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Verdade do cristianismo?

Por Joseph Ratzinger

ROMA, quarta-feira, 11 de maio de 2005 (ZENIT.org).- Publicamos a conferência ministrada pelo


cardeal Joseph Ratzinger na Sorbona de Paris no dia 27 de novembro de 1999 sobre «Verdade
do cristianismo?».

Ao final do segundo milênio, o cristianismo vive, no terreno de sua expansão original, a Europa,
uma profunda crise que resulta de sua pretensão à verdade. Esta crise tem uma dimensão
dupla; primeiro, é colocada cada vez mais a questão de se é justo, no fundo, aplicar a noção de
verdade à religião: em outros termos, se é dado ao homem conhecer a verdade propriamente
dita sobre Deus e as coisas divinas. O homem contemporâneo se reconhece melhor na parábola
budista do elefante e os cegos: um rei do norte da Índia reuniu um dia em um mesmo lugar a
todos os habitantes cegos da cidade. Depois fez passar diante dos assistentes a um elefante.
Permitiu que uns tocassem a cabeça, dizendo: isto é um elefante. Outros tocaram a orelha ou a
presa, a tromba, a pata, o traseiro, os pêlos da cauda. Em seguida, o rei perguntou a cada um:
como é um elefante?, e segundo a parte que haviam tocado, responderam: é como um cesto de
vime, é como um recipiente, é como a barra de um arado, é como um depósito, como um pilar,
como um morteiro, uma vassoura... Então — continua a parábola —, começaram a brigar e a
gritar “o elefante é assim ou assado” até que avançaram uns contra outros a socos, para grande
diversão do rei. A questão das religiões se revela aos homens de hoje como a questão destes
homens que nasceram cegos. É o que parece; frente aos segredos do divino, somos como cegos
de nascença. Para o pensamento contemporâneo, o cristianismo de maneira nenhuma se acha
em uma postura mais positiva que outras. Ao contrário, com sua pretensão de verdade, parece
particularmente cego frente ao limite de nosso conhecimento do divino, e se distingue por um
fanatismo singularmente insensato, que toma o que irremediavelmente é a parte que a
experiência pessoal conseguiu agarrar, pelo todo.

Este ceticismo geral diante da pretensão de verdade em matéria religiosa se alimenta também
dos questionamentos da ciência moderna sobre as origens e o objeto da esfera cristã. É como se
a teoria da evolução tivesse ultrapassado a teoria da criação, e os conhecimentos sobre a origem
do homem, a doutrina do pecado original: a exegese crítica relativiza a figura de Jesus e duvida
da sua consciência de Filho; a origem da Igreja em Jesus parece incerta, etc. O “fim da
metafísica” propiciou que o fundamento filosófico do cristianismo se tornasse problemático,
enquanto que os modernos métodos históricos colocaram as bases históricas dele sob uma luz
ambígua. Assim, ficou fácil reduzir os conteúdos cristãos a um discurso simbólico, sem lhes
atribuir uma verdade superior à dos mitos da história das religiões: eles são percebidos como
uma forma de experiência religiosa que deve se situar com humildade ao lado de outras. Nesse
sentido, ainda é possível, aparentemente, continuar sendo cristão; as expressões do cristianismo
continuam a ser usadas, embora sua pretensão, é claro, mudou da cabeça aos pés: a verdade
que foi para o homem uma força obrigatória e uma promessa confiável, é agora uma expressão
cultural da sensibilidade religiosa geral, expressão que, dão a entender, é o produto das
circunstâncias de nossa origem européia.

