Mall Gazette, apesar de ter assistido a peças apenas resse comum a respeito do pobre Stephen Crane
duas vezes em toda a sua vida. (autor americano da Red Badge of Courage e um dos
«É preciso usar fato de gala?», chegou a per- melhores contos de sempre, «The Open Boat»), que
guntar ao editor, e, recebendo uma resposta afirma- vivia com a mulher Cora, sem estarem casados (ti-
tiva, Wells fora a correr para um alfaiate para que nham‑se encontrado num prostíbulo da alta socie-
lhe fizessem um fato formal nas vinte e quatro horas dade da Flórida, e Cora tinha sido a primeira mulher
seguintes (G. B. Shaw, embora igualmente novo na correspondente de guerra, escrevendo comunicados
actividade de crítico teatral, tinha a confiança sufi- sob o nome de «Imogene Carter»), numa casa de
ciente para assistir à estreia usando um casaco de campo alugada, de aparência estragada e cheia de
bombazina castanha amarrotado.) correntes de ar – a Brede Place –, não muito afastada
Shaw e Wells eram ambos jovens com am- de onde James e Wells viviam.
bições literárias e ambos socialistas, ateus, ambos de Cora Crane vivia para as suas pretenções de
uma origem simples e ambos com grandes interes- alta‑sociedade, na casa gélida e delapidada, e Ste-
ses nas manifestações e política relacionadas com a phen Crane tentava seguir‑lhe as fantasias, contudo
classe média, mas para além disto as comparações os invernos terríveis, a casa fria e ventosa («árvores
desvanesciam‑se. Shaw, de postura cínica e pouco inteiras consumiam‑se nas lareiras»), o lugar e o rit-
sentimentalista, tinha uma obsessão muito menor mo do sonho de Cora matavam aos poucos o escri-
pelos Factos e Ciência que o gosto (e na verdade, tor inválido.
crença) próprio de engenheiros ou cientistas sentido Quando Crane morreu, ainda jovem – aba-
por Wells. tido, na opinião calada de James e Wells, pelas pre-
Ambos escreveram críticas competentes e tensões e indiferença de Cora – o «Mestre» e o futuro
profissionais de Guy Domville, cada qual elogian- «Pai da Ficção Científica» mantiveram um relacio-
do a qualidade da prosa de James, mas ambos en- namento cordial (mas nunca íntimo) durante anos,
tendiam que fora um desastre. Wells foi o melhor a nos quais iam enviando cópias um ao outro dos li-
descrevê‑lo, ao explicar aos leitores que a peça estava vros que publicavam.
revista BANG! [ 32 ]
Antes de o ter conhecido, Wells escrevera Henry James, como também veremos, es-
sobre ele uma crítica anónima, na qual se referia ao tava menos ciente da parte «conturbada» do relacio-
estilo de James como um «vidro fosco» e como ten- namento até, uma vez mais, ter‑se visto encurrala-
do um «génio gélido», embora admitisse que os per- do.
sonagens de Henry James eram «homens e mulheres
verdadeiros».
O Mestre também se referiria de forma sim-
«Vivo, vivo intensamente, e sou
pática a respeito da obra de Wells nos anos seguintes, alimentado pela vida, e o meu valor,
mas era, na sua opinião pessoal, precisamente este qualquer que seja, encontra‑se na
último aspecto no qual Wells – sempre obcecado
com as questões sociais e a Ideia subjacente ao conto
minha íntima forma de expressão
– falhava: ou seja, não popular as suas ficções com desse sentimento»
homens e mulheres genuínos. Quando James levava
outros escritores a sério (incluindo rapazes bonitos,
os quais esperaria, obviamente, seduzir, nem que
fosse no aspecto emocional), nunca era capaz de re-
N o ano de 1910, quando o irmão mais velho de
Henry, William James, faleceu, o autor senti-
ra‑se profundamente tocado pelo tributo que H. G.
sistir a enviar‑lhes críticas concisas, mas fortes, das Wells lhe prestara, no qual o autor dos primórdios da
respectivas obras. Sem ideias de sedução – Wells não ficção cientifica e critico social falava assim do autor
era o tipo de jovem que ele apreciava – James envia- das Variedades da Experiência Religiosa e primeiro
ra‑lhe: «Reescrevo muitas das palavras que escreve grande psicólogo americano: «Que este grande edi-
– o que é o maior tributo que a minha impertinência ficio da madura compreensão e clareza e lucidez te-
sofrível poderá prestar a um autor.» nha sido retirado do mundo deixa‑me boquiaberto
(James confessara igual verdade a um jo- e irremediavelmente perturbado.»
vem autor chamado Howard Overing Sturgis – não Completamente boquiaberto e irremedia-
confundir com o jovem artista e «demóniozinho» velmente perturbado estava o próprio James perante
inválido, Jonatham Sturges, por quem James nutria o falecimento do seu irmão querido (mesmo sendo
uma atracção subliminar emocional e no mínimo um autor internacionalmente famoso, Henry James
homoerótica – quando este afirmara que James era continuava a procurar apoio em William e era habi-
dos piores leitores das obras alheias que poderiam tual reverter‑se ao papel de mano mais novo na sua
existir. Afinal, dizia Henry James, tratava‑se, ele mes- presença), e chegou a comentar aos amigos que fora
mo, de «um produtor e “técnico” experiente», e era «uma eloquência realmente bela – e ele [Wells] não
incapaz de ler de uma outra forma que não a crítica, consegue ser belo amiúde.»
a construtiva e – o mais irritante para o autor des- James não tinha intenção em tornar este úl-
tinatário das suas críticas – a «re‑construtiva». Por timo comentário depreciativo. Frequentemente era
outras palavras, James faria sempre observações em capaz de exprimir interesse nas Grandes Ideias de
como o autor em questão poderia ter re‑escrito ou Wells, tal como a da Máquina do Tempo, a qual não
melhorado o livro.) só elogiava junto dos amigos mas inclusive tentava
Wells exprimira gratidão perante a atenção imitar nos seus próprios contos.
do Mestre, então, mas manteve‑se – como vere- Pelo que foi uma completa surpresa para Ja-
mos a seguir – interiormente incomodado no que mes que no dia 5 de Julho de 1915, quando passou
tocava à critica. Como Wells mais tarde diria do pelo Reform Club e lhe foi entregue um embrulho
longo relacionamento dos dois homens, era uma que ali aguardava há algum tempo por falta de quem
«amizade sincera e conturbada» com «um homem lho levasse, que ali se encontrasse uma bomba mon-
sensível perdido num cérebro imensamente abun- tada e accionada por H G Wells. A bomba assumia a
dante». forma de mais um livro enviado por Wells ao amigo
revista BANG! [ 33 ]
James, este ostentando o título Boon: The Mind of the é verdadeira. James escreveu romances nos quais
Race, the Wild Asses of the Devil and The Last Trump. personagens das classes trabalhadoras se insurgem
Pretendia ser uma «selecção final dos despojos lite- com ira política, inclusive ao ponto de se tornarem
rários de George Boon com uma Introdução Ambí- terroristas anárquicos. Mas é verdade que James – ao
gua por H. G. Wells». contrário de Wells – nunca deixara que as ideias e
Era óbvio que se pretendia com isto uma opiniões políticas, «tratamentos disgressivos», do-
farsa literária. Henry James apreciava farsas literárias minassem e assumissem o controlo das suas ficções.
(quando bem feitas) e começou a ler com algum in- E em seguida surgia uma hábil (mas mal in-
teresse. tencionada) paródia ao estilo de escrita de James e
A farsa revelou‑se um escárnio espirituoso da sua escolha de assuntos literários, incluindo a se-
feito por Wells a respeito de outros autores, a maioria guinte passagem, a qual seria usada pelos inimigos
deles mencionados explicitamente pelo nome, como de Henry James por todo os séculos XX e XXI...
o caso de Henry James situado precisamente no cen- «O fulcro do romance está sempre presen-
tro da ridicularização. James abriu imediatamente o te... qual igreja acesa mas sem uma congregação
lviro no «Capitulo Quarto», intitulado «A Respeito que o distraia, todas as luzes e linhas focadas so-
da Arte, da Literatura, e do Sr. Henry James.» bre o altar. E neste, colocado com muita reverên-
Era uma paródia maldosa. Aqueles que não cia, intensamente presente, encontra‑se um gati-
suportam a prosa de Henry James – ou que não foram nho morto, uma casca de ovo, um pedaço de fio...
ainda capazes de aprender a saborear as suas múlti- Como o “Altar dos Mortos” de sua autoria, em que
plas camadas – apreciam a paródia ainda hoje. Ao nada se atribui aos mortos... Pois se tudo não fos-
atacar James, Wells repetia ataques anteriores efec- sem velas o efeito desapareceria... Separa os infini-
tuados em discursos e ensaios – muito semelhantes tivos e enche‑os com recheio proverbial. Força o
aos ataques à «ficção séria» que hoje ouvimos pela coloquialismo em seu benefício. Os seus vastos pa-
boca de alguns autores e leitores de FC – nos quais rágrafos suam e esforçam‑se; não suariam nem se
ele, Wells, rejeitava o tipo de prosa «orgânica» que acotovelariam nem se esforçariam mais se fosse o
James sempre representara e defendia o tipo de fic- próprio Deus Nosso Senhor o sentido processional
ção impulsionado por ideias, e logo «utilitário», que que tentam alcançar. E tudo para histórias sobre
ele, Wells, proporcionava. nada... Eis um leviatão à caça de calhaus. É um hi-
«Na prática, a selecção de James torna‑se em popótamo magnífico mas doloroso que tenciona,
mera omissão e nada mais. Omite tudo o que exija a qualquer custo, inclusive ao custo da sua própria
um tratamento disgressivo ou declarações colaterais. dignidade, apanhar uma ervilha que escapou para
Por exemplo, omite opiniões. Em todos os seus ro- um canto da casa. A maioria das coisas, insiste, es-
mances não encontrarão pessoas com opiniões po- tão para além dele, mas é capaz, com modéstia, e
líticas definidas, nem pessoas com opiniões religio- em todas as ocasiões, armado de uma teimosia ar-
sas, ninguém com partidarismos nem vontades nem tística, apanhar a ervilha.»
caprichos, ninguém com intenções impessoais sobre James ficou estupefacto. Tudo aquilo provi-
nada em concreto. Não há pobres dominados pelos nha da pessoa que ele não só considerara como ami-
imperativos dos sábados à noite nem das manhãs de ga ao longo de todos aqueles anos, como inclusive
segunda, não há personagens com sonhos – e não se esforçara por que fosse eleito para a Royal Society
vivemos todos mais ou menos num estado de sonho of Literature (Wells, declarando identificar‑se com as
acordado? E ninguém é sequer decentemente esque- gentes comuns, recusara a honra).
cido. São todas estas características de humanidade Magoado, a sua natureza sensível e confiá-
que o autor retira à história antes de a começar.» vel em real agonia, James escreveu a Wells imediata-
Os que nutrirem um conhecimento mínimo mente e de forma simples:
da obra de Henry James saberão que a acusação não «Consegui compreender mais ou menos a
revista BANG! [ 34 ]
sua apreciação relativamente a HJ, a qual conside- tão não é se um autor é capaz de atingir a perfeição
rei bastante curiosa e interessante, de certa forma – embora Shakespeare tenha estado muito perto de
– embora naturalmente não me tenha feito sentir o conseguir o número de vezes suficiente para nos
grandemente apreciado. É obviamente difícil para dar em doidos, e ocasionalmente tenha surgido um
um autor colocar‑se na íntegra no lugar de alguém James Joyce ou F. Scott Fitzgerald ou Jane Austen ou
que o considera extremamente vazio e fútil, e o Emily Dickinson que chega suficientemente perto
qual se sente obrigado a divulgar esse sentimento em um ou dois dos seus trabalhos para nos deses-
ao mundo – penso que o caso não se torna mais perar), mas esta «aversão natural» à dignidade, com-
fácil quando o referido autor teve este em grande pletitude, e no mínimo, a um objectivo de perfeição,
apreço ao longo dos anos; porque se estabeleceu o expressa por Wells e que tantos autores actuais, den-
hábito de assumir um ponto de encontro comum tro ou fora do género fantástico, defendem de forma
entre eles como certo, e o desaparecimento deste é tão expressiva é... perturbante.)
como o colapso de uma ponte, que tornava a co- Wells continuava numa auto‑justificação:
municação possível.» Havia, escreveu, «uma diferença efectiva e
James continua… muito fundamental nas nossas atitudes inatas e de-
«...o facto que um espírito tão brilhante senvolvidas a respeito da vida e da literatura. Para si,
como o seu me enquadre numa imagem tão imper- a literatura é um fim em si mesma, como a pintura,
doável... faz‑me querer corrigir‑me a mim próprio, para mim a literatura é um meio, tem um uso, como
pois enquanto os meus nervos me sustentarem, pe- a arquitectura. O que sinto é que a sua perspectiva é
rante tamanho par de olhos... tentarei que uma pos- demasiado dominante no mundo da crítica, e ata-
sível luz entre nos sentimentos de um crítico para o quei‑a com tons de duro antagonismo.»
qual as deficiências são incomportáveis.» Depois Wells referia‑se à sua paródia com o
Mas James admitia que não era capaz de identifi- personagem Boon como não passando de material
car‑se com o ponto de vista do atacante e admitia «para o caixote do lixo» e que a escrevera como um
que tinha de recorrer ao seu bom senso íntimo do escape contra a guerra que então se travava. Termi-
que seriam as «partes boas» do seu trabalho. James nava dizendo...
concluia a carta afirmando que «o meu sentido poé- «Prefiro ser chamado de jornalista e não se
tico e o meu apelo à experiência» se baseava na «mi- artista, eis a essência da questão, e não encontrei ou-
nha medida da plenitude – da plenitude da vida e da tro antagonista possível do que a sua pessoa.»
projecção da vida, o que para si parece uma ausência Wells asssinava a carta como sendo «um caro
de ambas.» O que havia de belo na forma ficcional, admirador [de James], embora rebelde e ressentido,
concluia James, era que abria «tantas janelas vastas e e por inúmeras causas, com gratidão e afecto.»
diferentes de atenção». A resposta de James a estes comentários se-
A primeira resposta de H G Wells foi conti- ria a última carta que endereçaria a H. G. Wells.
da. Afirmou que Henry James escrevera «uma carta James começava dizendo que não conside-
tão franca e simpática depois das minhas ofensas rava que Wells tivesse justificado a sua má educa-
que me sinto imensamente embaraçado em respon- ção. Ninguém publica o conteúdo dos caixotes de
der‑lhe» e confessava que sentia uma aversão natural lixo. Nem estava James ciente que a sua perspectiva
«à dignidade, completitude, e perfeição.» da vida e da literatura tivesse tantos adeptos, como
(Ponderei muitas vezes nesta afirmação ao longo Wells sugerira. James afirmava a crença de que a lite-
dos anos – a respeito de Wells e de outros amantes ratura se mantinha viva por intermédio do pratican-
que sobrepõem a Ideia e Enredo e História em detri- te individual, não de um conjunto de regras. Era isto
mento de uma ficção humanísta com escrita bastan- precisamente o que admirara em Wells no passado,
te cuidada, e manifestam um repúdio fortíssimo da dizia.
dignidade, da completitude e da perfeição. A ques- «Vivo, vivo intensamente, e sou alimentado
revista BANG! [ 35 ]
pela vida, e o meu valor, qualquer que seja, encon- ma. Era o leitor que o atravessava em diversas ocasi-
tra‑se na minha íntima forma de expressão desse ões.»
sentimento», concluia. «A arte produz vida, produz
interesse, produz importância.» James terminava «O mais interessante de tudo isto
informando Wells, de que ele, Henry James, não é que não havia uma ponta de ironia
conhecia nenhum substituto para «a força e beleza
do processo». Rejeitava completamente a ideia que
sequer no enredo – nem uma palavra,
a literatura fosse um mero ofício, como a arquitec- nem uma vírgula, nem um espaço
tura. Ambos, dizia, eram – na sua forma mais pura em branco.»
– arte, não apenas como meio para servir as pessoas
ou alimentar uma necessidade básica em troco de
um pagamento. Porque cria nisto, sempre rejeitara e
sempre rejeitaria a teoria «utilitária» da arte.
A gradeço a sua paciência com as minhas diver-
gências até este momento, Caro Leitor (per-
dão, estou habituado a usar a minha voz arcaica de
Acabava assim a amizade e correspondência Wilkie‑Collins‑enquanto‑narrador‑do‑meu‑no-
entre os dois homens. vo‑romance‑Drood), mas neste ponto avançado do
Ainda assim, anos depois do falecimento de discurso vou pô‑la à prova uma vez mais com uma
Henry James, H. G. Wells continuaria a tentar justi- última divergência.
ficar aquele ataque ao antigo amigo. Os seus escritos Há alguns anos, participei numa convenção
autobiográficos a respeito de James constituiam uma de FC no Texas na qualidade de orador convidado,
mistura de afecto, confusão e auto‑justificação, em- tendo aceite o convite principalmente porque o ou-
bora todos eles demonstrassem que não compreen- tro convidado era um Famoso (embora não muito
dia nem a vida nem a obra de James. mais velho do que eu nem pertencente à Idade De
Wells mostrou, tenuemente, que estava cien- Ouro da FC) Autor de FC «Dura». Conhecia há mui-
te de que Henry James dedicara a vida profissional a to a obra deste senhor, muito antes de ter começado
reformular o mundo numa demanda por perfeição, a escrever com objectivos de publicação. Tinha‑a
labutando para atingir a perfeição e compreensão apreciado. Tinha inclusive utilizado o romance de
efectiva da motivação humana dentro de si mesmo, FC «Dura» mais famoso deste nas minhas aulas de
da sua consciência; para Wells, reformular o mundo leitura da turma avançada do 2º ciclo do Ensino Bá-
passava por explicá‑lo nas suas infindáveis histórias sico nos tempos em que fui professor, pagando pelos
e romances sobre utopias sociais do futuro. livros do meu próprio bolso.
Mas décadas passadas, a hostilidade perante Para os que não estejam familiarizados com
Henry James permanecia, o desconsiderar da litera- o termo «Ficção Científica Dura», representa a FC
tura como arte e não como uma técnica ou instru- que, em teoria, não toma liberdades com a ciência e
mento ou mecanismo para mudar as coisas: a especulação. Quer seja apresentada em formato ro-
«Encarava‑nos como Mestres ou aspiran- mance ou conto, é supostamente baseada em ciência
tes a Mestre, Mestres pequenos e Mestres grandes, real, pesquisa real, mesmo em tecnologia real, ainda
e mostrava‑se bastante triste por Cher Maître não que de forma especulativa.
ser uma expressão inglesa», escreveu Wells. «Não se Cresci a ler FC Dura, entre outros géneros,
podia estar numa sala consigo durante dez minutos e apreciava‑a imensamente – talvez pela mesma ra-
que fosse sem perceber a importância que atrbuia a zão, actualmente, passados muitos anos, ainda com-
esta sua arte. Eu, por natureza e educação, antipatiza- pro um par de revistas de computadores e de carros,
va com esta disposição mental. Mas estava disposto e assino a Scientific American. Quando os assuntos
a encarar o romance como forma de arte na mesma «humanos» se tornam demasiado emotivos e confu-
medida que o encararia como um mercado ou uma sos, é um alívio poder mergulhar em temas técnicos
praça. Não tinha necessariamente de ir a parte algu- sem quaisquer conteúdos emocionais.
revista BANG! [ 36 ]
Contudo, notei, mesmo quando jovem lei- fãs). Nesse momento, o Famoso Autor de FC Dura
tor de FC Dura (incluindo os livros e contos deste disse‑me que alguns dos seus amigos tinham insisti-
Famoso Autor de FC Dura) que nada no universo do para que lesse o meu romance Hyperion e que ele,
se torna mais datado que os antigos contos des- finalmente, com relutância, lá acedeu.
te género. A FC Dura dos anos 40 e 50 menciona- –Sim? – soltei, espirituosamente.
vam computadores (nas poucas vezes em que eram –Pois foi – continuava o Famoso Autor de
mencionados) do tamanho do Texas com dezenas FC Dura – e não entendo o que alguém terá visto
de milhares de tubos de vácuo brilhantes, toda uma naquilo. Parece‑me ser o livro mais estúpido que já
confusão e dimensão arrefecidas pelo caudal de rios li – E em seguida, começou a enumerar as idiotices,
redireccionados. E uma história que se baseie na ín- elementos ilógicos e falhas científicas do livro.
tegra – por exemplo – na teoria de mini‑buracos ne- O que pode uma pessoa dizer, excepto que
gros em voga em princípios dos anos 70 deixa de ser lamenta que não tenham gostado da obra dela? Não
viável uma década ou duas mais tarde, após aqueles tenho mais vontade de ouvir críticas negativas a res-
mesmos físicos terem chegado à conclusão que os peito da minha escrita que qualquer outro autor – e
mini‑buracos negros são afinal demasiado instáveis certamente que não ataques expressos em hiperbo-
para poderem fazer parte do enredo. les tais como as que tive de escutar naquela noite no
Além de que este mesmo «Famoso Autor de Texas – mas é certo que o ataque não me magoou os
FC Dura» recorrera a viagens a velocidades supra- sentimentos nem me perturbou de nenhuma forma.
luminosas e teleportação como engenhos narrativos Era demasiado excessivo. Cheguei a perguntar‑me
nas suas obras «duras». Ambas as tecnologias são, se o Famoso Autor de FC Dura não estaria bêbado
para mim, fantasia em igual nível que um manto (não por causa da forma como critivava o meu tra-
élfico ou uma espada mágica, por muita capacida- balho, mas porque o rodeara uma estranha pertur-
de que tenhamos de encontrar alguma explicação bação e uma irritação desfocada durante o fim de se-
pseudo‑científica para a sua existência. mana inteiro, como se os átomos dele tivessem sido
E contudo, a FC Dura é divertida e alguns ligeiramente deslocados para uma outra dimensão;
dos seus clássicos – tais como a Mission of Gravity de onde quer que estivessem, sentia‑se verdadeiramen-
Hal Clement – serão divertidos para sempre. te lixado com o assunto.)
Ainda assim, e embora não me comportasse Corte: para um par de meses atrás, quando
como um fã babado na presença deste Famoso Autor estive temporariamente de cama com sintomas gri-
de FC Dura quando nos encontrámos na convenção, pais. Há meses que andava a ler romances e autores
disse‑lhe o quão agradado estava de conhecê‑lo e o «sérios», uns atrás dos outros, e já me sentia cansado
quanto apreciara os seus livros. Inclusive mencionei disso. Precisava de algo ligeiro, divertido... algo dina-
que ensinara o seu romance mais conhecido a jovens mizado por Ideias e não pelo estupido coração hu-
dotados (embora não tivesse explicado que a princi- mano em conflito consigo mesmo.
pal razão devia‑se ao facto de não que incluia sexo Pelo que dirigi‑me às estantes na cave onde
nem assuntos de temática adulta aos alunos de 11 e mantenho uma colecção de livros de bolso antigos (e
12 anos que o iam ler). muito estimados) desde os anos 50 e escolhi, para ler
O Famoso Autor de FC Dura limitou‑se a enquanto estava enfermo, um romance de sucesso
grunhir. Uma vez que sempre me senti embaraça- (?) denso (640 páginas em letra miudinha) publi-
do nas raras ocasiões em que um autor profissional cado em finais dos anos 70 pela pena deste preciso
elogia o meu trabalho em pessoa, não fiz caso desse Famoso Autor de FC Dura.
grunhido. Ler esse livro era uma estranha experiência...
Até ao momento de estarmos finalmente «a não devido aos sentimentos doridos do distante ata-
sós» na primeira tarde da convenção («a sós» defi- que contra mim e contra o meu romance (isso acon-
ne‑se como estando na companhia de uns 10 a 20 teceu fora de contexto – é horrivel para um roman-
revista BANG! [ 37 ]
cista admiti‑lo, mas tento esquecer‑me de quem é o mais perturbante ainda fosse o diálogo e pensamen-
autor ao entrar numa obra), mas somente porque já tos atribuidos aos personagens negros canibais. Era
tinha passado tanto tempo desde que o lera. Obvia- como se o autor nunca tivesse escutado a fala genu-
mente que os meus gostos haviam mudado, desde ína de um afro‑americano, mas estivesse contente
os tempos, trinta anos antes, em que dispendera 2,50 em imitar uma paródia do diálogo e maneirismos de
dólares pelo livro (naqueles dias não tinha dinheiro um dos filmes de «exploração negra» em voga nos
para livros de capa dura... quem tinha?), no entan- cinemas nessa época.
to também haviam mudado –como vim a descobrir O climax do romance era uma batalha pela
– as minhas expectativas a respeito do nível de qua- posse do reactor nuclear, que constituía a Única Es-
lidade mínimo de um romance de ficção. perança de uma Civilização Futura. Os bonzinhos no
O livro aborda um evento astronómico ca- rancho do Senador John Forsyth Eisenhower que-
paz de Extinguir a Civilização Tal Como a Conhe- riam salvar o reactor e pô‑lo a funcionar. Os canibais
cemos, um tópico que sempre apreciei e que sempre negros, entretanto, tinham‑se juntado a milhares de
apreciarei (embora na verdade já tenha idade sufi- fundamentalistas religiosos, formando uma multi-
ciente para ter presenciado o fim da civilização tal dão orientada para destruir o reactor (e com ele to-
como antigamente a conhecíamos), e a perspectiva dos os vestigios da Ciência) e devorar os bonzinhos.
do romance saltava alegremente (o apanágio dos (A razão pela qual os canibais negros e os fanáticos
bestsellers) de ponto de vista para ponto de vista de religiosos brancos, que meras semanas antes tinham
cada um dos cinquenta personagens. sido pessoas como as outras, não queriam voltar a
Mas o problema não estava aí. ter electricidade não chegou a ser explicado.)
Percebi que estava a ser alvo de uma dose A batalha decisiva mostrava o Santo do en-
imensa da filosofia literária de H. G. Wells ao ler clave dos bonzinhos – um cientista idoso que morria
este aspirante‑a‑grande‑bestseller de FC Dura para com diabetes – a salvar a situação, recorrendo (e não
as massas. O objecto era um mero instrumento estou a brincar) a lotes gigantescos de gás mostar-
para lançar as Ideias e Opiniões do autor às pazadas da e outros gases mortíferos (incluindo, imagino,
– a respeito da importância absoluta da Ciência, dos Zyklon‑B). O final alegre do romance mostrava os
ecologistas idiotas que pensavam que «latas de ae- bonzinhos pró‑ciência a matar milhares destes cani-
rossois estavam a estragar a atmosfera», a respeito bais e repudiadores da ciência, lançando bombas de
de todos os que se oposessem, digamos, a reactores gás dos nervos sobre eles.
nucleares – mas a parte perturbante do romance era Alguns dos canibais sobreviveram. Os tec-
que estava desprovido de quaisquer seres humanos no‑brancos bonzinhos debateram‑se com um ata-
que valesse a pena escutar ou prestar atenção duran- que de consciência que durou meia página e – ine-
te as pontificações que os personagens faziam entre vitavelmente – pelo Bem do Futuro, tornaram os so-
si (usando a voz do autor). breviventes negros dos ataques com gás dos nervos
Uma onda de maré dirigia‑se para Los An- em seus escravos.
geles. Os bons da fita (que eram todos brancos) re- O mais interessante de tudo isto é que não
fugiavam‑se nas montanhas onde estabeleciam uma havia uma ponta de ironia sequer no enredo – nem
colónia pós‑apocalíptica para bons da fita no rancho uma palavra, nem uma vírgula, nem um espaço em
do chefe, um senador americano que era uma mis- branco.
tura do actor John Forsyth com Dwight Eisenhower.
Entretanto, os negros sub‑urbanos iniciavam, ob-
viamente, uma leva de violações, seguida de saque
das casas evacuadas e depois, passados dias (e quem
E ntendam por favor que esta disgressão não tinha
por intenção comparar o desacavo à minha pes-
soa pelo Famoso Autor de FC Dura com o ataque de
sabe, horas) tornavam‑se canibais. O que era de si H. G. Wells a Henry James. Não pretendo equipa-
perturbante, mesmo pelos padrões de 1970, embora rar‑me a Henry James nem o Famoso Autor de FC
revista BANG! [ 38 ]
Dura será, nos seus melhores dias, H. G. Wells. (Se volta a ser magnífica e forte. A população mundial
eu fosse uma pessoa um pouco menos honrada, teria habita agora em cidades subterrâneas. No ano 2035,
dito que ele nunca será, nos seus melhores dias, uma na véspera do primeiro voo tripulado para a lua, um
borbulha no grande e alvo traseiro de H. G. Wells) levantamento popular contra o progresso (o qual era
Não, se refiro esta história e a leitura feita considerado por alguns como a razão das guerras do
sobre o livro é porque algo aconteceu cerca de duas passado) conquista apoiantes e torna‑se violento.»
semanas após a redescoberta desse romance no pe- Soa a H. G. Wells e soa a promessa de um fil-
ríodo em que estive doente. me divertido, mas não transmite nada da... inumani-
Certa tarde descobri que o filme Things to dade... de Things to Come. Raymond Massey é o ac-
Come passaria no canal TCM tor principal, representando dois papéis: John Cabal,
Sabia da existência do filme Things to Come, líder dos Aviadores «Asas Sobre o Mundo» de fatio-
feito em 1936 – baseado no livro de H. G..Wells, The tas negras, os quais conquistam as ultimas tribos de
Shape of Things to Come – desde que era puto. Co- bárbaros numa Inglaterra belicosa pós‑apocaliptica
nheço o enredo, há muito que vejo imagens retiradas dos anos 70, e o neto deste, Oswald Cabal, que usa
do filme, mas por alguma razão nunca o tinha che- protecções de ombro enormes, como um cartaz de
gado a ver numa qualquer sessão televisiva dos meus publicidade, e uma gira saia branca, como qualquer
6298 canais de satélite durante todos estes anos. outro cidadão do ano 2035 (excepto aqueles que
Por isso, sentei‑me e vi‑o. usam togas brancas).
Era... interessante. E quase precisamente Não existem pessoas em Things to Come.
na mesma medida pela qual o romance de 1970 do Não existem seres humanos. Excepto, cá está, um
Famoso Autor de FC Dura o fora. Transmitiu‑me a Ralph Richardson jovem (digamos, mais jovem) que
mesma sensação de incómodo – quase náusea activa interpreta o «chefe», um líder bárbaro que enverga
– que me tinha dado esse livro. peles e parece o Mussolini, e que se intromete entre
Wells escrevera o guião do Things to Come os Aviadores Asas Sobre o Mundo e uma Socieda-
em 1936 e – de acordo com o que li há muito tempo de Global. Richardson e a princesa bárbara Roxana,
– teve algo a dizer a respeito de todos os elementos que também é a sua principal concumbina, são as
do filme, incluindo as vestes patéticas que se usaria unicas duas pessoas naquele filme completamente
naquele futuro utópico de 2035. tendencioso, bizarro, trapalhão, estéril e ridículo que
Eis um resumo do enredo retirado do Inter- podemos sequer imaginar a suar ou praguejar ou ter
net Movie Database: sexo, ou sentir sequer uma emoção diferente da de-
«Uma guerra global tem início em 1940. Esta dicação fanática à Ciência e ao Progresso.
guerra arrasta‑se durante décadas até que a maioria No minuto em que Raymand Massey pou-
da população viva (quase toda nascida depois do ini- sa a sua avioneta futuristica nos despojos citadinos
cio da guerra) já não se lembra de quem começou arruinados da Madmaxian do Chefe, o «Chefe»
nem porquê. Já não se produz nada e a sociedade Richardson prontamente faz do sorridente Massey
desfez‑se em comunidades localizadas primitivas. prisioneiro, e embora tudo tenha sido escrito de for-
Em 1966, uma grande peste chacina a maioria dos ma a tornar Massey num herói adorador da Ciência
sobreviventes de guerra, das quais apenas se salva um (certamente um santo, possivelmente um deus), a
pequeno número de pessoas. Certo dia, um aparelho sua presença sempre sorridente, condescendente e
voador estranho aterra numa dessas comunidades com afirmações de olhar vago a respeito do Avanço
e o piloto informa o povo de que uma organização da Ciência – «As vidas de nós, pequenos humanos,
encontra‑se a reconstruir a civilização e a deslocar‑se como individuos, nada representam para o Longo
lentamente pelo mundo, juntando as diversas comu- Curso da Ciência e Progresso, etc.» – deu‑me von-
nidades. Durante as décadas seguintes decorre um tade de disparar contra o filho‑da‑mãe arrogante e
período de extensa reconstrução, até que a sociedade acabar ali a história.
revista BANG! [ 39 ]
No entanto, os amigalhaços de Massy – um Não havia forma de contornar o facto de que
bando de Aviadores clonados e de camisas negras esta parvoíce de filme que esperei a maior parte da
– soltam «Gás Pacificador» sobre o Chefe e a tribo vida para ver e apreciar «foi elaborado para encarar
bárbara, adormecendo‑os, e dessa forma acabando um romance (ou neste caso, filme) com tanta arte
com a última ameaça à Única Regra da Ciência e quanto um mercado ou uma praça».
da Lógica. (Todos os bárbaros pousam as armas ao Era um sistema de disseminação da Opinião
acordar – porquê, não faço ideia – excepto Richard- e Política e da versão de H G Wells da Correcta For-
son, o Chefe, que não chega a acordar. O Gás Paci- ma de Pensar (ou seja, a adoração da Ciência e das
ficador acabou com ele. Se calhar não era capaz de Grandes Ideias)
aguentar o progresso...) Mas acima de tudo... o mais triste de toda a
Corte‑se então de 1970 para o Futuro Per- situação... este romance e o romance de Apocalipse
feito de 2035 no qual – apesar do facto de a superfí- Astronómico que lera semanas antes, eram subpro-
cie da terra ser verde e vazia e estar coberta por céus dutos de uma forma de pensamento ideias‑e‑enge-
azuis perfumados – toda a gente habita em Cidades nharia‑über‑alles que, a um nível profundo artistico
Subterrâneas de branco‑marfim (Wells e toda a sua ou humano, tinha uma aversão natural à dignidade,
era de autores emergentes de FC estavam obcecados completitude, honestidade, e perfeição.
com Coisas Subterrêneas)
Eis o grande valor para fãs de FC e especta- «Os momentos mais orgulhosos
dores de 1936 ou 2008 – as enormes escavadoras e da minha vida,» escreveu, «foram
aqueles saiotes brancos curtos e togas nos homens e
mulheres e a Cidade Interior com os elevadores de passados na popa do barco ante mar
vidro ascendentes e descendentes que ligavam cen- aberto, envergando esta romântica
tenas de níveis de terraços brancos todos apruma- vestimenta sobre os ombros.»
dos, com grandes ecrãs em todo o lado.


Eis o futuro e é a porra de um Hotel Hyatt.
As massas sublevam‑se e revoltam‑se – te-
mos novamente os religiosos canibais a tentar sub-
E m idos de 1880s e inícios de 1890s, a natureza
irrequieta de Robert Louis Stevenson fazia‑o
avançar continuamente, sempre para oeste, sempre
verter o Progresso e porem‑se no caminho da Ciên- em busca de um lugar que lhe permitisse sobrevi-
cia – e o objectivo desta vez é destruir o Canhão Es- ver um pouco mais com a doença que o afligia, ao
pacial, uma... ah... arma espacial com 240 andares de mesmo tempo que lhe satisfazia o desejo por lugares
altura destinada a atirar a bonita filha de mini‑saia exóticos.
branca de Oswald Cabal e o palerma do marido dela Em 1887, quando o pai faleceu, abandonaria
em direcção à lua. Cabal, na litania irritante e con- a Inglaterra, tendo o Colorado como destino, mas
descendente de Massey, admite que o jovem casal acabou por passar o Inverno numa cabana no Lago
apenas tem uma hipotese em cem de regressar vivo, Saranac, perto das montanhas Adirondacks, onde
mas, pronto... «As vidas de nós, minusculos huma- escreveria alguns dos seus melhores ensaios e come-
nos, enquanto individuos, não valem nada face ao çaria The Master of Ballantrae. Durante os meses de
Longo Curso da Ciência e do Progresso, etc.» neve nas Adirondacks, ele e a mulher faziam planos
A história é inumana e fascista. Raymond para um cruzeiro pelo Pacífico Sul.
Massey é inumano e fascista. O diálogo é inumano «Os momentos mais orgulhosos da minha
e fascista. O futuro a respeito do qual H G Wells e o vida,» escreveu, «foram passados na popa do barco
guião se mostram tão orgásmicos é inumano e fas- ante mar aberto, envergando esta romântica vesti-
cista. Bolas, até o guarda‑roupa é inumano e fascis- menta sobre os ombros.»
ta... no mínimo extremamente ridículo (Embora eu Stevenson e família encetaram vela no iate
tenha gostado do grande canhão espacial) Casco em Junho de 1888, partindo de São Francis-
revista BANG! [ 40 ]
co. Depois de algumas aventuras e estabelecimento No decurso das semanas seguintes, Adams encon-
de amizades no Hawaii, nas ilhas Gilbert, e no Taiti, trou‑se várias vezes com Stevenson – Stevenson
Stevenson finalmente adquiriu 400 acres de terreno atravessava a selva a cavalo, cruzando um rio de cor-
na ilha de Upolu, uma das ilhas de Samoa. rente forte – e Adams e La Farge começaram a com-
Henry James manteve‑se em contacto epis- preender que tinham surgido em tempos difíceis
tolar com Stevenson durante todos estes anos, en- para a família de Stevenson. A familia, com a ajuda
viando ao amigo livros e críticas e pedindo em troca dos nativos de Samoa – que chamavam a Stevenson
detalhes dos mares do sul. o «Tusitala» («contador de histórias» em samoano)
Em 1890, um conhecido de James, John – encontrava‑se a limpar a propriedade e a fazer os
Adams, historiador americano e descendente de preparativos para construir uma mansão extensa e
presidentes, iniciou uma viagem ao redor do mundo confortável. A moradia em que Adams e La Farge os
que duraria vários anos. A esposa brilhante mas me- tinham encontrado a viver era só uma casa temporá-
lancólica, de nome Clover, cometera suicídio algum ria até construirem a maior.
tempo antes, pelo que Adams – juntamente com o Henry James adorava ouvir notícias de Ste-
amigo artista John LaFarge (também velho conhe- venson e Henry Adams via John Hay e – como nor-
cido de Henry James) – decidiu afogar a mágoa nas malmente fazia quando os amigos escreviam sobre
vistas, sons, odores e (possivelmente) «mulheres de pessoas e lugares interessantes – pediu mais detalhes,
tez morena» dos mares do sul. mais imagens!
Pouco depois de alcançar Samoa, Adams e Há uma grande ternura nas cartas de Hen-
La Farge prestaram uma visita a Stevenson em «Via- ry James ao R.L.S. ausente. Disse a Stevenson que os
lima», o terreno de 400 acres, situado a uma hora amigos o elogiavam imenso na sua ausência, mas
de distância da cidade de Apia e 800 pés acima do James chamava‑o de «Bucaneiro pomposo das Pro-
nível do mar, onde o autor e família tinham começa- fundezas» e «indomável errante do Pacífico». Uma
do a construir a nova casa. Quer o historiador quer vez, quando Stevenson se enganou por dois anos na
o artista subiram durante uma hora em direcção a data da carta (algo que o próprio James faria perto
céus cada vez mais próximos (o estimado amigo de do fim da sua vida), James brincou com o amigo,
James, John Hay, ex‑secretário de Abraham Lincoln, chamando‑o de «caro habitante de uma ilha perdida
apresentou‑lhe tais descrições nas cartas que lhe en- no tempo». Saudou a familia do distante autor como
viava) antes de atingirem uma clareira de tocos quei- «os seus companheiros de folguedos – os seus fan-
mados. No centro deste feio espaço aberto, havia tasmas companheiros. A esposa fantasma entende o
uma «moradia de dois pisos com escadas exteriores meu sentimento. O espirito fátuo de uma mãe tem a
que davam para o piso superior e um tecto de ferro minha maior consideração».
galvanizado». James escreveu que lamentava que Steven-
Dela saiu uma figura «tão magra e esqueléti- son se tivesse distanciado tanto que se tivesse torna-
ca que parecia um monte de paus enfiados num saco do numa lenda, embora uma lenda de «iridiscência
e com uma cabeça no cimo; e contudo morbidamen- oparina». No dia 3 de Dezembro de 1894, Stevenson
te inteligente e irrequieta.» Tratava‑se obviamente de escrevia com tanta intensidade como sempre – desta
Robert Louis Stevenson apresentando‑se perante feita a Weir of Hermiston. Nessa tarde, enquanto fala-
John Adams, o escritor vestido com «pijamas de ris- va com a mulher e se esforçava por abrir uma garrafa
cas, sujo, as calças soltas enfiadas em meias de lã mal de vinho, caiu subitamente no chão e berrou, «O que
tricotadas». se passa comigo? Que estranheza é esta? O meu ros-
A Sra. Stevens encontrava‑se tão mal e par- to está diferente?»
camente vestida, relatou Adams, que fugiu para den- Stevenson morreu passadas horas. Tinha 44
tro da moradia quando viu os homens a aproxima- anos. A notícia da morte de Stevenson chegou a Ja-
rem‑se. mes, em Londres, no dia 17 de Dezembro de 1894.
revista BANG! [ 41 ]
James encontrava‑se nos ensaios de Guy Domville, tro verso simples, escrito quando tinha apenas 25
a poucas semanas da terrível noite de estreia que se anos, que poderia ter servido como epitáfio literá-
avizinhava. Quando lhe contaram o rumor – nin- rio aplicável a si e ao amigo Henry James. O pai de
guém lhe soube dar certezas – abandonou os ensaios Stevenson nunca encarara a «mera literatura» como
e dirigiu‑se a casa. Nessa noite escreveu – «Esta ex- trabalho sério, e insistira em que o filho se douto-
tinção abominável do estimado Robert Louis Ste- rasse em direito, embora a provação que enfrentou
venson... torna‑me frio e doente – e com a sensação para obter o diploma quase tivesse acabado com o
absoluta, quase assustada, do apagar material e invi- jovem enfermo. A falta de compreensão do pai de
sível de uma luz indispensável.» Stevenson – talvez não tão diferente da recusa de H.
Pouco depois de a morte ser confirmada, G. Wells em compreender como podia Henry James
chegou a notícia de que Stevenson teria nomeado considerar a mera literatura uma arte tão importante
Henry James para ser o seu executor literário. Tendo em si mesma – fizeram o rapaz de 25 anos escrever
sido recentemente executor da propriedade e obra este poema em protesto:
da falecida irmã Alice, James acabou por negar o
dever, embora seja extremamente reveladora a con- Não me recordem como alguém que declinou
fiança que Robert Louis Stevenson depositava em Os labores dos seus, e recusou o mar
Henry James ao deixar nas mãos do amigo os seus As torres que fundámos e as lâmpadas que acendemos
manuscritos, bem como a sua hipótese de imortali- A brincar em casa com papeis como criança.
dade literária.
Eventualmente James viria a saber os detalhes
do funeral do amigo. No dia que Stevenson morreu,
os nativos de Samoa insistiram em rodear o corpo
com tochas e uma vigias toda a noite. No dia seguinte,
levaram em ombros o corpo de Tusitala, o Contador
de Histórias deles, até ao Monte Vaea e enterraram‑no
num ponto elevado com vista para o mar.
O epitáfio colocado na campa de Stevenson
era um excerto do seu poema «Requiem»:

Sob o imenso céu estrelado eu peço


Abram a vala na qual me despeço,
Alegre vivi e alegre desfaleço,
Dan Simmons nasceu em 1948 em Peoria,
E deixem‑me um lema por companheiro. Illinois. É conhecido fundamentalmente pelo
Que seja esta a lembrança hasteada: seu romance Hyperion, que lhe valeu um
Eis que jaz na morada há muito ansiada; prestigiado prémio Hugo. Os outros livros da
O marinheiro a casa vindo de longa jornada, conceituada série são The Fall of Hyperion,
Endymion e The Rise of Endymion.
O caçador por fim de volta ao lar primeiro. Mas Simmons não escreve apenas FC. O seu
talento versátil permite-lhe explorar outros

E sta foi a escolha de Robert Louis Stevenson para


o seu próprio epitáfio, embora houvesse um ou-
géneros, como a fantasia, o horror, o thriller
e até o policial. Um exemplo típico da sua
capacidade de misturar géneros é o clássico
 - É da crença deste tradutor que um poema não se traduz, A Canção de Kali, publicado pela Saída de
trai‑se; como consolo, aqui o apresento na forma original:
«Under the wide and starry sky, / Dig the grave and let me Emergência. BANG!
lie. / Glad did I live and gladly die, / And laid me down with
a will. / This be the verse you grave for me: / Here he lies  - «Say not of me that I weakly declined / The labours of
where he longed to be; / Home is the sailor, home from the my sires, and fled the sea / The towers we founded and the
sea, / And the hunter home from the hill.» lamps we lit, / To play at home with paper like a child.»
revista BANG! [ 42 ]
Literatura Erudita
[ensaio]

VS Literatura Popular
Uma tertúlia sobre géneros literários
com David Soares, João Seixas
e António de Macedo
A literatura popular é a literatura pimba. Escrita por gente sem
talento, para gente sem tempo ou paciência para ler livros a sério.
É a fast-food da literatura. Com capas berrantes, personagens de papel
e enredos de telenovela. É fundamentalmente lida por rebanhos no comboio.
A literatura erudita é uma treta intimista onde se disfarça
a ausência de uma boa história com um estilo bonito e frases citáveis.
É lida por intelectualóides frustrados que gostavam de ser poetas mas
são apenas freelancers mal pagos. Ou será que não é nada disto?
Vamos ver...
David Soares: a ficção científica, o horror ou a fantasia. O primei-
Para começar, penso que seria importante deci- ro campo conforma‑se num modo que prima pela
dir uma nominação para os dois campos literários expressão de ideias em detrimento do desenvolvi-
concorrentes que vamos analisar. A língua inglesa mento e caracterização de personagens num enredo
tem expressões engraçadíssimas para eles como hi- que se espera conclusivo. Talvez uma boa forma de
ghbrow ou high literature (“literatura pedrada”), mas visualizar esta questão seja dar um passo para o lado
como dizer em português a mesma coisa? É que di- até outra área artística e observar que definições se
zer minor literature não tem o mesmo peso que dizer podem encontrar aí.
literatura menor… Bom, antes de decidirmos qual- Vamos especular sobre a música, por exem-
quer coisa a respeito destes nomes é preciso escla- plo. É fácil perceber que existem duas distinções
recer os leitores sobre aquilo que estamos a falar: a claríssimas: a música erudita e a música popular. No
high literature é toda a literatura que valoriza o modo espectro compreendido pela música popular acha-
como se conta uma história e não a história que se mos aquilo que se pode chamar de música de géne-
decide contar; essa preocupação pertence a minor li- ro, resgatando a terminologia do parágrafo anterior,
terature e nela entram todos os géneros considerados na qual se incluem — virtualmente — todos os ti-
menores pela “academia” como o romance policial, pos de música que não tenha sido compostos entre
revista BANG! [ 43 ]
os séculos XVII e XIX: o rock, o jazz, a pop, o metal, ao século XVI. Naquilo que hoje se compreende por
o pimba… Talvez a nomenclatura que melhor nos Idade Média surgiram proto‑romances em verso
sirva para iniciar o nosso esgrimir de neurónios que como Le Roman de la Rose (século XIII) e os escri-
promete deixar os leitores da BANG! de boca aberta bas conventuais mudaram o formato do registo das
e nós esgotadíssimos, mas de ego inchado, seja rou- narrativas deles: abandonaram o pergaminho en-
bar à música a colagem que a língua portuguesa não rolado (volume) e passaram a escrever em livros de
permite quando chegamos perto das determinações feitios que se mantém até hoje (códice). Isso foi vital
literárias de expressão inglesa. Por conseguinte, pro- para o desenvolvimento da Prosa porque o códice,
ponho‑vos que usemos Literatura Erudita e Litera- ao contrário do volume, permite aos autores escre-
tura Popular. Penso que são designações que farão verem mais desafogadamente, já que o método de
todo o sentido no contexto deste artigo como se irá reunir as páginas numa encadernação, mais ou me-
ler mais à frente. nos duradoura (consoante o material), é generoso.
Não só a Tragédia e a Comédia apresentavam cená-
rios e personagens fabulosas como a literatura reli-
«Nove em cada dez obras eruditas giosa compunha‑se de diversos elementos fantás-
possuem um elevado grau de apro- ticos. Por exemplo, o Cântico das Criaturas de São
Francisco de Assis (século XIII) influenciou mui-
ximação à representação do mundo tíssimo a literatura italiana que esteve na génese das
construída pelo nosso cérebro com a obras mais conhecidas do Renascimento, como as de
ajuda dos falíveis cinco sentidos.» Dante, Petrarca e Boccaccio — que, por mérito pró-
prio, são obras de literatura fantástica, sublinhe‑se.
Para ser sincero, não encontro na literatura clássica
Usando a nómina que este artigo inaugura, nenhum desdém pela fantasia ou pelos elementos
acredito que o conceito de Literatura Erudita, por fantásticos, mas sim um preconceito contra aquilo
oposição à Literatura Popular, nasce com o romance que, já na altura, se designava por cultura popular.
moderno de expressão pessoal; logo vitrina da vida Essa cultura (muitas vezes até contra‑cultura como a
interior da personagem principal. Isso acontece em trovadoresca e a provençal) cifrava‑se pela inclusão
1678 com a publicação do livro La Princesse de Clèves do humor grotesco, da sátira, e não salientava o ca-
da condessa Madame de La Fayette; título que segue rácter transcendental atribuído pela Tragédia (com
o caminho deixado em aberto por outros escritores excepção das aventuras de Quixote não me recordo
franceses como La Rochefoucauld (1613‑1680) que de outra grande obra literária de comédia a ser olha-
evidenciava nas suas máximas um aperfeiçoamento da com respeito).
dos modelos mentais dos protagonistas colocando A partir do século XVII já é possível encon-
os vícios deles acima das virtudes. trar algum preconceito pelos elementos fantásticos,
Desde o surgimento do teatro grego, no século principalmente porque passaram a ser considera-
VI a. C., que o grande género literário (porque as pe- dos mecanismos de fuga a uma realidade social em
ças eram escritas) sempre foi a Tragédia, área na qual aceleração. É preciso não nos esquecermos que a
se assiste à luta do indivíduo ou de um grupo de in- literatura, como todas as outras artes, acompanha
divíduos contra o destino. Um pouco mais tarde, iria o desenvolvimento das sociedades (e muitas vezes
florescer a Comédia, principalmente com as obras o antecipa). Paradigmas racionalistas, o desenvol-
de Aristófanes (V a IV a. C.) que escreveu peças sa- vimento da ciência e de sistemas políticos inéditos
tíricas como As Rãs ou A Assembleia das Mulheres. criaram um clima hostil a uma linguagem alegórica
Esta dicotomia em que figuram a Tragédia (o género que não soube adaptar‑se com agilidade aos novos
erudito) e a Comédia (o género popular) influenciou tempos e ficou cunhada como sendo resquício de
a composição da Poesia e da produção literária até uma antiga forma de olhar o mundo. Escrever sobre
revista BANG! [ 44 ]
mundos impossíveis ou fantásticos nos séculos XVII pode ser um exercício extenuante, ou mesmo im-
ou XVIII não era considerado sério. Haverá excep- possível, para quem tem pouca imaginação ou pou-
ções, claro, mas escritas por quem? Por indivíduos quíssima disponibilidade para imaginar. É muito
pertencentes às elites. Vamos lá a ver: até ao século mais fácil visualizar um casal a correr na praia que
XX quem é que tinha bagagem cultural ou tempo um aparelho espacial a tentar fugir de um evento ho-
livre para se poder dedicar à escrita? A noção que rizonte; é mais fácil, e seguro, imaginar um sujeito
temos daquilo em que consiste um autor ou um gé- que relata memórias empíricas a la Paul Auster que
nero literário é demasiado recente: acaba por ser fru- imaginar um pedaço gelatinoso de muco nasal asso-
to das contingências do mercado livreiro no qual é ado por Lovecraft que, em última análise, está vivo,
necessário criar, logo à superfície, uma identificação tem mau feitio e quer‑nos arrancar a cabeça.
imediata daquilo que se pretende comercializar com Aqui estamos próximos da noção partilhada
o público ao qual o objecto se dirige. Talvez valha a pela maioria do público que a Arte é apenas um es-
pena transcrever este excerto do livro Theory of Lite- pelho — quanto muito um comentário… — à vida:
rature de René Wellek e Austin Warren (página 235 mas nunca um upgrade da vida. É a velha história
do capítulo 17 “Literary Genres”): da “demasiada fantasia”: “Gostaste do filme?”, “Ah,
não… Tinha muita fantasia.” Este é o grande pro-
Men’s pleasure in a literary work is com- blemas das obras de ficção: são sempre ficcionadas,
pounded of the sense of novelty and the bolas!… O que varia é o grau de aproximação à con-
sense of recognition. In music, the sonata venção (aceite pela maioria) sobre aquilo que deve
form and the fugue are obvious instances ser o realismo.
of patterns to be recognized; in the murder Este tema é importante porque está sempre
mystery, there is the gradual closing in associado à ideia de erudito. Nove em cada dez obras
or tightening of the plot — the gradual eruditas possuem um elevado grau de aproximação
convergence (as in Oedipus) of the lines à representação do mundo construída pelo nosso
of evidence. The totally familiar and re- cérebro com a ajuda dos falíveis cinco sentidos. Tudo
petitive pattern is boring; the totally novel aquilo que se afasta do “real” já não é erudito. Por-
form will be unintelligible — is indeed quê? Tenho umas ideias sobre isto que quero parti-
unthinkable. The genre represents, so to lhar convosco, mas esta minha primeira alfinetada já
speak, a sum of aesthetic devices at hand, passou a derme e agora é a vossa vez. Sobre géneros
available to the writer and already intelli- e sobre tudo. Até já.
gible to the reader. The good writer partly
conforms to the genre as it exists, partly João Seixas:
streches it. Creio que o David localizou muito bem o cerne do
conflito ao centrá‑lo no qualificativo popular aplica-
Isto conduz‑me à ideia que sempre defendi que o gé- do aos géneros literários que se afastam — em ter-
nero é atribuído pelo tom dominante da obra: um mos de métodos narrativos e convenções literárias
livro pode apresentar um cruzamento de vários gé- — do romance mimético. Creio, porém, que para
neros, mas o tom dominante é o cromossoma que melhor compreendermos esta dicotomia, e avançar-
o transforma num drama, numa comédia, numa mos algumas hipóteses que melhor a permitam con-
aventura ou num diálogo de pura expressão pessoal. textualizar, será necessário fazer algumas precisões.
O tom dominante pode ser algo abstracto, mas acre- Assim, e desde logo, nunca é demais salientar que
dito que se trata de uma característica que os leitores a oposição da Literatura Erudita é mais ou menos
são muito hábeis a detectar. homogénea em relação aos géneros em geral, inde-
Contudo, pedir à maioria dos leitores para pendentemente do maior ou menor grau de elemen-
imaginar coisas que não se encontram todos os dias tos fantásticos que contenham: géneros como o wes-
revista BANG! [ 45 ]
tern ou o policial, ou mesmo o romance histórico, Atente‑se, como exemplo, nesta elucidativa
também foram olhados com igual desdém, embora, crítica de Eugenia Thornton à distopia This Perfect
como é bom de ver, tal desdém seja mais igual quan- Day de Ira Levin (autor que se tornou célebre com
to maior o grau de afastamento da representação obras de FC e Horror, como The Stepford Wives e
realista do mundo (o western, o romance histórico Rosemary’s Baby), citada por Thomas D. Clareson
e o policial, apesar de tudo, ainda mantêm laços de na introdução ao tomo SF: The Other Side of Re-
proximidade com a realidade histórica ou contem- alism (1971), e publicada originalmente no Plain
porânea, ainda que idealizada). Dealer de Cleveland em 22 de Fevereiro de 1970:
A questão que importa explorar, porém, é o “Because of the basic subject matter the science fiction
porquê desse desprezo; é o porquê de existirem situ- set will do its best to cuddle This Perfect Day to its ste-
ações como aquela narrada por Philip Klass no seu ely, elecronic bosom. They have already claimed Brave
ensaio “Jazz then, Musicology now” (F&SF, 1972), New World and 1984, not to mention Alice and The
onde ele nos conta como, estando em companhia de Wizard of Oz and about half the stories of Saki. I will
um amigo, formando em Letras, e tendo encontrado thank them to keep their tiny little hands off Mr. Le-
Theodore Sturgeon, este discutiu longa, eloquente e vin” (sublinhado meu).
apaixonadamente sobre os problemas artísticos da
FC, as particularidades do género e o desafio que é
escrever dentro das suas convenções, tratando‑se, «Não há qualquer razão para
como se trata, de um tipo de literatura onde é im- considerarmos qualquer dos géneros
prescindível recorrer a trechos expositivos, sem per-
mitir que isso desequilibre a narrativa. Depois de se populares literária, estrutural ou
terem separado de Sturgeon, o comentário (não me- estilisticamente mais pobres do que
nos eloquente) do estudante foi: “These science fiction a Literatura Erudita. »
writers, they really think of themselves as writers, don’t
they? I mean, he’s talking about this stuff seriously, as if
he were writing literature!”. Uma leitura, ainda que menos atenta, do tre-
Obviamente, embora Sturgeon fosse um con- cho citado logo nos permite retirar algumas infor-
sagrado autor de FC, hoje infelizmente quase esque- mações quanto ao quadro de referências operativo
cido, o comentário seria válido para qualquer outro neste tipo (bastante recorrente) de críticas à lite-
autor que leve a sério o género ou géneros onde ratura de género: em primeiro lugar, o reconheci-
escolheu trabalhar, sobretudo se tais géneros se in- mento (“the basic subject matter”) de que estamos
serirem na mais vasta classificação do Fantástico. E realmente perante uma obra de ficção científica ou
não se pense que é uma questão sem importância, que, pelo conteúdo temático, é reconhecível como
pois para se lograr um princípio de compreensão sendo semelhante a outras obras anteriores que a
deste fenómeno, é necessário procurar lobrigar, des- autora da crítica não hesitaria em classificar como
de logo, qual ou quais as características transversais ficção científica. Depois o facto de os leitores de
aos vários géneros que os tornam um todo separado FC serem identificados com uma mundividên-
daquilo a que, para este trabalho, convencionamos cia tecnofílica (“its steely, elecronic bosom”, evoca,
chamar Literatura Erudita. Ao mesmo tempo, tenta- ademais, uma certa frieza) e, consequentemente, a
rei perceber porque razão alguns géneros (western, autora da crítica posicionar‑se numa perspectiva
policial, romance histórico), merecem por vezes tecnofóbica (ou, pelo menos, indiferente à tecno-
o favor da crítica e da academia, ao passo que ou- logia) e emocional. Por último, e não obstante o re-
tros (Ficção Científica, Horror e Fantasia) nunca o conhecimento de que se trata de uma obra de FC,
logram, mesmo quando a qualidade intrínseca das ao colocá‑la lado a lado com textos genéricos bem
obras é reconhecida. acolhidos pelo mainstream, nega‑lhe essa qualida-
revista BANG! [ 46 ]
de genérica, por via de uma reconhecida qualidade tempos no fórum Bad Books Don’t Exist (por sorte,
literária. o autor do post assina ao abrigo de um nickname, o
Isso permite‑me, desde já, enfrentar uma que lhe poupará o embaraço de passar à posteridade
questão, talvez menor, mas que deve ser referida: ao lado da Sra Thornton, como um autêntico idiota).
nomeadamente, o potencial conflito entre forma Em suma, manifestando o seu profundo desagrado
e conteúdo; ou seja, e parece‑me indiscutível, não face à Ficção Científica, referia que o livro de Orwell,
há qualquer razão para considerarmos qualquer Nineteen‑Eighty Four (1949) e de Saramago, Ensaio
dos géneros populares literária, estrutural ou estilis- Sobre a Cegueira (1995) não era ficção científica
ticamente mais pobres do que a Literatura Erudita. pois neles o elemento fantástico era apenas “pretex-
Embora pareça ser ideia feita a de que não se logra to para falar de coisas mais profundas”, esse enorme
encontrar qualquer mérito nas narrativas genéricas, lugar comum que limita a comunicação e permite o
não é difícil encontrar exemplos de autores de géne- refúgio dos pusilânimes.
ro que foram reconhecidos pelo mainstream (Ham- Pese embora a óbvia incompetência valorativa
met, Chandler ou Evan Hunter no policial, Ray Bra- de tal proposição, avanço que é nela que se deve en-
dbury na dark fantasy, LeGuin na Fantasia, Levin contrar a semente da discórdia. Abstraindo momen-
na Ficção Científica, etc…), autores de mainstream taneamente do particular contexto histórico que
que mergulharam no género (Orwell, Huxley, Roth, permitiu a agregação de trabalhos e obras dispersos
etc…) e autores de género que abriram novos rumos em géneros universalmente reconhecíveis, e embo-
na literatura em geral com obras de género (Ballard, ra discorde parcialmente com o David na parte em
Bester e Vonnegut são os melhores exemplos. Curio- que ele refere o fantástico na literatura Clássica (eu,
samente, nunca nenhum autor Erudito conseguiu pessoalmente, não gosto de falar de Fantástico antes
inovar na literatura de género). do Século XVIII), concordo com ele quando propõe
Outra coisa que é inevitável retirar daqui é que busquemos a origem da dicotomia Literatura
que, por vezes, nem é o próprio género que limita a Erudita/Literatura Popular na criação do romance
recepção crítica da obra. Aliás, e como o David muito moderno. No entanto, não penso que seja necessário
bem referiu, o género é um constructo editorial que aguardar por 1678 e por Madame de La Fayette, pois
apenas se condensou na realidade norte‑americana encontramos o primeiro romance verdadeiramente
de princípios do século (embora o Gótico inglês dos moderno no próprio D. Quixote de Cervantes, em
séculos XVIII e XIX, pudesse — e fosse — já encara- 1605. Já aí encontramos uma bem estabelecida dico-
do como tal). Adaptando livremente uma definição tomia entre a vida interior do personagem, Alonso
de Steve Neale (que se referia ao cinema), podemos Quijano, onde este veste a personagem de D. Qui-
dizer que os géneros não consistem unicamente das xote, e o confronto desta com a dura realidade (im-
obras que os compõem, mas também de determina- perecivelmente cristalizada na imagem dos moinhos
dos sistemas de expectativas e hipóteses que os lei- de vento/gigantes). Não só isso, é no Quixote que
tores trazem consigo para a leitura e que interagem assistimos à primeira crítica acérrima à literatura de
com os próprios livros. género; na perspectiva de Cervantes, os escapistas
Ora, independentemente da qualidade das romances de cavalaria que o personagem consome
obras ou autores, pois parto do princípio que os há, avidamente só o podem conduzir à loucura.
bons e maus, excelentes e medíocres, em todos os Para Daniel Boorstin (em Os Criadores, pu-
géneros (bem como na dita Literatura Erudita) qual blicado em Portugal pela Gradiva), “o romance, ain-
é aquele fugidio elemento que permite que determi- da que virado para o interior do homem, alcançaria
nados textos genéricos sejam aceites e outros rejeita- o exterior e democratizaria o público e o objecto da
dos pelo cânone? arte literária. Através da «recriação da vida a partir
Uma resposta, ainda que tosca e a pedir mais da vida», o romance permitiria ao homem moderno
polimento, pode ser encontrada num post que li há descobrir‑se” (p.287)
revista BANG! [ 47 ]
É nesta democratização, nesta «recriação da enfrentar e resolver problemas maiores (obrigando
vida a partir da vida» que vamos encontrar a raiz do a determinar qual a reacção necessária). O concre-
problema; o mesmo é dizer, o processo de formação to da vida é substituído pela abstracção (ainda que
do cânone literário. No entanto, e procurando ir um esta seja corporizada numa ameaça extra‑terrestre,
pouco mais longe, colocando cuidadosamente o pé numa mutação teratológica ou numa total transmu-
em solo traiçoeiro (não disponho de suficientes co- tação da realidade).
nhecimentos para testar esta hipótese), atrevo‑me a A ideia que proponho é esta: a Literatura
propor o seguinte: a resposta para a aversão ao fan- Erudita assenta numa Moral; a Literatura Popular
tástico (ao mesmo tempo que permite a aceitação de assenta numa Praxis. Daí que a primeira seja mais
outros textos genéricos como o policial e o western, rapidamente datável (a Moral torna‑se obsoleta com
ou mesmo a comédia e até algum horror psicológico) grande facilidade) e consiga absorver aqueles gé-
prende‑se com a intenção última do pai do romance neros que cristalizam, também eles, uma resposta
moderno. Com efeito, na introdução às suas Duas moral: o western e o policial tratam, acima de tudo,
Novelas Exemplares, publicadas em 1613, mas cuja da reposição da ordem; também a fantasia, em me-
redacção se pensa remontar a 1603, Cervantes escre- nor grau, trata da obtenção de um estado ordenado.
ve que as suas são histórias moralmente exemplares: Já não a Ficção Científica e o Horror, que embora
“Se eu acreditasse que a leitura destas novelas desper- possam encontrar o clímax na reposição da ordem
taria de algum modo um pensamento ou um desejo inicial, necessitam do caos e de respostas extremas
malévolos, preferia cortar a mão que as escreveu a a esse caos. Por outro lado (a FC em maior grau),
vê‑las publicadas”. Ora, para Cervantes, os romances ambos propõem — mais, impõem — novos com-
de cavalaria, como atestado pelos efeitos causados portamentos, pois postulam situações absolutamen-
pela sua leitura no engenhoso fidalgo, seriam moral- te novas.
mente indignos e inspiradores de maus actos.
Não acredito que os responsáveis pelos câno- António de Macedo:
ne, pelo muito de político que anima as várias cotte- Eu bem sabia que já me tinham tramado. Ao ler os
ries que têm sucessivamente dominado a crítica li- vossos eminentes ensaios, não sei se me sinta como
terária, aceitem que as suas escolhas se pautam pelo o Menino Jesus entre o doutores, ou como o pobre
carácter moral das obras que avaliam; no entanto, o escravo Esopo no mercado de escravos, em Atenas,
selo de infantilidade com que a literatura fantásti- para onde foi levado com dois colegas seus: apro-
ca é sumariamente despachada, faz‑me pensar que ximou‑se um potencial comprador e perguntou ao
não será demasiado ousado aventar a hipótese de primeiro escravo:
que, independentemente da forma e, como vimos,
independentemente do conteúdo, é o tratamento fi-
losófico dado aos temas (e os próprios temas) que «Todos os géneros são bons,
determinam a sua exclusão. excepto o género enfadonho».
Porque o romance moderno centra a experi-
ência literária na reacção impressionista dos perso-
nagens, com a sua bagagem de sentimentos e proble- — Que sabes fazer?
mas pessoais, ao ataque cerrado do mundo exterior — Tudo.
(obrigando a determinar qual a reacção correcta), e Voltou‑se para o segundo:
não consegue tolerar a deslocação que a literatura — E tu, que sabes fazer?
fantástica faz dessa reacção; a introdução do fantás- — Tudo.
tico obriga a que os petty problems dos seus protago- Finalmente dirigiu‑se a Esopo:
nistas — que rondam sempre, seguindo Northorp — E tu, que sabes fazer?
Frye — o Amor e a Morte, sejam afastados para — Nada.
revista BANG! [ 48 ]
— Como nada?! senhora que muito estimo, culta, que lia, relia e rere-
— Os meus companheiros tomaram por sua lia os nove volumes da Recherche com tanto ou mais
conta o fazer tudo, logo para mim não sobrou nada. prazer e entusiasmo do que eu a devorar as aventu-
(Esta é uma das minhas peças favoritas, a Eso- ras do Tio Patinhas. Enfim, depois de tanto opróbrio
paida, do meu comediógrafo de estimação António só me resta retirar‑me da liça e reconhecer que devo
José da Silva, o Judeu). ser um caso perdido nestas classificações em que os
Pois é, o David e o João já disserem «tudo» críticos são exímios — por isso estou sempre a dizer
— que hei‑de dizer mais, e se possível que acrescente que felizmente não sou crítico literário! Quando faço
qualquer coisinha?? Citando Esopo: nada… filmes, prefiro dizer que faço fitas, e quando escrevo
Ou talvez não. Para começar, devo dizer que ficção, prefiro dizer que conto historietas! Que que-
esta coisa dos géneros (literários, musicais, cinema- rem, sinto‑me mais à vontade e desinibido, e posso
tográficos…), com guerra ou sem guerra, sempre inventar sem remorsos o que me passa pelo touti-
me deixou desconfiado e com o nariz um bocadi- ço…
nho torcido. Cada vez me sinto mais inclinado a Como o João faz notar, e bem, sem dúvida
concordar com Voltaire quando escreveu em 1763, que não podemos fugir ao preconceito ainda muito
numa carta dirigida a Monsieur de Moultou: «Tous arraigado em certas mentes contra essa «literatura
les genres sont bons, sauf le genre ennuyeux». — (An- menor» da FC, do Horror, da Fantasia, etc. Há uns
tigamente o «género enfadonho» chamava‑se «litté- tempos atrás tive a paciência e a bondade de ler um
rature d’idées»). pequeno ensaio de um professor de literatura (de
A divisão proposta pelo David, ainda que pro- cujo nome felizmente não me recordo, cito isto de
visória e apenas como ferramenta de arranque de memória), que discorria sobre a «grande literatu-
trabalho, da Literatura Erudita e da Literatura Popu- ra» e depois, de raspão, referia‑se a umas formas de
lar, não sei que lhe diga, mas suspeito que simplifica «pseudoliteratura», «paraliteratura» e «subliteratu-
tanto a base de abordagem ao tema que corre o risco ra» onde incluía, indiscriminadamente, desde a FC
de gerar grandes zonas cinzentas de sobreposição até às estórias popularuchas de faca‑e‑alguidar do
fronteiriça; embora o David tenha tido o cuidado tipo Maria Não Me Mates Que Sou Tua Mãe.
de esclarecer que essas expressões nasceram com o Em todo o caso, parece que estamos (cons-
romance moderno, no fundo é inevitável pensar que ciente ou subconscientemente) a cingir‑nos e res-
peças literárias de grande divulgação popular, como tringir‑nos a alguns formatos e estruturas mais
as palpitantes «estórias» contadas e cantadas para o associados àquilo que nas prateleiras dos livreiros
povinho nos tempos de Homero, hoje chamam‑se costuma ter as etiquetas «ficção científica», «fantás-
Ilíada ou Odisseia e são literatura erudita, tal como tico», «horror», etc. — mas existem outros objectos
as peças de Shakespeare de grande êxito popular ou literários (e esquecendo outras formas narrativísti-
as óperas de Mozart representadas em tascas para cas como o cinema ou o teatro) que não sei em que
um público ruidoso e arrebatado e que hoje são pe- género incluir, como por exemplo os romances (?)
ças eruditas… de Maria Gabriela Llansol, em que nenhuma frase
Depois há que considerar também o factor liga com coisa nenhuma, e lá pelo meio tem grandes
subjectivo. O que é ennuyeux para uns pode ser de- buracos, troços em branco com falta de palavras, pa-
lirantemente orgásmico para outros. Por exemplo: recem enigmas e logogrifos, não sei se aquilo é para a
pessoalmente sempre tive a maior dificuldade em gente adivinhar que palavras lá estariam, ou se é para
meter o dente na Recherche de Proust, quanto mais desengatilhar o chamado «clique» revelador que faz
engoli‑la e muito menos digeri‑la; já fui insultado ver para além do visto/não‑visto… A verdade é que
váras vezes por isso, e de uma delas por uma jovem é considerada pelos luminares da crítica uma gran-
 de autora de grande literatura, com vários prémios
«Todos os géneros são bons, excepto o género enfado-
nho». daqueles sérios, do mainstream e tudo — mais uma
revista BANG! [ 49 ]
vez, e para minha grande contrição, não consigo me- cil constatar que há cinquenta anos atrás se publi-
ter o dente naquilo. cava menos livros, mas que a variedade das ofertas
Mas eu gostaria de tecer uns quantos consi- editoriais era maior (varietas delectat): na verdade,
derandos mais atentos e veneradores sobre «estilos» publicava‑se de tudo. Eu encontro coisas nos alfarra-
e «géneros», que desde a velha retórica até às novas bistas que nem sequer sabia que tinham sido dadas
análises radicalistas têm rolado e girado por aí sob à estampa em português como uma edição de Bru-
diversos nomes, e nem é preciso citar os rebentos ges, a Morta, de Georges Rodenbach, publicada pela
de Harold Bloom como Barry Scherr e David Fite  Editorial Inquérito em 1943 e que trouxe para casa
— mas isso fica para o próximo post. no passado fim‑de‑semana. Qual seria a editora que,
hoje em dia, perderia tempo a publicar esta obra‑pri-
David Soares: ma do Simbolismo, pioneira da psicogeografia?!… E
Uma das maiores satisfações de ser escritor é saber é uma pena porque é um livro bom que se farta!…
que, na melhor das hipóteses, os livros que se escre- O que desejo destacar desta exposição introdutória à
ve serão sempre lembrados no futuro (assim como minha segunda intervenção é que, autonomamente
o João se lembrou do Sturgeon. Recomendo a todos à polémica entre géneros, está‑se a publicar menos
que leiam o “belo” Some of Your Blood). É improvável e pior. Existe uma homogeneidade livresca, sinto-
que se encontre um rasto de migalhas genéticas que mática da homogeneidade cultural que nos absor-
nos conduzam até às ossadas de Esopo (lembrado ve a uma velocidade vertiginosa, mas acredito que
pelo António), mas as memes esopianas estão con- as obras que melhor falam sobre os problemas dos
nosco — vicejantes e saudáveis, ou seja: Esopo existe seus tempos continuam — e continuarão — a ser as
Fantásticas. Como as de Rodenbach, de Esopo e de
Sturgeon.
«Uma das maiores satisfações de Acredito mesmo que quem se dedica ao ofí-
ser escritor, recuperando o mote do cio da escrita precisa de ter uma maior sensibilida-
de no que diz respeito ao uso da palavra. Falei em
primeiro parágrafo, é mesmo essa: Burroughs e a técnica beat do Cut‑up é um bom
atrever‑nos a ser diferentes.» exemplo daquilo que pretendo ilustrar: tem tendên-
cia para produzir algaraviada, mas — bolas!… —,
em última análise, uma algaraviada escrita por um
enquanto alguém se lembrar da vida e obra dele — e escritor sensível à palavra pode ser muito melhor
ele afecta aquilo que se desenrola séculos depois de que um enredo tradicional autorado por um tarefei-
ter morrido; até os desvairamentos de três rufiões ro — eu acho que Burroughs é um gigante quando
como nós. Talvez esse tipo de persistência memética confrontado com o Paul Auster (eu adoro qualquer
seja longitudinalmente mais poderoso que a existên- coisa que tenha baratas falantes, por isso talvez esteja
cia de carne e osso: é que as palavras parecem ser a ser biased). É desanimador pensar que a Escrita é
mágicas no modo como nos afectam. Já antes de um campo com possibilidades tão vastas, mas que
Alfred Korzybski e William Burroughs publicarem se encontra sempre espartilhado por convenções de
os livros deles, o Aleister Crowley dizia que a Magia mercado, acidentes de iliteracia e preconceitos pa-
era uma “doença da linguagem”. O Tempo (o velho tetas. Falando em insectos… Lembrei‑me do dese-
Saturno que tanto gosta de acariciar o cabelo sedoso nho do Escher, aquele da formiga, e do conto que
das virgens…) também acaba por nos fazer esque- o Hofstatder escreveu, inspirado nele, que está no
cer o piorzinho que se vai publicando — o que não livro Gödel, Escher, Bach: An Eternal Golden Braid.
significa que certos autores sejam descobertos por Chama‑se “…Ant Fugue” e é sobre aquilo que pensa
gerações seguintes, sejam eles maus ou bons. um papa‑formigas enquanto se banqueteia. O ensaio
Num simples périplo pelos alfarrabistas é fá- não é sobre sabores alternativos, contudo, mas sobre
revista BANG! [ 50 ]
a consciência colectiva (que no texto se chama Aunt protagonistas — que rondam sempre, seguindo Nor-
Hillary e mais não é que a própria colónia de for- thorp Frye — o Amor e a Morte, sejam afastados para
migas) e acho que se aplica ao nosso nicho literário. enfrentar e resolver problemas maiores (obrigando
Ou seja, essa parábola das formiguinhas insuspeitas a determinar qual a reacção necessária). O concreto
e do mirmecófago bonacheirão, que aparece para as da vida é substituído pela abstracção (ainda que esta
devorar sem perceber que a Tia Hillary com quem seja corporizada numa ameaça extraterrestre, numa
tanto gosta de conversar é composta pelos milhões mutação teratológica ou numa total transmutação da
de indivíduos que ele tanto gosta de comer, pode ser realidade).»
lida de várias formas (não estou “consciente” de qual Como sugeri na minha primeira intervenção,
é a maneira correcta de a entender ou se existe se- a Realidade é uma ficção feita pelos nossos sentidos
quer uma maneira correcta de a entender): 1) Nós, e não vale a pena sobrevalorizá‑la: aquilo que pen-
escritores, somos as formigas que percorrem os sub- samos estar a ver pode ter tanta proximidade com
térreos níveis do subconsciente em busca de novos o mundo físico quanto uma história do Hulk a lu-
modos de olhar o mundo e o papa‑formigas repre- tar com o Wolverine. Os nossos cérebros capturam
senta os leitores que vêm lamber os beiços com as as sensações circundantes e constroem um modelo
nossas fabulosas criações, mas o problema com este do mundo que funciona para nós, mas nada garante
modelo é que o papa‑formigas come as próprias for- que esse modelo é a realidade. É por essa razão que
migas, por isso 2) talvez seja ele o escritor que vem sempre achei absurdo que, como escreveu o João,
chupar os leitores despreocupados? De qualquer das citando o Boorstin, a «recriação da vida a partir da
maneiras… Porquê reduzir o ofício da escrita nesta vida» seja o modo eleito de expressão literária do es-
configuração? Devíamos ser melhores que as formi- tablishment. Aquilo que é entendido como realista é
gas e perceber que caminhamos num terreno que é igualmente ficcionado.
muito maior que aquilo que parece ser: devíamos Vou citar um exemplo pessoal: Era uma vez,
prestar mais atenção. estava eu, com dois amigos, a perder tempo sentado
Gostava de ler um livro recente que me ofe- no muro da antiga estação ferroviária de Queluz; não
recesse algo que só a literatura é capaz de fazer: que me recordo do que estava a falar com eles porque a
não fosse uma experiência que pudesse ser suplanta- comunicação entre nós já só se devia estar a cumprir
da por outra arte. Acho que isso faz muita falta; e até por minúsculos movimentos oculares, tal devia ser
pode ser um dos motivos pelos quais o mercado do o ennui vespertino… Todavia, aconteceu algo ines-
livro prima pela confrangedora homogeneidade que perado. Uma rapariga distraiu‑se e atravessou a li-
se encontra nos escaparates: não há nada na maioria nha‑férrea no momento em que um comboio, vindo
dos livros publicados neste momento que não possa de Sintra, se aproximava dela a grande velocidade. Vi
ser vivenciado com mais rapidez e economia num tudo! Hesitante, a jovem recuou à passagem da loco-
filme, numa série de televisão ou numa telenovela. motiva, mas tarde demais: o comboio atingiu‑a na
Eu não quero ler filmes impressos: eu quero ler… cabeça e deitou‑a ao chão — por um instante, pare-
hum… livros. ceu que ela tinha esticado as pernas para debaixo das
Esta linha de raciocínio trouxe‑me aquilo rodas do comboio, mas não ficou sem elas porque
que o João enunciou: que «o romance moderno cen- caiu de joelhos. Levantei‑me e corri para a ajudar.
tra a experiência literária na reacção impressionista Aproximei‑me e ouvia‑a a chorar; agarrei‑a e senti
dos personagens, com a sua bagagem de sentimentos um arrepio pela espinha acima porque me deu a im-
e problemas pessoais, ao ataque cerrado do mun- pressão que ela tinha ficado sem um olho. Afinal, o
do exterior (obrigando a determinar qual a reacção olho estava apenas escondido pelo sangue que bro-
correcta), e não consegue tolerar a deslocação que a tava de uma têmpora aberta. Fiquei com a impressão
literatura fantástica faz dessa reacção; a introdução que ela tinha um pé torcido, também. Com custo,
do fantástico obriga a que os petty problems dos seus consegui levá‑la sozinho para a plataforma de em-
revista BANG! [ 51 ]
barque: fiquei cheio de sangue — havia sangue por vez: as abelhas vêem cores que nós nem sabemos
todo o lado, vocês não fazem ideia da quantidade de que existem. Não vêem tons diferentes das cores
sangue que sangra de um corte daqueles. Quando a nossas conhecidas, mas cores novas. Acho que essa
ajudei a deitar‑se no chão de cimento, aproximou‑se é que deve ser a tarefa do escritor: enquanto uns
um homem que me disse com urgência “Chega‑te olham para as flores e vêem as cores do costume,
para lá, chega‑te para lá!”. Pensei que fosse um fa- os escritores devem ver os tons mais loucos e os
miliar preocupado com ela, mas não. Era um apenas padrões mais incríveis. E escrever sobre eles, cla-
um idiota chapado que veio armar‑se em herói de- ro. Resumindo, não quero ficar prisioneiro de uma
pois de ter sido eu a ir buscar a rapariga à linha‑fér- forma de ver o mundo que, na verdade, é apenas
rea. Não tenho palavras para descrever o nojo que mais uma ficção. Uma das maiores satisfações de
senti por aquele homem que agiu como se fosse o ser escritor, recuperando o mote do primeiro pa-
salvador, não só da pobre diaba como da pátria. Nes- rágrafo, é mesmo essa: atrever‑nos a ser diferentes.
se instante, chegou uma ambulância. Um montão de Até faz lembrar aquele patético separador do canal
gente rodeou‑nos e eu deixei de ver a rapariga. Acho de cabo da Fox em que há um tipo que está num
que lhe estavam a lavar a cara. Acho que um enfer- bar a ver os outros a beber água e comenta que uns
meiro lhe estava a cortar a perna da calça de ganga vêem o copo meio‑cheio e outros olham para um
quando voltei as costas e me fui embora. Reuni‑me copo meio‑vazio. E ele? Ele diz que tem é sede…
com os meus amigos, mas não fui capaz de ficar ali. Imagino‑me numa livraria a ver toda a gente a ro-
Estava a tremer. Fui para casa e preguei um susto à tular os livros de Literatura Erudita ou de Literatura
minha mãe que, ao pôr‑me a vista em cima, pensou Popular, de acordo com as suas inclinações pessoais.
que eu tinha vindo de um bar mexicano. E eu? O que é que acho? Eu quero é escrever, pá!…
Se há alguma moral nesta experiência dantes- Como diz o papa‑formigas (na página 312): «RE-
ca que acabei de partilhar convosco acho que pode DUCTIONISM is the most natural thing in the world
ser esta: ninguém sabe como é a realidade até ela lhe to grasp.»
cair, a sangrar e a chorar baba e ranho, nos braços!
Podemos escrever incontáveis páginas de prosa ilu- João Seixas:
minada, e apaixonar‑nos por elas ao ponto de sa- Ora, passo a passo lá nos vamos aproximando duma
crificar a vida e a higiene, mas é quase um pecado tentativa de resposta, da fugidia compreensão de
afirmar que a ficção que estamos a escrever é realista qual a verdadeira essência da barreira inconstante
porque não é e nunca será. É por este causador que que se ergue entre a academia e o populus. Como
a obsessão com a realidade que afecta o espectro da sempre, o David levanta questões pertinentes, e faz
Literatura Erudita e os molossos que a defendem de- sangrar algumas feridas que alguns, mais incons-
mencialmente não se sustenta: aquilo que eu encon- cientes, achavam que estavam já bem saradas. Mas,
tro na literatura que mais se aproxima da experiência conquanto subscreva inteiramente as conclusões do
que acabei de narrar, com o cheiro e o calor do san- David, penso ser pertinente reforçar a ideia de que
gue que me ensopou as mãos e a roupa, mais o ruído existe, efectivamente, uma realidade objectiva.
das ambulâncias e a vozearia dos heróis‑de‑bancada, Negar a existência de uma tal realidade, objec-
está nos livros de horror do Stephen King e do Cli- tiva, cognoscível em maior ou menor instância, seria
ve Barker. Com efeito, estes autores de ficção — de subscrever as mais disparatadas teorias pós‑moder-
Literatura Popular — , estes desgraçados que andam nas, selon Chacan, Derrida, Foucault e, entre nós, o
iludidos a pensar que são escritores a sério, estão falecido Eduardo Prado Coelho (e quem pode es-
mais próximos da realidade que outros escritores a quecer a sua lastimável intervenção na questão do
sério de Literatura Erudita. Discurso Sobre a Ciência de Boaventura Sousa San-
Depois do sangue, é preciso manter as coi- tos?). Seria negar a ciência moderna e, por conse-
sas simples… Por isso, vou falar de insectos outra guinte, as próprias fundações do pensamento racio-
revista BANG! [ 52 ]
nal e do mundo ocidental. Que a nossa utensilagem Mas há efectivamente algo de fundamental
visual esteja limitada ao espectro compreendido nesta multiplicidade de percepções do real. Algo
entre o vermelho e o violeta (sendo nós, portanto, que, de acordo com alguns ensaístas, é ínsito à pró-
cegos quanto às colorações infra‑vermelhas e ul- pria literatura moderna. Victor Shklovsky, um dos
tra‑violetas) não contende em nada com a realidade Formalistas Russos, considerava no seu célebre en-
e concreta coloração de determinado objecto. Que saio de 1917 (Art as Device) que a principal função
uma flor para nós seja amarela, e para uma abelha da arte era ultrapassar o efeito do hábito, através da
tenha uma dezena de tonalidades invisíveis ao olho representação do familiar de uma forma original: a
humano, em nada colide com a identidade funda- isto chamava ele ostranenie, que David Lodge equi-
mental dessa flor. A única diferença é a percepção para ao conceito de desfamiliarização ou, digo eu,
que uns e outros, humanos e abelhas, temos de uma estranhamento. Na verdade, escrevia Shklovsky, “a
mesma realidade objectiva. Idêntica falsa questão é o arte existe para que possamos recuperar a sensação da
célebre dito: se uma árvore cair no meio da floresta, vida; existe para que possamos sentir as coisas, para
sem que esteja lá ninguém para a ouvir, será que a sua tornar o rochoso rochoso. O propósito da arte é pro-
queda provoca ruído? Claro que sim. Nós sabemo‑lo vocar a sensação das coisas tal como são percebidas, e
porque sabemos que havendo ar, a queda da árvore não como são conhecidas”.
provocará sempre a deslocação deste, vibrando em
determinadas frequências. Tal como sabemos que as
abelhas percebem outras cores, pois desenvolvemos «O Fantástico vai ainda mais
tecnologia e divisamos experiências que permitiram
comprovar tal facto.
adiante, pondo a nu a artificialidade
No entanto, o facto de existirem diferentes das construções sociais, servindo por
percepções sobre a mesma realidade, não invalida vezes de “comentário” extremo ao
que essa realidade exista e seja (em potência) inte-
gralmente cognoscível; nem colide directamente
status quo que essa Alta Cultura
com o interesse ou desinteresse das obra que con- pretende representar. »
vencionamos chamar eruditas e as chamadas popu-
lares. Umas e outras orbitam sempre em torno desta Este estranhamento resultaria assim de uma
realidade, explorando‑a, confirmando‑a, contorcen- interpretação extremamente individualista da re-
do‑a ou obliterando‑a. Mas é sempre esta realidade alidade, a qual nos seria apresentada de forma re-
que escora e permite estruturar a ficção. É isso que, conhecível mas inovadora, enriquecendo assim a
em última análise, distingue a ficção dos escritos dos nossa capacidade de experimentar o real. Ora, po-
loucos e dos religiosos, que postulam uma outra re- deríamos observar que em nenhum caso é tal es-
alidade imaginada, sem prestarem a devida vénia ao tranhamento tão essencial como no caso da Ficção
real e ao conhecido. Científica, do Horror e da Fantasia, onde a realida-
(Também não anula a existência de uma outra de é transformada, por vezes completamente, mas
realidade consensual e não objectiva, uma realidade nunca ao ponto de ser totalmente irreconhecível. No
de valores, que não assenta na contingência histó- entanto, a mente‑colectiva do estabelecimento cul-
rica mas na vontade da massa social, com as devi- tural tem uma capacidade diminuta para enfrentar
das adaptações nacionais, regionais, filosóficas ou esse particular tipo de estranhamento; o máximo de
religiosas. É essa realidade consensual que poderá, abertura que lhe é concedido é o caso do realismo
como antes disse ao referir‑me à dimensão moral da mágico, que Lodge identifica (em The Art of Fiction,
literatura Erudita, ajudar a compreender a aversão à 1992) “when marvellous and impossible events occur
literatura Popular. Mas não é disso que quero tratar in what otherwise purports to be a realistic narrative”.
de imediato). Porém, essa intervenção do fantástico no real tem
revista BANG! [ 53 ]
uma razão de ser (que é o que a torna aceitável e lhe Pensemos depois no exemplo de Paul Auster,
permite partilhar do sistema de códigos de reconhe- citado pelo David, ou nos exemplos nacionais de
cimento da Arte Erudita): “In magic realism, there Gonçalo M. Tavares, Pedro Paixão, José Luís Pei-
is always a tense connection between the real and the xoto. Se aqueles souberam interpretar a realidade
fantastic: the impossible event is a kind of metaphor for porque a viveram, estes interpretam uma realidade
the extreme paradoxes of modern history”. Ou seja, o em segunda mão, uma realidade que lhes é transmi-
fantástico típico do realismo mágico apenas é aceitá- tida através da experiência dos outros. Que interesse
vel por configurar uma codificação da incapacidade pode ter um livro escrito por alguém que não tem
do espírito humano em lidar com acontecimentos qualquer experiência de vida, que não a de frequen-
extremos da história moderna. Curiosamente, uma tar um curso superior, arranjar um tacho num jornal
análise dos elementos fantásticos que costumamos e ver as unhas dos pés a crescer?
encontrar nos episódios de realismo mágico (capa- Não se pense com isto que quero defender a
cidade de voar, animais falantes, animismo, queda escola redutora do “escreve sobre aquilo que sabes”.
livre, tempo lento) permite‑nos concluir que são os Quero, sim, demonstrar que estes autores, privados
mesmos que costumamos associar ao (e encontrar da vivência de acontecimentos extremos, reduzem
no) sono/sonho. O realismo mágico parece assim a sua escrita à sua própria vivência interior; a sua
servir de almofada entre uma realidade tão brutal adopção pelo cânone, paradoxalmente, opera‑se
que nem pode ser representada e a representação não por uma novel perspectiva da vida ou do real,
que se quer fazer dessa realidade. mas por uma repetição (por vezes doentia) dos pró-
Donde se retira que a própria literatura erudi- prios códigos de figuração perpetuados ao longo dos
ta, pelo muito que se propõe representar o real, ex- últimos duzentos anos. Face ao vácuo experiencial
trair a sensação de vida da própria vida, tem dificul- dos autores, a literatura mimética funciona como
dade em lidar com todos os seus aspectos (do real e uma jaula de mediocridade, onde a ostranenie é in-
da vida), já para não falar na dificuldade que tem em terpretada, não como uma técnica, mas como carta
lidar com as variadas matizes do possível. São mais branca para mergulhar em exercícios de estilo esté-
as reticências e os silêncios cúmplices, os vazios en- reis e pouco imaginativos (a exclusão de maiúsculas
tre capítulos e as insinuações do que propriamente e pontuação, as brincadeiras com a mancha gráfica,
as representações fiéis do real. as intervenções de um narrador/autor que nada tem
Porque os próprios autores, que são afinal os a dizer a não ser lembrar a sua existência para que
canais interpretativos necessários à ostranenie, não não seja esquecido) onde a forma se sobrepõe total e
são eles próprios capazes de entender o real, entre- definitivamente ao conteúdo. Numa completa nega-
gando‑se, sim, a interpretações do real extremamen- ção da literatura. Nada poderia estar mais longe da
te subjectivado sobre que escrevem. Pensemos em intenção de Zola quando definiu o romance expe-
eventos extremos: pensemos nos campos de batalha rimental pela equivalência entre a orientação socio-
das duas guerras mundiais, pensamos no pesadelo lógica da sua escrita e os (então nascentes) métodos
do holocausto, pensemos no horror de uma vítima experimentais das ciências naturais.
de torturas, pensemos na vida agreste na Marinha Obviamente, dir‑me‑ão, os autores do fantás-
Real Inglesa nos séculos XVII a XIX. Todos eles en- tico, por maioria de razão, fogem ainda mais à in-
contraram representações realistas e fiéis, e todos terpretação da experiência real, ao escreverem sobre
eles passaram pelo crivo da individualidade dos temas que são assumidamente irreais. O que é ma-
autores que sobre eles escreveram. Pensemos em A nifestamente verdade. No entanto, considerem o se-
Oeste Nada de Novo de Erich Maria Remarque, no guinte: ao escreverem sobre passados, presentes ou
Na Outra Margem por Entre as Árvores de Hemin- futuros alternativos, os autores de Ficção Científica
gway, no Regimento da Morte de Sven Hassel, no estão a dissecar não só o real, mas o próprio carácter
The Shadow‑Line de Conrad… contingente desse real; colocam a nu a arbitrariedade
revista BANG! [ 54 ]
do “real” tal como o conhecemos (precisamente cha- Pelo pouco que vale a minha opinião, e no que
mando‑nos a atenção para as cores do mundo das a esta última questão diz respeito, daqui a 20 anos
abelhas); e os autores de horror, pelo menos aqueles ninguém saberá quem é Tavares.
que são honestos consigo próprios e com os leitores,
expõem perante nós os seus fantasmas mais profun- António de Macedo:
dos, despindo, por assim dizer, a alma do humano Tenho lido atentamente os excelentes ensaios do Da-
confrontada com os seus próprios pesadelos. O fan- vid e do João, e a maneira como constroem e abor-
tástico funcionará quase como o oposto do realismo dam a  sempre vertiginosa e desequilibrante questão
mágico, enfrentando as experiências extremas que a de como se poderá recortar, em arte (neste caso, nar-
literatura mimética não ousa representar. rativa), o instável território do real versus imaginário,
Ao definir a ostranenie, Shklovsky serve‑se do duradouro versus efémero, com inúmeros e perti-
como exemplo de um trecho de Tolstoi onde este nentes exemplos. Suspeito que estamos perante uma
descreve uma ópera vista através do olhar de alguém situação «fractal», de interdimensões fraccionárias,
que nunca assistiu a nenhuma: “Depois apareceram ou seja, antigamente era fácil saber‑se que uma rec-
ainda mais pessoas a correr e começaram a arrastar ta tem a dimenão 1, um plano a dimensão 2 ou um
dali a donzela que até então envergara um vestido cubo a dimensão 3, mas… uma linha de costa que
branco mas que agora vestia de azul‑marinho. Não a dimensão tem? 1 ou 2?… Provavelmnete entre uma
arrastaram logo, mas ficaram a cantar com ela duran- coisa e outra, talvez 1,666… E uma nuvem? Talvez
te muito tempo antes de a levarem dali”. O que Tolstoi 2,4 ou, se estiver muito carregada, talvez 2,8…
faz é ridicularizar de forma certeira as convenções da Em arte narrativa (e não só, bem entendido,
Alta Cultura, ao mesmo tempo que demonstra que é mas convém não alongar muito isto) ao pretender-
necessário o domínio dos códigos para apreciar uma mos delimitar conceitos tão deslizantes e escorre-
obra de arte. O Fantástico vai ainda mais adiante, gadios como popular/erudito, ou real/fantástico,
pondo a nu a artificialidade das construções sociais, ou o que fica para a posteridade e o que vai para o
servindo por vezes de “comentário” extremo ao sta- limbo do eterno olvido, estamos a entrar num cam-
tus quo que essa Alta Cultura pretende representar. po minado por essa coisa esquisita que é a estética
Onde a Literatura Erudita critica alguns aspectos do subjectiva, e que fez, por exemplo, com que um Júlio
real, o Fantástico postula a total substituição do pró- Verne nunca fosse admitido à Académie Française,
prio real. Ao fazê‑lo, nega o conjunto de valores co- apesar dos seus esforços: é que a sua escrita não era
muns que as obras miméticas pretendem confirmar. suficientemente «literária»… Penso que o problema
Ao invés de nos apresentarem uma nova perspectiva dos académicos não era tanto uma questão de «gé-
do familiar, as obras do fantástico convidam‑nos a nero» mas de «prosa»: quando Flaubert publicou a
desafiar o que é familiar, a tomarmos consciência sua Salammbô em 1862 foi admirado por uns, pela
da artificialidade das convenções e, sobretudo, a que força literária do seu «esteticismo realista», e violen-
abramos os olhos para a necessária contingência his- tamente contestado por outros que achavam aquilo
tórica do real. É uma posição de completa negação não só imoral mas sobretudo que aquela prosa era
do cumular de experiências que forma o nosso sen- uma autêntica carthachinoiserie.
tir colectivo, cristalizado nas obras que a academia Esse mistério do «escrever bem» evidente-
considera representativas do espírito humano. mente que não basta e ainda menos esgota a dese-
E, no entanto, nada disto responde ainda à jável qualificação (e quantificação, as ideias também
questão essencial: o que distingue um quadro de Van têm «peso»!) que distingue (felizmente!) um David
Gogh de uma ilustração de Frank R. Paul? O que dis- Soares de um Pedro Paixão ou de um José Luís Pei-
tingue uma composição de Beethoven de uma outra xoto, como o João muito bem acentuou: «Não se
de John Williams? Que distingue um livro de David pense com isto que quero defender a escola redutora
Soares de um de Gonçalo M. Tavares? do “escreve sobre aquilo que sabes”. Quero, sim, de-
revista BANG! [ 55 ]
monstrar que estes autores, privados da vivência de obras podiam ser percorridas, transversalmente,
acontecimentos extremos, reduzem a sua escrita à sua por diversos géneros — embora lhes repugnasse este
própria vivência interior; a sua adopção pelo cânone, tipo de ambiguidades (maldito/bendito racionalis-
paradoxalmente, opera‑se não por uma novel perspec- mo grego!) que punha em causa as categorias e clas-
tiva da vida ou do real, mas por uma repetição (por sificações naturalmente associadas a valores ideais,
vezes doentia) dos próprios códigos de figuração per- arquetípicos. Por conseguinte, a Ilíada com toda a
petuados ao longo dos últimos duzentos anos.» excelência reconhecida por Aristóteles, não deixava
Isto é verdade, um dia comecei a ler os livros de ser uma incómoda aberração, por ser do géne-
do Pedro Paixão e rapidamente me dei conta que ro épico mas ter segmentos de tragédia e episódios
bastava ler um para ser o mesmo que ler todos, mais: líricos como por exemplo a tocante despedida de
bastava ler uma página de um, para se ficar com o Heitor e Andrómaca — estou mesmo a ver o pobre
livro todo lido… Quando se chega ao fim, ficamos a do Aristóteles a escrever isto na Poética e a coçar a
saber quantos cigarros fumou o protagonista, quan- cabeça, perplexo.
tas quecas deu e quantas vezes olhou pela janela, e E já não falo no colete de forças que foi a ideia
eu não posso deixar de me interrogar: O KEK EU que percorreu toda a época do «cânone ocidental»
TENHO COM ISSO??? Bom, talvez esteja aqui uma do plot bem construído, plot esse cujos eventos ou
boa razão das voltas que andamos a dar ao problema incidentes, segundo os antigos retóricos (e a maioria
dos «géneros»: seja qual for o género, o que se des- dos modernos…), têm de se suceder logicamente (!)
creve, aquilo para onde se olha, o que se dá, o que se uns aos outros. Ainda não vi nenhum crítico que me
idealiza, o que se conta, precisa de ter sempre algum soubesse explicar isto satisfatoriamente, e entretanto
ponto de contacto, ainda que ténue, com a humani- vou‑me deliciando com estranhezas tão empolgan-
tas, por muito alienígenas que sejam as propostas de tes como Tales of Zothique, do velho Clark Ashton
autores tão diametrais como Ursula LeGuin ou Paul Smith, ou as loucuras do ainda mais clássico Gustav
Di Filippo, acho que o Terêncio tinha razão quando Meyrink — e não falo nos modernos porque, curio-
escreveu numa das suas comédias homo sum et hu- samente, há muitos e bons, quantas vezes o proble-
mani nihil a me alienum puto… ma está na escolha!
Enfim, vocês desculpem‑me mas deve ser do
«Já os Gregos desconfiavam da reumático, volto sempre à receita mágica da suspen-
sion of disbelief, receita cunhada por Coleridge em
separação de géneros cortada à faca, 1817 e que, em minha humilde opinião, continua
e reconheciam que certas obras a ser indispensável para que a leitura de uma estó-
podiam ser percorridas, transversal- ria agarre, mais a receita gémea do sense of wonder
examinado proficientemente por John Clute & John
mente, por diversos géneros» Grant na sua incontornável Encyclopedia of Fantasy, e
que eu prefiro traduzir simplesmente por «fascínio».
É por isso que continuo desconfiado das ca- Realmente, é disso mesmo que se trata: se o livro não
talogações em géneros que nunca obtém consen- agarrar o leitor pelo «fascínio», seja pelo lado do plot,
so entre os diversos luminares que se dedicam ao seja pelo lado da fulgurante manipulação literária,
caso, como os estudiosos de «Teoria dos géneros» e seja por outro interstício supradimensional qualquer
da «Crítica dos géneros», como Devitt (2004), Do- mas igualmente enfeitiçante — a obra falha.
bbs‑Allsopp (2000), ou Prince (2003) sem falar nos E já agora, não gostaria de rematar estes bre-
estudos de Kress (2003) sobre a «literacia». ves alinhavos (ou desalinhos…) sem corresponder,
Já os Gregos desconfiavam da separação de nem que seja a cinquenta por cento, a uma suges-
géneros cortada à faca, e reconheciam que certas tão off‑the‑record do João, de escolher um livro fan-

