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Bang! 5
Índice
revista BANG! [ ]
Eu Nobel, tu Nobel,
[editorial]
Telmo Marçal
«Mas agora também já não importa. Deram‑me um bom anestésico.
Não me dói nada. E está quase a chegar a minha vez de entrar para o palco
das execuções. Estou um bocadinho descomposto, mas vou fazer os possíveis
para não parecer mal, quando me virem logo à noite nas televisões.»
o seu conto
plo que a mão treme, e que em vez de um buraco
na barriga, para aquele número clássico de tirar
os intestinos, a lâmina rompe o pulmão ou acerta
na revista
numa veia importante... Pode ficar em risco toda a
operação; o paciente safa‑se à grande sem ter tem-
po de desembuchar as vergonhas. O que aconteceu
Bang!
na minha sessão foi que o tal Senhor Director fez
questão de supervisionar tudo pessoalmente. Por
mais que eu concordasse com as alíneas dos au-
tos, dava sempre ordem para prosseguir os traba-
lhos. O raio do homem não tem sentido de humor
nenhum. Não conseguiu encaixar que algum dos
amigalhaços lhe pregou uma partida de mau gosto
e eu é que paguei as favas.
Mas agora também já não importa. De-
A revista Bang! está à procura de novas vozes
na literatura fantástica. Envie‑nos o seu con-
to (de horror, ficção‑científica, fantasia, história
ram‑me um bom anestésico. Não me dói nada. alternativa, realismo mágico, etc) e, se for escolhi-
E está quase a chegar a minha vez de entrar para do para publicação, para além da glória eterna ao
o palco das execuções. Estou um bocadinho des- imortalizar‑se nas páginas da única revista de lite-
composto, mas vou fazer os possíveis para não pa- ratura fantástica em Portugal, ainda recebe 3 livros
recer mal, quando me virem logo à noite nas tele- grátis na sua caixa de correio. São eles:
visões. BANG! • Os Ossos do Arco-Íris de David Soares;
• Sr. Bentley, o Enraba-Passarinhos de Ágata Simões;
• Fragmentos de uma Conspiração de José Lopes;
Um grande livro de horror, um grande livro de hu-
mor e um thriller bem português serão suficientes
O tipo que se esconde por trás do para tirar cá para fora o que de mais fantástico há
pseudónimo Telmo Marçal faz-se passar em si?
por um vulgar pai de família, pequeno-bur‑
guês, afável e bem comportado. Para lhe
toparmos a manha é preciso apanhá-lo pela
calada da noite, agarrado ao computador,
que é quando escrevinha as suas barbari‑
dades descabeladas e subversivas. Os que
lhe editam os devaneios também não estão
isentos de culpa. Se não existissem esses fan‑
zines, e-zines, blogues, revistas… nunca lhe
tinha dado na veneta armar-se em escritor.
Foi assim que tudo começou, em 2003, no
Hyperdrive. Seguiu-se o Dragão Quântico, o
Hyperdrivezine, o sítio Neolivros, a Scarium,
o Tecnofantasia, o Phantastes, o Somnium e
a Nova. Até participou na antologia Os contos candidatos devem ser submetidos para
“Por Universos Nunca Dantes Navegados”,
joaog@saidadeemergencia.com, tendo o email o
e agora já vai na BANG, imaginem.
(Será que não arranjavam nada melhor seguinte título “submissão de conto para revista
para publicar?) BANG! Bang!” E agora, boa inspiração! BANG!
revista BANG! [ ]
Senhor Bentley
[ficção]
e os Velhos
Ágata Ramos Simões
O Sr. Bentley, personagem tão vil quanto deliciosa, está de volta às
paginas da revista Bang! Esperemos que gostem... e que tenham vómitos.
Q Bang!
uando o Mestre repetiu esta história na
classe seguinte, para o segundo recruta-
mento de candidatos, o candidato mais novo
murmurou à parte, desiludido:
— Tantas palavras para quê? Toda a gente
sabe que o excesso de sapiência cega o enten-
Apresentação
dimento para a fatal simplicidade das coisas.
BANG! do terceiro trimestre
de 2008
contos de...
Bruce Holland Rogers
Os Melhores Contos de H. P. Lovecraft
Howard Phillips Lovecraft
“Uma obra tão importante como a de Edgar Allan Poe ou «E assim tem sido desde
Tolkien.”
-Robert Bloch
então. A qualquer noite,
com a cabeça cheia de recados,
“Lovecraft é um autor perturbante. Criador de um mundo cós-
mico de terror cuja única saída é a insanidade.” o menino morto pode bater
-Clibe Barker
a qualquer janela para lembrar
Terceiro volume da obra completa de Lovecraft. Com organi- alguém—para te lembrar a ti, quem
zação do Prof. José Manuel Lopes, da Universidade Lusófona,
Os Melhores Contos de Howard Phillips Lovecraft - Volume sabe—de um amor que sobrevive
3, traz até junto do público nacional alguns dos contos mais
emblemáticos deste escritor marcante da literatura fantástica,
à memória, de um amor que
como por exemplo Para lá das Fronteiras do Sono, A Casa não carece de nomes.»
Maldita, Os Gatos de Ulthar, e a fabulosa novela Nas Monta-
nhas da Loucura.
Publicação dia 18 de Agosto
“Não há géneros, apenas talentos” dez títulos considerados pelo jornal como sendo os
‑ Jean‑François Revel, mais interessantes de 2007. Fantástico!
Le Voleur Dans La Maison Vide Depois a Book Sense indicou‑me que The
Terror encontrava‑se em 12º lugar na lista anual de
VS Literatura Popular
Uma tertúlia sobre géneros literários
com David Soares, João Seixas
e António de Macedo
A literatura popular é a literatura pimba. Escrita por gente sem
talento, para gente sem tempo ou paciência para ler livros a sério.
É a fast-food da literatura. Com capas berrantes, personagens de papel
e enredos de telenovela. É fundamentalmente lida por rebanhos no comboio.
A literatura erudita é uma treta intimista onde se disfarça
a ausência de uma boa história com um estilo bonito e frases citáveis.
É lida por intelectualóides frustrados que gostavam de ser poetas mas
são apenas freelancers mal pagos. Ou será que não é nada disto?
Vamos ver...
David Soares: a ficção científica, o horror ou a fantasia. O primei-
Para começar, penso que seria importante deci- ro campo conforma‑se num modo que prima pela
dir uma nominação para os dois campos literários expressão de ideias em detrimento do desenvolvi-
concorrentes que vamos analisar. A língua inglesa mento e caracterização de personagens num enredo
tem expressões engraçadíssimas para eles como hi- que se espera conclusivo. Talvez uma boa forma de
ghbrow ou high literature (“literatura pedrada”), mas visualizar esta questão seja dar um passo para o lado
como dizer em português a mesma coisa? É que di- até outra área artística e observar que definições se
zer minor literature não tem o mesmo peso que dizer podem encontrar aí.
literatura menor… Bom, antes de decidirmos qual- Vamos especular sobre a música, por exem-
quer coisa a respeito destes nomes é preciso escla- plo. É fácil perceber que existem duas distinções
recer os leitores sobre aquilo que estamos a falar: a claríssimas: a música erudita e a música popular. No
high literature é toda a literatura que valoriza o modo espectro compreendido pela música popular acha-
como se conta uma história e não a história que se mos aquilo que se pode chamar de música de géne-
decide contar; essa preocupação pertence a minor li- ro, resgatando a terminologia do parágrafo anterior,
terature e nela entram todos os géneros considerados na qual se incluem — virtualmente — todos os ti-
menores pela “academia” como o romance policial, pos de música que não tenha sido compostos entre
revista BANG! [ 43 ]
os séculos XVII e XIX: o rock, o jazz, a pop, o metal, ao século XVI. Naquilo que hoje se compreende por
o pimba… Talvez a nomenclatura que melhor nos Idade Média surgiram proto‑romances em verso
sirva para iniciar o nosso esgrimir de neurónios que como Le Roman de la Rose (século XIII) e os escri-
promete deixar os leitores da BANG! de boca aberta bas conventuais mudaram o formato do registo das
e nós esgotadíssimos, mas de ego inchado, seja rou- narrativas deles: abandonaram o pergaminho en-
bar à música a colagem que a língua portuguesa não rolado (volume) e passaram a escrever em livros de
permite quando chegamos perto das determinações feitios que se mantém até hoje (códice). Isso foi vital
literárias de expressão inglesa. Por conseguinte, pro- para o desenvolvimento da Prosa porque o códice,
ponho‑vos que usemos Literatura Erudita e Litera- ao contrário do volume, permite aos autores escre-
tura Popular. Penso que são designações que farão verem mais desafogadamente, já que o método de
todo o sentido no contexto deste artigo como se irá reunir as páginas numa encadernação, mais ou me-
ler mais à frente. nos duradoura (consoante o material), é generoso.
Não só a Tragédia e a Comédia apresentavam cená-
rios e personagens fabulosas como a literatura reli-
«Nove em cada dez obras eruditas giosa compunha‑se de diversos elementos fantás-
possuem um elevado grau de apro- ticos. Por exemplo, o Cântico das Criaturas de São
Francisco de Assis (século XIII) influenciou mui-
ximação à representação do mundo tíssimo a literatura italiana que esteve na génese das
construída pelo nosso cérebro com a obras mais conhecidas do Renascimento, como as de
ajuda dos falíveis cinco sentidos.» Dante, Petrarca e Boccaccio — que, por mérito pró-
prio, são obras de literatura fantástica, sublinhe‑se.
Para ser sincero, não encontro na literatura clássica
Usando a nómina que este artigo inaugura, nenhum desdém pela fantasia ou pelos elementos
acredito que o conceito de Literatura Erudita, por fantásticos, mas sim um preconceito contra aquilo
oposição à Literatura Popular, nasce com o romance que, já na altura, se designava por cultura popular.
moderno de expressão pessoal; logo vitrina da vida Essa cultura (muitas vezes até contra‑cultura como a
interior da personagem principal. Isso acontece em trovadoresca e a provençal) cifrava‑se pela inclusão
1678 com a publicação do livro La Princesse de Clèves do humor grotesco, da sátira, e não salientava o ca-
da condessa Madame de La Fayette; título que segue rácter transcendental atribuído pela Tragédia (com
o caminho deixado em aberto por outros escritores excepção das aventuras de Quixote não me recordo
franceses como La Rochefoucauld (1613‑1680) que de outra grande obra literária de comédia a ser olha-
evidenciava nas suas máximas um aperfeiçoamento da com respeito).
dos modelos mentais dos protagonistas colocando A partir do século XVII já é possível encon-
os vícios deles acima das virtudes. trar algum preconceito pelos elementos fantásticos,
Desde o surgimento do teatro grego, no século principalmente porque passaram a ser considera-
VI a. C., que o grande género literário (porque as pe- dos mecanismos de fuga a uma realidade social em
ças eram escritas) sempre foi a Tragédia, área na qual aceleração. É preciso não nos esquecermos que a
se assiste à luta do indivíduo ou de um grupo de in- literatura, como todas as outras artes, acompanha
divíduos contra o destino. Um pouco mais tarde, iria o desenvolvimento das sociedades (e muitas vezes
florescer a Comédia, principalmente com as obras o antecipa). Paradigmas racionalistas, o desenvol-
de Aristófanes (V a IV a. C.) que escreveu peças sa- vimento da ciência e de sistemas políticos inéditos
tíricas como As Rãs ou A Assembleia das Mulheres. criaram um clima hostil a uma linguagem alegórica
Esta dicotomia em que figuram a Tragédia (o género que não soube adaptar‑se com agilidade aos novos
erudito) e a Comédia (o género popular) influenciou tempos e ficou cunhada como sendo resquício de
a composição da Poesia e da produção literária até uma antiga forma de olhar o mundo. Escrever sobre
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mundos impossíveis ou fantásticos nos séculos XVII pode ser um exercício extenuante, ou mesmo im-
ou XVIII não era considerado sério. Haverá excep- possível, para quem tem pouca imaginação ou pou-
ções, claro, mas escritas por quem? Por indivíduos quíssima disponibilidade para imaginar. É muito
pertencentes às elites. Vamos lá a ver: até ao século mais fácil visualizar um casal a correr na praia que
XX quem é que tinha bagagem cultural ou tempo um aparelho espacial a tentar fugir de um evento ho-
livre para se poder dedicar à escrita? A noção que rizonte; é mais fácil, e seguro, imaginar um sujeito
temos daquilo em que consiste um autor ou um gé- que relata memórias empíricas a la Paul Auster que
nero literário é demasiado recente: acaba por ser fru- imaginar um pedaço gelatinoso de muco nasal asso-
to das contingências do mercado livreiro no qual é ado por Lovecraft que, em última análise, está vivo,
necessário criar, logo à superfície, uma identificação tem mau feitio e quer‑nos arrancar a cabeça.
imediata daquilo que se pretende comercializar com Aqui estamos próximos da noção partilhada
o público ao qual o objecto se dirige. Talvez valha a pela maioria do público que a Arte é apenas um es-
pena transcrever este excerto do livro Theory of Lite- pelho — quanto muito um comentário… — à vida:
rature de René Wellek e Austin Warren (página 235 mas nunca um upgrade da vida. É a velha história
do capítulo 17 “Literary Genres”): da “demasiada fantasia”: “Gostaste do filme?”, “Ah,
não… Tinha muita fantasia.” Este é o grande pro-
Men’s pleasure in a literary work is com- blemas das obras de ficção: são sempre ficcionadas,
pounded of the sense of novelty and the bolas!… O que varia é o grau de aproximação à con-
sense of recognition. In music, the sonata venção (aceite pela maioria) sobre aquilo que deve
form and the fugue are obvious instances ser o realismo.
of patterns to be recognized; in the murder Este tema é importante porque está sempre
mystery, there is the gradual closing in associado à ideia de erudito. Nove em cada dez obras
or tightening of the plot — the gradual eruditas possuem um elevado grau de aproximação
convergence (as in Oedipus) of the lines à representação do mundo construída pelo nosso
of evidence. The totally familiar and re- cérebro com a ajuda dos falíveis cinco sentidos. Tudo
petitive pattern is boring; the totally novel aquilo que se afasta do “real” já não é erudito. Por-
form will be unintelligible — is indeed quê? Tenho umas ideias sobre isto que quero parti-
unthinkable. The genre represents, so to lhar convosco, mas esta minha primeira alfinetada já
speak, a sum of aesthetic devices at hand, passou a derme e agora é a vossa vez. Sobre géneros
available to the writer and already intelli- e sobre tudo. Até já.
gible to the reader. The good writer partly
conforms to the genre as it exists, partly João Seixas:
streches it. Creio que o David localizou muito bem o cerne do
conflito ao centrá‑lo no qualificativo popular aplica-
Isto conduz‑me à ideia que sempre defendi que o gé- do aos géneros literários que se afastam — em ter-
nero é atribuído pelo tom dominante da obra: um mos de métodos narrativos e convenções literárias
livro pode apresentar um cruzamento de vários gé- — do romance mimético. Creio, porém, que para
neros, mas o tom dominante é o cromossoma que melhor compreendermos esta dicotomia, e avançar-
o transforma num drama, numa comédia, numa mos algumas hipóteses que melhor a permitam con-
aventura ou num diálogo de pura expressão pessoal. textualizar, será necessário fazer algumas precisões.