No começo do século XX, Ernst Troeltsch formulou filosófica e teologicamente esta renúncia
interior do cristianismo com relação à sua pretensão universal original, que só podia se fundar
sobre a sua pretensão de verdade. Ele se convenceu de que as culturas são insuperáveis e de
que a religião está ligada às culturas. O cristianismo não é mais do que o ângulo do rosto de
Deus que está voltado para a Europa. As “particularidades individuais dos círculos culturais e
raciais” e “as particularidades de suas grandes formações religiosas em conjunto” alcançam o
nível de uma instância última: “quem se atreve a comparar valores de forma decisiva? Só Deus,
que está na origem destas diferenças, pode fazê-lo”. O cego de nascimento sabe que não nasceu
para ser cego; não deixará de interrogar-se sobre o porquê de sua cegueira e como livrar-se
dela. Só na aparência o homem se resignou ao veredicto de ter nascido cego, com relação à
única realidade que em última instância conta em sua vida. A empresa titânica de se apropriar
do mundo, de extrair de nossa vida e em favor dela tudo o que for possível, prova —tanto como
os fulgores de um culto feito de transe, de transgressão e de autodestruição—, que o homem
não se satisfaz com este julgamento. Se não souber de onde vem nem por que existe, não é
acaso em todo seu ser uma criatura falida? Que enganoso é esse pretenso adeus definitivo à
verdade divina e à essência de nosso eu, e essa aparente satisfação de já não ter que se ocupar
mais disso. O homem não pode se resignar a ser e permanecer em essência cego de nascença.
O adeus à verdade nunca é definitivo. Sendo assim, deve ser reproposta a anacrônica pergunta
de “se o cristianismo for verdade”, por superficial e insolúvel que pareça a muitos. Como
repropô-la? Sem dúvida a teologia cristã deverá examinar minuciosamente, sem medo de se
expor, as diversas instâncias que se elevaram contra a pretensão cristã de verdade em matéria
filosófica, nas ciências naturais, na história natural. Mas também deve obter uma visão que
abranja o problema inteiro da essência do cristianismo, de sua postura na história das religiões e
de seu lugar na vida humana. Queria dar um passo nesta direção, me concentrando na pergunta
de como em sua origens o próprio cristianismo percebeu a sua pretensão no universo das
religiões.

Até onde entendo, nenhum texto da Antigüidade cristã é tão esclarecedor a esse respeito como
a discussão de Santo Agostinho com a filosofia religiosa do “mais douto dos romanos”, Marco
Terêncio Varrão (127 a.C.). Varrão compartilhava a imagem estóica de Deus e do mundo. Definia
a Deus como animam motu ac ratione mundum gubernantem (“a alma que dirige o mundo pelo
movimento e a razão”), em outras palavras, como a alma do mundo que os gregos chamaram
Cosmos: hunc ipsum mundum esse deum. À alma do mundo, certo, não se rendia culto. Não foi
o objeto de uma religio. Em outros termos, verdade e religião, conhecimento racional e ordem
cultual se localizam em dois planos totalmente diferentes. A ordem cultual, o mundo concreto da
religião, não pertence à ordem da res, da realidade como tal, mas sim ao dos costumes (mores).
Os deuses não criaram o Estado, o Estado estabeleceu os deuses cuja veneração é indispensável
para a ordem do Estado e o bom comportamento dos cidadãos. A religião é, em essência, um
fenômeno político. Varrão distingue três tipos de “teologia”, entendendo por teologia a ratio quae
de diis explicatur —a compreensão e a explicação do divino, poderia ser traduzida. Tais são a
theologia mythica, a theologia civilis e a theologia naturalis. Mediante quatro definições,
esclarece o que entende por estas “teologias”. A primeira definição se refere aos três teólogos
classificados segundo estas três teologias: os teólogos da teologia mítica são os poetas, porque
compuseram cantos sobre os deuses e porque são também os poetas da divindade. Os teólogos
da teologia física (natural) são os filósofos, quer dizer os eruditos, os pensadores que, além dos
costumes, se interrogam sobre a realidade, sobre a verdade; os teólogos da teologia civil são os
“povos”, que não optaram por aliar-se aos filósofos (à verdade) mas aos poetas, às suas visões
poéticas, às suas imagens e figuras. A segunda definição concerne ao lugar da realidade onde
cada teologia se localiza. A teologia mítica se estabelece no teatro, o qual se circunscrevia por
completo num âmbito religioso, de culto; de acordo com a opinião imperante, os espetáculos se
instauraram em Roma por ordem dos deuses. A teologia política se acomoda na urbs, enquanto
que o espaço da teologia natural é o cosmos. A terceira definição se refere ao conteúdo das três
teologias: a teologia mítica abrange as fábulas que os poetas criam a respeito dos deuses; a
teologia do Estado, o culto; a teologia natural responde à pergunta: “quem são os deuses?” Aqui
vale a pena escutar com mais cuidado: “se eles são feitos de fogo, como acreditou Heráclito, se
de números, como acreditou Pitágoras, se de átomos, como Epicuro, e outros desvarios
semelhantes, mais adequados para serem ouvidos entre paredes, nas escolas, do que fora, no
trato humano e na conversação social”.1