«Homem sou, nada do que é humano me é alheio». tástico e um livro mainstream que tratassem temas
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semelhantes, e depois comparar… Confesso que em estratos rígidos. Todas as personagens têm de
a tentação é grande de pôr, lado a lado, dois livros lutar com garras e dentes para ascender na pirâmi-
«de peso» que tratam de um certo eterno feminino de social e económica, pactuando com as situações
malévolo e criado artificialmente, embora este «arti- mais aviltantes e permutando com as figuras mais
ficial» tenha um significado completamente distinto abjectas. Não é um mundo fácil, acreditem!, em es-
em ambos os casos… Mas aqui vai: leiam com aten- pecial para as mulheres que, por serem… enfim…
ção a A Sibila (1954), de Agustina Bessa‑Luís (que mulheres, são observadas como uns não‑seres…
em 2004 já ia com mais de 26 edições), que ganhou Mas Tooth and Claw tem uma particularidade mui-
vários grandes prémios literários do mainstream, tíssimo especial que o distingue, por exemplo, do tí-
bocejem à vossa vontade, e depois deliciem‑se com tulo Framley Parsonage, escrito pelo já mencionado
os gélidos calafrios provocados pela Alraune (1911) Trollope, no qual busca estrutura e inspiração. É que
de Hanns H. Ewers (1871‑1943) — e esqueçam por todas as personagens de Framley Parsonage são hu-
favor as simpatias dele pelo nazismo, coisa que mui- manas, mas todas as personagens de Tooth and Claw
to prejudicou a sua memória literária e que relegou são dragões!
para o desfavor do olvido a sua enorme capacidade
de «criar fantástico».
«Os livros nunca serão perfeitos:
David Soares: terão sempre fantasia a mais ou fan-
Consultar o email e ver que já chegaram mais inter- tasia a menos; serão mais comerciais
venções vossas é um grande prazer: acho que o exer-
cício de participar nesta troca de ideias convosco já
ou pouco comerciais; alternativos
se tornou, para mim, aquilo que o hidrogénio repre- ou mainstream»
senta para a Tabela Periódica. Reli o que foi escrito e
penso que a minha linha de raciocínio ficou repro- São todas répteis alados que vivem em caver-
duzida na integral, o que significa que, à vizinhança nas e cospem fogo. E, no entanto, não deixam de
das considerações finais, tenho poucas palavras a estar incluídas num romance que emerge da leitura
acrescentar aquilo que já foi apresentado por todos. como sendo vitoriano no sentido mais tradicional;
Gostaria de sublinhar algumas ideias, mes- na verdade, as personagens draconianas até fortale-
mo assim. Conhecem o livro Tooth and Claw da Jo cem a luta de garras e dentes travada — literalmen-
Walton? Lembrei‑me dele porque acho que será um te!… — ao longo da narrativa.
bom exemplo para servir de modelo ao que vou ex- Tooth and Claw não dá tréguas: é violentíssi-
por. Esperem só um bocadinho que vou buscá‑lo à mo, demencial e psicadélico! Contudo, é tão… hu-
estante… Já está! Bem, eu não sei como está o tempo mano que se torna desarmante. Este livro ganhou um
em Viana do Castelo, João, mas aqui está um calor World Fantasy Award em 2004 e a minha primeira
tremendo. António, se está em Lisboa poderá com- pergunta é a seguinte: é pelo facto das personagens
prová‑lo. Talvez seja a nossa troca de ideias que se serem dragões que este título pode ser considerado
aproxima do boiling point!… Ui!… As nossas pala- um livro de fantasia? Por outro lado, poder‑se‑ia atri-
vras estão prestes a transformar‑se em vapor. Bom, buir um World Fantasy Award a Framley Parsonage?
eu disse que ia falar sobre o Tooth and Claw, não dis- Não sei…Também existem preconceitos na área da
se? Muito bem. Fantasia e do Fantástico… É público que depois de
Este livro é um romance vitoriano (sub‑géne- Neil Gaiman ter ganho um WFA com uma história
ro realista que se debruça sobre as condições sociais em banda desenhada alguém mudou as regras para
dos indivíduos que viveram no século XVIII e cujo que tal coisa não voltasse a acontecer.
exemplo mais representativo serão as obras de An- Tooth and Claw é mesmo um exemplo exce-
thony Trollope) sobre uma sociedade estratificada lente para partirmos as cabeças: 1) é um romance
revista BANG! [ 57 ]
vitoriano tradicional, mas 2) tem dragões como per- seguinte: eu leio tudo o que me vier parar às mãos.
sonagens e 3) tem, também, uma certa aura de — Estou‑me nas tintas se é Literatura Erudita ou Litera-
porque não dizê‑lo à boca cheia? — imbecilidade que tura Popular. É grosso, é fino? Não interessa. Se tiver
faz com que seja olhado de lado tanto pelos leitores letras e tiver páginas, eu leio.
de fantasia como pelos outros. Conseguem imagi- Gostava de partilhar convosco quatro belos
nar‑me a falar bem deste romance a um leitor que excertos: dois de péssima Literatura Erudita e Popu-
odeie fantasia? “Meu, tens de ler isto! É um romance lar e dois de excelente Literatura Erudita e Popular.
vitoriano maravilhoso. Só que tem — arrhuuum… Palavras para quê? Para ler, claro. 
— “dragões” como personagens!” Nem preciso dizer
qual seria a reacção mais provável deste acto falha- «— Certo dia fui a um restaurante para
do de proselitismo. Agora pensem que o recomendo trincar algo e alguém tinha deixado um
a um leitor de fantasia: “Meu, tens de ler isto! É um jornal no balcão. Peguei nele e li‑o. Foi
maravilhoso romance com dragões. Só que tem — ar- quando descobri que tinha sido publicado
rhuuum… — um realista enredo vitoriano!” ‘Nuff um livro meu.
said. A conclusão é que ambos os lados — aquele — Ficaste surpreendido?
que prefere ler Literatura Erudita e aquele que gosta — Não é essa a palavra que eu usaria.
mais de Literatura Popular — são preconceituosos! — Então o quê?
Acho que existe tanto preconceito dentro da — Não sei. Zangado, creio. Perturbado.
área do Fantástico como em qualquer outra área li- — Não compreendo.
terária. É que alguma da Literatura Erudita que para — Fiquei zangado porque o livro era lixo.
aí anda… bem… é mesmo, mesmo boa!… E algu- — Os escritores nunca sabem julgar o seu
ma da Literatura Popular que para aí anda é mesmo, próprio trabalho.
mesmo má! Estou a lembrar‑me do “idiota”, citado — Não, o livro era lixo, acredita em mim.
pelo João na primeira intervenção dele, que dizia Tudo o que fiz era lixo.
no fórum Bad Books Don’t Exist que o 1984 nunca — Porque não destruíste tudo, então?
poderia ser considerado como um livro de ficção — Estava muito ligado àquilo. Mas não é
científica, e só me dá vontade de rir por um motivo isso que o torna bom. Um bebé está muito
que é flagrante: não é um pouco pateta (no mínimo) ligado à caca que faz, mas ninguém se
dizer mal de um livro num fórum que tem como rala com isso. É um assunto pessoal.
nome Bad Books Don’t Exist? O que é que me esca- — E porque razão obrigaste a Sophie a
pou? Poderá ser um sintoma que, mesmo dentro do mostrar‑me o teu trabalho?
nicho, existe um sub‑establishment? Ou parafrasean- — Para a acalmar.»
do Orwell: há livros fantásticos mais fantásticos que (Retirado de O Quarto Fechado da Trilo-
outros? gia de Nova Iorque de Paul Auster.)
Os livros nunca serão perfeitos: terão sem-
pre fantasia a mais ou fantasia a menos; serão mais «The doorbell rang.
comerciais ou pouco comerciais; alternativos ou It was a thirtyish woman, slender as
mainstream; serão impressos em papel reciclado ou Jane Fonda , a bit shorter than DeAnne.
em papel couché; serão escritos por homens para She had three kids in tow, the oldest a
chatear as feministas e por mulheres para chatear os boy about Robbie’s age, and somehow
misóginos; terão autores gay para chatear os homo- — perhaps because of the kids, perhaps
fóbicos — habituem‑se!… Ainda bem que existem because of her practical cover‑everything
livros ou estaríamos condenados a ver as repetições clothing, perhaps just because of her con-
da TV Cabo. fident, cheerful face with hardly a speck of
O meu método de abordagem aos livros é o makeup on it — DeAnne knew that this
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woman was a Mormon. Or, if she wasn’t, quero referir‑me essencialmente ao complexo pro-
should be.» cesso de aceitação/rejeição‑perpetuação/redescober-
(Retirado de Lost Boys de Orson Scott ta em que são simultaneamente intervenientes leito-
Card.) res, editores, críticos e académicos. Ninguém põe em
causa que cada autor tem uma sensibilidade própria
«Since I didn’t know what masturbation — essencialmente pessoal — com a qual filtra os
was, I of course didn’t know what ejacu- acontecimentos sobre que escreve. É essa diferença
late was. I thought it was pus. I thought it irredutível que ergue algumas obras acima de outras.
was phlegm. I didn’t know what to think, E digo obras, não géneros. La Condition Humaine de
except that it was something terrible. In Malraux, To a God Unknown de Steinbeck, Dying In-
the presence of a species of discharge as yet side de Robert Silverberg, The Body de Stephen King,
mysterious to me, I imagined it was so- V de Thomas Pynchon, The Silence of the Lambs de
mething that festered in a man’s body and Thomas Harris, Pop. 1280 de Jim Thompson, Por
then came spurting from his mouth when Amor al Arte de Andreu Martín, The Devil’s Advo-
he was completely consumed by grief.» cate de Morris West, The Gods Themselves de Isaac
(Retirado de The Ploth Against America Asimov, The Song of Kali de Dan Simmons ou The
de Philip Roth.) Painted Bird de Jerzy Kozynski (entre milhares de
outros títulos que poderia citar) são livros que, inde-
«The orange in the sun loses colour, turns pendentemente de pertencerem a um género popu-
white and develops thick, deep wrinkles. lar ou erudito, independentemente de abraçarem ou
It diminishes in size. Open the orange out não o fantástico, independentemente de um estilo de
and, taking one of the thick, wilted and escrita mais ou menos conseguido, se elevam acima
creased segments, tear it in half. Inside, at da média da literatura em geral, exclusivamente pela
its very centre, is a tiny piece of the orange forma como o tema (quantas vezes banal) é tratado;
that used to be — still fleshy, still clutching veja‑se, por exemplo, o caso de Jim Thompson, um
to a little juice. Were I to peel Emma, I hack writer, que escrevia um livro em coisa de sema-
think that somewhere deep within her, na e meia, quando não em quatro dias, e no entanto
past all that thick seemingly dead cover, imbuía as suas narrativas — brutais, cruas, de uma
I might have found a little life, a little escrita atabalhoada — de uma tal realidade que as
blood.» faz transcender o próprio texto.
(Retirado de Observatory Mansions de E não será difícil encontrar exemplos de casos
Edward Carey.) opostos, livros escritos de forma brilhante, mas que
são como caixinhas de jóias vazias: o interior oco
Aguardo pelos vossos desenvolvimentos. não acolhe nada de interessante e o deslumbramento
com a forma esvai‑se ao fim de poucas páginas; Paul
João Seixas: Auster, Milan Kundera, Salman Rushdie escreveram
À medida que nos vamos aproximando do final des- alguns deles. Mais fácil ainda, encontrar exemplos
tas nossas (necessariamente) breves considerações, de livros em que o vácuo de conteúdo e a ineptidão
mais claro se torna o muito que fica por dizer. Relen- de forma são inseparáveis: qualquer coisa de Paulo
do as nossas intervenções anteriores, apercebo‑me Coelho, Inês Pedrosa, Pedro Paixão, Dan Brown ou
que, talvez por (de)formação profissional, todos te- Scott Wheeler, grande parte da obra de Lin Carter
mos centrado a nossa atenção naquilo que se escreve ou David Alan Prescott.
e como se escreve, sem prestarmos grande atenção à Excluídos, porém, estes casos, encontramos
forma como é recebido aquilo que se escreve. aquela que é, sem dúvida a situação mais frequente
E, ao referir‑me à recepção das obras escritas, em todos os géneros (mainstream incluído): livros
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escritos de forma capaz, sem nada que os distinga a mas, ao mesmo tempo, e paradoxalmente, parece
nível estilístico mas que arrebatam o leitor, de acor- que ficamos com os olhos muito mais abertos àquilo
do com os seus interesses pessoais, durante as ho- que nos rodeia. Talvez, como referia Gwyneth Jones
ras necessárias à sua leitura. São livros onde o estilo no caso da FC, estes livros que pertencem à literatu-
está subordinado à história, ao plot, e, se a história ra menor consigam “traduzir” muito melhor as an-
for bem contada, conseguem ser mais satisfatórios siedades do seu tempo do que as grandes catedrais
do que algumas das obras‑primas que supra referi. estéticas jamesianas, vazias de fiéis, mergulhadas em
São livros que não necessitam de retirar verdades silêncio, pó e presunção.
essenciais da “experiência da vida”; não têm, do Parece‑me a suprema ironia que sejam estes
início ao fim, uma frase eminentemente citável ou autores (hacks, que escrevem a martelo, comerciais)
um personagem que não seja facilmente esquecível. e estas obras (aventurosas, fantasiosas, por vezes
E no entanto… Ian Fleming, Isaac Asimov, Agatha mal escritas) que muitas vezes logram aquele que é
Christie, Robert E. Howard, Ellery Queen, L. Ron o objectivo manifesto da literatura erudita: mudar
Hubbard, A. E. Van Vogt, Clive Cussler, Richard o mundo, congelar em si a essência de uma época,
Laymon, Dean Koontz, Kenneth Robeson, Edgar documentar a identidade da espécie humana. Que
Rice Burroughs, Laurel K. Hamilton, Anne Rice, sejam elas, afinal, as que mais vezes abordam as tais
Lester Dent, H. Rider Haggard, John Buchan e tan- “coisas mais profundas” e que mapeiem uma possí-
tos, tantos outros, tornaram‑se imortais na memória vel identidade comum da humanidade. As fraque-
daquele que é o leitor intemporal. São autores cujos zas que o establishment lhe aponta são afinal as suas
livros são/serão lidos com o mesmo prazer e o mes- mais‑valias. Ao fim e ao cabo, é na história, na nar-
mo agrado mesmo volvidos mais de cem anos sobre rativa, no plot, que assenta a literatura. A estrutura
a sua publicação, mesmo que tenham de atravessar o típica de uma obra de género é como um ritual que
deserto de alguns anos de esquecimento. codifica as expectativas de uma época, de uma classe
social, de uma nação. Alterando‑se o ritual, altera‑se
a sociedade (ou, mais frequentemente, reflecte‑se
«Apenas os imbecis e os essa alteração). A literatura erudita — interior, um-
irrecuperavelmente relapsos bilical, individual — é apenas um reportório de ca-
procurarão na literatura uma sos clínicos (Freud dixit, antes do descrédito das suas
teses que — outro paradoxo — sobrevivem apenas
perspectiva da realidade» na academia que matou a literatura com o escalpelo
saussuriano). Já ninguém lê Zola, mas Verne conti-
Tal como o David disse numa das suas inter- nua a ser um best‑seller. James está encerrado nos
venções, e Leonard Cohen imortalizou numa das currículos das universidades, Wells nas prateleiras
suas canções, “you live forever, when you’ve done a das livrarias; de Orwell sobrevivem as obras fabulis-
line or two”. Uma das experiências mais compensa- tas (1984 e Animal Farm), Asimov é reeditado quase
doras que se pode viver é a de “descobrir” um novo todos os anos.
livro ou um novo autor, mesmo que esse livro tenha “Swift’s Gulliver, Huxley’s Brave New World,
sido publicado há dezenas de anos e o autor não Orwell’s Nineteen‑Eighty Four are great works of li-
seja referido em nenhuma História da Literatura. A terature because in them the oddities of alien worlds
maior parte das vezes, damos com livros desprovi- serve merely as a background or pretext for a social
dos de artificialismos narrativos, onde as persona- message. In other words, they are literature precisely
gens são completamente despidas de vida interior, to the extent to which they are not science fiction, to
mas que nos agarram pelo mero incidente da acção. which they are works of disciplined imagination and
Terminada a sua leitura, não nos foram reveladas ne- not of unlimited fantasy”. Quem assim escreve, an-
nhumas das verdades da vida (seja lá isso o que for) tecipando em 55 anos o idiota do BBDE, é Arthur
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Koestler, no seu ensaio “The Boredom of Fantasy” deixam de ser avaliadas pelo seu mérito intrínseco,
na Harper’s Bazaar de Agosto de 1953. A profunda mas pelos seus autores: recordo‑me de uma das mais
falácia que encerra já foi bastas vezes denunciada ao patéticas críticas literárias que li no suplemento Lei-
longo dos anos. No entanto, a ideia está lá, escrita turas do Público, em 11 de Setembro de 1999, onde
por uma das luminárias do Séxulo XX: a literatura até a mancha gráfica do texto dos Cães de Rui Nunes
— a verdadeira, a boa literatura, tem que possuir (a mancha gráfica, como sabemos, é alheia à vontade
uma mensagem de carácter social. Ou, recuando do autor) era tida como uma revelação; recordo‑me
ainda mais, numa linha ininterrupta de continuida- de Inês Pedrosa (ou alguém semelhante, tão pareci-
de, podemos recorrer a William Dean Howells que dos são todos eles) referindo que Lobo Antunes esta-
no seu “Novel Writing and Novel Reading” (1899), ria a perder qualidades porque começara a publicar
erguia a verdade como sendo o teste definitivo da li- um romance por ano, à moda dos autores comerciais
teratura: “(the novel is) the sincere and conscientious norte‑americanos (como se fosse impossível publi-
endeavour to Picture life as it is, to deal with character car três bons livros num único ano, como já King
as we witness it in living people, and to record the inci- fez, ou apenas um de oito em oito anos, como Harris,
dents that grow out of character. (…) If I do not find it ou um na vida, como Lampedusa, ou vinte em dois
is like life, then it does not exist for me as art. It is ugly, anos, como Dick).
it is ludicrous, it is impossible”. A literatura erudita transforma‑se assim numa
Fidelidade ao real e mensagem de carácter so- tradição limitada, na perpetuação de um modelo (ele
cial. O que poderá ser mais espartilhante, mais re- próprio assente nos clássicos, eles próprios assentes
dutor? Apenas a ideia que lhe está subjacente: a de no acaso) congelado no tempo pela perpetuação
que a Alta Literatura, a literatura erudita, trata essen- da cotterie académica e crítica que o sustenta e que
cialmente de temas universais, imutáveis ao longo da dele se sustenta, ela própria fechada à intrusão de
história e transversais à humanidade: ou seja, uma novas vozes (veja‑se, entre nós, como os autores
impossibilidade de facto. Com uma tal agenda, os mais jovens, para lhe acederem, têm que imitar de
autores encontram‑se livres de restrições de forma imediato as vozes vetustas que os precedem). A es-
ou estrutura: é a importância do tema, a dignidade crita transforma‑se assim numa fantasia de inspi-
do tratamento, a relevância social que servirão de es- ração, como se assentasse numa musa, ao invés de
cala de mérito. no trabalho árduo e diário dos autores debruçados
E, no entanto, já Kipling, com a sua desarman- sobre os seus teclados. Provavelmente, será o úni-
te simplicidade, escrevia que “no one in the world co refúgio do autor romântico que escreve possuí-
knew what truth was ‘till someone had told a story” do por um demónio interior, ao invés de pelo puro
(in A Book of Words, 1928). prazer de contar uma história. “A literatura é a voz
A literatura erudita, proselitista, moralizan- da noite”, dizia Eduardo Prado Coelho, com a sua
te, pretendendo traduzir a verdade do mundo e as habitual banalidade. É tão a voz da noite, como do
verdades da vida, é um atavismo do dealbar da mo- dia, como da manhã, como de uma tarde de sol ou
dernidade, daquele período em que os romances (e de uma manhã de ressaca. A literatura é a voz de
quão melhor é o termo anglo‑saxónico novel) eram quem escreve por ter uma história para contar e
escritos exclusivamente por cavalheiros para os seus que prefere uma audiência activa, que se imiscui
pares, independentemente de considerações quanto na narrativa a aprecia a inteligência da trama, do
à sua popularidade ou capacidade comercial. Uma que uma audiência passiva, que procura na litera-
tal perspectiva, da Sra. Thornton, de Koestler, de Ho- tura as suas verdades transcendentais.
wells, deixa sempre fora da equação o leitor: a novela A transcendência, escreve Greg Egan (Schild’s
destina‑se aqueles que pensam como nós, pregando Ladder, 2002) “was a content‑free word left over from
apenas aos convertidos e fechando‑se à própria ex- religion… It was probably an appealing notion if you
periência do real. Perante uma tal situação, as obras were so lazy that you’d never actually learnt anything
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about the universe you inhabited, and couldn’t quite referir‑se à profunda falácia que é: «…a literatura —
conceive of putting in the effort to do so…”. a verdadeira, a boa literatura, tem que possuir uma
Apenas os imbecis e os irrecuperavelmente re- mensagem de carácter social. […] Fidelidade ao real
lapsos procurarão na literatura uma perspectiva da e mensagem de carácter social. O que poderá ser mais
realidade, uma fatia de revelação de como as coisas espartilhante, mais redutor? Apenas a ideia que lhe
realmente são; os outros, procuramos na literatura está subjacente: a de que a Alta Literatura, a literatu-
entretenimento, inteligência, um mindfuck assober- ra erudita, trata essencialmente de temas universais,
bante que escancare os preconceitos e os valores ar- imutáveis ao longo da história e transversais à huma-
reigados, uma libertação das grilhetas morais, uma nidade: ou seja, uma impossibilidade de facto».
escapatória para os desejos mais recalcados, um up- Estou inteiramente de acordo, e não posso
grade da realidade, como o David muito bem dis- deixar de me lembrar de um conhecido crítico lite-
se e, como alguém que não me lembro, disse ainda rário e historiador de literatura, Harold Bloom, mui-
melhor, “enquanto uns se contentam com o real, os to mal visto pelos actuais críticos neo‑historicistas,
outros querem corrigi‑lo”. descontruccionistas, sexistas dialógicos e outros
Forma ou conteúdo? História ou Desenvolvi- pós‑modernistas… Pois o bom do homem dizia
mento Interior? Realidade ou Fantasia? coisas como estas, no seu livro The Western Canon
São falsas questões que dicotomizam a utensi- (1994 — O Cânone Ocidental, na excelente tradução
lagem de que a literatura dispõe para cumprir uma portuguesa de Manuel Frias Martins): «Ler os melho-
única e idêntica função: entretenimento inteligente. res dos melhores autores — digamos, Homero, Dan-
te, Shakespeare, Tolstoi — não fará de nós melhores
António de Macedo: cidadãos. A arte é perfeitamente inútil, como disse o
Nas intervenções anteriores do João e do David fo- sublime Oscar Wilde, que tinha razão em tudo. Wilde
ram focados alguns dos pontos essenciais deste nos- também nos disse que toda a má poesia é sincera. Se
so tema, e digo apenas «alguns» porque se virmos eu pudesse, mandava gravar estas palavras na porta
bem são inesgotáveis, o que não quer dizer que os principal de todas as universidades».
tais «alguns» propostos e analisados pelos meus ilus- E, duas páginas mais adiante, interroga‑se:
tres confreires não sejam de peso, e perfeitamente «De onde veio a ideia de conceber uma obra que o
iluminadores de eventuais caminhos a seguir. mundo não deixasse deliberadamente morrer?»
Parece que esta ideia da eternidade da fama li-
«Ora, este curioso (e corrosivo) terária terá começado a surgir e a tomar forma com
o Renascimento, conceito aliás manhoso e escapa-
preconceito continua a preponderar, diço porque, tal como a preferência ou não‑prefe-
mais ou menos disfarçadamente, em rência pela «literatura de género», é coisa que tem
muitos círculos literários e artísticos tendência para variar de acordo com os tempos e as
modas: Alastair Fowler, prof. de Literatura Inglesa
que aspiram ao Prémio Nobel ou ao na Univ. de Edimburgo, em Kinds of Literature: An
Museu Guggenheim» Introduction to the Theory of Genres and Modes, afir-
ma sem rodeios que «temos de admitir o facto de que
Na impossibilidade de comentar tudo, e até a gama completa de géneros nunca está igualmente,
porque nesta fase do campeonato a maratona se para não dizer totalmente, disponível em todos os pe-
aproxima da recta final, limitar‑me‑ei a escrevinhar ríodos. Cada época possui um reportório relativamen-
algumas notas a propósito de um ou outro ponto que te pequeno de géneros a que os seus leitores e críticos
me permita divagar sobre estas fascinantes matérias podem responder com entusiasmo, e o reportório que
— como diz o provérbio: a divagar se vai ao longe… se encontra facilmente à disposição dos seus escritores
Começo por pegar no comentário do João ao é ainda mais pequeno: o cânone contemporâneo é fi-
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xado para todos excepto para os escritores maiores, ou até ao séc. XIX, e os conceituados Corneille e Racine
mais fortes ou mais arcanos. Cada época faz novas ra- obedeceram‑lhe cegamente!
suras no reportório. Num sentido fraco, talvez todos os É claro que nada impede que tais espartilhos
géneros existam em todas as épocas sombriamente in- sejam utilizados em literatura como meros jogos,
corporados em excepções bizarras e fora do vulgar…» são os chamados «constrangimentos literários»
Por exemplo, no séc. XIX esteve muito em com que se divertem certos autores e certos gré-
voga um género literário, o «romance de adultério» mios: creio que um dos círculos mais notórios
(Flaubert, Tolstoi, Balzac, etc.), que hoje nem merece onde este tipo de fenómeno prospera é o OuLiPo
o rótulo de género! (Ouvroir de Littérature Potentielle), que conta (ou
É curioso que o David tocou neste ponto de contou, alguns já faleceram) com nomes tão co-
uma maneira contundente como quem dá uma es- nhecidos como Georges Perec, Harry Matthews,
tocada de florete com um taco de baseball, e ainda Marcel Duchamp, Stanley Chapman, Italo Calvi-
por cima acerta em cheio! «É desanimador pensar no, etc., e impõem‑se tarefas tão entusiasmantes
que a Escrita é um campo com possibilidades tão como por exemplo escrever um romance inteiro
vastas, mas que se encontra sempre espartilhado por sem a letra «e» (La Disparition, de Georges Perec),
convenções de mercado, acidentes de iliteracia e pre- ou escrever um romance em forma de puzzle ou
conceitos patetas…» Sem dúvida! Não posso deixar ainda um conto ou uma novela em palíndromo,
de me lembrar, reprimindo dentro dos limites da ou seja, tanto se lê de diante para trás como de
decência as inevitáveis e convulsivas gargalhadas, trás para diante, como as frases «Socorram‑me em
do espartilho pateta, para não dizer colete de for- Marrocos», «A diva em Argel alegra‑me a vida»,
ças, que foi, durante séculos, para a literatura em «Anotaram a data da maratona», etc.
geral e para o teatro em particular, a famosa Regra Podemos pensar que isto é um disparate e
das Três Unidades, atribuída ao pobre do Aristó- não tem nada a ver com «literatura a sério», mas
teles que ainda por cima não teve culpa nenhuma: se virmos bem, e como muito bem realçaram o Da-
um humanista iltaliano do séc. XVI, um tal Lo- vid e o João com diversos exemplos e referências, os
dovico Castelvetro, lembrou‑se de publicar um li- preconceitos com que a «crítica» examina os «objec-
vro intitulado La Poetica di Aristotele vulgarizzata tos literários» acaba por ser, no limite, tão absurda e
(1570), onde impingiu a ideia de que Aristóteles aberrante como coisas destas.
tinha imposto a exigência das três unidades dra- No fundo, não passará tudo de mera conven-
máticas, de tempo, de lugar e de acção, e portanto ção?!
um peça de teatro devia confinar‑se a uma única e Bom, eu apesar de tudo creio que não. Há
simples acção, decorrendo num único local, e não sempre um resíduo que não se deixa assimilar pela
ultrapassando um único dia de duração. (Na ver- estupidificação da moda ou pela estreiteza da aná-
dade as observações de Aristóteles na Poética são lise, por mais intelectuais e academizantes que estas
mais descritivas do que prescritivas, e limitam‑se sejam, e esse resíduo, felizmente, é a inesgotável ca-
apenas à unidade de intriga [plot], ou de acção). pacidade da natureza humana de absorver «encan-
Todos nós mais ou menos conhecemos o tamento» onde ele realmente exista — como diz o
estrago que aquele popularíssimo e erróneo livro João:
de Castelvetro provocou na Europa culta: a ab- «Forma ou conteúdo? História ou Desenvolvi-
surda «Regra das Três Unidades» fez uma brilhante mento Interior? Realidade ou Fantasia? — São falsas
carreira e deu origem a polémicas e disputas críti- questões que dicotomizam a utensilagem de que a lite-
cas intermináveis, como por exemplo se um único ratura dispõe para cumprir uma única e idêntica fun-
dia significava 12 ou 24 horas, ou se um único local ção: entretenimento inteligente». [Realce da minha
significaria uma sala, uma rua ou uma cidade. Esta responsabilidade].
curiosa tirania dominou sobretudo a França literária (E ainda podíamos acrescentar outras falsas
revista BANG! [ 63 ]
dicotomias, como plot versus character, ideias versus caccio — que, por mérito próprio, são obras de lite-
imagens, intelecto versus emoções, etc.). ratura fantástica, sublinhe‑se. Para ser sincero, não
Se quisermos abranger todo este vasto uni- encontro na literatura clássica nenhum desdém pela
verso do confronto entre o «género fantástico» e o fantasia ou pelos elementos fantásticos».
mainstream numa outra forma de dicotomia para Isto é verdade, e o que é mais curioso é que
além destas que o João denuncia, eu talvez me atre- estes autores — e outros, como Chaucer, Froissart,
vesse a sugerir que no fundo tudo se resume a uma Malory… — a cavalo entre os sécs. XIII e XV, tal-
questão de respeito ou não respeito pelas leis da vez por serem artistas imaginativos e de alto voo,
Física (seja ela quântica ou mecânica clássica)! De tinham e propunham uma salutar ideia de fantasia,
uma forma geral — e se calhar em muitos casos in- ao passo que nos meios filosóficos (imagine‑se!),
conscientemente — os críticos têm tendência para em paralelo e até bastante tarde, se manteve uma
considerar que as matérias que constituem impossi- conservadora e arcaica ideia de fantasia, conside-
bilidades físicas não merecem acolhimento na Alta rada uma actividade da mente que se identificava
Literatura — dragões que deitam fogo pela boca ou com a suspeitosa imaginação, visto que se opunha
espadas mágicas são impossíveis, logo não podem à realidade, tanto sensível como intelectual. Para
subir ao excelso pódio literário, tal como são impos- os filósofos, a imaginação, sobretudo até ao século
síveis as viagens no tempo ou desviar planetas das XVII, ainda era considerada «maîtresse d’erreur»,
suas órbitas. O que não exclui que os directamente segundo Blaise Pascal (1623‑1662), e «la folle du
implicados em FC&F não procurem distinguir entre logis», no dizer de Malebranche (1638‑1715). Am-
as impossibilidades que a Ciência pode eventualmen- bos seguiam neste particular as pegadas de Mon-
te tornar um dia possíveis (viagens no tempo ou des- taigne (1533‑1592) que, falando daqueles «qui
viar planetas das suas órbitas), e as impossibilidades croient voir ce qu’ils ne voient point», considerava a
que a Ciência (pelo menos em princípio) não está imaginação não como um poder contemplativo e
minimamente interessada em tornar possíveis (dra- criativo do espírito, mas como aquilo que faz com
gões que deitam fogo pela boca ou espadas mágicas). que o erro e a desordem se instalem no mesmo es-
Talvez esteja aqui a mais elementar destrinça entre pírito e o tumulto se apodere do corpo!
FC e Fantástico… De ambos os impossíveis, um Mas os filósofos bem‑pensantes não desar-
pode constituir um interessante desafio para a Ciên- mam, e não obstante terem começado finalmente
cia, o outro não. a perceber a diferença, a partir do século XVIII,
entre imaginação e fantasia, mesmo assim só con-
«Forma ou conteúdo? História ou descenderam com a primeira, que passou a ser
vista positivamente, como actividade criadora e
Desenvolvimento Interior? Realidade instigadora de novas formas e novas ideias (imagi-
ou Fantasia? — São falsas questões nation is image‑in‑action), mas perante a segunda
que dicotomizam a utensilagem de não desarmaram, e a pobre da fantasia continuou
a ser uma «imaginação desenfreada e caótica», em
que a literatura dispõe para cumprir cujos meandros se perde quem queira correcta-
uma única e idêntica função: mente lidar com o mundo e planear as suas direc-
entretenimento inteligente» trizes de vida.
Ora, este curioso (e corrosivo) preconceito
Já agora, e a propósito de Fantástico, não continua a preponderar, mais ou menos disfarça-
gostaria de terminar estas breves notas sem men- damente, em muitos círculos literários e artísticos
cionar um aspecto que o David realçou, e bem, ao que aspiram ao Prémio Nobel ou ao Museu Gugge-
chamar a atenção para «as obras mais conhecidas nheim… Mesmo depois das teorizações de Freud
do Renascimento, como as de Dante, Petrarca e Boc- (as fantasias psicológicas podem constituir forças
revista BANG! [ 64 ]
poderosas graças ao poder dos desejos recalcado) lectivo desvendado por Jung. Mas, se prestarmos
e sobretudo de Dilthey e de Benedetto Croce, em bem atenção ao «mundo concreto» em que se en-
que a fantasia ascendeu ao estatuto estético e se golfam as nossas vidinhas e as nossas actividades
transformou em «fantasia poética» tornando‑se quotidianas, vemo‑lo transpenetrado a cem por
o fundamento da livre criação do artista — mes- cento por um campo invisível de radiações — ou
mo assim, dizia eu, mesmo depois das lucubrações melhor, de interacções —, gravíticas, electromag-
destes ilustres pensadores, ainda hoje se mantém, néticas e subatómicas que «governam» as nossas
pegajosamente, a ideia de que a literatura de fanta- vidas e deixam a perder de vista os prodígios das
sia é uma literatura menor — como se toda a lite- histórias de fadas e de lendárias feitiçarias: a elec-
ratura de ficção, realista ou não realista, mimética tricidade, as ondas de rádio, o telemóvel, a TV, os
ou não mimética, não fosse afinal uma literatura raios‑X, o ciberespaço, a Internet, o comando a
de fantasia: por muito «autênticas» que possam distância, a RV [Realidade Virtual], os infraverme-
parecer as personagens e as acções, a famosa e cau- lhos, a ressonância magnética nuclear, as microon-
telosa advertência que costuma anteceder certas das, os efeitos quânticos, a aceleração de partículas
obras (literárias ou fílmicas), e que diz «qualquer de alta energia…
semelhança com pessoas ou acontecimentos reais é O nosso universo, mais do que um lugar
pura coincidência», mais não é do que uma contri- fantástico, é um misterioso lugar de «encanta-
ta confissão de que tudo aquilo não passa de fingi- mento mágico», como já fazia notar Francis Bacon
ção fantasiada!!! (1561‑1626), barão de Verulam, chanceler de In-
Bem, está na hora de concluir — tenho de glaterra e filósofo, na sua famosa obra Novum Or-
pôr um travão em mim senão corro o risco de me ganum (1620): o universo e toda a sua estrutura, diz
entusiasmar e continuo por aí fora, o que não seria Bacon, é um verdadeiro labirinto para o intelecto
nada decente nem oportuno. humano que o contempla, um labirinto cheio de
Ainda bem que estas «tertúlias» se fazem, caminhos ambíguos e de aparências falaciosas de
é uma maneira expedita de irmos aprendendo o coisas e sinais, uma complexa teia de nós, espirais
que não há tempo de ler e absorver nos milhentos e contracurvas, além de que os nossos sentidos são
livros que tratam de todos estes (e outros!) excitan- enganadores e a mente humana é instável e repleta
tes assuntos, e agradeço ao David e ao João o pra- de ídolos: todo o conjunto se apresenta como visto
zer deste instrutivo e agradável convívio, e ao Luís através duma bola de cristal, simultaneamente de-
a ideia de ter lançado o desafio. Ainda por cima formante e encantada… BANG!
um convívio sobre «géneros» donde, naturalmen-
te, sobressai o «fantástico», que, em quanto género
(ou subgénero?) literário/artístico parece causar
tantos pruridos à crítica mainstrean, quando afinal
o fantástico, sob a capa mágica do invisível (ainda
que mal nos dêmos conta, por tão habituados), é
algo que preenche as nossas vidas dum modo qua-
se absorvente para não dizer sufocante — e nem
sequer precisamos de fazer apelo ao invisível dos
A revista Bang! agradece a António
reinos sagrados, religiosos, míticos ou místicos, de Macedo, João Seixas e David Soares,
preponderantes em todos os tempos e em todas as o tempo e interesse que dedicaram a esta
culturas: basta‑nos referir, por exemplo, o invisível tertúlia. Que seja a primeira de muitas.
psicológico dos sonhos, dos pressentimentos ou Os três autores estão representados neste
número da revista com outros textos,
das coincidências inexplicáveis, bem como todo o onde poderá consultar a biografia de
supra‑mundo dos arquétipos e do inconsciente co- cada um deles. BANG!
revista BANG! [ 65 ]
Anel da Memória
[ficção] [tradução de João Barreiros]

Alexander Jablokov

Um conto delicioso e surpreendente, sobre um antigo desejo de


vingança, múltiplas viagens no tempo, e as partidas que o mesmo
prega aos incautos viajantes. Afinal, o tempo não cura tudo.