O tom dominante pode ser algo abstracto, mas acre- Assim, e desde logo, nunca é demais salientar que
dito que se trata de uma característica que os leitores a oposição da Literatura Erudita é mais ou menos
são muito hábeis a detectar. homogénea em relação aos géneros em geral, inde-
Contudo, pedir à maioria dos leitores para pendentemente do maior ou menor grau de elemen-
imaginar coisas que não se encontram todos os dias tos fantásticos que contenham: géneros como o wes-
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tern ou o policial, ou mesmo o romance histórico, Atente‑se, como exemplo, nesta elucidativa
também foram olhados com igual desdém, embora, crítica de Eugenia Thornton à distopia This Perfect
como é bom de ver, tal desdém seja mais igual quan- Day de Ira Levin (autor que se tornou célebre com
to maior o grau de afastamento da representação obras de FC e Horror, como The Stepford Wives e
realista do mundo (o western, o romance histórico Rosemary’s Baby), citada por Thomas D. Clareson
e o policial, apesar de tudo, ainda mantêm laços de na introdução ao tomo SF: The Other Side of Re-
proximidade com a realidade histórica ou contem- alism (1971), e publicada originalmente no Plain
porânea, ainda que idealizada). Dealer de Cleveland em 22 de Fevereiro de 1970:
A questão que importa explorar, porém, é o “Because of the basic subject matter the science fiction
porquê desse desprezo; é o porquê de existirem situ- set will do its best to cuddle This Perfect Day to its ste-
ações como aquela narrada por Philip Klass no seu ely, elecronic bosom. They have already claimed Brave
ensaio “Jazz then, Musicology now” (F&SF, 1972), New World and 1984, not to mention Alice and The
onde ele nos conta como, estando em companhia de Wizard of Oz and about half the stories of Saki. I will
um amigo, formando em Letras, e tendo encontrado thank them to keep their tiny little hands off Mr. Le-
Theodore Sturgeon, este discutiu longa, eloquente e vin” (sublinhado meu).
apaixonadamente sobre os problemas artísticos da
FC, as particularidades do género e o desafio que é
escrever dentro das suas convenções, tratando‑se, «Não há qualquer razão para
como se trata, de um tipo de literatura onde é im- considerarmos qualquer dos géneros
prescindível recorrer a trechos expositivos, sem per-
mitir que isso desequilibre a narrativa. Depois de se populares literária, estrutural ou
terem separado de Sturgeon, o comentário (não me- estilisticamente mais pobres do que
nos eloquente) do estudante foi: “These science fiction a Literatura Erudita. »
writers, they really think of themselves as writers, don’t
they? I mean, he’s talking about this stuff seriously, as if
he were writing literature!”. Uma leitura, ainda que menos atenta, do tre-
Obviamente, embora Sturgeon fosse um con- cho citado logo nos permite retirar algumas infor-
sagrado autor de FC, hoje infelizmente quase esque- mações quanto ao quadro de referências operativo
cido, o comentário seria válido para qualquer outro neste tipo (bastante recorrente) de críticas à lite-
autor que leve a sério o género ou géneros onde ratura de género: em primeiro lugar, o reconheci-
escolheu trabalhar, sobretudo se tais géneros se in- mento (“the basic subject matter”) de que estamos
serirem na mais vasta classificação do Fantástico. E realmente perante uma obra de ficção científica ou
não se pense que é uma questão sem importância, que, pelo conteúdo temático, é reconhecível como
pois para se lograr um princípio de compreensão sendo semelhante a outras obras anteriores que a
deste fenómeno, é necessário procurar lobrigar, des- autora da crítica não hesitaria em classificar como
de logo, qual ou quais as características transversais ficção científica. Depois o facto de os leitores de
aos vários géneros que os tornam um todo separado FC serem identificados com uma mundividên-
daquilo a que, para este trabalho, convencionamos cia tecnofílica (“its steely, elecronic bosom”, evoca,
chamar Literatura Erudita. Ao mesmo tempo, tenta- ademais, uma certa frieza) e, consequentemente, a
rei perceber porque razão alguns géneros (western, autora da crítica posicionar‑se numa perspectiva
policial, romance histórico), merecem por vezes tecnofóbica (ou, pelo menos, indiferente à tecno-
o favor da crítica e da academia, ao passo que ou- logia) e emocional. Por último, e não obstante o re-
tros (Ficção Científica, Horror e Fantasia) nunca o conhecimento de que se trata de uma obra de FC,
logram, mesmo quando a qualidade intrínseca das ao colocá‑la lado a lado com textos genéricos bem
obras é reconhecida. acolhidos pelo mainstream, nega‑lhe essa qualida-
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de genérica, por via de uma reconhecida qualidade tempos no fórum Bad Books Don’t Exist (por sorte,
literária. o autor do post assina ao abrigo de um nickname, o
Isso permite‑me, desde já, enfrentar uma que lhe poupará o embaraço de passar à posteridade
questão, talvez menor, mas que deve ser referida: ao lado da Sra Thornton, como um autêntico idiota).
nomeadamente, o potencial conflito entre forma Em suma, manifestando o seu profundo desagrado
e conteúdo; ou seja, e parece‑me indiscutível, não face à Ficção Científica, referia que o livro de Orwell,
há qualquer razão para considerarmos qualquer Nineteen‑Eighty Four (1949) e de Saramago, Ensaio
dos géneros populares literária, estrutural ou estilis- Sobre a Cegueira (1995) não era ficção científica
ticamente mais pobres do que a Literatura Erudita. pois neles o elemento fantástico era apenas “pretex-
Embora pareça ser ideia feita a de que não se logra to para falar de coisas mais profundas”, esse enorme
encontrar qualquer mérito nas narrativas genéricas, lugar comum que limita a comunicação e permite o
não é difícil encontrar exemplos de autores de géne- refúgio dos pusilânimes.
ro que foram reconhecidos pelo mainstream (Ham- Pese embora a óbvia incompetência valorativa
met, Chandler ou Evan Hunter no policial, Ray Bra- de tal proposição, avanço que é nela que se deve en-
dbury na dark fantasy, LeGuin na Fantasia, Levin contrar a semente da discórdia. Abstraindo momen-
na Ficção Científica, etc…), autores de mainstream taneamente do particular contexto histórico que
que mergulharam no género (Orwell, Huxley, Roth, permitiu a agregação de trabalhos e obras dispersos
etc…) e autores de género que abriram novos rumos em géneros universalmente reconhecíveis, e embo-
na literatura em geral com obras de género (Ballard, ra discorde parcialmente com o David na parte em
Bester e Vonnegut são os melhores exemplos. Curio- que ele refere o fantástico na literatura Clássica (eu,
samente, nunca nenhum autor Erudito conseguiu pessoalmente, não gosto de falar de Fantástico antes
inovar na literatura de género). do Século XVIII), concordo com ele quando propõe
Outra coisa que é inevitável retirar daqui é que busquemos a origem da dicotomia Literatura
que, por vezes, nem é o próprio género que limita a Erudita/Literatura Popular na criação do romance
recepção crítica da obra. Aliás, e como o David muito moderno. No entanto, não penso que seja necessário
bem referiu, o género é um constructo editorial que aguardar por 1678 e por Madame de La Fayette, pois
apenas se condensou na realidade norte‑americana encontramos o primeiro romance verdadeiramente
de princípios do século (embora o Gótico inglês dos moderno no próprio D. Quixote de Cervantes, em
séculos XVIII e XIX, pudesse — e fosse — já encara- 1605. Já aí encontramos uma bem estabelecida dico-
do como tal). Adaptando livremente uma definição tomia entre a vida interior do personagem, Alonso
de Steve Neale (que se referia ao cinema), podemos Quijano, onde este veste a personagem de D. Qui-
dizer que os géneros não consistem unicamente das xote, e o confronto desta com a dura realidade (im-
obras que os compõem, mas também de determina- perecivelmente cristalizada na imagem dos moinhos
dos sistemas de expectativas e hipóteses que os lei- de vento/gigantes). Não só isso, é no Quixote que
tores trazem consigo para a leitura e que interagem assistimos à primeira crítica acérrima à literatura de
com os próprios livros. género; na perspectiva de Cervantes, os escapistas
Ora, independentemente da qualidade das romances de cavalaria que o personagem consome
obras ou autores, pois parto do princípio que os há, avidamente só o podem conduzir à loucura.
bons e maus, excelentes e medíocres, em todos os Para Daniel Boorstin (em Os Criadores, pu-
géneros (bem como na dita Literatura Erudita) qual blicado em Portugal pela Gradiva), “o romance, ain-
é aquele fugidio elemento que permite que determi- da que virado para o interior do homem, alcançaria
nados textos genéricos sejam aceites e outros rejeita- o exterior e democratizaria o público e o objecto da
dos pelo cânone? arte literária. Através da «recriação da vida a partir
Uma resposta, ainda que tosca e a pedir mais da vida», o romance permitiria ao homem moderno
polimento, pode ser encontrada num post que li há descobrir‑se” (p.287)
revista BANG! [ 47 ]
É nesta democratização, nesta «recriação da enfrentar e resolver problemas maiores (obrigando
vida a partir da vida» que vamos encontrar a raiz do a determinar qual a reacção necessária). O concre-
problema; o mesmo é dizer, o processo de formação to da vida é substituído pela abstracção (ainda que
do cânone literário. No entanto, e procurando ir um esta seja corporizada numa ameaça extra‑terrestre,
pouco mais longe, colocando cuidadosamente o pé numa mutação teratológica ou numa total transmu-
em solo traiçoeiro (não disponho de suficientes co- tação da realidade).
nhecimentos para testar esta hipótese), atrevo‑me a A ideia que proponho é esta: a Literatura
propor o seguinte: a resposta para a aversão ao fan- Erudita assenta numa Moral; a Literatura Popular
tástico (ao mesmo tempo que permite a aceitação de assenta numa Praxis. Daí que a primeira seja mais
outros textos genéricos como o policial e o western, rapidamente datável (a Moral torna‑se obsoleta com
ou mesmo a comédia e até algum horror psicológico) grande facilidade) e consiga absorver aqueles gé-
prende‑se com a intenção última do pai do romance neros que cristalizam, também eles, uma resposta
moderno. Com efeito, na introdução às suas Duas moral: o western e o policial tratam, acima de tudo,
Novelas Exemplares, publicadas em 1613, mas cuja da reposição da ordem; também a fantasia, em me-
redacção se pensa remontar a 1603, Cervantes escre- nor grau, trata da obtenção de um estado ordenado.
ve que as suas são histórias moralmente exemplares: Já não a Ficção Científica e o Horror, que embora
“Se eu acreditasse que a leitura destas novelas desper- possam encontrar o clímax na reposição da ordem
taria de algum modo um pensamento ou um desejo inicial, necessitam do caos e de respostas extremas
malévolos, preferia cortar a mão que as escreveu a a esse caos. Por outro lado (a FC em maior grau),
vê‑las publicadas”. Ora, para Cervantes, os romances ambos propõem — mais, impõem — novos com-
de cavalaria, como atestado pelos efeitos causados portamentos, pois postulam situações absolutamen-
pela sua leitura no engenhoso fidalgo, seriam moral- te novas.
mente indignos e inspiradores de maus actos.
Não acredito que os responsáveis pelos câno- António de Macedo:
ne, pelo muito de político que anima as várias cotte- Eu bem sabia que já me tinham tramado. Ao ler os
ries que têm sucessivamente dominado a crítica li- vossos eminentes ensaios, não sei se me sinta como
terária, aceitem que as suas escolhas se pautam pelo o Menino Jesus entre o doutores, ou como o pobre
carácter moral das obras que avaliam; no entanto, o escravo Esopo no mercado de escravos, em Atenas,
selo de infantilidade com que a literatura fantásti- para onde foi levado com dois colegas seus: apro-
ca é sumariamente despachada, faz‑me pensar que ximou‑se um potencial comprador e perguntou ao
não será demasiado ousado aventar a hipótese de primeiro escravo:
que, independentemente da forma e, como vimos,
independentemente do conteúdo, é o tratamento fi-
losófico dado aos temas (e os próprios temas) que «Todos os géneros são bons,
determinam a sua exclusão. excepto o género enfadonho».
Porque o romance moderno centra a experi-
ência literária na reacção impressionista dos perso-
nagens, com a sua bagagem de sentimentos e proble- — Que sabes fazer?
mas pessoais, ao ataque cerrado do mundo exterior — Tudo.
(obrigando a determinar qual a reacção correcta), e Voltou‑se para o segundo:
não consegue tolerar a deslocação que a literatura — E tu, que sabes fazer?
fantástica faz dessa reacção; a introdução do fantás- — Tudo.
tico obriga a que os petty problems dos seus protago- Finalmente dirigiu‑se a Esopo:
nistas — que rondam sempre, seguindo Northorp — E tu, que sabes fazer?
Frye — o Amor e a Morte, sejam afastados para — Nada.
revista BANG! [ 48 ]
— Como nada?! senhora que muito estimo, culta, que lia, relia e rere-
— Os meus companheiros tomaram por sua lia os nove volumes da Recherche com tanto ou mais
conta o fazer tudo, logo para mim não sobrou nada. prazer e entusiasmo do que eu a devorar as aventu-
(Esta é uma das minhas peças favoritas, a Eso- ras do Tio Patinhas. Enfim, depois de tanto opróbrio
paida, do meu comediógrafo de estimação António só me resta retirar‑me da liça e reconhecer que devo
José da Silva, o Judeu). ser um caso perdido nestas classificações em que os
Pois é, o David e o João já disserem «tudo» críticos são exímios — por isso estou sempre a dizer
— que hei‑de dizer mais, e se possível que acrescente que felizmente não sou crítico literário! Quando faço
qualquer coisinha?? Citando Esopo: nada… filmes, prefiro dizer que faço fitas, e quando escrevo
Ou talvez não. Para começar, devo dizer que ficção, prefiro dizer que conto historietas! Que que-
esta coisa dos géneros (literários, musicais, cinema- rem, sinto‑me mais à vontade e desinibido, e posso
tográficos…), com guerra ou sem guerra, sempre inventar sem remorsos o que me passa pelo touti-
me deixou desconfiado e com o nariz um bocadi- ço…
nho torcido. Cada vez me sinto mais inclinado a Como o João faz notar, e bem, sem dúvida
concordar com Voltaire quando escreveu em 1763, que não podemos fugir ao preconceito ainda muito
numa carta dirigida a Monsieur de Moultou: «Tous arraigado em certas mentes contra essa «literatura
les genres sont bons, sauf le genre ennuyeux». — (An- menor» da FC, do Horror, da Fantasia, etc. Há uns
tigamente o «género enfadonho» chamava‑se «litté- tempos atrás tive a paciência e a bondade de ler um
rature d’idées»). pequeno ensaio de um professor de literatura (de
A divisão proposta pelo David, ainda que pro- cujo nome felizmente não me recordo, cito isto de
visória e apenas como ferramenta de arranque de memória), que discorria sobre a «grande literatu-
trabalho, da Literatura Erudita e da Literatura Popu- ra» e depois, de raspão, referia‑se a umas formas de
lar, não sei que lhe diga, mas suspeito que simplifica «pseudoliteratura», «paraliteratura» e «subliteratu-
tanto a base de abordagem ao tema que corre o risco ra» onde incluía, indiscriminadamente, desde a FC
de gerar grandes zonas cinzentas de sobreposição até às estórias popularuchas de faca‑e‑alguidar do
fronteiriça; embora o David tenha tido o cuidado tipo Maria Não Me Mates Que Sou Tua Mãe.
de esclarecer que essas expressões nasceram com o Em todo o caso, parece que estamos (cons-
romance moderno, no fundo é inevitável pensar que ciente ou subconscientemente) a cingir‑nos e res-
peças literárias de grande divulgação popular, como tringir‑nos a alguns formatos e estruturas mais
as palpitantes «estórias» contadas e cantadas para o associados àquilo que nas prateleiras dos livreiros
povinho nos tempos de Homero, hoje chamam‑se costuma ter as etiquetas «ficção científica», «fantás-
Ilíada ou Odisseia e são literatura erudita, tal como tico», «horror», etc. — mas existem outros objectos
as peças de Shakespeare de grande êxito popular ou literários (e esquecendo outras formas narrativísti-
as óperas de Mozart representadas em tascas para cas como o cinema ou o teatro) que não sei em que
um público ruidoso e arrebatado e que hoje são pe- género incluir, como por exemplo os romances (?)