Aparece, com toda clareza, que esta teologia natural é uma desmitificação ou, melhor ainda,
uma racionalidade que, com seu olhar crítico, supera a aparência mítica que analisa, mediante
as ciências naturais. Culto e conhecimento se separam por completo. O culto continua sendo
necessário, pois é assunto de utilidade política; o conhecimento tem um efeito destruidor sobre a
religião, e por isso não deve ser exposto em praça pública. Finalmente, fica a quarta definição:
Que tipo de realidade constituem as diversas teologias? Varrão responde: A teologia natural se
ocupa da “natureza dos deuses” (que quase não existem), as outras duas teologias tratam de
divina instituta hominum —das instituições divinas dos homens. Assim, toda a diferença se reduz
à que existe entre a física em seu sentido antigo e a religião cultual. “A teologia civil finalmente
não tem deus algum, somente a ‘religião’, a ‘teologia natural’ não tem religião, mas sim somente
uma divindade”. Não, não pode ter religião alguma, porque não é possível dirigir religiosamente
a palavra a seu deus: fogo, número, átomos. Assim, religio (termo que designa essencialmente
o culto) e realidade, o conhecimento racional da realidade, localizam-se como duas esferas
separadas, uma junto à outra. A religio não encontra sua justificação na realidade do divino, mas
sim de sua função política. É uma instituição de que o Estado precisa para existir. Sem dúvida,
achamo-nos neste ponto em uma fase tardia da religião, em que a candura do mundo religioso
se racha e inicia sua decomposição. Entretanto, o vínculo essencial da religião com a
comunidade do Estado penetra ainda mais a fundo. O culto é, em última instância, uma ordem
positiva, e como tal não deve se medir com a questão da verdade. Em uma época em que a
função política tinha ainda forças suficientes para justificar-se como tal, Varrão podia continuar
defendendo o culto politicamente motivado, a partir de uma concepção um tanto crua da
racionalidade e da ausência da verdade, enquanto que o neoplatonismo procuraria logo outra
saída para a crise, um meio no que se apoiará mais tarde o imperador Juliano, em um esforço
por restabelecer a religião romana de Estado: o que dizem os poetas são imagens que não
devem entender-se de forma física; são imagens que, entretanto, dizem o inefável para todos
aqueles a quem está proibido o caminho real da união mística. Embora as imagens como tais
não são verdadeiras, elas se justificam nesse momento como aproximações do que,
necessariamente, deve sempre permanecer inefável.

Mas já nos adiantamos. Com efeito, a postura neoplatônica, por sua parte, é já uma reação
contra a postura cristã, diante do tema da fundação cristã do culto e da fé que está em sua
origem, da topografia desta fé na tipologia das religiões. Voltemos para Agostinho. Onde situa ao
cristianismo na tríade das religiões de Varrão? Surpreendentemente, sem sequer duvidar, atribui
ao cristianismo o seu lugar no domínio da teologia física, no domínio da racionalidade filosófica.
Isto o coloca em perfeita continuidade com os teólogos anteriores ao cristianismo, os Apologistas
do século II, e inclusive, com Paulo e sua topografia da realidade cristã no primeiro capítulo da
epístola aos romanos: uma topografia que, por seu lado, se apóia na teologia
veterotestamentária da Sabedoria — e remonta, anteriormente a esta, até os Salmos e aos seus
escárnios dos deuses. O cristianismo, nesta perspectiva, tem os seus precursores e a sua
preparação interior na racionalidade filosófica, e não nas religiões. O cristianismo, para
Agostinho e de acordo com a tradição bíblica, que para ele era normativa, não se funda em
imagens e pressentimentos míticos, cuja justificação se acha ao fim e ao cabo em sua utilidade
política, mas sim, ao contrário, tende à esfera divina que é capaz de advertir a análise racional
da realidade. Em outras palavras, Agostinho identifica o monoteísmo bíblico com as visões
filosóficas sobre o fundamento do mundo, que se formaram, segundo diversas variações, na
filosofia antiga. Isto é o que se entende quando, do areópago de São Paulo, o cristianismo se
apresenta com a pretensão de ser a religio vera. Significa: a fé cristã não se apóia na poesia
nem na política, essas duas grandes fontes da religião; ela se apóia no conhecimento. Venera a
este Ser que se acha no fundamento de tudo o que existe, o “Deus verdadeiro”. No cristianismo,
a racionalidade se tornou religião, e não seu adversário. Por conseguinte, porque o cristianismo
se entendeu como a vitória da desmitificação, a vitória do conhecimento e, com ela, a da
verdade, devia necessariamente se considerar universal e ser levado a todos os povos: não
como uma religião específica que reprime a outras, não como um imperialismo religioso, mas
sim, mais exatamente, como a verdade que torna supérflua a aparência. E é por isso justamente
que, na ampla tolerância dos politeísmos, ele aparece necessariamente como intolerável, e até
como inimizade da religião, como “ateísmo”. Não se limitou à relatividade e à convertibilidade
das imagens, de sorte que incomodou em especial a utilidade política das religiões, e pôs em
perigo os fundamentos do Estado, ao não querer ser uma religião entre outras, mas sim a vitória
da inteligência sobre o mundo das religiões.