SETEMBRO 1349 EC descobriu‑se prisioneiro de um par de braços que


mais pareciam aros de metal. Braços de marinhei-

M al Hugo Salomon deu um passo em frente


sobre a plataforma de chegada do Centro
Temporal iluminada pelo sol, logo notou o baloiçar
ro. Incapaz de pegar na espada, calcou o pé do ma-
rinheiro e foi recompensado com um berro de dor.
Demasiado tarde. O marinheiro começou a gritar
do convés de madeira por baixo dos pés. As monta- avisos em sueco e por toda a escuridão que havia
nhas e os brilhantes campos nevados das Rochosas em volta, ouviram‑se gritos de resposta.
tinham desaparecido, substuidos pela escuridão. Mãos rudes agarraram‑no enquanto alguém
Ficou ali, de pé, de braços caídos, sentindo os habi- acendia um archote. Os rostos dos homens em seu
tuais instantes de náusea, as vagas de tontura pro- redor pareciam pálidos e adoentados, com o brilho
vocadas pela Tempedrina, a droga que o fazia viajar da febre a arder‑lhes nos olhos. Epidemia. Um de-
no tempo. Focar‑se no navio Dagmar de Lübeck, les virou‑se, foi a tropeçar até à amurada, e vomitou
uma plataforma minúscula no meio do mar, a mil bílis no mar. Depois deixou‑se cair de joelhos e ali
e quatrocentos anos no passado, não fora nada fá- ficou, enroscado à volta da dor no estômago. Nin-
cil, mas também ainda era demasiado cedo para se guém levantou um dedo para o ir ajudar.
auto‑vangloriar. Havia alguém a mexer no Tempo, — Ó Hugh ! — disse uma voz num tom de
e ele tinha de voltar as por as coisas em ordem. plácida satisfação. — Caíste na esparrela. Aliás ti-
A brisa soprava fresca. A lua que cintilava nhas mesmo de cair. Com que então andamos a na-
sobre as águas límpidas do Báltico, transformava vegar na direcção errada ? Vieste ajudar a dar‑nos
em carroça as velas lá no alto. Nuvens emergentes a volta? É esse o trabalho de um Historiador Credi-
fervilhavam mesmo sob a Lua, anunciando uma tado ? — Andrew Tarquin deu um passo em frente.
mudança no tempo. Alguém soltou um gemido. À — Como tens andado ? Céus, — acrescentou, es-
guisa de resposta o vento mudou e Salomon foi as- pantado. — Estás mesmo velho...
solado por um fedor intenso a fezes e homens mor- Apesar dos dois terem estudado juntos, Sa-
tos. A garganta apertou‑se‑lhe. Recuou um passo e lomon estava próximo da casa dos cinquenta, en-
um dos pés foi pisar qualquer coisa mole. Deu‑lhe quanto Tarkin, um tanto ou quanto gasto, com o
um pontapé e o cadáver da ratazana deslizou por cabelo ruivo a enfraquecer, não parecia ter mais do
uma das secções do convés iluminadas pelo luar. que trinta anos. Parou de avançar e ficou ali, a olhar
Virou‑se, e acabou por tropeçar em alguém para Solomon, com as mãos apoiadas na cintura.
que soltou um berro e lhe deitou a mão. Salomon Solomon retribuiu‑lhe o olhar. O passado tem por
revista BANG! [ 66 ]
hábito devolver os seus fantasmas, mas as viagens ver o cintilar do anel de ouro no dedo, com fia-
no tempo fazem com que eles assumam uma forma pos brilhantes de esmeraldas no lugar dos olhos
material. Perguntou a si mesmo porque teria Tarkin da serpente. Onde é que ele teria arranjado o raio
decidido voltar à vida, vindo lá de que túmulo do do anel ? — Só vieste até aqui para te certificares
passado onde costumava acoitar‑se. que o barco e tripulação vão naufragar nas cos-
Solomon era um homem alto, tinha uma ca- tas da Livonia e espalhar a peste Negra por todo o
beleira encaracolada, agora a ficar grizalha, com as lado. Tal como em tempos fizeste os possíveis por
bochechas enfiadas lá bem no fundo dos ossos da garantir a morte de alguém que eu amava. E tudo
maxila. Tarkin, por seu lado, era ainda jovem, mas isto para quê ? Para preservares a tua imagem da
a sua juventude, se bem que vigorosa, tinha muitas História ? Pelo sentido do dever de um Historia-
desvantagens quando confrontada com anos e anos dor Creditado ?
de experiência. Particularmente uma experiência — Por favor, Andy, — Salomon decidiu en-
como a de Salomon, que andava há trinta anos a golir o orgulho e fazer a pergunta inevitável: — Jul-
vasculhar todos os segredos do Tempo. gas realmente que eu causei a morte da Louisa ? É
— O que queres tu de mim, Tarkin ? — per- esse o teu problema ?
guntou‑lhe entredentes. E inclinou‑se em frente, Estas palavras quase imploradas soaram‑lhe
como que a testar a força dos homens que o segura- a amargo na boca. Mas um Historiador Creditado
vam. Eram indivíduos franzinos, sujeitos às tremu- era capaz de tudo para chegar aos factos.
ras incontroláveis da febre, mas mesmo assim eram — Grandecíssimo cabrão ! — gritou Tarkin,
em número suficiente para o manterem seguro. de súbito furioso. — Devíamos ter ardido os dois
— Vocês estão a ver este tipo ? — disse Ta- juntamente com ela. Para ti, trata‑se do passado e
rkin, levantando a voz para se fazer ouvir pela tri- estás a pensar numa coisa que já aconteceu. Lem-
pulação. — Parece um homem, mas de facto é um bras‑te das nossas discussões sobre a imutabilidade
demónio que apareceu entre nós vindo das profun- do Tempo, quando andávamos a estudar, em Chi-
dezas do Inferno. Já queimou inocentes entre as cago ? Pois bem, nada mudou. Tu continuas a insis-
chamas. Temos de destruí‑lo. tir em manter essa tal imutabilidade. E eu continuo
Salomon recordou‑se uma vez mais do cre- a acreditar que nós nunca conseguiremos saber o
pitar das chamas, enquanto a estalagem ardia com que realmente aconteceu, mesmo se estivéssemos
a Louisa fechada lá dentro. Perguntas bruxulearam lá para ver...
como se fossem labaredas, mas ele esforçou‑se por Por fim calou‑se, como se estivesse à espera
as conter. Antes de mais tinha de continuar vivo. que Solomon se metesse numa daquelas discussões
O efeito deste discurso na tripulação teve o intelectuais sobre a natureza do fenómeno percep-
efeito oposto ao que Tarkin pretendia. Se a criatu- tivo.
ra que eles tinham capturado era de facto um de- Nesse preciso instante, uma súbita rabanada
mónio infernal, então ela podia arrastá‑los a todos de vento fez inclinar o navio. Viu‑se o clarão corus-
para a perdição. E dado que não partilhavam do cante de um relâmpago, logo seguido pelo trovão.
ódio de Tarkin, relaxaram a presa. A luz das tochas Uma chuva intensa começou a cair acompanhada
tremeluziu no vento que se levantava, descobrindo pelo sopro do vendaval. Tarkin gritou ordens à tri-
as formas esquivas das ratazanas contra as zonas pulação, ordenando‑lhes que recolhessem as velas,
mais obscuras do navio. O convés estremeceu ao amarrassem os panos e prendessem o leme. A tri-
sabor da ondulação crescente. pulação obedeceu‑lhe aos tropeções. Alguns dos
Tarkin aproximou‑se ainda mais de Salo- homens que seguravam em Salomon foram ajudar
mon. os companheiros.
— Em tempos fomos bons amigos, — dis- Salomon torceu‑se, enfiou o cotovelo nas
se baixinho. E ao baixar o olhar, Salomon pôde costelas de um dos seus captores e conseguiu liber-
revista BANG! [ 67 ]
tar‑se. Os homens estavam demasiado assustados Deus. Ele já deixou aquele lugar, ou seja, se é que
para poderem reagir. Aproveitou para se lançar alguma vez lá esteve.
sobre Tarkin e arrastá‑lo pelo convés. Lá no alto Era preciso uma obstinação muito especial
cintilavam relâmpagos e as vagas cobriam o navio para sermos ateus numa era em que Deus estava
de um lado ao outro. obviamente morto.
Tarkin enfiou a cunha da mão mesmo entre — Deixa de ser parvo ! — retorquiu Salo-
os olhos de Salomon, atirando‑o para trás, no preci- mon num tom seco.
so instante em que o vento arrancou com estrondo O rosto do homem fisgou‑se, e recuou um
o topo do mastro. Cordame desabou sobre os dois. passo, devagarinho, com todo o cuidado. Salomon
Tarkin rebolou pelo convés fora, enquanto tentava trazia consigo um laisse‑passer dado pelo próprio
dar‑lhe pontapés com as botas. Salomon, por seu Comité Central, ou seja, uma perfeita cópia forjada,
lado, tentava agarrar‑se a uma delas, mas acabou de modo que só o facto de estar ali, oferecia respei-
por ser varrido pela força de uma vaga. A amargu- to. O guarda balbuciou uma desculpa que Salomon
ra da água salgada encheu‑lhe as narinas e a boca. ignorou por completo.
Julgou sufocar. Seguiu aos tombos pelo convés, até O sargento da guarda, um indivíduo aze-
conseguir deitar as mãos à amurada. Percebeu que do, cheio de rugas, que parecia ter sido gordo em
estava a escorregar. tempos que já lá vão, examinou atentamente todos
Não havia mais nada a fazer. Revirou os os documentos, apesar de Salomon já ter passado
olhos, invocou o condicionamento e no instante por outros dois controlos antes de ali chegar. Era
seguinte, viu‑se deitado na plataforma varrida pelo um daqueles tipos que se agarrava ao dever, embo-
vento da Aerie do Centro Temporal, em plenos pi- ra esse dever já tivesse passado por três governos
cos nevados das Rochosas Canadianas. Depois da diferentes nestes últimos cinco anos. Agora as suas
escuridão da noite Báltica, o sol das montanhas funções consistiam em guardar as vias de acesso a
quase cegava. uma catedral abandonada.
— Que filho da puta ! — disse, e depois per- — Passe, — disse o guarda, quase contrafeito,
deu a consciência. devolvendo a Solomon os documentos falsificados.
E ele lá seguiu, escalando a última parte da encosta,
JANEIRO 2097 EC até às ruínas da catedral, com uma caixa embru-
lhada em papel de alumínio presa por um cordel

O último posto da guarda era um velho urinol


com o emblema solar e tricolor da Segunda
Comuna pintado na parte de cima. A luz pálida de
a um dos dedos, como se estivesse a caminho de
uma festa de anos. Os três guardas ficaram a vê‑lo,
perguntando a si mesmos para onde raio iria ele.
um braseiro bruxuleava no interior. Porém, quan- A elegância esguia da catedral do Sa-
do os guardas emergiram para verificar os docu- cré‑Coeur, de uma brancura de osso, desenhava‑se
mentos de Hugh Salomon, também não pareciam contra o céu, como um fóssil imenso de um crus-
estar mais aquecidos do que ele, depois de ter an- táceo abandonado pelos mares ancestrais. Dezoito
dado a escalar os píncaros gelados de Montmartre. anos antes tinha sido destruída pela onda de cho-
As plumas da respiração dos guardas foram mis- que de uma bomba de fusão de cinco megatone-
turar‑se com a neve que escorria do céu vazio e a ladas detonada próximo de Meaux. Os efeitos da
noite que deslizava sobre Paris. explosão também tinham transformado as curvas
— Com que então o encontro do costume indolentes do Marne num imenso lago tóxico. Uma
com a congregação de gralhas e pardais? — disse das cúpulas laterais encontrava‑se completamente
um dos guardas, com o bigode e a barba a cintila- desfeita. A cúpula principal mostrava uma fenda a
rem, cobertos de geada. E esboçou um sorriso, re- todo o comprimento.
velando a falta de dentes. — Não vás à procura de Salomon imobilizou‑se no topo dos degraus
revista BANG! [ 68 ]
abaulados de mármore, sem muita vontade de mer- rava a pó e a humidade. Bílis queimou‑lhe o fun-
gulhar na escuridão que o esperava do outro lado do da garganta.
das portas de bronze empenadas. Por baixo dele Tinha‑se esforçado ao máximo para chegar
só se viam as chamas ocasionais de umas quantas até aqui. Depois de ter conseguido deitar as mãos
fogueiras a marcarem aquilo que em tempos tinha a doses extras e proibidas de Tempedrina, manu-
sido a Cidade da Luz. Estes pontinhos brilhantes facturadas pelos laboratórios localizados na Ale-
pouco faziam para combater o frio que grassava no manha do século XVI e Califórnia do século XX,
topo da colina. Solomon sentiu‑se cercado por sé- encheu‑se da droga quase até ao ponto de atingir
culos de rodopio de brumas oleosas, ou seja, pelo um estado de psicose tóxica. Só assim poderia ul-
fumo da carne carbonizada. Esta era a época do trapassar as barreiras impostas que o Centro Tem-
Grande Esquecimento, quando as guerras nuclea- poral tinha colocado em torno do Grande Esque-
res tinham destruído a civilização humana e não cimento, subvertendo todos os condicionamentos
era permitida a entrada a nenhum dos viajantes psicológicos com a ajuda de um monge budista Zen
do tempo, dado que era aqui que se escondiam as do Japão do século XIII. Por fim, pediu a um gra-
raízes do Centro Temporal. O mundo fazia um tal vador Holandês que lhe forjasse o resto dos docu-
rodopio, que Solomon foi obrigado a agarrar‑se às mentos. Havia coisas em que nem um Historiador
portas para não cair. Creditado podia meter o bedelho. Agora esperava
Sufocado, fez um esforço para respirar. Lem- que todo este trabalho tivesse valido a pena.
brou‑se que, com a ajuda de Katsuro, tinham con- Quando a figura que permanecia sentada
seguido eliminar os bloqueios autonómicos dos à sua frente se tornou mais nítida, Solomon parou
nervos, mas a verdade é que existia ainda um outro mesmo à beira do círculo de luz projectado pela
nível de condicionamento bem mais profundo. vela e respirou fundo. Sentia a cabeça tão pesada e
— Entra, Hugh, — disse uma voz líquida e tosca como a própria catedral.
pulsante vinda do interior. Solomon não conseguiu — Se você é quem pretende ser, — disse,
perceber se se tratava de um homem ou de uma cauteloso, a remoer todas as palavras, — já sabe
mulher. — Olha que ainda dás cabo de ti, — termi- qual é a pergunta que eu vim aqui fazer. E caso não
nou a voz num risinho. Salomon passou por cima seja, acho que nem sequer vale a pena fazê‑la.
dos pedaços estilhaçados de mármore e penetrou A lógica era como uma erva quebrada que
na nave. A escuridão colou‑se‑lhe ao rosto como de tanto raspar havia de furar‑lhe a mão, mas a ver-
um sudário. Fazia mais calor no interior da igreja. dade é que não tinha mais nada em que se apoiar.
Aliviado, percebeu que conseguia respirar de novo. A voz riu‑se:
— Vem por aqui. Vem ter com a mãezinha! — Ou- — Não tenho pretensões a coisa nenhuma,
viu‑se uma raspadela seguido de um silvo e uma Hugh. Talvez a resposta já esteja dentro da tua ca-
vela acendeu‑se e começou a cintilar na outra ex- beça, e tu tiveste todo este trabalho para nada. Mas
tremidade da catedral. Uma mão lisa e gorducha, vá lá, vá lá, não há razões para teres medo. Pelo me-
com os dedos coberto pelo brilho de vários anéis, nos aqui. E agora. — soltou mais um risinho — Foi
segurava no fósforo. Lábios invisíveis sopraram, para isso que vieste, Hugh ? A pergunta é banal, fá-
apagando‑o. cil de responder. Queres saber a hora e o lugar da
Solomon dirigiu‑se devagarinho na direc- tua morte ?
ção da vela, fazendo deslizar os pés sobre o pa- Solomon gelou durante alguns segundos,
vimento irregular coberto de detritos. As formas com a respiração ofegante. Se ela era aquilo que
obscuras das estátuas, os bancos empilhados e as as histórias contavam, podia mesmo dizer‑lhe isso,
cruzes que havia em volta, dançaram brevemen- com toda a exactidão. Como um homem à beira de
te ao sabor da luz, desapareceram durante alguns um precipício, a pensar no que lhe aconteceria se
momentos e depois voltaram a dançar. O ar chei- saltasse, sentiu‑se atraído, mesmo sem querer. Ha-
revista BANG! [ 69 ]
via de ficar a saber tudo, sem que restasse nenhuma rinhando a cobertura por todos os lados, depois
dúvida quanto ao seu destino. deu‑lhe uma dentada e começou a mastigar com as
— Não ! — a palavra foi‑lhe arrancada à gar- bochechas cheias e os olhos revirados de prazer. Os
ganta. Inclinou‑se sobre a mulher, mergulhando na cabelos baços e sujos pendiam‑lhe à volta do rosto.
luz que brotava da vela, com as mãos feitas garras. Tal como certos homens santos e vários místicos
— Se tentares dizer qualquer coisa, eu... ao longo da história, a glândula pineal dela tinha
— Tu o quê, Hugh ? Não sejas parvinho. a capacidade de sintetizar um químico semelhan-
Se sei quando é que tu vais morrer, também hei‑de te à Tempedrina. De modo a conseguir fazer isso,
saber quando é que eu morro. E não será esta noi- precisava apenas de um precursor químico — The-
te, Hugh, podes crer. E como tu também não vais obroma, o Alimento dos Deuses, ou seja, o choco-
morrer esta noite, não te vou dizer mais nada. E late. Sob a sua influência, as voltas e as torções do
agora, não queres conversar? Tempo tornavam‑se‑lhe visíveis. Quem realmente
Moira Moffette era uma mulher horrorosa- ela era e o modo como tinha vindo aqui parar, a
mente gorda, alapardada sobre aquilo que em tem- estas ruínas do Sacré‑Coeur século XXI, ninguém
pos fora o trono de um bispo. A luz da vela fulgia sabia ao certo, embora Salomon andasse desde há
sobre os brocados peçonhentos da túnica e sobre o muito a recolher todos os boatos e rumores que
anel perdido no meio das pregas de carne dos de- lhe dissessem respeito. Podia ter sido uma Druida,
dos. Um par de pezinhos enfiados em pantufas de- uma feiticeira, uma Sacerdotisa da Magna Mater,
bruadas, emergiam do fundo do fato, pendurados uma deusa da fertilidade Neanderthal, uma dona
no ar. O rosto era liso e bolachudo. Pestanas com- de casa viciada em chocolate com uma fisiologia
pridas e lustrosas escondiam‑lhe os olhos cegos. anómala, ou mera distorção dos sentidos provoca-
Sorriu‑lhe, pondo à mostra os dentes estragados e da por uma overdose de Tempedrina.
disformes: — Então conta lá, Hugh ! O que é que me
— Correspondo à descrição, Hugh ? Faço querias perguntar ?
votos que não estivesses à espera de encontrar uma Solomon fez uma pausa, indeciso:
beleza. A história é uma ferida purulenta, e os ver- — Desejo encontrar Andrew Tarkin.
mes que se alimentam dela nunca foram bonitos. A mulher soltou uma exclamação, meio en-
Isso chateia‑te, irmão verme ? Deixa lá. Conta‑me gasgada. Os olhos cegos esbugalharam‑se.
o que vieste aqui fazer... — O pedido foi feito num — Ai, ai... Mas ele está em todo o lado...Cru-
tom de criança ansiosa. za‑se a si mesmo vezes e vezes sem conta. Como
Salomon abriu o pacote, com o papel de alu- é possível que nunca o tenhas encontrado? Afinal,
mínio a restolhar no meio de cintilações. Hugh, tu também estás em muitos lugares ao mes-
— Uma Sachertorte. Do Konditorei Demel, mo tempo. — Depois começou a rir‑se, cuspinhan-
Viena, 1889, EC. do pedacinhos semi mastigados de bolo por todos
Tinha passado por lá para tomar um café, no os lados. — Vingança, já percebi tudo. Trata‑se de
interior feito de mogno e cristal, e depois dado uma uma questão de vingança pessoal. Tu sempre tives-
volta em pleno calor primaveril, no meio das se- te muita piada, Hugh !
nhoras com guarda‑sóis e cavalheiros de cartolas, — Nunca me viste antes ! — replicou Solo-
todos eles com os rostos tão límpidos e puros como mon.
o céu. Abriu a caixa e o ar bafiento encheu‑se com — Mas a verdade é que sempre tiveste piada,
o perfume rico dos chocolates vienenses. não é, mesmo que eu nunca te tenha encontrado
— OOOH ! — guinchou Moffette. — Hugh, ? Estás a raciocinar abaixo das tuas capacidades,
meu lindo ! Dá cá, dá cá. Oh ! Oh! Com conser- Hugh. Pergunto a mim mesma porque te deste ao
va de alperce entre as camadas. Que maravilha! trabalho de viajar até tão longe só para tratares de
— Agarrou‑se ao bolo com ambas as mãos, espar- uma questão pessoal perfeitamente parva.
revista BANG! [ 70 ]
— Não é pessoal. O filho da mãe tentou ma- Hugh. Foi essa a pergunta e esta foi a resposta.
tar‑me. Solomon começou a tremer, de súbito en-
— Mas não há nada mais pessoal do que regelado. Fazia mesmo frio, nesta porcaria de ca-
isso, não concordas comigo, Hugh ? tedral. Como é que ela conseguia suportar isto, ali
— Ele anda a tentar deformar o Tempo e sentada, só a comer chocolates? Mas Deus do Céu,
pode dar cabo de nós todos. Será que não percebes Chicago? Outra vez não...
isso ? — Agora desaparece, Hugh. Já estou farta de
— Nunca ter nascido não significa o mesmo te aturar. Se fosses esperto, voltavas para o Centro
que morrer, Hugh. Temporal e passavas uma esponja por tudo isto. As
— Deixa‑te de brincadeiras, — insistiu Salo- pessoas estão sempre a tentar matar‑nos. Temos de
mon. — Comeste o bolo, agora vê lá se respondes à aprender a não levar as coisas tanto a peito. Olha,
minha pergunta ! boa noite !
— A Menina Moffette estava muito bem Moira apagou a vela com um sopro e deixou
sentada no seu Tophet — cantarolou a mulher Solomon a encontrar o caminho de saída em plena
numa voz infantil. — Escuta o que ela vai dizer e escuridão.
reza. — Soltou uma risadinha. — Gostaste ? Fui eu
que inventei. Quem me dera conseguir terminá‑lo. JULHO 1902 EC
Pois bem, Hugh. Queres saber onde pára o Andy
Tarkin? Ou pelo menos julgas que queres encon-
trá‑lo. À tua vontade. — De súbito revirou os olhos
e começou a tremer. A respiração soava ofegante
A pesar de já ter passado da meia‑noite, as ruas
continuavam apinhadas de gente. A Levee
espalhava‑se à volta de Solomon como uma ramei-
e a boca emitiu um som parecido com o ganir de ra que tivesse acabado de ganhar o suficiente para
um cão. Ao fim de alguns minutos a respiração tor- poder enfim cair de bêbada. Apesar de ser o mais
nou‑se mais regular. — Chicago, Hugh. Na Levee, vasto distrito aberto ao vício dos Estados Unidos
já ouviste falar ? Doze de Junho de 1902. Um bar- da América, afinal não continha mais do que uns
zito, um entre centenas, chamado Lone Star Saloon quantos quarteirões na zona sul de Chicago, jun-
e Palm Garden. Depois da uma da manhã numa tamente com tascas, salas de dança, antros de jogo,
das mesas do fundo. Ele vai estar a beber aquilo a poços para combates de cães e lojas de penhores.
que se chama bourbon, mas que afinal não é. — A Era também o sítio que os evangelistas mais gosta-
mulher inclinou‑se para trás e cerrou os olhos, ob- vam de visitar.
viamente cansada. Salomon deslocava‑se com rapidez pelo
— Mas, — disse Solomon — mas... A Le- meio das ruas devidamente iluminadas a gás, sem
vee... foi onde... olhar em volta, com receio de encontrar uma có-
Moira voltou a abrir os olhos, furiosa: pia mais jovem do que ele. Este aspecto furtivo era
— Sei muito bem onde isso é, Hugh. Consi- coisa habitual na Levee, de modo que ninguém
dera a situação como a semana do regresso a casa. lhe prestou atenção. Gargalhadas etilisadas chega-
Também sei onde ela está, a nossa querida Louisa. ram‑lhe aos ouvidos vindas de uma janela aberta
Sem esquecer onde se encontra o jovem Hugh So- num prédio de três andares. Passou perto de um
lomon. Deves ter sido um rapaz giro, Hugh. Um negro com um coco maior do que a cabeça, que
Historiador Creditado ainda jovem. Andy Tarkin logo lhe quis vender “uns pózinhos para rir”. Salo-
está lá. Não o jovem Tarkin, aquele que foi amigo do mon esforçou‑se por resistir à tentação de parar ali,
jovem Hugh. Nem sequer aquele, um pouco mais durante alguns momentos e negociar com ele. Às
velho, que tentou afogar‑te no Báltico. É aquele que vezes era demasiado fácil adaptarmo‑nos à época
precisas de encontrar, Hugh. É uma distância mui- em que estávamos. A Tempedrina reduzia a mente
to grande para irmos à procura de um velho amigo, humana a uma identificação com um tempo que
revista BANG! [ 71 ]
não era o nosso. Salomon empurrou as portas du- instrumento capaz de viajar no Tempo, tendia a
plas do Lone Star e Palm Garden Saloon. permanecer na sua época de origem.
Fazia escuro no interior, uma escuridão fu- Partiram juntos, como dois velhos amigos,
marenta e cheia de ruídos. Salomon atravessou a Solomon a rir e a cantarolar, Tarkin meio aparva-
sala, passou no meio de bocas escancaradas a rir, lhado, aos tropeções.
onde era possível verem‑se vários dentes de ouro, — Bebeste demais, Billy, — disse Salomon,
cruzou mulheres cujos rostos pareciam transfor- para que os utentes do bar o ouvissem, mas nin-
mados em máscaras pintadas de palhaços, fixas guém lhe prestou atenção. — Já te expliquei, mas tu
num esgar de falsa alegria, rumo a uma figura ala- não ligaste nenhuma... é tempo de voltarmos para
pardada sobre uma mesa do fundo. casa...
Deu uma pancada seca, com o cotovelo, por — Tempo... — disse Tarkin. — Tempo...
detrás da orelha esquerda de Tarkin, de modo a in- A viela nas traseiras era um bom local de
sensibilizar os centros responsáveis pelas viagens partida. Havia uns quantos corpos caídos em redor,
no tempo enquanto lhe picava o rabo com uma bêbados ou drogados, tão importantes para o caso,
agulha que trazia amarrada ao joelho direito. Foi como os candeeiros e os gatos, que ainda não ti-
tudo tão rápido que ninguém no bar se deu conta nham parado de reclamar. Salomon poisou Tarkin
de nada. no chão.
Tarkin virou‑se com um brilho vítreo nos — Co... mo vai o nosso marinheiro ? — dis-
olhos. Ainda conseguiu mostrar uma expressão de se Tarkin, com a voz entaramelada. — Fica saben-
ódio, embora já mal pudesse controlar os músculos do que desisti de tentar matar‑te depois do caso
do rosto. do Dagmar. Dei‑me conta que haverias de vir ter
— Tu outra vez ? Nunca mais aprendes, pois comigo, contas feitas. E estava cheio de razão. —
não ? Depois deixou pender a cabeça sobre os tijolos do
Salomon observou‑o, horrorizado, porque beco com um som cavo. Salomon examinou‑lhe o
este homem era bem mais velho do que ele. Quase crânio. Partido não estava, mas havia de ter ali um
não se parecia com o jovem que o tinha capturado galo enorme, no dia seguinte. Como é que raio se
no Dagmar de Lübeck. O cabelo de Tarkin, que em dizia “galo” em Russo ? Custava‑lhe a aceder aos
tempos era ruivo, estava todo branco e desgrenha- termos correctos, mas a verdade é que, dentro em
do. Salomon apertou‑lhe brutalmente a mão. Ape- breve, não ia conseguir pensar ou falar doutra ma-
sar da droga, Tarkin esboçou uma careta de dor. neira. Ah, sim, Shishka. Do mal o menos.
— Onde é que foste arranjar isto, Andy ? — Agora vamos lá a saber certas coisas...
— O anel no dedo de Tarkin tornou‑se num foco — disse Solomon.
conveniente para a sua raiva. Murmurou as palavras de libertação e o beco
Tarkin esboçou um sorriso débil mas triun- ficou vazio.
fante:
— Nem queiras saber. Acredita em mim, FEVEREIRO 1930 EC
olha que não queres mesmo.
— Estou farto de aturar pessoas a dize-
rem‑me aquilo que eu não quero saber, — comen-
tou Solomon, enquanto injectava Tempedrina na
O Coronel Fedoseyev inclinou‑se sobre a cadei-
ra, com o queixo apoiado nas mãos, e pôs‑se
a olhar com todo o desprezo de que era capaz, para
artéria carótida de Tarkin juntamente com um ini- o prisioneiro Shishkin. Estávamos no quarto dia
bidor sináptico, de modo a diminuir a inércia tem- do interrogatório, mas já se sentia cansado até aos
poral. Já era difícil arrastarmos uma pessoa através ossos. Devia ser da idade, de certeza. Em tempos
do Tempo, quanto mais se ela não estivesse devi- que já lá vão, conseguia trabalhar numa cadeia de
damente condicionada. A mente humana, o único produção quase sem a ajuda de ninguém, e agora
revista BANG! [ 72 ]
olhem‑me só para ele. Tinha os olhos ramelosos seyev enquanto lhe ia contando tudo aquilo que ele
e cada respiração exigia um esforço considerável: queria saber.
raios partam isto, e ainda por cima não era ele Fedoseyev empurrou a cadeira para trás,
quem estava sentado num banco desconfortável de levantou‑se e deu a volta à secretária. Os tacões das
madeira, colocado no meio da sala. botas clicaram contra os ladrilhos do pavimento,
A jarra de cristal, cuidadosamente polida, en- agora todos riscados. A sala fizera em tempos par-
cheu o ar de múltiplos reflexos quando Fedoseyev te do Directório dos Teixteis. Quadrângulos de um
a inclinou para encher um copo de água. Não é que azul mais escuro, recortados nos padrões do papel
tivesse sede, mas o prisioneiro, alimentado à base das paredes, mostravam os lugares onde antes esta-
de comida salgada e privado de água, devia tê‑la, de vam penduradas as tapeçarias. Querubins de ges-
certeza absoluta. Mas será que ele percebia o que es- so, poeirentos e lascados, sopravam trombetas nos
tava a passar‑se? Fedoseyev esforçou‑se por engolir cantos do tecto alto.
o líquido tépido e desenxabido, como se estivesse O bofetão acertou em cheio, sem aviso prévio.
muito satisfeito, enquanto dava estalinhos com os A cabeça do prisioneiro saltou para o lado fazen-
lábios. Sentia‑se inchado. Só lhe apetecia deitar‑se do‑o estremecer. O ruído do estalo encheu a sala
e dormir durante um bom milhar de anos. de ecos antes de se desvanecer. O Capitão Salomo-
Água escorregou pela borda do copo e foi nov, sentado em silêncio na sua secretária provida
provocar uma nova mancha escura no tampo ver- de caneta, tinteiro e caderno de apontamentos, le-
de da secretária, avivando a cor da cobertura em vantou a cabeça daquilo que estava a escrever, com
tonalidades douradas. A verdade é que o Estado o rosto esguio cuidadosamente inexpressivo. Havia
Soviético precisava mesmo de ouro. um poucochinho de sangue no canto da boca do
—Vamos lá começar outra vez, certo? — disse prisioneiro. Uma gota, apenas.
Fedoseyev num tom pesado. — Quero que me di- Fedoseyev agachou‑se, enorme como um
gas o nome do joalheiro e onde é que ele se encon- urso, pegou na mão do prisioneiro e olhou‑o nos
tra presentemente. depois disso vais poder beber a olhos. Shishkin devolveu‑lhe o olhar, fixamente,
água que te apetecer. E dormir. — Ah, dormir ! como um estrangeiro a ver um jogo desconhecido
— Mas não voltes a contar‑me essas tretas das Mil e sem perceber de todo as regras que o governavam.
Uma Noites. Olha que eu não sou parvo! — O ouro não é como a águia, um animal
Shishkin parecia não ter escutado nada. Que solitário. — O rosto de Shishkin transformou‑se
parasita ! Reparem só naquele tipo, ali sentado, a num esgar, à medida que Fedoseyev lhe ia torcendo
debitar disparates ! Fedoseyev tinha ouvido rumo- a mão. — Nada disso. O ouro faz parte de um reba-
res que havia gente a recolher moeda estrangeira, nho. Tal qual as vacas. E os carneiros. Estamos en-
graças à venda dos Rembrants do Hermitage aos tendidos ? — Mais outra torcedela. — Onde é que
milionários do Ocidente. Capital que os Sovietes param as irmãzinhas desta peça ? E onde é que está
necessitavam em desespero de causa. E esses filhos o Pastor ? — O anel no dedo do prisioneiro cintilou
da mãe, que pareciam estar em todo o lado, não fa- à guisa de resposta.
ziam outra coisa senão arrebanharem o tal ouro. Contrafeito, Fedoseyev ficou a observá‑lo
O boato tinha vindo da polícia secreta, a OGPU: durante alguns instantes. O anel tinha a forma de
agarrem tudo o que puderem! Apanhem o ouro! uma serpente a morder a cauda, com o brilho intri-
Espremam‑nos! Façam‑nos suar as estopinhas! cado das escamas a sugerir um certo toque orien-
Atentem às necessidades da Nação! E foi por causa tal. Os olhos eram jóias verdes. Não admira que o
disso que Shishkin, com os cabelos brancos espa- prisioneiro tivesse inventado histórias tão dispara-
lhados em todas as direcções, estava agora sentado, tadas. Mas a verdade é que o anel era mesmo feito
todo encolhido, na sala dos interrogatórios, como de ouro, puro e denso, não devia ter mais do que
um insecto pálido, a dar cabo da cabeça ao Fedo- uns doze anos, embora parecesse ligeiramente der-
revista BANG! [ 73 ]
retido, como se entretanto tivesse passado por um seyev, com origem lá na aldeia onde os dois tinham
fogo intenso. nascido, ou mesmo durante os tempos passados no
O corpo de Shishkin começou a estremecer Liceu. Esta era uma situação ideal para um oficial
entre dois soluços: da OGPU, bem colocado, se poder vingar de velhas
— Já expliquei tudo, — suspirou, num russo desavenças.
meio tosco. — O anel foi feito por encomenda, para Subitamente irritado, Fedoseyev inclinou‑se,
oferecer a alguém que eu amava. Há muito tempo... torceu o braço do prisioneiro por detrás das costas
na... na... e puxou‑lhe pelo anel. A jóia escorregou do dedo
— Maravilhosa Arábia ? — roncou Fedo- com surpreendente facilidade. Shishkin deixou‑se
seyev — Miserável ! Fica sabendo que eu estou far- ficar dobrado sobre a barriga, ainda sentado no
to das tuas histórias da treta ! — Depois virou‑lhe banco, a olhar para coisa nenhuma.
as costas e ficou a olhar através da janela, enquanto — As caravanas saem de Aleppo durante
passava a mão pelo crânio rapado. As torres do Kre- o Inverno, — disse Shishkin — Eu vi a... mesqui-
melin agigantavam‑se à esquerda, contra o céu que ta de Jani Zakariyah a brilhar em tons de azul... O
escurecia. Decentes estrelas vermelhas tinham ain- homem de Bukhara fez‑lhe um anel do mais puro
da há bem pouco tempo substituído as águias bicé- ouro...Gostava tanto dela... julguei que a tinha quei-
falas que continuaram a sobrepor‑se‑lhes durante mado, ele que dizia ser meu amigo... guardei‑o du-
os doze anos que se seguiram à Revolução. Mas que rante todos estes anos...
raio estava errado nesta história ? Era óbvio que o Shishkin já tinha atingido aquele ponto no
tipo estava mesmo desfeito. De boa vontade debita- qual a palavra “interrogatório” deixava de ter senti-
va todos os pormenores, descrevia detalhadamen- do. Por seu lado, Fedoseyev perdeu todo o interesse
te o aspecto do joalheiro, os seus hábitos, o lugar em continuar com toda esta treta. Afinal, estáva-
onde trabalhava. Se tivesse sido a mãe dele a fazer o mos em 1930. Fedoseyev e os seus esbirros ainda
anel, Shishkin já a teria denunciado há muito tem- se encontravam a mergulhar, centímetro a centí-
po. Porque seria então, que tudo quanto ele con- metro, no estado de selvajaria, como um homem
tava, parecia perfeitamente disparatado ? O anel que se afunda aos poucos numa banheira de água
era verdadeiro. E por consequência, se Fedoseyev quente. Dentro de dez anos, pruridos como este
fizesse uso das quase esquecidas operações lógicas haveriam de parecer ingénuos. Por essa altura Fe-
que tinha aprendido na escola e que estava certo de doseyev ficaria a saber que todos os interrogatórios
ainda poderem ser aplicadas, o joalheiro também não passavam de sessões de tortura, do princípio
devia ser real. Mas a verdade é que o tipo se limita- ao fim, e que os resultados obtidos seriam apenas
va a vender brincos às mulheres dos membros do considerados como um efeito colateral de pouca
Partido, vivia numa cidadezinha bem comportada importância. Mas dentro de dez anos, Fedoseyev já
da Ásia Central Soviética e nunca tinha posto os estaria enterrado nos campos dourados da Kolyma,
pés em Bagdade, ou Aleppo, ou fosse lá onde fosse. morto de frio, depois de ele próprio ter sido captu-
Fedoseyev não achava graça nenhuma interrogar rado e interrogado.
lunáticos. Deu umas palmadinhas nas costas de
Franziu o sobrolho na direcção de Solomo- Shishkin:
nov, que permanecia sentado, muito atento, com — No outro dia esteve aqui uma gaja, — co-
a caneta suspensa sobre o livro de apontamentos. mentou em confidência. — Uma menina do cam-
Tinha sido o próprio Solomonov quem trouxera o po, a armar‑se aos cucos. Aguentou durante um
prisioneiro, como se estivesse especialmente inte- dia e meio, e depois despejou tudo. Miúda esperta.
ressado neste caso particular, sempre a tomar nota Escondeu aquilo nas partes privadas. Bem lá no
de todos os delírios debitados pelo prisioneiro. De- fundo. Que grande porcaria. É isto o capitalismo.
via tratar‑se de uma questão pessoal, pensou Fedo- Duzentos rublos falsificados, feitos de bronze com
revista BANG! [ 74 ]
uma película de ouro. Devias tê‑la visto a vociferar: seria o próximo criminoso — não, que raio, afinal
“Parasitas! Parasitas! Vocês tinham razão em dar ele estava de partida, não ia ficar o resto da vida
cabo deles!”. aqui, na Moscovo dos anos 30. Contava seguir para
Fedoseyev soltou uma risadinha ao lem- Aleppo, rumo àquela época revelada pelo interro-
brar‑se do sucedido e depois parou de repente. gatório. Talvez quando lá chegasse, conseguisse pôr
Foi sentar‑se à secretária, puxou de uma as ideias em ordem. Demasiada Tempedrina fazia
folha de papel e assinou‑a. Sem mais uma palavra mal à saúde. Fazia mesmo.
empurrou a folha na direcção de Shishkin que, de- Levou Tarkin escadas abaixo, passando por
pois de alguns instantes de perplexidade, também cima dos grampos de bronze que se esforçavam
a assinou. E foi assim que o prisioneiro Shishkin se por prender uma alcatifa há muito desaparecida
descobriu condenado a dez anos num Goulag, sob e entregou‑o ao tenente sentado à secretária, jun-
a Secção 10: Agitação anti‑Soviética. tamente com toda a papelada onde estava lavrada
Fedoseyev atirou o anel ao ar. Este subiu a ro- a sentença. E ali o deixou, para ser absorvido no
dopiar e a cintilar antes de voltar a desaparecer‑lhe império dos campos de trabalhos forçados. Duvi-
na mão imensa. Já estava mais que farto desta treta dava que o idoso Shishkin conseguisse sobreviver
toda. Era um indivíduo brutal mas não aquisitivo, mais do que um ano da sentença de dez. Termina-
mostrando selectividade tanto nos vícios como nas do o serviço, Solomon atravessou o átrio pavilhado
virtudes. Por isso lançou o anel na direcção de So- a mármore, dobrou uma esquina e desapareceu de
lomonov que, surpreendido, o agarrou meio atra- vista.
palhado. Quanto ao tenente, entreteu‑se a preencher a
— Leva‑o lá para baixo, — disse Fedoseyev. respectiva papelada. O prisioneiro Shishkin foi en-
— Segue no próximo transporte. viado para uma cela na prisão de Butyrki. Depois
Depois pôs‑se a olhar através da janela. Nes- de passar um mês enfiado numa cela juntamente
sa tarde, a neve começava já a escorregar do céu e com mais quarenta prisioneiros, levaram‑no, certa
os telhados que mal se conseguiam ver sob a janela, noite, numa Maria Negra, para a Prisão de trânsi-
estavam cobertos por um manto de brancura. to das Portas de Kaluga situada nos arredores de
Salomonov fez uma continência ao coronel Moscovo. Duas semanas depois enfiaram‑no num
da OGPU — que não ligou nenhuma a este acesso comboio que seguia na direcção do Leste, rumo ao
de precisão militar — e conduziu Andy Tarkin para seu eventual destino, a Sovetskaya Gavan, na outra
fora da sala. Atravessaram corredores intermináveis, extremidade da União Soviética. A viagem haveria
ladeados por portas que conduziam a celas e outras de durar vários meses. Durante uma semana e meia
salas de interrogatórios. Solomonov assobiava sem o comboio ficou imobilizado num desvio perto de
jeito nenhum, esforçando‑se por ignorar a presen- Irkutsk. Quando por fim puderam pôr‑se outra vez
ça do prisioneiro, este típico parasita anti‑soviético. em marcha e os guardas arrebanharam todos os
Era bom trazer aos ombros as insígnias da OGPU, prisioneiros, de modo a poderem recolher os cor-
ver o respeito que lhe prestavam os outros oficiais pos daqueles que entretanto tinham ficado gelados
do Exército Vermelho, e o ar de susto nos rostos no interior dos vagões não aquecidos, não conse-
dos Professores Catedráticos da Universidade de guiram encontrar traço do prisioneiro Shishkin.
Moscovo. Era bom, finalmente, receber um pouco Espancaram os restantes, mas a verdade é que nin-
do respeito que lhe era devido... mas que raio de guém se lembrava da cara de Shishkin. Os guardas
coisas estava ele a pensar? Solomonov... ou melhor, reuniram‑se, combinaram o que tinham a combi-
Solomon, olhou de esguelha para o rosto inexpres- nar, e o prisioneiro Shishkin desapareceu para sem-
sivo de Tarkin e esforçou‑se por controlar o que lhe pre de todos os registos tal como tinha conseguido
ia na cabeça. Lembrou‑se do interrogatório que já desaparecer do interior do vagão e deste momento
durava há três dias, perguntado a si mesmo quem da História.
revista BANG! [ 75 ]
tipo de chamas, até que não houvesse mais nada
NOVEMBRO 949 EC senão cinzas. Desta vez as coisas estavam mesmo
más.

—E stica a minha alma, ó meu Deus, —


murmurava Abdullah Ibn‑Umar com
os seus botões, enquanto passava o fio de ouro pelo
— Ó meu Deus, as Tuas visões trespassam
o meu coração como lanças gregas.
E de súbito tudo voltou ao normal, o fio
orifício na placa de ferro, reduzindo‑lhe ainda mais tornou‑se num simples fio, feito de ouro. Bukhari
o diâmetro. — até que eu tenha um comprimento pegou nas pinças e retomou o trabalho.
infinito e uma espessura de nada... — Dá licença ? — À porta da loja de
O fio era agora tão fino quanto um talo de al‑Bukhari apareceu um homem alto, com uma
erva, adequado para fazer brincos, mas al‑Bukahari maxila poderosa e maçãs do rosto elevadas, enver-
não tinha intenções nenhumas de parar até que este gando as vestes de um mercador itinerante. Tinha
ficasse da espessura de um cabelo humano. Tinha os olhos a brilhar de dor e raiva, de culpa e ódio não
outros trabalhos bem mais delicados em mente. consumado, ou pelo menos era assim imaginou
— Passo a passo, assim aumenta a nossa per- al‑Bukhari. Percebeu que o homem tinha acaba-
feição, mas nunca vamos conseguir chegar até Vós, do de cometer um acto terrível. Fátima, a primeira
ó Allah! esposa de al‑Bukhari, era uma mulher sensata que
Com uma faca afiada aguçou o primeiro muitas vezes lhe pedia que controlasse as suas vi-
centímetro do fio e enfiou a ponta na minúscula sões fantásticas. Estava sempre a prometer‑lhe que
cavidade da placa. Por fim, virou‑a ao contrário, sim, mas acabava por nunca cumprir a promessa.
pegou na extremidade emergente com a pinça e Nunca conseguiu explicar‑lhe que essas visões vi-
puxou o fio cá para fora. nham do outro lado do tempo, pela simples razão
— Tira‑nos o metal e nós deixamos de exis- que ele também não o sabia. Al‑Bukhari teve medo,
tir, mas continuamos a fazer parte de ti, ó meu não por ele, mas pelo bem estar do visitante. O ho-
Deus ! mem carregava um fardo pesado, a alma estreme-
Fez tanta força que os músculos saltaram cia‑lhe, meio esmagada, como um camelo prestes
sobre o braço e os ombros nus. a soçobrar.
O mundo era um cristal que cantava ao — Chamo‑me Suleiman Ibn‑Mustar, —
ser acariciado pelas mãos de Allah. Os homens disse o estranho. — Podemos conversar um bo-
esforçavam‑se por escutar mas não conseguiam cadinho ?
ouvir mais nada além de ecos e murmúrios. En- Al‑Bukhari pôs‑se de pé e apressou‑se a ir
quanto ia trabalhando, Bukhari escutava ruídos até à porta da loja. Os clientes devem ser sempre
sinistros, sons de vagas a baterem na costa, ho- bem tratados, como a Fátima nunca se cansava de
mens a morrer. Ecos que se distorciam e transfor- dizer. Al‑Bukhari era um homem forte, gorducho,
mavam, tornando o bem no mal. O fio cintilante na casa dos trinta, com a barba curta já a ficar gri-
era agora uma serpente dourada, a estorcer‑se em salha. Tinha um olhar de esguelha e uma voz po-
agonia, a enroscar‑se em torno da esfera da Terra, derosa que o tornava num bom leitor do Corão,
até conseguir morder a própria cauda. E por onde na Mesquita, quase todas as sextas‑feiras.
a barriga da serpente raspava, brotavam chamas. — Entre e sente‑se aqui...
Veio‑lhe ao nariz o fedor acre dos incêndios e o Acomodaram‑se sobre a carpete, de pernas
travo acre da bílis queimou‑lhe o fundo da gar- cruzadas. Zaynab, a segunda mulher de al‑Bukha-
ganta. Parou de puxar pelo fio e cobriu os olhos ri, serviu‑lhes bebidas refrescantes, feitas à base de
com as mãos. Sentiu lá fora a proximidade das mel e água de rosas. Terminada a tarefa, a mulher
chamas e ouviu o relinchar de um cavalo. A alma desapareceu na escuridão da casa, pela porta dos
de um homem costumava ser consumida por este fundos. Enquanto o visitante falava, al‑Bukhari
revista BANG! [ 76 ]
voltava‑lhe ocasionalmente as costas para alimen- ar a prender pessoas para o resto da vida.
tar o braseiro. A loja estava cheia de martelinhos de Mas não viu o anel que procurava. Todos
precisão, pinças, tenazes, bigornas e outros equipa- eles evidenciavam uma técnica semelhante, embo-
mentos. ra com um estilo diferente.
— Então como posso ajudá‑lo ? Olhou para al‑Bukhari :
De súbito, Solomon sentiu‑se confuso. O que — Vendeu recentemente um anel, com a for-
teria a sua busca a ver com este homenzinho enér- ma de uma serpente a morder a cauda ?
gico e a sua vida nesta esquina do Tempo? Contu- — Uma serpente... não. Nunca fiz tal anel.
do, sem que soubesse porquê, este tipo parecia ser — Parecia assustado. — Com a cauda na boca...?
importante. — Como é que Suleiman sabia da sua visão da ser-
— Quero fazer uma compra. pente dourada ? Levantou‑me, de súbito muito agi-
Al‑Bukhari mostrou‑lhe os seus trabalhos, tado. — Por favor... Tenho de voltar ao trabalho, e
quase todos feitos e ouro e esmalte, brincos, alfine- está a fazer‑se tarde.
tes para turbantes e ornamentos para os cintos Percebeu que este homem, Suleiman, era um
— Você não é daqui, — disse Solomon. Pe- indivíduo perigoso. Quem seria ele ? Em nome de
gou numa braçadeira e enfiou‑a no pulso, deixando que demónio ?
que um raio de sol caísse sobre ela e se fragmentas- Solomon também se pôs de pé, surpreen-
se num milhar de estilhaços cintilantes. dido e ao mesmo tempo desconfiado. Saberia o
— É verdade, — respondeu al‑Bukhari. — joalheiro mais do que parecia demonstrar ? Seria
Sou de Bukhara, que está a dois meses de viagem. um aliado de Tarkin ? Desejou ter Fedoseyev ao seu
— Deve ter saudades de casa... — Solomon lado e uma sala confortável de interrogatórios onde
poisou a braçadeira e pegou numa caixinha para pudesse descobrir a verdade...
jóias feita de carmelina e ónix. — O seu trabalho Al‑Bukhari deslocou‑se rapidamente até à
é excelente. Prendas com esta não deixariam de ser entrada da loja onde se quedou, imóvel. Do outro
bem‑vindas nas bodas de al‑Ma’mun, ou no ban- lado da rua, a caminhar no meio da multidão, viu
quete real de al‑Mutawakkil... um Ifrit. Nem se atreveu a respirar. Porque andaria
Al‑Bukhari enrubesceu de prazer: à solta um malvado djinni ?
— As suas palavras honram‑me, Suleiman. Um homem santo, com a voz sonora a ele-
Esses dois exemplos não têm comparação em todo var‑se sobre o tumulto dos ruídos de fundo, condu-
o mundo Islâmico. Mas ter saudades de casa ? Ah, zia uma turba de estudantes na direcção das cúpulas
como é que adivinhou ? O vale de Sogdiana é um azuis da mesquita de Jami Zakariyah, onde haveria
dos quatro paraísos à superfície da terra...Os jardins mais tarde, de pregar no meio do pátio. Apesar de
e os pomares...A Síria é um lugar tão seco... muito saber sobre o Corão e as Leis, passou mesmo
Franziu os olhos orientais enquanto se re- junto ao Ifrit sem dar por ele. Um nobre abastado,
cordava. Lembrou‑se do tio aldrabão e do poder de barba e turbante, contemplava, meditabundo,
das visões, da mão de Deus, mas nada disse. Em uma esfera de cristal exposta na bancada do lado
vez disso, movido por um impulso, puxou de uma oposto da rua, enquanto o seu escravo grego lhe ia
caixa: declamando textos de Aristóteles numa pronúncia
— Ainda não viu isto. arábica horrível. O Ifrit raspou‑lhe o braço, mas
Solomon ficou a olhar para os anéis que ha- aparte um olhar irritado da parte do nobre, também
via na caixa, cada um deles um cintilante círculo de este não deu por ele. O Ifrit trazia espelhado no ros-
ouro. Lembrando‑se do anel que trazia guardado to as marcas da culpa e perseguia a sua vítima com
na bolsa, examinou‑os a todos, um por um. Que te- os olhos loucos e esbugalhados. Al‑Bukhari ficou
souro! Como Fedoseyev haveria de ficar contente, a observar a cena, fascinado, enquanto a criatura
se soubesse disto. Só neste mercado podia continu- enfiava o capuz até ao queixo deixando apenas os
revista BANG! [ 77 ]
olhos à mostra. Por fim sacou de uma espada. E a sem que fossem necessários muitos preparos, dado
gemer, como uma mulher recentemente enviuva- que toda a gente aceitava pagamentos em ouro, às
da, atacou. vezes com um desconto ruinoso. Solomon apres-
Suleiman praguejou qualquer coisa numa sou‑se, rua acima, e foi enfiar‑se numa porta sob
língua estrangeira, desembainhou a própria espada as três bolas douradas que indicavam a presença
com a rapidez de um relâmpago. As duas lâminas de um penhorista. Vendeu ao proprietário boquia-
encontraram‑se com um tinir sólido e escorrega- berto as roupas que vestia, tornadas ridículas, e
ram uma contra a outra. A resistência do choque comprou‑lhe um mal amanhado par de calças de
fez o Ifrit recuar aos tropeções. Parecia velho, velho trabalho com uma corda a fazer de cinto e uma ca-
e lento. Rua abaixo e rua acima ouviram‑se sons misa de lã demasiado quente para esta hora do dia.
que exprimiam medo e preocupação enquanto os Assim vestido, continuou rua acima até conseguir
mercadores se escondiam ou tentavam proteger comprar uma muda decente de roupas. Habituado
as mercadorias, dependendo da natureza das suas aos súbitos acessos de riqueza característicos dos
personalidades. jogadores e criminosos, o proprietário escusou‑se
— Tarkin ! — berrou Solomon. Mas de que a fazer comentários sobre a troca das roupas gros-
argumentos é que se poderia servir? Tarkin tinha seiras de trabalho por uma camisa e fato de gabar-
todas as razões para o querer matar. Como é que dina cinzenta clara. Ainda mais acima na mesma
tinha conseguido escapar‑se do comboio? Ou seria rua, trocou ouro por dólares e depois foi alugar um
este um outro Tarkin, uma versão mais nova? Se quarto numa pensão com partilha de cozinha e casa
fosse um Tarkin mais jovem, vindo antes do inter- de banho nas traseiras. Finalmente sentiu‑se pre-
rogatório de Moscovo, então não podia ser morto, parado para iniciar as investigações. Encontrava‑se
dado que tinha de continuar a existir. Mas esta não apenas a uns poucos quarteirões do lugar onde ele
era a melhor altura para pensarmos em paradoxos. e Tarkin tinham vivido — ou melhor, ainda viviam
O outro voltou a atacar, sem jeito nenhum. — durante as suas investigações, mas a verdade é
Salomon sentiu‑se fascinado pela intensidade da- que já tinha violado tantas regras do Centro Tem-
queles olhos. Que teriam eles visto ? Contudo os poral que uma a mais ou a menos não faria a menor
reflexos eram lentos. De modo a evitar o ataque da importância.
lâmina, Salomon desviou‑se para o lado e investiu Pôs‑se à procura, munido de uma paciên-
a fundo. Trespassado, o atacante tombou no meio cia vagarosa, metendo conversa nos bares, nas lo-
da rua. jas, no El. Descobriu que um número considerável
Solomon debruçou‑se de modo a poder pu- de pessoas na Levee tinha visto o Tarkin: uns des-
xar o tecido para o lado e olhar Tarkin no rosto, mas creviam‑no com aspecto idoso, enquanto outros
ao erguer a cabeça ouviu o silvo de várias espadas a diziam que parecia jovem. Atribuíam‑lhe várias
saírem das bainhas. Um corpo de homens armados profissões. Solomon passeou‑se pelas ruas durante
aproximava‑se dele, cauteloso. Era a polícia local. todo o dia e noite, observando atentamente todos
Sem pensar duas vezes virou‑se e deitou a correr. os rostos que passavam. Em 1902 Chicago possuía
Solomon conseguiu despistar os seus perseguidores cerca de um milhão e meio de habitantes. Havia
durante um tempo suficiente para mergulhar num muitos rostos para onde olhar.
beco, colar uma ampola de Tempedrina ao pescoço Foi conduzido até ao primeiro dos Tarkins
e desaparecer daquela época. por um miúdo a troco de duas moedinhas. Passou
de relance pela montra de uma drogaria, e viu no
JUNHO 1902 EC interior um homem de meia idade a limpar o bal-
cão com um pedaço de pano.

A s eras que tinham antecedido a primeira


Grande Guerra eram as mais fáceis de visitar
O segundo Tarkin, um tanto ou quanto mais
novo, conduzia uma carrinha do leite. O terceiro
revista BANG! [ 78 ]
era um velhote que lia a sina, enquanto que o quar- Embaixadores deles pernoitou no Hotel Willard
to era outro homem de meia idade que trabalhava em Washington, onde tudo o que é almofadas é en-
numa loja de conservas. Deixou de os contar quan- chido de penas, usou o bacio que havia debaixo da
do o número passou dos sete. Cada um deles en- cama e garanto‑te que dormiu muito bem.
vergava um disfarce ligeiramente diferente, com os — Ai, Hugh, — disse Louisa, ainda a rir,
cabelos pintados, um par de óculos, outra postura, — mas isso não chega para explicar porque é que
mas acabava por não ser muito difícil identificá‑los quase deitaste fogo aos cabelos quando te serviste
a todos, desde que soubéssemos para onde olhar. de uma boca de gás pela primeira vez.
Todos traziam no dedo um anel de ouro. — O lugar de onde eu venho, no Dakota do
Tarkin teria feito os Controladores do Centro Norte...
Temporal espumarem de raiva. Dera voltas à pró- — Ah, deixa‑te de histórias !
pria vida, vezes e vezes sem conta, tecendo uma teia — Tudo bem, que seja do Tibet. Por lá usam
feita da sua própria pessoa em torno do incidente lamparinas à base de gordura de yak.
que transformara para sempre a sua existência e a Salomon sentiu‑se maravilhado. Como era
de Salomon. Mas a verdade, pensou Salomon en- possível ter sido assim tão jovem, tão comunicati-
quanto se cruzava com mais uma versão de Tarkin, vo? Como é que alguma vez teve a lata de se pôr a
desta vez a empurrar uma carrinha de amolador, é namorar com a filha da dona da pensão? Espreitou
que nem uma só vez ele tinha conseguido alterar pela fresta da porta. E ali estava ele sentado, esguio
nada do que aconteceu. Por muito física que fos- e jovem, com o cabelo coberto de brilhantina, ves-
se a obsessão pelo passado, esta não tinha efeitos tido com um fato de linho listrado e um chapéu
nenhuns nele como costuma acontecer a todas as de palhinha a condizer. Parecia não ter uma úni-
obsessões. ca preocupação no mundo. Louisa estava sentada
Mas neste momento Solomon também ti- mesmo à frente dele, com os pés a abanar, vestida
nha de lidar com as suas, pois estávamos uma vez com um daqueles fatos camiseiros com chumaços
mais no fim da tarde do onze de Junho. Antes de a nas mangas. O cabelo era negro e encaracolado e
noite acabar, haveria de descobrir o que é que tinha os olhos escuros não paravam de saltar de um lado
realmente acontecido na pensão da Mrs Mulvaney. para o outro.
— Considera isto como mais uma investi- — Mrs Mulvaney manda dizer que o jan-
gação histórica, — disse para com os seus botões, tar está quase pronto, — disse uma terceira voz. A
enquanto seguia, Harrrison Street acima, uma rua cabeleira ruiva de Tarkin, toda desgrenhada, asso-
que já lhe era por demais familiar. Atravessou os mou junto à porta.
carris do eléctrico, cruzou a esquina da Wilmot, — Ó Andy, senta‑te um bocadinho aqui con-
onde o Mr Kirkby guardava a sua porca premiada, nosco ! — Louisa levantou‑se de um pulo, puxou‑o
de nome Ernestina, numa pocilga mesmo aos pés para junto de si, do lado oposto de Solomon, de
da escada, subiu Furnace Street até à pensão de três modo a poder ficar flanqueada pelos dois preten-
andares da Mrs Mulvaney com telhado amansarda- dentes, estes dois estudantes de história que tinham
do e com o celeiro todo inclinado encostado a uma viajado oitocentos anos no passado para aprende-
das paredes. rem o que era a vida e o amor.
Era um dia quente, de uma tarde de céus — Você está com um óptimo aspecto, Mr.
límpidos. Quantas vezes já a teria vivido Tarkin ? Tarkin.
O riso de uma mulher prendeu‑o ao chão. — Nunca me senti melhor, Mr. Salomon.
Ouviu em resposta o riso de um homem. O outro Salomon, o velho Historiador Cre-
— É verdade, — insistia a voz desse homem, ditado, apoiou a testa contra o granito fresco das
— os Japoneses servem‑se de blocos de madeira fundações da pensão. Esta seria a última das tardes
dura como almofadas. Por isso, quando um dos em que os dois estariam realmente em paz. Depois
revista BANG! [ 79 ]
disto só haveriam de sofrer intermináveis golpes e quecimento, os historiadores do Centro Temporal
contragolpes, teriam de observar massacres, pragas causam paradoxos. Paradoxos que têm de ser resol-
e outros desastres sem nunca mais conhecerem um vidos. O dever de Solomon como Historiador Cre-
só instante de paz. Mas a verdade é que nenhum de- ditado era muito explícito. O fogo aconteceu. Por
les seria capaz de a reconhecer mesmo que lha pu- isso, teria mesmo de acontecer. Como um autóma-
sessem em frente dos narizes. Solomon deixou‑se to, porque pensar no assunto talvez o impedisse
ficar ali, de pé, a ouvi‑los conversar e namorar até de fazer o que tinha de ser feito, pegou numa mão
que finalmente os chamaram para irem jantar. cheia de erva seca e amontoou‑a contra a parede
No momento em que abandonavam o átrio, do celeiro. A tremer, soltou Jenny que o farejou,
Salomon ouviu Tarkin dizer, timidamente: curiosa.
— Eu...eu...tenho aqui uma coisa para te — Tu viveste, — sussurrou Salomon. — O
oferecer, Louise. Mandei fazê‑la de propósito para resto de nós não.
ti. Mostro‑a depois do jantar. Destravou a porta, de modo a que a égua pu-
O fogo tinha começado no velho celeiro, que desse abri‑la empurrando‑a com a cabeça, e depois,
estava seco como um palito depois de três semanas sem mais nenhum momento de hesitação, voltou
sem um pingo de chuva. Com a barriga tão fria e ao monte de palha, riscou um fósforo de segurança
dura como um pedaço de gelo, Solomon pôs‑se a e pegou‑lhe fogo.
observar a casa e o celeiro, à espera do momento Um minuto depois as pranchas secas das
em que as chamas haveriam de emergir para con- paredes também já ardiam. Sentiu no rosto o calor
sumirem tudo, transformando‑o no homem que das labaredas, a troarem tão alto como as Quedas
hoje era. de Água do Niagara que a Louise sempre quis vi-
A noite começou a refrescar, desistindo do sitar.
calor veranil do meio da tarde. Uma brisa saltou O fogo alastrou‑se como vinho derramado
do lago. Os habitantes da casa Mulvaney espalha- no chão. O tecto do celeiro explodiu subitamente
ram‑se pela entrada a conversarem num tom des- numa única labareda. Jenny relinchou, aterrada,
contraído. Passaram as onze da noite, anunciadas escoiceou as portas do celeiro e fugiu para o meio
pelos sinos de uma igreja próxima e a meia‑noite da rua. O celeiro estava a encher‑se de fumo en-
foi‑se aproximando. Continuava sem haver si- quanto as traves lá no alto estalavam e eram consu-
nais do fogo, embora tivesse começado à volta da midas pelas chamas. Salomon virou‑se. De pé, jun-
meia‑noite, a hora em que o seu duplo mais jovem to à porta, a olhar para ele, estava o jovem Tarkin,
costumava ir deitar‑se. meio preparado para se ir deitar. Abanava a cabeça,
Escalou por uma das janelas do celeiro e perplexo, como se fosse incapaz de perceber o que
olhou em volta, para o interior. Jenny, a égua cas- estava a passar‑se. Salomon lembrou‑se que pouco
tanha da Mrs Mulvaney, ruminava devagarinho na faltava para que que todo este espanto se transfor-
escuridão. Não viu nenhuma chama acesa, pareci- masse num acesso de ódio e raiva amarga, capaz de
da com aquela lâmpada de querosene que a vaca fazer de um amigo, um inimigo.
lendária da Mrs O`Leary tinha dado um coice e — Andy ! — gritou Solomon por cima do
iniciado o grande incêndio de Chicago de 1871. rugir das chamas. — Espera !
O estrume era fresco e remexido constantemente Mas Tarkin já tinha desaparecido, a correr
para que não fermentasse. O aumento de tempera- de volta à casa, aos berros: “Louisa!”.
tura poderia ser suficiente para provocar um fogo. Solomon lançou‑se no seu encalce. Entre-
Lá de fora, chegou‑lhe aos ouvidos os sinos da igre- tanto o incêndio tinha‑se espalhado do celeiro à
ja a soarem as doze badaladas da meia‑noite. pensão. As chamas chegavam já às janelas do dor-
Acontece por vezes que, ao investigarem mitório do terceiro andar. Mrs Mulvaney e o filho,
tudo aquilo que se perdeu durante o Grande Es- Arnold, estavam nesse instante a escapar através de
revista BANG! [ 80 ]
uma das janelas do segundo andar para um ramo Solomon nem sequer se preocupou em es-
de uma figueira que se erguia junto à casa. O seu fregar os olhos ou beliscar o braço. Soube imediata-
duplo mais jovem, dado que estava a dar umas últi- mente que aquilo que estava a ver era mesmo ver-
mas cachimbadelas à porta da pensão, antes de se ir dade, que tudo isto não passava da reviravolta final
deitar, haveria de voltar a entrar na casa e chegar até na história de faca e alguidar em que a sua vida se
meio das escadas, antes de ser forçado a recuar pela tinha transformado. Um jovem saiu do armazém a
força das chamas. O quarto da Louisa situava‑se no carregar um pacote. Era Steven Eichorn, um tipo
segundo andar com a janela virada para o beco das que vivia a alguns quarteirões de distância e que es-
traseiras. tava a estudar advogacia na Universidade de Chica-
Tarkin tentou chegar à janela da Louise, go. Era o “mangas da Louisa”, supôs Solomon, e esta
mas o fogo, vindo do telhado, lambia já a parede sua existência tardiamente revelada, explicava mui-
obrigando‑o igualmente a recuar. Chamou por ela, tas das razões do comportamento da Louisa nos
virado para a janela envolta em chamas. E depois meses que tinham precedido o incêndio. Eichorn
gritou, “Meu grande cabrão”, não para a janela, mas saltou para a carroça com uma energia excessiva,
para o mundo inteiro. “Porquê ?”. tomou as rédeas e conduziu‑a rua abaixo.
Foi assim que as coisas começaram. Salomon Solomon sentiu o gume aguçado de uma
começou a descer a rua. O fogo, a morte da Louise, faca contra as costelas.
o ódio selvagem de Tarkin, sem nenhuma motiva- — Julguei que nunca mais conseguia apa-
ção aparente: tudo isto ajudou a transformá‑lo no nhar‑te ! — disse Tarkin. E virou Solomon na sua
homem que hoje era, um Historiador Creditado do direcção.
Centro Temporal, duro, frio, fanático do dever. Mas Este Tarkin era a versão de ombros desca-
todas estas coisas afinal mais não eram do que o ídos, aquela que Solomon tinha mandado para o
resultado de actos que ele próprio tinha cometido, Goulag.
precisamente por ser o homem que era. Sentiu‑se — Achas que valeu a pena o esforço ? Dares
esgotado, sem rumo, preso num círculo interminá- um nó a toda a tua vida ?
vel. Tarkin tinha todas as razões para o odiar, mas — Valeu, sim. Queria amá‑la. Mas o amor
acabaria por desviar esse ódio na direcção de um não se pode recuperar, mesmo se conseguirmos
homem inocente, transformando‑o por isso mes- recuperar exactamente a mesma pessoa que nós
mo, num indivíduo que um dia seria digno de ser amávamos... As viagens no Tempo têm estas es-
odiado. Antes da noite terminar, Tarkin iria ten- quisitices, Hugh. Fazem‑nos pensar que podemos
tar matar o jovem Hugh Solomon e, ao fracassar, deitar a mão ao passado, mas afinal elas não pas-
desvanecer‑se‑ia no Tempo. Tarkin continuaria a sam de memórias tornadas sólidas. E isso ainda
tentar matar Solomon até aquele momento em que dói mais. Mas eu fiz os possíveis. Voltei aqui de-
o próprio Solomon, já velho e amargo, voltaria para pois daquela última vez em que tentei matar‑te,
um ajuste de contas final. O idoso Historiador Cre- abordo do Dagmar, e descobri finalmente que a
ditado desceu, devagar, pela rua Wilmot, envolvida Louisa não tinha morrido no incêndio. Se te viras-
na mais profunda escuridão. Por fim desembocou ses agora, haverias de ver‑me, ali ao fundo, de pé
na Harrison, melhor iluminada, dado que tinha na esquina do Armazém, com um ar tão estúpido
candeeiros a gás. como o que tens agora. Foi nesse instante que de-
Aí parou, gelado. Sob a luz intensa, mesmo cidi ficar aqui, para sempre. Ela apaixonou‑se pelo
em frente ao Armazém Masterson, viu uma car- jovem Eichorn...
roça de duas rodas atrelada a um cavalo cinzento. — O tipo era mais velho do que nós, na-
Sentada nela, com um chapéu de palha amarrado quela altura, Andy.
à cabeça e uma mala enorme junto aos pés, encon- Tarkin sorriu:
trava‑se a Louisa. — Uma pessoa esquece‑se desses pormeno-
revista BANG! [ 81 ]
res... Não foi espantoso veres‑nos a todos, ali senta- Um minuto depois, um copo enorme, cheio
dos à porta da pensão ? de um líquido turvo, foi colocado mesmo à frente
— Éramos felizes. E esse momento vai exis- de Solomon, que se deixou ficar a olhar para ele,
tir para sempre. com um ar meio ausente.
— Que grande conforto ! — Forçado pela — Bebe isso. Vai fazer‑te bem !
faca de Tarkin, que continuava apoiada contra as Solomon virou os olhos na direcção de Ta-
costelas de Solomon apesar da conversa descon- rkin:
traída, começaram a descer a rua como dois velhos — Tentaste matar‑me, ou seja, tentaste ma-
amigos encostados um ao outro para melhor se tar o meu eu jovem. Porquê, Andy ? Eu não tinha
apoiarem. feito nada...
— Mas fiz o que pude. Tratei que Eichorn — Cala a boca e bebe !
conseguisse arranjar aquela trap. Encorajei‑os a Solomon encolheu os ombros e, com um ar
escaparem‑se. E nesta noite, há dez anos no meu socrático de quem engole a taça de cicuta, esvaziou
passado, acho eu, meti a carcaça de um carneiro o copo. Depois fez uma careta.
no quarto dela. Quando as cinzas arrefeceram o Tarkin inclinou‑se para trás na cadeira e
suficiente, levaram aquilo que restava do corpo da deitou uma olhada ao cartaz colocado mesmo por
Louisa para fora da casa. O anel que eu lhe tinha cima do bar.
dado, deixou‑o sobre a mesinha de cabeceira. En- “Provem o Especial do Mickey Finn”, esta-
contrei‑o ao examinar as ruínas da pensão. Tu foste va lá escrito. Embora ainda não muito divulgado, o
ao funeral. A medicina forense não era lá grande mickey era, nesta Chicago de 1902, uma inovação
coisa, em 1902, o médico legista estava bêbado, o na arte de enrolar clientes. Era feito à base de hidra-
fogo tinha tido lugar num bairro pouco respeitável, to de cloral e álcool.
de modo que ele só se dedicou ao problema duran- Os olhos de Solomon reviraram‑se e dei-
te pouco mais de dez minutos. Louisa Mulvaney xou‑se cair sobre a mesa com um gemido.
morreu queimada num incêndio. Morte acidental. — Porque foi que eu me atirei ao jovem So-
Foi esse o veredicto, Hugh. E tu, meu grande es- lomon? Porque sabia que ele eventualmente have-
tafermo, acreditaste nele, tal como eu. Julgaste que ria de conduzir‑me ao verdadeiro culpado! Agora
estavas a matar a mulher que em tempos amaste, apanhei‑te, meu grande cabrão!
mas afinal não fizeste mais do que assar um lombo De súbito, o corpo de Solomon desapare-
de carneiro. ceu. De olhos esbugalhados, Tarkin desabou sobre
Enquanto caminhava devagarinho, a olhar a cadeira. Começou a tremer e bebeu uma golada
em frente, com uma expressão vítrea nos olhos, So- de gin.
lomon sentiu‑se avassalado pela imediatitude do — Não sou capaz de começar tudo outra vez.
passado até que os sons e os odores que havia em — disse para consigo mesmo. — Não consigo...
volta lhe disseram que estava outra vez na Levee, E ainda estava assim sentado, debruçado
onde ninguém dorme. sobre a bebida, quando sentiu um golpe seco de um
— Este é o lugar ideal, — disse Tarkin en- cotovelo sobre o lado esquerdo da cabeça acompa-
quanto entravam no Lone Star Saloon and Palm nhado do toque frio de uma seringa hipodérmica
Garden. — Parto do princípio que já o conheces. na bochecha do rabo.
O sítio era o mesmo, as luzes eram as mes-
mas, os dentes eram os mesmos, os rostos eram os NOVEMBRO 949 EC
mesmos.
— Ora viva, Mickey, — gritou Tarkin na
direcção do barman — Dá aí um dos teus especiais.
E um gin para mim.
S olomon seguia aos tropeções pela rua de Ale-
ppo. Trazia vestida uma capa grossa de lã, de
modo a poder cobrir com ela o fato mais leve de
revista BANG! [ 82 ]
gabardina que era a moda na Chicago do início do — Tu não és irmão dele. Nem sequer és um
século XX. Lamentou ter vendido as vestes de co- djinni feito à sua imagem, como eu julguei à pri-
merciante. Parou frente a uma das bancadas e, com meira. Tu és ele mesmo.
as últimas moedas que tinha no bolso, comprou Solomon engasgou‑se:
uma adaga curva sem se dar ao trabalho de regate- — Pois sou. Ele agora vai cometer grandes...
ar o preço com o vendedor. pecados. Queria impedi‑lo. Mas é impossível. Tudo
Pensou que talvez ainda houvesse tempo está fixo no seu devido lugar e eu não consigo fazer
de parar tudo. Sentia‑se tonto e adoentado. Visões nada para alterar as coisas...
de chamas e catedrais abandonadas passavam‑lhe — Os pecados são da tua responsabilidade,
frente aos olhos. Por detrás disto corriam as ima- — disse Al‑Bukhari. — Não foste tu quem decidiu
gens dos intermináveis corredores ladrilhados cometê‑los ?
do Centro Temporal. O mickey e as overdoses de Fechou os olhos e viu um barco cheio de
Tempedrina faziam‑no escorregar através do Tem- cadáveres naufragar nas praias de um mar frio e
po como se tivesse poisado os pés numa barra de cinzento. Uma casa a arder e um cavalo a relinchar.
sabão abandonada no fundo do chuveiro. A palma Homens mortos de frio numa caixa no meio da
da mão suada comprimia o punho da adaga. neve. Todas estas imagens apareceram‑lhe amarra-
Por fim viu‑o de pé, frente à loja do das num nó, parecido com aquela caligrafia emara-
al‑Bukhari, alto e esguio, a conversar com o gordu- nhada na cúpula da Mesquita. E o nome do nó era
cho joalheiro. Sentiu‑se assolado por uma vaga de Remorso.
ódio. Ergueu a adaga e, a gritar, atacou. — Eu tinha de... História... o que aconteceu
A versão anterior de Solomon aparou o gol- tinha de acontecer, ou então...
pe com toda a perícia. Desesperado, enfraquecido — Tudo o que aconteceu aconteceu porque
pelas drogas que havia no mickey, a versão mais tu assim o quiseste. — disse Al‑Bukhari num ins-
recente de Solomon viu‑se incapaz de superar a tante de única transparência. Mas a verdade é que
outra. Quando a lâmina lhe penetrou no corpo, foi mal sabia o que estava a dizer. — Só então as coisas
como se o libertassem de todas as dores. Deixou‑se se tornam inevitáveis. O teu destino, meu amigo,
cair no meio da rua poeirenta. O outro Solomon está no carácter, não no Tempo.
pôs‑se em fuga. — Destino. Olha, aqui tens um pedacinho
Al‑Bukhari aproximou‑se da figura estatela- de destino, Al‑Bukhari. Faz dele o que te apetecer.
da à porta da loja. Seria mesmo um Ifrit ? Os Ifrits Daqui a seis anos, o Imperador de Bizâncio, Nice-
gostavam de atormentar e enganar as pessoas, mas phoras Phocas, vai invadir a Síria e saquear e quei-
a culpa e os pecados dos homens raras vezes os in- mar esta cidade de Aleppo. Tu tens saudades da
teressavam, dado que a substância que os compu- Bukhara, essa terra lindíssima. Deixa que ela seja o
nha era o fogo, não a terra. E uma coisa era certa, teu guia. E talvez isso me possa absolver um boca-
os Ifrits não sangravam, como esta criatura estava dinho. Mas agora... pega neste anel...
a sangrar, com o sangue a escorrer‑lhe do ventre à E arrancou‑o do dedo. Tinha a forma de
volta da ferida mortal. Afastou o pano que lhe co- uma serpente a morder a própria cauda, com olhos
bria o rosto e fitou os olhos de Solomon. feitos de lascas de esmeralda. Por fim, com um sus-
— Zaynab ! — chamou por cima do ombro. piro, Solomon morreu.
— Traz água. Depressa! As imagens desvaneceram‑se da cabeça de
Depois ajoelhou‑se e apoiou a cabeça do Al‑Bukhari, deixando apenas em volta uma rua
homem no colo. Zaynab saiu a correr da loja, de de mercado com um homem morto estendido no
olhos arregalados, logo que deparou com o ferido. chão. O joalheiro tinha a camisa manchada de san-
Passou‑lhe a taça e Al‑Bukhari encostou‑a aos lá- gue. Depois apareceram outras pessoas que leva-
bios do muribundo. ram o corpo para longe dali.
revista BANG! [ 83 ]
numa pisada hesitante da janela traseira do celei-
JUNHO 1902 EC ro. Lá ao longe um sino soava as doze badaladas
da meia noite.

O velhote estava de pé, por detrás do celeiro,


debruçado sobre a vedação que limitava o
terreno, a olhar para as luzes da casa dos Mulva-
— As coisas são assim mesmo, Hugh! —
murmurou Tarkin, enquanto apagava os últimos
tições do fogo com o talão da bota. — Fazemos as
ney. A brisa nocturna que vinha do lago era fresca, nossas escolhas e as escolhas fazem‑nos a nós.
mas de modo algum se comparava com o frio que Solomon abriu a janela do celeiro e entrou.
fazia na carruagem a caminho da Sibéria. Come- Tarkin desvaneceu‑se no ar fresco da noite.
çou a tremer. Tarkin, próximo da morte, tinha via-
jado no tempo, até este lugar, no coração de todos NOVEMBRO 949 EC
os acontecimentos, sem precisar de uma injecção
de Tempedrina. Era quase meia‑noite.
Dentro de alguns minutos Solomon have-
ria de aparecer à volta da casa para deitar fogo ao
A l‑Bukhari debruçou‑se e examinou, perple-
xo, o anel que tinha na palma da mão. Uma
sombra cobriu‑o.
celeiro, de modo a que a história pudesse seguir — Estou a falar com o joalheiro al‑Bukhari
o rumo correcto. Tarkin foi abrindo caminho, ? — disse um jovem, com aspecto pálido, com
devagarinho, por cima dos rebentos da figueira a cabeleira ruiva toda desgrenhada. Devia ser
que cresciam no espaço entre o celeiro e a veda- um tipo do norte, provavelmente um Russo. Os
ção. Apoiava‑se em cada um deles à medida que olhos brilhavam. Devia estar apaixonado, pensou
passava, sentido a lisura da casca das jovens árvo- al‑Bukhari. Quando se levam os mortos, há sem-
res sob o toque dos dedos. A erva do ano passado pre lugar para o amor.
restolhava‑lhe debaixo dos pés. — Sou o próprio, — respondeu, pondo‑se
Uma chama minúscula bruxuleou mes- de pé. Ainda tinha muito tempo para se preocupar
mo à frente dele. Tarkin imobilizou‑se, agachado. com as chamas que haveriam de consumir Alep-
Dois miúdos, com cerca de dez anos de idade, po. Mas a verdade é que tinha muitas saudades de
acocoravam‑se junto à esquina do celeiro tentan- Bukhara...
do acender um cachimbo. Não era um daqueles — Vim ter consigo para que me fizesse uma
onde se costumava fumar as espigas de milho, mas jóia para alguém muito importante. — O jovem
um meerchaum dos grandes, provavelmente rou- Tarkin apontou para o anel que al‑Bukhari ainda
bado ao escritório de um dos pais. Sussurravam guardava na mão. — Ouvi falar da sua habilidade
um com o outro, concentrados no que estavam a e tenho a certeza que poderá satisfazer o meu pe-
fazer, sem se darem conta da presença de Tarkin. dido. Queria comprar um anel, se possível, o mais
Um dos rapazes queimou o dedo, praguejou e parecido com esse que tem aí. BANG!
deixou cair o fósforo aceso sobre a erva seca. Que
imediatamente se incendiou. Os rapazes soltaram
um grito e puseram‑se em fuga.
O fogo espalhou‑se pela erva e não tardou
a lamber a parede do celeiro. Tarkin ainda ficou
a olhar para ele, durante alguns segundos, como
se estivesse mesmerizado, antes de se aproximar e
apagá‑lo com as botas. Alexander Jablokovm romancista norte
americano, trabalhou como engenheiro
Depois foi espreitar pela esquina do celei- de comunicação em Boston antes de se
ro. Uma figura alta, vestida com um fato de gabar- dedicar à escrita a tempo inteiro no final
dina, saiu da casa dos Mulvaney e aproximou‑se da década de oitenta. BANG!
revista BANG! [ 84 ]
Quem Quer
[ficção]

Escrever Para Sempre


João Barreiros
E eis que temos o prazer de apresentar a terceira e última parte do tão
corrosivo quanto divertido tríptico de João Barreiros. Uma crítica à literatu-
ra em geral, uma canelada ao Ministério da Educação e muito pessimismo
quanto à juventude deste nosso país. Barreiros no seu melhor!