ças eruditas… de Maria Gabriela Llansol, em que nenhuma frase
Depois há que considerar também o factor liga com coisa nenhuma, e lá pelo meio tem grandes
subjectivo. O que é ennuyeux para uns pode ser de- buracos, troços em branco com falta de palavras, pa-
lirantemente orgásmico para outros. Por exemplo: recem enigmas e logogrifos, não sei se aquilo é para a
pessoalmente sempre tive a maior dificuldade em gente adivinhar que palavras lá estariam, ou se é para
meter o dente na Recherche de Proust, quanto mais desengatilhar o chamado «clique» revelador que faz
engoli‑la e muito menos digeri‑la; já fui insultado ver para além do visto/não‑visto… A verdade é que
váras vezes por isso, e de uma delas por uma jovem é considerada pelos luminares da crítica uma gran-
de autora de grande literatura, com vários prémios
«Todos os géneros são bons, excepto o género enfado-
nho». daqueles sérios, do mainstream e tudo — mais uma
revista BANG! [ 49 ]
vez, e para minha grande contrição, não consigo me- cil constatar que há cinquenta anos atrás se publi-
ter o dente naquilo. cava menos livros, mas que a variedade das ofertas
Mas eu gostaria de tecer uns quantos consi- editoriais era maior (varietas delectat): na verdade,
derandos mais atentos e veneradores sobre «estilos» publicava‑se de tudo. Eu encontro coisas nos alfarra-
e «géneros», que desde a velha retórica até às novas bistas que nem sequer sabia que tinham sido dadas
análises radicalistas têm rolado e girado por aí sob à estampa em português como uma edição de Bru-
diversos nomes, e nem é preciso citar os rebentos ges, a Morta, de Georges Rodenbach, publicada pela
de Harold Bloom como Barry Scherr e David Fite Editorial Inquérito em 1943 e que trouxe para casa
— mas isso fica para o próximo post. no passado fim‑de‑semana. Qual seria a editora que,
hoje em dia, perderia tempo a publicar esta obra‑pri-
David Soares: ma do Simbolismo, pioneira da psicogeografia?!… E
Uma das maiores satisfações de ser escritor é saber é uma pena porque é um livro bom que se farta!…
que, na melhor das hipóteses, os livros que se escre- O que desejo destacar desta exposição introdutória à
ve serão sempre lembrados no futuro (assim como minha segunda intervenção é que, autonomamente
o João se lembrou do Sturgeon. Recomendo a todos à polémica entre géneros, está‑se a publicar menos
que leiam o “belo” Some of Your Blood). É improvável e pior. Existe uma homogeneidade livresca, sinto-
que se encontre um rasto de migalhas genéticas que mática da homogeneidade cultural que nos absor-
nos conduzam até às ossadas de Esopo (lembrado ve a uma velocidade vertiginosa, mas acredito que
pelo António), mas as memes esopianas estão con- as obras que melhor falam sobre os problemas dos
nosco — vicejantes e saudáveis, ou seja: Esopo existe seus tempos continuam — e continuarão — a ser as
Fantásticas. Como as de Rodenbach, de Esopo e de
Sturgeon.
«Uma das maiores satisfações de Acredito mesmo que quem se dedica ao ofí-
ser escritor, recuperando o mote do cio da escrita precisa de ter uma maior sensibilida-
de no que diz respeito ao uso da palavra. Falei em
primeiro parágrafo, é mesmo essa: Burroughs e a técnica beat do Cut‑up é um bom
atrever‑nos a ser diferentes.» exemplo daquilo que pretendo ilustrar: tem tendên-
cia para produzir algaraviada, mas — bolas!… —,
em última análise, uma algaraviada escrita por um
enquanto alguém se lembrar da vida e obra dele — e escritor sensível à palavra pode ser muito melhor
ele afecta aquilo que se desenrola séculos depois de que um enredo tradicional autorado por um tarefei-
ter morrido; até os desvairamentos de três rufiões ro — eu acho que Burroughs é um gigante quando
como nós. Talvez esse tipo de persistência memética confrontado com o Paul Auster (eu adoro qualquer
seja longitudinalmente mais poderoso que a existên- coisa que tenha baratas falantes, por isso talvez esteja
cia de carne e osso: é que as palavras parecem ser a ser biased). É desanimador pensar que a Escrita é
mágicas no modo como nos afectam. Já antes de um campo com possibilidades tão vastas, mas que
Alfred Korzybski e William Burroughs publicarem se encontra sempre espartilhado por convenções de
os livros deles, o Aleister Crowley dizia que a Magia mercado, acidentes de iliteracia e preconceitos pa-
era uma “doença da linguagem”. O Tempo (o velho tetas. Falando em insectos… Lembrei‑me do dese-
Saturno que tanto gosta de acariciar o cabelo sedoso nho do Escher, aquele da formiga, e do conto que
das virgens…) também acaba por nos fazer esque- o Hofstatder escreveu, inspirado nele, que está no
cer o piorzinho que se vai publicando — o que não livro Gödel, Escher, Bach: An Eternal Golden Braid.
significa que certos autores sejam descobertos por Chama‑se “…Ant Fugue” e é sobre aquilo que pensa
gerações seguintes, sejam eles maus ou bons. um papa‑formigas enquanto se banqueteia. O ensaio
Num simples périplo pelos alfarrabistas é fá- não é sobre sabores alternativos, contudo, mas sobre
revista BANG! [ 50 ]
a consciência colectiva (que no texto se chama Aunt protagonistas — que rondam sempre, seguindo Nor-
Hillary e mais não é que a própria colónia de for- thorp Frye — o Amor e a Morte, sejam afastados para
migas) e acho que se aplica ao nosso nicho literário. enfrentar e resolver problemas maiores (obrigando
Ou seja, essa parábola das formiguinhas insuspeitas a determinar qual a reacção necessária). O concreto
e do mirmecófago bonacheirão, que aparece para as da vida é substituído pela abstracção (ainda que esta
devorar sem perceber que a Tia Hillary com quem seja corporizada numa ameaça extraterrestre, numa
tanto gosta de conversar é composta pelos milhões mutação teratológica ou numa total transmutação da
de indivíduos que ele tanto gosta de comer, pode ser realidade).»
lida de várias formas (não estou “consciente” de qual Como sugeri na minha primeira intervenção,
é a maneira correcta de a entender ou se existe se- a Realidade é uma ficção feita pelos nossos sentidos
quer uma maneira correcta de a entender): 1) Nós, e não vale a pena sobrevalorizá‑la: aquilo que pen-
escritores, somos as formigas que percorrem os sub- samos estar a ver pode ter tanta proximidade com
térreos níveis do subconsciente em busca de novos o mundo físico quanto uma história do Hulk a lu-
modos de olhar o mundo e o papa‑formigas repre- tar com o Wolverine. Os nossos cérebros capturam
senta os leitores que vêm lamber os beiços com as as sensações circundantes e constroem um modelo
nossas fabulosas criações, mas o problema com este do mundo que funciona para nós, mas nada garante
modelo é que o papa‑formigas come as próprias for- que esse modelo é a realidade. É por essa razão que
migas, por isso 2) talvez seja ele o escritor que vem sempre achei absurdo que, como escreveu o João,
chupar os leitores despreocupados? De qualquer das citando o Boorstin, a «recriação da vida a partir da
maneiras… Porquê reduzir o ofício da escrita nesta vida» seja o modo eleito de expressão literária do es-
configuração? Devíamos ser melhores que as formi- tablishment. Aquilo que é entendido como realista é
gas e perceber que caminhamos num terreno que é igualmente ficcionado.
muito maior que aquilo que parece ser: devíamos Vou citar um exemplo pessoal: Era uma vez,
prestar mais atenção. estava eu, com dois amigos, a perder tempo sentado
Gostava de ler um livro recente que me ofe- no muro da antiga estação ferroviária de Queluz; não
recesse algo que só a literatura é capaz de fazer: que me recordo do que estava a falar com eles porque a
não fosse uma experiência que pudesse ser suplanta- comunicação entre nós já só se devia estar a cumprir
da por outra arte. Acho que isso faz muita falta; e até por minúsculos movimentos oculares, tal devia ser
pode ser um dos motivos pelos quais o mercado do o ennui vespertino… Todavia, aconteceu algo ines-
livro prima pela confrangedora homogeneidade que perado. Uma rapariga distraiu‑se e atravessou a li-
se encontra nos escaparates: não há nada na maioria nha‑férrea no momento em que um comboio, vindo
dos livros publicados neste momento que não possa de Sintra, se aproximava dela a grande velocidade. Vi
ser vivenciado com mais rapidez e economia num tudo! Hesitante, a jovem recuou à passagem da loco-
filme, numa série de televisão ou numa telenovela. motiva, mas tarde demais: o comboio atingiu‑a na
Eu não quero ler filmes impressos: eu quero ler… cabeça e deitou‑a ao chão — por um instante, pare-
hum… livros. ceu que ela tinha esticado as pernas para debaixo das
Esta linha de raciocínio trouxe‑me aquilo rodas do comboio, mas não ficou sem elas porque
que o João enunciou: que «o romance moderno cen- caiu de joelhos. Levantei‑me e corri para a ajudar.
tra a experiência literária na reacção impressionista Aproximei‑me e ouvia‑a a chorar; agarrei‑a e senti
dos personagens, com a sua bagagem de sentimentos um arrepio pela espinha acima porque me deu a im-
e problemas pessoais, ao ataque cerrado do mun- pressão que ela tinha ficado sem um olho. Afinal, o
do exterior (obrigando a determinar qual a reacção olho estava apenas escondido pelo sangue que bro-
correcta), e não consegue tolerar a deslocação que a tava de uma têmpora aberta. Fiquei com a impressão
literatura fantástica faz dessa reacção; a introdução que ela tinha um pé torcido, também. Com custo,
do fantástico obriga a que os petty problems dos seus consegui levá‑la sozinho para a plataforma de em-
revista BANG! [ 51 ]
barque: fiquei cheio de sangue — havia sangue por vez: as abelhas vêem cores que nós nem sabemos
todo o lado, vocês não fazem ideia da quantidade de que existem. Não vêem tons diferentes das cores
sangue que sangra de um corte daqueles. Quando a nossas conhecidas, mas cores novas. Acho que essa
ajudei a deitar‑se no chão de cimento, aproximou‑se é que deve ser a tarefa do escritor: enquanto uns
um homem que me disse com urgência “Chega‑te olham para as flores e vêem as cores do costume,
para lá, chega‑te para lá!”. Pensei que fosse um fa- os escritores devem ver os tons mais loucos e os
miliar preocupado com ela, mas não. Era um apenas padrões mais incríveis. E escrever sobre eles, cla-
um idiota chapado que veio armar‑se em herói de- ro. Resumindo, não quero ficar prisioneiro de uma
pois de ter sido eu a ir buscar a rapariga à linha‑fér- forma de ver o mundo que, na verdade, é apenas
rea. Não tenho palavras para descrever o nojo que mais uma ficção. Uma das maiores satisfações de
senti por aquele homem que agiu como se fosse o ser escritor, recuperando o mote do primeiro pa-
salvador, não só da pobre diaba como da pátria. Nes- rágrafo, é mesmo essa: atrever‑nos a ser diferentes.
se instante, chegou uma ambulância. Um montão de Até faz lembrar aquele patético separador do canal
gente rodeou‑nos e eu deixei de ver a rapariga. Acho de cabo da Fox em que há um tipo que está num
que lhe estavam a lavar a cara. Acho que um enfer- bar a ver os outros a beber água e comenta que uns
meiro lhe estava a cortar a perna da calça de ganga vêem o copo meio‑cheio e outros olham para um
quando voltei as costas e me fui embora. Reuni‑me copo meio‑vazio. E ele? Ele diz que tem é sede…
com os meus amigos, mas não fui capaz de ficar ali. Imagino‑me numa livraria a ver toda a gente a ro-
Estava a tremer. Fui para casa e preguei um susto à tular os livros de Literatura Erudita ou de Literatura
minha mãe que, ao pôr‑me a vista em cima, pensou Popular, de acordo com as suas inclinações pessoais.
que eu tinha vindo de um bar mexicano. E eu? O que é que acho? Eu quero é escrever, pá!…
Se há alguma moral nesta experiência dantes- Como diz o papa‑formigas (na página 312): «RE-
ca que acabei de partilhar convosco acho que pode DUCTIONISM is the most natural thing in the world
ser esta: ninguém sabe como é a realidade até ela lhe to grasp.»
cair, a sangrar e a chorar baba e ranho, nos braços!
Podemos escrever incontáveis páginas de prosa ilu- João Seixas:
minada, e apaixonar‑nos por elas ao ponto de sa- Ora, passo a passo lá nos vamos aproximando duma
crificar a vida e a higiene, mas é quase um pecado tentativa de resposta, da fugidia compreensão de
afirmar que a ficção que estamos a escrever é realista qual a verdadeira essência da barreira inconstante
porque não é e nunca será. É por este causador que que se ergue entre a academia e o populus. Como
a obsessão com a realidade que afecta o espectro da sempre, o David levanta questões pertinentes, e faz
Literatura Erudita e os molossos que a defendem de- sangrar algumas feridas que alguns, mais incons-
mencialmente não se sustenta: aquilo que eu encon- cientes, achavam que estavam já bem saradas. Mas,
tro na literatura que mais se aproxima da experiência conquanto subscreva inteiramente as conclusões do
que acabei de narrar, com o cheiro e o calor do san- David, penso ser pertinente reforçar a ideia de que
gue que me ensopou as mãos e a roupa, mais o ruído existe, efectivamente, uma realidade objectiva.
das ambulâncias e a vozearia dos heróis‑de‑bancada, Negar a existência de uma tal realidade, objec-
está nos livros de horror do Stephen King e do Cli- tiva, cognoscível em maior ou menor instância, seria
ve Barker. Com efeito, estes autores de ficção — de subscrever as mais disparatadas teorias pós‑moder-
Literatura Popular — , estes desgraçados que andam nas, selon Chacan, Derrida, Foucault e, entre nós, o
iludidos a pensar que são escritores a sério, estão falecido Eduardo Prado Coelho (e quem pode es-
mais próximos da realidade que outros escritores a quecer a sua lastimável intervenção na questão do
sério de Literatura Erudita. Discurso Sobre a Ciência de Boaventura Sousa San-
Depois do sangue, é preciso manter as coi- tos?). Seria negar a ciência moderna e, por conse-
sas simples… Por isso, vou falar de insectos outra guinte, as próprias fundações do pensamento racio-
revista BANG! [ 52 ]
nal e do mundo ocidental. Que a nossa utensilagem Mas há efectivamente algo de fundamental
visual esteja limitada ao espectro compreendido nesta multiplicidade de percepções do real. Algo
entre o vermelho e o violeta (sendo nós, portanto, que, de acordo com alguns ensaístas, é ínsito à pró-
cegos quanto às colorações infra‑vermelhas e ul- pria literatura moderna. Victor Shklovsky, um dos
tra‑violetas) não contende em nada com a realidade Formalistas Russos, considerava no seu célebre en-
e concreta coloração de determinado objecto. Que saio de 1917 (Art as Device) que a principal função
uma flor para nós seja amarela, e para uma abelha da arte era ultrapassar o efeito do hábito, através da
tenha uma dezena de tonalidades invisíveis ao olho representação do familiar de uma forma original: a
humano, em nada colide com a identidade funda- isto chamava ele ostranenie, que David Lodge equi-
mental dessa flor. A única diferença é a percepção para ao conceito de desfamiliarização ou, digo eu,
que uns e outros, humanos e abelhas, temos de uma estranhamento. Na verdade, escrevia Shklovsky, “a
mesma realidade objectiva. Idêntica falsa questão é o arte existe para que possamos recuperar a sensação da
célebre dito: se uma árvore cair no meio da floresta, vida; existe para que possamos sentir as coisas, para
sem que esteja lá ninguém para a ouvir, será que a sua tornar o rochoso rochoso. O propósito da arte é pro-
queda provoca ruído? Claro que sim. Nós sabemo‑lo vocar a sensação das coisas tal como são percebidas, e
porque sabemos que havendo ar, a queda da árvore não como são conhecidas”.
provocará sempre a deslocação deste, vibrando em
determinadas frequências. Tal como sabemos que as
abelhas percebem outras cores, pois desenvolvemos «O Fantástico vai ainda mais
tecnologia e divisamos experiências que permitiram
comprovar tal facto.
adiante, pondo a nu a artificialidade
No entanto, o facto de existirem diferentes das construções sociais, servindo por
percepções sobre a mesma realidade, não invalida vezes de “comentário” extremo ao
que essa realidade exista e seja (em potência) inte-
gralmente cognoscível; nem colide directamente
status quo que essa Alta Cultura
com o interesse ou desinteresse das obra que con- pretende representar. »
vencionamos chamar eruditas e as chamadas popu-
lares. Umas e outras orbitam sempre em torno desta Este estranhamento resultaria assim de uma
realidade, explorando‑a, confirmando‑a, contorcen- interpretação extremamente individualista da re-
do‑a ou obliterando‑a. Mas é sempre esta realidade alidade, a qual nos seria apresentada de forma re-
que escora e permite estruturar a ficção. É isso que, conhecível mas inovadora, enriquecendo assim a
em última análise, distingue a ficção dos escritos dos nossa capacidade de experimentar o real. Ora, po-
loucos e dos religiosos, que postulam uma outra re- deríamos observar que em nenhum caso é tal es-
alidade imaginada, sem prestarem a devida vénia ao tranhamento tão essencial como no caso da Ficção
real e ao conhecido. Científica, do Horror e da Fantasia, onde a realida-
(Também não anula a existência de uma outra de é transformada, por vezes completamente, mas
realidade consensual e não objectiva, uma realidade nunca ao ponto de ser totalmente irreconhecível. No
de valores, que não assenta na contingência histó- entanto, a mente‑colectiva do estabelecimento cul-
rica mas na vontade da massa social, com as devi- tural tem uma capacidade diminuta para enfrentar
das adaptações nacionais, regionais, filosóficas ou esse particular tipo de estranhamento; o máximo de
religiosas. É essa realidade consensual que poderá, abertura que lhe é concedido é o caso do realismo
como antes disse ao referir‑me à dimensão moral da mágico, que Lodge identifica (em The Art of Fiction,
literatura Erudita, ajudar a compreender a aversão à 1992) “when marvellous and impossible events occur
literatura Popular. Mas não é disso que quero tratar in what otherwise purports to be a realistic narrative”.