Por outro lado, a esta topografia da esfera cristã no cosmos da religião e da filosofia, também se
acrescenta a força de penetração do cristianismo. Desde antes de a missão cristã ter início, nos
círculos cultos da Antigüidade, foi buscada, na figura do “homem temeroso de Deus”, uma
aliança com a fé judaica. Esta era percebida como uma imagem religiosa do monoteísmo
filosófico, em correspondência com as exigências da razão, ao mesmo tempo que com a
necessidade religiosa do homem. A filosofia não podia responder a esta necessidade por si só:
não se reza a um deus que só é pensado. Entretanto, quando o deus que o pensamento achou
se deixa encontrar no coração da religião como um deus que fala e age, o pensamento e a fé se
reconciliam. Nesta aliança com a sinagoga, permanecia porém um fundo insatisfatório: o não-
judeu não era mais do que um sócio, não obtinha uma inserção completa. Esta amarra foi
rompida pela figura de Cristo no cristianismo, conforme a interpretação de Paulo. A partir daí, o
monoteísmo religioso do judaísmo se tornou universal, e a unidade entre pensamento e fé, a
religio vera, se tornou acessível a todos. Justino o filósofo, Justino mártir (+167) pode ser visto
como uma figura sintomática deste acesso ao cristianismo: ele estudou todas as filosofias e, ao
final, reconheceu no cristianismo a vera philosophia. Ao se converter ao cristianismo, não
renegou, segundo a sua própria convicção, a filosofia; pelo contrário, só a partir daí ele se
tornou realmente filósofo. A convicção de que o cristianismo é uma filosofia, a filosofia perfeita,
a que pôde penetrar na verdade, permaneceu vigente tempo depois da era patrística. Está
presente ainda no século XIV, na teologia bizantina de Nicolau Cabassilas, de uma maneira
totalmente normal. Certamente, não se entendia com isso unicamente a filosofia como uma
disciplina acadêmica de natureza meramente teórica, mas também, e sobretudo, no plano
prático, como a arte de viver e de morrer justamente; uma arte que, no entanto, só se obtém à
luz da verdade. A união da racionalidade e da fé, que se deu no desenvolvimento da missão
cristã e na edificação da teologia cristã, trouxe, é claro, corretivos decisivos na imagem filosófica
de Deus; destes, dois em particular devem ser mencionados. O primeiro consiste em que o Deus
no qual os cristãos acreditam e veneram, ao contrário dos deuses míticos e políticos, é
verdadeiramente natura Deus; nisto, satisfaz as exigências da racionalidade filosófica. Mas, ao
mesmo tempo, também é válido o outro aspecto: non tamen omnis natura est Deus: não toda
natureza é Deus. Deus é Deus por natureza, mas a natureza como tal não é Deus. Uma
separação é feita entre a natureza universal e o ser que a funda, que lhe dá origem. Só então a
física e a metafísica se distinguem claramente uma da outra. Só o Deus verdadeiro que podemos
reconhecer pelo pensamento na natureza é objeto de preces. Embora seja mais do que a
natureza: Ele a precede, ela é sua criatura. A esta separação entre a natureza e Deus se
acrescenta um segundo achado, ainda mais importante: a Deus, à natureza, à alma do mundo,
ou qual for o nome recebia, não era possível rezar; como já vimos, não era um “deus religioso”.
Mas agora, conforme já a fé do Antigo Testamento e mais ainda a do Novo Testamento
enunciava, este deus que precede à natureza se dirigiu aos homens. Por não ser apenas
natureza, ele não é um deus silencioso. Entrou na história, veio ao encontro do homem, e por
isso o homem pode agora se encontrar com ele. Pode se vincular com Deus, porque Deus se
vinculou ao homem. Ambas as dimensões da religião, a natureza em seu reino eterno e a
necessidade de salvação do homem em sofrimento e em luta, que estavam sempre separadas,
estão vinculadas. A racionalidade pode se tornar uma religião, porque o Deus da racionalidade
entrou, por sua vez, na religião. O elemento que a fé finalmente reivindica, a palavra histórica
de Deus, não é acaso o pressuposto para que a religião possa se dirigir agora ao Deus filosófico,
que não é um Deus meramente filosófico e que, no entanto, não desdenha o conhecimento
filosófico, e sim o assume?