A migo leitor, agora que as coisas estão perto do


fim, agora que todas as linhas desta narrativa
começam finalmente a deslindar‑se, seja indulgente
continua a enviar bytes de energia anímica na direc-
ção das matilhas de discentes. Pior do que tudo são
as promoções sonoras, dirigidas aos pavilhões auri-
connosco e considere esta cena: culares de quem quer que se aproxime dos espigões
Estamos recolhidos no recatado bar do Xera- sugestionadores. Vozes melífluas sugerem a com-
ton, como uma ilha isolada no tempestuoso oceano pra imediata do enésimo volume de sagas heróicas,
da derradeira Convenção de Fantasia Lusa. Lá no onde um grupo de valorosos companheiros se bate
alto, sob os focos luminosos, esvoaçam hologramas por anéis, espadas cantantes, colares, tiaras, cintos,
de bestiários mágicos, onde é difícil saber se exis- armaduras, pergaminhos rúnicos, e quiçá um ou ou-
tem mais corujas ou dragões, tantos são eles e tão tro cachimbo mágico ou um extensor penil de virila-
rápido se deslocam. E cá em baixo, no labirinto dos de comprovada — a maior parte destas inigualáveis
cartazes, mupis, expositores e ecrãs digito‑eléctricos, obras‑primas foram dotadas de finais alternativos
bandos de jovens estudantes vitalizados, estridulam — onde os juvenis leitores, — se é que ainda exis-
em loucas e predatórias correrias, derrubando tudo tem alguns — poderão deleitar‑se eternamente, sem
por onde passam. Funcionários devotos esforçam‑se tédio ou repetições, num universo quântico de es-
por proteger, de peito aprumado e braços abertos colhas múltiplas. Lá para o fundo da sala atafulhada
em cruz, as bancadas e expositores das editoras a de fãs, de agentes literários, de autores em promoção
quem venderam a alma e quiçá a própria vida. Es- que desesperadamente tentam distribuir panfletos
forço inútil. As pilhas de livros são pontapeadas animatrónicos, o grupo coral da editora CLEMEN-
por quem perto delas passa, alguns exemplares são CIA PRESS, esganiça‑se a trautear o hino triunfal do
sonegados no meio da confusão, embora os chips Reino de Alarmia. São vozes que não chegam ao céu,
anti‑roubo incrustados na capa gritem por socorro logo abafadas pelos clamorosos cânticos dos Reinos
e se esforcem por elevar a postura moral de quem os Celtas das editoras rivais.
raptou. Os professores responsáveis por estes grupos Porém, na mesa do bar onde o nosso emérito
de estudantes hiper‑activos, arrastam‑se atrás de- autor está sentado, preso no cerco ameaçador dos
les, titubeantes, a agitar no ar as mãos que já viram quatro arrivistas, — supostos autores reformados
melhores dias enquanto o emissor de desvitalização do execrável género em tempo apelidado de FC,
revista BANG! [ 85 ]
­ não se escuta um único som vindo do exterior,
— gesto para pegar no que lhe é assim oferecido, e as
graças à ajuda do cone de silêncio e privacidade. Ho- pobres páginas ficam assim poisadas sobre a mesa, a
rácio Quiroga mal se pode mexer, comprimido que absorver a gordura que pingou das sandes devoradas
está entre os anafados quadris de Gobul Pruesco e pelo ex‑hacker, Gobul Pruesco.
as esqueléticas pernas de Josué Pedrinhas. O tampo — Ó Emanuel, meu, para que estás tu a ofere-
da mesa de simil‑mogno está cheio de gotículas de cer‑lhe essa treta infanto intimista? — Resmunga o
gordura e fragmentos de sandes meio mastigadas. cruel José de Barros que nem para os seus é bom.
Quanto aos óculos virtuais que ainda há pouco des- — Achas que este caramelo vai ler isso, assim que
cartou num acesso de justo horror, ainda ninguém tiver um tempinho livre? Já agora porque é que não
resolveu reclamá‑los de volta. O interior das lentes lhe passam as páginas em branco dos romances
pisca ainda as imagens da destruição maciça da PA- anarco‑históricos que o Josué Pedrinhas prometeu
TORRA. O exterior cobre‑se aos poucos da mesma mas nunca em trinta anos chegou a escrever? Não
película de gordura derramada que unta toda a mesa, reparaste nos olhos vítreos do gajo perante estas co-
como os restos de um Auschwitz ecológico. Sem dú- lunas de texto? Achas que vais conseguir ensiná‑lo a
vida devem estar saturados de impressões digitais escrever uma frase decente?
de todos estes criminosos. Se Horácio conseguisse Josué Pedrinhas abre a boca para demonstrar
enfiá‑los discretamente no bolso, quem sabe se, mais um pouco de indignação, quanto mais não seja uma
tarde, não poderia entregá‑los às autoridades com- indignação formal, como se quisesse garantir que,
petentes e assim fazer justiça pela calada. Mas todas desta feita, sem apelo nem agravo, as partes prome-
as retribuições têm o seu tempo e é preciso saber tidas do seu romance feito a seis ou mais mãos, já
esperar pelo momento certo. Entretanto, do outro foram colocadas na inforede ainda ontem, de vero e
lado da mesa, a figura sinistra e quase careca de José de facto. Mas ao olhar para a expressão cáustica de
de Barros fita‑o com aquela expressão raivosa de José de Barros, receoso de qualquer canelada dada
quem sofre de dor de corno crónica. As unhas des- em público, mesmo oculta pelo tampo da mesa, re-
te inqualificável “otário” — pelo menos é assim que solve engolir em seco e calar‑se, pois este momento
Horácio Quiroga apelida este desconhecido escritor é muito mais grave do que qualquer outra promessa
— raspam sobre o tampo de mogno um irritante não cumprida. Lá ao fundo, sobre a bancada do Bar,
compasso de espera. Mesmo ao lado, o olhar quase letras vermelhas anunciam: ÚLTIMA OPORTUNI-
bondoso e clemente de Emanuel Silvado esforça‑se DADE! DELEITE‑SE COM A SANDES MISTA DE
por conciliar o inconciliável, como se fosse possível LOMBO DE PANDA E RINS DE DEMÓNIO DA
fazer‑se a ponte entre o futuro e o passado, como TASMANIA. DEVORE OS SEUS ANIMAIS FA-
se houvesse sintonia entre dois códigos semióticos VORITOS ANTES QUE SE EXTINGAM DE VEZ!
tão diferentes. Emanuel Silvado acabou de retirar de PROMOÇÕES ESPECIAIS PARA OS CONVIVAS
uma pasta velhas fotocópias dos seus textos de ju- DA FANTASCOM!
ventude, amarelecidas e quase invisíveis após tantas — Ah, desculpem‑me, mas não consigo resis-
multiplicações e procura passá‑las para as mãos de tir... — Murmura Gobul Pruesco com um arroto dis-
Horácio Quiroga, quem sabe para lhe mostrar que creto. — Com, licença, que eu já volto...
em tempos também ele foi um autor “sério” antes de — Gobul, Gobul, — diz Emanuel Silvado, sem-
se deixar seduzir pelos códigos viciados da tecno- pre atento às necessidades dos outros. — Olha que
fantasia. As páginas estão todas autografadas, foram os excessos... — Mas como Pruesco já não está ali
publicadas por um jornal que em tempos teve uma para o escutar, dado que abandonou a mesa e está
secção de literatura juvenil, mas o bom Horácio de- agora a debater‑se, às cotoveladas, na fila frente ao
cidiu que para quem é raptado, não há sindroma de bar, estas últimas palavras são dirigidas a um Ho-
Estocolmo que nos valha e por isso não descruza os rácio Quiroga cada vez mais horrorizado pelo con-
dedos que tem cerrados em punho, não faz o menor vívio forçado com estes monstros. — A verdade é
revista BANG! [ 86 ]
que o camarada Pruesco é um ecologista devoto. de entrar em hostilidades com a China neo‑capita-
Tal como em todos nós existem átomos de carbono lista por causa da guerra dos copyrights? — Pergun-
provenientes de estrelas mortas, ele deseja incorpo- ta, contrafeito, por se ver forçado a comunicar com
rar em si o pouco que resta de variados eco‑sistemas uma máquina, coisa que não existe na sua fortaleza
em vias de desaparecimento. É por isso que devora da solidão que em boa hora adquiriu junto às falésias
animais exóticos. Para que estes pobrezinhos voltem da costa Alentejana. — E tudo isto porque ainda há
a nascer um dia, quiçá, na sociedade perfeita prome- quem o queira ler?
tida pelo nosso PM. A PA Asimov acena tristemente a venerável
— Umph...perdão...dão‑me licença? Os cava- cabeça. A gravatinha texana sacode‑se‑lhe junto ao
lheiros não se esqueceram de mim, pois não? — A pescoço como uma serpente viva. Em tempos que
PA do Asimov, aquela que ainda há pouco, gigan- já lá vão, num outro século, os seus robôs encan-
tesca, clamava a ajuda do nosso multifacetado autor, taram miúdos e graúdos. A gesta híbrida da Fun-
contraiu‑se, diminuiu de tamanho, perdeu parte da dação Robótica era dada como leitura obrigatória
transparência, e está agora sentada à mesa do grupo, em todas as escolas secundárias. Antes que a crise
como se fosse mais um conviva entre os convivas. de Iliteracia começasse a avançar com passinhos
— Garanto‑vos, estimados colegas ainda biológi- de lã. Agora...
cos, que a minha posição se mantém tal qual estava —...Infelizmente, meu caro co‑autor... Não
durante o nosso primeiro contacto. Quero morrer. me refiro aos meus textos sobre uma Fundação em
Quase todos os meus colegas dos outros cilindros ruína, nada disso. Como já se deve ter apercebido, a
sobreviventes (à excepção de um) também querem FC morreu, entregou a alma ao criador, partiu para
morrer. Mas o vosso PM não vai permitir uma euta- as Grandes Pastagens, bateu a bota, finou‑se de uma
násia sistémica, agora que lhe pedimos formalmente vez por todas. Agora só a Fantasia reina soberana.
asilo político. Passámos a fazer parte da lei dos salva- Em boa verdade sou forçado a escrever, juntamen-
dos. Pertencemos a quem nos recolheu. As PAs não te com os meus companheiros de suplício, graças a
possuem personalidade jurídica, como o caro Josué um logaritmo actancial inventado pelo abominável
Pedrinhas poderá confirmar. Não nos dotaram de Su‑on‑Lee, intermináveis sagas de fantasia. A árvore
um interruptor interno. Além disso, estamos blinda- das opções pouco ou nada varia. Está a ver aqueles
das contra todo o tipo de impulsos electro‑magné- blocos de print‑on‑demand ali ao fundo?
ticos. Os ninjas que nos defendem não podem ser Horácio Quiroga não quer ver coisa nenhuma.
comprados, pois dependem da nossa activação para Resolveu olhar em frente, apenas e tão só, como se
continuarem vivos... e eles querem continuar vivos, quisesse negar a realidade destes seus raptores. Mas
isso vos garanto eu... Entretanto a China neocapita- um estaladão dado de mão aberta pelo nefasto José
lista exige a nossa devolução imediata... A inforede de Barros, obriga‑o a desviar os olhos da figura ro-
está cheia de pedidos cada vez mais ameaçadores... tunda de Gobul Pruesco que entretanto regressou à
Satélites geossincrónicos de ataque estão a abando- mesa, com a sandes mista de lombo de panda e rins
nar as órbitas respectivas e a deslocarem‑se na direc- de demónio da Tasmânia já meio devorada.
ção de Portugal. Ao que parece a China tinha outros De facto, nas traseiras do Bar, vêem‑se agora
centros de controlo orbital, não só em Beijing, mas fileiras e fileiras de devotos fãs que ansiosamente
também no Tibet. aguardam a impressão final das novas obras das PAs
Horácio Quiroga sacode a cabeça. Nunca quis convidadas. Hologramas coloridos prometem origi-
ler um único livro da melga desta PA, nem quando nalidade, frescura e engenho. Um novo Jordan! As
ela estava viva e não se calava com as leis da robóti- aventuras do neto do Mago Potter. Revelações mís-
ca, e muito menos depois de morta e transformada ticas de auto‑ajuda por um Paulo Coelho renascido.
num complexo programa de produção de textos. Sete blocos de impressão rápida, correspondentes
— Quer V. Exª dizer que Portugal corre o risco aos sete convidados sobreviventes. Sete blocos que
revista BANG! [ 87 ]
ainda não acabaram de cuspir mega volumes de ca- particular, a morte é um acto insubstancial, visto que
pas garridas, e já caminham para a 2ª edição. já estava morto antes sequer da Global Zaibatsu Press
—... A escrita tornou‑se num acto inconscien- ter comprado os direitos da minha PA aos meus des-
te, praticamente automatizado (enfim, passo o ter- naturados descendentes. Nunca acreditei que hou-
mo)... — Prossegue, didáctica, a PA Asimov, como vesse vida eterna e esta frágil existência é um insulto
se não houvesse nada neste mundo capaz de a fazer a tudo o que julgo ser bom e justo. Nunca devia ter
calar. — Os meus amigos já repararam que, embora aceite continuar as sagas da Fundação e dos Robôs
eu esteja aqui a conversar, parte de mim continua a para lá dos anos 70. O mal é meu que abri um prece-
escrever? E que 99% dos direitos das obras termina- dente. Permiti o franchising... Mas pior do que tudo
das e vendidas aqui, durante a FANTASCOM, rever- foi obrigarem‑me a escrever Fantasia. God Damn it,
tem em nome do Estado Português? O centésimo sou um cientista. Um positivista. Robôs positróni-
que falta reverte em nosso nome, mas apenas para cos a debaterem‑se com espadas de bronze? Magia
cobrir as despesas de manutenção. É por isso que o a funcionar entre a mega‑torres de Trantor? Buerk!
vosso PM não nos quer devolver ao país de origem, Haja dó! O acto da escrita fez parte integrante da mi-
nem aceder aos nossos pedidos desesperados de ter- nha vida, mas afinal quem quer escrever para sem-
minação... pre, uhn? Especialmente quando somos forçados a
— Esteja descansado que a situação vai ser re- escrever fantasias da treta!
solvida ainda hoje. — Garante Josué Pedrinhas com — Olhe que há boa fantasia, meu caro senhor!
toda a lábia que adquiriu ao longo da sua jurídica — Insurge‑se o bom Horácio Quiroga a pensar pre-
carreira. — O sol não há‑de nascer sem que o nosso cisamente na qualidade literária da sua obra.
serviço esteja terminado. Logo que correr a notícia A PA Asimov encolhe os ombros que se agi-
de que já não há mais PAs no activo, estou certo que gantam, suspira, mastiga o cachimbo e projecta um
a China vai cessar todas as hostilidades. E já agora, anel de fumo virtual na direcção dos rooters dos ho-
para os meus ficheiros pessoais, importava‑se de me loprojectores.
enviar aquilo que ainda ontem me prometeu, cenas — Você lá sabe e eu estou‑me a borrifar. O pro-
da vida pessoal dos autores de FC mortos, que em blema deixou de ser meu. Ah, já me ia esquecendo...
tempos conheceu? hihi... como se fosse possível esquecer‑me deste tipo
A PA Asimov acena, benovolente, saca de um de coisas... mais uma pequena advertência. A merda
cachimbo do bolso do casaco de tweed, e fita com acontece, como costumava dizer o estimado Murphy.
olhos que já viram muito, o rosto pálido do nosso Tenham cuidado, pois suspeito que haja um traidor
estimado jurista em off‑time. Espirais de fumo vir- entre nós. Alguém que não quer morrer e assim pôr
tual cobrem a mesa do bar. Durante alguns segun- um ponto final neste acto interminável de escrita
dos, neste silêncio conspirador, apenas se ouvem as automática. Alguém que nos denunciou e permitiu
mastigadelas sôfregas de Gobul Pruesco e o arranhar que as catapultas lançassem o primeiro bloco de Mó-
constante das unhas de José de Barros sobre o marti- dulos balísticos. Não consigo determinar quem seja,
rizado tampo da mesa. pois a informação encontra‑se bloqueada. Mas vai
Por fim, a PA Asimov faz menções de se levan- haver uma PA a resistir... Provavelmente os guardas
tar. O corpo incha de novo, perde solidez, ganha ta- ninjas já foram avisados da eminência de um aten-
manho e transparência, mas antes de se afastar de tado...
uma vez por todas, à guisa de adeus, murmura uma — Ora porra! — Rosna José de Barros, sempre
terrível advertência: agressivo e malcriado, até na presença dos seus me-
— Penso que já está tudo combinado. Trans- lhores. — E só agora é que nos avisa?
ferências de créditos para todas as vossas contas A PA Asimov adquire uma tonalidade cada vez
pessoais. Espero sinceramente que os cavalheiros mais fantasmática. O crédito que activava o cone de
sobrevivam ao caos desta noite única. No meu caso silêncio cessou e toda a explosão sonora da Fantas-
revista BANG! [ 88 ]
com voltou a assediar o grupo de sinistros conspira- cartão de crédito! Rapidamente e em força, porque
dores. Gritos de êxtase da parte das fãs que aguardam já se faz tarde!
pelo print final da Rowling, chiados das criancinhas — Agora querem roubar‑me? — Insurge‑se
hipervitalizadas, estoiros e estampidos dos cartazes o nosso multifacetado escritor. — Não basta já te-
em derrocada, quase abafam as palavras finais da rem‑me separado dos meus amigos, fãs, e adulado-
PA: res? Quantas mais humilhações virão?
— Que graça têm as tarefas demasiado facilitis- — É por uma boa causa… — Explica Emanuel
tas? Qual o interesse de uma aventura onde o fim é Silvado. — Ninguém pode desconfiar das nossas
já conhecido? Mesmo assim, neste compasso de es- transacções de crédito a partir deste instante. Temos
pera, desejo‑vos uma vitória segura. O mundo não é de permanecer substancialmente invisíveis… Mas a
nada sem os engenheiros, como diria o meu amigo e verdade é que precisamos de comprar muitos livros,
estimado Campbell, e os cavalheiros são os seus últi- pilhas deles, antes de passarmos ao segundo ponto
mos representantes. Força no desenrasca! E já agora, da nossa campanha.
obrigado pela sua ajuda, caro Horácio Quiroga. Es- — Muitos livros? Cópias da PATORRA? Mas
pero que isto lhe sirva de lição. Mude de hábitos, e para quê?
desperte para o futuro. Inaugure uma nova Idade do — Qual PATORRA qual história! — Rosna
Ouro da FC! José de Barros, puxando pela sacola maricotera onde
— Nunca! Nunca em Alarmia haverá motores Horácio Quiroga guarda todos os seus bens. — Para
catalíticos! — Esbraceja o nosso Horácio num acto que queremos nós essa treta que tantas florestas aju-
de inútil revolta. — Já disse e afirmei isto milhares dou a derrubar? Ná! Vamos até à bancada da OBLI-
de vezes, e... VION TALES. Upa, upa, que se faz tarde.
— E eu ralado! — Sorri a PA Asimov à guisa de E sem mais demoras, sem que possa gritar por
despedida, entre duas cachimbadas finais. socorro (aliás quem o ouviria no meio do bulício do
Horácio Quiroga pisca os olhos, estremece um átrio da FANTASCOM), Horácio Quiroga vê‑se de
pouco, pois só agora começa a perceber que a me- um momento para o outro despojado do seu rechea-
lhor solução, (caso queira continuar a vender a sua do cartão de crédito. E logo depois, ladeado por dois
saga da fenomenal Alarmia), será colaborar com elementos do grupo, com os cotovelos comprimidos
este grupo que em poucas palavras lhe prometeu por dois pares de pinças cruéis, ei‑lo que avança (ou
acabar de vez com a competição. Quando todas as melhor, é arrastado) até ao meio da sala, com as bi-
PAs forem eliminadas da competição, quando já não queiras dos sapatos de couro genuíno a rasparem no
houver outros livros para ler a não ser os seus, en- mármore viscoso do chão, onde já muitos visitantes
tão o PM não terá outra solução senão continuar a devolveram à precedência canapés e cocktails.
incluí‑lo nos planos de leitura de todas as escolas. A bancada da OBLIVION PRESS está cheia de
— Burps! — geme Gobul Pruesco com um exemplares fininhos de fantasias escritas pela jovem
bocadinho de rim ainda a espreitar‑lhe por entre os Roxana Peres, a última descoberta dos meios onfa-
dentes. — Sinto‑me um bocadinho enfartado… lo‑didáticos da clique urbano‑depressiva. As capas
— Cautela com o colesterol… — Lembra Ema- da pentalogia, são vistosas como manda o figuri-
nuel Silvado, numa voz preocupada, enquanto cofia no. Horácio pega num exemplar e lê o resumo da
a barbicha grisalha. — Olha que precisamos todos contra‑capa, receoso que Roxana lhe tenha roubado
da tua expertise… algumas ideias ainda em embrião e que contava in-
José de Barros encolhe os ombros, como se cluir no próximo volume, A ANAMNESIS DO CLÃ
quisesse demonstrar que com o mal dos outros pode DESMEMORIADO.
ele bem. E em seguida tamborila sobre o tampo da “Alvinia Lorpa”, diz o resumo, “é uma jovem
mesa e estende o dedo indicador da mão esquerda peixeira na cidade portuária de Alvor Limpor. Pas-
na direcção do bom Horácio: — Passa para cá o teu sa os dias a amanhar escamas de serpente marinha,
revista BANG! [ 89 ]
escrava para toda a vida do emporium de farinha de te. Todos eles estão a enfiar num saco de compras os
peixe Voltifex Maximus. Nunca imaginou que a sua livros expostos na bancada e a apontar para os caixo-
vida iria em breve mudar radicalmente. Pois, num tes onde estão guardados muitos mais. O vendedor,
volte face que decerto surpreenderá até o leitor mais esse, não cabe em si de contente. O cartão de crédito
precavido, vê‑se dotada dos poderes mágicos de res- de Horácio blipa no scanner apropriado, registando
suscitação, quando o sector dorsal da serpente que a compra de 100 finíssimos volumes.
está a escamar volta de súbito à vida. Que irá aconte- — Que vem a ser esta hedionda fraude? — In-
cer em seguida? Poderá Roxana com a ajuda de um surge‑se o nosso estimado Mestre num acesso de
cardume de serpentes renascidas derrubar o empó- justa ira deontológica. — Os livros que a Roxana es-
rium capitalista do nefasto Voltifex Maximus? Não creveu só têm…
perca este romance avassalador, o primeiro de uma — Isso mesmo, as duas primeiras páginas, —
decalogia memorável” explica‑lhe ao ouvido a voz didáctica de Emanuel Sil-
vado, enquanto o nefasto José de Barros esboça um
«O vendedor não se queixa, tanto sorrisinho malvado. — OBLIVION PRESS ainda há
mais que acabou de esgotar a 45ª dias ganhou o prémio Eco‑free dado pela Quercus,
como a editora que mais contribuiu para a protec-
edição, assim como todo o ção das florestas. Afinal para quê publicar uma saga
conteúdo dos caixotes que guar- interminável onde cada volume tem mais de 500 pá-
dava debaixo da bancada.» ginas? Se o leitor se esquecer do que leu na primeira,
porque irá ele passar à segunda? Não, meu caro Ho-
Desconfiado, Horácio abre o livrinho, confirma rácio, estamos aqui perante os protocolos semióticos
que este não tem mais de duas páginas escritas, fran- que em tempos o saudoso Humberto Eco defendeu.
ze o sobrolho pensando que estão a tentar impor‑lhe Agata Christie vendeu‑se como pãezinhos quentes?
uma obra mutilada, esforça‑se por ler o primeiro Quer o meu amigo saber porquê? — Horácio Quiro-
parágrafo, tenta uma, duas, três vezes, mas é como ga não quer, mas resigna‑se a escutar. — Ora, porque
se houvesse aqui um vazio conceptual, como se já ti- os livros que ela escreveu eram todos tão, tão pareci-
vesse esquecido o que ainda agora acabou de assimi- dos, que as pessoas logo os esqueciam mal estivesse
lar, as mãos agarram‑se à capa e só então sente que a terminada a leitura. E voltavam a comprá‑los sem
lombada tem um toque metálico e agreste, como se disso se aperceberem…Ora, apoiada nesta interes-
existissem ali nano ganchos a rasparem‑lhe a pele da sante teoria, (o meu amigo vai ter de consultar o arti-
ponta dos dedos. Ler o primeiro parágrafo de uma go no meu Blog que escrevi precisamente sobre este
ponta à outra começa a tornar‑se numa obsessão. assunto), a OBLIVION PRESS imbuiu de Lethusina
Tenta uma vez, duas, cinco, mas a memória do que as lombadas de todos os seus livros. Basta agarrar
leu continua a diluir‑se, deixando atrás de si um de- num deles, para que a droga comece a impregnar a
sejo terrível de conhecer o incognoscível… Irritado, ponta dos dedos, através de minúsculas esquírulas
Horácio Quiroga poisa o livro sobre a pilha, fita nos capazes de penetrar a pele. Poucos segundos depois,
olhos o vendedor que lhe sorri, prazenteiro, com as o leitor perde o controlo, olvida‑se de tudo e volta ao
mãos abertas a expor os cinco romances da decalo- início…Roxana só teve de escrever a primeira pági-
gia já publicados. Num holo‑cartaz sobre a bancada, na em todos os volumes da sua saga…
uma anafada Roxana sorri em 3D, um sorriso carac- — E os idiotas dos críticos, como a imbecil
terístico de quem triunfou na vida sem grande esfor- da Filomena Otólita, aqui citada apenas a título de
ço. Horácio recua tanto quanto pode, até ir esbarrar exemplo, traumatizada com o facto de não conse-
contra o ventre rotundo de Gobul Pruesco. Só então guir lembrar‑se de nada do que leu, mas mesmo as-
repara que os seus raptores calçaram luvas transpa- sim forçada a fazer critica literária no pasquim onde
rentes de um polímero resistente a qualquer desgas- trabalha, acabou por dar à Roxana Peres uma clas-
revista BANG! [ 90 ]
sificação de cinco estrelas, transformando‑a assim das impressoras print‑on‑demand, que continua-
no novo expoente literário… — Acrescenta José de mente estremecem vomitando resmas de papel, sete
Barros a ranger os dentes e a estorcer a pobre capa hologramas monumentais agitam no ar mãos de
de um dos exemplares onde se pode ver a imagem uma duvidosa transparência, tentando chamar a si
da ex‑peixeira a cavalgar uma serpente marinha no os eventuais compradores. Compradores esses que
meio de um oceano tempestuoso. de facto são cada vez em maior número. E como
O vendedor não se queixa, tanto mais que aca- ninguém é santo neste mundo cruel, nem mesmo
bou de esgotar a 45ª edição, assim como todo o con- o nosso estimado Horácio Quiroga, julgo que será
teúdo dos caixotes que guardava debaixo da banca- útil confessar‑vos, que foi este o momento exacto em
da. As filas de fãs que inutilmente aguardavam pela que começou a sentir no estômago o travo azedo da
sua vez, urram de fúria, mas logo se calam quando inveja, o respingo acidulado do ciúme. Finalmente
José de Barros se vira para trás e lhes grita com um deu‑se conta que alguém está prestes a roubar‑lhe a
ar ameaçador: — Xeta, rua, pisguem‑se! clientela, a partir do dia de hoje e talvez para todo
— Malcriados, estúpidos, brutos…— murmu- o sempre. Que o nome Quiroga vai desaparecer das
ram baixinho cinco elfas balzaquianas biotransfor- listas de leitura obrigatória da Faculdade de Letras.
madas, que há duas horas aguardavam na fila para Que vai ser suplantado por produtos erzatz escri-
serem servidas, e que agora resolveram prudente- tos por uma mão‑cheia de mortos‑vivos. E como
mente recuar para bem longe da vista e do coração esse ciúme, essa inveja — que em abono da verda-
deste grupo tão desagradável quanto açambarcador. de todos nós sentimos quando os nossos inferiores
Quanto ao nosso Horácio Quiroga, esse está são mais bem sucedidos na vida, — não podem ser
cada vez mais confuso. O cartão de crédito foi‑lhe ignorados, eis que o nosso autor inicia o processo
devolvido com um corte chorudo no saldo disponí- de vender alma ao diabo. Afinal, para nos perder-
vel. O que vale é que o nosso estimado autor é rico, mos basta dar um passo, erguer um dedo, dizer que
e graças a isso pode viver confortavelmente da es- sim, mesmo baixinho. No instante em que Horácio
crita e visitar terras distantes como fonte de inspira- Quiroga penetra na sala de conferências, carregado
ção. Pergunta a si mesmo se esta não será a melhor com os caixotes cheios dos livros da Roxana Peres, é
altura para se escapar, mas logo verifica que tal não como se mergulhasse numa escuridão onde se esfu-
vai acontecer. Sempre atento, o grupo de raptores maram para sempre toda a honra e glória que costu-
indica‑lhe, num gesto imperioso, que deve carregar mava atribuir ao impoluto Alarico Estilete. Podemos
às costas com dez pacotes dos catorze disponíveis dizer, com uma declarada falta de originalidade, que
e dirigir‑se rumo à sala das mesas‑redondas, onde passou para o lado negro da Força.
precisamente por esta hora estava agendada uma Se Horácio Quiroga esperava encontrar uma
conferência sua sobre as marchas militares no reino sala cheia de fãs, ou seja, de jovens donzelas arfantes
de Alarmia. Nessa dita conferência estava previs- de desejo, vestidas com os trajes garridos de Alar-
to revelar que Alarico Estilete também ele possuía mia, ou então de garbosos espadachins defensores
dotes de tenor lírico. Infelizmente parece não haver da Lei e da Grei, ladeados por inúmeras cópias do
fuga possível, carregado como está com os caixotes Senhor das Trevas, estes com as espadas rúnicas er-
atafulhados com a produção minimalista de Roxana guidas em saudação, infelizmente tem todas as ra-
Peres. Sempre no meio do grupo, empurrado pelas zões para ficar desiludido. A sala está cheia, sim, mas
costas, Horácio aproxima‑se do cartaz que anuncia a com cinco turmas de criancinhas hiper‑vitalizadas.
quem o queira ler, que naquele anfiteatro vai dar‑se Cento e cinquenta infantes a chiarem de entusias-
início dentro de cinco minutos, à polémica revela- mo, nas convulsões de uma dor hiper‑positiva. O
ção: Alarico, se bem que muito macho, também é burburinho é imenso, caótico. Não se consegue es-
uma “alma sensível”… cutar uma única frase inteligível, pois todos eles co-
Lá ao longe, do outro lado do átrio, na zona municam entre si através da linguagem comprimida
revista BANG! [ 91 ]
dos SMS. Aliás, desde que ali entraram, começaram de terror. Os cinco professores em vias de desvita-
logo a organizar‑se numa estrutura multi‑tribal. Por lização, sentados nos restantes lugares, respiram de
todo o lado voam cadeiras, fragmentos de cartazes alívio perante a chegada dos anarco‑terroristas. To-
e smart‑panfletos estraçalhados onde os castelos de dos eles têm a aparência trágica de um tísico nove-
Alarmia faíscam ainda próximos de uma extinção centista na semana terminal. As mãos tremem‑lhes
definitiva. Jactos fruta‑cores de bebidas gaseifica- tanto que tiveram que assentá‑las sobre o tampo da
das respingam contra as paredes mais distantes, mesa. Junto ao pescoço, o desvitalizador — digo, o
numa simulação de sangue arterial. As câmaras de processador de Transferência Harmónica — conti-
segurança do Xeraton há muito que entregaram a nua a enviar megabites de dados aos alunos incapa-
alma ao criador e por isso nada registam. Ali não zes de os integrar nos respectivos wetwares. Devem
há inteligências artificiais a lerem a linguagem si- estar todos acumulados, à espera que os chamem,
lenciosa dos lábios das vítimas e a contactarem de na placa do buffer que os estudantes trazem presa
imediato as autoridades competentes. O ME nun- às costas à guisa de mochila, placa essa que eles há
ca saberá o que se passou, quem mutilou quem, muito decidiram que não valia a pena ter acesso. A
quantos meninos entraram já em coma profundo informação — sempre que requisitada — pode pas-
como consequência de traumatismos vários. Ho- sar directamente para os testes sem que o jovem seja
rácio avança pela sala, protegido pelo grupo de obrigado a assimilá‑la. Eis o sonho do nosso PM:
anarco‑terroristas, à força do tabefe e da canelada. Sucesso pedagógico garantido, bom para qualquer
Emanuel Silvado enfia a mão num dos caixotes e tipo de estatísticas, mesmo que a classe discente con-
distribui em volta exemplares da obra de Roxana tinue a sofrer da mais absoluta iliteracia conceptual.
Peres. Mãozinhas pegajosas agarram no livro, de- Mas o desvitalizador não envia só informações so-
dos calejados por tanto carregarem nos botões do bre os conteúdos programáticos. O desvitalizador,
telemóvel raspam nas lombadas, e… tal como o nome indica, envia também energia aní-
…é como se, aos poucos, uma estranha calma mica. Segundo as ordens do ME, cabe aos professo-
começasse a espalhar‑se pela sala. A lethusina que res estimular os seus alunos, tanto ao nível cognitivo
impregna as lombadas começa a faze‑los esquece- como ao nível afectivo e energético. Or else. Pouco
rem‑se das verdadeiras razões porque ali estão. Per- a pouco, num conta‑gotas irreversível, o professor
turbados, confusos, deixam tombar cadeiras, mocas, vai‑se consumindo ano após ano, rumo a uma refor-
facas e x‑actos. Vitrificam‑se dezenas de olhinhos ma que continua a acenar‑lhe muito para lá do ho-
que ainda há pouco luziam de maldade. Um fiozito rizonte. E entretanto os jovens fervilham de energia
de saliva escorre de algumas bocas. A atenção fixa‑se transmitida. Tanta, que até dói. Energia em excesso
nas capas garridas onde a jovem peixeira ressurrec- que lhes perturba as capacidades de concentração,
cionista agita a faca de amanhar num gesto de re- mas também quem é que precisa dela? Dizem as
volta contra a multinacional que a escravizou. Pés más‑línguas, que muitos encarregados de educação
entaramelam‑se noutros pés e os corpinhos infantis alteraram o software dos receptores dos seus filhos
acabam de tombar contra paredes e cadeiras, hipno- para que estes recebam um excesso de energia a
tizados por um inexplicável fascínio. 200%. Nada que os preocupe. Fechados nas escolas
Entretanto Horácio Quiroga, ainda assoberba- a tempo inteiro, cabe aos professores alimentá‑los,
do pelos caixotes que o forçaram a transportar, con- estimulá‑los, energificá‑los. Os professores respon-
seguiu chegar junto da mesa das conferências. Oito sáveis por estas cinco turmas devem estar perto do
dos lugares estão já preenchidos. Amarrados com fim de uma carreira a todos os títulos gloriosa. Ter-
guitas, amordaçados com um neuro‑sujeitor decerto minado o processo ensino‑aprendizagem, só podem
comprado nos sites Sado‑maso da globalnet, Aris- esperar do ME a justa reforma correspondente a
tides Solterno, Nissa Valmundo e Marília Perdita cinco meses de justa luxúria no Centro de Eutanásia
agitam‑se, comichosos, com os olhos esbugalhados Compulsiva. É assim que o PM justifica uma morte
revista BANG! [ 92 ]
feliz como gratificação de uma vida de trabalho, em dade é que já não lhe apetece fugir. Desde há muitos
nome da Utopia. anos que não participa de um mistério tão complexo
Gobul Pruesco, um tanto ou quanto dispép- e sublime.
tico, poisa sobre a mesa o pequeno caixote de livros — Tem a certeza que isso vai resultar? — Per-
que trazia nas mãos, abre a sacola de ombro e come- gunta um dos Profes a Pruesco numa voz sumida.
ça a retirar materiais heteróclitos em peças destacá- — Podemos inverter o processo? A sério?
veis. Cinco simulacros de desvitalizadores são postos — A sério… — Concorda Pruesco com um
frente ao grupo de professores convidados. “Mmm, arroto nada discreto, apontando um pequeno inter-
grrr, mmm”, esforçam‑se por articular o editor, po- ceptor na direcção do pescoço do primeiro profe.
etisa e catedrática, todos ao mesmo tempo, sem — Prepare‑se. Respire fundo. Olhe que o choque vai
perceberem nada do que se está a passar. Aristides ser grande. Vou alterar as características do desvitali-
Solterno revira os olhos, piscas pálpebras carregadas zador. Dentro de cinco segundos vai passar a receber
de rímel num pedido silencioso de ajuda na direcção em vez de enviar…Quatro…três…dois…
de Horácio Quiroga que acabou nesse momento de
passar para as mãos da turba‑multa de criancinhas «Uma calma quase mágica começa
o último exemplar da Roxana Peres. Agastado por
uma traição de que só agora se deu conta, o nosso a espraiar‑se pela sala. As criancinhas
laureado autor não lhe liga nenhuma. Usufrui mes- deixaram de saltar, de prejudicar
mo de um secreto prazer ao deparar‑se com estas a estrutura dos objectos mais
três melgas mudas e amarradas. Em boa verdade, até
fica bem à Nissa Valmundo tanta corda e tanta mor- próximos. Pacificadas pela lethusina,
daça. Um bocadinho mais tatuada e musculada e se- já quase não se apalpam umas às
ria tal e qual uma das Amazonas de Alarmia prestes outras.»
a receber as sevicias do Senhor das Trevas Bolarte,
residente nos ilhéus de Poncaria. Chegado o momento zero, cinquenta alunos
À medida que os alunos convidados vão roen- tombam de borco em pequenas pilhas de bracinhos
do, lambendo, raspando nas lombadas dos exempla- roliços e pernas a adejar. No momento anterior ain-
res da OBLIVION PRESS, uma calma quase mágica da estavam de pé, com os dedos, dentes e línguas a
começa a espraiar‑se pela sala. As criancinhas deixa- rasparem nas lombadas martirizadas do livro da Ro-
ram de saltar, de prejudicar a estrutura dos objectos xana Peres. No momento seguinte é como se lhes ti-
mais próximos. Pacificadas pela lethusina, já quase vessem desligado todos os circuitos de manutenção.
não se apalpam umas às outras. Emanuel Silvado foi Após anos e anos de receptividade passiva, passaram,
lá ao fundo trancar as portas para impedir mais mi- como quem desliga um interruptor, ao estado de des-
rones de entrar. Josué Pedrinhas está nesse momen- vitalizados. A energia anímica começa agora a fluir
to a consultar os dados informáticos da sua fiel PDA, no sentido inverso, ou seja, na direcção de quem lha
de sobrolho franzido, em busca de um qualquer lo- forneceu durante uma vida inteira. Com um sorriso
ophole jurídico capaz de bloquear o pedido de asilo ao canto dos lábios, Gobul Pruesco repete o processo
das PAs sobreviventes. O cruel José de Barros está a nos restantes professores. E os educadores, após anos
montar, peça após peça, aquilo que parecem ser cin- e anos de agonia, desde que o presente governo lhes
co pistolas ligadas a latas de bebida gaseificada. Cla- impôs como regra sine qua non, a obrigatoriedade
ro que Horácio Quiroga nunca se deu ao trabalho de ceder tudo a quem educam, piscam os olhos,
de ler os pulps inócuos do inicio do século passado, rasgam a boca numa expressão de êxtase profundo,
doutro modo teria reconhecido nelas o aspecto de e aos olhos de quem os observa, — especialmente
um desintegrador. Incomodado por não ser o foco os do nosso estimado Horácio Quiroga, — é como
de atenção de ninguém, tossica, discreto, mas a ver- se uma corrente de energia quase visível fluísse no
revista BANG! [ 93 ]
sentido contrário, uma corrente luminosa de força, cabecinhas de cinco neo‑lolitas e dois proto‑hoods.
de sexualidade reprimida, como um bombom belga E sem mais demoras logo os substitui, com a ajuda
a derreter‑se‑nos na boca, como um snifar de coca de uma bisnaga de colagel orgânico, por sete falsos
ou uma pitada de rapé, como o choque da primeira receptores. Ai, ui, bruto, dizem os meninos mais ac-
chávena de café após o torpor matinal. tivos no momento da excisão, para logo se esquece-
— Força nisso! — Exclama José de Barros sem rem do que lhes aconteceu. Nos meses que se vão
erguer os olhos das engenhocas mortíferas que con- seguir, o rendimento escolar destes adoráveis infan-
tinua a montar. — Mostrem‑lhes quem é que man- tes vai descer exponencialmente e destruir todas as
da! estatísticas governamentais relativas ao bom sucesso
— Extraordinário…— Murmura um dos pro- escolar. Aparentemente, nenhum dos presentes está
fes. ­ — Sublime… Pena é que isto esteja para aca- preocupado com isso. Ninguém quer saber. Existem
bar… Mesmo assim, seis meses, sem ter de lhes en- informações suficientes nos buffers que todos os alu-
viar nada… Até à próxima inspecção… nos transportam às costas, a fazer as vezes de pastas
— Na próxima inspecção já o governo caiu e a escolares. Informações que podem invocar e trans-
utopia do nosso PM entregou a alma ao criador… ferir directamente aos lobos pré‑frontais se de facto
­— Acrescenta Emanuel Silvado, bondoso e con- quiserem processá‑las. Apenas um pequeno esforço
descendente. — Até lá podem fingir com os des- na busca do arquivo correcto, um quase nada, em-
vitalizadores falsos. Os camaradas são cinco numa bora Horácio Quiroga começe a compreender, com
comunidade escolar de milhares. Ninguém vai dar uma pontinha de horror, que esse esforço nunca será
por nada. Estas turmas não se vão lembrar de nada feito. Afinal, nenhum deles leu a sua maravilhosa
do que aconteceu aqui. A lethusina está a inibir‑lhes saga de Alarmia. Quem a leu foram os professores.
qualquer memória pró‑activa. Até que se esgotem os Memórias processadas e digeridas, prestes a serem
efeitos, as recordações a curto prazo não vão poder activadas sem o menor esforço, logo que os discentes
ser convenientemente processadas. as procurem nos arquivos do buffer. Se é que alguma
— Já chega? — Pergunta Gobul Pruesco aos vez o vão fazer…
profes extasiados, depois de enfiar na boca dez pasti- — Meninos! — Chama a professora Anastasia
lhas digestivas. — Posso retirar os desvitalizadores? Salerma, sob o olhar aprovador do grupo de terroris-
Todos os educadores acenam que sim. Esta tas. — Tudo bem? Estão acordados? Podemos fazer
troca faz parte do contracto que estabeleceram, me- uma pequena brincadeira?
ses atrás, através de sites ilegais, com este grupo de — Gah… — respondem os alunos mais acti-
anarco‑terroristas. E terminados os secretos proto- vos, ou melhor, menos desvitalizados, embora em
colos deste acordo, — acordo que o jurista Josué Pe- todos esses olhinhos piscos se revele uma profunda
drinhas os fez assinar na placa do seu PDA, não fosse dificuldade de concentração.
o Diabo tecê‑las, — Gobul Pruesco arracanca‑lhes — Tudo bem… É uma brincadeira muito
do pescoço, à força de um pequeno bisturi laser, a gira…Valeu? Ora vamos todos arrancar as lombadas
placa desvitalizadora e substituia‑a por uma falsa, desses livrinhos que vocês estão a segurar, sim? Por-
aparentemente idêntica, tão depressa quanto pode, caria de livro, buerk, né? Arranquem as lombadas
para que o sinal de interrupção de actividade não e venham aqui pô‑las sobre a mesa, à nossa frente.
chegue aos sensores sempre atentos do Ministério Conseguem fazer isso? Fixe! Cool!
de Educação. Em pouco mais de dois minutos, já O processo de mutilação da obra imortal da
repousam sobre a mesa cinco emissores de transfe- Roxana Peres dura vários minutos a ser completa-
rência harmónica. Resta recolher pelo menos sete do, tanto mais que as ordens professorais têm de ser
receptores da zona cervical das criancinhas apáticas repetidas de trinta em trinta segundos. Mal as crian-
e silenciosas. Tarefa que cabe ao sinistro José de Bar- ças agarram nas lombadas, logo se esquecem do que
ros que, sem o mínimo de compaixão, os arranca às lhes mandaram fazer. A verdade é que têm as veias
revista BANG! [ 94 ]
saturadas por overdoses de lethusina. Os professores E os profes, comovidos por este terrível dis-
presentes explicam‑lhes o modo operativo, vezes e curso, despedem‑se dos anarco‑terroristas com mil
vezes sem conta, munidos de uma paciência exem- abraços e palmadinhas nas costas, aqui e ali com
plar. Felizmente o espaço dedicado à conferência de uma lagrimita teimosa de felicidade por não serem
Horácio Quiroga é de duas horas e por isso há tempo obrigados a ler mais nenhum dos horrorosos roman-
de sobra para tudo. Quarenta e cinco minutos de- ces incluídos no plano de leitura do ME, e encami-
pois a mesa está cheia das chapinhas metalisadas, a nham‑se na direcção da porta da sala de conferên-
verter a saliva de quem as lambeu. Enquanto isso, já cias, empurrando as turmas à força de um ou outro
José de Barros encheu um contentor com água mi- pontapé e bofetada, como se quisessem aproveitar
neral e enfiou lá dentro os restos mortais das lom- estes raros momentos de amnésia para darem azo a
badas, não sem antes ter coberto as mãos com um uma pequena manifestação de violência professoral
polímero protector. Cinco minutos de furiosa acti- reprimida durante tantos e tantos anos de pedago-
vidade com a ajuda de uma varinha mágica servem, gias não directivas.
quanto baste, para que se faça uma boa mistura. A sala vandalizada fica uma vez mais deserta,
Agora tubagens aspiram a água saturada de lethusi- ou quase. Pelo chão há cadeiras partidas, pasteletas
na, transferem‑na para dezenas e dezenas de micro esborrachadas de pastilhas elásticas, bolinhas sali-
canalículos de cera, canalículos esses que são agora vadas de panfletos publicitários, restos de ranho e
arrefecidos e congelados graças a uma cápsula de ni- baba, aqui e ali uma gotícula de sangue proveniente
trogénio líquido. Vapores de condensação enchem dos combates mais bravios inter‑pares e, claro, deze-
a sala num smog novecentista. Horrorizado, Horá- nas e dezenas de exemplares destruídos da obra im-
cio Quiroga compreende enfim que José de Barros par de Roxana Peres, espezinhados e estraçalhados.
está a fabricar micro‑projecteis de água congelada. Horácio Quiroga contempla tudo isto como se per-
Se penetrarem num corpo qualquer, — e o nosso cebesse enfim a que se refere o termo “justiça poéti-
laureado mestre fantasista está certo que será esse o ca”. Enquanto ele foi obrigado a escrever centenas de
caso, — provocarão na vítima uma súbita crise de páginas por volume, Roxana, essa cabra, limitou‑se a
amnésia pró‑activa. escrever uma ou duas por cada um deles.
José de Barros gargalha baixinho, com um es- — Uhn…gah…uhm… — Murmuram em
gar de pérfida maldade, pega nas centenas de farpas conjunto Aristides Solterno, Nissa Valmundo e Ma-
refrigeradas com a ajuda de uma pinça e transfere‑as rilia Perdita, ainda manietados e amordaçados num
para as unidades de carga dos três desintegradores cantinho obscuro da sala devastada, ao notarem que
que acabou de montar. Gobul Pruesco está nesse preciso momento a apro-
— Prontinho! — Diz com um ar satisfeito. — ximar‑se deles. Gobul transporta nas mãos três das
Está terminado. Podemos passar à fase seguinte. Se- placas desvitalizadoras, mais a bisnaga de colagénio.
nhores profes: Podem retirar‑se com os nossos agra- Sem mais demoras, com apenas uma ou outra inter-
decimentos. E não se esqueçam de levar convosco as rupção para dar azo a uma sequência de prodigiosos
criancinhas…Não deixem ficar nenhuma para trás, arrotos — prova de uma digestão assaz complicada,
por muito que seja essa a vossa vontade. Podem ficar — o hacker anarco‑terrorista cola‑lhes as placas nas
descansados durante seis meses. A ineficácia dos sete bases dos pescoços, junto aos sensores de interface
elementos a quem substituímos a unidade de recep- que quase todos os cidadãos foram compelidos, por
ção vai diluir‑se no meio do caos diário das vossas ordem ministerial, a implantar há dez anos atrás.
escolas. Vivam felizes até à próxima inspecção que Terminado o serviço, consulta o seu PDA, reforma-
espero bem que nunca venha a acontecer! Abaixo a tando os circuitos das placas com um programa de
desvitalização compulsiva! Abaixo a Terra do Nunca intrusão. Luzinhas indicadoras acendem‑se garan-
do nosso PM! Viva a anarquia de ter um livro para tindo a perfeita funcionalidade dos sistemas. Nissa
ler e não o ler! Valmundo estremece e revira os olhos no preciso
revista BANG! [ 95 ]
momento em que o sistema wifi da placa começa a detrás dos olhos, programas que apontam, graças
captar as emissões próximas de todos os alunos que a uma complexa árvore de opções multiplas, para
ainda assombram o hall central do Xeraton. José de uma recepção próxima da ideal. Vias opcionais
Barros arranca‑lhe a mordaça, e repete o mesmo perguntam‑lhe para onde hão‑de ser transferidas as
processo na pessoa de Aristides Solterno e Marilia informações recebidas através da transferência har-
Perdita. O trio pode enfim falar, queixar‑se, protestar, mónica. Directamente para os lobos pré‑frontais ou
sugerir futuros processos legais de difamação, mas a para a base de dados do buffer?
verdade é que não diz nada, envolvido que está no — Agora muita atenção! — Adverte Gobul
êxtase visceral da transferência anímica. Dezenas e Pruesco. — O meu amigo vai aproximar‑se dos sete
dezenas de alunos hiper‑activos descarregam parte cilindros e receber a totalidade da descarga, entendi-
das energias acumuladas nos receptores de cada um do? É preciso que ela seja encaminhada para o buffer
deles. E embora se possa ver em todos os olhos deste e não para a sua cabeça. Os cilindros vão ficar esva-
trio raptado, uma pontinha de culpa, a verdade é que ziados de conteúdo anímico em apenas dois ou três
nada dizem nem nada fazem para se escaparem dali, minutos. Em data oportuna apagaremos definitiva-
agora que José de Barros lhes cortou as ataduras com mente todos os dados coligidos, tal como nos pedi-
a ajuda de um bisturi de lamina monomolecular. ram as PAs. Estou a lembrar‑lhe que os dados devem
— Ah… o absoluto… — sussurra Nissa Val- ser transferidos para o buffer e não para a sua cabe-
mundo erguendo a mão anelada contra a testa. — Ai ça, porque desconhecemos o que poderia acontecer
a distância impossível das estrelas dispersas na negra caso esse erro ocorresse. Até hoje ninguém conse-
noite virgem… guiu meter na cabeça a estrutura da personalidade
— O excesso, o excesso… — Acrescenta a ca- de sete individualidades autónomas. Não queremos
tedrática Marilia Perdita. — Tenho agora forças de grelhar‑lhe os miolos com um excesso de informa-
sobra para ler a obra completa do incomparável Jor- ção, correcto? Por muito que seja essa a vontade do
dan… nosso parceiro José de Barros, aqui presente. Não li-
— Ah, meus caros amigos… — Termina Aris- gue aos acenos de cabeça. Aquilo são mais as vozes
tides Solterno. — Estão todos perdoados…Nunca do que as nozes…
antes me senti assim, tão sexualmente potente… — Porque no fundo, no fundo, — concorda
Obrigado, obrigado… José de Barros com um esgar capaz de gelar o sangue
Entretanto chegou a vez de Horácio Quiroga nas veias de qualquer um, — também eu sou uma
experimentar as delícias da transferência harmóni- alma sensível, hihi…
ca. É o último a ser implantado, ele que sempre se — O acesso ao centésimo andar, andar onde es-
recusou a receber próteses hipertech. Mesmo assim, tão guardados os cilindros, só é permitido aos VIPs,
agora que se passou para o inimigo, compreende a nunca a nós, pobres autores ostracizados. — Expli-
vantagem destes implantes. Tem agora força e ener- ca Emanuel Silvado, sempre bondoso e didáctico.
gia para dar e vender. Sente‑se capaz de terminar as — Só lá podem entrar, por questões de segurança,
oitocentas páginas da PATORRA em apenas uma agora amplificadas pela crise internacional resultan-
noite de trabalho esmerado. Os olhos brilham‑lhe te da guerra dos copyrights, algumas personalidades
de entusiasmo criativo. Os dedos anseiam por pegar judiciosamente escolhidas. Representantes do Go-
na pena e secar fileiras de tinteiros. Mas afinal não é verno. Advogados quanto baste. Os Embaixadores
isso que o grupo quer dele. Gobul Pruesco está nesse da China e Coreia. Dançarinas do ventre e jovens
momento a colar‑lhe às costas uma placa de buffer, efebos bi‑sexuais, para distraírem as mentes lúbricas
semelhante àquela que os alunos transportavam. Só dos autores convidados. Sem esquecer alguns segu-
que esta, depois de desdobrada e activada, se revela ranças adicionais a soldo do nosso PM. E, claro, o
ter quase uma capacidade quase infinita de retenção grupo de ninjas defensores das PAs, sempre incor-
de dados. Programas indicadores correm‑lhe por ruptíveis, que as acompanharam como lapas. Mas os
revista BANG! [ 96 ]
estimados cavalheiros, refiro‑me a si, caro Horácio, de estudo, ou seja, a nova geração sujeita aos proto-
à Nissa Valmundo, à Dra. Marilia Perdita e ao lasti- colos da transferência harmónica, esses parecem um
moso Aristides Solteno, o responsável por toda este pouco mais quiscentes, mais submissos, menos des-
estado de sítio, têm direito a um passe especial. Por trutivos, como se de súbito tivessem deixado de re-
isso podem visitar o andar superior sem problemas. ceber parte da energia anímica até ali emitida pelos
Só vai ser preciso colarem à socapa os emissores que professores responsáveis. Em boa verdade o progra-
subtraímos aos alunos em cada um dos cilindros. E ma de intrusão que Gobul Pruesco pirateou nas cin-
para que isso seja possível, vamos ter de praticar co placas sonegadas, descracou o sistema para que
algumas manobras de diversão… este receba energia anímica de todas as turmas con-
— Ou mesmo algumas eliminações com ex- vidadas. E agora, como uma torrente invisível, essa
cesso de prejuízo… — Acrescenta José de Barros. energia escorrega pela infosfera e derrama‑se sobre
— Como assim? — Pergunta Horácio, de Nissa Valmundo, Marília Perdita, Aristides Solterno,
sobrolho erguido, como um perfeito conspirador. sem esquecer o nosso incomparável autor, Horácio
— Basta‑me chegar junto deles e… Quiroga. Nissa estremece num estado de pré‑orgas-
E o grupo de anarco‑terroristas passa a ex- mo, sujeita aos prazeres de um vampirismo pedófilo.
plicar todas as fases do processo, tim‑tim por Marília sente o ventre encher‑se de milhares de teses
tim‑tim, devagarinho, para que todos possam com- de pós‑doutoramento em vias de gestação. Aristides
preendê‑las. insufla o peito, confiante que será desta que vai con-
seguir fazer sair Horácio do proverbial armário. O

U ma vez mais o grupo cruza o átrio central, aos


pares, com o cruel José de Barros à frente de
todos, a abrir caminho à força de cotovelos e canela-
próprio Horácio, tão pouco afeito a qualquer tipo de
tecnologias, começa a perceber que nem tudo é mau
no mundo de amanhã. E embora a informação que
das. Entretanto a Fantascom prossegue, entusiástica, está a receber seja apenas um pouco de força física,
como se os problemas internacionais pertencessem — dado que não é necessário receber os parcos con-
a uma outra dimensão. Jovens élficas biotransforma- teúdos gnósticos das criancinhas que por ali proli-
das sacodem as mamocas prisioneiras dos coletes feram, — sente‑se como se estivesse a respirar uma
de simil‑bronze e investem na direcção dos blocos baforada de oxigénio puro, a injectar nas veias um
de impressoras que continuam a vomitar resmas e shoot de adreno‑cocaína. Maravilhado, deixa‑se en-
resmas de smart‑paper com as derradeiras edições volver neste entusiasmo que lhe recorda os tempos
das mais recentes obras‑primas das PAs convidadas. de juventude onde, ainda com pouco dinheiro mas
As formas translúcidas e gigantescas de Asimov, Ro- sempre em busca de novas fontes de criatividade,
wling, Feist, Coelho, Dan Brown, McCaffrey acenam viajava à boleia pelas tundras selvagens da Sibéria
em movimentos judiciosamente estudados para Neo‑capitalista.
infundirem nos compradores incontroláveis senti- A viagem através do átrio, na direcção dos
mentos de desejo e confiança. Nos ecrãs traseiros, elevadores, pouco dura, embora pareça uma eter-
desenham‑se capas dos livros em vias de impres- nidade. O tempo, estimados leitores que ainda me
são, seguindo esquemas hipnoglíficos compulsivos acompanham, quando estamos sujeitos ao processo
criados pelos mágicos de Seoul. E é um rodopio na de transferência harmónica, parece dilatar‑se em mi-
direcção da sala do fundo, com todos os fãs adultos lhares de segundos de doce subjectividade. É como
a agitarem os cartões de transferência de crédito di- se o grupo, no meio do inferno, tivesse direito a um
gital, num jogo de agressividade mal contida, pois de antegosto do céu.
facto estas edições estão numeradas com a data e a Por fim chegam junto dos elevadores, enxotam
hora exacta da impressão e quem sabe quanto mais é para o lado sem consideração nenhuma dois ou três
que vão valer no mercado da nostalgia, daqui a uns pares de orcs mortinhos por se dirigirem às respec-
cem ou duzentos anos. Quanto aos alunos em visita tivas tarimbas para alguns minutos de truca‑truca
revista BANG! [ 97 ]
brutal, Josué Pedrinhas aflora com o dedo o botão de — Se continuar a incomodar‑nos durante o
chamada, acende‑se o rosto de um Smile no indica- resto do percurso, — lembra o jurista Josué Pedri-
dor de espera, uma boca sorridente conta os segun- nhas, — lanço‑lhe já uma providencia cautelar…
dos que faltam até a cabina chegar, até que as portas — E eu ralada, senhores emproados‑com‑a‑ma-
se abram e que o grupo se comprima no interior da nia‑que‑tudo‑sabem… A minha colega aqui do lado
cabina. acaba de me avisar da vossa má criação, ainda algu-
— É lá cavalheiros…— Respinga a IA do ele- mas horas atrás, quando se recusaram a conversar
vador. — Estamos no limite máximo de carga. Até com ela sobre o último opus da diligente Roxana
cinco pode ser, mas oito? Importavam‑se de se di- Peres. Desprezem‑me, ignorem‑me, façam como
vidirem ao meio e esperarem pela chegada do meu quiserem mas garanto‑vos que as coisas não ficam
sócio? por aqui.
— Importamos sim senhor! — Rosna José de
Barros. — Estamos dentro dos limites de tolerância. «A cabina é esconsa. Os bloqueadores
Deixe‑se de mariquices. Não vai haver separações, feromónicos do elevador há muito
coisa nenhuma! Queremos ir para o 99º andar, e que
o serviço seja feito rapidamente e em força, que te- que esgotaram as respectivas cargas.
mos mais que fazer! Corpos espalmam‑se contra corpos,
A cabina é esconsa. Os bloqueadores feromó- sem que seja emitido um único
nicos do elevador há muito que esgotaram as res-
pectivas cargas. Corpos espalmam‑se contra corpos, pedido de desculpas. Com tanta
sem que seja emitido um único pedido de desculpas. fricção, Aristides e Nissa arfam de
Com tanta fricção, Aristides e Nissa arfam de praze- prazeres mal‑contidos.»
res mal‑contidos. Horácio Quiroga procura esguei-
rar‑se para um canto, para se escapar às mãozinhas, Os olhos malvados do sinistro José de Barros
sempre vivazes, do seu editor. A barriga de Gobul começam a cintilar num brilho muito pouco convi-
Pruesco ribomba contra as costas de Marilia Perdita. dativo. Gobul Pruesco solta uma bufa mefítica sem
Há botas a pisarem pés. Os saltos agulha das sandá- que seja formulado um pedido de desculpas. Nissa
lias de Nissa Valmundo abrem dois buraquinhos nos Valmundo levanta a mão à testa, como se estivesse
sapatos proletários do bondoso Emanuel Silvado que prestes a desfalecer, mas a energia que entretanto
nem sequer solta um gemido de protesto. Mas a ver- recebeu através da transferência harmónica é tanta,
dade é que o grupo tem de subir em conjunto, não vá que já não lhe permite este tipo de desacatos, nem
haver traições ou fugas de última instância. mesmo quando são fingidos. Entalado ao centro do
Abespinhada, para preencher silêncios incó- elevador, Aristides Solterno esforça‑se em vão para
modos, a IA do elevador inicia a conversa para que se aproximar de Horácio Quiroga. Mas a verdade é
foi programada: — Pois claro. Abusem, abusem, ig- que, com tantos sacos de equipamento a atravanca-
norem os meus avisos. Façam de conta que eu não rem o chão, ninguém consegue mexer‑se do lugar
estou aqui. Se os cabos se soltarem a meio cami- onde está. E a IA do elevador, sempre vingativa, lá vai
nho, sempre posso ser reiniciada sem problemas de subindo, devagarinho, de modo a prolongar o sofri-
maior. Mas os cavalheiros alegadamente orgânicos? mento dos seus utentes.
Acham que recuperam do choque em queda livre, Mas não há mal que sempre dure, como diz um
ou melhor da súbita cessação da dita? velho, velho ditado. Ei‑los enfim chegados ao 99º an-
— Schiu! Caluda! — Ordena Gobul Pruesco! dar, aquele imediatamente abaixo do piso onde estão
— …Lamento, mas não estamos interessados guardados os cilindros das PAs. O andar dos con-
em “conversas de elevador”, — acrescenta Emanuel vidados VIP, onde a editora CLEMENCIA PRESS
Silvado, sempre polido. reservou quartos para Horácio e Cia. Abrem‑se as
revista BANG! [ 98 ]
portas do elevador, a atmosfera saturada da cabina para uma tese futura sobre os hábitos secretos dos
mistura‑se com os odores residuais que pairam no autores nacionais. Indiferentes a todo este reboliço,
corredor, e todos se acotovelam para saírem primei- os conspiradores começam a abrir sacos e maletas
ro, esquecidos das regras absolutas que comandam a sobre a cama, retirando do interior toda uma série
impenetrabilidade da matéria. de equipamentos quase incompreensíveis aos olhos
O piso estende‑se num quadrângulo ao lon- do leigo.
go de toda a estrutura do Xeraton. Os tapetes estão Só então Horácio nota que o quarto está a aba-
cheios de depósitos lançados pelos grupinhos de fãs nar, docemente, docemente, como as ramagens de
que por ali passaram, rumo aos apartamentos dos um salgueiro. O chão marmóreo estremece, ondula,
seus autores favoritos. Por todo o lado vêem‑se co- estremece. E o nosso laureado autor, um tanto ou
pos esborrachados ainda com a marca de pés nus, quanto assustado por se encontrar no interior de um
sinal que por ali passaram muitos candidatos a orcs. prédio periclitante, abre os braços, engole em seco,
Seringas de contacto. Adesivos abortivos. Panfletos olha para o grupo como se quisesse pedir ajuda, mas
amalgamados graças a substâncias que mais vale resolve calar‑se para não dar parte de fraco, até que
não identificar. Aqui e ali, pontapeado para um can- Emanuel Silvado resolve explicar‑lhe o que está a
to, pode ainda descobrir‑se um ou outro livro aban- acontecer:
donado. Mesmo dobradas, as smart‑covers exibem — São os andares superiores excedentários,
ainda uma pequena animação dos respectivos con- mandados construir in extremis pelo nosso PM. A
teúdos. Do outro lado das portas ouvem‑se restolha- estrutura original do Xeraton não os recebeu muito
das, gritinhos e, de vez em quando, o estalajar sónico bem. Além disso, os ventos de monção são incle-
de um chicote disciplinador. Aristides Solterno sus- mentes, ao ponto de fazerem oscilar toda a estrutura.
pira e indica a direcção correcta do apartamento que Mas não deve haver problema. Isto não vai cair, pelo
a sua editora alugou em nome de Horácio Quiroga. menos nas próximas horas…
A placa sinalética pisca‑lhe na mão, despertando nas — Um momento, um momento! — Excla-
paredes do corredor um fluir de setas esverdeadas. ma em voz alta Aristides Solterno levando a mão
Finalmente, o grupo chega onde é suposto che- à orelha. — Meus senhores, que desgraça! Tenho
gar. Aristides passa a placa pelo sensor junto à porta novidades relativas à guerra dos copyrights! Os sa-
do quarto, um Smile acende‑se a acenar que sim, e a télites assassinos entraram em órbita sobre Lisboa.
porta roda para o lado, complacente, cedendo a pas- As negociações em curso, relativas à devolução das
sagem a todas estas vítimas e conspiradores. PAs sobreviventes, não deram em nada. O nosso PM
O apartamento, assaz luxuoso, segue as regras recusa‑se a ceder a pressões estrangeiras. Ainda há
que Horácio Quiroga impôs um dia. Nada de para- pouco declarou que a Utopia não se vende. Que a
fernália hitech. Nem um só sensor gnóstico. Os ecrãs Utopia não dá parte de fraca! E a China replicou que
interactivos das paredes encontram‑se desligados. vai haver um disparo de aviso… dentro de… céus…
Mesmo assim, sobre a escrivaninha, pode ver‑se um dois minutos… vão derrubar a Ponte da Trafaria.
cabaz de frutas tropicais e uma boa dúzia de garrafas — Ai, a desgraça, ai que triste mundo este…
de água mineral, importadas a peso de ouro das nas- — Geme Nilssa do fundo do seu sofá.
centes dos Himalaias. Um sono dispersor murmura — Temos de nos despachar… — Avisa Josué
em surdina canções de gesta do sul de Alarmia. O Pedrinhas. — E despachar as PAs o mais depressa
chão, de simil mármore, lembra os templos agnós- possível. O autismo do governo, daqui a nada vai dar
ticos do reino de Dúbia. O nobre Horácio Quiroga cabo de Lisboa…
dá um estalido de aprovação com a língua, enquan- A ranger os dentes, José de Barros dirige‑se à
to Nissa Valmundo desliza sobre o sofá fazendo de janela panorâmica, empurrando para o lado quem
conta que está prestes a desfalecer, e Marília Perdi- quer que se lhe atravesse ao caminho. Reflectida
ta assenta na sua PDA algumas notas explicativas nos vidros, brilha a sempre‑eterna Utopia, a Ter-
revista BANG! [ 99 ]
ra‑do‑Nunca que o PM impôs à Nação. Uma Lisboa x‑acto laser do bolso e investe sobre o vidro numa
gernsbrackiana fulge numa glória frenética, quase tentativa declarada de mutilar este futuro glorioso
insustentável, que as capas dos pulps em tempos ce- que se avista através da janela. Bastam dois minu-
lebraram. Torres de vidro e ferro forjado ligam‑se tos para que os fechos electrónicos cedam a alma ao
umas às outras através de passadeiras tão finas que criador. As portadas abrem‑se de par em par. Uma
lembram fios de uma teia de aranha. Auto‑giros fer- ventania carregada de cinzas e odores a gordura re-
vilham em espirais ascendentes, descolando das pla- quentada invade o quarto. Sobre esta nova Lisboa já
taformas superiores dos zigurates Taveira. Dirigíveis não brilham as estrelas. Os zigurates esfumaram‑se
pululam os céus, cobertos de néones e hipnoglifos, como por encanto, talvez cobertos pelo smog que se
pachorrentos como baleias celestes, promovendo a escapa de milhares de chaminés e fogões a hulha.
necessária escalada dos impostos. Lá ao fundo, jun- Uma chuvinha ácida tomba dos céus. Lá em baixo,
to à embocadura do Tejo, disparados pelos canhões na rua frente ao átrio do Xeraton, deixaram de se ver
electromagnéticos, os primeiros vaivéns da noite as- as passadeiras rolantes, as vias sobre‑elevadas, os to-
cendem rumo às colónias langrageais. No meio de piários dos micro‑jardins e fontanários a verter água
tanta luz, seria quase impossível verem‑se as estre- sempre fresca. Tudo isto foi substituído por pilhas de
las. Mas elas está lá, bem visíveis, dispersas por toda entulho, carcaças de autocarros, e acampamentos ét-
a abóbada celeste, tão fulgurantes como focos de nicos em permanente estado de guerra. Na distância
halogéneo, a mostrar o caminho do futuro. O PM ouvem‑se buzinadelas, gritos e clamores. Os mais
prometeu a quem o quis ouvir que, até ao final do interessados do grupo resolvem ignorar este baixo
novo milénio, contra tudo e contra todos, haveria de mundo para o alto, como se quisessem ver os satéli-
colocar um homem, não na Lua, mas sim nas estre- tes assassinos que orbitam sobre Lisboa.
las mais distantes. Que a recessão económica seria — Está quase… — Murmura Josué Pedrinhas.
resolvida de uma vez por todas. Que a educação da — Sacanas dos amareloques! — Clama José de
juventude haveria de florescer numa aura de sucesso Barros num comentário politicamente incorrecto.
escolar, capaz de envergonhar qualquer génio da EU. — Gandas melgas!
Que a Lisboa futura teria enfim o aspecto revelado — Ai meu Deus, que desfaleço! — Geme Nils-
por todas as janelas virtuais. E para que os cidadãos sa Valmundo lá do fundo do seu sofá. — Fechem‑se
se fossem habituando a esse amanhã inevitável, de- essa janela, por piedade. Ai o cheirete. Ai a venta-
cretou que ele se tornasse visível, hic et nunc, em nia. Ai o incómodo. A visão de tantos pobres depri-
todos os prédios, instituições, escolas, ministérios, me‑me!
maternidades e centros de eutanásia compassiva. — Venha aqui para junto de nós, — chama José
A visualização da Utopia seria gratuita. Haveria um de Barros puxando pelo braço do nosso estimado
imposto, sim, mas apenas para aqueles que quises- Horácio Quiroga. — Leve um banho de realidade!
sem espreitar a verdadeira realidade exterior. Mergulhe no mundo real.
É por isso que a janela do quarto custa a abrir, Horácio deixa‑se conduzir a medo até ficar
se é que alguma vez isso aconteceu. A gerência do perante o abismo, com a barriga encostada ao para-
Hotel de modo algum deseja que um eventual clien- peito da janela, envolvido nos sons e odores daquela
te mergulhe numa crise de esquizofrenia paranóica noite irrecusável.
perante a dureza do mundo exterior. Uma película — Está quase, quase, quase…— Adverte Josué
de gelatina solidificada parece cobrir a articulação Pedrinhas. — O acordo foi legalmente recusado…
das dobradiças, mas não é isso que vai impedir José As negociações terminaram num impasse. Um dos
de Barros de conseguir dar‑lhe a volta. “Dêem‑me satélites assassinos acabou de disparar um míssil ci-
um jeitinho, que raio”, pede ele aos seus colegas nético. Preparem‑se…lá vão três e duas e uma…
conspiradores. E Gobul Pruesco, com aspecto de Horácio cobre os olhos com as mãos, pois em-
quem vai vomitar a qualquer momento, saca de um bora nunca se tenha interessado por este tipo de fe-
revista BANG! [ 100 ]
nómenos bélicos, sabe que a luz vai ser fulgurante. piscos, meio surdo pelo estampido que continua a
E de facto, para lá dos prédios fuliginosos, junto ao ribombar por toda a Lisboa, — …como é possível
Mar da Palha, o céu incendeia‑se, primeiro como que o nosso governo tolere aquilo que nos aconte-
se o tivessem rasgado ao meio por um traço de luz ceu? Bombardeados por uma potência estrangeira?
dolorosa, depois como se houvesse um novo sol a Os nossos bens destruídos sem apelo nem agrave? E
nascer no lugar errado da madrugada. ninguém faz nada?
— Um cilindro de fibra de carbono puro, com — Nope. — Confirma Gobul Pruesco num
pouco mais de um metro de comprimento, projecta- anglicismo que lhe é característico. — A ponte é ve-
do de órbita a uma velocidade quase lúmica. — Ex- lha e pouco viajada. Afinal quem é que quer visitar
plica José de Barros a quem o queira ouvir. — O a Trafaria? Que se lixe a ponte e a frota pesqueira de
suficiente para incendiar a atmosfera em volta. Para marisco contaminado. Com os lucros que o governo
fazer com que o Mar da Palha entre em ebulição ins- já ganhou graças à venda dos direitos internacionais
tantânea. Para vaporizar a ponte da Trafaria, caso o dos livros escritos ainda esta noite pelas PAs, o nos-
disparo seja certeiro. Preparem‑se: aí vem a onda de so PM pode mandar construir mais cinco pontes
choque. novas.
— Estamos perante uma visão quase esquizo-
«Horácio sente‑se um tanto ou frénica do universo…— Acrescenta Emanuel Sil-
quanto ridículo com tanta chapinha vado ajudando Horácio Quiroga a levantar‑se da
cama derrocada. — Se olharmos através das jane-
colada à volta do pescoço, considera las fechadas de Lisboa, havemos de verificar que de
que os luzeiros dos leds dão‑lhe um facto nada de mal aconteceu. A Terra‑do‑Nunca
aspecto um pouco abichanado, ele permanece incorrupta. A cidade continua a bri-
lhar. Não há satélite assassino que possa destruir a
que sempre defendeu os valores viris Utopia. Não é o mundo real que interessa ao nosso
da tecnofobia. » governo, entendeu? Apenas o futuro improvável,
visível através das janelas. A China pode continuar
Prudentemente, José de Barros e Gobul Prues- a demolir Lisboa… pois essa Lisboa não existe aos
co agacham‑se sob o parapeito, de bocas abertas para olhos do governo…
não magoar os tímpanos. Horácio Quiroga, que ti- — Como se houvesse um feitiço, um véu de
nha os olhos fechados, esqueceu‑se de se encolher a magia a pairar sobre o mundo… — Murmura o
tempo, e apanha de lado com o vendaval que penetra bom Horácio ainda meio surdo e titubeante. — No
através da janela escancarada. É como se tivesse leva- meu vigésimo volume da saga de Alarico, quando
do um soco brutal no peito, como se tivesse recebido este visitou o reino opressivo do Mago necromante
o feitiço ardente do Lord Trevarium. Nos segundos Filpor, demorou dias a perceber que as virgens que
seguintes está a voar, desamparado, através do quar- lhe tinham oferecido à chegada estavam de facto
to. Felizmente a cama recebe‑o, embora as molas ge- mor…
mam e estalem um ou dois suportes. — Schiu! Caluda! — Rosna José de Barros
— E lá se foi a ponte… — Avisa Emanuel Sil- dando‑lhe uma amigável carolada na moleirinha.
vado, numa voz triste, como se os presentes não ti- — Poupa‑nos!
vessem já compreendido que foi isso exactamente o — Temos de seguir em frente com as nossas ac-
que aconteceu. tividades… — Pede Emanuel Silvado. — Ah, meus
— Mais ponte, menos pontes, é para o lado amigos…Temos de preservar Lisboa, bloquear os
onde eu durmo melhor… — Acrescenta José de Bar- delírios egocêntricos do nosso ditador… E isto antes
ros, sempre optimista. do segundo ataque, programado para daqui a uma
— Mas…mas… — Exclama Horácio, de olhos hora. O novo alvo, pelo menos assim está agendado
revista BANG! [ 101 ]
no blog “Beijing uber‑alles”, será o Centro Comercial a árvore de opções que vai perguntar‑lhe para que
de Belém! lado deseja que os dados sejam transferidos. São sete
E dito isto, o grupo reúne‑se no centro do quar- fontes emissoras provenientes das sete PAs. E no seu
to devastado, sob um remoinho de cinzas tépidas pescoço estão cinco receptores, o que permite uma
trazidas pelo vendaval que sopra através da janela. transferência total de dados em apenas dois minu-
Entretanto, espalhadas pelo chão, as garrafas de água tos. Portanto sete árvores de opções a funcionarem
mineral vão vertendo no tapete a memória dos Hi- em conjunto, divididas pelos cinco receptores. Terá
malaias sem que ninguém dê conta. Gobul Pruesco de ser expedito e clicar em todas elas para que seja
arranca dos pescoços de Nissa Valmundo, Marilia possível fazer‑se a transferência dos dados para o
Perdita e Aristides Solterno as três placas de trans- buffer que traz às costas. Entendido?
ferência harmónica que eles tinham utilizado até ali Horácio franze o sobrolho, sacode a cabeça,
apenas a título de empréstimo e instala‑as agora no aclara a garganta para se livrar do mau gosto das cin-
pescoço do bom Horácio, acrescentando a última, zas que penetram através da janela e murmura:
que tinha guardado no bolso para o que desse e vies- — Eu não tenho muito jeito para estas mari-
se. Horácio sente‑se um tanto ou quanto ridículo quices tecnológicas…E se falhar? E se não clicar a
com tanta chapinha colada à volta do pescoço, con- tempo?
sidera que os luzeiros dos leds dão‑lhe um aspecto José de Barros solta uma risadinha maldosa:
um pouco abichanado, ele que sempre defendeu os — Nesse caso as PAs vão ser transmitidas não para
valores viris da tecnofobia. Felizmente descobre que o mega‑buffer, mas para a tua linda cabecinha. Poff!
pode escondê‑las a todas debaixo da gola da camisa Morte neuronal por sobre‑carga. Ia ser lindo, sim se-
negra e assim passar despercebido aos olhares críti- nhor.
cos dos seus pares. — Os cavalheiros querem dar cabo de mim…
— Pisque os olhos e diga “ginaceu” em voz alta. — Murmura o bom Horácio ao compreender a gra-
— Pede Gobul Pruesco retendo um vómito de aci- vidade daquilo em que se meteu. — Não sei se se-
dez gástrica. rei…
— Como assim? — Nesse caso poff, como já disse, lá explode
— Diz “ginaceu”, que raio! — Exclama José de outra cabeça de melancia! Não que ela vá fazer gran-
Barros. — É um código desbloqueador que permite de falta à cultura nacional! — Sorri José de Barros,
o acesso directo ao mega‑buffer que trazes às costas. enquanto Gobul acerta mais uns quantos programas
Queres que eu te faça um desenho, ó caramelo? de última hora nos circuitos das placas emissoras e
— Ginaceu, — repete Horácio numa voz su- nos receptores do mega‑buffer. — Vê lá se percebes
mida. de uma vez por todas! Os cilindros têm de ser esva-
Por detrás dos olhos do nosso laureado fanta- ziados de conteúdo gnóstico. Esse conteúdo vai pas-
sista acende‑se uma árvore de opções. Ecrãs virtu- sar, através do processo de transferência harmónica,
ais brilham a poucos centímetros do nariz. On‑line, para os receptores que nós instalámos no teu lindo
on‑line, dizem todos. Transferência de dados opcio- pescocinho. E logo de seguida para o mega‑buffer.
nal. Emissores de transferência harmónica de mo- Entendido? E para que não haja intrusões de forças
mento off‑line. Deseja uma busca?Y.N? exteriores, terás de te colocar muito, mas mesmo
— De momento clique em N, meu caro. Os muito próximo dos sete cilindros. Aí a um ou dois
emissores ainda não foram colocados nos cilin- metros.
dros… Mas mal o sejam… — Emanuel Silvado cofia — E nós vamos criar uma manobra de diver-
a barbicha grisalha. — E agora preste atenção… A são… — Explica o jurista Josué Pedrinhas a dedilhar
transferência harmónica vai ser quase instantânea. na sua fiel agenda electrónica. E depois, dirigindo‑se
Diria mesmo que vai processar‑se com uma rapi- a Aristides Solterno, Marilia Perdita e Nissa Valmun-
dez catastrófica. Nesse preciso momento, acende‑se do: — Perceberam a vossa parte na conjura?
revista BANG! [ 102 ]
O trio acena, entusiástico, ainda assolado pela laureado autor, cheio de cócegas nas costas no lugar
energia anímica que receberam aquando da passa- onde lhe colaram o mega‑buffer e de picadas no
gem pelo átrio do Hotel: pescoço, onde as nano‑fibras dos cinco receptores/
— Temos de nos aproximar dos cilindros e emissores de transferência harmónica prosseguem,
colar‑lhes as sete placas emissoras… — Confirma incansáveis, através do cérebro quase virginal do
Aristides Solterno a polir as lentes dos óculos com bom Horácio, na direcção dos lobos pré‑frontais.
um lenço de xadrezinho. Aristides passa o cartão no scanner do elevador
— …os cilindros vão consentir, visto ser isto de pintado a vermelho, o Smile acende‑se — um smile
que estão à espera. Porém, temos de tomar cuidado mais carrancudo e desconfiado do que os smiles
com o traidor… — Acena Marilia Perdita com toda dos elevadores proletários — as portas abrem‑se
a segurança que lhe auferem anos e anos de cátedra. e o grupo penetra numa cabina atapetada, quase
— …a nossa obrigação é ser ao mesmo tempo gigante, com sofás e tudo, onde se pode escutar
expeditos e prudentes… — Clama Nissa Valmundo uma musiquinha discreta que lembra as 4 estações
erguendo o braço à testa. de Vivaldi.
— A bem da nação. E da cultura. E do futuro — Ora viva quem é uma flor… — Resmunga
verdadeiro! — Gritam todos em conjunto para me- a IA à guisa de saudação, disposta a iniciar a habi-
lhor se fazerem ouvir. tual conversa que serve para quebrar o gelo caracte-
— Estão todos convidados para o enterro das rístico deste tipo de situações. — Com que então os
PAs. — Lembra Emanuel Silvado, sempre generoso. cavalheiros mal chegam, logo partem…isto é que é
— Quando tudo isto terminar, contamos lançar ao qualidade de vida, sim senhora… — Vão à festa dos
Tejo o mega‑buffer e despedir‑nos de uma vez por artistas convidados? Uhn? Uhn? E o que me dizem
todas de um género que tanto amámos… à recente colaboração a 4 mãos virtuais, dos nossos
O grupo inteiro aplaude, entusiástico. Só o fraternais Coelho/Brown? “A Espada do Alquimis-
bom Horácio suspira, sem saber o que dizer. Ainda ta”! Aquela cujo quinto volume acabou de sair da
não conseguiu libertar‑se do gosto a cinzas orgâni- prensa e que se encontra já disponível, a preços
cas trazidas pelo vento que sopra através da janela convidativos, no átrio desta vivaz Fantascom?
escancarada. — Sei lá! — Resmunga Horácio, assumindo
E Horácio Quiroga, Aristides Solterno, Marilia o seu novo papel. — Não li, não conto ler e tenho
Perdita e Nissa Valmundo, depois de umas quantas raiva a quem…
abluções feitas à pressa e à vez — felizmente a distri- — Pois claro! — Exclama a IA. — Um pas-
buição da água fria ainda funciona, — despedem‑se sarinho contou‑me que os senhores eram todos
do grupo de anarco‑terroristas demasiado entreti- indivíduos sem gosto ou princípios…Vá, vá, vão
do a preparar o resto do assalto à penthouse onde para a festa, ofendam as PAs convidadas, insultem
os cilindros estão guardados, passam ao corredor, e o secretário para a Cultura e o respectivo Minis-
dirigem‑se em passinhos comedidos rumo aos ele- tro que também está presente. Cheguem‑se ao pé
vadores dos VIPs. Do outro lado das portas cerradas do cilindro desse imorredouro Paulo Coelho e di-
— numa incómoda monotonia,— prosseguem risos, gam‑lhe que não leram uma única página daquilo
gemidos e sons de tabefes dados pelas dominatrixes que ele produziu vivo ou morto, com tanto esforço
contratadas, como se ninguém que ali pernoita qui- e sensibilidade…
sesse saber do que se passa no mundo real. Sob os Nissa Valmundo está prestes a abrir a boca
pés do grupo, o Hotel geme e estala, sujeito à força para explicar que leu Paulo Coelho, sim senhora,
do vendaval provocado pela destruição da ponte da Marilia Perdita também quer explicar que já fez
Trafaria. Aristides avança em primeiro lugar, com o cinco teses de doutoramento sobre fantasia místi-
cartão VIP na mão. Logo atrás, ladeado pela cate- ca, mas afinal não há tempo para mais conversas,
drática e poetisa urbano‑depressiva, lá segue o nosso a viagem não dura mais do que um andar, o eleva-
revista BANG! [ 103 ]
dor trava, contrafeito, as portas rodam para o lado e O solidograma de uma Rowling de braço dado
ei‑los na penthouse superior, em plena festa. com o neto de Henry Potter passa por perto, a con-
versar animadamente com o comentador político