de imediato). Porém, essa intervenção do fantástico no real tem
revista BANG! [ 53 ]
uma razão de ser (que é o que a torna aceitável e lhe Pensemos depois no exemplo de Paul Auster,
permite partilhar do sistema de códigos de reconhe- citado pelo David, ou nos exemplos nacionais de
cimento da Arte Erudita): “In magic realism, there Gonçalo M. Tavares, Pedro Paixão, José Luís Pei-
is always a tense connection between the real and the xoto. Se aqueles souberam interpretar a realidade
fantastic: the impossible event is a kind of metaphor for porque a viveram, estes interpretam uma realidade
the extreme paradoxes of modern history”. Ou seja, o em segunda mão, uma realidade que lhes é transmi-
fantástico típico do realismo mágico apenas é aceitá- tida através da experiência dos outros. Que interesse
vel por configurar uma codificação da incapacidade pode ter um livro escrito por alguém que não tem
do espírito humano em lidar com acontecimentos qualquer experiência de vida, que não a de frequen-
extremos da história moderna. Curiosamente, uma tar um curso superior, arranjar um tacho num jornal
análise dos elementos fantásticos que costumamos e ver as unhas dos pés a crescer?
encontrar nos episódios de realismo mágico (capa- Não se pense com isto que quero defender a
cidade de voar, animais falantes, animismo, queda escola redutora do “escreve sobre aquilo que sabes”.
livre, tempo lento) permite‑nos concluir que são os Quero, sim, demonstrar que estes autores, privados
mesmos que costumamos associar ao (e encontrar da vivência de acontecimentos extremos, reduzem
no) sono/sonho. O realismo mágico parece assim a sua escrita à sua própria vivência interior; a sua
servir de almofada entre uma realidade tão brutal adopção pelo cânone, paradoxalmente, opera‑se
que nem pode ser representada e a representação não por uma novel perspectiva da vida ou do real,
que se quer fazer dessa realidade. mas por uma repetição (por vezes doentia) dos pró-
Donde se retira que a própria literatura erudi- prios códigos de figuração perpetuados ao longo dos
ta, pelo muito que se propõe representar o real, ex- últimos duzentos anos. Face ao vácuo experiencial
trair a sensação de vida da própria vida, tem dificul- dos autores, a literatura mimética funciona como
dade em lidar com todos os seus aspectos (do real e uma jaula de mediocridade, onde a ostranenie é in-
da vida), já para não falar na dificuldade que tem em terpretada, não como uma técnica, mas como carta
lidar com as variadas matizes do possível. São mais branca para mergulhar em exercícios de estilo esté-
as reticências e os silêncios cúmplices, os vazios en- reis e pouco imaginativos (a exclusão de maiúsculas
tre capítulos e as insinuações do que propriamente e pontuação, as brincadeiras com a mancha gráfica,
as representações fiéis do real. as intervenções de um narrador/autor que nada tem
Porque os próprios autores, que são afinal os a dizer a não ser lembrar a sua existência para que
canais interpretativos necessários à ostranenie, não não seja esquecido) onde a forma se sobrepõe total e
são eles próprios capazes de entender o real, entre- definitivamente ao conteúdo. Numa completa nega-
gando‑se, sim, a interpretações do real extremamen- ção da literatura. Nada poderia estar mais longe da
te subjectivado sobre que escrevem. Pensemos em intenção de Zola quando definiu o romance expe-
eventos extremos: pensemos nos campos de batalha rimental pela equivalência entre a orientação socio-
das duas guerras mundiais, pensamos no pesadelo lógica da sua escrita e os (então nascentes) métodos
do holocausto, pensemos no horror de uma vítima experimentais das ciências naturais.
de torturas, pensemos na vida agreste na Marinha Obviamente, dir‑me‑ão, os autores do fantás-
Real Inglesa nos séculos XVII a XIX. Todos eles en- tico, por maioria de razão, fogem ainda mais à in-
contraram representações realistas e fiéis, e todos terpretação da experiência real, ao escreverem sobre
eles passaram pelo crivo da individualidade dos temas que são assumidamente irreais. O que é ma-
autores que sobre eles escreveram. Pensemos em A nifestamente verdade. No entanto, considerem o se-
Oeste Nada de Novo de Erich Maria Remarque, no guinte: ao escreverem sobre passados, presentes ou
Na Outra Margem por Entre as Árvores de Hemin- futuros alternativos, os autores de Ficção Científica
gway, no Regimento da Morte de Sven Hassel, no estão a dissecar não só o real, mas o próprio carácter
The Shadow‑Line de Conrad… contingente desse real; colocam a nu a arbitrariedade
revista BANG! [ 54 ]
do “real” tal como o conhecemos (precisamente cha- Pelo pouco que vale a minha opinião, e no que
mando‑nos a atenção para as cores do mundo das a esta última questão diz respeito, daqui a 20 anos
abelhas); e os autores de horror, pelo menos aqueles ninguém saberá quem é Tavares.
que são honestos consigo próprios e com os leitores,
expõem perante nós os seus fantasmas mais profun- António de Macedo:
dos, despindo, por assim dizer, a alma do humano Tenho lido atentamente os excelentes ensaios do Da-
confrontada com os seus próprios pesadelos. O fan- vid e do João, e a maneira como constroem e abor-
tástico funcionará quase como o oposto do realismo dam a sempre vertiginosa e desequilibrante questão
mágico, enfrentando as experiências extremas que a de como se poderá recortar, em arte (neste caso, nar-
literatura mimética não ousa representar. rativa), o instável território do real versus imaginário,
Ao definir a ostranenie, Shklovsky serve‑se do duradouro versus efémero, com inúmeros e perti-
como exemplo de um trecho de Tolstoi onde este nentes exemplos. Suspeito que estamos perante uma
descreve uma ópera vista através do olhar de alguém situação «fractal», de interdimensões fraccionárias,
que nunca assistiu a nenhuma: “Depois apareceram ou seja, antigamente era fácil saber‑se que uma rec-
ainda mais pessoas a correr e começaram a arrastar ta tem a dimenão 1, um plano a dimensão 2 ou um
dali a donzela que até então envergara um vestido cubo a dimensão 3, mas… uma linha de costa que
branco mas que agora vestia de azul‑marinho. Não a dimensão tem? 1 ou 2?… Provavelmnete entre uma
arrastaram logo, mas ficaram a cantar com ela duran- coisa e outra, talvez 1,666… E uma nuvem? Talvez
te muito tempo antes de a levarem dali”. O que Tolstoi 2,4 ou, se estiver muito carregada, talvez 2,8…
faz é ridicularizar de forma certeira as convenções da Em arte narrativa (e não só, bem entendido,
Alta Cultura, ao mesmo tempo que demonstra que é mas convém não alongar muito isto) ao pretender-
necessário o domínio dos códigos para apreciar uma mos delimitar conceitos tão deslizantes e escorre-
obra de arte. O Fantástico vai ainda mais adiante, gadios como popular/erudito, ou real/fantástico,
pondo a nu a artificialidade das construções sociais, ou o que fica para a posteridade e o que vai para o
servindo por vezes de “comentário” extremo ao sta- limbo do eterno olvido, estamos a entrar num cam-
tus quo que essa Alta Cultura pretende representar. po minado por essa coisa esquisita que é a estética
Onde a Literatura Erudita critica alguns aspectos do subjectiva, e que fez, por exemplo, com que um Júlio
real, o Fantástico postula a total substituição do pró- Verne nunca fosse admitido à Académie Française,
prio real. Ao fazê‑lo, nega o conjunto de valores co- apesar dos seus esforços: é que a sua escrita não era
muns que as obras miméticas pretendem confirmar. suficientemente «literária»… Penso que o problema
Ao invés de nos apresentarem uma nova perspectiva dos académicos não era tanto uma questão de «gé-
do familiar, as obras do fantástico convidam‑nos a nero» mas de «prosa»: quando Flaubert publicou a
desafiar o que é familiar, a tomarmos consciência sua Salammbô em 1862 foi admirado por uns, pela
da artificialidade das convenções e, sobretudo, a que força literária do seu «esteticismo realista», e violen-
abramos os olhos para a necessária contingência his- tamente contestado por outros que achavam aquilo
tórica do real. É uma posição de completa negação não só imoral mas sobretudo que aquela prosa era
do cumular de experiências que forma o nosso sen- uma autêntica carthachinoiserie.
tir colectivo, cristalizado nas obras que a academia Esse mistério do «escrever bem» evidente-
considera representativas do espírito humano. mente que não basta e ainda menos esgota a dese-
E, no entanto, nada disto responde ainda à jável qualificação (e quantificação, as ideias também
questão essencial: o que distingue um quadro de Van têm «peso»!) que distingue (felizmente!) um David
Gogh de uma ilustração de Frank R. Paul? O que dis- Soares de um Pedro Paixão ou de um José Luís Pei-
tingue uma composição de Beethoven de uma outra xoto, como o João muito bem acentuou: «Não se
de John Williams? Que distingue um livro de David pense com isto que quero defender a escola redutora
Soares de um de Gonçalo M. Tavares? do “escreve sobre aquilo que sabes”. Quero, sim, de-
revista BANG! [ 55 ]
monstrar que estes autores, privados da vivência de obras podiam ser percorridas, transversalmente,
acontecimentos extremos, reduzem a sua escrita à sua por diversos géneros — embora lhes repugnasse este
própria vivência interior; a sua adopção pelo cânone, tipo de ambiguidades (maldito/bendito racionalis-
paradoxalmente, opera‑se não por uma novel perspec- mo grego!) que punha em causa as categorias e clas-
tiva da vida ou do real, mas por uma repetição (por sificações naturalmente associadas a valores ideais,
vezes doentia) dos próprios códigos de figuração per- arquetípicos. Por conseguinte, a Ilíada com toda a
petuados ao longo dos últimos duzentos anos.» excelência reconhecida por Aristóteles, não deixava
Isto é verdade, um dia comecei a ler os livros de ser uma incómoda aberração, por ser do géne-
do Pedro Paixão e rapidamente me dei conta que ro épico mas ter segmentos de tragédia e episódios
bastava ler um para ser o mesmo que ler todos, mais: líricos como por exemplo a tocante despedida de
bastava ler uma página de um, para se ficar com o Heitor e Andrómaca — estou mesmo a ver o pobre
livro todo lido… Quando se chega ao fim, ficamos a do Aristóteles a escrever isto na Poética e a coçar a
saber quantos cigarros fumou o protagonista, quan- cabeça, perplexo.
tas quecas deu e quantas vezes olhou pela janela, e E já não falo no colete de forças que foi a ideia
eu não posso deixar de me interrogar: O KEK EU que percorreu toda a época do «cânone ocidental»
TENHO COM ISSO??? Bom, talvez esteja aqui uma do plot bem construído, plot esse cujos eventos ou
boa razão das voltas que andamos a dar ao problema incidentes, segundo os antigos retóricos (e a maioria
dos «géneros»: seja qual for o género, o que se des- dos modernos…), têm de se suceder logicamente (!)
creve, aquilo para onde se olha, o que se dá, o que se uns aos outros. Ainda não vi nenhum crítico que me
idealiza, o que se conta, precisa de ter sempre algum soubesse explicar isto satisfatoriamente, e entretanto
ponto de contacto, ainda que ténue, com a humani- vou‑me deliciando com estranhezas tão empolgan-
tas, por muito alienígenas que sejam as propostas de tes como Tales of Zothique, do velho Clark Ashton
autores tão diametrais como Ursula LeGuin ou Paul Smith, ou as loucuras do ainda mais clássico Gustav
Di Filippo, acho que o Terêncio tinha razão quando Meyrink — e não falo nos modernos porque, curio-
escreveu numa das suas comédias homo sum et hu- samente, há muitos e bons, quantas vezes o proble-
mani nihil a me alienum puto… ma está na escolha!
Enfim, vocês desculpem‑me mas deve ser do
«Já os Gregos desconfiavam da reumático, volto sempre à receita mágica da suspen-
sion of disbelief, receita cunhada por Coleridge em
separação de géneros cortada à faca, 1817 e que, em minha humilde opinião, continua
e reconheciam que certas obras a ser indispensável para que a leitura de uma estó-
podiam ser percorridas, transversal- ria agarre, mais a receita gémea do sense of wonder
examinado proficientemente por John Clute & John
mente, por diversos géneros» Grant na sua incontornável Encyclopedia of Fantasy, e
que eu prefiro traduzir simplesmente por «fascínio».
É por isso que continuo desconfiado das ca- Realmente, é disso mesmo que se trata: se o livro não
talogações em géneros que nunca obtém consen- agarrar o leitor pelo «fascínio», seja pelo lado do plot,
so entre os diversos luminares que se dedicam ao seja pelo lado da fulgurante manipulação literária,
caso, como os estudiosos de «Teoria dos géneros» e seja por outro interstício supradimensional qualquer
da «Crítica dos géneros», como Devitt (2004), Do- mas igualmente enfeitiçante — a obra falha.
bbs‑Allsopp (2000), ou Prince (2003) sem falar nos E já agora, não gostaria de rematar estes bre-
estudos de Kress (2003) sobre a «literacia». ves alinhavos (ou desalinhos…) sem corresponder,
Já os Gregos desconfiavam da separação de nem que seja a cinquenta por cento, a uma suges-
géneros cortada à faca, e reconheciam que certas tão off‑the‑record do João, de escolher um livro fan-
«Homem sou, nada do que é humano me é alheio». tástico e um livro mainstream que tratassem temas
revista BANG! [ 56 ]
semelhantes, e depois comparar… Confesso que em estratos rígidos. Todas as personagens têm de
a tentação é grande de pôr, lado a lado, dois livros lutar com garras e dentes para ascender na pirâmi-
«de peso» que tratam de um certo eterno feminino de social e económica, pactuando com as situações
malévolo e criado artificialmente, embora este «arti- mais aviltantes e permutando com as figuras mais
ficial» tenha um significado completamente distinto abjectas. Não é um mundo fácil, acreditem!, em es-
em ambos os casos… Mas aqui vai: leiam com aten- pecial para as mulheres que, por serem… enfim…
ção a A Sibila (1954), de Agustina Bessa‑Luís (que mulheres, são observadas como uns não‑seres…
em 2004 já ia com mais de 26 edições), que ganhou Mas Tooth and Claw tem uma particularidade mui-
vários grandes prémios literários do mainstream, tíssimo especial que o distingue, por exemplo, do tí-
bocejem à vossa vontade, e depois deliciem‑se com tulo Framley Parsonage, escrito pelo já mencionado
os gélidos calafrios provocados pela Alraune (1911) Trollope, no qual busca estrutura e inspiração. É que
de Hanns H. Ewers (1871‑1943) — e esqueçam por todas as personagens de Framley Parsonage são hu-
favor as simpatias dele pelo nazismo, coisa que mui- manas, mas todas as personagens de Tooth and Claw
to prejudicou a sua memória literária e que relegou são dragões!
para o desfavor do olvido a sua enorme capacidade
de «criar fantástico».