Algo surpreendente se torna aqui manifesto: os dois princípios fundamentais, contrários na


aparência ao cristianismo: o vínculo com a metafísica e o vínculo com a história, se condicionam
e remetem um ao outro. Somam juntos a apologia do cristianismo como religio vera. Se,
portanto, se pode dizer que a vitória do cristianismo sobre as religiões pagãs foi possível graças
à sua pretensão de inteligibilidade, terá que acrescentar a isto um segundo motivo de igual
importância. Consiste, para dizê-lo em termos muito gerais, na seriedade moral do cristianismo;
característica que, de resto, Paulo tinha também aproximado da racionalidade da fé cristã. Aquilo
que a lei procura, no fundo, as exigências essenciais, iluminadas pela fé cristã, do Deus único na
vida do homem, é aquilo que satisfaz as exigências do coração humano, de cada homem; de
sorte que, quando esta lei lhe é apresentada, ele a reconhece como o Bem. Corresponde ao que
“por natureza é bom” (Romanos 2, 14). A alusão à moral estóica, a sua interpretação ética da
natureza, é aqui tão manifesta como em outros textos de Paulo; por exemplo, na Epístola aos
Filipenses . “Ocupem seu pensamento em tudo o que for verdadeiro, puro, amável, em tudo o
que for de boa fama; fazendo tudo aquilo que mereça elogio” (Filipenses, 4: 8). Assim a unidade
fundamental (embora crítica) com a racionalidade filosófica, presente na noção de Deus, é então
confirmada e concretizada na unidade, crítica por sua vez, com a moral filosófica. Da mesma
forma que, no domínio da religião, o cristianismo transbordava os limites da sabedoria da
filosofia de escola, porque precisamente o Deus pensado se deixava encontrar como um Deus
vivo; assim, houve aqui também um além da teoria ética em uma práxis moral, vivida e
concretizada de maneira comunitária, em que a perspectiva filosófica era transcendida e
transportada à ação real, em particular na concentração de toda a moral sob o duplo
mandamento do amor de Deus e do próximo. O cristianismo, poderíamos simplificar, convencia
pelo elo entre a fé e a razão, e pela orientação da ação para a caritas, o cuidado caridoso dos
doentes, dos pobres e dos fracos, para além de todos os limites da própria condição. Que esta
fosse a força o cristianismo, sem dúvida se revela com toda claridade na maneira como o
imperador Juliano tentou restabelecer o paganismo sob uma nova forma. Ele, Pontifex maximus
da religião restabelecida dos deuses antigos, instituiu uma hierarquia pagã de sacerdotes e
metropolitas, até então inexistente. Os sacerdotes deviam ser exemplos de moralidade; deviam
se entregar ao amor de Deus (a divindade suprema acima dos deuses) e do próximo. Estavam
obrigados a atos de caridade para com os pobres, não podiam ler as comédias licenciosas nem
as novelas eróticas, e deviam pregar nos dias festivos a partir de um argumento filosófico, para
instruir e formar o povo. A esse respeito, Teresio Bosi diz, com razão, que o imperador não
procurava com isto restabelecer o paganismo, e sim cristianizá-lo, mediante uma síntese
forçada, dirigida ao culto dos deuses, entre a racionalidade e a religião. Podemos dizer, se
olharmos para trás, que a força que transformou o cristianismo em uma religião mundial
consistiu em sua síntese entre razão, fé e vida: esta síntese precisamente acha nas palavras
religio vera uma expressão abreviada.