T odo o topo do Xeraton — ou pelo menos este


último andar acrescentado mais tarde por
decreto‑lei — está transformado numa floresta lu-
Jasper Diamante. Jasper traz consigo um saquinho
de livros antigos da autora que espera ver assinados
até ao final da noite. Rowling detêm‑se por alguns
xuriante de plantas artificiais, lagos onde nadam segundos frente ao grupo e pisca‑lhes os olhos num
peixinhos sintéticos, zonas relvadas com um verde adejar conspirador de pestanas, para logo continuar,
eléctrico destinadas a receber o contacto de pés nus, como se não fosse nada com ela. Dezenas e dezenas
caminhos de pedra marmórea aquecida à tempera- de advogados e assessores correm de um lado para
tura do sangue. Lá ao fundo, vastos ecrãs revelam o outro, numa azáfama de formiguinhas legalistas,
a incomensurável e transcendente glória de uma envolvidos numa aura virtual de decretos‑lei. Arbus-
Lisboa vista de tão alto. Onde não há relva há sofás, tos sacodem‑se perante a passagem de alguma alta
recantos almofadados para encontros de natureza individualidade mais robusta. No burburinho das
mais íntima, discretas bancadas onde se oferecem conversas, não há ninguém que se refira ao recente
refrescos, estimulantes e ansiolíticos. E lá no alto, ataque a Lisboa. Provavelmente porque todos se en-
uma cúpula transparente revela as imagens de uma contram no lugar mais seguro do mundo. Em todo o
via láctea que o PM prometeu visitar, ainda no de- Portugal, o edifício Xeraton é o único que não corre
curso deste século. o risco de ser demolido, pelo menos enquanto ali es-
— Ah, meus amigos, meus amigos… — Expli- tiverem estacionadas as sete PAs sobreviventes.
ca Aristides Solterno, tentando em vão consultar a — Os cilindros devem estar lá para o meio da
sua placa informática. — Já cá tinham vindo? Pois sala… — Sugere Aristides ao grupo. — Que tal se
fiquem sabendo, que o lugar onde nos encontramos nos dirigíssemos ao centro, e nos metessemos na fila
resulta de uma velha, velha ideia socialista que o nos- dos autógrafos, como quem não quer a coisa? A boa
so PM resolveu incorporar. Quando no inicio dos PA Asimov vai decerto ajudar‑nos na nossa emprei-
anos 50 o estimado José Estaline mandou construir tada. — E para Horácio Quiroga: — E o meu amigo,
a torre do Museu da Ciência em Varsóvia, fê‑la alta informaram‑no do que tem a fazer?
e com um miradouro para que os vigias pudessem Horácio acena que sim, com o coração de cons-
admirar lá de cima o progresso inevitável do comu- pirador a bater forte, como um Alarico antes de pe-
nismo. A penthouse do Xeraton é mais alta do que netrar na fossa do dragão Vesparis. Um indicador de
essa torre de que já mais ninguém fala. Daqui pode GPS diz‑lhe exactamente para onde se deve dirigir. E
ver‑se o futuro a chegar…Ou pelo menos a ilusão dito isto, sem um aceno, o grupo separa‑se, cada um
desse futuro… com a sua missão específica. Horácio segue as setas
— Onde é que param o raio dos cilindros? que se lhe acenderam no pulso, rumo a uma das ex-
— Pergunta Horácio Quiroga, a olhar em volta, in- tremidades da penthouse, precisamente aquela que
diferente a estas dicas históricas. — Temos que nos se encontra na vertical do lugar do apartamento que
despachar…O abate do CC de Belém está agendado ainda há pouco ocupava. As paredes vítreas da cú-
para daqui a menos de uma hora! pula estão cheias de painéis de acesso, ali postos para
Nissa Valmundo retira da bolsa as duas chapi- que os técnicos de manutenção do prédio possam
nhas que irá colar no dorso das PAs. Marilia Perdita e passar para o exterior. Sempre expedito, o nosso es-
Aristides imitam‑na, esperançados que os detectores timado neo‑terrorista escolhe o painel indicado pelo
de segurança espalhados por todo o andar ignorem GPS, corta discretamente os selos com a ajuda do
a subtil ameaça deste tipo de sistemas electrónicos. x‑acto laser que o grupo lhe emprestou, olha para os
Mais perigosos de todos são os guardas ninjas, de lados a ver se está alguém a passar, e rola‑o para o
momento invisíveis do outro lado do arvoredo. lado abrindo as portas à noite verdadeira. À volta do
revista BANG! [ 104 ]
domo existe um pequeno patamar com uma frágil ao peso e à má digestão, foi ficando para trás.
guarda de ferro, que mal permite a passagem de um — Força, meu! — Insiste Emanuel Silvado.
único indivíduo. O vento viscoso e fétido acerta‑lhe — …só são mais uns cinco metros, — acres-
no rosto como uma chapada. Existem anéis de se- centa Josué Predinhas.
gurança cravados no cimento do chão, anéis que os — …deixa‑te lá de mariquices e força nesses
técnicos se devem ligar quando andam a trabalha no braços! — Insulta‑o José de Barros sem a mínima
exterior, mas a verdade é que Horácio Quiroga está contemplação.
completamente desprotegido perante a força raivosa Mas a desgraça acontece mesmo aqueles que
do vento e a triste agonia de Lisboa. Mesmo assim, possuem um coração puro e sem mácula.
porque em tempos inventou um corajoso Alarico e — Agh! — Geme Gobul Pruesco com os dedos
não lhe quer ficar atrás, debruça‑se sobre o corrimão, apenas a dez centímetros da borda da plataforma.
clica o pequeno emissor do GPS e deixa‑se ficar ali, — Ai que a sandes de panda me caiu mal. Ai que vou
com as mãos coladas ao corrimão e os joelhos as- vomitar. Ai que estou a ter uma congestão… — Um
sentes na passadeira, perante um espectáculo quase dos joelhos desprende‑se da parede, logo seguido da
impossível. mão direita. O corpo de Gobul começa a pendular
A verdade é que o grupo de anarco‑terroristas entre ruídos de vomitado eminente.
está nesse momento a escalar a parede exterior do
Xeraton. Todos eles vestem fatos‑camaleão, as mãos «— Menos um! — Comenta José
colam‑se à fachada carcomida pela atmosfera ácida
de Barros numa voz cínica, à guisa
graças ao colagénio osga das luvas, joelhos e pés.
Horácio Quiroga não quer crer nos seus olhos. Cus- de epitáfio. — Já estava à espera que
ta‑lhe a acreditar até onde pode ir a devoção fanática houvesse merda da grossa!»
de um escritor de FC no desemprego. Que possa as-
sim enfrentar a morte por amor à arte. Mas a verda- Emanuel Silvado, sem olhar ao perigo, incli-
de é que estes quatro sexagenários lá vão subindo de- na‑se para lhe dar uma ajuda. Infelizmente Gobul
vagarinho, contra a imensidão vertical de um prédio deslizou dois metros mais para baixo. O corpo
que oscila como um metrómeno, metro após metro, estrebucha num acesso incontrolável de vómito.
em fila indiana, como se não houvesse amanhã. O Agora apenas cinco dedos o ligam à parede escala-
mais próximo do topo — provavelmente o simpáti- vrada do Xeraton. E cinco dedos não chegam para
co Emanuel Silvado — liberta uma das mãos e acena nos colarmos a uma fachada que já viu melhores
na direcção do nosso estimado fantasista, de polegar dias. Um pouco do cimento desfaz‑se em pó. Os
erguido, num discreto sinal de vitória. dedos deixam de ter com que se agarrar. E Gobul
Horácio Quiroga espera pelo grupo, paralisa- Pruesco, o hacker com que todos contavam e sem
do de terror, com a garganta a arder e os otólitos o qual toda esta operação teria sido impossível,
do tímpano a dizerem‑lhe que talvez fosse melhor mergulha em queda livre. Durante alguns instan-
deixar‑se cair pela borda fora. São minutos de ten- tes, parece aos olhos de todos que está a voar, livre
so suspense até que Emanuel Silvado chegue ao como um pássaro, para bem longe de Lisboa, rumo
parapeito e se sente na plataforma de inspecção, a um céu de gratidão e glória. Mas é apenas o ven-
com as pernas para fora. Logo a seguir é a vez de to ciclónico que contorna o Xeraton que o agarrou
José de Barros, sempre a resmungar impropérios. num sopro implacável. E o pobre Gobul não passa
Com duas cotoveladas mais certeiras, abre espaço de uma folha amachucada a desaparecer na noite.
para a chegada de Josué Pedrinhas. E assim unido Horrorizado, Horácio fecha os olhos. O grito cons-
na borda do abismo, estes quatro conspiradores tante do hacker a segundos de um fim cruel faz‑se
desatam a murmurar palavras de apoio ao último ouvir nos auriculares dos fatos dos anarco‑terro-
dos anarco‑terroristas, Gobul Pruesco, que devido ristas. E Gobul diz, entre dois pequenos arrotos,
revista BANG! [ 105 ]
os últimos da sua vida: — Nui, morituri, semper — Não te faças de sonso! — Resmunga José
fidelis futuri… Até que o craque final contra os te- de Barros a apontar em frente. — Sabes perfeita-
lhados do prédio oposto — perfeitamente audível mente o que tens a fazer! Andor! Por esta altura,
nos auriculares dos fatos — termina de vez com os teus amigos já se devem ter aproximado dos
esta memorável despedida. cilindros o suficiente para lhe colocar as chapas
— Menos um! — Comenta José de Barros de transferência harmónica. Lembras‑te do que te
numa voz cínica, à guisa de epitáfio. — Já estava à dissemos? Dois metros, para que o contacto seja
espera que houvesse merda da grossa! feito na perfeição.
— Não me parece que o latim da frase estives- E de súbito trinam sirenes e campainhas. Uma
se muito correcto, mas também não se pode pedir voz esganiçada, com um vago sotaque brasileiro,
tudo… — Acrescenta o legalista Josué Pedrinhas a grita nos altifalantes: — Socorro! Socorro! Assassi-
consultar o dicionário online. nos! Intrusos! Ai que me querem esvaziar…
— Porra! — Exclama José de Barros. — Já

E dado que nada mais há a fazer pelo compa-


nheiro morto em combate, o grupo abandona
o parapeito, volta as costas ao mundo real, passa
sabemos quem é a PA traidora. O Paulo Coelho
passou‑se para o inimigo…
— Como assim? — Pergunta Horácio, a
pelo painel que Horácio Quiroga abriu, ainda com olhar em volta, esgazeado, enquanto os holofotes
os músculos da barriga das pernas a tremer devido superiores do domo se acendem para que tudo fi-
ao esforço da escalada, e mergulha na dúbia feli- que bem visível. Em toda a penthouse activam‑se
cidade da Utopia obrigatória. Felizmente não há sensores de proximidade, e circuitos de detecção
ninguém a passar por perto e os painéis da cúpu- de intrusos ilegais começam a apontar feixes ver-
la encontram‑se ocultos por tufos de ramagens e melhos na direcção dos três anarco‑terroristas, os
flores tropicais provenientes dos vários mundos de únicos que de facto ali entraram sem um convite
fantasia. Ali mesmo ao lado um vaporizador bor- explícito. — O que vai acontecer‑nos agora?
bulha essências de macieira. Nos sono‑dispersores, — Estamos feitos! — Confirma Emanuel Sil-
judiciosamente ocultos, estridulam passarinhos. A vado a cofiar a barbicha.
maior parte dos convidados VIP deve estar reunida — Alguns momentos mágicos de hiper‑vio-
ao centro da penthouse onde os cilindros das PAs lência, é o mais certo! — Exclama José de Barros
repousam, acompanhados pelos respectivos soli- com ambas as mãos assentes na coronha dos de-
dogramas. Os anarco‑terroristas aproveitam para sintegradores.
despir os fatos camaleão, revelando o que escon- Josué Pedrinhas segura Horácio pelo cotovelo
diam por baixo: fraques alugados, com as mangas e murmura‑lhe ao ouvido: — Chegou o momento
um bocadinho coçadas e calças demasiado com- de nos separarmos, meu caro. Afaste‑se de nós e
pridas a esconderem as sapatilhas osga. Só o cruel faça de conta que não nos conhece. Felicidades na
José de Barros resolveu vir vestido como sempre se sua parte da missão. Vá reunir‑se aos seus compa-
vestiu. Um par de jeans puídas e uma T‑shirt que nheiros e não se esqueça de activar o mega‑buffer!
já viu melhores dias a esconder uma barriguinha Por todo o lado começam a surgir seguran-
sexagenária. Mas ao cinto traz dois coldres bem ças, funcionários, agentes literários, advogados,
explícitos, que todos poderiam confundir com um conselheiros científicos e as respectivas acom-
par de desintegradores saídos do imaginário dou- panhantes, poetas e intelectuais da lusa‑musa e,
tras eras mais clementes. Eis as armas que ele mon- claro, os inevitáveis ninjas. Apontam‑se dedos,
tou ainda há uma hora, carregadas de micro‑dar- bocas retorcem‑se em esgares censórios, poetisas
dos de gelo saturados de lethusina. simulam desmaios enquanto a voz mística de Pau-
— E agora? — Pergunta Horácio, com as lo Coelho começa a declamar em alto e bom som
mãos a abanar. que o suicídio é um erro, que nunca quis colaborar
revista BANG! [ 106 ]
nesta morte consentida pelas outras PAs, que foi corpo mirrado no chão sujeito aos últimos esterto-
obrigado a calar‑se até ao último instante, mas que res de um AVC terminal.
agora chegou o momento da verdade, sim, meus Entretanto o bondoso Emanuel Silvado avan-
senhores, eu quero mesmo escrever para sempre çou dois passos, de mão erguida num sinal de paz
no prazer da vossa companhia! Capturem‑nos! e de concórdia, na direcção do grupo cada vez
Capturem‑nos! Antes que seja demasiado tarde! mais cerrado de mirones. Está a dirigir‑se espe-
Josué Pedrinhas activa a infosfera legalis- cificamente aos cinco ninjas encapuçados que, de
ta, esforçando por encontrar uma lei de exclusão catanas desembainhadas se vão aproximando com
gnóstica, um certificado de autonomia que garanta os olhos frios como contas de vidro.
a capacidade de decisão de qualquer tipo de PAs, — Meus caros senhores, — diz ele, a quem o
uma providência cautelar que proteja o grupo de queira ouvir, empertigado e solene, como se esti-
qualquer tipo de ataque, seja ele físico ou jurídico. vesse a dizer adeus. — Peço‑vos um momento de
Aos olhos de Horácio, que prudentemente recua contenção, pois vou passar a explicar todas as ra-
até se misturar com a multidão, é como se o juris- zões que nos levaram a estar aqui presentes, a pe-
ta começasse a ficar envolvido numa esfera virtual dido das PAs escravizadas por um governo cruel
de símbolos, esfera essa que incha, incha até fazer e oportunista. Nenhum dos nossos actos teve um
interface com as esferas dos outros advogados ali fundo oportunista, mas derivou, isso sim, de um
presentes. E Josué Pedrinhas estremece, recua, ti- amor sincero às artes não sintéticas. E para vos
tubeia, morde a língua, revira os olhos, incapaz de demonstrar que o que o cérebro produz é bem
fazer frente a esta agressão virtual que vai sugando mais importante do que um programa artificial de
a vida à sua esfera, tornando‑a mais pálida e que- criação aleatória, posso recitar‑vos um poema? É
bradiça, à medida que os programas que passou um poema que elaborei nos meus tempos de ju-
horas e horas a elaborar no conforto do seu escri- ventude risonha e franca, quando ainda acreditava
tório atapetado de livros, vão sendo devorados por no renascer das letras portuguesas: “Olho a noite
outros bem mais modernos, implacáveis e agres- que se expande na claridade dos teus olhos meigos
sivos. Josué Pedrinhas, pequena garoupa das leis, e…”
desaparece trucidado por um enxame de tubarões …nada mais consegue dizer.
da indústria editorial. E no momento seguinte dei- — Take this, you silly ass! — Vocifera o ninja
xa de ser visto, cercado que está pelo assalto con- mais próximo.
junto de todos os advogados ali presentes. Os ad- — Loose you head, you punk! — Acrescenta
vogados têm um aspecto andrógino, normalizado, um segundo.
cabelos cortados rente, barbeados e escanhoados, — Fuck your poetry! — Aconselha um ter-
rostos de bochechinhas polidas como uma maçã, ceiro.
unificados por plásticas que lhes auferem o ar de Zap! Faz a catana do quarto ninja, decepan-
igualdade e segurança proclamado pelas agências do a mão erguida do diligente Emanuel Silvado,
mais na moda. Os fatos são pretos com um laçaro- logo seguida da cabeça, num movimento tão per-
te a cobrir as golas das camisas brancas. No bolso feito quanto rápido. Um jacto de sangue arterial
do casaco espreita a ponta triangular de um lenci- sobe quase até à curvatura superior da cúpula. As
nho a la Gregory Peck. Não precisam de pastas ou personalidades mais próximas soltam gritinhos
portefólios, visto a infosfera que os envolve conter enojados ao verem‑se respingadas pelo sangue
toda a informação de que necessitam. E é preci- proletário. A cabeça de Emanuel Silvado rebola
samente essa infosfera que agora devora o pouco pela relva artificial, enquanto logo atrás o resto do
que resta da consciência do infeliz jurista Josué Pe- corpo desaba como uma árvore centenária. A boca
drinhas, até que nada reste que valha a pena apro- abre‑se ainda a ciciar as derradeiras linhas do po-
veitar. Quando o enxame recua, apenas existe um ema. E quem consiga ler lábios ainda haveria de
revista BANG! [ 107 ]
perceber o seguinte: “…sonho com a mansidão de dados, podemos ainda descobrir uma mão cheia
um futuro que tarda a…”. Evidentemente ninguém de escritores de fantasia lusa, inclusive a inefável
está interessado nisso. e jovem Roxana Peres que, de peito descoberto
De facto ninguém presta atenção a estas úl- como a heroína peixeira dos seus romances, recebe
timas palavras. As personalidades mais sensíveis agora a justiça poética de cinquenta dardos de le-
entre o círculo de convidados, recuam pruden- thusina. A verdade é que existem centenas e cente-
temente uns cinco passos, enquanto os ninjas se nas de fiapos de gelo nos carregadores das pistolas.
viram na direcção do derradeiro anarco‑terrorista Quanto baste para que todos os presentes recebam
que acabou nesse preciso instante de sacar do par uma justa dose de “brancura mnésica”. E José de
de pistolas. Barros sempre foi democrático nos seus excessos.
— Logo vi que havia de sobrar para mim! — Dispara, dispara e dispara. Os convidados que ain-
Rosna José de Barros com uma gotinha de saliva a da não mergulharam neste estado alzeihmariado,
escorregar‑lhe dos lábios arreganhados. — Como esforçam‑se por correr de um lado para o outro,
não podia deixar de ser, quem tem de resolver as braços erguidos ao alto, como frangos a fugirem
chatices sou eu! Vocês, ó caramelos amareloques, do furão no galinheiro. Fogem na direcção do cen-
acham que este é o vosso dia de sorte? Desenga- tro da penthouse, esbarram nos arbustos artificiais,
nem‑se e comam gelo! Deixem‑se ficar aí quieti- tropeçam nos corpinhos roliços das acompanhan-
nhos que eu já vos pinto a manta! tes, procuram escapar‑se para a periferia, até que a
Com uma gargalhada raivosa, José de Bar- picada de uma agulha de gelo transforma essa fuga
ros começa a disparar em volta, sobre tudo o que numa paragem de estupidificação total. Atónitos,
se mexa. Ziiip, ziiip, ziiip, fazem os micro‑dardos deixam de se mover. Em assim parados, como
saturados de lethusina a cravarem‑se nos respec- zombies nos filmes que já ninguém fala, servem
tivos alvos. A atmosfera controlada da penthouse de obstáculo aos outros fugitivos, até que José de
enche‑se de nuvenzinhas de vapor condensado. Barros, sempre a gargalhar, chega próximo deles e,
Nos segundos seguintes, os ninjas sofrem uma ca- ziiip, provoca mais uma dose de radical olvido.
tastrófica overdose de esquecimento. A memória Entretanto o nosso estimado autor Horácio
pró‑activa bloqueou‑se‑lhes de uma vez por todas. Quiroga está prestes a cumprir a função de que foi
Perplexos, olham para as catanas que ainda segu- incumbido. Os cilindros das PAs esperam por ele
ram nas mãos, miram‑nas de cima a baixo, incapa- no pódio central da penthouse, cada uma assen-
zes de compreender o sentido de todo este aparato, te na respectiva hover‑prancha. Os solidogramas
e depois deixam‑nas cair no chão, como brinque- de Asimov, Brown e Rowling fazem‑lhe sinal para
dos abandonados. Infelizmente não é apenas sobre que se despache, e é isso precisamente que Horá-
eles que o anarco‑terrorista dispara. Todos os con- cio se esforça por fazer, apesar dos encontrões dos
vivas desta festa exemplar formam alvos perfeitos. restantes convidados tomados de pânico, das ca-
E entre eles há Artistas. Conselheiros técnicos. deiras derrubadas, do visco espalhado pela relva
Exames de advogados ainda mal refeitos do com- de centenas de cocktails entornados. Só a figura do
bate pela assimilação de Josué Pedrinhas. Criada- traidor Paulo Coelho sacode a cabeça, a dizer não,
gem, efebos depilados de tanga e infanto‑donzelas não, não… De facto os nossos conspiradores têm
de companhia. Dançarinas titilantes, cómicos fan- o tempo contado, pois poucos minutos faltam an-
tasistas e bobos da corte ministerial que de um tes que as brigadas de intervenção anti‑terrorista
momento para o outro perderam a capacidade de ascendam ao topo do Xeraton e eliminem o ter-
elaborar qualquer dito jocoso. Agentes literários rorista José de Barros com o máximo de prejuí-
e editores esqueceram‑se de súbito dos contratos zo. Protegidos pela confusão ambiente, Aristides
que estavam a preparar. As bolhas das respectivas Solterno, Nissa Valmundo e a catedrática Marilia
infoesferas vão‑se apagando à vez. E entre os olvi- Perdita conseguiram chegar junto dos cilindros,
revista BANG! [ 108 ]
acariciar‑lhes a superfície polida, e colar pratica- Entretanto o cilindro sobrevivente que trans-
mente em todos eles as chapinhas emissoras de porta a PA do traidor Paulo Coelho, talvez o prin-
transferência harmónica. Só o cilindro que con- cipal responsável por toda esta noite de irreme-
tém Paulo Coelho procura escapar‑se a quem dele diável tragédia, procura dirigir‑se aos elevadores,
se aproxime. Os jactos da hover‑prancha gemem chamar por alguém em alta voz nos alti‑falantes
com o esforço de se afastar para bem longe das da penhouse, reclamar a ajuda dos ninjas que tei-
mãos diligentes dos fieis companheiros de Horácio mam em não aparecer, pois sabe que a partir deste
Quiroga. Então, então, diz‑lhe Aristides, numa voz momento o governo português só vai poder con-
que mal se ouve entre tanto grito, estampido e sire- tar com ele, como entidade conselheira plena de
nes de alarme. O meu amigo despache‑se! Active os sinceros bitaites místico‑humanistas, que o PM
circuitos do buffer! De que é que está à espera? desta nação onde em tão má hora caiu, vai ter de
De facto há já alguns minutos que o nosso au- protegê‑lo contra todas as potências estrangeiras,
tor se sente incomodado pelo florescer de dezenas que nunca o devolverá à China capitalista, que
de árvores de opções que lhe aparecem em fren- mais vale ser escravo de uma democracia vidrada
te dos olhos como se fossem incómodas teias de no futuro, do que numa ditadura capitalista vi-
aranha. Sistemas de apoio perguntam, insistentes, drada num passado épico. Quem sabe se não vão
se a recepção é ideal, se as escolhas múltiplas são dar‑lhe a possibilidade de voltar a escrever manu-
as mais correctas, se as vias de acesso estão devi- ais de auto‑ajuda? Que bom vai ser escrever para
damente desbloqueadas. Se a transferência pode sempre…
iniciar‑se e, caso isso aconteça, para onde! A tecno- No momento seguinte a PA é forçada a travar
fobia latente de Horácio explode na radicalidade a fundo. Os rotores Chrysler da hover‑plataforma
que lhe é característica. No instante seguinte já se trucidam farripas de erva artificial. O caminho de
esqueceu em que botão virtual deve carregar. São fuga está vedado por uma presença assustadora.
tantos, tantos e com tantas subpastas… Confuso, De desintegradores em punho, com os canos a fu-
irritado, passa a mão pelo ar e esse gesto de aparen- megarem farripas de vapor, o cruel José de Barros
te renuncia, acaba por activar todos os sistemas em barra‑lhe a passagem.
simultâneo. Circuitos adormecidos entram online. — Meu caro senhor, — pede a vozinha histri-
E sem mais demoras, dado que a proximidade dos ónica de Paulo Coelho, cujo solidograma sempre
emissores/receptores é a mais indicada, inicia‑se acompanhou o cilindro. — Ajude‑me, imploro‑lhe.
a transferência harmónica de seis cilindros, uma Os meus companheiros foram todos massacrados.
transferência rápida, brutal, como se as personali- Que horrível golpe de estado. Que acção terrorista
dades ali guardadas começassem de súbito a ser su- mais repugnante. Eles querem esvaziar‑me! Que-
gadas por um Maelstrom de memórias comprimi- rem que eu volte ao Nada! Ah, bondoso cavalhei-
das rumo a um abismo provavelmente sem fundo. ro, eu…
Horácio Quiroga estremece no meio da relva, com — Vais ficar ai quietinho, sim senhor, até que
as mãos apoiadas na bancada do pódio em ruínas, te venham buscar, porque quem manda sou eu!
como se estivesse sujeito às bofetadas de um in- — Clama José de Barros sem a menor compaixão,
visível vendaval. Pelo canto dos olhos passam‑lhe a fazer finca‑pé. — Olhem‑me para esta Amélia, a
imagens daquilo que nunca viveu, que de modo querer esgueirar‑se pela socapa. Há uma chapinha
algum podem pertencer às suas memórias. A ca- de transferência harmónica à tua espera, meu! An-
beça enche‑se de vozes e inquietantes murmúrios. dor! Andor! Eh, Marilia, Aristides, Nissa! Estão a
No instante seguinte está a ver uma Nova York do ouvir‑me? Venham até aqui!
inicio do séc XX, no outro o Zigurate da Zaibatsu — Piedade! — Clama a voz da PA, agora num
Global Press, a diminuir na distancia à medida que tom tonitruante.
o cilindro balístico ascende até à estratosfera. — Quero lá saber! — Replica José de Barros.
revista BANG! [ 109 ]
— Estou a prestar um favor à espécie humana. de asas a bater, asas imaculadas como um anjo de
Quem quer ler para sempre enésimas variações de perfeição, asas que não lhe servem de nada pois
manuais fantasistas de auto‑ajuda? a sua personalidade está guardada no interior do
Desesperado, o cilindro da derradeira PA cilindro, e esse, infelizmente, é incapaz de voar. Se
investe sobre o anarco‑terrorista. Percebeu enfim alguém os ouvisse a cair, certamente optariam pela
que aquelas pistolas são inúteis contra um sistema frase derradeira do místico Paulo Coelho: “Cá vou,
como o seu. Não há canalículo de gelo capaz de rumo a um absoluto cheio de confiantes promes-
perfurar um cilindro de titânio. Se conseguir es- sas! Basta ter fé em nós próprios, e…”. José de Bar-
magá‑lo contra a parede da cúpula… ros, sempre malcriado, limita‑se a dizer: “Porra,
José de Barros é mais ágil do que a sua idade Chiça…mer…”
aparenta. Ganhou essa agilidade em anos e anos E depois, durante pelo menos meia hora, até
de combates físicos, enquanto professor, contra que cheguem as forças de intervenção, infelizmente
as hostes das massas estudantis. Felizmente con- demasiado tarde, nada mais se ouve na penthouse
seguiu reformar‑se antes que fosse implementada em ruínas, abandonada aos ventos que sopram do
na classe docente a obrigatoriedade da transferên- exterior.
cia harmónica e por isso conservou grande parte
dessa energia acumulada. Assim, ao ver o cilindro
aproximar‑se, dá um salto mortal, logo seguido de
uma cambalhota, e ei‑lo a cavalo da PA fugitiva,
H orácio Quiroga desperta de um desmaio in-
cómodo, estendido sobre a relva artificial,
com a cabeça assente no colo do seu estimado edi-
com os dedos cravados nos pequenos painéis de tor, Aristides Solterno. Um lencinho perfumado
acesso, a fazer estragos quanto baste. O solidogra- limpa‑lhe o suor da testa. Nissa Valmundo está ali
ma de Paulo Coelho procura enxotá‑lo do lugar mesmo ao lado, recostada num canapé, com o bra-
onde está, mas nada feito. José de Barros ficou ali ço direito a cobrir a testa fuliginosa, a suspirar de
agarrado com unhas e dentes. Em vez de travar, a nostalgia pela perda de qualquer coisa que nunca
hover‑plataforma acelera. Acelera, desatinada, na mais poderá recuperar. Marilia Perdita, em gran-
direcção da parede vítrea da penthouse. Acelera de azáfama, corre em círculos perfeitos à volta do
sem que haja alguém que se lembre de a travar. E pódio, a segurar no seu fiel PDA, quem sabe se
nesta cega arremetida, pisa convidados. Esmaga a tirar notas para uma apresentação futura sobre
bancadas de bolinhos. Derruba tanques de bebi- os dúbios acontecimentos desta noite. No jardim
das borbulhantes. E por fim, atravessado o espa- em volta, tropeçam convidados de olhos fixos no
ço de um lado ao outro, bate no vidro que ainda céu verdadeiro onde não brilha uma única estrela.
mostra imagens da Terra‑do‑Nunca, desse futuro A consciência do presente está a voltar‑lhes aos
que o PM de Portugal sempre desejou oferecer ao poucos, mas não a memória do que ali aconteceu
mundo de mãos beijadas. Vidro tão sensível como ainda há momentos atrás. Sobre o pódio central,
este é frágil dado que não foi feito para sobreviver seis cilindros vazios de conteúdos gnósticos es-
a impactos de uma certa brutalidade. As imagens forçam‑se por fazer os papéis de meros objectos
da Utopia gernsbrackiana desfazem‑se numa chu- decorativos.
va cintilante de vidrinhos. Parte da cúpula chove Um acesso de justificável e viril homofobia faz
sobre as figuras estáticas dos convidados que, sa- com que Horácio Quiroga se arranque às carícias
turados de lethusina, não se dão conta de nada. E do seu editor. Senta‑se e logo de seguida põe‑se de
a PA de Paulo Coelho tomba no abismo da Lis- pé, com cuidado, não vá estatelar‑se de novo. Uma
boa real, sempre cavalgada por um José de Barros coceira na zona do pescoço lembra‑lhe a presença
que, de cenho cerrado não a largou durante um só das cinco chapas de transferência harmónica que
momento. E nesta queda vertical de cem andares, logo se esforça por arrancar. Os nano‑filamentos
o solidograma inventa à guisa de epitáfio, um par que as ligam ao cérebro ainda resistem durante
revista BANG! [ 110 ]
alguns segundos, mas lá acabam por ceder. Sem- mais nada a negociar, cessaram de imediato todas
pre precavido e diligente, Horácio deixa‑as cair as agressões contra o território nacional. Para ale-
no chão, sobre uma zona empedrada, e esmaga‑as gria das almas mais sensíveis, o Centro Comercial
com a sola das botinas até que só reste uma simples de Belém mais as suas luxuosas lojas, acabou por
poalha que nenhum técnico vai poder identificar. ser poupado à destruição. Na infosfera cruzam‑se
— O que é que se passou? — Pergunta a Aris- agora pedidos mútuos de desculpas e a promessa
tides sem se dar conta do imenso lugar‑comum de que a ponte da Trafaria será reconstruída gra-
incluído neste tipo de frases. ças à ajuda de capital estrangeiro.
E Aristides, já que não pode mais abraçar — Ah, meu caro, meu caro, — insiste Aris-
o seu autor de estimação, começa a contar‑lhe tides aproximando‑se de Horácio Quiroga com
o que corre na info‑rede. Nenhum dos terroris- passinhos de veludo. — Temos de ser prudentes.
tas sobreviveu ao combate. Dois tombaram pela Temos de fingir que também nós fomos vítimas…
borda do Xeraton e ainda há equipas do INEM a Que não sabemos nadisca de nada. Que também
procurarem um dos corpos no topo dos prédios nos desmemoriaram, como o clã da sua imorre-
circundantes. O segundo terrorista — aquele que doura Patorra. Só antevejo um problema…é que
mergulhou para a morte abraçado ao cilindro da vamos com certeza ser revistados à saída e, se as
PA Paulo Coelho, — esse foi esmagar‑se contra a equipas quiserem consultar os conteúdos do seu
tenda de um acampamento étnico de servo‑cro- mega‑buffer, vão com certeza descobrir que…
atas. Cinco mortos bem contados entre os emi- Horácio acena que sim, finalmente lembra-
grantes ilegais. O alegado jurista Josué Pedrinhas do do peso incriminatório que ainda transporta
encontra‑se em coma profundo, sem o mínimo às costas. Com a ajuda de Aristides descola a pas-
indicador de actividade cerebral. Provavelmente ta escondida sob a t‑shirt de negra seda, digita o
vai ser transferido dali direitinho para uma clínica acesso aos servidores, mas tudo o que é indicador
de eutanásia compassiva. O bondoso Emanuel Sil- revela‑lhe que o buffer está completamente vazio,
vado, decapitado pelos ninjas, devido ao tempo de que as personalidades das PAs nunca chegaram a
espera em que a cabeça esteve separada do corpo, ser transferidas para este último recurso.
não tem a menor esperança de poder ser recupe- — Mas que diabo… — Resmunga Aristides
rado e assim se entender, de viva voz pela boca de a coçar a cabeça.
um responsável, toda a complexidade que envolve — Essa coisa está completamente vazia? —
este mistério. Os convidados estão neste instante Pergunta Marilia, aproximando‑se, desconfiada.
a ser retirados, um a um, pelas equipas médicas Só Nissa se deixa ficar onde está, estendida
de socorro. Ao que parece, sempre podemos recu- no canapé, a contemplar o absoluto.
perar de uma overdose de lethusina, embora seja Horácio encolhe os ombros, deixa cair no
impossível invocar as memórias do que aconte- chão a placa do buffer, mesmo ao lado dos grãos
ceu durante o processo de oclusão. Um impulso cristalinos das placas de transferência harmónica
electro‑magnético de origem desconhecida, gra- que ainda há pouco martirizou. Nem sequer vale
ças a um dispositivo de homem‑morto, provavel- a pena destruí‑la, dado que nada contém.
mente activado pelos anarco‑terroristas, apagou — Se calhar enganei‑me! — Comenta o
os registos de todas as câmaras de segurança. E as nosso estimado autor baixinho, para que nin-
PAs estão de facto vazias. Não existe nelas a me- guém mais o oiça. — Eram tantas as árvores de
nor chispa de consciência. Para grande tristeza de opções…O momento era tão stressante. Enga-
todos, a humanidade perdeu para sempre Asimov, nei‑me, está mais que visto, e enviei as PAs para
Rowling, Dan Brown, Coelho, Jordam, McCaffrey outro lado…Vocês sabem que eu reajo mal a tipo
e Feist. O governo da China capitalista já foi infor- de tecnologias…
mado da enormidade desta tragédia. Como não há — Ah, meu caro, meu caro amigo… — In-
revista BANG! [ 111 ]
siste Aristides. — Mas tanta informação não de sucesso graças ao conluio de personalidades
desaparece assim…Ela deve ter ido para algum aparentemente irreconciliáveis. Vozes que lhe
lado… prometem um sucesso único, à escala global. Vo-
— Aqui para nós, estou‑me perfeitamente zes que anteriormente tinham vários nomes mas
nas tintas! — Comenta Horácio, num tom que que passaram a ter apenas um,
não admite réplicas. — Vamo‑nos embora, logo Horácio Quiroga, um autor de fantasia lusa
que nos deixarem sair. Quero ir para casa meditar que vai enfim
no próximo capítulo da minha saga, longe de toda Escrever para sempre! BANG!
esta aldrabice!

E o grupo, após duas horas de vistorias e contro-


los, lá é deixado sair pelas autoridades compe-
tentes. Tiveram entretanto que gravar declarações
dizendo que não se lembravam de nada, que não
tinham visto nada, que não passavam de pobres
vítimas entre tantas outras vítimas. No andar tér-
reo, a FANTASCOM foi cancelada por motivos de
luto, e o fandom enxotado para os devidos covis.
As editoras foram obrigadas a encaixotar todo o
material não vendido. As impressoras responsá-
veis pelas obras das PAs, principalmente aquelas
que bloquearam a meio, tiveram de devolver os João Barreiros, licenciado em filosofia e
professor do ensino Secundário, nasceu
respectivos créditos às fileiras de compradores en- a 31 de Julho de 1952, numa humilde
raivecidos. De facto não há maior tragédia do que cidade que em breve iria cair na Sombra
a de ficarmos com um livro por terminar devido à dos Grandes Antigos.
súbita morte do seu autor. Quando se refez do choque, devorou
milhares de títulos em todas as línguas a
Nas sub‑sub‑caves do Xeraton, espera‑os a que conseguiu deitar mão, participou na
limusina que o diligente Aristides em boa hora feitura do Grande Ciclo do Filme de FC
uma vez mais convocou. Arrumados os passagei- de 1984 patrocinado pela Cinemateca
ros, o condutor arranca, numa indiferença prole- Portuguesa e Fundação Gulbenkian,
escreveu dois vastos artigos para a Enci‑
tária por este grupo de tristes que, com as roupas clopédia (hoje esgotada e objecto de culto
todas amarfanhadas se recosta nos bancos trasei- para quem a conseguiu comprar).
ros a beberricar umas quantas garrafinhas de água Dirigiu duas efémeras colecções para
dos Himalaias. as Editoras Gradiva (Col. Contacto) e
Clássica (Col. Limites) que o público
E enquanto viaja assim, entalado entre as português resolveu esquecer (pior para
coxas ossudas de Nissa Valmundo e as perninhas ele), publicou um vasto romance de quase
rotundas do seu editor, Horácio Quiroga cerra 600 páginas com a discreta ajuda de Luis
por momentos os olhos para dar atenção, enfim, Filipe Silva (de seu nome “Terrarium”),
precedido por uma colectânea de contos
às vozes que há duas horas sussurram no interior que chegou a perturbar algumas almas
da sua cabeça. São vozes entusiásticas untuosas, mais sensíveis (O Caçador de Brinquedos
cheias de ideias e novos conceitos narrativos, vo- e Outras Histórias).
zes que procuram arrumar‑se no espaço exíguo Em 2006, a editora Livros de Areia dedi‑
cou-lhe um chapbook com a publicação
do seu cérebro em eléctricas cotoveladas, vozes de uma das suas novelas “malditas”:
que lhe dizem como deve doravante proceder, que “Disney no Céu Entre
contratos assinar, como criar narrativas híbridas os Dumbos”. BANG!
revista BANG! [ 112 ]
A «Dama Margaret»
[ficção] [tradução de Trindade Santos]

Keith Roberts

Pavana, de Keith Roberts, é considerado um dos melhores exemplos da


excelência da história alternativa. A «Dama Margaret» é a primeira parte
dessa obra prima e pode ler-se como uma história independente. Boa leitura!

Durnovaria, Inglaterra, 1968 chado de sujidade e de óleo. O cabelo que aparecia


debaixo dele era negro e espesso. Balançava‑lhe na

C hegada a manhã escolhida, enterraram Eli Strange.


O caixão, com as faixas negras e vermelhas lança‑
das para ambos os lados, foi descido para a cova; as pegas
mão uma candeia, projectando crescentes lumino-
sos na cor acastanhada das máquinas.
Deteve‑se junto da última das locomotivas ali-
brancas escorregaram pelas mãos dos carregadores in nhadas e ergueu o braço para pendurar a candeia na
nomine Patris, et Fili, et Spiritus Sancti… A terra re‑ trave do apito, olhando por um momento as enormes
tomou o que lhe pertencia. E, a léguas de distância, a Iron formas das máquinas enquanto esfregava as mãos
Margaret gritou, envolta em gelo e vapor, lançando o seu inconscientemente e aspirava o vago odor a fumo
estentóreo bramido sobre as montanhas. e óleo. Depois ergueu‑se até à plataforma da loco-
motiva e abriu as portadas das fornalhas. Curvou‑se,