«Os livros nunca serão perfeitos:
David Soares: terão sempre fantasia a mais ou fan-
Consultar o email e ver que já chegaram mais inter- tasia a menos; serão mais comerciais
venções vossas é um grande prazer: acho que o exer-
cício de participar nesta troca de ideias convosco já
ou pouco comerciais; alternativos
se tornou, para mim, aquilo que o hidrogénio repre- ou mainstream»
senta para a Tabela Periódica. Reli o que foi escrito e
penso que a minha linha de raciocínio ficou repro- São todas répteis alados que vivem em caver-
duzida na integral, o que significa que, à vizinhança nas e cospem fogo. E, no entanto, não deixam de
das considerações finais, tenho poucas palavras a estar incluídas num romance que emerge da leitura
acrescentar aquilo que já foi apresentado por todos. como sendo vitoriano no sentido mais tradicional;
Gostaria de sublinhar algumas ideias, mes- na verdade, as personagens draconianas até fortale-
mo assim. Conhecem o livro Tooth and Claw da Jo cem a luta de garras e dentes travada — literalmen-
Walton? Lembrei‑me dele porque acho que será um te!… — ao longo da narrativa.
bom exemplo para servir de modelo ao que vou ex- Tooth and Claw não dá tréguas: é violentíssi-
por. Esperem só um bocadinho que vou buscá‑lo à mo, demencial e psicadélico! Contudo, é tão… hu-
estante… Já está! Bem, eu não sei como está o tempo mano que se torna desarmante. Este livro ganhou um
em Viana do Castelo, João, mas aqui está um calor World Fantasy Award em 2004 e a minha primeira
tremendo. António, se está em Lisboa poderá com- pergunta é a seguinte: é pelo facto das personagens
prová‑lo. Talvez seja a nossa troca de ideias que se serem dragões que este título pode ser considerado
aproxima do boiling point!… Ui!… As nossas pala- um livro de fantasia? Por outro lado, poder‑se‑ia atri-
vras estão prestes a transformar‑se em vapor. Bom, buir um World Fantasy Award a Framley Parsonage?
eu disse que ia falar sobre o Tooth and Claw, não dis- Não sei…Também existem preconceitos na área da
se? Muito bem. Fantasia e do Fantástico… É público que depois de
Este livro é um romance vitoriano (sub‑géne- Neil Gaiman ter ganho um WFA com uma história
ro realista que se debruça sobre as condições sociais em banda desenhada alguém mudou as regras para
dos indivíduos que viveram no século XVIII e cujo que tal coisa não voltasse a acontecer.
exemplo mais representativo serão as obras de An- Tooth and Claw é mesmo um exemplo exce-
thony Trollope) sobre uma sociedade estratificada lente para partirmos as cabeças: 1) é um romance
revista BANG! [ 57 ]
vitoriano tradicional, mas 2) tem dragões como per- seguinte: eu leio tudo o que me vier parar às mãos.
sonagens e 3) tem, também, uma certa aura de — Estou‑me nas tintas se é Literatura Erudita ou Litera-
porque não dizê‑lo à boca cheia? — imbecilidade que tura Popular. É grosso, é fino? Não interessa. Se tiver
faz com que seja olhado de lado tanto pelos leitores letras e tiver páginas, eu leio.
de fantasia como pelos outros. Conseguem imagi- Gostava de partilhar convosco quatro belos
nar‑me a falar bem deste romance a um leitor que excertos: dois de péssima Literatura Erudita e Popu-
odeie fantasia? “Meu, tens de ler isto! É um romance lar e dois de excelente Literatura Erudita e Popular.
vitoriano maravilhoso. Só que tem — arrhuuum… Palavras para quê? Para ler, claro.
— “dragões” como personagens!” Nem preciso dizer
qual seria a reacção mais provável deste acto falha- «— Certo dia fui a um restaurante para
do de proselitismo. Agora pensem que o recomendo trincar algo e alguém tinha deixado um
a um leitor de fantasia: “Meu, tens de ler isto! É um jornal no balcão. Peguei nele e li‑o. Foi
maravilhoso romance com dragões. Só que tem — ar- quando descobri que tinha sido publicado
rhuuum… — um realista enredo vitoriano!” ‘Nuff um livro meu.
said. A conclusão é que ambos os lados — aquele — Ficaste surpreendido?
que prefere ler Literatura Erudita e aquele que gosta — Não é essa a palavra que eu usaria.
mais de Literatura Popular — são preconceituosos! — Então o quê?
Acho que existe tanto preconceito dentro da — Não sei. Zangado, creio. Perturbado.
área do Fantástico como em qualquer outra área li- — Não compreendo.
terária. É que alguma da Literatura Erudita que para — Fiquei zangado porque o livro era lixo.
aí anda… bem… é mesmo, mesmo boa!… E algu- — Os escritores nunca sabem julgar o seu
ma da Literatura Popular que para aí anda é mesmo, próprio trabalho.
mesmo má! Estou a lembrar‑me do “idiota”, citado — Não, o livro era lixo, acredita em mim.
pelo João na primeira intervenção dele, que dizia Tudo o que fiz era lixo.
no fórum Bad Books Don’t Exist que o 1984 nunca — Porque não destruíste tudo, então?
poderia ser considerado como um livro de ficção — Estava muito ligado àquilo. Mas não é
científica, e só me dá vontade de rir por um motivo isso que o torna bom. Um bebé está muito
que é flagrante: não é um pouco pateta (no mínimo) ligado à caca que faz, mas ninguém se
dizer mal de um livro num fórum que tem como rala com isso. É um assunto pessoal.
nome Bad Books Don’t Exist? O que é que me esca- — E porque razão obrigaste a Sophie a
pou? Poderá ser um sintoma que, mesmo dentro do mostrar‑me o teu trabalho?
nicho, existe um sub‑establishment? Ou parafrasean- — Para a acalmar.»
do Orwell: há livros fantásticos mais fantásticos que (Retirado de O Quarto Fechado da Trilo-
outros? gia de Nova Iorque de Paul Auster.)
Os livros nunca serão perfeitos: terão sem-
pre fantasia a mais ou fantasia a menos; serão mais «The doorbell rang.
comerciais ou pouco comerciais; alternativos ou It was a thirtyish woman, slender as
mainstream; serão impressos em papel reciclado ou Jane Fonda , a bit shorter than DeAnne.
em papel couché; serão escritos por homens para She had three kids in tow, the oldest a
chatear as feministas e por mulheres para chatear os boy about Robbie’s age, and somehow
misóginos; terão autores gay para chatear os homo- — perhaps because of the kids, perhaps
fóbicos — habituem‑se!… Ainda bem que existem because of her practical cover‑everything
livros ou estaríamos condenados a ver as repetições clothing, perhaps just because of her con-
da TV Cabo. fident, cheerful face with hardly a speck of
O meu método de abordagem aos livros é o makeup on it — DeAnne knew that this
revista BANG! [ 58 ]
woman was a Mormon. Or, if she wasn’t, quero referir‑me essencialmente ao complexo pro-
should be.» cesso de aceitação/rejeição‑perpetuação/redescober-
(Retirado de Lost Boys de Orson Scott ta em que são simultaneamente intervenientes leito-
Card.) res, editores, críticos e académicos. Ninguém põe em
causa que cada autor tem uma sensibilidade própria
«Since I didn’t know what masturbation — essencialmente pessoal — com a qual filtra os
was, I of course didn’t know what ejacu- acontecimentos sobre que escreve. É essa diferença
late was. I thought it was pus. I thought it irredutível que ergue algumas obras acima de outras.
was phlegm. I didn’t know what to think, E digo obras, não géneros. La Condition Humaine de
except that it was something terrible. In Malraux, To a God Unknown de Steinbeck, Dying In-
the presence of a species of discharge as yet side de Robert Silverberg, The Body de Stephen King,
mysterious to me, I imagined it was so- V de Thomas Pynchon, The Silence of the Lambs de
mething that festered in a man’s body and Thomas Harris, Pop. 1280 de Jim Thompson, Por
then came spurting from his mouth when Amor al Arte de Andreu Martín, The Devil’s Advo-
he was completely consumed by grief.» cate de Morris West, The Gods Themselves de Isaac
(Retirado de The Ploth Against America Asimov, The Song of Kali de Dan Simmons ou The
de Philip Roth.) Painted Bird de Jerzy Kozynski (entre milhares de
outros títulos que poderia citar) são livros que, inde-
«The orange in the sun loses colour, turns pendentemente de pertencerem a um género popu-
white and develops thick, deep wrinkles. lar ou erudito, independentemente de abraçarem ou
It diminishes in size. Open the orange out não o fantástico, independentemente de um estilo de
and, taking one of the thick, wilted and escrita mais ou menos conseguido, se elevam acima
creased segments, tear it in half. Inside, at da média da literatura em geral, exclusivamente pela
its very centre, is a tiny piece of the orange forma como o tema (quantas vezes banal) é tratado;
that used to be — still fleshy, still clutching veja‑se, por exemplo, o caso de Jim Thompson, um
to a little juice. Were I to peel Emma, I hack writer, que escrevia um livro em coisa de sema-
think that somewhere deep within her, na e meia, quando não em quatro dias, e no entanto
past all that thick seemingly dead cover, imbuía as suas narrativas — brutais, cruas, de uma
I might have found a little life, a little escrita atabalhoada — de uma tal realidade que as
blood.» faz transcender o próprio texto.
(Retirado de Observatory Mansions de E não será difícil encontrar exemplos de casos
Edward Carey.) opostos, livros escritos de forma brilhante, mas que
são como caixinhas de jóias vazias: o interior oco
Aguardo pelos vossos desenvolvimentos. não acolhe nada de interessante e o deslumbramento
com a forma esvai‑se ao fim de poucas páginas; Paul
João Seixas: Auster, Milan Kundera, Salman Rushdie escreveram
À medida que nos vamos aproximando do final des- alguns deles. Mais fácil ainda, encontrar exemplos
tas nossas (necessariamente) breves considerações, de livros em que o vácuo de conteúdo e a ineptidão
mais claro se torna o muito que fica por dizer. Relen- de forma são inseparáveis: qualquer coisa de Paulo
do as nossas intervenções anteriores, apercebo‑me Coelho, Inês Pedrosa, Pedro Paixão, Dan Brown ou
que, talvez por (de)formação profissional, todos te- Scott Wheeler, grande parte da obra de Lin Carter
mos centrado a nossa atenção naquilo que se escreve ou David Alan Prescott.
e como se escreve, sem prestarmos grande atenção à Excluídos, porém, estes casos, encontramos
forma como é recebido aquilo que se escreve. aquela que é, sem dúvida a situação mais frequente
E, ao referir‑me à recepção das obras escritas, em todos os géneros (mainstream incluído): livros
revista BANG! [ 59 ]
escritos de forma capaz, sem nada que os distinga a mas, ao mesmo tempo, e paradoxalmente, parece
nível estilístico mas que arrebatam o leitor, de acor- que ficamos com os olhos muito mais abertos àquilo
do com os seus interesses pessoais, durante as ho- que nos rodeia. Talvez, como referia Gwyneth Jones
ras necessárias à sua leitura. São livros onde o estilo no caso da FC, estes livros que pertencem à literatu-
está subordinado à história, ao plot, e, se a história ra menor consigam “traduzir” muito melhor as an-
for bem contada, conseguem ser mais satisfatórios siedades do seu tempo do que as grandes catedrais
do que algumas das obras‑primas que supra referi. estéticas jamesianas, vazias de fiéis, mergulhadas em
São livros que não necessitam de retirar verdades silêncio, pó e presunção.
essenciais da “experiência da vida”; não têm, do Parece‑me a suprema ironia que sejam estes
início ao fim, uma frase eminentemente citável ou autores (hacks, que escrevem a martelo, comerciais)
um personagem que não seja facilmente esquecível. e estas obras (aventurosas, fantasiosas, por vezes
E no entanto… Ian Fleming, Isaac Asimov, Agatha mal escritas) que muitas vezes logram aquele que é
Christie, Robert E. Howard, Ellery Queen, L. Ron o objectivo manifesto da literatura erudita: mudar
Hubbard, A. E. Van Vogt, Clive Cussler, Richard o mundo, congelar em si a essência de uma época,
Laymon, Dean Koontz, Kenneth Robeson, Edgar documentar a identidade da espécie humana. Que
Rice Burroughs, Laurel K. Hamilton, Anne Rice, sejam elas, afinal, as que mais vezes abordam as tais
Lester Dent, H. Rider Haggard, John Buchan e tan- “coisas mais profundas” e que mapeiem uma possí-
tos, tantos outros, tornaram‑se imortais na memória vel identidade comum da humanidade. As fraque-
daquele que é o leitor intemporal. São autores cujos zas que o establishment lhe aponta são afinal as suas
livros são/serão lidos com o mesmo prazer e o mes- mais‑valias. Ao fim e ao cabo, é na história, na nar-
mo agrado mesmo volvidos mais de cem anos sobre rativa, no plot, que assenta a literatura. A estrutura
a sua publicação, mesmo que tenham de atravessar o típica de uma obra de género é como um ritual que
deserto de alguns anos de esquecimento. codifica as expectativas de uma época, de uma classe
social, de uma nação. Alterando‑se o ritual, altera‑se
a sociedade (ou, mais frequentemente, reflecte‑se
«Apenas os imbecis e os essa alteração). A literatura erudita — interior, um-
irrecuperavelmente relapsos bilical, individual — é apenas um reportório de ca-
procurarão na literatura uma sos clínicos (Freud dixit, antes do descrédito das suas
teses que — outro paradoxo — sobrevivem apenas
perspectiva da realidade» na academia que matou a literatura com o escalpelo
saussuriano). Já ninguém lê Zola, mas Verne conti-
Tal como o David disse numa das suas inter- nua a ser um best‑seller. James está encerrado nos
venções, e Leonard Cohen imortalizou numa das currículos das universidades, Wells nas prateleiras
suas canções, “you live forever, when you’ve done a das livrarias; de Orwell sobrevivem as obras fabulis-
line or two”. Uma das experiências mais compensa- tas (1984 e Animal Farm), Asimov é reeditado quase
doras que se pode viver é a de “descobrir” um novo todos os anos.
livro ou um novo autor, mesmo que esse livro tenha “Swift’s Gulliver, Huxley’s Brave New World,
sido publicado há dezenas de anos e o autor não Orwell’s Nineteen‑Eighty Four are great works of li-
seja referido em nenhuma História da Literatura. A terature because in them the oddities of alien worlds
maior parte das vezes, damos com livros desprovi- serve merely as a background or pretext for a social
dos de artificialismos narrativos, onde as persona- message. In other words, they are literature precisely
gens são completamente despidas de vida interior, to the extent to which they are not science fiction, to
mas que nos agarram pelo mero incidente da acção. which they are works of disciplined imagination and
Terminada a sua leitura, não nos foram reveladas ne- not of unlimited fantasy”. Quem assim escreve, an-
nhumas das verdades da vida (seja lá isso o que for) tecipando em 55 anos o idiota do BBDE, é Arthur
revista BANG! [ 60 ]
Koestler, no seu ensaio “The Boredom of Fantasy” deixam de ser avaliadas pelo seu mérito intrínseco,
na Harper’s Bazaar de Agosto de 1953. A profunda mas pelos seus autores: recordo‑me de uma das mais
falácia que encerra já foi bastas vezes denunciada ao patéticas críticas literárias que li no suplemento Lei-
longo dos anos. No entanto, a ideia está lá, escrita turas do Público, em 11 de Setembro de 1999, onde
por uma das luminárias do Séxulo XX: a literatura até a mancha gráfica do texto dos Cães de Rui Nunes
— a verdadeira, a boa literatura, tem que possuir (a mancha gráfica, como sabemos, é alheia à vontade
uma mensagem de carácter social. Ou, recuando do autor) era tida como uma revelação; recordo‑me
ainda mais, numa linha ininterrupta de continuida- de Inês Pedrosa (ou alguém semelhante, tão pareci-
de, podemos recorrer a William Dean Howells que dos são todos eles) referindo que Lobo Antunes esta-
no seu “Novel Writing and Novel Reading” (1899), ria a perder qualidades porque começara a publicar
erguia a verdade como sendo o teste definitivo da li- um romance por ano, à moda dos autores comerciais
teratura: “(the novel is) the sincere and conscientious norte‑americanos (como se fosse impossível publi-
endeavour to Picture life as it is, to deal with character car três bons livros num único ano, como já King
as we witness it in living people, and to record the inci- fez, ou apenas um de oito em oito anos, como Harris,
dents that grow out of character. (…) If I do not find it ou um na vida, como Lampedusa, ou vinte em dois
is like life, then it does not exist for me as art. It is ugly, anos, como Dick).
it is ludicrous, it is impossible”. A literatura erudita transforma‑se assim numa
Fidelidade ao real e mensagem de carácter so- tradição limitada, na perpetuação de um modelo (ele
cial. O que poderá ser mais espartilhante, mais re- próprio assente nos clássicos, eles próprios assentes
dutor? Apenas a ideia que lhe está subjacente: a de no acaso) congelado no tempo pela perpetuação
que a Alta Literatura, a literatura erudita, trata essen- da cotterie académica e crítica que o sustenta e que
cialmente de temas universais, imutáveis ao longo da dele se sustenta, ela própria fechada à intrusão de
história e transversais à humanidade: ou seja, uma novas vozes (veja‑se, entre nós, como os autores
impossibilidade de facto. Com uma tal agenda, os mais jovens, para lhe acederem, têm que imitar de
autores encontram‑se livres de restrições de forma imediato as vozes vetustas que os precedem). A es-
ou estrutura: é a importância do tema, a dignidade crita transforma‑se assim numa fantasia de inspi-
do tratamento, a relevância social que servirão de es- ração, como se assentasse numa musa, ao invés de
cala de mérito. no trabalho árduo e diário dos autores debruçados
E, no entanto, já Kipling, com a sua desarman- sobre os seus teclados. Provavelmente, será o úni-
te simplicidade, escrevia que “no one in the world co refúgio do autor romântico que escreve possuí-
knew what truth was ‘till someone had told a story” do por um demónio interior, ao invés de pelo puro
(in A Book of Words, 1928). prazer de contar uma história. “A literatura é a voz
A literatura erudita, proselitista, moralizan- da noite”, dizia Eduardo Prado Coelho, com a sua
te, pretendendo traduzir a verdade do mundo e as habitual banalidade. É tão a voz da noite, como do
verdades da vida, é um atavismo do dealbar da mo- dia, como da manhã, como de uma tarde de sol ou
dernidade, daquele período em que os romances (e de uma manhã de ressaca. A literatura é a voz de
quão melhor é o termo anglo‑saxónico novel) eram quem escreve por ter uma história para contar e
escritos exclusivamente por cavalheiros para os seus que prefere uma audiência activa, que se imiscui
pares, independentemente de considerações quanto na narrativa a aprecia a inteligência da trama, do
à sua popularidade ou capacidade comercial. Uma que uma audiência passiva, que procura na litera-
tal perspectiva, da Sra. Thornton, de Koestler, de Ho- tura as suas verdades transcendentais.
wells, deixa sempre fora da equação o leitor: a novela A transcendência, escreve Greg Egan (Schild’s
destina‑se aqueles que pensam como nós, pregando Ladder, 2002) “was a content‑free word left over from
apenas aos convertidos e fechando‑se à própria ex- religion… It was probably an appealing notion if you
periência do real. Perante uma tal situação, as obras were so lazy that you’d never actually learnt anything
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about the universe you inhabited, and couldn’t quite referir‑se à profunda falácia que é: «…a literatura —
conceive of putting in the effort to do so…”. a verdadeira, a boa literatura, tem que possuir uma
Apenas os imbecis e os irrecuperavelmente re- mensagem de carácter social. […] Fidelidade ao real
lapsos procurarão na literatura uma perspectiva da e mensagem de carácter social. O que poderá ser mais
realidade, uma fatia de revelação de como as coisas espartilhante, mais redutor? Apenas a ideia que lhe
realmente são; os outros, procuramos na literatura está subjacente: a de que a Alta Literatura, a literatu-
entretenimento, inteligência, um mindfuck assober- ra erudita, trata essencialmente de temas universais,
bante que escancare os preconceitos e os valores ar- imutáveis ao longo da história e transversais à huma-
reigados, uma libertação das grilhetas morais, uma nidade: ou seja, uma impossibilidade de facto».
escapatória para os desejos mais recalcados, um up- Estou inteiramente de acordo, e não posso
grade da realidade, como o David muito bem dis- deixar de me lembrar de um conhecido crítico lite-
se e, como alguém que não me lembro, disse ainda rário e historiador de literatura, Harold Bloom, mui-
melhor, “enquanto uns se contentam com o real, os to mal visto pelos actuais críticos neo‑historicistas,
outros querem corrigi‑lo”. descontruccionistas, sexistas dialógicos e outros
Forma ou conteúdo? História ou Desenvolvi- pós‑modernistas… Pois o bom do homem dizia
mento Interior? Realidade ou Fantasia? coisas como estas, no seu livro The Western Canon
São falsas questões que dicotomizam a utensi- (1994 — O Cânone Ocidental, na excelente tradução
lagem de que a literatura dispõe para cumprir uma portuguesa de Manuel Frias Martins): «Ler os melho-
única e idêntica função: entretenimento inteligente. res dos melhores autores — digamos, Homero, Dan-
te, Shakespeare, Tolstoi — não fará de nós melhores
António de Macedo: cidadãos. A arte é perfeitamente inútil, como disse o
Nas intervenções anteriores do João e do David fo- sublime Oscar Wilde, que tinha razão em tudo. Wilde
ram focados alguns dos pontos essenciais deste nos- também nos disse que toda a má poesia é sincera. Se
so tema, e digo apenas «alguns» porque se virmos eu pudesse, mandava gravar estas palavras na porta
bem são inesgotáveis, o que não quer dizer que os principal de todas as universidades».
tais «alguns» propostos e analisados pelos meus ilus- E, duas páginas mais adiante, interroga‑se:
tres confreires não sejam de peso, e perfeitamente «De onde veio a ideia de conceber uma obra que o
iluminadores de eventuais caminhos a seguir. mundo não deixasse deliberadamente morrer?»
Parece que esta ideia da eternidade da fama li-
«Ora, este curioso (e corrosivo) terária terá começado a surgir e a tomar forma com
o Renascimento, conceito aliás manhoso e escapa-
preconceito continua a preponderar, diço porque, tal como a preferência ou não‑prefe-
mais ou menos disfarçadamente, em rência pela «literatura de género», é coisa que tem
muitos círculos literários e artísticos tendência para variar de acordo com os tempos e as
modas: Alastair Fowler, prof. de Literatura Inglesa
que aspiram ao Prémio Nobel ou ao na Univ. de Edimburgo, em Kinds of Literature: An
Museu Guggenheim» Introduction to the Theory of Genres and Modes, afir-
ma sem rodeios que «temos de admitir o facto de que
Na impossibilidade de comentar tudo, e até a gama completa de géneros nunca está igualmente,
porque nesta fase do campeonato a maratona se para não dizer totalmente, disponível em todos os pe-
aproxima da recta final, limitar‑me‑ei a escrevinhar ríodos. Cada época possui um reportório relativamen-
algumas notas a propósito de um ou outro ponto que te pequeno de géneros a que os seus leitores e críticos
me permita divagar sobre estas fascinantes matérias podem responder com entusiasmo, e o reportório que
— como diz o provérbio: a divagar se vai ao longe… se encontra facilmente à disposição dos seus escritores
Começo por pegar no comentário do João ao é ainda mais pequeno: o cânone contemporâneo é fi-
revista BANG! [ 62 ]
xado para todos excepto para os escritores maiores, ou até ao séc. XIX, e os conceituados Corneille e Racine
mais fortes ou mais arcanos. Cada época faz novas ra- obedeceram‑lhe cegamente!
suras no reportório. Num sentido fraco, talvez todos os É claro que nada impede que tais espartilhos
géneros existam em todas as épocas sombriamente in- sejam utilizados em literatura como meros jogos,
corporados em excepções bizarras e fora do vulgar…» são os chamados «constrangimentos literários»
Por exemplo, no séc. XIX esteve muito em com que se divertem certos autores e certos gré-
voga um género literário, o «romance de adultério» mios: creio que um dos círculos mais notórios
(Flaubert, Tolstoi, Balzac, etc.), que hoje nem merece onde este tipo de fenómeno prospera é o OuLiPo
o rótulo de género! (Ouvroir de Littérature Potentielle), que conta (ou
É curioso que o David tocou neste ponto de contou, alguns já faleceram) com nomes tão co-
uma maneira contundente como quem dá uma es- nhecidos como Georges Perec, Harry Matthews,
tocada de florete com um taco de baseball, e ainda Marcel Duchamp, Stanley Chapman, Italo Calvi-
por cima acerta em cheio! «É desanimador pensar no, etc., e impõem‑se tarefas tão entusiasmantes
que a Escrita é um campo com possibilidades tão como por exemplo escrever um romance inteiro
vastas, mas que se encontra sempre espartilhado por sem a letra «e» (La Disparition, de Georges Perec),
convenções de mercado, acidentes de iliteracia e pre- ou escrever um romance em forma de puzzle ou
conceitos patetas…» Sem dúvida! Não posso deixar ainda um conto ou uma novela em palíndromo,
de me lembrar, reprimindo dentro dos limites da ou seja, tanto se lê de diante para trás como de
decência as inevitáveis e convulsivas gargalhadas, trás para diante, como as frases «Socorram‑me em
do espartilho pateta, para não dizer colete de for- Marrocos», «A diva em Argel alegra‑me a vida»,
ças, que foi, durante séculos, para a literatura em «Anotaram a data da maratona», etc.
geral e para o teatro em particular, a famosa Regra Podemos pensar que isto é um disparate e
das Três Unidades, atribuída ao pobre do Aristó- não tem nada a ver com «literatura a sério», mas
teles que ainda por cima não teve culpa nenhuma: se virmos bem, e como muito bem realçaram o Da-
um humanista iltaliano do séc. XVI, um tal Lo- vid e o João com diversos exemplos e referências, os
dovico Castelvetro, lembrou‑se de publicar um li- preconceitos com que a «crítica» examina os «objec-
vro intitulado La Poetica di Aristotele vulgarizzata tos literários» acaba por ser, no limite, tão absurda e
(1570), onde impingiu a ideia de que Aristóteles aberrante como coisas destas.
tinha imposto a exigência das três unidades dra- No fundo, não passará tudo de mera conven-
máticas, de tempo, de lugar e de acção, e portanto ção?!
um peça de teatro devia confinar‑se a uma única e Bom, eu apesar de tudo creio que não. Há
simples acção, decorrendo num único local, e não sempre um resíduo que não se deixa assimilar pela
ultrapassando um único dia de duração. (Na ver- estupidificação da moda ou pela estreiteza da aná-
dade as observações de Aristóteles na Poética são lise, por mais intelectuais e academizantes que estas
mais descritivas do que prescritivas, e limitam‑se sejam, e esse resíduo, felizmente, é a inesgotável ca-
apenas à unidade de intriga [plot], ou de acção). pacidade da natureza humana de absorver «encan-
Todos nós mais ou menos conhecemos o tamento» onde ele realmente exista — como diz o
estrago que aquele popularíssimo e erróneo livro João:
de Castelvetro provocou na Europa culta: a ab- «Forma ou conteúdo? História ou Desenvolvi-
surda «Regra das Três Unidades» fez uma brilhante mento Interior? Realidade ou Fantasia? — São falsas
carreira e deu origem a polémicas e disputas críti- questões que dicotomizam a utensilagem de que a lite-
cas intermináveis, como por exemplo se um único ratura dispõe para cumprir uma única e idêntica fun-
dia significava 12 ou 24 horas, ou se um único local ção: entretenimento inteligente». [Realce da minha
significaria uma sala, uma rua ou uma cidade. Esta responsabilidade].
curiosa tirania dominou sobretudo a França literária (E ainda podíamos acrescentar outras falsas
revista BANG! [ 63 ]
dicotomias, como plot versus character, ideias versus caccio — que, por mérito próprio, são obras de lite-
imagens, intelecto versus emoções, etc.). ratura fantástica, sublinhe‑se. Para ser sincero, não
Se quisermos abranger todo este vasto uni- encontro na literatura clássica nenhum desdém pela
verso do confronto entre o «género fantástico» e o fantasia ou pelos elementos fantásticos».
mainstream numa outra forma de dicotomia para Isto é verdade, e o que é mais curioso é que
além destas que o João denuncia, eu talvez me atre- estes autores — e outros, como Chaucer, Froissart,
vesse a sugerir que no fundo tudo se resume a uma Malory… — a cavalo entre os sécs. XIII e XV, tal-
questão de respeito ou não respeito pelas leis da vez por serem artistas imaginativos e de alto voo,
Física (seja ela quântica ou mecânica clássica)! De tinham e propunham uma salutar ideia de fantasia,
uma forma geral — e se calhar em muitos casos in- ao passo que nos meios filosóficos (imagine‑se!),
conscientemente — os críticos têm tendência para em paralelo e até bastante tarde, se manteve uma
considerar que as matérias que constituem impossi- conservadora e arcaica ideia de fantasia, conside-
bilidades físicas não merecem acolhimento na Alta rada uma actividade da mente que se identificava
Literatura — dragões que deitam fogo pela boca ou com a suspeitosa imaginação, visto que se opunha
espadas mágicas são impossíveis, logo não podem à realidade, tanto sensível como intelectual. Para
subir ao excelso pódio literário, tal como são impos- os filósofos, a imaginação, sobretudo até ao século
síveis as viagens no tempo ou desviar planetas das XVII, ainda era considerada «maîtresse d’erreur»,
suas órbitas. O que não exclui que os directamente segundo Blaise Pascal (1623‑1662), e «la folle du
implicados em FC&F não procurem distinguir entre logis», no dizer de Malebranche (1638‑1715). Am-
as impossibilidades que a Ciência pode eventualmen- bos seguiam neste particular as pegadas de Mon-
te tornar um dia possíveis (viagens no tempo ou des- taigne (1533‑1592) que, falando daqueles «qui
viar planetas das suas órbitas), e as impossibilidades croient voir ce qu’ils ne voient point», considerava a
que a Ciência (pelo menos em princípio) não está imaginação não como um poder contemplativo e
minimamente interessada em tornar possíveis (dra- criativo do espírito, mas como aquilo que faz com
gões que deitam fogo pela boca ou espadas mágicas). que o erro e a desordem se instalem no mesmo es-
Talvez esteja aqui a mais elementar destrinça entre pírito e o tumulto se apodere do corpo!
FC e Fantástico… De ambos os impossíveis, um Mas os filósofos bem‑pensantes não desar-
pode constituir um interessante desafio para a Ciên- mam, e não obstante terem começado finalmente
cia, o outro não. a perceber a diferença, a partir do século XVIII,
entre imaginação e fantasia, mesmo assim só con-
«Forma ou conteúdo? História ou descenderam com a primeira, que passou a ser
vista positivamente, como actividade criadora e
Desenvolvimento Interior? Realidade instigadora de novas formas e novas ideias (imagi-
ou Fantasia? — São falsas questões nation is image‑in‑action), mas perante a segunda
que dicotomizam a utensilagem de não desarmaram, e a pobre da fantasia continuou
a ser uma «imaginação desenfreada e caótica», em
que a literatura dispõe para cumprir cujos meandros se perde quem queira correcta-
uma única e idêntica função: mente lidar com o mundo e planear as suas direc-
entretenimento inteligente» trizes de vida.
Ora, este curioso (e corrosivo) preconceito
Já agora, e a propósito de Fantástico, não continua a preponderar, mais ou menos disfarça-
gostaria de terminar estas breves notas sem men- damente, em muitos círculos literários e artísticos
cionar um aspecto que o David realçou, e bem, ao que aspiram ao Prémio Nobel ou ao Museu Gugge-
chamar a atenção para «as obras mais conhecidas nheim… Mesmo depois das teorizações de Freud
do Renascimento, como as de Dante, Petrarca e Boc- (as fantasias psicológicas podem constituir forças
revista BANG! [ 64 ]
poderosas graças ao poder dos desejos recalcado) lectivo desvendado por Jung. Mas, se prestarmos
e sobretudo de Dilthey e de Benedetto Croce, em bem atenção ao «mundo concreto» em que se en-
que a fantasia ascendeu ao estatuto estético e se golfam as nossas vidinhas e as nossas actividades
transformou em «fantasia poética» tornando‑se quotidianas, vemo‑lo transpenetrado a cem por
o fundamento da livre criação do artista — mes- cento por um campo invisível de radiações — ou
mo assim, dizia eu, mesmo depois das lucubrações melhor, de interacções —, gravíticas, electromag-
destes ilustres pensadores, ainda hoje se mantém, néticas e subatómicas que «governam» as nossas
pegajosamente, a ideia de que a literatura de fanta- vidas e deixam a perder de vista os prodígios das
sia é uma literatura menor — como se toda a lite- histórias de fadas e de lendárias feitiçarias: a elec-
ratura de ficção, realista ou não realista, mimética tricidade, as ondas de rádio, o telemóvel, a TV, os
ou não mimética, não fosse afinal uma literatura raios‑X, o ciberespaço, a Internet, o comando a
de fantasia: por muito «autênticas» que possam distância, a RV [Realidade Virtual], os infraverme-
parecer as personagens e as acções, a famosa e cau- lhos, a ressonância magnética nuclear, as microon-
telosa advertência que costuma anteceder certas das, os efeitos quânticos, a aceleração de partículas
obras (literárias ou fílmicas), e que diz «qualquer de alta energia…
semelhança com pessoas ou acontecimentos reais é O nosso universo, mais do que um lugar
pura coincidência», mais não é do que uma contri- fantástico, é um misterioso lugar de «encanta-
ta confissão de que tudo aquilo não passa de fingi- mento mágico», como já fazia notar Francis Bacon
ção fantasiada!!! (1561‑1626), barão de Verulam, chanceler de In-
Bem, está na hora de concluir — tenho de glaterra e filósofo, na sua famosa obra Novum Or-
pôr um travão em mim senão corro o risco de me ganum (1620): o universo e toda a sua estrutura, diz
entusiasmar e continuo por aí fora, o que não seria Bacon, é um verdadeiro labirinto para o intelecto
nada decente nem oportuno. humano que o contempla, um labirinto cheio de
Ainda bem que estas «tertúlias» se fazem, caminhos ambíguos e de aparências falaciosas de
é uma maneira expedita de irmos aprendendo o coisas e sinais, uma complexa teia de nós, espirais
que não há tempo de ler e absorver nos milhentos e contracurvas, além de que os nossos sentidos são
livros que tratam de todos estes (e outros!) excitan- enganadores e a mente humana é instável e repleta
tes assuntos, e agradeço ao David e ao João o pra- de ídolos: todo o conjunto se apresenta como visto
zer deste instrutivo e agradável convívio, e ao Luís através duma bola de cristal, simultaneamente de-
a ideia de ter lançado o desafio. Ainda por cima formante e encantada… BANG!