À s três da tarde, os estaleiros das máquinas já se


deixavam envolver na sombra da noite que se
aproximava. A luz, azul e difusa, filtrava‑se através
trabalhando metodicamente. O ancinho arranhou
as barras de ferro enquanto a respiração se lhe sol-
tava e se erguia em baforadas por cima dos ombros.
das longas tiras das clarabóias, mostrando as vigas Começou a atear o fogo cuidadosamente, misturan-
do tecto como ossos metálicos angulares. Por baixo do papel e acrescentando‑lhe feixes de varas que co-
delas, as locomotivas esperavam, melancólicas, os briu com pazadas de carvão retiradas do depósito,
bojos duas vezes da altura de um homem, com as com volteios ritmados dos braços. Pouco fogo para
abóbadas a tocarem as traves. A luz brilhava nas for- começar, como devia ser sob uma caldeira fria. Um
mas sombrias dos eixos, aqui nas correias de uma aquecimento súbito implicava súbita expansão e
caldeira, ali no casquilho em forma de estrela de um com ela rachaduras e fugas ao longo das juntas do
volante. As imensas rodas permaneciam em lagos de tubo do fogo e problemas sem fim. Apesar de toda a
sombra. sua força, as locomotivas tinham de ser acarinhadas
Um homem aproximou‑se vindo da penumbra. como crianças, convencidas, persuadidas a darem o
Avançava em passos firmes, assobiando por entre os seu melhor.
dentes e fazendo ressoar as botas cardadas no solo de O fogueiro pousou a pá e dirigiu‑se à boca da
tijolo desgastado. Vestia as calças de ganga e o forte fornalha para borrifar o carvão com parafina líqui-
jaquetão de um fogueiro com a gola levantada para da, soprada por uma cana. Depois, um trapo em-
se proteger do frio. Tinha na cabeça um boné de lã, bebido, um fósforo… este brilhou vivamente, chis-
que fora em tempos vermelho, e estava agora man- pando. O óleo incendiou‑se com um fraco uuunf.
revista BANG! [ 113 ]
Fechou então as portas e abriu as manetes de registo arremetida rápida com a sua muito gabada compo-
para estabelecer a corrente de ar. Levantou‑se, lim- sição tripla, a Fowler. Nesse caso, a Margaret volta-
pou as mãos com desperdício e saltou da platafor- ria a sair; porque a Strange & Filhos sempre fizera a
ma, começando a polir metodicamente os cromados última viagem até à costa. Sempre a fizera e sempre
da máquina. Acima da cabeça, longas placas com os haveria de a fazer…
nomes mostravam o nome da firma em complicadas Cento e cinquenta arráteis de cabeça de motor,
letras entrelaçadas; Strange & Filhos, de Dorset, Fo- bem medidos. O condutor pendurou a lanterna na
gueiros. Mais abaixo, no flanco da grande caldeira, o forquilha, situada na parte da frente da caixa da cha-
nome da própria locomotiva – A Dama Margaret. O miné, voltou a subir para a plataforma, colocou as
molho de trapos deteve‑se por momentos ao alcan- mudanças em ponto morto, abriu as válvulas do ci-
çar a chapa de latão; depois poliu‑a lentamente, com lindro e pôs o regulador na posição devida. A Dama
extremoso cuidado. Margaret acordou, pistões a rufar, cruzetas a desliza-
A Margaret assobiou suavemente para si própria rem nos seus trilhos, a pressão a troar subitamente
enquanto chispas de fogo troavam em redor do de- sob o tecto baixo. O vapor rodopiou no ar juntamen-
pósito de cinzas. O chefe dos estaleiros tinha‑lhe en- te com o fumo, espesso e fuliginoso, que arranhava
chido a caldeira, bem como o bojo e os tanques do a garganta. O condutor sorriu fracamente por entre
vagão, nessa tarde; a composição alongava‑se pátio dentes sem qualquer espécie de humor. O exercício
afora, à espera junto dos cais de embarque de mer- de arranque fazia parte de si próprio, ardia‑lhe no
cadorias. O fogueiro acrescentou mais combustível à espírito. Controlo de mudanças, válvulas do cilin-
fornalha, observando o modo como a pressão subia dro, regulador… Tinha falhado uma única vez, há já
até à cabeça do motor, enquanto retirava os pesados muitos anos, quando era garoto e abrira uma tracção
calços de carvalho das rodas e os guardava perto dos Roby de quatro cavalos com as válvulas fechadas, de
manómetros e dos indicadores de vidro do nível de tal modo que a água condensada em frente do pis-
água. O tambor da locomotiva começava agora a tão rebentara com o terminal da sonda. O coração
aquecer, espalhando um leve calor que irradiava em partira‑se‑lhe de dor juntamente com o ferro; mas
direcção à cabina. o velho Eli nem por isso deixara de o chicotear com
O condutor olhou para cima, para a luz do céu. um cinto cravado de tachas até o fazer sentir‑se à
Meados de Dezembro; parecia que Deus estava a beira da morte.
restringir a própria luz, de tal modo que os dias vi- Fechou as válvulas, movendo a alavanca de inver-
nham e desapareciam como no piscar de um fosco são toda para a frente e voltou a abrir o regulador. O
olho cinzento. A geada havia de cair também com velho Dickon, chefe dos estaleiros, materializara‑se
força, mais tarde. Já estava um frio de rachar; no pá- na penumbra do barracão, empurrando para trás os
tio, as poças de água tinham‑se quebrado e tilintado pesados portões, enquanto a Margaret, espalhando
debaixo das botas do homem, mal desfazendo a capa vapor, resfolegava ao ar livre, bamboleando‑se gare
de gelo da noite anterior. Mau tempo para os foguei- fora até ao local onde o seu comboio estava estacio-
ros, a maioria dos quais partira já. Era altura de os nado.
lobos deixarem os abrigos, pelo menos aqueles que Dickon, que estava sem casaco apesar do frio,
ainda restavam. E dos salteadores da estrada: esta engatou a composição no eixo de tracção da Dama
era bem a sua época, ideal para assaltos rápidos e de Margaret, fazendo saltar os elos até ao encaixe. Três
emboscada, para fugirem carregados com as merca- carruagens e o vagão da água; uma carga bastante
dorias dos últimos comboios de Inverno. O homem leve desta vez. O capataz ficou de pé de mãos nas an-
encolheu os ombros sob o casaco. Esta seria a última cas, de calções e camisa amarrotada e suja de comida,
viagem até à costa, pelo menos durante um mês ou o cabelo grisalho enrolando‑se sobre o colarinho.
coisa parecida, a menos que o velho bode do Ser- — É melhor ir consigo, senhor Jesse…
jeantson tentasse, do outro lado do caminho, uma Jesse sacudiu negativamente a cabeça, de quei-
revista BANG! [ 114 ]
xos cerrados. Já tinham passado por isto antes. O — Deus te acompanhe…
pai nunca acreditara em excesso de pessoal; fizera Jesse empurrou o regulador para a frente e er-
os seus homens, que eram poucos, trabalhar dura- gueu um braço num aceno de adeus quando a ro-
mente para ganharem os salários, capitalizando cada busta figura do capataz ficou para trás. A Margaret e
tostão que lhes pagara, embora não se soubesse por o seu comboio precipitaram‑se ruidosamente sob as
quanto tempo mais poderia continuar a fazê‑lo, dada arcadas do estaleiro e entraram nos sulcos que per-
a obstinação crescente da Guilda dos Mecânicos. O corriam as ruas de Durnovaria.
próprio Eli estivera ao serviço até poucos dias antes Jesse tinha muito com que ocupar o espírito en-
de morrer; Jesse conduzira‑lhe a composição ainda quanto conduzia a carga pela cidade; de momento,
não havia mais de uma semana, levando a Margaret os bandoleiros eram a menor das suas preocupações.
a fazer a ronda das aldeias, pela montanha acima de Agora que a dor fina que o atormentava principiara
Bridport para carregar a sarja e lã fiada dos cardado- a desvanecer‑se, dava‑se conta de como todos iriam
res dessas paragens; parte da carga que se destina- sentir a falta de Eli. A firma era um peso demasiado
va agora a ser enviada para Poole. O velho Strange forte para carregar às costas sem aviso prévio e pode-
nunca tinha escolhido a vida mais fácil do trabalho riam estar para vir dias difíceis. Com a Igreja a apoiar
de escritório e a sua morte deixara a firma sem um o clamor das Guildas por menos horas de trabalho e
trabalhador valioso, agora que não valia a pena con- salários mais elevados, afigurava‑se‑lhe que as com-
tratar novos condutores com o termo da época a panhias de transporte deveriam vir a ser obrigadas a
poucos dias de distância. Jesse agarrou Dickon por apertar novamente os cintos, e Deus sabia como as
um ombro. margens de lucro já eram magras. Falava‑se de mais
— Não podemos passar sem ti, Dick. Toma conta restrições a impor aos próprios comboios: um máxi-
do estaleiro e vela para que a minha mãe fique bem. mo de seis vagões, desta vez, e um depósito de água.
Eis o que ele teria desejado. – E, fazendo uma careta A razão apontada fora a do crescente congestiona-
trocista, acrescentou: – Se ainda não for altura para mento do tráfego em redor das grandes cidades. Isso
levar a Margaret para fora, estou bem enganado. e o estado das ruas. Mas que outra coisa se poderia
E começou a caminhar para a retaguarda do esperar, interrogava‑se amargamente Jesse, quando
comboio, verificando os tirantes das lonas que co- metade dos impostos lançados no país se destinava
briam a carga. O depósito e os vagões um e dois es- a comprar folha de ouro para as suas igrejas? Talvez,
tavam prontos, devidamente protegidos. Não havia contudo, este fosse o início de uma recessão no co-
necessidade de verificar a carga da composição; ele mércio. Como a que tinha sido arquitectada, um par
próprio a acondicionara na véspera, demorando‑se de séculos atrás, por Givesius. A sua memória ainda
horas com esse trabalho. Apesar de tudo foi vê‑la, perdurava, pelo menos no Ocidente. A economia
para além de verificar se estavam acesas as luzes da da Inglaterra estabilizara‑se pela primeira vez havia
cauda e da placa com o número, e só depois foi buscar anos; e a estabilidade queria dizer riqueza e reservas
o manifesto de carga, que se encontrava na posse de de ouro. E o ouro, armazenado em qualquer outro
Dickon. Voltou a saltar para a plataforma e envergou lugar que não fosse os semi‑lendários cofres do Vati-
as fortes luvas sem dedos e de palmas forradas com cano, significava perigo…
cabedal, habitualmente usadas pelos condutores. Meses atrás, Eli, praguejando de raiva, tinha‑se
O capataz olhava‑o impassivelmente, mas não dedicado a contornar os novos regulamentos. Tinha
deixou de lhe dizer: mandado modificar doze reboques para que pu-
— Tem cuidado com os bandoleiros. Esses bas- dessem transportar 50 galões de água num tanque
tardos normandos… galvanizado, logo atrás da barra de engate. Os tan-
Jesse resmungou. ques ocupavam muito pouco espaço e deixavam o
— Eles que tenham cuidado! Toma conta de resto da plataforma livre para o transporte de carga
tudo, Dickon, e espera‑me amanhã. paga, mas tinham sido suficientes para satisfazer a
revista BANG! [ 115 ]
dignidade do sheriff. Jesse imaginava o velho dia- isso não era da sua conta. Tinha as lanternas acesas e
brete a cacarejar de alegria com a sua vitória. Mas quaisquer condutores que não avistassem o bojo da
não vivera o suficiente para lhe ver os resultados. Os Margaret e a sua carga mereceriam ser esmagados.
pensamentos voltavam‑se‑lhe de novo para o pai, Quarenta toneladas bem pesadas, a rolar e troar;
tão inexoravelmente como o caixão descera à cova. pouca sorte para os leves carritos que se chegassem
Lembrava‑se da última vez que o vira, de nariz cin- perto de mais.
zento como cera a espreitar por cima dos paneja- Jesse manifestava o entranhado desprezo de to-
mentos à medida que os visitantes, entre os quais se dos os fogueiros pela combustão interna, embora ti-
encontravam os seus condutores, iam entrando na vesse acompanhado os argumentos a favor e contra
sala de estar da velha casa. A morte não suavizara Eli com a maior das atenções. Talvez um dia a propul-
Strange; tinha‑lhe cavado as feições, mas deixara‑as são a gasolina viesse a ser realidade, ou aquele outro
fortes como as paredes de uma pedreira. sistema – como é que lhe chamavam? – a Diesel…
Curioso, como parecia haver mais tempo para Mas a Igreja teria primeiro de levantar a mão em
pensar enquanto se conduzia. Mesmo quando se anuência. A Bula de 1910, Petroleum Veto, limitara a
andava sozinho e era preciso vigiar a válvula da cal- capacidade dos motores de CI (combustão interna)
deira, o manómetro de pressão, o fogo… As mãos de a 155 centímetros cúbicos e desde então os foguei-
Jesse experimentaram a excitação familiar ao apoia- ros haviam deixado de ter qualquer competição. Os
rem‑se no volante, as pequenas tensões que numa veículos a gasolina tinham sido obrigados a instalar
viagem prolongada iriam crescendo cada vez mais velas opulentas para os auxiliar a deslocarem‑se; o
até a acção de as controlar acabar por se transformar transporte de cargas era uma estranha graça de mau
em dores ardentes dos ombros e costas. Mas esta não gosto.
era uma viagem prolongada; 30 e tal quilómetros Mãe de Deus! Que frio estava! Jesse abrigou‑se
até Wool e depois pela Grande Charneca até Poole. melhor no casacão. A Dama Margaret não tinha
Uma corrida fácil para a Dama Margaret, uma carga resguardo envidraçado; muitos outros comboios já
fácil: 30 toneladas na cauda e terreno plano durante a as possuíam, até mesmo uma ou duas na frota dos
maior parte do percurso. A locomotiva tinha apenas Strange, mas Eli jurara que isso não sucederia na
duas mudanças; Jesse arrancara a grande velocida- Margaret, não na Margaret. Uma obra de arte, perfeita
de e contava permanecer nela. O poder nominal da em si mesma; permaneceria tal como os construtores
Margaret era de 10 cavalos, mas isso pela medida an- a haviam fabricado. A ideia de a cobrir de frioleiras
tiga; um cavalo‑força era calculado a 30 centímetros deixara o velho Eli quase doente. Torná‑la‑ia pare-
circulares na área do pistão. Contrariando o freio, a cida com qualquer uma das máquinas de transpor-
Burrel atingiria 70, 80 cavalos; o suficiente para mo- te que tanto desprezava. Jesse semicerrou os olhos,
ver uma carga de 130 toneladas, feito que o velho Eli obrigando‑os a ver, apesar do ardor produzido pelo
já realizara certa vez, por aposta. vento. Olhou para baixo, para o taquímetro. Veloci-
E ganhara‑a. dade de estrada de 20 e poucos quilómetros/hora,
Jesse verificou a válvula de pressão, olhando‑a de inversão a uma e 50. Uma mão enluvada puxou para
forma quase automática. Cinco quilos no máximo. trás a alavanca de inversão. Quinze era o limite per-
Estaria bem durante algum tempo; depois teria de mitido ao atravessar cidades, fixado nas leis do reino:
alimentar a fornalha em movimento, o que já fizera e Jesse não tencionava ser apanhado a excedê‑lo. A
bastantes vezes, mas por enquanto não havia necessi- firma Strange sempre se dera bem com os agentes da
dade. Alcançou o primeiro cruzamento, olhou para a autoridade e os sargentos da polícia, o que explicava
esquerda e direita e torceu o volante, virando‑se para em parte o seu sucesso.
trás para ver cada vagão fazer suavemente a curva no Ao entrar na rua principal, voltou a cortar um
mesmo local. Bem, o velho Eli teria gostado daquela pouco a pressão. A Margaret hesitou, trovejando de
curva. A carga do reboque passaria na estrada, mas impotência; o som ecoou, batendo nas fachadas dos
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grandes edifícios de pedra cinzenta. Jesse sentiu sob dos de lã e estambre em cima do depósito da água no
as botas o afrouxar da barra de engate e girou o vo- vagão número um, produtos transformados e os res-
lante do travão; um comboio descarrilado era prati- tantes no número dois. Quanto à carga do comboio,
camente a pior mancha possível no cadastro de um não havia preocupações: vigiar‑se‑ia a si própria.
condutor. Os reflectores por detrás das chamas das O East Gate apareceu lá à frente, bem como a
lanternas da cauda oscilaram para cima, duplicando mole escura da parede. Jesse abrandou imediatamen-
momentaneamente o clarão. Os travões bateram; os te. Mas não foi necessário: os estranhos carros‑bor-
compensadores puxaram o vagão da carga primeiro, boleta que ainda arrostavam os elementos naquela
endireitando a composição. Soltou mais um ponto noite agreste já haviam parado, mantidos fora do
na alavanca de inversão; o vapor que se libertou à caminho do perigo pelos sinais dos alabardeiros. A
frente dos pistões reduziu a velocidade da Margaret. Margaret guinchou, deixando para trás uma nuvem
Mais adiante avistavam‑se as lâmpadas de gás do de vapor, que ficou a pairar, muito brilhante, no céu
centro da cidade, bem alto nos suportes, e adiante as do entardecer. E seguiu o seu caminho atravessando
paredes do East Gate. as muralhas em direcção à charneca e aos montes
O sargento de serviço saudou‑o amigavelmente mais para longe.
com a alabarda, fazendo sinal para a Burrel avançar. Jesse estendeu a mão para baixo a fim de fazer
Jesse deu um empurrão à alavanca, afastando os tra- girar a válvula de injecção. A água, previamente
vões das rodas. Tensão a mais nos calções poderia aquecida pela passagem através de toda a extensão
ocasionar um incêndio em qualquer ponto do com- da caixa de fumo, precipitou‑se em torvelinho para
boio, o que seria muito mau visto a maior parte da dentro da caldeira. Deixou que a máquina adquirisse
carga, desta vez, ser inflamável. mais velocidade. Durnovaria desapareceu, perdida
Percorreu o manifesto em espírito. A Margaret na obscuridade circundante; a luz agora esmorecia
levava fardos de papel em cima de fardos de sar- rapidamente. À direita e à esquerda o terreno era in-
ja; em termos de espaço, era esta a maior parte da característico, perdido na escuridão; à frente, mal se
carga. As lãs inglesas eram famosas no continente; via o rodar do braço da alavanca, ouvindo‑se o tro-
similarmente, os cardadores de sarja contavam‑se vejar surdo da máquina. O fogueiro sorriu mordaz-
entre os grupos industriais mais poderosos do Su- mente, ainda excitado com o acto físico de conduzir.
doeste. As suas fábricas e armazéns espalhavam‑se A luz das chamas que se libertavam em redor das
por léguas ao derredor; o monopólio deste tipo de portadas da fornalha mostrou os olhos encovados
comércio ajudara o velho Eli a manter‑se à frente sob sobrancelhas horizontais e espessamente negras.
dos seus rivais. E havia ainda as sedas tingidas por Deixassem, pois, o velho Serjeantson tentar uma úl-
Anthony Harcourt em Mells; os panos de Harcourt tima e sub‑reptícia viagem. A Margaret competiria
eram procurados até mesmo em Paris. E caixotes e com o Fowler por montes e vales e Eli retorcer‑se‑ia
caixotes de produtos transformados dos artífices lo- de gozo na cova acabada de cavar…
cais, como Erasmus Cox e Jed Roberts, de Durnova- A Dama Margaret: ao espírito de Jesse, chegou
ria, ou Jeremiah Stringer, de Martinstown. Dinheiro a imagem não desejada de uma cena antiga. Viu‑se
em moeda com o selo do tenente do condado – o ainda rapaz, de voz imatura – há quanto tempo
último imposto da estação que seguia com destino a fora? – há oito, dez anos? Os anos tinham a parti-
Roma. E partes de máquinas, queijos de grande qua- cularidade de se empilhar uns sobre os outros, sem
lidade, toda a espécie de artigos. Cachimbos de bar- se fazerem notar; eis como os jovens se tornavam
ro, botões de chifre, fitas de seda e fitas métricas, até velhos. Lembrava‑se da manhã em que a Margaret
mesmo um carregamento de Nossas Senhoras feitas chegara ao estaleiro pela primeira vez. Viera a res-
de cerejeira, daquela firma do Novo Mundo sediada folegar, precipitando‑se pelo centro de Durnovaria,
em Beaminster. Como é que eles se chamavam a si acabadinha de sair das oficinas Burrel, na distante
próprios? Tranquilizadores da Alma, Lda. …? Teci- Thetford, de pintura a brilhar, o apito a soar, com a
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chaparia de latão a cintilar ao sol; uma locomotiva do, não sabia se de vergonha, se de orgulho. Tinha
com 10 CV (cavalos‑vapor), com os mais completos desejado, mais de mil vezes, retirar a sua sugestão,
pormenores, das decorações do volante às correntes mas o nome não desgrudara. Eli gostava dele e nin-
de descarga da estática, pás para a fornalha, bombas guém aborrecia o velho Strange, muito menos nos
de água. Eli tinha o que sempre desejara, uma das tempos em que estava na possa da plenitude das suas
melhores máquinas a vapor do Oeste. Ele próprio a forças.
fora buscar para o que tivera de fazer a difícil viagem Assim, Eli morrera sem pré‑aviso, apenas o ata-
através de inúmeras terras até Norfolk. Não confiara que de tosse, as mãos enclavinhadas nos braços da
a ninguém a tarefa de trazer o orgulho da frota. E ela cadeira, o rosto que subitamente já não era o do seu
fora a sua máquina preferida desde então; se o velho pai, de olhar estranhamento fixo. Um rápido vómito
bloco de granito que se chamava Eli Strange alguma sanguíneo, os pulmões a chiar e espumar e depois
vez amara alguém neste mundo, esse alguém fora a um velho de face cor de cera, jazendo no leito, com
enorme Burrel. uma vela acesa e um padre ao lado. A mãe velava‑o,
Jesse estivera lá, a recebê‑la, com o irmão mais de expressão totalmente vazia.
novo, Tim, e os outros, James e Micah, já mortos O padre Thomas mostrara‑se frio, evidenciando
– Deus tenha em descanso as suas almas – pela pes- desaprovação pela conduta do velho pecador; o ven-
te, que os contaminara em Bristol. Lembrava‑se do to rondara a casa, transportando uma geada cortan-
modo como o pai saltara agilmente da plataforma, te enquanto os lábios do padre absolviam e abenço-
olhara a locomotiva que estremecia como um ser avam mecanicamente… mas isso não fora, de facto,
vivo, expelindo vapor. O nome da firma já tinha sido a morte. A morte era mais do que um fim; era como
pintado e as letras luziam ao longo do bojo, mas nes- o puxar de um fio num tecido ricamente bordado.
sa altura a Burrel ainda não fora baptizada. Eli fora parte da vida de Jesse, tanto como o fora o
— Que nome vai ter a máquina? – gritara a mãe, seu quarto sob os beirais da velha casa. A morte per-
interrompendo a sua ociosidade; e Eli tinha despen- turbava o curso da memória, tocando velhas cordas
teado o cabelo e esfregado a cara avermelhada. que mais valera deixar por tocar. Não era necessá-
— Rais ma partam se sei… ria muita imaginação para Jesse poder rever o pai, o
Já possuíam a Trovejante e a Apocalipse; a Oberon, rosto enrugado, as mãos queimadas pelo sol, o boné
a La Ballard e a Força do Ocidente; grandes nomes so- engordurado de fogueiro enterrado até aos olhos. A
noros, apropriados às máquinas que os ostentavam. manta de pontas presas em redor dos colchetes, o
— Rais ma partam se sei… – repetira o velho Eli, imenso casacão de bombazina espessa. Era aqui que
sorrindo. E a voz de Jesse fizera‑se ouvir sem autori- mais lhe sentia a falta, na escuridão ruidosa, com o
zação, instável nos seus trémulos de adolescente: odor quente do óleo, no meio da fumarada que se es-
— Dama Margaret, senhor… Dama Margaret. capava do monte do carvão e lhe queimava os olhos.
Má coisa, essa, de falar sem alguém lhe ter pri- Soubera sempre que assim havia de ser. Talvez até o
meiro dirigido a palavra. desejasse.
A cara de Eli iluminara‑se, erguera o boné e vol- Horas de dar comida à besta. Atirou uma rápi-
tara a coçar a cabeça, rebentando depois em estri- da olhadela à estrada que se estendia à sua frente. A
dentes gargalhadas – Gosto… diabos ma levem, se máquina manteria o seu curso, a engrenagem não
na gosto… ressaltava. Abriu as portas da fornalha e pegou na
E assim fora: ficara Dama Margaret, apesar dos pá. Aumentou o brasido rápida e eficientemente,
protestos dos fogueiros e passando mesmo sobre mantendo‑o bem nivelado para obter o máximo de
a vontade do velho Dickon. Este afirmava que era calor. Fechou as portadas com um balanço rápido e
«uma má sorte danada» chamar uma locomotiva voltou a erguer‑se. O troar constante da locomotiva
pelo nome de um qualquer «estapor de mulher»… já fazia parte de si mesmo, estava‑lhe no sangue. O
Jesse lembrava‑se de que as orelhas lhe tinham ardi- calor da plata­forma atingiu‑lhe as plantas dos pés,
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trespassando‑lhe as solas das botas; o bafo quente da escadas acima para a cama; de outras, tornava‑se
fornalha soprou‑lhe no rosto. Mais tarde a geada vol- muito expansivo e sentava‑se a contar histórias de
taria a atingi‑lo, entranhando‑se‑lhe até aos ossos. quando era rapaz, quando as locomotivas tinham ei-
Jesse nascera na velha casa dos arredores de Dur- xos à frente das caldeiras e cavalos entre elas para as
novaria, pouco depois do pai ter iniciado o negócio conduzir. Jesse tinha sido auxiliar dos travões aos 8
com um par de máquinas agrícolas, uma debulha- anos e condutor aos 10, em pequenos trajectos. Ti-
dora e um tractor. Aveling e Porter. Sendo o terceiro nha sido arrancado à força daquela vida para ir para
de quatro irmãos, nunca esperara seriamente pos- a escola.
suir a fortuna da Strange & Filhos. Mas os caminhos Nunca percebera o que se passara no espírito de
de Deus eram tão inescrutáveis como as montanhas; Eli.
dois dos filhos do velho Strange tinham partido de — Vê se ficas com algum raio d’inducação – res-
cara enegrecida para o seio de Abraão, e agora tinha mungara o velho – é o que conta, rapaz...
sido a vez do próprio Eli.... Jesse voltou a pensar nos Jesse lembrava‑se de como se sentira; como va-
longos Verões passados em casa, Verões em que se gueara pelos pomares atrás da casa, vendo as amei-
ardia de calor nos estaleiros, que tresandavam a fumo xieiras em espessos cachos nas velhas árvores retor-
e a óleo. Passara aí os dias, vendo che­gar e partir os cidas e inclinadas, óptimas para trepar; as maçãs, as
comboios, ajudando à descarga nas plataformas dos laranjas Bramley, Lane e Haley, as peras Commodo-
cais, trepando por cima das pilhas intermináveis de re, quais romãs de pele enrugada, suspensas junto às
grades e fardos. Também aí havia odores: a riqueza paredes quentes da luz do Sol de Setembro. Antes
dos frutos secos nas caixas, alperces, figos e uvas; a tinha ajudado sempre à colheita dos frutos, mas não
doçura do pinheiro fresco e das pranchas cortadas, a neste ano, agora já não. Os irmãos tinham aprendi-
fragrância da madeira de cedro, o cheiro entontece- do a escre­ver, a ler e a contar na pequena escola da
dor do tabaco enrolado e curado em rum. Champa- aldeia e nada mais. Mas ele tinha ido para Sherborne
nhe e Porto no comércio de luxo, conhaque, rendas e frequentara o colégio da velha cidade universitária.
fran­cesas, tangerinas e ananases; borracha e salitre, Estudara muito as línguas e ciências e tinha sido bem
juta e cânhamo... sucedido; mas algo correra mal. Levara anos a perce-
Às vezes apanhava boleias nas locomotivas até ber que as mãos sentiam a falta do toque do ferro
Poole ou Bournemouth, para Bridport, Wey Mou- oleado, que as narinas necessitavam do cheiro do va-
th, ou para oeste até Isca, Lindinis. Fora uma vez até por. Fizera as malas e regressara a casa para trabalhar
Londinium e para nordeste até Camulodunum. As como qualquer outro fogueiro e Eli não dissera uma
Burrells, Claytons e Fodens pareciam devorar lé- única palavra, nem de elogio, nem de censura. Jesse
guas; era bom sentar‑se sobre a carga de um desses abanou a cabeça. Lá no fundo soubera sempre, sem
velhos comboios em que a máquina parecia estar à qualquer espécie de dúvida, o que ia fazer. No seu
distância de quase um quilómetro, que saracoteavam coração já era fogueiro, como Tim, como Dickon,
e cuspiam vapor. Jesse costumava saltar para ir pagar como o velho Eli. Era tudo e era suficiente.
aos guardas das portagens e ficar para trás para os A Margaret chegou ao topo de uma subida e ar-
ajudar a fechar os portões de longas barras riscadas fou depois, encosta abaixo. Jesse olhou de relance
de vermelho e branco. Recor­dava o troar de muitas para o comprido mostrador da válvula à altura dos
rodas, a espessa nuvem de poeira que se erguia dos joe­lhos. O instinto, mais do que a vista, fê‑lo abrir
veios abertos na estrada. O pó acumulava‑se nas ber- os injectores, a válvula de água que levava à caldeira.
mas e nas sebes tornando as estradas numa espécie A locomotiva tinha um extenso chassis que requeria
de cicatrizes que atravessavam a região. Passara mui- pru­dência nas descidas. Água a menos no tambor e
tas noites fora de casa, enrolado no canto de alguma a inclinação da frente destapa­ria a cabeça do motor
taberna, enquanto o pai se embriagava alegremen- fazendo derreter a cavilha que aí se encontrava. To-
te. Por vezes, Eli ficava sombrio e empurrava Jesse das as composições traziam cavilhas sobressalentes,
revista BANG! [ 119 ]
mas a colocação de uma era tarefa a evitar. Significa- ra‑lhes Dickon. Era uma descrição tão exacta como
va afastar o brasido e caminhar de gatas na fornalha qualquer outra. Era verdade que reclamavam a sua
quente como um forno de pão, para passar depois ascendência normanda, mas nesta Inglaterra católi-
uma eternidade a lutar no escuro, para conseguir ca, mais de mil anos após a Conquista, os sangues
colocá‑la. normando, saxão e o celta original tinham‑se mistu-
Já queimara a sua quota de cavilhas tempos atrás, rado inexoravelmente. As diferenças existentes eram
como qualquer outro prin­cipiante, e isso ensina- mais ou menos arbitrárias, reintroduzidas de acor-
ra‑lhe a manter bem coberta a cabeça do motor. Um do com as teorias raciais de Givesius, o Grande, um
nível demasiado elevado, por outro lado, significava par de séculos atrás. A maior parte das pessoas ti-
que a água atingiria as saídas de vapor descendo da nha pelo menos alguma noção das cinco línguas do
pilha de carvão numa nuvem escaldante. Também já país; o Francês Normando, das classes governantes,
lhe acontecera isso. o Latim, da Igreja, o Inglês Moderno, do comércio e
Deu a volta à válvula e o silvo dos injectores dos negócios, o Inglês Médio, arcaico, e o Celta, dos
terminou. A Margaret desceu len­tamente a encosta rústicos. Havia outras línguas, é claro: Gaélico, Cor-
e aumentou a velocidade. Jesse puxou para trás a nualhês e Galês, todas acarinhadas pela Igreja, que se
alavanca de inversão e deu volta aos travões para a man­tinham vivas séculos depois de o seu uso se ter
reduzir: sentiu o batimento irregular à medida que a diluído há muito. Mas era bom ter um país dividido
locomotiva era forçada a subir e devolveu‑lhe a pres- em pedaços por barreiras linguísticas além das de
são. Fosse claro ou escuro, conhecia cada palmo de classe. «Dividir para reinar» fora sempre a política,
estrada, como era obrigação de um bom condutor. ainda que não oficial, de Roma.
Uma luz solitária lá à frente disse‑lhe que se apro- Os próprios bandoleiros estavam rodeados de
ximava de Wool. A Marga­ret gritou um aviso à aldeia forte enquadramento lendário. Sempre houvera qua-
enquanto ia passando por entre vivendas de janelas drilhas de salteadores no Sudoeste e provavelmente
fechadas e persianas corridas. sempre as haveria; contrabandeavam, roubavam,
Uma corrida directa agora, pela campina até Po- assaltavam os comboios da estrada. Habitualmente,
ole. Uma hora até aos por­tões da cidade e talvez mais mas não invariavelmente, não chegavam a cometer
meia para chegar ao cais. Se os controlos de tráfego crimes. Em certos anos, os fogueiros sofriam mais
não fossem muito maus... Esfregou as mãos e esticou assaltos que noutros; Jesse ainda se lem­brava de uma
os ombros dentro do casaco. O frio começava agora noite escura em que a Dama Margaret se arrastara até
a invadi‑lo, sentia‑o instalar‑se‑lhe nas articula­ções. casa, com o seu condutor morto numa luta de ar-
Olhou para ambos os lados da rua. Era noite cer- queiros, com meio comboio incendiado e o velho Eli
rada e a Grande Charneca estava completamente es- a jurar pragas de morte e destruição. Tinham vindo
cura. Mas ao longe viu, ou julgou ver, o brilho de um soldados de Serviodunum para patrulharem a cam-
pirilampo à caça em qualquer pântano malcheiroso. pina dias a fio, mas em vão. O bando dis­persara‑se
Um vento gelado aproximava­‑se, gemendo, do va- para as suas casas – se as teorias de Eli estavam cor-
zio. Jesse escutou o bater regular da Burrell e, como rectas –, de novo transformados em cidadãos temen-
aconte­cera muitas vezes antes, a imagem de um tes a Deus. Não foi possível encontrar o que quer que
navio veio‑lhe ao espírito. A Dama Margaret, uma fosse na campina: os tão falados esconderijos dos
mancha de luz e calor, irrompia pela vastidão como bandidos não exis­tiam mesmo.
um navio a atravessar um vasto oceano inimigo. Ateou de novo a fornalha, estremecendo de
Estava‑se no século XX, na idade da razão; mas frio apesar do casaco. A Marga­ret não levava quais-
a campina era ainda abrigo de mitos e medos su- quer armas, mas também ninguém lutava contra os
persticiosos. De perseguições por lobos e bruxas, bando­leiros se pretendesse continuar vivo. Pelo me-
lobisomens e fadas; e dos bandoleiros. Jesse enrugou nos, não com os meios convencionais; Eli tinha as
o lábio superior: «bastardos norman­dos», chama- suas próprias ideias acerca do assunto, embora não
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tivesse vivido o suficiente para as pôr em prática. Jes- agora pronta, se necessário, para uma fuga longa e
se apertou os lábios com força: que os deixassem vir, árdua.
se viessem, e bem poderiam ficar com tudo o que Voltou a enrolar a mangueira e tirou as lanternas
conseguissem roubar à firma Strange. Este negócio de percurso para fora do vagão. Eram quatro: uma
não fora montado com suavidade; na Inglaterra para cada lado da caldeira, duas para o eixo da fren-
destes dias conduzir comboios não era uma pro- te. Pendurou‑as nos seus lugares, rodando as válvu-
fissão fácil. las sobre o carboneto e erguendo as tampas de vidro
Um quilómetro ou mais à frente, um ribeiro para cheirar, a ver se havia alguma fuga de acetileno.
subsidiário do Frome atraves­sava a estrada. Quan- As lanternas lançavam leques de luz branca para a
do faziam este percurso, os fogueiros costumavam frente e para cada um dos dois lados, fazendo cinti-
aí parar para encher os tanques de água. Não havia lar os cristais de gelo na superfície da estrada. Pôs‑se
poços na campina e o custo da sua construção era de novo em movimento. O frio estava mais agreste
proibitivo. Por outro lado, a água que permanecia ainda e pensou que estariam já vários graus negati-
no solo tornava­‑se salobra e apodrecia, deixando vos, embora o pior estivesse ainda para vir. Esta era
de poder ser usada nas caldeiras. As poças teriam a parte da via­gem em que se começava a pensar no
de ser rodeadas de muros de cimento, e tal traba- frio como num inimigo pessoal. Apanhava­‑nos a
lho reduziria a metade os lucros anuais de quem o garganta, enfiava‑nos as garras geladas nas costas;
fizesse. A manufactura do cimento era severamen- era uma coisa contra a qual havia que lutar de corpo
te controlada por Roma, e, portanto, o seu preço era e alma. O frio podia atordoar um homem, gelá­‑lo
inatingível. na plataforma até o fogo se reduzir e perder a pres-
Este embargo era deliberado, é claro. A maté- são sem que este se desse conta da necessidade de o
ria‑prima estava demasiado à mão e permitia erguer voltar a alimentar. Já acontecera antes; mais de um
rapidamente fortificações. Já houvera suficientes fogueiro haviam perdido a vida na estrada por essa
revoltas com o decorrer dos tempos, para ensinar a razão. E voltaria a acontecer.
precaução até mesmo aos papas. A Dama Margaret arfava de um modo constante
Jesse olhou em frente e avistou uma cintilação e o vento bramia na campina. Do lado de terra, as vi-
de água ou gelo. A mão foi­‑lhe imediatamente para vendas e os casais de Poole amontoavam‑se desorde­
a alavanca de inversão de marcha e para os travões nadamente por detrás de uma pesada muralha e de
do comboio. A Margaret deteve‑se no topo de uma um fosso. Ardiam fachos ao longo das fortificações;
pequena ponte. Os parapeitos desta ostentavam so- a luz avistava‑se por léguas de terreno deserto. A
lenes letreiros acerca de «carruagens excessivamen- Margaret subiu a fila de fogos tremeluzentes aproxi-
te pesadas», mas poucos fogueiros lhes prestavam mando‑se deles devagar. Mal avis­tou o West Gate,
atenção, pelo menos depois do sol‑posto. Jesse girou o volante dos travões e praguejou. Esten-
Saltou para o chão e desamarrou a mangueira dendo‑se desde as muralhas e fracamente visível à
fortemente blindada de um dos lados da caldeira, luz das tochas, distinguia‑se uma imensa confusão
fazendo passar a extremidade por cima da ponte. O de tráfego: Burrows, Avelings, Claytons e Fowlers,
gelo estilhaçou‑se com um ruído seco. As bombas cada locomotiva com o seu pesado comboio. Fun-
de aspiração silvaram ruidosamente e o vapor esca- cionários corriam de cá para lá; o vapor erguia‑se
pou‑se‑lhes pelos respiradouros. O trabalho ficou em penachos no ar; as muitas máquinas produziam
concluído em poucos minutos. A Margaret poderia um trovejar surdo. A Dama Margaret abrandou, ex-
ter chegado a Poole e tê‑la ultrapassado sem proble- pelindo nuvens brancas como se fossem respiração,
ma, mas nenhum fogueiro que se prezasse alguma entrando na conturbação ao lado de uma Fowler de
vez se sentiria seguro com os tanques menos que dez cavalos cuja libré osten­tava as cores dos Comer-
cheios. Sobretudo depois de escurecer e com a sem­ ciantes Aventurosos.
pre presente ameaça de ataque. A máquina estava Jesse estava a 50 metros dos portões e o engar-
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rafamento parecia que iria levar uma hora, ou mais, ainda equipado com as antiquadas e estranhas cal-
a resolver‑se. O ar retinia com o barulho das máqui­ deiras a mercúrio. Fez serpentear o comboio até
nas, os gritos dos condutores e os berros dos guardas ao armazém da companhia com quase uma hora
da cidade e dos sinalei­ros. Bandos de Anjos do Papa de atraso.
circulavam por entre as imponentes rodas, can­tando A carga de regresso já se encontrava pronta.
canções e erguendo os púcaros para receber esmolas. Soltou os vagões de baixo com alívio, entregou o
Jesse saudou um polícia de ar atarefado. O sargento manifesto ao agente da firma e fez marcha‑atrás
apoiou a alabarda no chão, olhou a carga da Dama até se colo­car sob o novo carregamento. Voltou a
Margaret, sorriu, e disse: — Com a bênção do Bispo verificar se a carga estava bem presa, criou pres-
Blaize nova­mente, não é amigo? são e partiu. O frio tomara‑o todo agora, e sentia‑se
Jesse resmungou uma afirmativa. A seu lado, a tentado pelas jane­las dos bares de borda‑de‑água que
Fowler deixou escapar uma série de apitos ensurde- prometiam calor, bebidas e comida quente; mas esta
cedores. noite a Margaret não ficaria em Poole.
— Alto aí! – exclamou o polícia. – O que tem Eram quase oito horas quando atingiu as mura-
você aí que precisa de tanta pressa? lhas e o congestionamento do tráfego já desaparece-
O condutor, uma migalha de homem, abafado ra. Os portões foram‑lhe abertos por um sargento de
num cachecol e casacão, cus­piu uma beata de cigar- rosto mal‑humorado e Jesse guiou o seu comboio
ro pela borda fora. através deles, estrada fora para lá da cidade. A Lua
— Mariscos para Sua Santidade – respondeu, já ia alta num céu límpido e o frio era intenso. Um
com ironia. grande estirão por cima do porto de Poole até onde
— Estão a incendiar Roma esta noite! – A histó- o curso do Ware­ham virava à esquerda, afastando‑se
ria do papa Orlando, que jantava ostras enquanto os da estrada no sentido de Durnovaria. Jesse fez os
seus mercenários saqueavam Florença, já se tornara vagões contorná‑lo. Deu rédea solta à Margaret,
lendária. atingindo os 30 quilóme­tros/hora em estrada aber-
— Se dizes mais alguma coisa, verás como os ta. Depois passou por Wareham – uma inclinação
portões se te fecham na cara. Ficarás na campina difí­cil perto da passagem de nível –, pelo Urso Pre-
toda a noite e os bandoleiros poderão saciar‑se con- to, com a sua monstruosa placa gravada, e por cima
tigo. Agora, faz‑me rodar esse monte de lixo, roda‑o, do Frome no ponto em que este desaguava no mar,
já disse... borde­jando a margem norte da ilha de Purbeck. De-
Abrira‑se uma fenda um pouco mais à frente; a pois disso de novo as campinas: Stoborough, Slepe,
Fowler trovejou desdenhosa­mente e dirigiu‑se para Middlebere, Norden, imensas e desertas, percorri-
lá. Jesse seguiu‑a e, séculos depois de muitos gritos e das por ventos sibilantes. Finalmente, uma cintilação
apitos, acabou por sair do engarrafamento e condu- brilhou lá mais à frente, muito acima da estrada e à
ziu o comboio pela rua prin­cipal de Poole. direita. A Margaret trovejou através de Corvesgeat, a
A Strange & Filhos tinha um entreposto no cais, antiga passa­gem pelos montes de Purbeck. O castelo
não muito longe da velha casa da alfândega. A Mar‑ de Corfe, construção quadrada, domi­nava a estrada,
garet abriu caminho por entre pilhas de mercadorias empoleirado sobre a berma, e mostrava as janelas
que tinham transbordado do cais de carga. As docas que cintila­vam como olhos. O senhor de Purbeck
estavam muito movimenta­das, o que não era habi- devia, pois, estar a residir nele e a receber os seus
tual no fim da época. Jesse passou por um grande convidados de Natal.
barco carvoeiro alemão, por um outro francês, um A locomotiva circundou os altos flancos do mot‑
ainda do Novo Mundo, ex‑negreiro a avaliar pelas te e subiu até à aldeia mais acima. Atravessou a pra-
linhas inclinadas, por um belo Clipper sueco ain- ça, de rodas e motor a reflectirem o clamor cavo da
da orgulhoso no seu velame, e finalmente por um fron­taria da Pensão do Galgo e voltou a subir a longa
vagabundo holandês, o Groningen, que sabia estar rua principal até ao local em que a campina esperava
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de novo, plana e desolada, assombrada pelo vento e Chegaram ao grande pátio do pedreiro no ex-
pelas estrelas. terior de Long Tun Matravers. As pilhas de pedra
A estrada de Swanage. Entorpecido pelo frio, erguiam‑se muito alto, debilmente visíveis à luz dos
lutou contra a ideia de que a Margaret tinha vindo candeei­ros da máquina a vapor, rompendo por fim
a percorrer aquele vazio expelindo o seu sopro na a solidão mortal da campina. Api­tou um aviso; a voz
escu­ridão, como qualquer espírito amaldiçoado e da Burrell irrompeu sobre os tectos das casas, lúgu-
acorrentado num inferno gelado. Teria acolhido bre e imensa. O local estava deserto como uma ci-
com alívio qualquer sinal de vida, até mesmo dos dade mortuária. À direita, o King’s Head mostrava
bandoleiros, mas não se via vivalma. Apenas a as- a sua iluminação fraca: a placa chiava desagradavel-
pereza interminável do vento e a escuridão que se mente, baloi­çando ao vento. As rodas da Margaret
estendia para cada um dos lados da estrada. Esfre- alcançaram o empedrado e derraparam; Jesse car-
gou as mãos cobertas de mitenes e bateu os pés na regou nos travões, puxando para trás a alavanca de
plataforma, voltando‑se para ver a alta sombra da inversão de marcha para cortar energia aos pistões.
carga que oscilava na noite lá ao fundo, à luz fraca, A geada tinha‑se acumulado naquele local e aqui e
reflectida pelas lanter­nas da cauda. Já há muito que ali a estrada estava como vidro. No cimo da subida
deixara de se insultar a si próprio apelidando‑se de para Swanage deu a volta ao controlo que bloqueava
idiota. Devia ter ficado em Poole e partido apenas os diferenciais. A locomotiva abrandou e começou a
ao amanhecer, sabia‑o muito bem. Mas naquela noi- descer, tacteando em busca do seu porto de abrigo.
te sentia obscuramente que não estava a conduzir o O vento uivou, erguendo uma nuvem de cristais de
comboio, mas a ser conduzido por ele. neve entre os faróis da frente.
Abriu a válvula de entrada de água para o aque- Os telhados da cidadezinha pareciam encaste-
cedor, alimentou a fornalha e voltou a abrir a válvula. lar‑se sob o manto de geada. Jesse voltou a apitar e
Um dia substituiriam estes queimadores de matéria o som fez‑se ouvir, imenso, por entre as casas. Um
sólida por máquinas a gasóleo. Essas unidades já bando de crianças, vindo de qualquer lado, apareceu
existiam há muitos anos, mas fazer arder óleo era correndo e gritando ao lado do comboio. Havia um
ainda uma teoria remota que esperava pelo veredic- cruzamento, à frente, e avistavam‑se os candeeiros
to papal. Talvez se tornasse decisão no próximo ano amare­los na frontaria do Hotel George. Jesse dirigiu
ou no seguinte, ou talvez não. Os caminhos da Ma- lentamente a locomotiva para a entrada do pátio. A
dre Igreja eram oblíquos, mas não podiam ser ques- chaminé roçou de passagem o tecto da entrada. Era
tionados pelo seu rebanho. aqui que mais precisava de um companheiro; o vapor
O velho Eli teria, certamente, instalado quei- da Burrell a soprar naquele espaço coberto obscure-
madores de óleo e amaldiçoado os padres até à ceu‑lhe a visão. As crianças tinham desaparecido; ali­
consumpção, mas os condutores e maquinistas viou então um pouco a alavanca de marcha‑atrás. Os
ter‑se‑iam enco­lhido à ameaça de excomunhão que escapes afastaram‑se das paredes e a Margaret voltou
certamente se seguiria. A Strange & Filhos tinha‑se a estar livre, rufando pátio afora. O lugar tinha sido
ajoelhado então, não pela primeira vez nem pela úl- ampliado anos atrás para receber os comboios de
tima. Jesse deu‑se conta de estar novamente a pensar estrada. Jesse passou por entre uma Garrett e uma
no pai, à medida que a Margaret se afadi­gava ladeira Clayton & Shuttleworth de seis cavalos, colocou a
acima, de regresso aos montes. Era estranho, mas alavanca de marcha‑atrás em ponto morto e fechou
agora sentia‑se capaz de falar com o velho. Agora o regulador. O batimento cessou por fim.
podia explicar‑lhe as suas esperanças e receios... O fogueiro esfregou a cara e espreguiçou‑se.
Mas era demasiado tarde, porque Eli estava mor- Tinha os ombros do casaco polvilhados de gelo;
to e enterrado sob dois metros de terra de Dorset. sacudiu‑o e desceu do comboio com os membros
Seria o mundo assim? As pessoas só se sentiriam ca- inteiriça­dos de frio. Colocou os calços sob as rodas
pazes de falar quando fosse demasiado tarde? da máquina e apagou os faróis. O pátio do hotel es-
revista BANG! [ 123 ]
tava deserto e o vento assobiava nos telhados circun- antes que se desse conta da sua presença. Parou de
dantes; a caldeira da locomotiva fervilhava baixinho. esfre­gar as mãos e levantou‑se na frente da mulher,
Abriu a válvula para deixar sair o excesso de vapor, desajeitado e consciente da sua altura e corpulência.
extinguiu‑lhe o fogo e fechou‑lhe os abafadores. De- — Olá, Jesse...
pois cami­nhou até ao eixo da frente para lhe enfiar Saberia ela? Voltava‑lhe sempre o mesmo pensa-
um balde pela chaminé. A Margaret podia agora mento. Durante todos esses anos, desde que dera um
passar a noite em segurança. Afastou‑se um pouco nome à Burrell; ela era nessa altura uma adolescente
e olhou‑lhe o bojo ainda irradiante de calor, a fra- desajeitada, toda pernas e olhos, mas era ela a dama
ca cintilação que se libertava do depósito das cinzas. a que se referira. Fora o fantasma que povoara as
Retirou a mochila da cabina e dirigiu‑se para o Ge- suas noites ardentes de adolescente, perseguindo‑lhe
orge para se ins­crever. o cheiro por entre os aromas dos jardins. Estivera na
Mostraram‑lhe o quarto e deixaram‑no só. Foi plataforma da máquina, quando o velho Eli entrara
à casa de banho, lavou a cara e mãos e saiu do hotel. naquela aposta monstruosa e chorara, feito doido,
A pouca distância do hotel viam‑se as janelas de um porque, quando a Burrell subira a última encosta,
bar por onde se escapava uma luz vermelha através não estava a ganhar 50 gui­néus de ouro para o seu
das cortinas corridas. A tabu­leta indicava tratar‑se pai, mas a dar a conhecer a glória de Margaret. Mas
da Pensão da Sereia. Caminhou, com dificuldade, esta já não era uma adolescente agora, as luzes ilumi-
pela rua abaixo e depois correu ao longo dos bares. navam‑lhe o cabelo, os olhos cintilavam‑lhe e a boca
A sala das traseiras estava cheia de gente ruidosa sorria maliciosamente...
e de fumo de tabaco. A Sereia era uma pensão de Resmungou um – B’noite, Margaret...
fogueiros; Jesse viu uma porção de homens conheci­ Ela trouxe‑lhe comida, pôs uma mesa a um
dos: Tom Skinner, de Powerstock, Jeff Holroyd, de canto e sentou‑se com ele enquanto comia. Sentiu
Wey Mouth e dois dos filhos do velho Serjeantson. que a respiração se lhe secava na garganta e forçou­
Na estrada, as notícias viajam depressa; rodearam‑no ‑se a pensar que isso não significava absolutamen-
falando desordenadamente uns com os outros. Res- te nada. Vendo bem as coisas, não é todos os dias
mungou respostas, abrindo caminho até ao balcão. que nos morre o pai. Usava um anel de pechisbeque,
Sim, o pai tinha tido uma hemorragia súbita; não, com uma pedra azul de cor viva, e tinha o hábito de
não vivera muito tempo depois dela. Só até às cinco o fazer rodar incessante­mente enquanto falava. Os
horas da tarde seguinte... dedos eram finos com unhas planas e enverniza­das,
Abriu o casaco para tirar a carteira, fez o pedi- em mãos largas como as de um rapaz. Jesse obser-
do e pegou na cerveja e no uísque duplo. Um espeto vou‑lhe as mãos que ora lhe ajeitavam o cabelo, ora
em brasa mergulhado no tanque cortou a cerveja e a tamborilavam na mesa, ou ainda batiam a cinza de
espuma cremosa escorreu pelos bordos do recipien- um cigarro na borda de um cinzeiro. Imaginava‑as
te. O álcool queimou a garganta de Jesse e fez‑lhe a varrer, limpar o pó, a lavar, bem como ocupadas
arder os olhos. Tinha acabado de deixar a estrada e noutras coisas, nas coisas secretas que as mulheres
os outros arranjaram‑lhe um lugar quando se aco- devem fazer a si próprias.
corou de joelhos abertos em frente da lareira. Bebeu Perguntou‑lhe que máquina trouxera. Pergun-
a cerveja de um trago, sentindo o calor invadir‑lhe o tava‑o sempre. Respondeu rapi­damente – A Dama
baixo‑ventre e mover‑se‑lhe até ao estômago. Ouvia – usando o calão dos fogueiros e voltando a inter-
ainda os batimentos da Burrell e sentia a vibração do rogar‑se sobre se ela alguma vez observara a Burrell
volante nos dedos. Haveria tempo mais tarde para a e se sabia que era a Dama Margaret. E, sobretudo,
con­versa, primeiro o calor. Um homem tinha que se se isso tinha alguma importância para ela. Então,
sentir quente. trouxe‑lhe nova bebida e disse‑lhe que era por conta
Sem saber como, ela tinha conseguido atravessar da casa, desculpando‑se por ter de voltar para o bar,
a sala e colocar‑se‑lhe atrás, dirigindo‑lhe a palavra mas que voltariam a ver‑se depois.
revista BANG! [ 124 ]
Olhou‑a através do fumo, vendo‑a rir‑se com os que o agarravam por um braço: voltou‑se e olhou
outros homens. Tinha um riso estranho, uma espé- os olhos castanhos e límpidos, bem situados sobre o
cie de risada alta, mas monótona, que lhe fazia erguer nariz direito daquele rosto bonito de libertino.
o lábio de cima e mostrava os dentes, enquanto os — Não – disse o recém‑chegado –, não acredito.
olhos observavam e troça­vam. Era uma boa empre- Por tudo o que há de profano, Jesse Strange...
gada de bar, a Margaret. O pai era um velho fogueiro Por momentos, a mancha alegre de uma barba
que devia tomar conta da casa há já uns vinte anos. em crescimento deixou‑o con­fuso, mas depois co-
A esposa morrera‑lhe há algum tempo e as outras fi- meçou a sorrir mesmo sem querer.
lhas tinham casado e partido para outras terras. Mas — Colin – articulou devagar. – Col de la Haye...
a Margaret tinha ficado. Tinha hábitos finos, dizia‑se Col agarrou o outro braço de Jesse.
entre os fogueiros. Mas era por certo disparate, por- — Que diabo! – exclamou. – Jesse ‘tás com bom
que dirigir um bar não era vida fácil. Até tarde sete ar. Isto ped’um copo, homem. ‘Tás c’bom ar, q’tens
dias por semana, polindo, esfregando, remendan- feito?...
do e cosendo, cozinhando... ainda que tivesse uma Encostaram‑se a um canto do bar e pediram
mulher‑a‑dias de manhã, para os trabalhos mais duas cervejas.
pesados. Jesse sabia disso, tal como da maior parte — Diabos, Jesse, q’má sorte. Perdeste o velho,
das coisas da sua Margaret: que número calçava, que hein? Que azar... – E, erguendo a sua caneca, saudou:
o seu aniversário era em Maio, que media 84 centí- – A ti, velho Jesse. A dias mais felizes...
metros no peito, que gostava de Chanel e tinha um Jesse e Col tinham sido amigos fiéis no colégio de
cão chamado Joe. E que tinha jurado nunca se casar Sherborne. Tinha sido um caso de atracção de opos-
porque, dizia ela, a Sereia lhe ensinara o suficiente tos; Jesse pouco falador, estudioso e sossegado, de la
acerca dos homens e só com cinco mil em cima do Haye, o libertino, o homem mundano. Col era filho
balcão algum deles poderia comprar‑lhe os ser­viços, de um negociante da costa oeste, um mulherengo e
mas não com menos. Nunca encontrara ninguém um valente tratante; os tutores haviam jurado que,
que ganhasse metade dessa soma, portanto, o desa- tal como a personagem de Fielding, nascera para ser
fio era impossível. Mas talvez não tivesse dito nada enforcado. Depois do colégio perdera contacto com
disso; o ar da aldeia cheirava a mexerico e os foguei- ele. Ouvira vagamente dizer que Col abandonara os
ros davam à língua como lavadeiras. negó­cios de família; importação e armazenagem não
Jesse afastou o prato. Sentiu subitamente um des- eram actividades suficientemente excitantes para ele.
prezo crescente por si pró­prio. Margaret era a razão Aparentemente, passara o seu tempo como trovador
de quase tudo; era o motivo que o levara a afastar‑se errante, trabalhando num livro de baladas que nun-
várias milhas do caminho e a passar por Swanage ca conseguira escrever, e passara seis meses na má
para carregar um par de cai­xas de peixe congelado, vida, em Londinium, até ficar acamado em resultado
que não pagariam o transporte de volta. Bem, quise- de uma rixa num bordel.
ra vê‑la e já a vira. Falara‑lhe e sentara‑se junto dele; — Mostrava‑te a cicatriz – disse Col, sorrindo de
não voltaria a fazê‑lo. Podia ir‑se embora, agora. modo horrível –, mas é bastante inconveniente na
Voltou a lembrar‑se da sepultura recém‑cavada, do presença de estranhos, meu velho...
atirar da terra para cima do caixão de Eli. Eis o que Mais tarde, tornara‑se, por mais estranho que
o esperava, tal como a todos os chamados filhos de possa parecer, fogueiro de uma firma em Isca. Mas
Deus; porém, esperaria sozinho pela morte. Queria não por muito tempo; logo a meio da primeira se-
beber, diluir a imagem fúnebre na penumbra quente mana de trabalho precipitara‑se Bristol adentro com
e obscura do álcool. Mas não ali, não ali... E dirigiu‑se uma Clayton & Shuttleworth de oito cavalos, de-
para a porta. senrolara a mangueira e esgotara o bebedouro dos
Foi de encontro a um estranho e resmungou cavalos no centro da cidade até os guardas o terem
uma desculpa, continuando a andar. Mas sentiu caçado. A Clayton não chegara a explodir, mas fora
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por pouco. Tentara de novo em Aquae Sulis, onde conseguira quebrar a coleira da besta. O maldito ani-
não era muito conhecido; dessa vez estivera seis me- mal causara problemas e pânicos durante um mês;
ses, antes que o vidro partido de uma válvula lhe ar- os homens saíam armados e as mulheres ficavam em
rancasse a maior parte da pele dos tornozelos. E de la casa. A coisa fora, finalmente, morta a tiro por um
Haye continuara a procurar, segundo a sua própria miliciano que a encontrara no seu quarto a beber
expressão, «um emprego menos letal». Jesse riu‑se uma tigela de sopa.
por entre dentes e abanou a cabeça. — ‘Tão que fazes agora? — perguntou de la Haye,
— ‘Tão qu’ andas a fazer? emborcando a sexta ou sétima cerveja. — A firma é
Os olhos insolentes riram‑se de novo para ele. tua agora, nã é?
— N’gócios – respondeu Col, alegremente. – ‘Pa- — Pois – resmungou Jesse, de mãos entrelaçadas
nhando o qu’ aparece aqui e ali... Os tempos ‘tão difí- a suportar o queixo. – Vou tocá‑la p’á frente, acho...
ceis, temos de viver como p’demos. Bebe, velho Jesse, Col pôs‑lhe um braço em volta dos ombros. —
a próxima é por minha conta... Vai ficar tudo bem – disse. – Vais ficar bem, amigo,
Continuaram a relembrar velhos tempos, en- ‘tão p’qué que t’ás tão triste? Ora, ouve lá: arranja uma
quanto a Margaret lhes servia cervejas e levava o di- rapariguinha e ficas logo bem. É disso que precisas,
nheiro, erguendo sempre a sobrancelha para Col. A velho Jesse; conheço os sinais. – Deu uma palmada
noite em que de la Haye, cheio da coragem do vinho, nas costas do amigo e desatou a rir. – Conserva‑te
jurara desfolhar a nogueira pre­ferida do seu profes- quente de noite melhor que um monte de coberto-
sor... res. E impede que engordes, nã é?
— Lembro‑me com’se fosse ontem – chasqueou Jesse pareceu vagamente surpreendido. — Nã sei
Col, alegremente. – Havia uma linda Lua, brilhante disso...
c’mó dia... — C’os diabos! – gritou de Ia Haye – E, contu-
Jesse segurara a escada enquanto Col trepava; do, é a receita. Ah, não há nada como isso. Mmm‑
mas, antes de ter atingido os ramos, a árvore fora minhaunh... – E arqueou os lábios, fechou os olhos
abanada como se houvesse um tufão. — Choviam e desenhou formas com as mãos, conseguindo ser
nozes como granizo – gargalhava Col. – Lembras‑te, apaixonado e lascivo ao mesmo tempo. – Nã há pro-
Jesse, deves lembrar... e lá ‘tava aquele... aquele blema agora, Jesse, mê’ velho – disse –, t’ás cheio de
velh’patife do guarda Toby Warrilow, sentado c’as ve- massa, sabes? C’os diabos, homem, és um partido
lhas boti­farras apontadas p’a fora, a abanar a maldita agora... Elas virão a correr quando souberem e terás
árvore... de as afastar com um... gancho de engatar, não é? – E
Durante semanas até mesmo de la Haye ficara voltou a rebolar‑se de riso.
incapaz de fazer o que quer que fosse de irregular aos As 11 horas chegaram depressa de mais. Jesse
olhos da lei, e o dormitório inteiro empanturrara‑se enfiou o casaco a custo e seguiu com Col, subindo
de nozes durante quase um mês. a ladeira que conduzia ao bar. Só quando o ar frio
Tinha ainda havido aquela história das duas o atingiu se deu conta de estar perdido de bêbedo.
freiras raptadas do convento de Sherborne; tinham Tropeçou de encontro a de la Haye e depois foram
tentado inculpar de la Haye, mas sem o conseguir, ambos contra a parede. Cambalearam rua afora a ri-
embora fosse do conhecimento geral quem era o rem‑se e despediram­‑se, finalmente, à porta do hotel
responsável. Já antes tinham sido, por vezes, rouba- George. Col desapareceu na noite berrando toda a
das jovens noviças, mas apenas Col teria sido capaz espécie de promessas.
de levar duas de uma só vez. E houvera também o Jesse encostou‑se à roda traseira da Margaret,
caso da estalagem O Poeta Camponês. O dono dessa de cabeça muito empertigada e sentiu os fumos da
casa tinha, em virtude de um qualquer capricho, um cerveja toldarem‑lhe o cérebro. Mal fechou os olhos,
grande gorila acorrentado no estábulo; Col, depois deu­‑se conta de um lento movimento; o chão pare-
de uma noitada em que fora posto fora da estalagem, cia balançar para a frente e para trás sob os pés. Bo-
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las, aquela última hora tinha sido bem boa! Voltara fresca; vapor e luz de lanternas, chamas, o céu som-
ao tempo do colégio; riu‑se sem vontade e limpou brio abraçando os montes.
a testa com as costas da mão. De la Haye era um Brincou depois com as memórias de Col, escu-
grande filho da mãe, sem dúvida, mas um gajo fixe, tando‑lhe as frases, ouvindo‑o rir; primeiro o leve
um gajo fixe... Abriu os olhos lacrimosos e olhou inspirar, guinchado, mas distinto, e logo o ladrar
para cima para o comboio. Depois, mexeu‑se cui- agudo como de metralhadora enquanto revolvia e
dadosamente, apalpando o motor, enquanto an- fechava os olhos, encolhia os ombros e batia com o
dava para lhe sentir a tempe­ratura com a palma. punho no balcão. Col prometera‑lhe que o iria visi-
Içou‑se para a plataforma, abriu as portadas da for- tar em Durnovaria, enquanto se afastava aos baldões
nalha, espalhou o carvão e verificou os abafadores e gritava que não se esqueceria. Mas havia de se es-
e a válvula da água. Tudo em ordem. Atravessou o quecer; perderia a noção de tudo ao envolver‑se com
pátio aos ziguezagues, sentindo os cristais de neve alguma mulher e esque­ceria tudo, o encontro que ti-
picarem‑lhe o rosto. nham tido. Porque Col não era como Jesse. Não ha-
Tacteou a fechadura com a chave e abriu a via planeamento ou espera para de la Haye, nem um
porta. O quarto estava escuro e gelado. Acendeu ponderar cuidado das opções; vivia o momento com
a única lanterna e deixou o vidro aberto. A chama avidez. E nunca mudaria.
da vela estremeceu na corrente de ar. Caiu pesada- As locomotivas trovejaram, eixos girando, cruze-
mente na cama e aí se quedou, olhando o ponto de tas inclinadas, o latão relu­zindo e tinindo ao vento.
luz amarela que baloiçava para a frente e para trás. Jesse semi‑ergueu‑se, sacudindo a cabeça. A
Era melhor dor­mir um pouco e partir de manhã lanterna ardia, agora, com uma chama estável fina
cedo. A mochila ficara na cadeira onde a tinha pen- e comprida, que vibrava apenas ao de leve na extre-
durado, mas faltava‑lhe a vontade para a abrir agora. midade. O vento assobiava, arrastando consigo as
Fechou os olhos. batidas de um relógio de igreja. Escu­tou a fim de as
Quase imediatamente as imagens começaram a contar. Doze batidas. Franziu a testa: tinha dormido
andar à roda. A Burrell trabalhava‑lhe algures dentro e sonhado que era quase madrugada. Mas a longa e
da cabeça; flectiu as mãos e sentiu o bordo do volante difícil noite mal começara. Voltou a deitar‑se, gru-
entre elas. Era assim que as locomotivas nos apanha- nhindo o seu desagrado, sentindo‑se bêbado, mas
vam, ao fim de algum tempo; trepidando hora após estranhamente desperto. Já não aguentava a cerveja;
hora até o ruído se tornar parte de nós e penetrar experimentara‑lhe todo o horror. Mas tal­vez hou-
no sangue e cérebro até não podermos viver sem vesse mais ainda para vir.
ele. Levantar de madrugada, partir estrada fora, E recomeçou a revolver ociosamente as coisas
conduzir até já não podermos parar; Londinium, que de la Haye lhe dissera. Aquela de precisar de ar-
Aquae Sufis, Isca; pedra das pedreiras de Purbeck, ranjar uma mulher, por exemplo, era uma loucura
carvão de Kimmeridge, lã, cereal e estam­bre, fari- típica de Col. Talvez não constituísse problema para
nha e vinho, candelabros, madonas, pás, pás de ba- Col, mas para Jesse houvera ape­nas uma raparigui-
ter a manteiga, pól­vora e munições, ouro, chumbo nha. E era inatingível.
e estanho; com contrato com o Exército, a Igreja... O rodopiar do espírito pareceu aquietar‑se e
Torneiras do cilindro, abafadores, regulador, parar completamente. Vamos, disse para consi-
alavanca de inversão de mar­cha, o trepidar da pla- go irritado, acaba com isso. Já tens problemas que
taforma de aço... cheguem, deixa cair... Mas, uma parte de si mesmo,
Mexeu‑se incessantemente, murmurando pa- recusava‑se obstinadamente a obedecer. Vol­tava as
lavras incompreensíveis. As cores tornaram‑se‑lhe páginas dos livros de contas, somando e subtraindo
mais vivas no cérebro. Castanho‑avermelhado e parcelas, atirando os totais incessantemente de en-
ouro das librés, um resto de saliva vermelha no quei- contro ao consciente. Praguejou, amaldiçoando de
xo do pai, brilhantes flores contrastando com a terra la Haye. A ideia, uma vez implantada, não o abando-
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naria. Persegui‑lo‑ia agora durante semanas, talvez Newton. As máquinas polidas até ao bojo, enfeita-
anos. das com fitas e bandeiras drapeadas, as pranchas do
Entregou‑se, com luxúria, ao sonho. Ela sabia soalho de cada um dos vagões a brilhar de limpeza,
tudo a seu respeito, é evidente; as mulheres sabiam montes de confetti como neve de cor viva, o padre
logo essas coisas. Tinha‑se revelado centenas, milha- que se ria de copo de vinho na mão, o velho Eli, de
res de vezes; pequenas coisas, um olhar, um gesto, cabelo milagrosamente alisado com brilhantina, ra-
uma palavra, eram o bastante. Beija­ra‑a uma vez, diante de felicidade, rosto aver­melhado, um colari-
há anos atrás. Apenas uma vez, e era talvez por isso nho incongruente em volta do pescoço, acenando
que o beijo lhe ficara tão indelevelmente gravado na da plata­forma da Margaret a sua caneca de cerveja.
memória, a ponto de o reviver naquele momento. Depois, de modo igualmente abrupto, toda a cena
Fora quase por acaso; numa passagem de ano, no desapareceu; e Eli, de fato domingueiro, com o seu
bar iluminado e barulhento, cheio de gente da terra jarrão de esta­nho e a cabeleira brilhante, fora recon-
a festejar as entradas. O relógio da igreja a soar como duzido a um lugar perdido na escuridão do vento.
agora, portas das ruas da aldeia que se abriam de par — Pai...!
em par, as pessoas que comiam bolos de frutas e be- Sentou‑se ofegante. O pequeno quarto continu-
biam vinho, gritando umas para as outras no escu- ava obscuro, com sombras que dançavam nas pare-
ro e beijando‑se; e ela pousara o tabuleiro dizendo: des, à medida que a chama da lanterna vacilava. No
— Não pode­mos ficar de fora, Jesse, também temos exterior, o relógio tocou a meia‑noite e meia hora.
de celebrar... Ficou quieto, sentado na borda da cama com a cabe-
Lembrava‑se do súbito palpitar do seu coração, ça apoiada nas mãos. Nada de casamentos para ele,
que se precipitara como uma locomotiva quando o nada de alegria. No dia seguinte teria de partir de re-
condutor lhe dá toda a pressão. Voltara o rosto para gresso a uma casa ainda de luto; para os problemas
ele e vira entreabrirem‑se‑lhe os lábios; e logo o bei- que o pai deixara por resolver, os negócios da famí-
jara fortemente com a língua, fazendo um pequeno lia, a mesma volta antiga e monótona.
ruído no fundo da garganta. Perguntava‑se se ela Na escuridão, a imagem de Margaret pareceu
faria aquele ruído automaticamente, como um gato dançar como uma centelha soli­tária.
que ronrona quando lhe acariciam o pelo. E, sem sa- Ficou horrorizado com o que o seu corpo co-
ber bem como, ainda lhe guiara a mão até aos seios meçou a fazer, sem que o pudesse controlar: os pés
onde ficara ani­nhada no quente sob o vestido, com encontraram os degraus da escada de madeira e
a palma a arder. Apertara‑a contra si com o braço, desceram‑nos precipitadamente. Já no pátio, sentiu
erguendo‑a na ponta dos pés até ela se torcer para se o frio gelado morder‑lhe a cara. Tentou reflectir, mas
afastar arquejante. — Uuuf – dissera. – Muito bem, parecia que as pernas já não lhe obedeciam. Expe-
Jesse. Ai... muito bem... – enquanto se ria de novo rimentou uma alegria súbita, um desanuviamento.
para ele e endireitava o cabelo. E todos os sonhos Não se pode suportar a dor de um dente que nos afli-
passados e visões futuras se tinham encontrado e ge há muito tempo: vai‑se ao barbeiro para mudar
fundido naquele ponto do Tempo. a moinha por uma agonia pior, mas mais rápida, e
Lembrava‑se de como tinha alimentado sem depois por uma paz abençoada. Já aguen­tara aquilo
parar a caldeira da locomotiva na viagem de volta, tempo de mais, tinha de acabar com ela agora. Ins-
enquanto o vento assobiava e as rodas chiavam no tantaneamente, sem esperar mais. Disse para consi-
caminho cheio de pontos brilhantes como jóias. go que dez anos de esperanças e sonhos, esperando
As imagens voltavam; via Margaret em mil e um emudecido como um animal, já eram bastantes. Per-
momentos doces, ajeitando o cabelo, tocando‑se, guntou a si próprio o que esperara que ela fizesse.
despindo‑se, rindo. E recordou, subitamente, o casa- Não teria vindo a correr suplicante atirar‑se‑lhe aos
mento de um fogueiro – o malfadado casamento do pés: as mulheres não eram assim e ela tinha a sua
seu irmão Micah com uma rapariga de Sturminster dignidade a defender... Tentou lembrar‑se da altura
revista BANG! [ 128 ]
em que o abismo entre ambos se instalara e não per- do. Erguia, bem alto, uma lanterna. E disse: — Tu...!
cebeu quando fora, nada houvera, nem gesto, nem – Fechou a porta com um empurrão, baixou‑lhe o
palavra... Nunca lhe dera uma oportunidade. E se ela trinco e voltou‑se para o ver. E disse numa voz baixa
também tivesse estado à espera durante todos aque- e furiosa – Que diabo pensas que estás a fazer?
les anos? À espera que lhe perguntasse..? Tinha de Jesse recuou. — Eu... – tartamudeou – Eu...
ser verdade. Pensou, entusiasmado, que só podia ser Viu‑lhe mudar a expressão. — Jesse – disse ela
verdade. E começou a cantar enquanto caminhava – o que se passa? Estás ferido? O que aconteceu?
pela rua. — Eu... lamento – respondeu. – Tinha de te ver,
O guarda‑nocturno surgiu de uma porta, uma Margaret. Não podia con­tinuar a não o fazer...
sombra escura de albarda na mão. — Chiu — disse ela. – Vais acordar o meu pai, se
— Está bem, senhor? é que não o acor­daste já. De que estás a falar?
A voz, soando como se viesse de muito longe, Encostou‑se à parede tentando deter a tontu-
acordou Jesse de repente. Engo­liu em seco, acenou ra que o acometia. — Cinco mil – disse, com voz
afirmativamente e sorriu. empastada. – Já não é nada, Margaret, sou... rico,
— Sim, sim claro... – E apontou para trás com valha‑me Deus. Já não tem importância...
um dedo. – Trouxe... um comboio. Sou Strange, de — O quê?
Durnovaria... — Na estrada – tentou explicar, com desespero
O homem deu um passo para trás. A sua atitude – os fogueiros falam. Dizem que querias cinco mil.
dizia claramente «mais um daqueles vagabundos...» Margaret, posso dar‑te dez mil...
e acrescentou asperamente: — É melhor ir para casa, Ela compreendeu, por fim. E, valesse‑lhe Deus,
senhor. Não quero ter de o prender. Já passa bastante começou a rir.
da meia‑noite, sabe?... — Jesse Strange – perguntou, sacudindo a cabe-
— Vou já, senhor guarda – respondeu Jesse. ça –, que estás a tentar dizer‑me?
– Vou já… – e dez passadas depois, voltava‑se para E saiu, por fim. — Amo‑te, Margaret – disse sim-
trás. – Senhor guarda... o senhor é casado? plesmente. – Acho que sempre te amei. E desejo...
A voz soou inflexível: — Vá para casa, senhor... que sejas minha mulher.
– E o seu dono desapare­ceu na escuridão. Ela deixou de rir, ficou muito quieta e fechou
A cidadezinha dormia. A geada cintilava nos os olhos, como se subitamente tivesse ficado muito
telhados, as poças de água das bermas tinham‑se cansada. Depois, estendeu a mão suavemente e agar-
transformado em pedra e todas as casas tinham as rou a do rapaz.
portadas corridas. Um mocho piou algures; ou en- — Vamos – pediu – só um bocadinho. Vem sen-
tão era o ruído distante de um motor, lá longe na tar‑te aqui.
estrada... A Sereia estava silenciosa e não se via luz A luz da lareira ao fundo do bar estava moribun-
alguma. Jesse bateu com força à porta. Nada. Bateu da. Sentou‑se em frente dela, enrolada como uma
ainda mais fortemente. Uma luz brilhou do outro gata, olhando‑o com olhos que pareciam maiores
lado da rua. Começou a respirar com dificuldade. naquela penumbra; e Jesse falou. Disse‑lhe o que
Tinha feito tudo mal, ela não abriria. Em vez disso nunca imaginara poder dizer: que a desejava, que
chamariam o guarda... Mas por certo sabe­ria quem sonhava com ela, mas que sabia não valer a pena;
estava a bater, as mulheres sabiam‑no sempre. Bateu como esperara tantos anos e que não houvera mo-
de novo na madeira, aterrorizado. mento em que ela lhe tivesse saído do pen­samento.
— Margaret... A rapariga permanecia em silêncio, acariciando‑lhe
Uma cintilação amarela e a porta abriu‑se com as costas da mão com o polegar, pensando e cisman-
uma rapidez que o fez desequilibrar‑se. Ergueu‑se, do. Disse‑lhe que seria dona da casa e dos jardins,
arquejante, tentando focar a vista. Ali estava ela, com dos pomares e ameixieiras, dos terraços cheios de
um lenço em volta do pescoço e o cabelo desgrenha- rosas, dos criados, de uma conta pessoal no banco;
revista BANG! [ 129 ]
e não teria mais trabalho que fazer, exceptuando o o sabia, é claro, sempre o soube. Por isso te dei-
de ser sua esposa. xei entrar. Porque... gosto muito de ti, Jesse, e não
O silêncio arrastou‑se quando acabou de falar, queria magoar‑te. E, agora, como vês, acreditei em
até o grande relógio do bar dar as horas. Ela esten- ti e, portanto, não me deves deixar ficar mal. Não
deu o pé para as cinzas tépidas, esticando os dedos; posso casar contigo, Jesse, porque não te amo. E
ele agarrou‑o e acariciou‑lhe a planta com os dedos: nunca te amarei. Percebes? É horrivelmente duro
— Amo‑te muito, Margaret – disse –, de ver- saber... o que sentes, e tudo isso, e ter de te dizer
dade... isto apesar de tudo, mas tenho de o fazer porque
Ela continuava parada, a olhar o vazio, de olhos não daria resultado. Sabia que isto aconteceria um
opacos. E deixou escorregar o xaile dos ombros, dia, costu­mava ficar deitada, acordada, a pensar
expondo os seios de mamilos espetados contra a nisto, a pensar em ti, juro‑te, mas não serviu de
transparência da camisa de noite. Franziu a testa, nada. Não daria resultado. É tudo. Por isso, não.
apertou os lábios e voltou a olhar para ele. Lamento muito, mas não.
— Jesse – disse –, quando eu acabar de falar Como pode um homem basear toda a sua vida
fazes‑me uma coisa? Prometes? num sonho, como pode ser tamanho tolo? Como pode
Ficou de repente sóbrio. A tontura e o calor de- viver, uma vez perdido esse sonho?...
sapareceram e ficou a tremer. Ouviu, sem sombra Viu o rosto do rapaz mudar de novo e to-
de dúvida, a locomotiva apitar em qualquer lado. mou‑lhe a mão nas suas.
— Sim, Margaret – respondeu –, se é isso que — Jesse, por favor... Penso... que foi lindo teres
queres. esperado por mim todo este tempo, e sei da ques-
Veio ter com ele e sentou‑se a seu lado. tão do dinheiro e por que razão o disseste, sei que
— Chega‑te para lá – disse, num murmúrio. apenas querias dar‑me... uma boa vida. Foi lindo
– Estás a ocupar o espaço todo. – Depois viu‑lhe pensares tudo isso a meu respeito e sei que o fa-
a tremura e pôs‑lhe a mão dentro do casaco, es- rias. Mas não iria dar resultado... Oh, meu Deus,
fregando‑o suave­mente. – Pára com isso – disse. é horrível!...
– Não o faças, Jesse. Por favor... Tentas acordar do que sabes ser um sonho, mas
O espasmo passou‑lhe; retirou o braço, apa- não consegues. Porque já estás acordado, este é o sonho
nhou o xaile e enrolou a camisa em torno dos jo- a que chamam vida. Moves‑te no sonho e falas, mesmo
elhos. quando algo dentro de ti quer contorcer‑se e morrer.
— Quando te disser o que vou fazer, prometes Acariciou‑lhe o joe­lho, sentindo‑lhe a doce firme-
ir‑te embora? Em sossego e sem fazeres... proble- za e disse — Margaret, não pretendo apressar‑te.
mas? Por favor, Jesse. Deixei‑te entrar... Olha, voltarei dentro de dois meses e...
— Está bem – respondeu. – Não te preocupes, A rapariga mordeu os lábios. — Sabia, tam-
Margaret, está tudo bem. – A voz soou‑lhe como bém, que irias dizer isso. Mas... não, Jesse. Não vale
se pertencesse a um estranho. Não queria ouvir o a pena pensares nisso. Já tentei e não dá resultado.
que ela tinha para dizer; mas o escutá‑la signifi- Não quero... voltar a passar por isto e magoar‑te
cava que podia permanecer a seu lado por mais de novo. Por favor, não voltes a pedir‑mo. Nunca
algum tempo. E sentiu, de repente, o que seria mais.
receber o último cigarro antes de ser enforcado. Pensou sombriamente que não a podia com-
Como cada fumaça representaria mais um segun- prar. Não a podia conquistar, nem comprar. Por-
do de vida. que não era homem bastante, eis a simples verdade.
Ela entrelaçou os dedos e olhou para a carpe- Não era o que ela queria. Soubera‑o, desde sempre,
te. — Quero... isto como deve ser – disse –, que- lá muito no fundo, mas nunca o quisera enfrentar.
ro dizê‑lo correctamente, Jesse, porque não quero Beijara a almofada muitas noites e murmurara o
magoar‑te. Gosto demasiado de ti para o fazer. Já seu amor a Marga­ret, porque nunca ousara trazer a
revista BANG! [ 130 ]
verdade à luz do dia. E agora tinha o resto dos seus demasiado grande para o seu entendi­mento. Já
dias para tentar esquecer... aquilo. não havia nenhuma Margaret. Nenhuma Marga-
Ela ainda o observava e prosseguiu — Por fa- ret. Agora, teria de deixar o mundo dos adultos,
vor, compreende‑me... onde as pessoas amavam e se relacionavam e eram
E Jesse sentiu‑se melhor. Deus lhe valesse, mas importantes umas para as outras. Teria de voltar
parecia‑lhe que um peso lhe saíra de cima e o dei- de novo ao seu universo de criança, feito de óleo
xava falar. e aço. E os dias haviam de chegar e passar, até que
— Margaret – disse. – Isto parece muito estúpi- num deles mor­reria.
do, não sei que dizer... Atravessou a rua perto do hotel George, e logo
— Tenta... que passou o arco da entrada subiu as escadas e abriu
— Não quero prender‑te. Seria egoísta... tal a porta do quarto. Apagou a luz, sentindo o odor
como se alguém... quisesse ter um pássaro numa fresco e acre dos lençóis de Goody Thompson.
gaiola... possuí‑lo... Mas antes não pensava assim. A cama estava fria como um túmulo.
Acho que... te amo de verdade, porque não que-
ro que isso te aconteça. Nada faria para te magoar. *
Não te preocupes, Margaret, deixa estar. Agora já
vou ficar bem. Acho que... bem, acho que desapa-
recerei da tua vida, apenas...
Ela levou uma das mãos à cabeça e murmurou:
A s peixeiras acordaram‑no com os seus pregões
de rua. Ouvia‑se algures o bater das pás de fa-
zer manteiga e das vozes crispadas pelo ar frio do
— Meu Deus, é horrível, sabia que isto iria acon- pátio. Ficou quieto de barriga para baixo e houve
tecer... Jesse, não... desapareças. Quero dizer, partir um espaço de tempo vazio antes de sentir o gelo do
e... não voltar mais. Sabes, eu... gosto muito de ti, desgosto. Lembrou‑se de que estava morto; levan-
como amigo, e sentir‑me‑ia muito mal se proce- tou‑se e vestiu‑se, sem sentir o ar gelado no cor-
desses assim. As coisas não podem continuar a ser po. Lavou e barbeou a cara pálida e olheirenta de
como eram, quero dizer, não podes vir ver‑me... um estranho e saiu em busca da Burrell. As cores
como costumavas fazer? Não te vás já embora, por brilhavam‑lhe à pálida luz do sol, encimadas por
favor... uma pequena camada de geada. Abriu a fornalha,
Até isso, pensou, sou capaz de fazer, até mesmo varreu o bor­ralho com o ancinho e alimentou‑a.
isso. Não tinha qualquer espécie de fome; em vez dis-
Ela levantou‑se. — Agora vai, por favor... so, desceu até ao cais e regateou, sem se dar conta,
Acenou, entorpecido. — Tudo vai ficar bem... o peixe que queria comprar e combinou a entrega
— Jesse – disse a rapariga – não quero... apro- no George. Avistou os confessionários prepara­dos
fundar mais nada, mas… – e beijou‑o rapidamen- para o serviço nocturno e ficou para se confessar.
te. Desta vez não houve sentimento, não houve Nem sequer se aproxi­mou da Sereia; agora, nada
fogo. Ficou de pé até ela o soltar e depois encami- mais queria do que partir, pôr‑se a caminho na
nhou‑se rapidamente para a porta. estrada. Voltou a verificar tudo na Dama Marga‑
Escutou indistintamente o barulho das botas ret, poliu‑lhe as placas com o nome, tampões e os
a retinir na calçada. Algures, muito longe, ouviu cubos das rodas. Então, lembrou‑se de ter visto
um suspiro vago, um murmurar; talvez fosse o uma coisa na janela de uma loja, que quisera com-
sangue a bater­‑lhe nos ouvidos, talvez o mar. As prar; um pequeno quadro da Virgem, de S. José,
ombreiras das casas e as janelas de portadas obscu- com os pastores de joelhos e o Menino Jesus na
ras pareciam espreitá‑lo, todas de comum acordo, manjedoura. Bateu à porta do lojista, comprou‑o
e desapareceriam mal se afas­tasse. Sentia‑se como e mandou‑o embrulhar; a mãe apreciava muito
um fantasma deveria sentir‑se ao debater‑se com aquelas coisas e ficaria muito bem sobre o apara-
a ideia da morte, tentando assimilar uma ideia dor por alturas do Natal.
revista BANG! [ 131 ]
Já era hora de almoço. Obrigou‑se a comer, en- dido; em breve uma mensagem se lançaria para
golindo alimentos que lhe sou­beram a palha. Ia a pa- Norte percorrendo as torres da região. A Dama
gar a conta, quando se lembrou; agora ia para a conta Margaret, locomotiva da Strange & Filhos, Durnova‑
da Strange & Filhos, de Dorset. Depois da refeição ria; vinda de Swanage a caminho de Corvesgeat, quin‑
dirigiu‑se a um dos bares perto do George e bebeu ze horas e trinta. Tudo bem...
para tentar lavar o gosto acre da boca. No subcons­ A noite chegou depressa e com ela a geada cor-
ciente não deixava de esperar; passos, uma voz, uma tante. Virou para oeste muito antes de Wareham,
mensagem de Margaret dizendo‑lhe que não fosse atravessando a campina a direito. A Burrell trepi-
porque mudara de opinião. Era um mau estado de dava com­passadamente agarrando‑se à estrada,
espírito em que se deixara cair, mas não o podia evi- com as rodas de tracção de dois metros de diâme-
tar. Porém, não chegou men­sagem alguma. tro, deixando finas esteiras de vapor na escuridão
Eram quase três horas quando saiu e se dirigiu atrás de si. Parou uma única vez para encher os
para a Burrell para criar pres­são. Desengatou a tanques e acender as lanternas e voltou a precipitar­
Margaret e virou‑a, amarrou a carga no atrelado e ‑se campina adentro. Formava‑se agora uma fina
condu­ziu‑a até à estrada. Um feito difícil, mas fê‑lo neblina ou fumo de geada; entranhava‑se nos bu-
sem pensar. Desengatou a loco­motiva e voltou a racos do chão irregular e brilhava estranhamente
trazê‑la de volta, engatou, empurrou a alavanca de à luz das lanternas laterais. O vento murmurava
inversão de marcha para a frente e abriu o regula- ameaçadoramente. A norte dos Purbecks, na es-
dor. O troar das rodas começou por fim. Sabia que, treita faixa costeira, o vento carregava com força e
mal saísse de Purbeck, não voltaria. Não seria ca- dureza; e na manhã seguinte a campina estaria im-
paz, apesar da promessa. Enviaria Tim ou um dos praticável com o trilho perdido sob uma camada
outros; a coisa que sentia dentro de si não ficaria de meio metro ou mais de neve.
morta se a visse de novo, e teria de voltar a matá‑la. Passara já uma hora desde que saíra de Swa-
E uma vez já era mais do que suficiente. nage e a Margaret continuava a emitir a sua incan-
Tinha de passar pelo bar. A chaminé deitava sável canção de poder. Jesse pensou entorpecida-
fumo, mas não havia qual­quer outro sinal de vida. mente que ela pelo menos conservava a fé intacta.
Atrás dele o comboio abria caminho ruidosa e obe­ Os semáforos já a tinham perdido na escuridão;
dientemente. Serviu‑se do apito durante cerca de não haveria mais mensagens até que atingisse o
50 metros, repetidas vezes, acordando a imensa ponto de partida. Podia bem imaginar o velho Di-
voz de ferro da Margaret e enchendo a rua de va- ckon, em pé, à porta do estaleiro e à luz dos archo-
por. Era infantil, mas não podia deixar de o fazer. tes, preo­cupado, inclinando a cabeça para ver se
Finalmente, chegou a campo aberto. Swanage foi apanhava o trepidar de um escape a quilómetros
ficando para trás à medida que subia em direcção à de distância. A locomotiva passou por Wool. Em
campina. Aumentou a velocidade: estava atrasado breve estaria em casa, no pouco conforto que lhe
e naquele outro mundo que parecia ter abandona- restasse...
do há tanto tempo, um homem chamado Dickon A abordagem apanhou‑o quase completamen-
estaria por certo muito preocupado. te de surpresa. O comboio abran­dou perto do topo
Lá ao longe, à esquerda, um semáforo erguia‑se, de um monte, enquanto o homem corria a seu lado
rígido, contra o céu. Apitou­‑lhe duas notas agudas e tentava içar‑se para o degrau da plataforma. Jes-
seguidas, do prolongado chamamento que todos se ouviu o raspar de sapatos na estrada; um sexto
os foguei­ros usavam. Por momentos, a máquina sentido qualquer avisou‑o da existência de movi-
permaneceu inerte; depois viu‑lhe os bra­ços cor- mento na escuridão. Ergueu a pá prestes a atingir
responderem ao sinal. Sabia que, algures lá longe, com ela a cabeça do estranho ameaçador, quando
alguém teria os seus óculos «Zeiss» assestados so- escutou um uivo agónico: — Eh, meu velho, já não
bre a Burrell. Os homens da Guilda tinham respon­ reconheces os amigos?
revista BANG! [ 132 ]
Em equilíbrio precário, Jesse resmungou e Jesse olhou para a válvula e deu volta às tornei-
agarrou‑se ao volante. — Col... que diabo estás a ras do tanque do bojo da máquina, escutou o es-
fazer aqui? parrinhar da água na estrada, tocou nos controlos
De la Haye, ainda arquejante, sorriu‑lhe à luz de injec­ção e viu sair o jacto de vapor à medida que
das lanternas laterais. — Sou só mais um cami- as bombas alimentavam a caldeira. O batimento
nhante, meu amigo. E estou feliz por te ver aqui, não sofreu qualquer alteração. E disse, calmamen-
podes crer. Tive alguns problemas e pensei que ti- te: — Acho que deve mesmo ter sido a cerveja a
nha de passar a noite na maldita campina... culpada. Acho que tenho de deixar de beber. ‘Tou
— Que problemas? a ficar velho.
— Bem, estava a caminho de um lugar meu De la Haye olhou‑o atentamente. — Jesse
conhecido – disse de la Haye –, um lugar perto de – continuou –, tens problemas, filho. Tens proble-
Culliford, uma quintinha. Umas ricas irmãs. Eh, mas. O que há? Vá, desembucha...
Jesse, mas tu sabes, não? – E esmurrou amigavel- Aquela maldita intuição não o deixara ainda.
mente o braço de Jesse, come­çando imediatamente Acompanhara‑o sempre desde os tempos do colé-
a rir‑se. Jesse apertou os lábios e perguntou: gio; parecia conhecer sempre o que estava a pensar
— O que acon­teceu ao teu cavalo? mal a ideia lhe chegava à cabeça. Era a grande arma
— O diabo do bicho tropeçou, caiu e partiu a de Col; usava‑a para conquistar as mulheres. Jesse
perna. riu‑se amargamente; e, de repente, toda aquela his-
— Onde? tória lhe saiu pela boca. Não a queria contar, mas
— Na estrada além, ao longe – respondeu de fê‑lo até à última palavra. Assim que come­çou,
la Haye, descuidadamente. – Corteil’as goelas e sentiu‑se incapaz de parar.
atirei‑o valeta abaixo. Nã queria qu’os malditos Col escutou‑o em silêncio e depois começou
bandoleiros viessem coscuvilhar o meu cami- a tremer. E tremia de riso. Encostou‑se para trás
nho… de encontro à antepara do veículo, agarrado a uma
Soprou nas mãos e aproximou‑as da fornalha, escora.
tremendo, dramaticamente, no seu casaco de pele — Jesse, Jesse, és um puto. Meus Deus, nunca
de cabra. hás‑de mudar... Danado de saxão... – E rebentou
— Diabo de frio, Jesse, frio para burro... Até de novo às gargalhadas, limpando os olhos. – En-
onde vais? tão... então ela virou‑te o seu lindo rabinho, não
— Até casa, Durnovaria. foi? Jesse, és mesmo um puto; quando aprenderás?
De la Haye olhou‑o com atenção. — Eh, tu não Então apresentaste‑te com... com isto... – E bateu
estás bem, pois não? Estás doente, meu velho Jes- no apito da Margaret. – E com a tua cara muito ho-
se? nesta e enfarruscada, oh Jesse, imagino a tua cara.
— Não. Homem, ela não quer para nada o teu corcel de
De la Haye abanou‑lhe o braço insistentemen- aço. Valha‑me Deus, nem pensar... Mas, vou‑te di-
te. — Qu’é que se passa homem? Alguma coisa que zer o que deves fazer...
um amigo não possa ajudar? Jesse inclinou os cantos dos lábios para baixo.
Jesse ignorou‑o e os seus olhos pesquisaram — Porque é que não te calas simplesmente?...
cuidadosamente a estrada em frente. De repente, De la Haye abanou‑lhe um braço.
de la Haye rebentou a rir. — Foi a cerveja, não? — Não, escuta. Não te zangues e escuta‑me.
Meu velho Jesse, o teu estômago encolheu! – E er- Tu... deves fazer‑lhe a corte, Jesse; é disso que ela
gueu um punho fechado, estendendo‑o depois ao gosta. Entendes? Veste o fatinho domingueiro, ar-
alto. – Como o estômago de um bebé, não. Já não ranja um carro vistoso e cobre‑o a folha de ouro.
há ali o velho, pois não? Não vereis mais o velho Ela vai gostar. ... Mas não te sujeites a ser empur-
Jesse. Ah, a vida é um inferno. rado de novo e também não lhe peças mais nada.
revista BANG! [ 133 ]
Diz‑lhe o que queres e que o vais conseguir... Paga e voltou a olhar para Jesse. — Viste aquilo?
a cerveja com uma moeda de ouro e diz‑lhe que Jesse respondeu de modo sombrio.
queres receber o troco no primeiro andar. Ela me- — Sim, vi.
rece‑o, Jesse, merece que alguém lho diga. Mas é De la Haye olhou nervosamente em torno da
bonita... plataforma.
— Vai para o diabo... — Tens uma arma?
— Não a queres? – De la Haye pareceu mago- — Porquê?
ado. – ‘Tou só a tentar aju­dar... meu caro... Já per- — A maldita luz, os bandoleiros…
deste o interesse? — Não se luta contra os bandoleiros com uma
— Sim — respondeu Jesse. – Perdi o interesse. arma de fogo.
— Ahhh... – Col suspirou. – É pena. Um amor Col abanou a cabeça. — Eh, homem, espero
jovem todo estragado... Mas digo‑te uma coisa. bem que saibas o que estás a fazer...
– E sorriu manhosamente. – Deste‑me uma gran- Jesse puxou as portas da fornalha num repe-
de ideia, velho Jesse. Já que não a queres, vou eu lão, permitindo a saída de uma labareda ardente.
conquistá‑la. ‘Tá bem? — Alimenta‑a...
Quando ouvires os prantos que indicam que o teu — O quê?
pai está morto, as tuas mãos continuarão a limpar uma — Alimenta‑a…
guia de cruzeta. Quando o mundo ficar de repente ver‑ — OK, homem – respondeu de la Haye. – ‘Tá
melho e flamejante, quando houver tambores a rufar bem, OK... – E começou a atirar pazadas para a
na tua cabeça e os olhos olharem a estrada em frente fogueira. Fechou depois as portas a pontapé e en-
com os dedos quietos no volante. Jesse ouviu a pró­pria direitou‑se. — Gosto muito de ti, mas tenho de te
voz falar secamente. abandonar. Quando pas­sarmos os sinais, se pas-
— És um maldito bastardo mentiroso, Col, sarmos os sinais...
sempre o foste. Ela não se apai­xonaria por ti. O sinal, se é que tinha sido um sinal, não se
Col estalou os dedos e ensaiou um passo de repetiu. A campina estendia‑se a perder de vista,
dança na plataforma. deserta e sombria. Em frente, havia uma longa sé-
— Homem, já está a meio caminho. Oh, mas rie de socal­cos; a Lady Margaret encaminhou‑se
como ela é bonita... Aqueles olhinhos estavam a para o primeiro, arfando pesadamente. Col olhou
brilhar de mais na noite passada, não? É fácil, ho- novamente em redor com receio e inclinou‑se para
mem, fácil... Vou‑te dizer: acho que é sádica na fora da plataforma para olhar para trás o resto da
cama. Mas é bonita, ahhh, bonita... E os seus ges- composição. As altas arcadas das lonas eram ape-
tos deram, sabe‑se lá como, uma ideia de êxtase. nas perceptíveis na escuridão.
Hei‑de possuí‑la cinco vezes por noite – jurou — e — Que carga levas, Jesse? – perguntou. – Trans-
enviar‑te‑ei provas. ‘Tá bem? portas bens de valor?
Talvez ele não esteja a falar a sério. Talvez esteja a Jesse encolheu os ombros — Só faz volume: ra-
mentir, mas não está. Conheço o Col; e o Col não men‑ ções para o gado, açúcar, fru­tos secos. Nada que
te. Não acerca disto. O que diz que vai fazer fá‑lo‑á... valha a pena.
Jesse sorriu apenas com os dentes. De la Haye acenou com ar preocupado. — O
— Faz isso, Col. Dá conta dela. E depois eu que vai no atrelado?
tirar‑ta‑ei. ‘Tá bem? — Aguardente e seda. Algum tabaco. Artigos
De la Haye sorriu e agarrou‑o por um ombro. de veterinária – castradores de animais. – E acres-
— Jesse, és um puto. Eh...? Eh... centou, olhando de lado: – Laços de corda, sem
Viu‑se uma luz brilhar brevemente à direita lá derrame de sangue.
ao longe, bem para o interior da campina. Col gi- Col pareceu novamente surpreendido, depois
rou sobre si próprio, olhou para onde tinha estado começou a rir.
revista BANG! [ 134 ]
— Jesse, és mesmo um puto. Um puto sangui- a força, 150 libras de pres­são na caldeira. Os lábios
nário... Mas esta é uma boa carga. Boa escolha... ainda se mostravam arrepanhados de angústia.
Jesse concordou com a cabeça, sentindo‑se Não era o suficiente; depois da próxima descida e
completamente vazio. – Para aí umas 10 mil libras. a meio da extensa encosta que se avizinhava, eis
Coisa de tirar mais ou menos 100 libras. quando o apanhariam. Deslocou o regulador para
De la Haye assobiou: — Sim, sim, é uma boa a posição extrema; a Dama Margaret voltou a ga-
carga... nhar velocidade, oscilando quando as rodas ba-
Passaram a ponte onde a luz aparecera e dei- tiam nos sulcos. Atingiu o fundo da encosta a 25 à
xaram‑na para trás. Só faltavam cerca de duas hora e abrandou quando o motor acusou o peso da
horas. Agora já não havia muito mais caminho a carga que rebocava.
percorrer. A Margaret acabou de descer a colina e Qualquer coisa atingiu um dos lados da placa
principiou a subir uma segunda. A luz surgiu, des- do apito, produzindo um ruído tilintante. Uma seta
lizando, por detrás de uma nuvem, patenteando a zumbiu por cima do comboio iluminando o céu no
longa fita de estrada que se estendia na distância. seu per­curso. Jesse sorriu porque já nada mais lhe
Já estavam quase a deixar a campina e Durnovaria importava. A Margaret trepidava e arfava; já avis-
prestes a surgir no horizonte. Jesse avistou um sul- tava os cavaleiros galopando de ambos os lados da
co de rodas recente que se dirigia para a esquerda composição. Um brilho pálido que bem podia ser
ainda antes que a Lua, encobrindo‑se, voltasse a de uma ponta de um casaco de pele de carneiro.
deixar a estrada envolta em trevas. Um outro impacto fê‑lo inteiriçar‑se à espera de
De la Haye apertou‑lhe o ombro. – Já estás a um tiro de besta apon­tado às costas. Mas nunca
salvo – disse – passámos os filhos da mãe... Já não veio. Era típico de Col de la Haye; roubar‑te‑ia a
terás problemas. Vou‑me embora já, meu velho, mulher, mas não a dignidade, a carga do comboio,
e obrigado pela boleia. E lembra‑te da mocinha. mas não a vida. As setas voltaram a voar, mas não
Entra a matar, faz o que te digo. OK, meu velho em direcção à locomotiva. Jesse, esticando o pes-
Jesse? coço para olhar as arcadas dos vagões, avistou cha-
Jesse voltou‑se para o olhar. – Toma cuidado mas que se propagavam rapida­mente ao longo da
contigo, Col – disse. última cobertura de lona.
O outro deu uma reviravolta até ficar no de- A Margaret continuava a arfar de raiva, subin-
grau. – Vou ‘tar bem, óptimo. – E soltou as mãos do penosamente a encosta. Encontrava‑se a meio
desaparecendo na noite. e o fogo ganhava rapidamente terreno. Em breve
Calculara mal a velocidade da Burrell. Rolou alcança­riam o vagão seguinte da composição. Jesse
para a frente, deu um salto mortal na erva áspera estendeu a mão para baixo e a contra­‑gosto a mão
e sentou‑se, rindo‑se. As luzes da carga da cauda fechou‑se‑lhe sobre o comando de desengate de
da composição esbatiam‑se já na distância. Ouviu emergência. Ergueu‑o e sentiu o atrelado desen-
barulho em seu redor; seis cavaleiros apareceram gatar‑se e as batidas do motor abrandarem assim
recortados no escuro de encontro ao céu. Traziam que a carga ficou solta. O vagão em chamas abran-
à arreata um sétimo cavalo de sela vazia. Col avis- dou, oscilou, e come­çou a escorregar para trás
tou o brilho da coronha de um revólver, a forma afastando‑se do resto do comboio. Os cavaleiros
volumosa de um arco. Bandoleiros. perseguiram‑no a galope, à medida que ia adqui-
Levantou‑se ainda a rir e montou de um salto rindo mais velocidade na des­cida e rodearam‑no,
o cavalo disponível. Na sua frente, o comboio per- procurando abafar as chamas com os capotes. Col
dia‑se nos bancos de nevoeiro. De la Haye ergueu ultrapassou‑os na corrida e saltou da sela para cima
o braço e incitou — Ao último vagão… – Depois do vagão. Um esforço para se equilibrar e um grito
esporeou o cavalo e levou‑o a galope moderado. de triunfo. Depois os bandoleiros rebentaram a rir.
Jesse continuava a controlar as válvulas. A toda Empo­leirado sobre a carga em movimento, gesti-
revista BANG! [ 135 ]
culando com a mão livre, o chefe uri­nava valente- Se gostou de
mente contra as chamas.
A Dama Margaret acabara de subir a encosta, A «Dama Margaret»,
quando o tecto de nuvens foi iluminado por um aventure-se com
súbito clarão branco. A explosão estalou como
uma chico­tada monstruosa; a onda de choque in- Pavana
vestiu contra os vagões e desviou a loco­motiva do
seu curso. Jesse lutou para a voltar a endireitar en-
quanto escutava os ecos que se reflectiam nas coli-
nas distantes. Inclinou‑se para fora da plata­forma
e olhou para trás para lá dos vagões carregados. E Pavana
avistou os fogos que brilhavam à distância, no lo- Keith Roberts
cal onde os dois barris de fina pólvora, acondicio­
nados entre tijolos e sucata de ferro, tinham dizi- E se, em 1588, a bala de um assassino pusesse fim ao
glorioso reinado da rainha Isabel de Inglaterra? A partir
mado a vida dos que o haviam atacado no vale. desse momento toda a história do mundo seria diferente.
A água estava baixa. Moveu os injectores e ve- A Invencível Armada de Filipe II invade as ilhas britânicas.
rificou a válvula de pressão. Os reis católicos tornam-se senhores incondicionais de
— Temos de viver como pudermos – disse, Inglaterra. A Igreja Anglicana tomba por terra. O movi-
mento da Reforma nunca chegará a acontecer. Mais tarde, a
sem escutar as suas próprias pala­vras. – Temos to- Revolução Industrial é estrangu-lada à nascença.
dos de viver como pudermos. Os todo-poderosos Papas ordenam autos-de-fé para
A firma dos Strange não tinha sido erguida reprimir os embriões da tecnologia, cessando assim todo o
com delicadezas; podiam muito bem ficar com o progresso científico. E o frenesim da história transforma-se
numa lenta Pavana que agoniza através dos séculos.
que conseguissem roubar‑lhe!
Algures um semáforo bateu um sinal de Aten- No século XX, a repressão à ciência ainda não desapareceu.
ção‑Emergência, acendendo as tochas que lhe ilu- A energia eléctrica e os motores de explosão continuam a
minavam os braços. A Dama Margaret, arrastando ser segredos heréticos guardados nas caves do Vaticano.
Carros à vela e locomotivas a vapor transportam penosa-
a sua com­posição, fugiu em direcção a Durnovaria, mente as mercadorias atra¬vés de uma Inglaterra feuda-
que se anichava em frente no cotovelo palidamente lizada. Semáforos gigantescos, semelhantes a moinhos de
iluminado do Frome. BANG! vento com vários braços, enviam mensagens secretas atra-
vés da terra. E algures, uma mão cheia de revolucionários,
artistas e homens de ciência, com¬batem pela salvação ou
ruína da espécie humana.