um convívio sobre «géneros» donde, naturalmen-
te, sobressai o «fantástico», que, em quanto género
(ou subgénero?) literário/artístico parece causar
tantos pruridos à crítica mainstrean, quando afinal
o fantástico, sob a capa mágica do invisível (ainda
que mal nos dêmos conta, por tão habituados), é
algo que preenche as nossas vidas dum modo qua-
se absorvente para não dizer sufocante — e nem
sequer precisamos de fazer apelo ao invisível dos
A revista Bang! agradece a António
reinos sagrados, religiosos, míticos ou místicos, de Macedo, João Seixas e David Soares,
preponderantes em todos os tempos e em todas as o tempo e interesse que dedicaram a esta
culturas: basta‑nos referir, por exemplo, o invisível tertúlia. Que seja a primeira de muitas.
psicológico dos sonhos, dos pressentimentos ou Os três autores estão representados neste
número da revista com outros textos,
das coincidências inexplicáveis, bem como todo o onde poderá consultar a biografia de
supra‑mundo dos arquétipos e do inconsciente co- cada um deles. BANG!
revista BANG! [ 65 ]
Anel da Memória
[ficção] [tradução de João Barreiros]
Alexander Jablokov
Keith Roberts
Robert E. Howard
Quase setenta anos depois de escrever (e morrer), aí está ele, ainda e sem-
pre, a inspirar multidões de escritores imitadores, BDs, jogos de computador,
grandes blockbusters de Hollywood. É Robert E. Howard, o lobo solitário que
criou um género. E que nos deu Conan, uma daquelas personagens maiores do
que a vida e nunca totalmente compreendida. Se nunca o leu... aproveite!
I rodeavam, de maxilar projectado e com os olhos
azuis em brasa, selvagens, sob a desgrenhada cabe-
Robert Ervin Howard (1906 - 1936) O Bárbaro mais famoso da literatura fantástica
escreveu fundamentalmente fantasia e está de volta!
aventuras históricas. Nasceu em Peaster,
Texas, filho do Dr. Isaac Howard e de Na sua curta mas marcante carreira, Robert E. Howard
Jane Ervin Howard. Começou a escrever criou sozinho o género que ficaria conhecido como fan-
aos 9 anos (inspirado nas histórias de tasia heróica e trouxe à vida uma das personagens mais
Harold Lamb e Talbot Mundy) mas só em marcantes da literatura fantástica: Conan, o cimério
1924 teve a sua primeira história publi‑ — bárbaro, ladrão, pirata, rei.
cada (o conto Spear and Fang) na edição Quem conhece Conan apenas dos filmes ou da banda
de Julho de 1925 da revista Weird Tales. desenhada vai ficar surpreendido. Os contos de Howard,
Muitas de suas histórias vieram a ser escritos na década de trinta do século XX, são verdadei-
publicadas nessa revista, tendo a honra ros hinos à aventura, ao exotismo, cheios de vida, enredos
da primeira capa em 1926. Escreveu rápidos e caracterizações subtis e credíveis.
histórias de muitos estilos mas as suas Não será exagero dizer que Robert E. Howard está para
criações mais famosas são as do género a literatura fantástica como Dashiell Hammett está para
sword and sorcery - um género de fantasia os policiais. Não só deu novo vigor a um género, como
caracterizado pela ênfase em combates mostrou um caminho para o desenvolvimento das suas
violentos e intervenções sobrenaturais possibilidades.
(deuses, monstros, magos, etc.). Howard
criou uma das personagens mais popu‑ “Se vai ler Conan pela primeira vez,
lares de sempre: o bárbaro Conan, que então tenho inveja de si!”
fez a sua estreia no conto The Phoenix on -Charles de Lint
the Sword em Dezembro de 1932. Para
hospedar essa criação Howard inventou “A escrita de Howard está tão carregada de energia
a Era Hiboriana, que se trata da própria que quase solta faíscas.”
Terra mas num passado pré-cataclísmico -Stephen King
do qual a história actual não guarda
lembranças. Outros personagens célebres Saida de Emergência / 2008
incluem o rei Kull, o aventureiro puri‑ ISBN: 9728839154
tano Salomão Kane e o picto Bran Mak Preço: 16.91€
Morn. Um outro campo em que Howard Na página da editora: 15.22€
foi bem-sucedido foi o do horror sobre‑
natural, no qual emprestou muitas ideias
do seu correspondente e amigo H. P.
Lovecraft. Com uma prosa directa, rica e
mais excitante do que perspicaz, Howard
sempre tentou entreter e não instruir, con‑
seguindo-o fazer com uma grande dose de
sofisticação. BANG!
revista BANG! [ 157 ]
[artigo]
À Descoberta do
[texto de Sofia Moreiras]
Fórum Fantástico
De 2 a 5 de Outubro
Vem aí o evento que os fãs da grande literatura fantástica não
podem perder. É a oportunidade de conhecer autores portugueses e
grandes nomes do mercado internacional. É o Fórum Fantástico, claro!
«O optimismo é algo
[entrevista] [por Stuart Carter]
RM: Nada de novo. Sei que existe algures um guião, RM: Não. Para ser totalmente sincero, a única coisa
que anda de trás para a frente entre estúdio e argu- que desejo nesse sentido é o volume de vendas que
mentista, e sei, através de uma série de fontes não os autores mais comerciais conseguem obter. Nunca
relacionadas, que existe grande entusiasmo em volta me ralei muito com o reconhecimento sob qualquer
do projecto, mas isso não significa obviamente nada tipo de forma e posso certamente viver sem a acla-
até sabermos que vão começar a filmar. Tento não mação do Mainstream Critical Thought. De qualquer
pensar demasiado nisso – melhor continuar sim- forma, esses tipos são sempre os últimos a reparar
plesmente com a minha escrita a tempo inteiro e no que é que está realmente a acontecer.
depois se verá. Quanto ao tipo de filme que pode-
rá sair de CA… bem, temos o produtor responsável SC: Ainda dentro do mesmo assunto, incomoda‑o
pelo Matrix e pelo Predador e o argumentista que que os escritores «a sério», como Margaret Atwood,
trabalhou na versão mais recente do Rollerball. Eu escrevam flagrantes romances de FC e neguem o
diria que são muito boas credenciais para qualquer género como base? Refiro‑me a uma afirmação
potencial filme de FC. feita por ela numa New Scientist recente:
SC: Acha que as anteriores traduções de livros de MA: Oryx & Crake não é ficção científica. É um facto
FC para cinema foram bem sucedidas? dentro da ficção. A ficção científica é quando temos fo-
guetões e substâncias químicas. A ficção especulativa
RM: Bem… «bem‑sucedido» aqui é um conceito é quando temos todos os materiais para realmente a
um bocado elástico. Quero dizer, o Bladerunner, o fazermos… Eu não gosto de ficção científica à excep-
meu filme de FC favorito, continua a ser o ponto de ção da ficção científica dos anos 30, o género monstro
referência para qualquer outra coisa no género em bug‑eyed no seu esplendor. (revista New Scientist)
termos de qualidade, mas é questionável se se trata Enquanto escritor de ficção científica, o que
de uma boa «tradução» do romance inicial de Dick acha disto (se é que acha alguma coisa)?
(embora conste que ele viu o guião antes de morrer
e que gostou). De modo idêntico, o Starship Troopers RM: Sim, eu li o artigo. Acho que é muito triste que
de Paul Verhoeven é um filme brilhante, mas pode- uma escritora respeitada e inteligente como Atwood
mos estar certos de que o velho Robert A. Heinlein faça gala em exibir (ou possivelmente fingir) a sua
está às voltas no túmulo por causa dessa tradução ignorância em relação à FC como se fosse algo dig-
particular. Como sempre, o que se pode fazer no no de orgulho. Afinal, o Handmaid’s Tale ganhou
cinema e o que se pode fazer num livro são coisas o prémio Clarke e ela não pode ignorar esse facto
radicalmente diferentes, por isso não é provável que nem o contexto em que o romance o ganhou. Tal-
os produtos finais sejam muito parecidos. Não se vez seja receio de ser denegrida pela comunidade de
consegue condensar com sucesso um romance de críticos, talvez seja uma fobia profunda ao Star Trek.
400 páginas num filme de duas horas (ou, se se con- É interessante que ela decida delirar com a FC dos
segue, é porque à partida o romance não era grande anos 30, talvez porque ache que isso já foi há muito
coisa) – o que temos de esperar é que a essência do tempo para mais alguém ter lido e, por conseguinte,
livro sobreviva. Depois de ver o novo Rollerball es- seja suficientemente esotérica para ser exclusiva. No
tou bastante satisfeito por John Pogue, o argumen- mundo literário mais comercial existe uma tendên-
tista que ficou responsável pelo CA, ter um razoável cia clara para este tipo de exclusão. Qualquer coisa
sentido da essência que procuro. Por isso… vivemos acessível tem tendência para ser severamente punida
em esperança. sem demora porque elimina a necessidade da inter-
revista BANG! [ 162 ]
pretação crítica e, por conseguinte, a chance dos crí- assim como eu não esperaria que os meus leito-
ticos afirmarem uma superioridade de sofisticação res levassem a sério homenzinhos verdes, também
sobre o resto do mundo. E eu acho, infelizmente, que não lhes podia pedir que acreditassem numa guer-
ela está a fazer‑se para esse grupo particular. Quan- ra travada entre o Bem e o Mal. Temos de criar algo
to à afirmação «Oryx & Crake não é ficção científi- mais convincente que isso. E, tendo eu as tendên-
ca», bem, vejamos: a acção decorre no futuro, lida cias políticas que tenho, foi fácil projectar os vários
com biotecnologia avançada e centra‑se em volta de interesses empresariais/políticos existentes por de-
uma nova raça de seres geneticamente manipulados. trás da luta. Depois, no que toca à violência, tentei
Desculpa, Maggie… mas vais começar a ser mais co- apenas torná‑la o mais realista possível e resultou
medida, ou quê? bastante bem. A violência real é horrível, por isso
a ficcional também precisa de ser. No que diz res-
SC: A actual «Guerra ao Terrorismo»: alguma opi- peito à questão americana, não tenho a certeza que
nião? não estejamos a ser muito simplistas – é verdade
que a FC no outro lado do Atlântico tem por ve-
RM: Credo, Scooby! Vamos fugir? A sério, eu podia zes um tipo de abordagem muito mais optimista,
falar pela Grã‑Bretanha nessa matéria, mas, para ser do tipo os‑mais‑velhos‑estão‑aqui‑e‑está‑tudo‑bem
franco, isso já foi tão convincentemente comentado (ou vai ficar bem) com‑o‑mundo, mas isso é deixar
por tantos outros escritores (Julian Barnes, John Le de fora grandes talentos norte‑americanos como Joe
Carre, Arundhati Roy, e por aí fora) que seria bastan- Haldemann e toda a malta do cyberpunk (Gibson,
te supérfluo. Basta dizer que me sinto nauseado com Sterling, Stephenson, etc…).
a duplicidade moral dos nossos políticos e com a
sua incapacidade (ou talvez apenas má vontade) em SC: Leu alguma FC de Kim Stanley Robinson,
abordar as verdadeiras causas do terrorismo. Para especialmente a série «Marte», que me parece ser
ser muito directo, o Bin Laden é culpa deles e eles um exemplo mais optimista para o nosso futuro,
deviam tratar convenientemente do problema e não em contraposição aos seus romances mais pessi-
tentar vender‑nos contos de fadas sobre o assunto. mistas mas «pelo‑menos‑ainda‑aqui‑estamos».
O seu próximo livro, Market Forces, parece‑me
SC: Faz referência a John Pilger no início de Broken ser mais do mesmo (de todo uma coisa má!) mas
Angels, e a violência nos seus livros tem uma mo- alguma vez sentiu a necessidade de escrever um
ralidade muito clara, especialmente comparada exemplo idêntico de quão boas poderiam ser as
com muita da FC mais militarista (ou, atrevo‑me coisas em vez um severo alerta de quão más po-
a dizer, americana); vê‑se a escrever deliberada- dem vir a ser?
mente contra essa tradição heróica e beligerante
da FC imperialista? RM: Não, nunca li KSR – para ser sincero, não gosto
muito de séries longas, elenco de milhares, seguindo
RM: Sim, Pilger é um pouco um herói para mim. É gerações e por aí fora, o que me parece ser a espe-
um homem que levou um tipo de vida guiada pela cialidade dele. Não que haja alguma coisa de errado
moral e socialmente construtiva que eu poderia ter com isso; de facto, quando se pinta numa tela tão
ambicionado se tivesse ganho juízo mais cedo. É vasta, não se tem realmente muita escolha. Mas eu
bom saber que há por aí gente como ele. Quanto a estou demasiado interessado em entrar nas cabeças
Broken Angels, eu estava a escrever sobre guerra, e dos personagens individuais para estar disposto a
qualquer escritor inteligente nessa matéria vai ver deixá‑los ir com essa facilidade. A minha impressão
que o ângulo belicoso tem credibilidade zero. Tan- superficial da série Marte é de que o único persona-
to ao nível cultural como ao nível do universo de gem central verdadeiro dos livros é o próprio Planeta
leitores, acho que já ultrapassámos isso. Por isso, Vermelho, e isso é demasiado grande para mim.
revista BANG! [ 163 ]
Para mim, a ideia de escrever um melhor almas mais bondosas entre nós parecem mais incli-
(ou bom) futuro não faria qualquer sentido. Quando nadas em seguir a treta da New Age do que em en-
olhamos para a História, não vejo qualquer evidên- frentar construtivamente os factos. Kurt Vonnegut
cia da humanidade tirar o melhor partido das coisas propôs certa vez, no livro Cat’s Cradle, que devíamos
e acho que é uma aposta bastante segura que se tra- deixar uma mensagem para eventuais extraterrestres
ta de uma tendência contínua. Num certo sentido, exploradores que pudessem chegar à Terra depois de
o Protectorado de Kovacs é exactamente isso. Não é nos termos extinguido através da destruição do meio
um caso de pessimismo – é apenas uma extrapola- ambiente. Esculpida na parede do Grand Canyon, a
ção das actuais tendências humanas. E é por isso (diz mensagem seria: «Podíamos Tê‑la Salvo, Mas Éra-
ele modestamente) que me parece que soa a reali- mos Demasiado Reles». Eu acrescentaria a frase «E
dade. Até os romances Cultura de Banks não fogem Era Demasiado Complicado».
a esta necessidade – a Cultura só funciona porque Contra essa perspectiva bastante desespe-
máquinas superpoderosas e (na sua maioria) altru- rante, eu tento concentrar‑me na velocidade com que
ístas impõem um paraíso hedonístico, e mesmo aí conseguimos progredir em questões de complexida-
sempre existiu uma Circunstância Especial. Se nos de que demonstrámos no último século e pensar que
deparamos com este futuro do conselho dos mais afinal ainda tenhamos alguma hipótese. De repeti-
velhos em que toda a gente é sábia e feliz e realizada das guerras mundiais até às Nações Unidas e uma
(não que eu esteja a dizer que KSR faz isto, porque economia de mercado globalmente interdependente
não sei), tudo vai soar terrivelmente falso em ter- em menos de um século – isso deve augurar alguma
mos humanos. Por isso teríamos de escrever sobre coisa de positivo, por muito desumano que o pro-
não‑humanos. E, vá por mim, já tenho muito traba- duto final ainda possa ser. As nossas comunicações
lho a lidar com personagens humanas. Lamento. e tecnologia de transporte tornam cada vez mais
difícil as velhas tendências simiescas de violência e
SC: Tanto Carbono Alterado como Broken Angels opressão ocorrerem sem contestação e existe pelo
são bastante pessimistas sobre o nosso futuro e a menos um conceito geral de genuína responsabili-
humanidade em geral – isto reflecte a sua visão do dade democrática. Mas também temos a nação mais
mundo? poderosa do mundo que se recusa terminantemente
a assinar ou a aceitar a jurisdição de qualquer corpo
RM: Sim, acho que sim. Enquanto espécie, somos do de governo ou lei supranacional (e o Reino Unido a
tipo sobrevivente – vencedores evolutivos, o que, por latir das linhas laterais como o pit bull do rufía do
definição, nos torna bastante desagradáveis. E agora bairro), um domínio corporativo global sobre os
que ficámos sem espaço onde sermos desagradáveis, media e um vasto fastio e desinteresse pelo processo
temos de aprender a ter uma nova abordagem em democrático por parte das pessoas que mais têm a
relação uns aos outros e ao nosso meio envolvente, perder se ele desaparecer. O optimismo é algo muito
o que é difícil de fazer rapidamente. Por isso temos difícil de manter!
alguns séculos de pensamento humanista coerente
contra um milhão de anos de evoluída tendência SC: Acha que alguma vez conseguiremos transfor-
simiana assassina. Ninguém vai apostar muito no mar o espaço num empreendimento sustentável e
humanismo, pois não? Pior ainda, face ao nosso co- continuado?
nhecimento recente do quão complexo e difícil é re-
almente o universo, a reacção da maioria das pessoas RM: Ah, sim. Se me está a falar de sair da Terra para
parece ser recuar para modos de operação simplistas outros planetas, sem dúvida. Não há mais nenhum
e irracionais. A religião fundamentalista está por toda sítio para onde ir, pois não? E, mais cedo ou mais
a parte, uma espécie de ética de «orgulho‑em‑ser‑ig- tarde, se entretanto não nos exterminarmos, vamos
norante» prevalece no mundo desenvolvido, e até as ter de fugir do próximo asteróide invasor, do próxi-
revista BANG! [ 164 ]
mo maxi‑evento vulcânico, da reversão polar, etc. do o qual os gastos militares estariam indexados aos
O sucesso evolutivo que gira em volta destes acon- gastos na Saúde, Serviço de Emergência e Educação,
tecimentos vai exigir uma mobilidade, no mínimo, em proporções sensatas. Se nos podemos dar ao luxo
à escala interplanetária. Ou fugimos ou morremos, de travar guerras constantes no Médio Oriente, po-
e até agora temos provado ser bastante tenazes face demos muito bem pagar adequadamente aos nossos
às ameaças ambientais externas. Não vejo motivos bombeiros, enfermeiros e professores, construir es-
para isso se alterar – o problema é o que se passa cá colas e hospitais decentes e mandar os nossos filhos
dentro. para a universidade sem os castrar com décadas de
dívidas.
SC: Acha que se daria bem com Takeshi Kovacs se
se conhecessem? Obviamente não ia querer irritar SC: Acredita na vida após a morte? Acredita na re-
o homem, mas acha que ia gostar dele e vice‑ver- encarnação?
sa?
RM: Não. Bem… é uma resposta pouco profunda,
RM: Bem, o sujeito deve‑me a vida, por isso ia ter não é? Eu sou o que se poderia chamar um ateu fun-
de se comportar. Partindo do princípio que nos em- cional, mas um agnóstico teórico. Claro que não te-
bebedávamos o suficiente para nos abrirmos um nho a certeza do que poderá existir por aí, por isso,
com o outro, desconfio que ele acharia que eu era em teoria, poderá existir um deus e algum tipo de
um diletante estúpido mimado e eu acharia que ele continuação existencial. Mas, ao mesmo tempo, sei
era um psicopata perigosamente instável. Mas isso muito bem que nenhuma da treta que a religião hu-
não evitaria que viéssemos a gostar um do outro. Por mana inventou é digna de qualquer tipo de conside-
estranho que pareça, temos o mesmo senso de hu- ração séria, por isso, funcionalmente…
mor e, a um nível teórico, ideias semelhantes sobre o
poder e a política. Também me parece (e já constatei SC: Sente‑se inquieto com a ideia da eventual
pessoalmente) que existe uma atracção curiosa entre morte do universo?
pessoas emocionalmente estáveis e instáveis – pare-
ce que, até certo ponto, precisam umas das outras. RM: Bem, já não é provável que eu ande por cá, por
Por isso, sim, talvez nos déssemos bem. Eu sou uma isso tenho de admitir que a minha preocupação é
pessoa bastante estável. limitada. Contudo, Bertrand Russell ficou bastan-
te perturbado com o facto. Ele achava que o facto
SC: Um amigo pergunta: «Embora eu goste de ter de o universo ter de acabar tornava completamente
o livro (Carbono Alterado), será um crime que ain- inúteis todos os esforços humanos, ou, pelo menos,
da não o tenha lido muito embora mo tenha sido tornava difícil preocupar‑se com a humanidade
oferecido de presente?» enquanto projecto de vida. Não li o suficiente dele
para saber se acabou por resolver essa crise do des-
RM: De todo, desde que alguém o tenha pago. De tino humanístico, mas acho que é bastante remoto,
facto, esse amigo devia conseguir que lhe ofereces- mesmo para um filósofo. Quando lá chegarmos (se
sem já o Broken Angels (edição de capa dura, de pre- lá chegarmos) estou convencido que teremos a tec-
ferência). E também não há necessidade de ler esse nologia para lidar com o problema. Somos do tipo
se ele não quiser. sobrevivente, não se esqueça.
SC: Que lei Britânica estabeleceria se tivesse poder SC: Quando é que dançou pela última vez?
para isso?
RM: Numa festa carnavalesca brasileira de caridade,
RM: Algum tipo de sistema de percentagem obriga- em Fevereiro. A 14 de Fevereiro, para ser mais pre-
tória em relação às despesas governamentais, segun- ciso.
revista BANG! [ 165 ]
SC: O que é que mais o irrita? biente dos outros dois livros. Esperem deparar‑se
com a elite governante do Mundo de Harlan, os
RM: A intolerância. Millsport yakuza, seitas religiosas lunáticas, siste-
mas automatizados de armas que enlouqueceram
SC: Quem admira? e as equipas de mercenários fora do activo cujo
objectivo é desligá‑las, surfistas revolucionários,
RM: John Pilger (supracitado) e o meu pai. Arun- Quellist cadres e sérios problemas de crise de
dhati Roy. Todos os que trabalham para a Am- identidade para Takeshi. Agora só tenho de dar
nistia Internacional. Pessoas com princípios que uma certa ordem a isto tudo.
se empenham em aplicá‑los para benefício dos
outros. SC: Agora que não precisa mesmo de traba-
lhar, trabalha?
SC: Que ideias ou tipo de ideias está a magicar
para o próximo livro? RM: Neste momento ainda estou a gozar a no-
vidade – só me demiti do emprego há cerca de
RM: O próximo livro, Market Forces, está pron- oito meses. Às vezes ainda sinto falta de dar aulas,
to. É um afastamento em relação aos outros dois mas acho que não o suficiente para querer regres-
– vou dar férias a Kovacs. Market Forces ocorre sar. Foi uma carreira de catorze anos e, para ser
pouco mais do que daqui a uns cinquenta anos e franco, acho que quando saí já tinha dado tudo
passa‑se no contexto do mundo financeiro inter- o que podia dar. Este Verão vou dar formação a
nacional. Os pontos relevantes são o facto de se- professores como uma espécie de adeus final. De-
rem as instituições financeiras corporativas quem pois acho que vou olhar em redor e ver que tipo
governa agora o mundo, até ao controlo total mi- de trabalho de voluntariado/caridade posso fazer.
litar e político. A CIA foi privatizada, grandes Talvez alguma coisa para a Amnistia Internacio-
unidades políticas como a OPEC e a China fo- nal – gostava de sentir que finalmente vou dar
ram balkanised e a alteração de regime é decidi- alguma coisa, porque já tive certamente bastante
da com base nos possíveis benefícios comerciais. em termos de sorte e apoio ao longo dos anos.
É um mundo amoral e que necessita de agentes
amorais, por isso as pessoas que trabalham na SC: O que é que tem hoje no leitor de CD? Ouve
área são assassinos frios que resolvem questões música enquanto escreve?
de negócio e promoções travando duelos nas ruas
que estão agora desertas porque uma severa legis- RM: Hum… espere, vejamos. Ani diFranco – Lit-
lação ambiental fez com que apenas os mais ricos tle Plastic Castle, Sisters of Mercy – Floodland e
possam ter carro. Ao mesmo tempo, estas pessoas um grupo espanhol espantoso de hip‑hop/fla-
são seres humanos e por isso podemos ver as suas menco chamado Ojos de Bruja. A minha colecção
vidas do lado de dentro e compreender algumas de CD é uma das poucas obsessões duradouras e
das suas motivações. Imaginem Os Sopranos na eu oiço quase de tudo. Tenho um pouco de tudo,
cidade de Londres com um pouco de Mad Max desde Pavarotti até Cypress Hill e, sim, escrevo
e Rollerball. sempre a ouvir música. Não me tinha apercebi-
Depois disto vou voltar a Takeshi e ao do do porquê até há alguns meses numa conversa
Protectorado. O terceiro romance de Kovacs com James Lovegrove e Adam Roberts eles me
passa‑se no Mundo de Harlan, o que nos dá a dizerem que faziam o mesmo para diminuírem
oportunidade de ter uma ideia das influências os seus filtros afectivos e esquecerem o que esta-
que transformaram Takeshi naquilo que ele é, vam realmente a fazer. E é exactamente isso – a
e de complementar alguns pormenores do am- música consegue alhear‑nos do que estamos a fa-
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zer, desinibe‑nos e permite‑nos perdermo‑nos na E, para o resolver, Kovacs terá de destruir alguns
escrita. Comigo funciona! inimigos do passado, resistir às perseguições de
metade dos senhores do crime, suportar as in-
vestidas da sedutora mulher do multimilionário,
SC: «Hip‑hop flamenco»??? confiar numa IA que se projecta na forma de Jimi
Hendrix e lidar com a atracção que sente por Kris-
RM: Sim, a sério. É difícil explicar. Imagine a gui- tin Ortega, a mulher que amava o corpo onde ele
agora se encontra.
tarra flamenca normal com montes de turntable Num mundo onde a tecnologia já oferece o que a
scratch e vozes que algumas vezes são rap e que religião apenas promete, onde os interrogatórios
de resto são flamenco tradicional. É muito fixe, e em realidade virtual significam que se pode ser
acho que é um bocado difícil de encontrar neste torturado até à morte e depois recomeçar de novo
e onde existe um mercado negro de corpos, Kovacs
país – a minha mulher é espanhola e eu arranjei acaba de descobrir que a última bala que lhe desfez
isto em Madrid. Talvez haja na Amazon ou numa o peito é apenas o começo dos seus problemas…
boa secção de Música do Mundo de uma Virgin
Megastore. De resto, tentem na FNAC on‑line.
«Esta união coerente entre o cyberpunk puro e uma
BANG! história policial bem estruturada é um espantoso
romance de estreia.»
Não perca, — Londontimes
do que Murmúrios
Rui Ramos
Murmúrios das Profundezas é uma BD, edição de autor,
da autoria de um grupo de jovens que nem se conheciam
quando começaram a trabalhar. O tema: Lovecraft.
das
agradamos a maioria dos leitores. Que mais poderí-
amos pedir?
Este projecto serviu-nos de rampa de lan-
Profundezas
çamento para o mundo da BD. Aprendemos a ser
artistas, argumentistas, gestores de marketing, pro-
motores, relações públicas, editores, vendedores, ne-
gociadores e muito mais.
Em suma, foi uma grande experiência para
nós que somos estreantes nestes assuntos. Apercebe- Vários artistas
mo-nos que ainda temos muito caminho pela frente
para virmos a ser os artistas que queremos ser, mas
acho que começamos com o pé certo.
Já estamos a trabalhar num novo projecto a
publicar em 2009, chama-se Voyager e o tema é to-
talmente diferente, deixamos o horror para explorar
o género ficção-científica.
Desta experiência, acima de tudo, ficou a
amizade que criamos entre elementos da equipa que
não se conheciam e entre apoiantes ao projecto que
nos deram uma grande ajuda. Nada disto teria sido
possível sem o valioso contributo de todos os inter-
venientes. Criamos um grupo unido e determinado,
que se apoiou sempre nos momentos mais difíceis.
Não posso terminar sem referir que o Mur-
múrios das Profundezas existe porque há 80 anos
atrás, um homem escreveu contos que ainda hoje
nos intrigam, fascinam e despertam a nossa imagi-
nação para a criação de novos contos, novos mun-
dos, novos… horrores.
Contudo, Lovecraft foi apenas um catalisa-
dor. Um pretexto para juntar um grupo. Na verdade,
tudo isto aconteceu porque numa bela noite estival
de lua cheia, eu apanhei um susto de morte. Mas isso
já é matéria para outro conto. BANG!
Rui Ramos natural da cidade Invicta, licenciou-se, tirou um Mestrado em Geologia na Faculdade de Ciências da
Universidade do Porto e está actualmente a terminar o Doutoramento em Geologia. Sempre com desejo de conhecer mais,
tirou ainda os cursos de escalada, teatro, workshop de teatro de marionetas, Yoga e fez um interrail pelo sul da Europa até
às paisagens exóticas da Capadócia. Inspirado pelas suas viagens e aventuras como Geólogo, Rui decidiu investir na sua
formação de contador de histórias e frequentou os cursos de BD no CIEAM em Lisboa, o curso de BD e Ilustração na
FBAP, workshop de Guionismo para BD, curso de Ilustração Infantil, curso de escrita criativa, workshop: oficina de
criação de personagens, curso de empreendedorismo na EGP. Reuniu duas equipas distintas de novos artistas
(vinte no total) e juntos estão a dar corpo a novos projectos de Banda Desenhada. Os Murmúrios das Profundezas
são apenas a primeira pedra de um edifício que está a nascer... aos poucos. BANG!
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5 Estrelas
[crítica]
Bang! 5
Ammar ibn Khairan, livremente inspirado
na figura do poeta e soldado árabe Ibn Ammar de
Silves, é uma figura central nas intrigas políticas
que estão prestes a mudar Al-Rassan para sempre.
Ao serviço do novo rei Asharita, ele é traído e en-
viado para o exílio onde mais tarde será recrutado
como mercenário na corte de Ragosa. Jehane bet
Ishak, uma kindate física, salva um mercador de
Setembro 2008 - Trimestral
uma sentença à morte, mas põe em risco a sua pró-
pria vida, forçando-a a fugir da ira do rei. Rodrigo
Belmonte, inspirado na lendária figura de El Cid, é
um líder militar Jadita forçado a submeter-se aos
impostos e ao domínio dos Asharitas.
Os três são unidos pelo destino e cedo for-
mam uma ligação especial de admiração, amor e
respeito mútuo. Mas os eventos postos em marcha
em Al-Rassan levam inevitavelmente ao confronto
religioso, cultural e político e nem todos terão a ca-
pacidade para sobreviver num jogo cruel onde os
vencedores podem tornar-se subitamente os ven-
cidos…
Kay é um escritor notável e sabe como criar Uma publicação Saída de Emergência.
uma narrativa convincente, com a medida certa de
Todos os direitos reservados.
intensidade emocional e lírica, suspense de cortar
a respiração, e um enorme talento para estabelecer
uma ligação profunda entre o leitor e as persona- Redacção
gens. E acredito que se superou em Ammar ibn
Av. da República, 861, Bloco D, 1º Dto.
Khairan of Aljais e Rodrigo Belmonte. Ao mesmo
tempo que Kay retrata a faceta mais cruel e vio- 275-274 Parede
lenta desses homens, tempera-a com a compaixão
e misericórdia dignas das grandes lendas que per-
Editores
tenceram às civilizações antigas.
E se para algumas culturas ouve-se o canto Luís Corte Real
do cisne, outras se insurgem e assimilam o passa-
do, num ciclo infindável de conquistas, derrotas e
Design
novas conquistas. Os Leões de Al-Rassan poderá
ser uma fantasia histórica, mas é, acima de tudo, Saída de Emergência
um épico emocionante e realista que encarna as
maiores virtudes, assim como vícios, dos povos
Copyrights
que representa. E acaba inevitavelmente por expor
também o verdadeiro sentido do termo choque de Textos e ilustrações, propriedade da editora
civilizações. BANG! e/ou dos respectivos autores
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