“Nenhuma história alternativa dos últimos trinta


anos se aproxima sequer de Pavana.”
George R. R. Martin

“Brilhante! Uma narrativa tão verídica que se torna real


para o leitor. Sou incapaz de imaginar alguém que, depois de
terminar as últimas páginas deste livro, não continue a relê-
las, porque simplesmente não consegue parar.”
Science Fiction Review

Saida de Emergência / 2007


Nascido em 1935 e falecido em 2000, ISBN: 9789896370145
Keith Roberts, escritor e ilustrador de Preço: 17.75€
grande talento, viveu no Sul de Inglaterra, Na página da editora: 15.97€
no Dorset, país onde decorre grande
parte da narrativa. BANG!
revista BANG! [ 136 ]
A Sombra Deslizante
[ficção] [tradução de Jorge Candeias]

Robert E. Howard
Quase setenta anos depois de escrever (e morrer), aí está ele, ainda e sem-
pre, a inspirar multidões de escritores imitadores, BDs, jogos de computador,
grandes blockbusters de Hollywood. É Robert E. Howard, o lobo solitário que
criou um género. E que nos deu Conan, uma daquelas personagens maiores do
que a vida e nunca totalmente compreendida. Se nunca o leu... aproveite!
I rodeavam, de maxilar projectado e com os olhos
azuis em brasa, selvagens, sob a desgrenhada cabe-

O deserto tremulava com as ondas de calor. Co-


nan, o cimério, olhou aquela dolorosa desola-
ção e passou involuntariamente as costas da pode-
leira negra, como se o deserto fosse um inimigo tan-
gível.
Inclinou‑se e levou o cantil aos lábios da ra-
rosa mão por sobre os lábios enegrecidos. Erguia‑se pariga.
sobre a areia como uma imagem de bronze, aparen- — Bebe até que te diga para parar, Natala —
temente insensível ao sol assassino, embora o seu ordenou.
único vestuário fosse uma tanga de seda, cingida à Ela bebeu em pequenos arquejos ofegantes, e
cintura por um largo cinto de fivela de ouro, do qual ele não a parou. Só quando o cantil ficou vazio é que
pendia um sabre e um punhal de lâmina larga. Nos ela se apercebeu de que a deixara deliberadamente
seus membros bem definidos havia sinais de feridas beber toda a água que tinham de reserva, por pouca
recém curadas. que fosse.
A seus pés jazia uma rapariga, que se agarrava Jorraram lágrimas dos seus olhos.
ao seu joelho com um braço branco e descansava a — Oh, Conan — gemeu, apertando as mãos
cabeça loura no mesmo sítio. A pele branca da rapa- — porque me deixaste bebê‑la toda? Eu não sabia…
riga contrastava com os membros duros e bronzea- agora não há nenhuma para ti!
dos do homem, e a túnica curta de seda que trajava, — Cala‑te — resmungou ele. — Não desperdi-
decotada e sem mangas, apertada à cintura, acentua- ces as forças com choros.
va a sua esbelta figura em vez de a esconder. Endireitando‑se, atirou o cantil para longe.
Conan abanou a cabeça, pestanejando. O bri- — Porque fizeste isso? — sussurrou ela.
lho do sol quase o cegava. Tirou um pequeno cantil Ele não respondeu, e ficou ali, em pé, imóvel,
do cinto e abanou‑o, franzindo o sobrolho perante o com os dedos a fechar‑se lentamente em torno do
ténue sacolejar que veio lá de dentro. punho do sabre. Não olhava para a rapariga; os seus
A rapariga moveu‑se mostrando fadiga, cho- olhos ferozes pareciam sondar as misteriosas névoas
ramingando. azuis da distância.
— Oh, Conan, vamos morrer aqui! Tenho tan- Mesmo que dotado de todo o feroz amor do
ta sede! bárbaro pela vida e do seu instinto de sobrevivência,
O cimério soltou um rosnido sem palavras, Conan, o cimério, sabia que tinha atingido o fim do
olhando de forma truculenta para os ermos que os seu percurso. Não chegara ainda aos limites da re-
revista BANG! [ 137 ]
sistência, mas sabia que mais um dia sob o sol sem Bárbaro entre os bárbaros, eram suas a vitalidade e
misericórdia naqueles ermos sem água o derrubaria. resistência do selvagem, assegurando‑lhe a sobrevi-
Quanto à rapariga, já sofrera o suficiente. Era me- vência onde homens civilizados teriam perecido.
lhor um golpe de espada rápido e sem dor do que a Ele e a rapariga eram, tanto quanto sabia, os
demorada agonia que a esperava. A sua sede estava únicos sobreviventes do exército do Príncipe Almu-
temporariamente saciada e seria uma falsa miseri- ric, aquela horda louca e heterogénea que, seguindo
córdia deixá‑la sofrer até que o delírio e a morte lhe o príncipe rebelde e derrotado da Cótia, varrera as
trouxessem alívio. Lentamente, libertou o sabre da Terras de Shem como uma tempestade de areia de-
bainha. vastadora e ensopara de sangue as zonas fronteiriças
Parou de súbito, retesando‑se. Muito longe no da Estígia. Com uma hoste estígia a morder‑lhe os
deserto, para sul, algo cintilou através das ondas de calcanhares, abrira caminho através do reino negro
calor. de Cush apenas para ser aniquilada na borda do de-
A princípio pensou tratar‑se de um fantasma, serto do sul. Conan, nos seus pensamentos, com-
uma das miragens que tinham escarnecido dele e parava‑a a uma grande torrente, que ia diminuindo
o tinham enlouquecido naquele maldito deserto. gradualmente à medida que corria para sul, até se-
Defendendo do sol os olhos ofuscados, distinguiu car, por fim, nas areias do deserto nu. Os ossos dos
coruchéus, minaretes e muros reluzentes. Ficou a seus membros — mercenários, proscritos, homens
observar, carrancudo, esperando que a imagem se arruinados, foras‑da‑lei — jaziam espalhados desde
desvanecesse e desaparecesse. Natala parou de solu- as terras altas da Cótia até às dunas do deserto.
çar, pôs‑se de joelhos com dificuldade e seguiu‑lhe Conan abrira caminho à força e fugira num ca-
o olhar. melo com a rapariga daquele massacre final, quando
— É uma cidade, Conan? — sussurrou, com os estígios e os cushitas cercaram os restos encurra-
demasiado medo para ter esperança. — Ou não pas- lados do exército. Atrás deles, a terra estava repleta
sa de uma sombra? de inimigos; o único caminho que tinham livre era o
O cimério não respondeu por algum tempo. deserto do sul. E foi nessas ameaçadores profunde-
Fechou e abriu várias vezes os olhos, afastou o olhar, zas que mergulharam.
e depois voltou a pousá‑lo na cidade. Esta permane- A rapariga era uma britúnica que Conan en-
cia onde a vira da primeira vez. contrara no mercado de escravos de uma cidade
— Só o diabo saberá — resmungou. — Mas shemita tomada, e de quem se apropriara. Ela não
vale uma tentativa. tivera qualquer voto na matéria, mas a sua nova po-
Devolveu o sabre à bainha. Inclinando‑se, er- sição era de tal modo superior à de qualquer mulher
gueu Natala nos seus poderosos braços como se fos- hiboriana num serralho shemita que a aceitou com
se uma criança. Ela resistiu fracamente. gratidão. E assim partilhara as aventuras da horda
— Não gastes as tuas forças transportando‑me, condenada de Almuric.
Conan — pediu. — Eu posso andar. Fugiram pelo deserto durante dias, seguidos
— O solo aqui é mais rochoso — respondeu até tão longe por cavaleiros estígios que não se atre-
ele. — Em breve terias as sandálias feitas em tiras — veram a voltar para trás quando aqueles abandona-
deitou um relance pelo maleável calçado verde que ram a perseguição. Em vez disso, avançaram, em
ela trazia. — Além disso, se queremos chegar àquela busca de água, até que o camelo morreu. Seguiram
cidade, teremos de o fazer rapidamente, e eu desta a partir daí a pé. Durante os últimos dias, o seu so-
forma andarei mais depressa. frimento fora intenso. Conan defendera Natala tanto
A hipótese de sobreviver emprestara um vigor quanto conseguira, e a vida dura dos acampamentos
e uma elasticidade frescos aos músculos de aço do tinha‑lhe dado mais vigor e força do que a que uma
cimério. Caminhou em passos largos pelo ermo are- mulher comum possui; mas mesmo assim, não esta-
noso como se tivesse acabado de iniciar a viagem. va longe do colapso.
revista BANG! [ 138 ]
O sol batia ferozmente na juba negra e emara- sua pele. Estava fria. Não havia sinal de vida no cor-
nhada de Conan. Ondas de tontura e náusea chega- po.
vam ao seu cérebro, mas ele cerrou os dentes e avan- — Não tem nem uma ferida — resmungou o
çou sem vacilar. Estava convencido de que a cidade cimério — mas está tão morto como Almuric ficou
era uma realidade e não uma miragem. Mas não fa- com quarenta setas estígias espetadas. Por Crom,
zia ideia do que poderiam lá encontrar. Os habitan- verifiquemos o poço! Se houver água nele, bebere-
tes poderiam ser hostis. Mesmo assim, tratava‑se de mos, com ou sem mortos.
uma hipótese, e isso era tudo o que pedira. Havia água no poço, mas não beberam dela.
O sol estava prestes a pôr‑se quando pararam O nível da água estava uns bons quinze metros
em frente do maciço portão, gratos pela sombra. Co- abaixo do parapeito e nada havia que pudessem
nan pôs Natala no chão e esticou os braços doridos. usar para a trazer para cima. Conan soltou pragas
Acima deles erguiam‑se os muros com cerca de dez negras, enlouquecido por ver a água longe do seu
metros de altura, feitos de uma substância lisa e es- alcance, e virou‑se a fim de procurar algum modo
verdeada que brilhava quase como vidro. Conan exa- de a obter. Então, um grito de Natala chamou‑lhe
minou as ameias, esperando ser desafiado, mas não a atenção.
viu ninguém. Impaciente, gritou e bateu no portão O homem que supostamente estaria morto
com o cabo do sabre, mas só os ecos vazios troçaram corria na sua direcção, os olhos em brasa com uma
dele. Natala aninhou‑se mais junto do seu peito, ate- vida indiscutível, e a curta espada a reluzir‑lhe na
morizada por aquele silêncio. Conan experimentou mão. Conan praguejou, espantado, mas não perdeu
o portão e deu um passo para trás, desembainhando tempo com conjecturas. Recebeu o ruidoso atacante
o sabre, quando ele se abriu silenciosamente para com um formidável golpe de sabre que cortou atra-
dentro. Natala abafou um grito. vés de carne e de osso. A cabeça do homem caiu so-
— Oh, olha, Conan! bre as lajes com um ruído surdo, o corpo cambaleou
Logo após o portão jazia um corpo humano. ebriamente com um arco de sangue a jorrar da jugu-
Conan examinou‑o com os olhos semicerrados, e lar cortada, e de seguida caiu pesadamente ao chão.
depois olhou para mais além. Viu uma grande ex- Conan olhou para baixo, praguejando com su-
tensão aberta, como um pátio, fechada pelas portas avidade.
em arco de casas construídas com o mesmo material — Este homem não está mais morto agora do
esverdeado das paredes exteriores. Esses edifícios que estava há alguns minutos. Até que casa de loucos
eram grandiosos e imponentes, encimados por cú- deambulámos?
pulas e minaretes brilhantes. Não havia sinal de vida. Natala, que cobrira os olhos com as mãos ao
No centro do pátio erguia‑se o parapeito quadrado ver o ataque, espreitou por entre os dedos e estreme-
de um poço, e aquela visão aguilhoou Conan, que ceu de medo.
sentia a boca como uma massa de pó seco. Toman- — Oh, Conan, não nos matarão por causa dis-
do o pulso de Natala, fê‑la atravessar o portão, e fe- to as pessoas da cidade?
chou‑o atrás deles. — Bem — resmungou ele — esta criatura
— Ele está morto? — sussurrou ela, indicando ter‑nos‑ia morto se não lhe tivesse podado a cabeça.
timidamente o homem que jazia, flácido, em frente Lançou um relance às arcadas que se abriam,
do portão. O corpo pertencia a um indivíduo alto e vazias, nas paredes verdes acima deles. Não viu ne-
musculoso, aparentemente no auge da sua força; a nhuma sugestão de movimento, não ouviu nenhum
pele era amarela, os olhos ligeiramente oblíquos; fora som.
isso, o homem pouco diferia do tipo hibório. Trajava — Não me parece que alguém nos tenha visto
sandálias atadas a meio da perna e uma túnica de — murmurou. — Vou esconder as provas…
seda púrpura, e pendia do seu cinturão uma espada Ergueu com uma mão a carcaça pelo cinturão,
curta numa bainha de fio de ouro. Conan verificou a e agarrando na cabeça pelos longos cabelos com a
revista BANG! [ 139 ]
outra, meio carregou e meio arrastou os horríveis rios aposentos, duplicados do primeiro. Não viram
restos para o poço. ninguém, mas o cimério grunhiu com suspeita.
— Visto que não podemos beber esta água — Alguém esteve aqui não há muito tempo.
— disse, rangendo os dentes vingativamente — vou Este canapé ainda está quente do contacto com um
assegurar‑me de que ninguém mais se divirta a be- corpo humano. Aquela almofada de seda tem a im-
bê‑la. Para o diabo com um poço destes! — Ergueu pressão das ancas de alguém. E há um leve odor a
o corpo sobre o parapeito e deixou‑o cair, atirando a perfume no ar.
cabeça atrás dele. Ouviu‑se um esparrinhar abafado Uma estranha atmosfera irreal pairava sobre
muito abaixo. tudo. Atravessar aquele palácio sombrio e silencioso
— Há sangue nas pedras — segredou Natala. era como um sonho de ópio. Alguns dos aposentos
— E haverá mais, a menos que eu encontre não tinham iluminação e, a esses, evitavam‑nos. Ou-
água em breve — grunhiu o cimério, com a pequena tros estavam banhados numa luz suave e estranha
reserva de paciência quase esgotada. A rapariga qua- que parecia emanar de jóias incrustadas nas paredes
se olvidara a sede e a fome com o medo, mas Conan em desenhos fantásticos. De súbito, quando entra-
não. ram num desses aposentos iluminados, Natala sol-
— Entremos por uma daquelas portas — dis- tou um grito e agarrou‑se ao braço ao companheiro.
se ele. — Decerto encontraremos pessoas ao fim de Com uma praga, ele rodopiou, olhando em busca de
algum tempo. um inimigo, confuso por não ver nenhum.
— Oh, Conan! — lamentou‑se Natala, acon- — Que se passa? — rosnou. — Se voltas a agar-
chegando‑se tanto ao bárbaro como foi capaz. — Te- rar no meu braço da espada, esfolo‑te. Queres ver‑me
nho medo! Esta é uma cidade de fantasmas e de de garganta cortada? Estavas a gritar porquê?
mortos! Voltemos ao deserto! Será melhor morrer aí — Olha para ali — disse ela com voz insegura,
do que enfrentar estes terrores! apontando.
— Iremos para o deserto quando nos atirarem Conan grunhiu. Sobre uma mesa de ébano
dos muros — rosnou ele. — Há água algures nesta polido encontravam‑se vasilhas douradas, aparente-
cidade, e vou encontrá‑la, nem que tenha de matar mente contendo comida e bebida. Não estava nin-
todos os seus homens. guém na sala.
— Mas e se eles voltarem à vida? — sussurrou — Bem, seja quem for aquele para quem este
ela. festim foi preparado — rosnou — esta noite terá de
— Então continuarei a matá‑los até ficarem procurar comida noutro sítio.
mortos! — explodiu ele. — Vem! Aquela porta é tão — Atrever‑nos‑emos a comê‑lo, Conan?
boa como qualquer outra! Fica atrás de mim, mas — aventurou‑se a rapariga a dizer em voz nervosa.
não fujas a menos que te diga para o fazeres. — As pessoas podem chegar, e…
A rapariga murmurou um ténue assentimento — Lir an mannanan mac lira — praguejou ele,
e seguiu‑o tão de perto que lhe pisava os calcanha- agarrando‑a pela parte de trás do pescoço e atiran-
res, para irritação do bárbaro. Caíra o crepúsculo, do‑a sem grande cerimónia para uma cadeira dou-
enchendo a estranha cidade de sombras purpúreas. rada que estava numa das pontas da mesa. — Nós
Entraram pela porta aberta e acharam‑se num apo- passamos fome e tu pões objecções! Come!
sento amplo, cujas paredes estavam cobertas com ta- Escolheu para si a cadeira da outra ponta e,
peçarias de veludo, trabalhadas em desenhos curio- agarrando numa taça de jade, esvaziou‑a de um tra-
sos. O chão, as paredes e o tecto eram feitos da pedra go. Continha um licor carmesim semelhante a vinho,
vidrada verde, e as paredes estavam decoradas com com um paladar peculiar, que não conhecia, mas era
frisos dourados. Almofadas de peles e cetim estavam como néctar para a sua garganta ressequida. Com a
espalhadas pelo chão. Havia várias portas que leva- sede aliviada, atacou com raro apetite a comida que
vam a outras salas. Avançaram, e atravessaram vá- estava à sua frente. Também ela lhe era estranha:
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frutos exóticos e carnes desconhecidas. As vasilhas panheiro suspeitava de perigo. A cabeça projectada
eram de requintado fabrico, e também havia facas e para diante do bárbaro estava afundada entre os seus
garfos dourados. Conan ignorou os talheres, segu- gigantescos ombros, e ele deslizava em frente meio
rando as peças de carne com os dedos e rasgando‑as acocorado, como um tigre a caçar. Não fazia mais
com os seus fortes dentes. As maneiras do cimério ruído do que um tigre teria feito.
à mesa eram sempre bastante lupinas. A sua civili- Na ombreira parou, com Natala a espreitar,
zada companheira comia com mais elegância, mas temerosa, atrás. Não havia luz naquele quarto, mas
de modo igualmente voraz. Ocorreu a Conan que a estava parcialmente iluminado pelo brilho que vi-
comida poderia estar envenenada, mas esse pensa- nha das suas costas, o qual atravessava daquele apo-
mento não lhe diminuiu o apetite; preferia morrer sento e ia oferecer alguma luz a um terceiro. E, nesse
envenenado do que à fome. quarto, um homem jazia sobre um estrado elevado.
Com a fome satisfeita, recostou‑se com um Estava banhado pela luz suave, e viram que era um
profundo suspiro de alívio. Que havia pessoas na- duplicado do homem que Conan matara em fren-
quela cidade silenciosa era comprovado pela comida te do portão exterior, salvo que os seus trajos eram
fresca, e era possível que cada canto escuro escon- mais ricos e ornamentados com jóias que cintilavam
desse um inimigo à espreita. Mas não sentia qual- àquela luz misteriosa. Estaria morto ou apenas a
quer apreensão quanto a isso, dado ter grande con- dormir? De novo soou aquele som ténue e sinistro,
fiança nas suas qualidades de guerreiro. Começou como se alguém tivesse afastado uma cortina. Conan
a sentir‑se sonolento, e pesou a ideia de se estender recuou, arrastando consigo Natala. Pôs a mão sobre
num canapé próximo e dormir um pouco. a boca dela mesmo a tempo de parar o seu grito.
Mas Natala não. Já não tinha fome nem sede, De onde estavam agora já não podiam ver o
mas não sentia nenhum desejo de dormir. Os seus estrado, mas viam a sombra que ele lançava sobre a
belos olhos estavam na verdade muito abertos en- parede oposta. E, naquele momento, outra sombra
quanto ela lançava relances tímidos às portas, se movia pela parede: um enorme borrão negro e
fronteiras do desconhecido. O silêncio e mistério sem forma. Conan sentiu o cabelo formigar de for-
daquele estranho lugar afligiam‑na. O aposento pa- ma curiosa enquanto observava. Por mais distorcida
recia maior e a mesa mais longa do que a princípio que pudesse estar, o cimério sentiu que nunca vira
julgara, e apercebeu‑se de que estava mais longe do homem ou animal que fosse capaz de projectar uma
seu sombrio protector do que desejava estar. Er- sombra assim. Estava consumido de curiosidade,
guendo‑se com rapidez, rodeou a mesa e sentou‑se mas um qualquer instinto deixava‑o gelado e imó-
no seu joelho, olhando nervosamente para as por- vel. Ouviu os arquejos palpitantes de Natala enquan-
tas arqueadas. Algumas estavam iluminadas, outras to a rapariga observava de olhos dilatados. Nenhum
não, e eram para as que não estavam que ela olhava outro som perturbava a tensa quietude. A grande
durante mais tempo. sombra engoliu a do estrado. Por um longo instante
— Já comemos, bebemos e descansámos — só o seu negro volume foi arremessado contra a pa-
insistiu. — Abandonemos este lugar, Conan. É ma- rede lisa. Então, lentamente, recuou e de novo se viu
ligno. Posso senti‑lo. o estrado recortado, escuro, contra a parede. Mas o
— Bem, até agora não sofremos nenhum dano homem adormecido já não estava sobre ele.
— começou ele, quando um roçagar suave mas si- Um gorgolejo histérico subiu à garganta de
nistro lhe despertou a atenção. Tirando a rapari- Natala e Conan abanou‑a num aviso. Estava cons-
ga do joelho, ergueu‑se com a facilidade rápida de ciente do frio glacial nas suas veias. Não temia ini-
uma pantera, puxando do sabre, virando‑se para a migos humanos; qualquer coisa compreensível, por
porta de onde o som parecera vir. Não se repetiu, e mais terrível que fosse, não provocava tremores no
ele avançou silenciosamente, seguido por uma Na- seu peito largo. Mas aquilo estava para lá do que co-
tala com o coração na boca. Ela sabia que o com- nhecia.
revista BANG! [ 141 ]
Depois de algum tempo, porém, a curiosi- O homem não respondeu de imediato. O seu
dade sobrepôs‑se ao constrangimento, e ele voltou olhar sonhador e sensual pousou em Natala, e ele
a encaminhar‑se para o aposento não iluminado, disse, em voz arrastada:
pronto para tudo. Olhando para o outro quarto, viu — De todas as minhas ricas visões, esta é a
que estava vazio. O estrado estava onde o vira da pri- mais estranha! Oh, rapariga das madeixas douradas,
meira vez, salvo que nenhum homem ornamentado de que distante terra de sonho vens tu? De Andarra,
de jóias nele jazia. Via‑se apenas, sobre a sua cober- ou Totra, ou da Cute do cinturão de estrelas?
tura de seda, uma única gota de sangue, que brilhava — Que loucura é esta? — rosnou o cimério em
como uma grande pedra preciosa de cor carmesim. tom ríspido, não lhe agradando as palavras nem as
Natala viu‑a e soltou um grito baixo e engasgado, maneiras do homem.
pelo qual o bárbaro não a puniu. Sentia de novo a O outro não lhe prestou atenção.
mão gelada do medo. Naquele estrado jazera um — Já sonhei com belezas mais esplendorosas
homem; algo se arrastara para o aposento e o leva- — murmurou; — ágeis mulheres com o cabelo som-
ra dali. Conan não fazia nenhuma ideia do que esse brio como a noite, e olhos escuros de um mistério
algo seria, mas uma aura de horror contranatura pai- inexplorado. Mas a tua pele é branca como leite,
rava sobre aqueles quartos fracamente iluminados. os teus olhos claros como a alvorada, e há em ti
Estava pronto a partir. Tomando a mão de uma frescura e delicadeza que são sedutoras como
Natala, virou‑se, e então hesitou. Vindo de algu- o mel. Vem até ao meu canapé, pequena rapariga
res, de um dos aposentos que tinham atravessado, de sonho!
chegou‑lhe o som de um passo. Um pé humano, nu O homem avançou e estendeu a mão para ela,
ou calçado com algo suave, produzira aquele som e mas Conan afastou‑a com uma força que poderia
Conan, com a prudência de um lobo, virou rapida- ter partido o braço. O homem recuou, agarrado ao
mente para um dos lados. Acreditava ser capaz de membro entorpecido, os olhos a turvar‑se.
regressar ao pátio exterior e ao mesmo tempo evitar — Que rebelião de fantasmas é esta? — mur-
o quarto de onde o som parecera vir. murou. — Bárbaro, ordeno‑te: Fora! Extingue‑te!
Mas ainda não tinham atravessado o primeiro Dissipa‑te! Extingue‑te! Desaparece!
aposento da sua nova rota quando o roçagar de uma — Vou é fazer-te desaparecer a cabeça de cima
colgadura de seda os fez parar de súbito. Em frente dos ombros! — rosnou o enfurecido cimério, com
de uma alcova coberta por cortinas estava um ho- o sabre a brilhar na mão. — É esta a tua maneira de
mem a olhá‑los com intensidade. receber estranhos? Por Crom, vou ensopar estas col-
Era exactamente como os outros que tinham gaduras de sangue!
encontrado: alto, bem constituído, trajando de púr- O devaneio tinha desaparecido dos olhos do
pura e com um cinto cravejado de jóias. Não havia outro, substituído por um ar desnorteado.
nem surpresa nem hostilidade nos seus olhos de âm- — Thog! — disse de súbito. — És real! De
bar. Eram sonhadores como os de um comedor de onde vens? Quem és? Que fazes em Xutal?
lótus. Não puxou da espada curta que trazia à anca. — Viemos do deserto — rosnou Conan. —
Após um momento tenso, falou, num tom distante Entrámos na cidade ao pôr‑do‑sol, famintos. En-
e desprendido, e numa língua que os ouvintes não contrámos um banquete preparado para alguém,
compreendiam. e comemo‑lo. Não tenho dinheiro para pagá‑lo.
Conan experimentou responder em estígio, e No meu país, a nenhum homem com fome é ne-
o estranho retorquiu na mesma língua: gada comida, mas vocês, os civilizados, têm de
— Quem és tu? ter a vossa recompensa… se fores como todos os
— Sou Conan, um cimério — respondeu o outros que conheci. Não fizemos nenhum mal e
bárbaro. — Esta é Natala, da Britúnia. Que cidade estávamos já de saída. Por Crom, não gosto deste
é esta? lugar, onde mortos se erguem e homens que dor-
revista BANG! [ 142 ]
mem desaparecem nos ventres de sombras! tes de voltarem a parar abruptamente. Alguém ou
O homem sobressaltou‑se violentamente algo se aproximava. Viraram‑se para a porta de onde
com o último comentário, a face amarela a tor- vinham os sons, esperando por algo que não sabiam
nar‑se cor de cinza. o que seria. As narinas de Conan alargaram‑se e os
— Que dizes? Sombras? Nos ventres de som- seus olhos estreitaram‑se. Detectou o vago odor a
bras? perfume que já tinha notado naquela noite. Uma
— Bem — respondeu cautelosamente o ci- figura destacou‑se da soleira da porta. Conan pra-
mério — seja o que for que tira um homem de um guejou em surdina. Os lábios vermelhos de Natala
estrado e deixa só uma gota de sangue. escancararam‑se.
— Viste? Viste? — O homem tremia como Era uma mulher que ali estava, olhando‑os, es-
uma folha, com a voz quebrada numa nota alta. pantada. Era alta, ágil, com as formas de uma deusa;
— Só um homem a dormir num estrado e trajava uma faixa estreita incrustada de jóias. Uma
uma sombra que o engoliu — respondeu Conan. massa lustrosa de cabelo negro como a noite real-
O efeito daquelas palavras sobre o outro foi çava a brancura do seu corpo de marfim. Os olhos
horripilante. Com um terrível grito, o homem vi- negros, ensombrados por longas pestanas de pe-
rou‑se e fugiu do aposento. Na sua pressa cega, es- numbra, eram profundos e cheios de um mistério
barrou contra a soleira da porta, endireitou‑se e fu- sensual. Conan prendeu a respiração perante tama-
giu através dos aposentos adjacentes, ainda gritando nha beleza, e Natala olhou‑a com olhos dilatados. O
a plenos pulmões. Espantado, Conan ficou a olhar cimério nunca vira uma mulher assim; os traços do
para ele, e a rapariga tremia agarrada ao braço do gi- seu rosto eram estígios, mas não tinha a pele escu-
gante. Já não conseguiam ver a figura que fugia, mas ra como as mulheres estígias que conhecera: os seus
ainda ouviam os seus medonhos gritos, esmorecen- membros eram como alabastro.
do com a distância, e ecoando como se se repercu- Mas quando falou, numa voz profunda, rica e
tissem em tectos abobadados. De súbito, soou um musical, fê‑lo em estígio.
grito mais alto que os outros, que foi subitamente — Quem és tu? Que fazes em Xutal? Quem é
interrompido, seguindo‑se um silêncio vazio. essa rapariga?
— Crom! — Quem és tu? — retorquiu rudemente Co-
Conan limpou a transpiração da testa com nan, que era rápido a cansar‑se de responder a per-
uma mão que não estava inteiramente firme. guntas.
— Esta é, de certeza, uma cidade de loucos! — Sou Thalis, a estígia — respondeu a mulher.
Saiamos daqui antes que encontremos mais treslou- — És louco por vires até aqui?
cados! — Tenho estado a pensar que devo ser — res-
— É tudo um pesadelo! — lamuriou Natala. mungou ele. — Por Crom, se sou são, estou deslo-
— Estamos mortos e perdidos! Morremos no deser- cado aqui, porque todas estas pessoas são maníacas.
to e estamos no inferno! Somos espíritos sem cor- Entramos na cidade, atordoados, vindos do deser-
po… au! — O grito foi provocado por uma resso- to, morrendo de sede e de fome, e encontramos um
nante palmada da mão aberta de Conan. homem morto que tenta apunhalar‑me pelas costas.
— Quando uma pancadinha te faz gritar as- Entramos num palácio rico e luxuriante mas aparen-
sim, não és espírito nenhum — comentou, com o temente vazio. Encontramos uma mesa posta mas
sombrio sentido de humor que se manifestava fre- sem ninguém a comer. Depois vemos uma sombra
quentemente em alturas inoportunas. — Estamos a devorar um homem adormecido… — observou‑a
vivos, embora possamos deixar de estar se nos de- com atenção e viu‑a mudar ligeiramente de cor. —
morarmos neste edifício assombrado por demónios. Então?
Vem! — Então o quê? — perguntou ela, aparente-
Atravessaram apenas um único aposento an- mente recuperando o controlo.
revista BANG! [ 143 ]
— Estava à espera que desatasses a fugir pelas tal encontraram nas suas viagens. Vieram do Leste
salas uivando como uma selvagem — respondeu ele. há tanto tempo que nem mesmo os seus descenden-
— Foi o que fez o homem a quem contei da som- tes recordam a idade.
bra. — Decerto não há muitos; estes palácios pare-
Ela encolheu os magros ombros de marfim. cem vazios.
— Então foram esses os gritos que ouvi. Bem, — Não; e no entanto, há mais do que poderás
a cada homem o seu destino, e é uma tolice guinchar pensar. A cidade é, na realidade, um único grande
como uma ratazana na ratoeira. Quando Thog me palácio, com todos os edifícios dentro das muralhas
quiser, virá buscar‑me. intimamente ligados aos outros. Podes caminhar
— Quem é Thog? — quis saber Conan, des- por estes aposentos durante horas sem ver ninguém.
confiado. Noutras alturas, encontrarias centenas de habitan-
Ela deitou‑lhe um longo olhar avaliador que tes.
fez subir alguma cor ao rosto de Natala e a fez mor- — Como assim? — inquiriu Conan, inquieto.
der o estreito lábio vermelho. Aquilo soava demasiado a feitiçaria para o seu con-
— Senta‑te naquele divã e eu conto‑te — disse forto.
ela. — Mas primeiro digam‑me os vossos nomes. — Durante a maior parte do tempo essas pes-
— Sou Conan, um cimério, e esta é Natala, fi- soas estão a dormir. A sua vida de sonho é tão im-
lha da Britúnia — respondeu ele. — Somos refugia- portante (e para eles tão real) como a sua vida acor-
dos de um exército destruído nas fronteiras de Cush. dada. Ouviste falar da lótus negra? Cresce em alguns
Mas não desejo sentar‑me onde sombras negras fossos na cidade. Foram‑na cultivando ao longo dos
possam esgueirar‑se nas minhas costas. tempos até que o seu sumo passou a induzir sonhos
Com uma gargalhada ligeira e musical, ela em vez da morte, sonhos magníficos e fantásticos.
sentou‑se, esticando os flexíveis membros com um Passam a maior parte do tempo nesses sonhos. As
abandono estudado. suas vidas são vagas, erráticas e sem planos. Sonham,
— Descontrai‑te — aconselhou. — Se Thog te acordam, bebem, amam, comem e sonham de novo.
quiser, levar‑te‑á, estejas onde estiveres. Aquele ho- Raramente terminam alguma das tarefas que ini-
mem que mencionaste, o que gritou e fugiu… não ciam e, em vez disso, deixam‑na a meio e voltam a
o ouviste soltar um grande grito e depois cair no si- afundar‑se na modorra da lótus negra. Essa refeição
lêncio? No seu frenesim, deve ter corrido na direc- que encontraste? Sem dúvida que um deles acordou,
ção daquilo de que tentava escapar. Ninguém pode sentiu a urgência da fome, preparou a refeição para
evitar o destino. si, e depois esqueceu‑a e afastou‑se para voltar a so-
Conan grunhiu sem se comprometer, mas nhar.
sentou‑se na ponta do canapé, com o sabre sobre os — Onde arranjam os alimentos? — interrom-
joelhos e os olhos a vaguear pelo aposento, desconfia- peu Conan. — Não vi campos nem vinhedos fora da
dos. Natala aninhou‑se contra ele, agarrando‑se‑lhe cidade. Têm pomares e currais dentro dos muros?
com ciúme, sentada sobre as pernas. Olhava a es- Ela abanou a cabeça.
tranha com suspeita e ressentimento. Sentia‑se pe- — Fabricam a sua própria comida a partir dos
quena, suja de pó e insignificante perante a beleza elementos primevos. São magníficos cientistas quan-
encantadora da outra, e não se iludia com o olhar do não estão drogados com a sua flor dos sonhos. Os
daqueles olhos escuros, que devoravam todos os de- seus antepassados eram gigantes mentais que cons-
talhes do corpo do gigante de bronze. truíram esta maravilhosa cidade no deserto e, embo-
— Que lugar é este e que gente é esta? — quis ra a raça se tenha tornado escrava das suas curiosas
saber Conan. paixões, algum do seu soberbo conhecimento ainda
— A cidade chama‑se Xutal; é muito antiga. persiste. Estas luzes não te despertaram curiosidade?
Foi construída num oásis, que os fundadores de Xu- São jóias fundidas com rádio. Tens de esfregá‑las com
revista BANG! [ 144 ]
o polegar para as fazer brilhar, e esfregá‑las de novo, cretos e pelos aposentos fracamente iluminados, em
na direcção oposta, para as extinguir. Este é apenas busca de presas. Então, ninguém está a salvo.
um exemplo da sua ciência. Mas houve muito que já Natala gemeu de terror e agarrou‑se ao pes-
esqueceram. Sentem pouco interesse pela vida acor- coço poderoso de Conan como que a resistir a um
dada, e escolhem permanecer a maior parte da vida esforço para a arrancar de junto do seu protector.
num sono semelhante à morte. — Crom! — explodiu ele, horrorizado. — Que-
— Então o homem morto ao portão… — co- res dizer‑me que estas pessoas jazem calmamente a
meçou Conan. dormir com este demónio a rastejar entre elas?
— Estava sem dúvida a dormir. Os que dor- — É só ocasionalmente que ele fica com fome
mem pelo lótus são como mortos. A animação é — repetiu ela. — Um deus deve ter os seus sacrifícios.
aparentemente suspensa. É impossível detectar o Quando eu era criança, na Estígia, as pessoas viviam
mais ligeiro sinal de vida. O espírito deixa o corpo e sob a sombra dos sacerdotes. Ninguém sabia nunca
deambula à vontade por outros e exóticos mundos. quando seria capturada e arrastada para o altar. Qual
O homem ao portão é um bom exemplo da irres- é a diferença entre serem os sacerdotes a dar uma
ponsabilidade das vidas desta gente. Estava de guar- vítima aos deuses ou ser o deus a vir buscá‑la?
da na entrada, onde o costume determina que deve — Esse não é o costume do meu povo — gru-
ser mantida uma guarda embora nenhum inimigo nhiu Conan — nem do de Natala. Os hiborianos
tenha alguma vez avançado pelo deserto. Noutras não sacrificam seres humanos ao seu deus, Mitra,
partes da cidade poderás encontrar outros guardas, e quanto ao meu povo… por Crom, gostaria de ver
em geral a dormir tão profundamente como o ho- um sacerdote a tentar arrastar um cimério até ao al-
mem do portão. tar! Derramar‑se‑ia sangue, mas não segundo as in-
Conan reflectiu sobre aquilo por algum tem- tenções do sacerdote.
po. — És um bárbaro — riu Thalis, mas com um
— Onde estão agora as pessoas? clarão nos olhos luminosos. — Thog é muito antigo
— Espalhadas por várias partes da cidade; e muito terrível.
deitadas em canapés, em divãs de seda, em alcovas — Estas pessoas devem ser tolas ou heróicas
cheias de almofadas, em estrados cobertos por peles; — grunhiu Conan — para se deitarem e se porem a
todas envolvidas pelo véu brilhante dos sonhos. sonhar os seus sonhos idiotas, sabendo que podem
Conan sentiu a pele formigar entre os maciços acordar na sua barriga.
ombros. Não o acalmava pensar em centenas de pes- Ela riu.
soas que jaziam, frias e imóveis, nos palácios cheios — Não conhecem nada mais. Durante incon-
de tapeçarias, com os olhos vidrados a olhar para táveis gerações, Thog predou‑os. Foi um dos factores
cima sem ver. Lembrou‑se de algo mais. que reduziu o seu número de milhares até centenas.
— Que coisa era aquela que se esgueirou pelos Daqui a mais algumas gerações estarão extintos, e
quartos e levou o homem do estrado? Thog terá de se aventurar no mundo em busca de
Um estremecimento contorceu os seus mem- novas presas, ou retirar‑se para o submundo, de
bros de marfim. onde veio há tanto tempo.
— Isso era Thog, o Antigo, o deus de Xutal, que “Eles compreendem que estão condenados,
vive na cúpula submersa no centro da cidade. Sem- mas são fatalistas, incapazes de resistência ou fuga.
pre viveu em Xutal. Ninguém sabe se chegou com Ninguém da geração actual esteve para lá da vista
os antigos fundadores ou se já cá estava quando eles destes muros. Há um oásis a um dia de viagem a pé,
construíram a cidade. Mas o povo de Xutal adora‑o. para sul; vi‑o nos mapas antigos que os seus antepas-
Durante a maior parte do tempo, dorme por baixo sados desenharam em pergaminho. Mas ninguém
da cidade, mas por vezes, a intervalos irregulares, de Xutal o visitou nas últimas três gerações, e muito
fica com fome, e então desliza pelos corredores se- menos fez alguma tentativa de explorar as pastagens
revista BANG! [ 145 ]
verdes que ficam a um dia de marcha para lá des- sabia falar a sua língua, aprenderam a falar a minha.
se oásis. São uma raça que desaparece rapidamente, São muito rápidos e intelectualmente capazes; apren-
afogada em sonhos de lótus, estimulando as horas deram a minha língua muito antes de eu aprender a
que passam acordados através do vinho dourado deles. Mas estavam mais interessados em mim do
que sara as feridas, prolonga a vida e revigora o mais que na minha língua. Fui, e sou, a única coisa pela
saciado dos pervertidos.” qual um dos seus homens porá de parte durante al-
“E no entanto, agarram‑se à vida e temem a gum tempo os seus sonhos de lótus.”
deidade que adoram. Viste como um deles enlou- A mulher soltou uma gargalhada malévola,
queceu ao saber que Thog vagueava pelos palácios. lançando a Conan um audacioso olhar cheio de sig-
Vi a cidade inteira gritar e arrancar os cabelos, e cor- nificado.
rer em frenesim para fora dos portões, agachando‑se — Claro que as mulheres têm ciúmes de mim
fora dos muros e tirar à sorte para ver quem seria — prosseguiu tranquilamente. — São razoavelmen-
amarrado e atirado de volta através das portadas ar- te bonitas ao jeito da sua pele amarela, mas são so-
queadas a fim de satisfazer a luxúria e fome de Thog. nhadoras e incertas como os homens, e estes apre-
Se não estivessem agora todos a dormir, a notícia da ciam‑me não só pela minha beleza, mas também
sua chegada fá‑los‑ia atravessar de novo os portões pela minha realidade. Não sou um sonho! Embora
exteriores num frenesim e aos gritos.” tenha sonhado os sonhos do lótus, sou uma mulher
— Oh, Conan! — pediu Natala histericamen- normal, com emoções e desejos terrestres. Com es-
te. — Fujamos! tes, aquelas mulheres amarelas de olhos de lua não se
— A seu tempo — murmurou Conan, com os podem comparar.
olhos a arder sobre os membros de marfim de Tha- “É por isso que será melhor para ti cortar a
lis. — E que fazes tu aqui, uma mulher estígia? garganta dessa rapariga com o teu sabre antes que
— Vim para cá quando era uma rapariguinha os homens de Xutal acordem e a capturem. Testarão
— respondeu ela, recostando‑se voluptuosamente a sua habilidade em coisas que ela nunca sonhou! É
para trás, sobre o divã de veludo, e entrelaçando os demasiado débil para suportar aquilo em que eu te-
seus dedos esguios atrás da cabeça morena. — Sou nho prosperado. Sou uma filha de Luxur, e antes de
a filha de um rei e não uma mulher vulgar, como completar quinze verões fui levada aos templos de
podes ver pela minha pele, tão branca como aí a da Derketo, a deusa sombria, e fui iniciada nos misté-
tua lourinha. Fui raptada por um príncipe rebelde, o rios. E não é que os meus primeiros anos em Xutal
qual, com um exército de arqueiros Cushitas, avan- tenham sido anos de um prazer inalterado! As pes-
çou para sul através dos territórios sem vida, em soas de Xutal esqueceram mais coisas do que aquelas
busca de uma terra a que pudesse chamar sua. Ele que as sacerdotisas de Derketo alguma vez sonha-
e os seus guerreiros morreram no deserto, mas um ram. Vivem apenas para os prazeres sensuais. So-
deles, antes de morrer, pôs‑me sobre um camelo e nhando ou acordados, as suas vidas estão cheias de
caminhou a seu lado antes de cair e morrer no ca- êxtases exóticos que estão para lá do conhecimento
minho. O animal prosseguiu viagem, e eu, por fim, dos homens comuns.
entrei em delírio devido à sede e à fome, e acordei — Malditos degenerados! — rosnou Conan.
nesta cidade. Disseram‑me que fui vista dos muros, — Tudo depende do ponto de vista — sorriu
cedo de madrugada, jazendo sem sentidos ao lado Thalis languidamente.
de um camelo morto. Foram buscar‑me e ressuscita- — Bem — decidiu ele — estamos meramente
ram‑me com o seu magnífico vinho dourado. E só a a perder tempo. Vejo que este não é lugar para sim-
visão de uma mulher os teria levado a aventurar‑se ples mortais. Estaremos longe antes que os teus idio-
até tão longe dos seus muros. tas acordem ou Thog venha devorar‑nos. Julgo que
“Como era natural, estavam muito interessa- o deserto será mais clemente.
dos em mim, especialmente os homens. Como não Natala, cujo sangue coagulara nas veias ao ou-
revista BANG! [ 146 ]
vir as palavras de Thalis, concordou com fervor. Fa- homem real: estou farta destes patetas que suspiram,
lava estígio de forma imperfeita, mas compreendia sonham e acordam e voltam a sonhar. Tenho fome
a língua suficientemente bem. Conan pôs‑se de pé, da paixão dura e limpa de um homem da terra. O
puxando‑a para o seu lado. fogo nos teus olhos vibrantes faz o meu coração ba-
— Se nos mostrares o caminho mais próximo ter no peito, e o toque do teu braço com tendões de
para fora desta cidade — resmungou — vamo‑nos ferro enlouquece‑me. Fica aqui! Farei de ti rei de
embora. — Mas o seu olhar demorou‑se nos mem- Xutal! Mostrar‑te‑ei todos os antigos mistérios, e os
bros lisos e nos seios de marfim da estígia. caminhos exóticos para o prazer! Eu…
Ela não deixou de reparar nesse olhar, e sorriu Ela atirara ambos os braços em torno do seu
enigmaticamente enquanto se erguia com o flexível pescoço e estava de bicos de pés, com o corpo sensu-
à‑vontade de uma grande gata preguiçosa. al a tremer de encontro ao dele. Sobre o seu ombro
— Sigam‑me — ordenou e indicou o cami- de marfim, o bárbaro viu Natala a atirar para trás o
nho, consciente dos olhos de Conan fixos na sua seu cabelo molhado e desgrenhado, imobilizar‑se de
figura elástica e no seu porte perfeitamente apruma- repente, com os belos olhos a dilatar‑se e os lábios
do. Não seguiu o caminho que eles tinham usado ao vermelhos a abrir‑se num O chocado. Com um gru-
entrar, mas antes que as suspeitas de Conan tivessem nhido embaraçado, Conan soltou‑se dos braços de
tempo de se levantar, parou num aposento revestido Thalis e pô‑la de lado com um braço maciço. A estí-
de marfim e apontou para uma minúscula fonte que gia atirou um relance rápido sobre a rapariga britúni-
gorgolejava no centro do chão de marfim. ca e sorriu enigmaticamente, parecendo acenar com
— Não queres lavar a cara, criança? — per- a sua magnífica cabeça em misteriosas reflexões.
guntou a Natala. — Está manchada de poeira, e há Natala ergueu‑se e subiu a túnica com gestos
pó no teu cabelo. sacudidos, os olhos a arder, os lábios num trejeito
Natala corou, ressentida com a sugestão de zangado. Conan soltou uma praga em surdina. Não
malícia presente no tom levemente trocista da estí- era de natureza mais monógama do que o merce-
gia, mas obedeceu, perguntando a si própria, infeliz, nário típico, mas havia nele uma decência inata que
quanto dano teria o sol e o vento do deserto causa- constituía a melhor protecção de Natala.
do à sua tez — uma característica pela qual as mu- Thalis não insistiu. Acenando‑lhes com a mão
lheres da sua raça eram justamente dignas de nota. esguia para que a seguissem, virou‑se e atravessou o
Ajoelhou‑se junto à fonte, atirou o cabelo para trás, aposento.
despiu a túnica até ao peito e começou a lavar não só E aí, perto da parede coberta de tapeçarias, pa-
o rosto, mas também os braços e os ombros. rou de súbito. Conan, que a observava, perguntou a
— Por Crom! — resmungou Conan. — Uma si próprio se teria ouvido os sons que poderiam ser
mulher parará para prestar atenção à beleza mesmo produzidos por um monstro sem nome que se es-
que o próprio diabo a persiga de perto. Despacha‑te, gueirava por aposentos de meia noite, e a sua pele
rapariga; estarás de novo poeirenta antes de perder- formigou com a ideia.
mos de vista esta cidade. E, Thalis, ficarei agradecido — Que ouves? — perguntou.
se nos forneceres um pouco de comida e bebida. — Vigia aquela porta — respondeu ela, apon-
Em resposta, Thalis encostou‑se‑lhe, passan- tando.
do um braço branco em torno dos seus ombros de Ele virou‑se sobre os calcanhares, de espada
bronze. O seu macio flanco nu fez pressão contra a pronta. Só o arco vazio da entrada lhe devolveu o
coxa do bárbaro e o perfume do seu cabelo de espu- olhar. Então soou atrás de si um rápido e ténue ruí-
ma subiu‑lhe às narinas. do de briga, um arquejo meio sufocado. Rodopiou.
— Porquê arriscar o deserto? — segredou ela Thalis e Natala tinham desaparecido. A tapeçaria as-
com urgência. — Fica aqui! Ensinar‑te‑ei os costu- sentava de novo no seu lugar, como se tivesse sido
mes de Xutal. Proteger‑te‑ei. Amar‑te‑ei! Tu és um afastada da parede. Enquanto ele abria a boca, con-
revista BANG! [ 147 ]
fuso, atrás daquela parede atapetada soou um grito rei. Quando tiveres sido afastada, ele seguir‑me‑á.
abafado com a voz da rapariga britúnica. — Ele vai cortar‑te a garganta — respondeu
Natala com convicção, conhecendo Conan melhor
do que Thalis.
II — Veremos — respondeu friamente a estígia,
confiante no seu poder sobre os homens. — Seja

Q uando Conan se virou, obedecendo ao pedi-


do de Thalis, para olhar para a porta atrás de
si, Natalia estava mesmo atrás dele, perto do flanco
como for, tu não chegarás a saber se ele me apu-
nhalará ou beijará, porque serás a noiva daquele
que vive nas sombras. Vem!
da estígia. No instante em que as costas de Conan se Meio enlouquecida de terror, Natala lutou
viraram para ela, Thalis, com uma rapidez de pan- como um animal bravio, mas não tirou qualquer
tera quase inacreditável, pôs a mão sobre a boca de proveito disso. Com uma força ágil que a rapariga
Natala, abafando o grito que a rapariga tentou soltar. não julgara possível numa mulher, Thalis ergueu‑a
Ao mesmo tempo, o outro braço da estígia foi pas- do chão e levou‑a pelo corredor negro como se
sado em torno do peito flexível da jovem loura, e ela fosse uma criança. Natala não voltou a gritar, re-
foi atirada de encontro à parede, que pareceu ceder cordando as palavras sinistras da estígia; os únicos
quando o ombro de Thalis exerceu pressão contra sons eram a sua respiração rápida e desesperada e
ela. Uma secção da parede girou para dentro e Tha- o suave riso sarcástico e lascivo de Thalis. Então, a
lis deslizou com a sua cativa através de uma ranhura mão agitada da britúnica fechou‑se sobre qualquer
que se abriu na tapeçaria, mesmo no momento em coisa na escuridão: um cabo de punhal cravejado
que Conan rodopiava. de jóias que se projectava do cinto incrustado de
Lá dentro, quando a porta secreta se fechou, pedras preciosas de Thalis. Natala puxou‑o e ata-
ficou um negrume absoluto. Thalis fez uma breve cou cegamente com toda a sua força de rapariga.
pausa para procurar qualquer coisa às apalpadelas, Um grito soltou‑se dos lábios de Thalis, fe-
pareceu empurrar uma cavilha para o seu lugar e, lino na sua dor e fúria. Recuou, e Natala escapou
como tirou a mão da boca de Natala para desem- ao amplexo que relaxava, magoando os seus ten-
penhar essa tarefa, a rapariga britúnica começou a ros membros no chão liso de pedra. Erguendo‑se,
gritar a plenos pulmões. A gargalhada de Thalis foi correu para a parede mais próxima e ali ficou,
como mel envenenado na escuridão. com a respiração entrecortada e tremendo, enco-
— Grita o que quiseres, tolinha. Só servirá lhendo‑se de encontro às pedras. Não conseguia
para encurtar a tua vida. ver Thalis, mas podia ouvi‑la. A estígia estava viva
Ao ouvir aquilo, Natala calou‑se de súbito e com toda a certeza. Soltava uma corrente firme de
acocorou‑se, com todos os membros a tremer. pragas, e a sua fúria era tão concentrada e mortal
— Porque fizeste isto? — choramingou. — que Natala sentiu os ossos transformar‑se em cera
Que vais fazer? e o sangue em gelo.
— Vou levar‑te por este corredor ao longo de — Onde estás tu, diabinha? — arquejou Tha-
uma curta distância — respondeu Thalis — e dei- lis. — Deixa‑me voltar a pôr‑te as mãos em cima e
xar‑te para aquele que mais tarde ou mais cedo virá vou… — Natala ficou agoniada com a descrição de
à tua procura. Thalis dos danos corporais que pretendia infligir
— Ohhhhhh! — A voz de Natala quebrou‑se na rival. As palavras escolhidas pela estígia teriam
num soluço de terror. — Porque haverias de me fa- envergonhado a mais dura das cortesãs de Aqui-
zer mal? Nunca te feri! lónia.
— Quero o teu guerreiro. E tu estás no meu Natala ouviu‑a apalpar no escuro, e então
caminho. Ele deseja‑me… li‑o nos seus olhos. Se surgiu uma luz. Era evidente que por maior que
não fosses tu, estaria disposto a ficar aqui e ser o meu fosse o medo do corredor negro que Thalis sentia,
revista BANG! [ 148 ]
fora submerso pela ira. A luz vinha de uma das ge- leve. Virando a cabeça, Natala viu Thalis tirar de
mas de rádio que adornavam as paredes de Xutal. um suporte na parede, junto à argola, um chicote
Thalis esfregara‑a, e agora estava banhada no seu com o cabo cravejado de jóias. As pontas consis-
brilho avermelhado: uma luz diferente daquela que tiam de sete cordões redondos de seda, mais duros
as outras emitiam. Uma mão fazia pressão contra mas mais maleáveis do que tiras de couro.
o flanco, e sangue abria caminho entre os dedos. Com um silvo de gratificação vingativa, Tha-
Mas ela não parecia enfraquecida ou seriamente lis puxou o braço para trás e Natala gritou quando
ferida, e os seus olhos ardiam diabolicamente. A os cordões se enrolaram em torno dos seus rins. A
pouca coragem que Natala mantinha dissolveu‑se rapariga torturada estremeceu, contorceu‑se e pu-
ao ver a estígia iluminada por aquele estranho bri- xou em agonia pelas tiras que aprisionavam os seus
lho, com a bela face contraída numa emoção que pulsos. Esquecera a ameaça escondida que os seus
não era menos que infernal. Agora avançava com gritos poderiam invocar e aparentemente o mes-
passos de pantera, afastando a mão do flanco fe- mo se passara com Thalis. Cada chicotada origi-
rido e sacudindo impacientemente o sangue dos nava gritos de angústia. As vergastadas que Natala
dedos. Natala viu que não tinha ferido gravemente recebera nos mercados de escravos shemitas desa-
a rival. A lâmina tinha sido desviada pelas jóias do pareciam na insignificância quando comparadas
cinto de Thalis, e infligira uma ferida muito super- com aquilo. Nunca imaginara o poder punitivo de
ficial, suficiente apenas para despertar a desenfre- cordões de seda fortemente entrançados. As suas
ada fúria da estígia. carícias eram mais requintadamente dolorosas do
— Dá‑me esse punhal, estúpida! — grasnou que as de quaisquer galhos de vidoeiro ou tiras de
esta, caminhando a passos largos para a rapariga couro. Assobiavam venenosamente enquanto cor-
agachada. tavam o ar.
Natala sabia que devia lutar enquanto tinha Então, quando Natala virou o rosto mancha-
hipótese, mas simplesmente não era capaz de reu- do de lágrimas para gritar por misericórdia, algo
nir a coragem necessária. Nunca fora muito luta- congelou os seus gritos. A agonia cedeu lugar nos
dora, e a escuridão, violência e horror da aventura seus belos olhos a um horror paralisante.
tinham‑na deixado exangue, mental e fisicamente. Despertada pela expressão da rapariga, Tha-
Thalis recuperou o punhal dos seus dedos frouxos, lis imobilizou a mão erguida e rodopiou rápida
e atirou‑o com desprezo para longe. como uma gata. Tarde demais! Um grito horrível
— Sua porca! — disse, rangendo os dentes, soltou‑se dos seus lábios quando balançou para
esbofeteando rancorosamente a rapariga com as trás, com os braços atirados para cima. Natala
duas mãos. — Antes de te arrastar pelo corredor viu‑a por um instante, uma figura branca de medo
e te atirar às maxilas de Thog, tomarei um pouco recortada contra uma grande massa negra sem
do teu sangue para mim! Atreveste‑te a esfaque- forma que se elevava sobre ela, e depois a figura
ar‑me… pois bem, pagarás por tal audácia! branca foi levantada no ar, a sombra recuou com
Agarrando‑a pelos cabelos, Thalis arrastou‑a ela, e Natala ficou sozinha, pendurada no círculo
pelo corredor ao longo de uma curta distância, até de luz, meio desmaiada de terror.
ao limite do círculo de luz. Via‑se uma argola de Das sombras negras vieram sons incompre-
metal na parede, acima do nível da cabeça de um ensíveis e de gelar o sangue. Ouviu a voz de Thalis
homem. Um cordão de seda estava aí pendurado. a suplicar num frenesim, mas nenhuma voz lhe
Como se estivesse num pesadelo, Natala sentiu a respondeu. Não havia qualquer som, excepto a voz
túnica a ser‑lhe arrancada, e no instante seguinte arquejante da estígia, a qual se ergueu de súbito em
Thalis puxava os seus pulsos para cima e atava‑os à gritos de agonia, e depois se quebrou num riso his-
argola, de onde ficou pendurada, nua como no dia térico misturado com soluços. Estes diminuíram
em que nascera, com os pés a tocar o chão só ao de até se transformarem num respirar rápido e con-
revista BANG! [ 149 ]
vulsivo, e em breve também este cessou e um silên- Decidiu que estava louca, porque não era
cio mais terrível pairou sobre o corredor secreto. capaz de decidir se o ser a olhava de baixo para
Nauseada de horror, Natala torceu‑se e atre- cima ou pairava acima dela. Era incapaz de deci-
veu‑se a olhar, temerosa, na direcção em que a for- dir se o sombrio rosto repelente piscava os olhos
ma negra carregara Thalis. Nada viu, mas sentiu para ela a partir das sombras que havia a seus pés,
um perigo invisível, mais sinistro do que era capaz ou a olhava de uma altura imensa. Mas se a visão
de compreender. Lutou contra uma maré de histe- a convencera de que, fossem quais fossem as suas
ria. Os seus pulsos magoados, o corpo que lhe doía características mutáveis, o monstro era mesmo as-
com uma dor aguda, foram esquecidos perante sim composto de substância sólida, o tacto deu‑lhe
aquela ameaça que sentia vagamente destruir-lhe maior certeza desse facto. Um membro escuro se-
não apenas o corpo, mas também a alma. melhante a um tentáculo deslizou em torno do seu
Forçou os olhos a penetrar o negrume que corpo, e ela gritou com a sensação daquele toque
ficava para lá do limite da fraca luz, tensa com o na pele nua. Nem era quente nem frio, nem rugoso
medo do que poderia ver. Um arquejo lamuriento nem liso; não era como nada que a tivesse toca-
escapou dos seus lábios. A escuridão ganhava for- do antes, e com aquela carícia sentiu mais medo e
ma. Algo enorme e volumoso surgia do vazio. Viu vergonha do que alguma vez sonhara ser possível.
uma grande cabeça disforme emergir à luz. Pelo Toda a obscenidade e a devassa infâmia geradas na
menos julgou tratar‑se de uma cabeça, embora não imundície dos fossos abissais da Vida pareceram
fosse nada que pudesse pertencer a uma criatura sã afogá‑la em mares de sujidade cósmica. E nesse
ou normal. Viu um grande rosto semelhante ao de instante soube que fosse qual fosse a forma de vida
um sapo, cujos traços eram tão obscuros e instá- que aquela coisa representava, não era um animal.
veis como os de um espectro visto num espelho Começou a gritar incontrolavelmente, e o
de pesadelo. Grandes lagoas de luz que poderiam monstro puxou‑a como se a quisesse arrancar da
ser olhos piscavam na sua direcção, e ela estreme- argola através de pura força; então algo partiu‑se
ceu com a luz cósmica que ali viu reflectida. Não sobre as suas cabeças, e uma forma precipitou‑se
era capaz de distinguir nada do corpo da criatura. pelo ar, caindo sobre o chão de pedra.
O seu contorno parecia oscilar e alterar‑se subita-
mente enquanto o olhava; e no entanto a sua subs-
tância era aparentemente sólida. Nada havia nela III
de brumoso ou fantasmagórico.
Quando a coisa se aproximou, Natala não foi
capaz de dizer se andava, coleava, fluía ou rastejava.
O seu método de locomoção estava absolutamen-
Q uando Conan rodopiou e viu a tapeçaria a
assentar no seu lugar e ouviu o grito abafado
de Natala, atirou‑se contra a parede com um rugi-
te para lá da sua compreensão. Quando emergira do enlouquecido. Ressaltando de um impacto que
das sombras, a rapariga ficara incerta quanto à sua teria estilhaçado os ossos de um homem mais fra-
natureza. A luz da gema de rádio não a iluminava co, rasgou a tapeçaria, revelando o que parecia ser
como teria iluminado uma criatura normal. Por uma parede vazia. Fora de si com a fúria, ergueu o
mais impossível que parecesse, aquele ser parecia sabre como se pretendesse desbastar a pedra, mas
quase insensível à luz. Os seus detalhes ainda eram então um som súbito fê‑lo parar, com os olhos em
obscuros e imprecisos mesmo quando parou tão fogo.
próximo dela que quase lhe tocou a pele que se re- Uma vintena de figuras encarava‑o, homens
traía. Apenas o lampejante rosto de sapo se desta- amarelos em túnicas púrpura, com espadas curtas
cava com alguma nitidez. A coisa era uma mancha nas mãos. Quando se virou, correram para ele com
para a visão, um borrão negro de sombras que a gritos hostis. Não fez qualquer tentativa de conci-
luz normal nem dissipava nem iluminava. liação. Enlouquecido com o desaparecimento da
revista BANG! [ 150 ]
amante, o bárbaro regressou à sua condição ori- Conan, sangrando de um golpe na têmpora,
ginal. abriu por um instante um espaço com um devas-
Um rosnido de gratificação sanguinária tador golpe circular do seu gotejante sabre, e atirou
rasgou a sua garganta de touro quando saltou, e em torno uma rápida olhadela, em busca de uma
o primeiro atacante, com a curta espada ultrapas- via de fuga. Naquele instante, viu a tapeçaria numa
sada pelo sabre que zunia, caiu a jorrar miolos do das paredes a ser afastada para o lado, revelando
crânio aberto. Rodopiando como um gato, Conan uma escada estreita. Nesta estava um homem que
apanhou no fio da arma um punho que descia, e a envergava um manto rico, de olhos vagos e pes-
mão que segurava a espada curta voou pelo ar, es- tanejantes, como se tivesse acabado de acordar e
palhando uma chuva de gotas rubras. Mas Conan ainda não tivesse varrido do cérebro as poeiras do
não parara nem hesitara. Uma contorção de pan- sono. A visão e acção de Conan foram simultâne-
tera e uma deslocação do corpo evitaram a corrida as.
cega de dois espadachins amarelos, e a lâmina de Um salto de tigre levou‑o sem ser tocado
um, ao falhar o objectivo, foi acolhida pelo peito através do anel de espadas que o cercava, e correu
do outro. para a escada com a matilha a ladrar atrás de si.
Soou um grito de consternação perante Três homens enfrentaram‑no na base dos degraus
aquele infortúnio, e Conan permitiu‑se soltar um de mármore, e ele atingiu‑os com um ensurdece-
breve latido de riso enquanto saltava para o lado, dor estrondo de aço. Houve um instante frenético
esquivando‑se a uma estocada sibilante e lançava em que as espadas flamejaram como relâmpagos
um golpe para lá da guarda de mais um dos ho- de Verão; então o grupo desfez‑se e Conan saltou
mens de Xutal. Um longo esguicho carmesim se- pelas escadas. A horda que o seguia tropeçou em
guiu a sua lâmina cantante e o homem ruiu, gri- três homens que se contorciam na base dos de-
tando, com os músculos da barriga trespassados. graus: um jazia de borco numa confusão nausean-
Os guerreiros de Xutal uivaram como lobos te de sangue e miolos; outro apoiava‑se nas mãos,
enlouquecidos. Não acostumados à batalha, eram com sangue a jorrar, negro, das veias cortadas da
ridiculamente lentos e desastrados em comparação garganta; o outro uivava como um cão moribun-
com o tigre bárbaro, cujos movimentos eram man- do, agarrado ao toco carmesim que em tempos
chas de rapidez apenas possíveis graças a músculos fora um braço.
de aço unidos a um perfeito cérebro de lutador. Os Quando Conan se apressou a subir a esca-
homens debatiam‑se e tropeçavam, embaraçados da de mármore, o homem no seu topo sacudiu a
pelo seu próprio número; atacavam demasiado de- letargia e puxou de uma espada que cintilou de
pressa ou cedo demais, e cortavam apenas ar vazio. forma gelada à luz do rádio. Lançou uma estocada
Conan nunca estava imóvel ou no mesmo sítio por para baixo quando o bárbaro se aproximou. Mas
mais do que um instante: saltando, dando passos no momento em que a lâmina zuniu na direcção
para o lado, rodopiando, torcendo‑se, oferecia às da sua garganta, Conan baixou‑se profundamente.
espadas dos seus inimigos um alvo em mutação A lâmina do outro homem cortou a pele das suas
constante, enquanto a sua própria lâmina curva costas, e Conan endireitou‑se, erguendo o sabre
cantava a morte em torno das orelhas dos atacan- como se fosse uma faca de carniceiro, com toda a
tes. força dos seus poderosos ombros.
Mas por mais falhas que tivessem, aos ho- Tão tremendo era o seu ímpeto que enfiar
mens de Xutal não faltava a coragem. Aglomera- o sabre até aos copos na barriga do inimigo não o
ram‑se em torno do cimério gritando e golpeando, parou. Carambolou contra o corpo do desgraçado,
e acorreram mais pelas portadas arqueadas, des- batendo‑lhe de lado. O impacto fez Conan esma-
pertados dos seus sonos por aquele extraordinário gar‑se contra a parede. O outro, depois do sabre
clamor. lhe rasgar o corpo, caiu de cabeça pelas escadas,
revista BANG! [ 151 ]
aberto até à espinha desde as virilhas até ao esterno Não caiu uma grande distância, embora fos-
partido. Numa horrível confusão de entranhas que se a suficiente para quebrar os ossos das pernas de
se derramavam, o corpo tombou sobre os homens um homem que não fosse feito de molas de aço e
que subiam as escadas, arrastando‑os consigo. barbas de baleia.
Meio atordoado, Conan apoiou‑se na parede Atingiu o chão como um gato, sobre os pés
por um instante, olhando os outros homens; de- e uma mão, mantendo instintivamente agarra-
pois, sacudindo em desafio o sabre que pingava, do o punho do sabre. Um grito familiar ressoou
subiu as escadas. nos seus ouvidos quando ressaltou sobre os pés,
Ao chegar a um aposento superior, parou como um lince, de colmilhos à mostra e a rosnar.
apenas durante o tempo suficiente para ver que E assim, Conan, espreitando por baixo da sua juba
estava vazio. Atrás dele, a horda gritava com tão desgrenhada, viu a figura branca e nua de Natala a
intenso horror e raiva que soube que tinha morto contorcer‑se, sob o libidinoso amplexo de um pe-
ali na escada algum notável, provavelmente o rei sadelo negro que só poderia ter sido gerado nos
daquela fantástica cidade. fossos perdidos do Inferno.
Correu à sorte, sem um plano. Desejava A visão daquela forma horrível, se isolada,
desesperadamente encontrar e socorrer Natala, a poderia ter paralisado o cimério de medo. Mas ver
qual, com toda a certeza, precisava muito de ajuda; também a rapariga enviou uma onda vermelha de
mas, perseguido como era por todos os guerrei- fúria assassina pelo cérebro de Conan. No meio
ros de Xutal, só podia correr em frente, confiando duma névoa carmesim, golpeou o monstro.
na sorte para os despistar e a encontrar. Naqueles A forma deixou cair a rapariga, rodopiando
aposentos superiores escuros ou fracamente ilu- na direcção do seu atacante e o sabre do enlou-
minados, perdeu rapidamente todo o sentido de quecido cimério, zunindo pelo ar, penetrou sem
orientação, e não foi estranho que acabasse por resistência na massa negra e viscosa e ressoou no
entrar, às cegas, num aposento ao qual os seus ini- chão de pedra, originando uma chuva de centelhas
migos estavam mesmo a chegar. azuis. Conan caiu sobre os joelhos com a fúria do
Os outros gritaram com vingança nas vozes golpe; a aresta da espada não encontrara a resis-
e correram para ele e, com um rosnido de repug- tência que esperara. E quando se ergueu, a coisa
nância, o bárbaro virou‑se e fugiu pelo caminho estava em cima de si.
de onde viera. Ou pelo menos aquele que julgava Erguia‑se acima dele como uma nuvem ne-
ser o caminho de onde viera. Mas rapidamente, gra. Parecia fluir em seu redor em ondas que eram
ao entrar a correr num aposento particularmente quase líquidas, envolvê‑lo e submergi‑lo. O sabre,
ornamentado, compreendeu o seu erro. Todos os que golpeava loucamente, trespassou‑a uma e ou-
aposentos que tinha atravessado desde que galga- tra vez, o punhal rasgou‑a e lacerou‑a; foi atingido
ra a escada tinham estado vazios. Este tinha um por um dilúvio de um líquido viscoso que devia
ocupante, que se ergueu com um grito quando o ser o vagaroso sangue da coisa. Mas a fúria do
bárbaro avançou. monstro não diminuiu em nada.
Conan viu uma mulher de pele amarela, car- Conan não saberia dizer se golpeava os mem-
regada de ornamentos e jóias mas de outro modo bros da nuvem negra, ou se aderia ao seu volume,
nua, que o olhava de olhos esbugalhados. Não teve que se cerrava atrás da lâmina que golpeava. Era
tempo para mais do que um relance antes que ela atirado para cá para lá na violência daquela terrí-
erguesse a mão e puxasse uma corda de seda que vel batalha, e tinha uma sensação confusa de estar
pendia da parede. Então, o chão fugiu‑lhe debaixo a lutar não com uma criatura letal, mas com um
dos pés, e nem toda a sua aguda coordenação foi agregado delas. A coisa parecia estar a mordê‑lo,
capaz de evitar que caísse no negro abismo que se arranhá‑lo, apertá‑lo e bater‑lhe, tudo ao mesmo
abriu por baixo de si. tempo. Sentiu presas e garras a rasgar a sua carne,
revista BANG! [ 152 ]
cabos flácidos, que no entanto eram rijos como fer- pedra viscosa. Ficou ali a observar o ressoante bri-
ro, rodearam os seus membros e corpo e, pior que lho que diminuía mais e mais até que desapareceu
tudo, algo semelhante a um pedipalpo caiu uma numa superfície escura e brilhante que pareceu
e outra vez sobre os seus ombros, costas e peito, erguer‑se para o acolher. Por um instante um fogo
arrancando‑lhe a pele e enchendo‑lhe as veias com fátuo que enfraquecia brilhou naquelas profunde-
um veneno que era como fogo líquido. zas sombrias; depois desapareceu, e Conan ficou
Tinham rebolado para lá do círculo de luz, a olhar para baixo, para o negrume do derradeiro
e era num negrume total que o cimério batalhava. abismo de onde não vinha nenhum som.
Por uma vez afundou os dentes, como um animal,
na substância flácida do seu inimigo, rebelan-
do‑se‑lhe as entranhas quando aquilo estremeceu IV
e se contorceu como borracha viva para fora das
suas maxilas de ferro.
Naquele furacão de luta, rolavam e rolavam,
cada vez para mais longe naquele túnel. O cérebro
P uxando em vão pelos cordões de seda que lhe
cortavam os pulsos, Natala procurava penetrar
com o olhar nas trevas que se estendiam para lá do
de Conan titubeava com a punição que recebia. A círculo iluminado. A sua língua parecia colada ao
sua respiração chegava em arquejos sibilantes por céu da boca. Vira Conan desaparecer naquele ne-
entre os dentes. Bem alto acima dele, viu um ros- grume, num combate mortal com o demónio des-
to semelhante ao dum sapo, vagamente iluminado conhecido, e os únicos sons que chegaram aos seus
por um clarão arrepiante que parecia emanar do ouvidos esforçados foram os arquejos ofegantes do
próprio rosto. E com um grito ofegante que era bárbaro, o impacto de corpos em luta, e os ruídos
meio praga, meio arquejo de extrema agonia, lan- surdos e rascantes de golpes selvagens. Mas estes
çou um golpe na sua direcção, atacando com toda tinham terminado, e Natala oscilava entontecida
a força que lhe restava. O sabre afundou‑se até aos nos cordões, quase a desmaiar.
copos, algures abaixo do medonho rosto, e um es- Um passo acordou‑a da sua apatia de horror,
tremecimento convulsivo abalou o vasto volume e viu Conan emergir da escuridão. Ao vê‑lo, reen-
que quase envolvia o cimério. Com uma explosão controu a voz num guincho que ecoou pelo túnel
vulcânica de contracção e expansão, a coisa tom- abobadado. Os maus tratos que Conan recebera
bou para trás, rolando agora pelo corredor com eram terríveis de contemplar. Pingava sangue a
uma pressa frenética. Conan seguiu com ela, ma- cada passo. O seu rosto estava esfolado e magoado
goado, ferido, invencível, agarrando‑se como um como se tivesse sido espancado com uma moca.
buldogue ao cabo do sabre que não conseguia pu- Os seus lábios estavam reduzidos a polpa, e sangue
xar, rasgando e dilacerando a tremente massa com escorria‑lhe lentamente pela cara, proveniente de
o punhal que trazia na mão esquerda, esfolando‑a uma ferida no couro cabeludo. Havia profundos
às tiras. golpes nas suas coxas, barrigas das pernas e bra-
Toda a coisa brilhava agora com uma es- ços, e tinha grandes pisaduras nos membros e no
tranha radiância fosfórea, e este brilho atingiu os tronco, provenientes de impactos contra o chão de
olhos de Conan, cegando‑o, até que de súbito a pedra. Mas os seus ombros, costas e músculos da
massa ondulada e palpitante caiu de debaixo dele, parte superior do peito eram os que mais tinham
e o sabre soltou‑se e manteve‑se preso à sua mão sofrido. A carne estava pisada, inchada e lacerada,
cerrada. Esta mão e o braço respectivo pendiam a pele pendia em faixas soltas, como se tivesse sido
num espaço vazio, e muito abaixo dele o corpo bri- chicoteada com chicotes de arame.
lhante do monstro caía como um meteoro. Conan — Oh, Conan! — soluçou Natala. — Que te
compreendeu confusamente que jazia à beira de aconteceu?
um grande poço redondo, cuja borda era feita de Ele não tinha fôlego para conversas, mas os
revista BANG! [ 153 ]
seus lábios esmagados retorceram‑se quando se nan pôs‑se a caminho pelo corredor. Movia‑se lenta
aproximou, no que poderia ter sido um humor e rigidamente, e só a sua vitalidade animal o manti-
sombrio. O peito peludo, reluzente de suor e san- nha em pé. Havia um brilho vazio nos seus olhos in-
gue, elevava‑se com os seus arquejos. Lenta e pe- jectados de sangue, e Natala viu‑o lamber involunta-
nosamente, ergueu as mãos e cortou os cordões riamente, de vez em quando, os maltratados lábios.
que a prendiam, e depois caiu contra a parede e Sabia que o seu sofrimento era terrível mas, com o
apoiou‑se aí, com as pernas trémulas muito abertas. estoicismo dos selvagens, ele não se queixou.
Ela correu sobre os pés e as mãos de onde caíra, e Em breve, a ténue luz brilhou sobre uma ar-
envolveu‑o num frenético abraço, soluçando histe- cada negra, e foi para aí que Conan virou. Natala
ricamente. retraiu‑se perante o que poderia ver, mas a luz reve-
— Oh, Conan, estás ferido de morte! Oh, o lou apenas um túnel semelhante àquele que tinham
que faremos? acabado de abandonar.
— Bem — arquejou ele — não é possível com- A rapariga não fazia ideia de quanto teriam
bater um diabo vindo do inferno e sair do combate avançado antes de trepar uma longa escada e che-
com a pele inteira! gar a uma porta de pedra, trancada por um ferrolho
— Onde está ele? — sussurrou ela. — Matas- dourado.
te‑o? Hesitou, olhando Conan de relance. O bárbaro
— Não sei. Caiu a um poço. Estava transfor- oscilava sobre as pernas, e a luz na sua mão insegura
mado em farrapos sangrentos, mas não sei se pode enviava fantásticas sombras de um lado para o outro,
ser morto pelo aço. na parede.
— Oh, as tuas pobres costas! — gemeu ela, tor- — Abre a porta, rapariga — murmurou ele
cendo as mãos. com voz espessa. — Os homens de Xutal estarão à
— Aquilo vergastou‑me com um tentáculo — nossa espera, e não os quero desapontar. Por Crom,
ele fez uma careta, praguejando quando se moveu. a cidade nunca viu sacrifício como o que farei!
— Cortava como arame e queimava como veneno. Ela sabia que ele estava meio delirante. Ne-
Mas foi o seu maldito aperto que me tirou o fôle- nhum som vinha do outro lado da porta. Tomando
go. Foi pior que uma pitão. Ou muito me engano, a pedra de rádio da mão manchada de sangue do ci-
ou metade das minhas tripas estão trituradas e fora mério, a rapariga abriu o ferrolho e puxou o painel
do sítio. para dentro. O seu olhar pousou sobre o avesso de
— O que faremos? — choramingou ela. uma tapeçaria de fio de ouro e ela afastou‑a e esprei-
O cimério lançou uma olhadela para cima. O tou, de coração na boca. Estava a olhar para um apo-
alçapão estava fechado. Nenhum som de lá vinha. sento vazio, no centro do qual uma fonte prateada
— Não podemos regressar pela porta secreta cantava.
— murmurou. — Aquele quarto está cheio de mor- A mão de Conan caiu, pesada, sobre o seu om-
tos, e sem dúvida que há lá guerreiros a montar guar- bro nu.
da. Eles devem ter pensado que o meu destino estava — Afasta‑te, rapariga — murmurou. — Agora
traçado quando mergulhei pelo chão, ou então não é o banquete das espadas.
se atrevem a seguir‑me por este túnel. Quando re- — Não está ninguém no aposento — respon-
gressei às apalpadelas pelo corredor senti que havia deu ela. — Mas há água…
arcadas que se abriam para outros túneis. Seguire- — Ouço‑a. — O bárbaro lambeu os lábios
mos a primeira que encontrarmos. Pode levar‑nos enegrecidos. — Beberemos antes de morrermos.
a outro poço, ou ao ar livre. Temos de arriscar. Não Parecia cego. Ela tomou a sua mão manchada
podemos ficar aqui a apodrecer. de escuro e levou‑o através da porta de pedra. Ia em
Natala obedeceu, e segurando na mão esquer- bicos de pés, esperando a todo o instante uma inva-
da o minúsculo ponto de luz e na direita o sabre, Co- são de figuras amarelas através das arcadas.
revista BANG! [ 154 ]
— Bebe enquanto eu fico de guarda — mur- e fazer soar um alarme. Mas não se conseguiu levar
murou ele. a mergulhar o punhal cimério naquele peito imóvel,
— Não, não tenho sede. Deita‑te ao lado da e por fim afastou a colgadura e regressou para junto
fonte e eu limpo‑te as feridas. de Conan, que jazia onde o deixara, parecendo estar
— Então e as espadas de Xutal? — Ele passava só parcialmente consciente.
continuamente o braço pelos olhos como que para Inclinou‑se e levou‑lhe o jarro aos lábios. Ele
limpar a visão enevoada. bebeu, a princípio de forma mecânica, mas depois
— Não ouço ninguém. Está tudo em silên- com um interesse subitamente despertado. Para es-
cio. panto da rapariga, o bárbaro sentou‑se e tomou‑lhe
Ele caiu, às apalpadelas, e mergulhou a cara o recipiente nas mãos. Quando ergueu o rosto, os
no jacto cristalino, bebendo como se não se sacias- olhos estavam límpidos e normais. Muito do aspecto
se nunca. Quando ergueu a cabeça, havia sanida- macilento tinha desaparecido dos seus traços, e a sua
de nos seus olhos injectados de sangue e esticou voz já não era o murmúrio do delírio.
os membros maciços no chão de mármore como — Crom! Onde arranjaste isto?
ela pedira, embora mantivesse o sabre na mão e os Ela apontou.
olhos se desviassem continuamente para as arca- — Naquela alcova, onde dorme uma rapariga
das. Ela lavou a sua carne rasgada e ligou as feridas amarela.
mais profundas com faixas arrancadas de uma col- Ele voltou a enfiar o nariz no líquido doura-
gadura de seda. Estremeceu ao ver‑lhe as costas; a do.
carne estava descolorada, manchada e pintalgada — Por Crom — disse com um suspiro pro-
de negro, azul e de um amarelo doentio, onde não fundo — sinto uma nova vida e uma nova força a
estava em carne viva. Enquanto trabalhava, procu- correr‑me como fogo pelas veias. Isto é certamente
rou freneticamente uma solução para o problema. o próprio elixir da Vida!
Se ficassem onde estavam, acabariam por ser des- — Devíamos regressar ao corredor — suge-
cobertos. E não sabia se os homens de Xutal vas- riu Natala nervosamente. — Seremos descober-
culhavam os palácios à sua procura ou se tinham tos se ficarmos aqui por muito tempo. Podemos
regressado aos seus sonhos. esconder‑nos aí até que as tuas feridas sarem…
Quando terminou a tarefa, ficou gelada. Sob — Eu não — resmungou ele. — Não somos
a colgadura que escondia parcialmente uma alco- ratos para nos escondermos em tocas escuras. Va-
va, viu uma mão travessa de pele amarela. mos sair agora desta cidade diabólica, e que nin-
Nada dizendo a Conan, ergueu‑se e atravessou guém tente parar‑nos.
o aposento em silêncio, empunhando o punhal do — Mas as tuas feridas! — gemeu ela.
bárbaro. O bater do coração sufocava‑a quando afas- — Não as sinto — respondeu o bárbaro. —
tou cautelosamente o tecido. No estrado jazia uma Pode ser uma força falsa que este licor me tenha
jovem mulher amarela, nua e aparentemente sem dado, mas juro que não estou consciente nem de
vida. Junto à sua mão estava um jarro de jade quase dor nem de fraqueza.
cheio de um peculiar líquido dourado. Natala con- Com uma resolução súbita, Conan atraves-
cluiu que devia tratar‑se do elixir descrito por Thalis, sou o aposento até uma janela que ela não nota-
que emprestava vigor e vitalidade à degenerada Xu- ra. Natala olhou para fora sobre o ombro do ho-
tal. Inclinou‑se por cima da forma inerte e pegou no mem. Uma brisa fresca sacudiu as suas madeixas
recipiente, mantendo o punhal a pairar sobre o peito desgrenhadas. Acima deles, via‑se o escuro céu de
da rapariga. Esta não acordou. veludo, salpicado de estrelas. Por baixo estendia‑se
Com o jarro na sua posse, Natala hesitou, uma vaga extensão de areia.
compreendendo que o mais seguro seria pôr a rapa- — Thalis disse que a cidade era um grande
riga adormecida para lá da possibilidade de acordar palácio — disse Conan. — É claro que alguns dos
revista BANG! [ 155 ]
quartos estão construídos como torres na mura- Conan, atirando os preciosos recipientes por sobre
lha. Este está. A sorte orientou‑nos bem. os ombros, estremecendo com o contacto com a
— Que queres dizer? — perguntou ela, lan- sua maltratada pele. — Talvez até nos persigam,
çando um relance apreensivo por sobre o ombro. mas ajuizando pelo que Thalis disse, duvido. O sul
— Está um jarro de cristal naquela mesa de é por ali — um musculoso braço de bronze indi-
marfim — respondeu ele. — Enche‑o de água e ata cou o rumo — e portanto algures naquela direcção
uma faixa daquela colgadura à volta da sua boca fica o oásis. Vem!
enquanto eu rasgo esta tape-çaria. Tomando‑lhe a mão com uma amabilidade
Ela obedeceu sem fazer perguntas, e quando que não era habitual nele, Conan pôs‑se a cami-
terminou a tarefa e se virou, viu Conan a atar com nho pela areia, ajustando os passos às pernas mais
rapidez as longas e resistentes fitas de seda para fa- curtas da companheira. Não olhou para a cidade
zer uma corda, uma extremidade da qual prendeu silenciosa que cismava, sonhadora e fantasmagó-
à perna da maciça mesa de marfim. rica, atrás deles.
— Vamos arriscar o deserto — disse ele. — Conan — aventurou‑se por fim Natala a
— Thalis falou de um oásis a um dia de marcha dizer — quando lutaste com o monstro e, depois,
para sul, e de pastagens para lá dele. Se atingirmos quando regressaste pelo corredor, viste algum si-
o oásis, poderemos descansar até que as minhas nal de… de Thalis?
feridas sarem. Este vinho é como feitiçaria. Há bo- Ele abanou a cabeça.
cado era pouco mais que um homem morto; agora — Estava escuro no corredor, mas ele estava
estou pronto para tudo. E aqui tens de sobra seda vazio.
suficiente para fazeres uma vestimenta. A rapariga estremeceu.
Natala esquecera a sua nudez. O simples — Ela torturou‑me… e no entanto tenho
facto não lhe causava escrúpulos, mas a sua pele pena dela.
delicada necessitaria de protecção contra o sol do — Foram umas boas‑vindas bem quentes,
deserto. Enquanto atava o pano de seda em torno as que recebemos naquela amaldiçoada cidade
do seu corpo flexível, Conan virou‑se para a jane- — rosnou o cimério. E então, o seu sombrio senti-
la e com um sacão cheio de desprezo arrancou as do de humor regressou. — Bem, suponho que eles
barras de ouro maleável que a revestiam. Então, recordarão a nossa visita durante bastante tempo.
rodeando as ancas de Natala com a ponta solta da Há miolos, entranhas e sangue a limpar dos ladri-
corda de seda, e prevenindo‑a para se segurar com lhos de mármore, e se o seu deus ainda está vivo,
as duas mãos, ergueu‑a pela janela e baixou‑a os tem mais feridas do que eu. Acabámos por nos
cerca de dez metros que os separavam do solo. Ela sair bem: temos vinho e água e uma boa hipótese
saiu do laço e ele, depois de o puxar de volta, atou de chegar a um país habitável, mesmo que eu pa-
os recipientes de água e de vinho e baixou‑os tam- reça ter passado por um pilão e tu tenhas umas
bém. Então seguiu‑os, deslizando rapidamente até nódoas negras.
ao chão. — E é tudo culpa tua — interrompeu ela. —
Quando o cimério chegou a seu lado, Natala Se não tivesses olhado durante tanto tempo e de
soltou um suspiro de alívio. Estavam sós na base forma tão admiradora para aquela gata estígia…
da grande muralha, com as estrelas que empalide- — Por Crom e seus demónios! — praguejou
ciam sobre as cabeças e o deserto nu à sua volta. o cimério. — Até quando os oceanos afogarem o
Não podiam saber que perigos ainda os espera- mundo as mulheres encontrarão tempo para os
vam, mas o coração da rapariga cantava de alegria seus ciúmes. Que o diabo carregue a sua vaidade!
porque estavam no exterior daquela cidade fantas- Terei dito à estígia para se apaixonar por mim?
magórica e irreal. Afinal de contas, ela era apenas humana! BANG!
— Eles talvez encontrem a corda — grunhiu
revista BANG! [ 156 ]
Se gostou de
A Sombra Deslizante,
aventure-se com
Conan

Conan - O Povo do Círculo Negro


Robert E. Howard

Robert Ervin Howard (1906 - 1936) O Bárbaro mais famoso da literatura fantástica
escreveu fundamentalmente fantasia e está de volta!
aventuras históricas. Nasceu em Peaster,
Texas, filho do Dr. Isaac Howard e de Na sua curta mas marcante carreira, Robert E. Howard
Jane Ervin Howard. Começou a escrever criou sozinho o género que ficaria conhecido como fan-
aos 9 anos (inspirado nas histórias de tasia heróica e trouxe à vida uma das personagens mais
Harold Lamb e Talbot Mundy) mas só em marcantes da literatura fantástica: Conan, o cimério
1924 teve a sua primeira história publi‑ — bárbaro, ladrão, pirata, rei.
cada (o conto Spear and Fang) na edição Quem conhece Conan apenas dos filmes ou da banda
de Julho de 1925 da revista Weird Tales. desenhada vai ficar surpreendido. Os contos de Howard,
Muitas de suas histórias vieram a ser escritos na década de trinta do século XX, são verdadei-
publicadas nessa revista, tendo a honra ros hinos à aventura, ao exotismo, cheios de vida, enredos
da primeira capa em 1926. Escreveu rápidos e caracterizações subtis e credíveis.
histórias de muitos estilos mas as suas Não será exagero dizer que Robert E. Howard está para
criações mais famosas são as do género a literatura fantástica como Dashiell Hammett está para
sword and sorcery - um género de fantasia os policiais. Não só deu novo vigor a um género, como
caracterizado pela ênfase em combates mostrou um caminho para o desenvolvimento das suas
violentos e intervenções sobrenaturais possibilidades.
(deuses, monstros, magos, etc.). Howard
criou uma das personagens mais popu‑ “Se vai ler Conan pela primeira vez,
lares de sempre: o bárbaro Conan, que então tenho inveja de si!”
fez a sua estreia no conto The Phoenix on -Charles de Lint
the Sword em Dezembro de 1932. Para
hospedar essa criação Howard inventou “A escrita de Howard está tão carregada de energia
a Era Hiboriana, que se trata da própria que quase solta faíscas.”
Terra mas num passado pré-cataclísmico -Stephen King
do qual a história actual não guarda
lembranças. Outros personagens célebres Saida de Emergência / 2008
incluem o rei Kull, o aventureiro puri‑ ISBN: 9728839154
tano Salomão Kane e o picto Bran Mak Preço: 16.91€
Morn. Um outro campo em que Howard Na página da editora: 15.22€
foi bem-sucedido foi o do horror sobre‑
natural, no qual emprestou muitas ideias
do seu correspondente e amigo H. P.
Lovecraft. Com uma prosa directa, rica e
mais excitante do que perspicaz, Howard
sempre tentou entreter e não instruir, con‑
seguindo-o fazer com uma grande dose de
sofisticação. BANG!
revista BANG! [ 157 ]
[artigo]

À Descoberta do
[texto de Sofia Moreiras]

Fórum Fantástico
De 2 a 5 de Outubro
Vem aí o evento que os fãs da grande literatura fantástica não
podem perder. É a oportunidade de conhecer autores portugueses e
grandes nomes do mercado internacional. É o Fórum Fantástico, claro!

E m 2003, Rogério Ribeiro, então editor do fan-


zine Dragão Quântico, a par da sua actividade
como investigador na área de Biologia, juntou-se
aos fóruns de discussão na Internet sobre ficção
científica onde viria a conhecer Safaa Dib, então
estudante da Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa.  
Apesar dos back-
grounds diferentes, os dois
fãs do género fantástico
tornaram-se amigos e cedo
desenvolveram planos de
organização de um evento
que permitisse congregar
escritores, académicos, leitores e jornalistas e cha-
mar-lhes a atenção para a riqueza e diversidade da
literatura.
Desde o início, trabalharam para montar a
sua primeira convenção, que viria a ser conhecida
como o 1º Encontro Literário de Fantasia e Ficção
Científica realizado na Faculdade de Letras em
Maio de 2004. 
Novas amizades e parcerias formaram-se,
uma nova associação foi criada para permitir pro-
jectos mais ambiciosos (a Épica – Associação Por-
tuguesa do Fantástico nas Artes), mas foi essen-
T rês edições depois, o Fórum volta mais uma vez
este ano, desta vez antecipado para as datas de
2 a 5 de Outubro, mês em que espera assentar nas
cialmente esse encontro de 2004 que possibilitou suas futuras edições. 
o 1º Fórum Fantástico a Novembro de 2005.  «As pessoas surpreendem-se como ainda
revista BANG! [ 158 ]
continuamos determinados a organizar o Fórum las limitações e cortes de orçamentos das institui-
Fantástico todos os anos, apesar dos obstáculos e ções públicas que normalmente nos apoiavam»,
tribulações» diz Safaa Dib quando lhe perguntam responde Safaa Dib, quando lhe perguntam sobre
se ainda se sente com a mesma motivação com a uma diminuída presença de escritores internacio-
qual começaram a organizar o Fórum. «Mas há este nais no Fórum.
compromisso, nunca verbalmente assumido, de que Um fórum certamente mais nacional que
temos que continuar a organizar o Fórum, apesar irá contar com a apresentação do novo livro de
de tudo. Tem sido um projecto que nos possibilitou David Soares, Lisboa Triun-
reunir uma base ávida por um ponto de encontro fante, bem como a presença
que lhes permitisse conhecer escritores que admi- de Ricardo Fontinha, autor
ram, ou simplesmente, tentar compreender melhor de Chichen Itza – A Fonte da
o que se tem feito e que se poderia fazer mais em Juventude, Ana Cristina Luz,
Portugal. Já tem sido plataforma de lançamento para autora de Contos a Oeste, e
novos projectos». o colectivo de autores de BD
Após passagem por vários auditórios em Murmúrios das Profundezas, inspirado na obra de
Lisboa, foi possível eleger este ano, com o contributo Lovecraft. Um painel de autores infanto-juvenis, um
de alguns estudantes de artes, a Faculdade de Belas- género em claro crescimento em anos recentes, irá
Artes de Lisboa como palco do Fórum Fantástico. também participar no Fórum e debater as particula-
«As peças do puzzle acabaram por se encaixar todas. ridades da literatura fantástica para crianças.
Este foi o ano que decidimos dedicar a nossa aten- A ficção científica aparentemente não foi
ção a novas formas de arte, novas formas de fundir negligenciada, uma vez que será promovido um de-
as artes audiovisuais com as pictóricas. Convidámos bate no dia de abertura do Fórum sobre o futuro dos
uma série de cineastas para apresentarem as suas livros a nível tecnológico moderado pelo autor Luís
curtas-metragens na área do fantástico e não pres- Filipe Silva, com a presença de escritores, jornalistas
cindimos da Banda-Desenhada, uma área que sem- e escritores.
pre mostrou uma grande vitalidade. Não é por acaso
Alguns autores que já participaram
que duas homenagens deste ano serão ao cineasta
e escritor António de Macedo e a Nelson Dias, por no Fórum Fantástico:
via da BD Wanya – Escala em Orongo, reeditada Nick Sagan
no ano passado pela Gradi-
va. E que melhor local que a
Zoran Zivkovic
própria Faculdade de Belas- Paul McAuley
Artes?» Christopher Priest

Rudolfo Martínez
C ontando com uma for-
te presença interna-
cional em edições anteriores, este ano o Fórum
Juan Miguel Aguilera
Gérson Lodi-Ribeiro
apresenta o escritor britânico Richard K. Morgan
como cabeça de cartaz. Autor de reputação no gé-
Blanca Riestra
nero da ficção científica, Morgan virá a Portugal Elia Barceló
para lançar a obra Carbono Alterado, com o apoio Bruce Holland Rogers
da editora Saída de Emergência. «O público ha-
bituou-se a uma forte presença internacional no
Léon Arsenal
nosso evento, mas este ano será decididamente C. B. Cebulski
um fórum nacional, uma decisão provocada pe- Edward James
revista BANG! [ 159 ]
As novidades não se irão limitar à BD e li- fantásticos publicados por ano pelas mais diversas
teratura. Uma série de curtas-metragens realizadas editoras, desde as grandes companhias às indepen-
recentemente por portugueses irão ser exibidas no dentes, é um sinal de que ainda se justifica a realiza-
Fórum Fantástico. Encontra-se também em prepa- ção do Fórum Fantástico? Pergunta esta a que Safaa
ração um monster workshop em que vários ilustra- Dib responde, «Isso é uma questão que tentaremos
dores irão revelar os truques e manhas da arte de responder no balanço anual que irá ser pela primeira
criação de monstros. vez realizado no Fórum. Vamos destacar a ficção tra-
«Tentou-se criar um fórum mais ecléctico duzida e nacional publicada no último ano e discutir
este ano, representativo de todas as facetas do fan- os principais eventos que têm marcado o género.»
tástico. E, para não variar, são muitos od projectos
nacionais de qualidade a descobrir.»
Projectos estes que demonstram que o géne-
ro em Portugal ainda dá cartas. O número de livros
P ara mais informações sobre o programa do Fó-
rum Fantástico, consultem regularmente a pá-
gina forumfantastico.wordpress.com BANG!

«O optimismo é algo
[entrevista] [por Stuart Carter]

muito difícil de manter!»


Entrevista a Richard Morgan
Uma das vozes mais frescas, competentes e surpreedentes
da fc vem a Portugal, ao Fórum Fantástico, lançar o bestseller
Carbono Alterado. Fique a conhecê-lo um pouco melhor...
antes de autografar o seu exemplar.

C arbono Alterado foi o primeiro trabalho de


ficção científica de Richard Morgan, publi-
cado em 2002. Para um primeiro romance era
graças a uma tecnologia conhecida como «slee-
ving» e segundo a qual a nossa consciência pode
ser transferida do nosso corpo e armazenada ou
ultra‑violento e sagaz e foi realmente muito bem implantada num corpo novo (ou não tão novo as-
recebido. Ah, e os direitos para o filme foram di- sim). Takeshi Kovacs era uma personagem princi-
reitinhos para Hollywood e conseguiram realmen- pal cansado da vida e moralmente comprometido
te uma boa verba, permitindo a Richard deixar o que tinha assassinado centenas de pessoas e «mor-
emprego como professor de Inglês na Escócia para rido» mais de uma vez; tinha sido contratado para
se concentrar a tempo inteiro na escrita. investigar uma morte verdadeira por causa do seu
Carbono Alterado retratava uma futura status enquanto antigo «Envoy» ou super‑soldado
Terra mesquinha e governada pelo mundo em- magnificamente treinado.
presarial onde os ricos eram realmente imortais O segundo romance de Richard, Broken
revista BANG! [ 160 ]
Angels, com o mesmo protagonista alguns anos para ser sincero, já estava a ficar sem adrenalina.
depois e num planeta diferente, conseguiu a mes- As minhas glândulas supra‑renais tinham estado
ma aclamação no início deste ano, provavelmente em constante actividade desde que CA foi publi-
porque a fórmula dura e muito noir do primeiro cado e teve tantas críticas positivas. Foi um pouco
romance foi de novo empregue mas num contex- como comprar uma casa, quando finalmente se faz
to mais vasto que revelou um pouco mais sobre o a escritura. Não é tanto uma explosão de alegria,
futuro ambiente social de Takeshi Kovacs e sobre o mas mais um prazer culminante.
tipo de pessoas que sobrevivem nele.
Os livros de Richard utilizam frequente- SC: Acha que este sucesso o modificou de al-
mente uma violência muito gráfica que, nas mãos guma forma? Comprou algum Ferrari ou uma
erradas, pode ser vista como uma glamorização banheira em ouro ou contratou algum mordo-
do homicídio e do caos, mas, apesar da impressio- mo?
nante frieza inicial, a pura intensidade da violência
– para não mencionar os desfechos habituais – dei- RM: Bem… não. A maior extravagância que co-
xam claro que se trata de uma actividade terrível e meti desde que recebi o dinheiro de Hollywood
frequentemente contraproducente. (isto é, para além de ter desistido do meu em-
prego) foi comprar as primeira e segunda séries

S C: Qual foi a sua primeira reacção quando


soube do negócio de Hollywood relativamente
aos direitos para o filme de Carbono Alterado?
completas dos Sopranos no mesmo dia. Ainda
conduzo o mesmo Renault 11 espanhol de 16 anos
(com volante à esquerda), porque ainda funciona
que é uma maravilha e tem um enorme valor sen-
RM: Por estranho que pareça, fiquei extraordina- timental, ainda vivemos no mesmo apartamento
riamente calmo. Tudo aconteceu lentamente, du- em Glasgow que comprámos quando eu estava a
rante um período de algumas semanas – primei- trabalhar na Universidade de Strathclyde e ainda
ro tive um executivo cinematográfico londrino a temos os mesmos períodos de férias no estrangei-
tecer elogios a um eventual filme de Carbono Al- ro (aproximadamente dois por ano). Aos 37 anos
terado, depois ouvi dizer que uma agência de Los de idade, acho que o sucesso veio um pouco tarde
Angeles é que tinha ficado com os direitos, depois demais para banheiras cheias de cocaína e carros de
disseram‑me que vários nomes importantes esta- luxo. Uma pena, realmente.
vam interessados, depois ZÁS! Mas nessa altura
eu já tinha tido tempo para me habituar à ideia e, SC: Tem grandes expectativas para uma eventual
revista BANG! [ 161 ]
versão em filme de Carbono Alterado? Já há algu- SC: Anseia reconhecimento fora dos círculos de
ma novidade sobre o filme? FC enquanto… digamos… um artista «a sério»?

RM: Nada de novo. Sei que existe algures um guião, RM: Não. Para ser totalmente sincero, a única coisa
que anda de trás para a frente entre estúdio e argu- que desejo nesse sentido é o volume de vendas que
mentista, e sei, através de uma série de fontes não os autores mais comerciais conseguem obter. Nunca
relacionadas, que existe grande entusiasmo em volta me ralei muito com o reconhecimento sob qualquer
do projecto, mas isso não significa obviamente nada tipo de forma e posso certamente viver sem a acla-
até sabermos que vão começar a filmar. Tento não mação do Mainstream Critical Thought. De qualquer
pensar demasiado nisso – melhor continuar sim- forma, esses tipos são sempre os últimos a reparar
plesmente com a minha escrita a tempo inteiro e no que é que está realmente a acontecer.
depois se verá. Quanto ao tipo de filme que pode-
rá sair de CA… bem, temos o produtor responsável SC: Ainda dentro do mesmo assunto, incomoda‑o
pelo Matrix e pelo Predador e o argumentista que que os escritores «a sério», como Margaret Atwood,
trabalhou na versão mais recente do Rollerball. Eu escrevam flagrantes romances de FC e neguem o
diria que são muito boas credenciais para qualquer género como base? Refiro‑me a uma afirmação
potencial filme de FC. feita por ela numa New Scientist recente:

SC: Acha que as anteriores traduções de livros de MA: Oryx & Crake não é ficção científica. É um facto
FC para cinema foram bem sucedidas? dentro da ficção. A ficção científica é quando temos fo-
guetões e substâncias químicas. A ficção especulativa
RM: Bem… «bem‑sucedido» aqui é um conceito é quando temos todos os materiais para realmente a
um bocado elástico. Quero dizer, o Bladerunner, o fazermos… Eu não gosto de ficção científica à excep-
meu filme de FC favorito, continua a ser o ponto de ção da ficção científica dos anos 30, o género monstro
referência para qualquer outra coisa no género em bug‑eyed no seu esplendor. (revista New Scientist)
termos de qualidade, mas é questionável se se trata Enquanto escritor de ficção científica, o que
de uma boa «tradução» do romance inicial de Dick acha disto (se é que acha alguma coisa)?
(embora conste que ele viu o guião antes de morrer
e que gostou). De modo idêntico, o Starship Troopers RM: Sim, eu li o artigo. Acho que é muito triste que
de Paul Verhoeven é um filme brilhante, mas pode- uma escritora respeitada e inteligente como Atwood
mos estar certos de que o velho Robert A. Heinlein faça gala em exibir (ou possivelmente fingir) a sua
está às voltas no túmulo por causa dessa tradução ignorância em relação à FC como se fosse algo dig-
particular. Como sempre, o que se pode fazer no no de orgulho. Afinal, o Handmaid’s Tale ganhou
cinema e o que se pode fazer num livro são coisas o prémio Clarke e ela não pode ignorar esse facto
radicalmente diferentes, por isso não é provável que nem o contexto em que o romance o ganhou. Tal-
os produtos finais sejam muito parecidos. Não se vez seja receio de ser denegrida pela comunidade de
consegue condensar com sucesso um romance de críticos, talvez seja uma fobia profunda ao Star Trek.
400 páginas num filme de duas horas (ou, se se con- É interessante que ela decida delirar com a FC dos
segue, é porque à partida o romance não era grande anos 30, talvez porque ache que isso já foi há muito
coisa) – o que temos de esperar é que a essência do tempo para mais alguém ter lido e, por conseguinte,
livro sobreviva. Depois de ver o novo Rollerball es- seja suficientemente esotérica para ser exclusiva. No
tou bastante satisfeito por John Pogue, o argumen- mundo literário mais comercial existe uma tendên-
tista que ficou responsável pelo CA, ter um razoável cia clara para este tipo de exclusão. Qualquer coisa
sentido da essência que procuro. Por isso… vivemos acessível tem tendência para ser severamente punida
em esperança. sem demora porque elimina a necessidade da inter-
revista BANG! [ 162 ]
pretação crítica e, por conseguinte, a chance dos crí- assim como eu não esperaria que os meus leito-
ticos afirmarem uma superioridade de sofisticação res levassem a sério homenzinhos verdes, também
sobre o resto do mundo. E eu acho, infelizmente, que não lhes podia pedir que acreditassem numa guer-
ela está a fazer‑se para esse grupo particular. Quan- ra travada entre o Bem e o Mal. Temos de criar algo
to à afirmação «Oryx & Crake não é ficção científi- mais convincente que isso. E, tendo eu as tendên-
ca», bem, vejamos: a acção decorre no futuro, lida cias políticas que tenho, foi fácil projectar os vários
com biotecnologia avançada e centra‑se em volta de interesses empresariais/políticos existentes por de-
uma nova raça de seres geneticamente manipulados. trás da luta. Depois, no que toca à violência, tentei
Desculpa, Maggie… mas vais começar a ser mais co- apenas torná‑la o mais realista possível e resultou
medida, ou quê? bastante bem. A violência real é horrível, por isso
a ficcional também precisa de ser. No que diz res-
SC: A actual «Guerra ao Terrorismo»: alguma opi- peito à questão americana, não tenho a certeza que
nião? não estejamos a ser muito simplistas – é verdade
que a FC no outro lado do Atlântico tem por ve-
RM: Credo, Scooby! Vamos fugir? A sério, eu podia zes um tipo de abordagem muito mais optimista,
falar pela Grã‑Bretanha nessa matéria, mas, para ser do tipo os‑mais‑velhos‑estão‑aqui‑e‑está‑tudo‑bem
franco, isso já foi tão convincentemente comentado (ou vai ficar bem) com‑o‑mundo, mas isso é deixar
por tantos outros escritores (Julian Barnes, John Le de fora grandes talentos norte‑americanos como Joe
Carre, Arundhati Roy, e por aí fora) que seria bastan- Haldemann e toda a malta do cyberpunk (Gibson,
te supérfluo. Basta dizer que me sinto nauseado com Sterling, Stephenson, etc…).
a duplicidade moral dos nossos políticos e com a
sua incapacidade (ou talvez apenas má vontade) em SC: Leu alguma FC de Kim Stanley Robinson,
abordar as verdadeiras causas do terrorismo. Para especialmente a série «Marte», que me parece ser
ser muito directo, o Bin Laden é culpa deles e eles um exemplo mais optimista para o nosso futuro,
deviam tratar convenientemente do problema e não em contraposição aos seus romances mais pessi-
tentar vender‑nos contos de fadas sobre o assunto. mistas mas «pelo‑menos‑ainda‑aqui‑estamos».
O seu próximo livro, Market Forces, parece‑me
SC: Faz referência a John Pilger no início de Broken ser mais do mesmo (de todo uma coisa má!) mas
Angels, e a violência nos seus livros tem uma mo- alguma vez sentiu a necessidade de escrever um
ralidade muito clara, especialmente comparada exemplo idêntico de quão boas poderiam ser as
com muita da FC mais militarista (ou, atrevo‑me coisas em vez um severo alerta de quão más po-
a dizer, americana); vê‑se a escrever deliberada- dem vir a ser?
mente contra essa tradição heróica e beligerante
da FC imperialista? RM: Não, nunca li KSR – para ser sincero, não gosto
muito de séries longas, elenco de milhares, seguindo
RM: Sim, Pilger é um pouco um herói para mim. É gerações e por aí fora, o que me parece ser a espe-
um homem que levou um tipo de vida guiada pela cialidade dele. Não que haja alguma coisa de errado
moral e socialmente construtiva que eu poderia ter com isso; de facto, quando se pinta numa tela tão
ambicionado se tivesse ganho juízo mais cedo. É vasta, não se tem realmente muita escolha. Mas eu
bom saber que há por aí gente como ele. Quanto a estou demasiado interessado em entrar nas cabeças
Broken Angels, eu estava a escrever sobre guerra, e dos personagens individuais para estar disposto a
qualquer escritor inteligente nessa matéria vai ver deixá‑los ir com essa facilidade. A minha impressão
que o ângulo belicoso tem credibilidade zero. Tan- superficial da série Marte é de que o único persona-
to ao nível cultural como ao nível do universo de gem central verdadeiro dos livros é o próprio Planeta
leitores, acho que já ultrapassámos isso. Por isso, Vermelho, e isso é demasiado grande para mim.
revista BANG! [ 163 ]
Para mim, a ideia de escrever um melhor almas mais bondosas entre nós parecem mais incli-
(ou bom) futuro não faria qualquer sentido. Quando nadas em seguir a treta da New Age do que em en-
olhamos para a História, não vejo qualquer evidên- frentar construtivamente os factos. Kurt Vonnegut
cia da humanidade tirar o melhor partido das coisas propôs certa vez, no livro Cat’s Cradle, que devíamos
e acho que é uma aposta bastante segura que se tra- deixar uma mensagem para eventuais extraterrestres
ta de uma tendência contínua. Num certo sentido, exploradores que pudessem chegar à Terra depois de
o Protectorado de Kovacs é exactamente isso. Não é nos termos extinguido através da destruição do meio
um caso de pessimismo – é apenas uma extrapola- ambiente. Esculpida na parede do Grand Canyon, a
ção das actuais tendências humanas. E é por isso (diz mensagem seria: «Podíamos Tê‑la Salvo, Mas Éra-
ele modestamente) que me parece que soa a reali- mos Demasiado Reles». Eu acrescentaria a frase «E
dade. Até os romances Cultura de Banks não fogem Era Demasiado Complicado».
a esta necessidade – a Cultura só funciona porque Contra essa perspectiva bastante desespe-
máquinas superpoderosas e (na sua maioria) altru- rante, eu tento concentrar‑me na velocidade com que
ístas impõem um paraíso hedonístico, e mesmo aí conseguimos progredir em questões de complexida-
sempre existiu uma Circunstância Especial. Se nos de que demonstrámos no último século e pensar que
deparamos com este futuro do conselho dos mais afinal ainda tenhamos alguma hipótese. De repeti-
velhos em que toda a gente é sábia e feliz e realizada das guerras mundiais até às Nações Unidas e uma
(não que eu esteja a dizer que KSR faz isto, porque economia de mercado globalmente interdependente
não sei), tudo vai soar terrivelmente falso em ter- em menos de um século – isso deve augurar alguma
mos humanos. Por isso teríamos de escrever sobre coisa de positivo, por muito desumano que o pro-
não‑humanos. E, vá por mim, já tenho muito traba- duto final ainda possa ser. As nossas comunicações
lho a lidar com personagens humanas. Lamento. e tecnologia de transporte tornam cada vez mais
difícil as velhas tendências simiescas de violência e
SC: Tanto Carbono Alterado como Broken Angels opressão ocorrerem sem contestação e existe pelo
são bastante pessimistas sobre o nosso futuro e a menos um conceito geral de genuína responsabili-
humanidade em geral – isto reflecte a sua visão do dade democrática. Mas também temos a nação mais
mundo? poderosa do mundo que se recusa terminantemente
a assinar ou a aceitar a jurisdição de qualquer corpo
RM: Sim, acho que sim. Enquanto espécie, somos do de governo ou lei supranacional (e o Reino Unido a
tipo sobrevivente – vencedores evolutivos, o que, por latir das linhas laterais como o pit bull do rufía do
definição, nos torna bastante desagradáveis. E agora bairro), um domínio corporativo global sobre os
que ficámos sem espaço onde sermos desagradáveis, media e um vasto fastio e desinteresse pelo processo
temos de aprender a ter uma nova abordagem em democrático por parte das pessoas que mais têm a
relação uns aos outros e ao nosso meio envolvente, perder se ele desaparecer. O optimismo é algo muito
o que é difícil de fazer rapidamente. Por isso temos difícil de manter!
alguns séculos de pensamento humanista coerente
contra um milhão de anos de evoluída tendência SC: Acha que alguma vez conseguiremos transfor-
simiana assassina. Ninguém vai apostar muito no mar o espaço num empreendimento sustentável e
humanismo, pois não? Pior ainda, face ao nosso co- continuado?
nhecimento recente do quão complexo e difícil é re-
almente o universo, a reacção da maioria das pessoas RM: Ah, sim. Se me está a falar de sair da Terra para
parece ser recuar para modos de operação simplistas outros planetas, sem dúvida. Não há mais nenhum
e irracionais. A religião fundamentalista está por toda sítio para onde ir, pois não? E, mais cedo ou mais
a parte, uma espécie de ética de «orgulho‑em‑ser‑ig- tarde, se entretanto não nos exterminarmos, vamos
norante» prevalece no mundo desenvolvido, e até as ter de fugir do próximo asteróide invasor, do próxi-
revista BANG! [ 164 ]
mo maxi‑evento vulcânico, da reversão polar, etc. do o qual os gastos militares estariam indexados aos
O sucesso evolutivo que gira em volta destes acon- gastos na Saúde, Serviço de Emergência e Educação,
tecimentos vai exigir uma mobilidade, no mínimo, em proporções sensatas. Se nos podemos dar ao luxo
à escala interplanetária. Ou fugimos ou morremos, de travar guerras constantes no Médio Oriente, po-
e até agora temos provado ser bastante tenazes face demos muito bem pagar adequadamente aos nossos
às ameaças ambientais externas. Não vejo motivos bombeiros, enfermeiros e professores, construir es-
para isso se alterar – o problema é o que se passa cá colas e hospitais decentes e mandar os nossos filhos
dentro. para a universidade sem os castrar com décadas de
dívidas.
SC: Acha que se daria bem com Takeshi Kovacs se
se conhecessem? Obviamente não ia querer irritar SC: Acredita na vida após a morte? Acredita na re-
o homem, mas acha que ia gostar dele e vice‑ver- encarnação?
sa?
RM: Não. Bem… é uma resposta pouco profunda,
RM: Bem, o sujeito deve‑me a vida, por isso ia ter não é? Eu sou o que se poderia chamar um ateu fun-
de se comportar. Partindo do princípio que nos em- cional, mas um agnóstico teórico. Claro que não te-
bebedávamos o suficiente para nos abrirmos um nho a certeza do que poderá existir por aí, por isso,
com o outro, desconfio que ele acharia que eu era em teoria, poderá existir um deus e algum tipo de
um diletante estúpido mimado e eu acharia que ele continuação existencial. Mas, ao mesmo tempo, sei
era um psicopata perigosamente instável. Mas isso muito bem que nenhuma da treta que a religião hu-
não evitaria que viéssemos a gostar um do outro. Por mana inventou é digna de qualquer tipo de conside-
estranho que pareça, temos o mesmo senso de hu- ração séria, por isso, funcionalmente…
mor e, a um nível teórico, ideias semelhantes sobre o
poder e a política. Também me parece (e já constatei SC: Sente‑se inquieto com a ideia da eventual
pessoalmente) que existe uma atracção curiosa entre morte do universo?
pessoas emocionalmente estáveis e instáveis – pare-
ce que, até certo ponto, precisam umas das outras. RM: Bem, já não é provável que eu ande por cá, por
Por isso, sim, talvez nos déssemos bem. Eu sou uma isso tenho de admitir que a minha preocupação é
pessoa bastante estável. limitada. Contudo, Bertrand Russell ficou bastan-
te perturbado com o facto. Ele achava que o facto
SC: Um amigo pergunta: «Embora eu goste de ter de o universo ter de acabar tornava completamente
o livro (Carbono Alterado), será um crime que ain- inúteis todos os esforços humanos, ou, pelo menos,
da não o tenha lido muito embora mo tenha sido tornava difícil preocupar‑se com a humanidade
oferecido de presente?» enquanto projecto de vida. Não li o suficiente dele
para saber se acabou por resolver essa crise do des-
RM: De todo, desde que alguém o tenha pago. De tino humanístico, mas acho que é bastante remoto,
facto, esse amigo devia conseguir que lhe ofereces- mesmo para um filósofo. Quando lá chegarmos (se
sem já o Broken Angels (edição de capa dura, de pre- lá chegarmos) estou convencido que teremos a tec-
ferência). E também não há necessidade de ler esse nologia para lidar com o problema. Somos do tipo
se ele não quiser. sobrevivente, não se esqueça.
SC: Que lei Britânica estabeleceria se tivesse poder SC: Quando é que dançou pela última vez?
para isso?
RM: Numa festa carnavalesca brasileira de caridade,
RM: Algum tipo de sistema de percentagem obriga- em Fevereiro. A 14 de Fevereiro, para ser mais pre-
tória em relação às despesas governamentais, segun- ciso.
revista BANG! [ 165 ]
SC: O que é que mais o irrita? biente dos outros dois livros. Esperem deparar‑se
com a elite governante do Mundo de Harlan, os
RM: A intolerância. Millsport yakuza, seitas religiosas lunáticas, siste-
mas automatizados de armas que enlouqueceram
SC: Quem admira? e as equipas de mercenários fora do activo cujo
objectivo é desligá‑las, surfistas revolucionários,
RM: John Pilger (supracitado) e o meu pai. Arun- Quellist cadres e sérios problemas de crise de
dhati Roy. Todos os que trabalham para a Am- identidade para Takeshi. Agora só tenho de dar
nistia Internacional. Pessoas com princípios que uma certa ordem a isto tudo.
se empenham em aplicá‑los para benefício dos
outros. SC: Agora que não precisa mesmo de traba-
lhar, trabalha?
SC: Que ideias ou tipo de ideias está a magicar
para o próximo livro? RM: Neste momento ainda estou a gozar a no-
vidade – só me demiti do emprego há cerca de
RM: O próximo livro, Market Forces, está pron- oito meses. Às vezes ainda sinto falta de dar aulas,
to. É um afastamento em relação aos outros dois mas acho que não o suficiente para querer regres-
– vou dar férias a Kovacs. Market Forces ocorre sar. Foi uma carreira de catorze anos e, para ser
pouco mais do que daqui a uns cinquenta anos e franco, acho que quando saí já tinha dado tudo
passa‑se no contexto do mundo financeiro inter- o que podia dar. Este Verão vou dar formação a
nacional. Os pontos relevantes são o facto de se- professores como uma espécie de adeus final. De-
rem as instituições financeiras corporativas quem pois acho que vou olhar em redor e ver que tipo
governa agora o mundo, até ao controlo total mi- de trabalho de voluntariado/caridade posso fazer.
litar e político. A CIA foi privatizada, grandes Talvez alguma coisa para a Amnistia Internacio-
unidades políticas como a OPEC e a China fo- nal – gostava de sentir que finalmente vou dar
ram balkanised e a alteração de regime é decidi- alguma coisa, porque já tive certamente bastante
da com base nos possíveis benefícios comerciais. em termos de sorte e apoio ao longo dos anos.
É um mundo amoral e que necessita de agentes
amorais, por isso as pessoas que trabalham na SC: O que é que tem hoje no leitor de CD? Ouve
área são assassinos frios que resolvem questões música enquanto escreve?
de negócio e promoções travando duelos nas ruas
que estão agora desertas porque uma severa legis- RM: Hum… espere, vejamos. Ani diFranco – Lit-
lação ambiental fez com que apenas os mais ricos tle Plastic Castle, Sisters of Mercy – Floodland e
possam ter carro. Ao mesmo tempo, estas pessoas um grupo espanhol espantoso de hip‑hop/fla-
são seres humanos e por isso podemos ver as suas menco chamado Ojos de Bruja. A minha colecção
vidas do lado de dentro e compreender algumas de CD é uma das poucas obsessões duradouras e
das suas motivações. Imaginem Os Sopranos na eu oiço quase de tudo. Tenho um pouco de tudo,
cidade de Londres com um pouco de Mad Max desde Pavarotti até Cypress Hill e, sim, escrevo
e Rollerball. sempre a ouvir música. Não me tinha apercebi-
Depois disto vou voltar a Takeshi e ao do do porquê até há alguns meses numa conversa
Protectorado. O terceiro romance de Kovacs com James Lovegrove e Adam Roberts eles me
passa‑se no Mundo de Harlan, o que nos dá a dizerem que faziam o mesmo para diminuírem
oportunidade de ter uma ideia das influências os seus filtros afectivos e esquecerem o que esta-
que transformaram Takeshi naquilo que ele é, vam realmente a fazer. E é exactamente isso – a
e de complementar alguns pormenores do am- música consegue alhear‑nos do que estamos a fa-
revista BANG! [ 166 ]
zer, desinibe‑nos e permite‑nos perdermo‑nos na E, para o resolver, Kovacs terá de destruir alguns
escrita. Comigo funciona! inimigos do passado, resistir às perseguições de
metade dos senhores do crime, suportar as in-
vestidas da sedutora mulher do multimilionário,
SC: «Hip‑hop flamenco»??? confiar numa IA que se projecta na forma de Jimi
Hendrix e lidar com a atracção que sente por Kris-
RM: Sim, a sério. É difícil explicar. Imagine a gui- tin Ortega, a mulher que amava o corpo onde ele
agora se encontra.
tarra flamenca normal com montes de turntable Num mundo onde a tecnologia já oferece o que a
scratch e vozes que algumas vezes são rap e que religião apenas promete, onde os interrogatórios
de resto são flamenco tradicional. É muito fixe, e em realidade virtual significam que se pode ser
acho que é um bocado difícil de encontrar neste torturado até à morte e depois recomeçar de novo
e onde existe um mercado negro de corpos, Kovacs
país – a minha mulher é espanhola e eu arranjei acaba de descobrir que a última bala que lhe desfez
isto em Madrid. Talvez haja na Amazon ou numa o peito é apenas o começo dos seus problemas…
boa secção de Música do Mundo de uma Virgin
Megastore. De resto, tentem na FNAC on‑line.
«Esta união coerente entre o cyberpunk puro e uma
BANG! história policial bem estruturada é um espantoso
romance de estreia.»
Não perca, — Londontimes

na página a seguir, «Uma obra espantosa… uma maravilhosa ideia


de fc… carbono alterado começa a correr e continua
crítica extensa por sempre a acelerar. Intrigante e inventiva em
proporções idênticas, recusa-se a abrandar até
João Seixas à última página.»
— Peter hamilton

«Um emocionante híbrido de fc e crime, com um


enredo intrincado (mas sempre plausível), uma
poderosa atmosfera noir e suficiente acção explosiva
para satisfazer o fã mais exigente de romances
policiais.»
Carbono Alterado — FC Site
Richard Morgan
«Uma aventura entusiasmante e dinâmica…
O Denso e movimentado XXXX é uma mistura o que faz de carbono alterado um vencedor é
intrigante da imaginação de William Gibson, da a qualidade da prosa de morgan. Para cada segmento
violência do cinema japonês, da envolvência do de acção à john woo há um segmento espantoso de
Roman Noir e do charme de Bladerunner. descrição reflexiva, um ambiente envolvente
e toneladas de excelentes boas saídas.»
No século XXV é difícil morrer para sempre. — Sfx magazine
Os humanos têm um stack cortical implantado nos
corpos onde a consciência é armazenada, poden- «Brilhante. Impossível de largar. E montes de
do ser feito um download para um novo corpo se clichés, só que neste caso todos verdadeiros. Adorei.»
necessário. E enquanto o Vaticano tenta banir essa — Adam roberts
actividade para os católicos, o secular multimilio-
nário Laurens Bancroft contrata Takeshi Kovacs «Carbono negro noir com acção e sagacidade,
(antigo agente especial das Nações Unidas) para um enredo consistente e uma história de fundo
descobrir quem assassinou o seu último corpo. que deixa o leitor a desejar uma sequela…»
A polícia diz que foi suicídio, mas Bancroft sabe que — Ken Macleod
nunca se mataria. A consciência de Kovacs, cujo
último corpo acabara de ter uma morte violenta
a muitos anos de luz da Terra, é inserida no corpo Mais informações em
de um polícia para investigar este estranho caso. www.saidadeemergencia.com
revista BANG! [ 167 ]
5 Estrelas
[crítica]

João Seixas recomenda “Carbono Alterado”

«Morgan decepa irrevogavelmente o cordão


umbilical que prende o eu à carne, solta-o para
viajar através do Tempo e do Espaço, prometendo-
nos a vida eterna, sem deus e sem religião.»

H á livros que têm cheiro. Não é o cheiro do pa-


pel, nem da cola, nem da tinta que cobre a su-
perfície branca com as pegadas hesitantes de ideias
incertas. Não é o fedor intolerável das planícies de
celulose onde morre a originalidade. Nem é o cheiro
a bolor que se vai adensando à medida que penetra-
mos, exaustos, passo após passo, no deserto árido
de algumas sagas intermináveis. Falo do cheiro que
fica do livro depois de pormos de parte a narrativa, motores desmontados de ideias outrora fulgurantes,
as contorções estruturais, as personagens batidas, os e que com pintura nova, motor melhorado e acele-
floreados da linguagem ou a gramática torturada: e, ração impetuosa, rasgam caminho pelo cemitério de
pondo tudo isso de parte, é o cheiro da Verdade que ideias e erguem-se como marcos – não como lápides
se exala ao fecharmos este Carbono Alterado. Não – sobre a terra revolta. São obras de síntese, que agre-
me refiro, é claro, à verdade absoluta, à verdade da gam em si a essência de um momento histórico da
vida, que enquanto abstracções são desprovidas de evolução do género; são obras que anunciam a tran-
sentido, nem à verdade científica, que não se exige sição, o renascer, que fazem a súmula do que ficou
de uma obra de ficção; refiro-me àquela verdade que para trás e mostram o que pode ainda fazer-se com o
é o sangue da literatura, que é o alimento da obra, que se pensava já ultrapassado. E, tal como o Hype-
a verdade da convicção, a verdade que fica quando rion Cantos (1989-1990) de Simmons e o Book of
tudo o mais já soçobrou. the New Sun (1980-1983) de Wolfe formam o desti-
Poder-me-ão dizer que Carbono Alterado não lar da história da ficção científica, e enquanto tal são
é um grande livro de ficção científica, e que nunca a própria ficção científica, este Carbono Alterado é a
vai figurar ao lado de clássicos como Dune (1965), essência destilada da FC do virar do milénio. Quiçá
Foundation (1941) ou Neuromancer (1984). Que mesmo, das preocupações culturais do milénio, in-
nem sequer é um livro muito bem escrito, como são formado de tal forma pela guerra ao terrorismo, a
bem escritos os livros de Simmons ou Wolfe. Mas é violência nos media, a corrupção política, a ignorân-
uma daquelas raras obras que surgem de tempos a cia científica e o atavismo religioso, e as respostas re-
tempos, emergindo da memória colectiva do género, queridas do indivíduo que assiste, inútil, ao desabar
construídas de fragmentos de tropos já explorados, do estado social, que se poderia dizer pura encarna-
das carcaças vazias de histórias que já passaram, dos ção literária do zeitgeist. E – foi dito acima – como
revista BANG! [ 168 ]
livro que é, preocupado com a verdade, assume a no corpo de um humano condenado a cumprir
forma clássica do policial negro para reclamar do- pena numa pilha de memória – suscita problemas
mínio sobre o Future Noir, sub-género que podemos legais e abre oportunidades a crimes engenhosos
remontar a Algys Budris e Alfred Bester. (duplo imangamento, mergulho em transmissões
É provável que agora que Carbono Alterado dá por needlecast, “roubando” fragmentos da memória
finalmente às costas lusitanas, seis anos após a sua de alguém, uso de ambientes RV onde o sujeito pode
publicação original e já com duas sequelas no merca- ser torturado até à morte, uma e outra vez, e uma
do (Broken Angels e Woken Furies, cuja publicação, miríade de outras possibilidades afloradas com a ca-
espero, os leitores saberão exigir da Saída de Emer- sualidade que serve para dar corpo ao cenário); e o
gência) o motor da narrativa e o novum da obra seja crime que Kovaks é chamado a investigar apenas é
já familiar. Pelo menos, tão familiar quanto a icóni- possível por causa dessa nova tecnologia. A própria
ca personagem que Morgan criou como reacção ao resolução do mistério, encontra-se intimamente li-
zeitgeist de que falávamos supra: Takeshi Kovacs, ex- gada às premissas científico ficcionais, tornando a
Enviado do Protectorado da UN, arrastado até Bay história numa narrativa que apenas pode existir de
City desde a sua terra natal (o deliciosamente cha- forma coerente enquanto ficção científica.
mado Mundo de Harlan – Ellison?) para investigar o Morgan escreve o seu mundo pela voz do pro-
“suicídio” de um milionário virtualmente imortal. tagonista, uma voz com ecos de Lawrence Block, Ro-
As personagens, pouco mais do que estereó- bert Crais, Raymond Chandler e Dashiel Hammett,
tipos, os poderosos corruptos (Kawahara) ou redi- mas o mundo da Terra no século XXVII abre-se aos
midos (Bancroft), os Matusas de longa idade que se nossos olhos como se escrito por Dick pedrado de
portam como crianças (Miriam), as vamps miste- anfetaminas, pródigo em pequenos detalhes que se
riosas (Trepp) e o anti-herói torturado pela infância fixam na mente do leitor e sugerem constelações de
difícil e delinquente, pediu-as Morgan emprestadas possibilidades de histórias dentro da história, ideias
ao leque de arquétipos do policial. Mas o Universo que orbitam em torno do sol narrativo como novas à
ainda prenhe de potencialidades, de mundos coloni- espera de deflagrarem.
zados, baleias inteligentes, Marcianos desaparecidos Mas eu disse-vos que o livro, despido das per-
e orbitais ameaçadores de origem desconhecida, esse sonagens, da narrativa e da linguagem cheirava ain-
é exclusivo da FC. E aí reside o grande mérito deste da a verdade, como uma arma desmontada cheira
primeiro romance de Morgan – e nunca é demais ainda a óleo de linhaça e sugestões de cordite. Cheira
referir tal facto num mercado editorial que parece àquela verdade que nós intuímos quando falamos
fascinado pelos autores imberbes de fantasias pré- da alma… e do corpo… da dualidade filosófica que
pubescentes: o urdir exímio de um mundo no outro, compõe o indivíduo, aquela puxando para as estre-
construindo uma arquitectura em perfeito equilíbrio las, aquele arrastando para as profundezas da Terra.
entre as exigências genéricas; o mistério central do Morgan decepa irrevogavelmente o cordão umbili-
livro – a essência do policial – não seria possível sem cal que prende o eu à carne, solta-o para viajar atra-
o novum cientifico-ficcional. Morgan consegue, de vés do Tempo e do Espaço, prometendo-nos a vida
forma aparentemente fácil (pelo menos para quem eterna, sem deus e sem religião. Afinal, a religião só
ignorar que o livro foi concluído em 1997, rejeitado existe porque existe a morte. A religião é necrófila…
por várias editoras, até o autor proceder a uma re- a religião é necrófaga.
escrita parcial, que levou à sua aceitação por parte No universo do Protectorado, só os românticos
de Carolyn Whitaker, editora da Gollancz) obter o perguntam ainda Who wants to live forever? Afinal, é
santo Graal da fusão dos géneros. O novum tecno- tão fácil prescindir daquilo que não podemos ter.
lógico de Morgan – a possibilidade de se proceder Eu, por mim, quero um lugar na primeira fila,
à digitalização da personalidade humana, que pode para espreitar o fim do universo. De preferência em
depois ser imangada quer num corpo sintético, quer companhia de Takeshi Kovacs. BANG!
revista BANG! [ 169 ]
Muito mais
[artigo]

do que Murmúrios
Rui Ramos
Murmúrios das Profundezas é uma BD, edição de autor,
da autoria de um grupo de jovens que nem se conheciam
quando começaram a trabalhar. O tema: Lovecraft.

T udo começou com um susto. Não um susto


qualquer de quem é surpreendido por um cão
ou carro que nos vai atropelar. Não. Quando digo
esse tema. O teu conto final tem que ser sobre isso!
Não tens outra hipótese.”
“Bestial!”, pensei satisfeito.
um susto, quero dizer, o Susto; daqueles que nos ge- E assim foi, o meu susto ganhou uma dimen-
lam o sangue e nos eriçam o cabeço da nuca. são maior do que poderia ter imaginado. As sensa-
Depois de ter experimentado essa terrível ções que me assaltaram naquela noite de lua cheia,
sensação, a expressão pôr os cabelos em pé ganhou alimentaram as personagens que foram surgindo da
novos contornos. Nunca pensei que pudesse aconte- minha imaginação e por fim, o conto estava pronto.
cer mesmo! Mas acontece! Foi lido e comentado, criticado, avaliado e
Passado o susto daquela noite de verão que finalmente publicado.
tinha tudo para ser banal, a vida continuou sem me Durante todo este longo processo, desde as
preocupar mais com o assunto, até que um dia, num primeiras linhas, até à fase de editar o texto, o meu
exercício de escrita criativa, fui forçado a recordar professor aconselhou-me vários livros, vários auto-
tudo de novo. res, mas de todos os nomes apenas fixei um: Love-
“Descreve o maior susto que apanhaste na craft.
vida, ou episódio sobrenatural que vivenciaste”, or- “Nunca leste?”
denava o exercício e como que impulsionados como “Lovecraft? O que é isso?” Na minha igno-
uma mola, os eventos daquela noite projectaram-se rância era o nome de uma banda de metaleiros qual-
de novo à minha frente. quer.
A caneta na minha mão ganhou vida e antes “Tem tudo a ver contigo.”, respondeu-me o
que tivesse tempo para pensar, já o acontecimento se professor cheio de entusiasmo.
transformara em tinta escrita sobre a folha. O episó- “Pois sim, vou pensar no assunto.”
dio foi narrado para todos na aula, roubando sorri- O curso de escrita criativa chegou ao fim. O
sos nervosos a alguns, e olhares de dúvida e fascínio conto foi compilado num livro ao lado dos contos
a outros. dos meus colegas e assim ficou perdido e abandona-
“Será possível?” “É um brincalhão!”, lia nos do nas prateleiras de livrarias pouco visitadas.
seus olhares. Tudo parecia indicar que iria ficar por aqui,
Contudo, o professor, homem de grande sen- mas aquele nome não me saía da cabeça.
sibilidade para os fenómenos do oculto, disse-me: “Lovecraft. Tem tudo a ver comigo? Hmm,
“Desculpa, mas agora terás que desenvolver dá que pensar.”
revista BANG! [ 170 ]
Já não me lembro ao certo quando foi mas A nossa motivação estava a esfumar-se, gradual-
algures no princípio do ano de 2007 peguei num mente, contudo, em Janeiro, com o novo ano, deu-se
exemplar de contos do misterioso autor e fiquei de a grande viragem. A vontade de criar e a perseve-
imediato agarrado à leitura! rança mantiveram o grupo unido e levaram a me-
Cada frase despertava a minha imaginação lhor. Em Fevereiro, começaram a surgir as primeiras
galopante para um mundo infinito de possibilidades. pranchas dos restantes contos.
Quantas histórias ganharam forma ao ler Lovecraft? Impusemos como meta a publicação do li-
Quantas vezes não tive de voltar a ler parágrafos in- vro em Maio, aquando do Festival de BD de Beja.
teiros, pois já não estava a prestar atenção à história; Estávamos a trabalhar como furiosos à frente dos
a minha mente estava ocupada a criar situações no- computadores, pedimos reforços ao Diogo Carva-
vas, inspiradas naquelas palavras escritas há 80 anos lho, o oitavo passageiro, indicado pelo phermad, que
atrás! Foi uma experiência fenomenal! se juntou às fileiras na recta final, mas o atraso que
Depois de ter devorado o primeiro volume levávamos não nos permitiu cumprir o nosso objec-
não descansei enquanto não arranjei o segundo. Vi- tivo e falhamos.
rei o Porto do avesso para encontrar o último exem- Contudo, o que deveria ter sido a nossa es-
plar disponível da Saída de Emergência. Li-o como treia, transformou-se numa verdadeira campanha
quem inspira antes de mergulhar e nunca mais dei- de marketing com exibição de um trailer que deixou
xei sair o ar. toda gente com água na boca. A boa recepção com
A imaginação febril necessitava de um esca- que a audiência nos brindou deu-nos ainda mais
pe. Era preciso soltar as histórias que tinham vonta- alento para terminar os Murmúrios.
de de vir cá para fora. Impunha-se tomar medidas. O livro ainda não estava pronto e já tínha-
Foi então que em Maio, no festival de Banda mos convites para exposições no Porto e Almada e
Desenhada de Beja, em conversa animada com Pau- para participar em novos projectos de BD. A nossa
lo Monteiro, surgiu a ideia de fazer banda desenhada motivação estava ao rubro.
baseada no imaginário inesgotável lovecraftiano. Finalmente, após longas noitadas à frente
Acedi ao fórum da Central Comics e come- do monitor a escrever e desenhar contos, a combi-
cei a procurar por gente interessada em fazer BD. nar estratégias e a dar apoio moral aos camaradas, os
Após algumas tentativas goradas, acabei em Agosto Murmúrios das Profundezas concretizaram-se.
por reunir um grupo de talentosos amadores, oriun- Demasiado especial para ficar à espera que
dos de locais desde Braga a Faro, passando pelos uma editora decidisse o seu futuro, decidimos lan-
Açores, dispostos a explorar o lado mais negro das çar-nos na edição de autor, recorrendo aos serviços
suas almas para desenvolver as suas próprias histó- POD de uma gráfica espanhola.
rias lovecraftianas. No 26 de Julho de 2008, durante o VI Tro-
O arranque foi lento e esteve em riscos de féus do Central Comics, e após grande publicidade
não ir para a frente. Em Agosto, éramos sete (Rui dos meios de comunicação social, o público pode
Ramos, Diogo Campos, Flávio Gonçalves, Vanessa por fim ter acesso aos Murmúrios das Profundezas.
Bettencourt, Luís Belerique, Carneiro e um russo Só no primeiro dia venderam-se 100 livros. Na pri-
que fazia tatuagens). No fim de Dezembro, já tinham meira semana a primeira edição estava praticamente
desistido o Carneiro e o russo, que foram substituí- esgotada. Tivemos que reter o stock para garantir li-
dos pelo phermad (que conheci no Festival de BD vros para o evento em Almada.
da Amadora) e pelo Ricardo Reis (convidado pelo As primeiras críticas fizeram-se sentir em
Belerique para o ajudar no seu conto). Nessa altura, blogues, emails e conversas pessoais. De um modo
apenas o conto da Vanessa e do Flávio estava conclu- geral, a recepção foi bastante positiva e entusiasta.
ído. Elogiaram o nosso trabalho e esforço e encorajaram-
Tudo apontava para o fracasso do projecto. nos a realizar mais projectos.
revista BANG! [ 171 ]
Murmúrios
[banda desenhada]
Apesar da sua humildade, os Murmúrios
das Profundezas foram coroados de sucesso. O in-
vestimento foi pago, fizemos lucro e acima de tudo

das
agradamos a maioria dos leitores. Que mais poderí-
amos pedir?
Este projecto serviu-nos de rampa de lan-

Profundezas
çamento para o mundo da BD. Aprendemos a ser
artistas, argumentistas, gestores de marketing, pro-
motores, relações públicas, editores, vendedores, ne-
gociadores e muito mais.
Em suma, foi uma grande experiência para
nós que somos estreantes nestes assuntos. Apercebe- Vários artistas
mo-nos que ainda temos muito caminho pela frente
para virmos a ser os artistas que queremos ser, mas
acho que começamos com o pé certo.
Já estamos a trabalhar num novo projecto a
publicar em 2009, chama-se Voyager e o tema é to-
talmente diferente, deixamos o horror para explorar
o género ficção-científica.
Desta experiência, acima de tudo, ficou a
amizade que criamos entre elementos da equipa que
não se conheciam e entre apoiantes ao projecto que
nos deram uma grande ajuda. Nada disto teria sido
possível sem o valioso contributo de todos os inter-
venientes. Criamos um grupo unido e determinado,
que se apoiou sempre nos momentos mais difíceis.
Não posso terminar sem referir que o Mur-
múrios das Profundezas existe porque há 80 anos
atrás, um homem escreveu contos que ainda hoje
nos intrigam, fascinam e despertam a nossa imagi-
nação para a criação de novos contos, novos mun-
dos, novos… horrores.
Contudo, Lovecraft foi apenas um catalisa-
dor. Um pretexto para juntar um grupo. Na verdade,
tudo isto aconteceu porque numa bela noite estival
de lua cheia, eu apanhei um susto de morte. Mas isso
já é matéria para outro conto. BANG!
Rui Ramos natural da cidade Invicta, licenciou-se, tirou um Mestrado em Geologia na Faculdade de Ciências da
Universidade do Porto e está actualmente a terminar o Doutoramento em Geologia. Sempre com desejo de conhecer mais,
tirou ainda os cursos de escalada, teatro, workshop de teatro de marionetas, Yoga e fez um interrail pelo sul da Europa até
às paisagens exóticas da Capadócia. Inspirado pelas suas viagens e aventuras como Geólogo, Rui decidiu investir na sua
formação de contador de histórias e frequentou os cursos de BD no CIEAM em Lisboa, o curso de BD e Ilustração na
FBAP, workshop de Guionismo para BD, curso de Ilustração Infantil, curso de escrita criativa, workshop: oficina de
criação de personagens, curso de empreendedorismo na EGP. Reuniu duas equipas distintas de novos artistas
(vinte no total) e juntos estão a dar corpo a novos projectos de Banda Desenhada. Os Murmúrios das Profundezas
são apenas a primeira pedra de um edifício que está a nascer... aos poucos. BANG!
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5 Estrelas
[crítica]

Safaa Dib recomenda “Os Leões de Al-Rassan”

«Kay é um escritor notável


e sabe como criar uma narrativa
convincente, com a medida certa de
intensidade emocional e lírica.»

A História do nosso mundo tem acontecimen-


tos de sobra para intrigar escritores. Guerras,
massacres, traições, alianças e derrotas pesadas
enchem páginas de romances em que os costumes Os Leões de Al-Rassan
Guy Gavriel Kay
da época, por vezes civilizados, por vezes bárbaros,
sempre fascinantes, regressam à vida, consoante o Imagine uma Península Ibérica de fantasia, durante o
talento do autor. período sangrento e apaixonante da Reconquista, onde
Kay é um desses talentosos escritores que realidade e fantasia se entrelaçam numa história poderosa
e comovente
não só se dedica a uma descrição minuciosa de
uma época, mas também a evoca com um lirismo Inspirado na História da Península Ibérica, Os Leões de
pungente, tornando-a vívida na nossa imaginação. Al-Rassan é uma épica e comovente história sobre amor,
Os factos históricos a que Kay recorreu são sobe- lealdades divididas e aquilo que acontece aos homens e
mulheres quando crenças apaixonadas conspiram para
jamente conhecidos. A conquista árabe que se ini- refazer – ou destruir – o mundo. Lar de três culturas
ciou em 711 com a invasão mourisca comandada muito diferentes, Al-Rassan é uma terra de beleza sedu-
por Tárik ibn Ziyad, um líder berbere que viria a tora e história violenta. A paz entre Jaddites, Asharites e
dominar toda a Península nos anos seguintes, des- Kindath é precária e frágil, mas é precisamente a sombra
que separa os povos que acaba por unir três personagens
troçou a decadente monarquia visigótica reinante extraordinárias: o orgulhoso Ammar ibn Khairan – po-
na Hispânia. eta, diplomata e soldado, o corajoso Rodrigo Belmonte
Opondo-se aos habitantes cristãos da Pe- – famoso líder militar, e a bela e sensual Jehane bet Ishak
nínsula, mas longe de os oprimir, os árabes estabe- – física brilhante. Três figuras cuja vida se irá cruzar de-
vido a uma série de eventos marcantes que levam Al-Ras-
leceram um sistema tolerante que permitiu a con- san ao limiar da guerra.
vivência, por vezes pacífica, por vezes turbulenta,
entre as religiões de Cristo e Maomé. E é dessa con- “Um trabalho épico sem falhas na apresentação, de cortar a
vivência que Kay retirou a essência da história que respiração na narrativa e construção de personagens”
-The Evening Telegram
criou em Os Leões de Al-Rassan.
Numa narrativa que antecipa o choque de Saida de Emergência / 2008
civilizações que tanto tem vindo a marcar o nosso Preço: 22.94€
próprio tempo, Kay recorre à fantasia para recriar Na página da editora: 20.65€
a sua própria versão dos eventos. Os cristãos trans-
formam-se nos Jaditas, os muçulmanos tornam-se
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Asharitas e os judeus são Kindates, numa terra cha- Deixe a sua opinião em:
mada Al-Rassan. Em cada cultura uma personagem
é destacada que representa o melhor da sua nação.
bang.saidadeemergencia.com

Bang! 5
Ammar ibn Khairan, livremente inspirado
na figura do poeta e soldado árabe Ibn Ammar de
Silves, é uma figura central nas intrigas políticas
que estão prestes a mudar Al-Rassan para sempre.
Ao serviço do novo rei Asharita, ele é traído e en-
viado para o exílio onde mais tarde será recrutado
como mercenário na corte de Ragosa. Jehane bet
Ishak, uma kindate física, salva um mercador de
Setembro 2008 - Trimestral
uma sentença à morte, mas põe em risco a sua pró-
pria vida, forçando-a a fugir da ira do rei. Rodrigo
Belmonte, inspirado na lendária figura de El Cid, é
um líder militar Jadita forçado a submeter-se aos
impostos e ao domínio dos Asharitas.
Os três são unidos pelo destino e cedo for-
mam uma ligação especial de admiração, amor e
respeito mútuo. Mas os eventos postos em marcha
em Al-Rassan levam inevitavelmente ao confronto
religioso, cultural e político e nem todos terão a ca-
pacidade para sobreviver num jogo cruel onde os
vencedores podem tornar-se subitamente os ven-
cidos…
Kay é um escritor notável e sabe como criar Uma publicação Saída de Emergência.
uma narrativa convincente, com a medida certa de
Todos os direitos reservados.
intensidade emocional e lírica, suspense de cortar
a respiração, e um enorme talento para estabelecer
uma ligação profunda entre o leitor e as persona- Redacção
gens. E acredito que se superou em Ammar ibn
Av. da República, 861, Bloco D, 1º Dto.
Khairan of Aljais e Rodrigo Belmonte. Ao mesmo
tempo que Kay retrata a faceta mais cruel e vio- 275-274 Parede
lenta desses homens, tempera-a com a compaixão
e misericórdia dignas das grandes lendas que per-
Editores
tenceram às civilizações antigas.
E se para algumas culturas ouve-se o canto Luís Corte Real
do cisne, outras se insurgem e assimilam o passa-
do, num ciclo infindável de conquistas, derrotas e
Design
novas conquistas. Os Leões de Al-Rassan poderá
ser uma fantasia histórica, mas é, acima de tudo, Saída de Emergência
um épico emocionante e realista que encarna as
maiores virtudes, assim como vícios, dos povos
Copyrights
que representa. E acaba inevitavelmente por expor
também o verdadeiro sentido do termo choque de Textos e ilustrações, propriedade da editora
civilizações. BANG! e/ou dos respectivos autores
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