Impõe-se ainda mais a pergunta: por que esta síntese não convence hoje? Por que a
racionalidade e o cristianismo se consideram, mais ainda, contraditórios e até excludentes? O
que mudou na racionalidade, o que mudou no cristianismo para que seja assim? Antigamente, o
neoplatonismo, Porfírio em especial, opôs à síntese cristã uma interpretação diferente da relação
entre filosofia e religião, uma interpretação que se entendia como a refundação filosófica da
religião dos deuses. Sobre ela, Juliano edificou e fracassou. Hoje entretanto, esta outra maneira
de harmonizar a religião e a racionalidade é a que parece se impor como a forma de
religiosidade adaptada à consciência moderna. Porfírio formula assim sua primeira idéia
fundamental: latet omne verum — a verdade está oculta. Recordemos a parábola do elefante,
que ilustra esta idéia onde coincidem budismo e neoplatonismo. Segundo ela, não há certeza a
respeito da verdade sobre Deus, tão somente opiniões. Na crise de Roma no século IV tardio, o
senador Símaco — imagem reflexa de Varrão e de sua teoria da religião — retornou à concepção
neoplatônica com fórmulas simples e pragmáticas, que se acham em seu discurso de 384 ante o
imperador Valentiniano II, em defesa do paganismo e a favor do restabelecimento da deusa
Vitória no senado romano. Cito só a oração decisiva, já célebre: “Todos veneram uma mesma
coisa, pensamos uma mesma coisa, contemplamos as mesmas estrelas, o céu sobre nós é único,
envolve-nos um mesmo mundo; pouco importam as formas várias da sabedoria mediante as
quais cada qual busca a sua verdade. Não é possível chegar por um só caminho a um mistério
tão grande”. Exatamente isto é o que a racionalidade diz hoje: não conhecemos a verdade
enquanto tal; por imagens diferentes expressamos, afinal de contas, o mesmo. Um mistério tão
grande, o divino, não pode ser reduzido a uma só figura que exclua a todas as outras, a um
caminho que serviria a todos. São muitos os caminhos, muitas as imagens, todas refletem algo
de tudo, e nenhuma é por si mesmo o todo. O ethos da tolerância é o de quem reconhece em
cada um uma parte da verdade, de quem não coloca o seu por cima do outro e de quem se
insere pacificamente na sinfonia polimorfa do eterno Inacessível. Este, com efeito, se dissimula
entre os véus dos símbolos, embora estes símbolos são, tal como parece, nossa única
possibilidade de alcançar de alguma forma o divino. A pretensão do cristianismo de ser a religio
vera teria sido ultrapassada pelo progresso da racionalidade? É indispensável rebaixar o nível de
sua pretensão e inseri-la na visão neoplatônica ou budista ou hindu da verdade e do símbolo?
Conformar-se, como propôs Troeltsch, em mostrar, do rosto de Deus, o ângulo voltado para os
europeus? Deveria ser dado até mesmo um passo a mais com relação a Troeltsch, que
considerava ainda ao cristianismo como a religião adaptada à Europa, tomando em conta que
hoje em dia a própria a Europa duvida dessa adaptação? Esta é hoje a pergunta verdadeira que
a Igreja e a teologia devem enfrentar. Todas as crises que observamos agora dentro do
cristianismo só radicam de maneira muito secundária em problemas institucionais. Os problemas
de instituições e de pessoas na Igreja se derivam, no final, desta pergunta e do seu imenso
peso. Ninguém espera que esta provocação fundamental ao termo do segundo milênio cristão
ache, nem de longe, uma resposta definitiva numa conferência. Não pode achar em absoluto
uma resposta meramente teórica, assim como, por ser atitude última do homem, a religião
nunca é apenas teoria. Ela requer esta combinação de conhecimento e de ação que fundou a
força de convicção do cristianismo dos Padres.

Isto de maneira nenhuma significa que se podem esquivar as exigências intelectuais do


problema, remetendo à necessidade da praxis. Apenas procurarei, para terminar, abrir uma
perspectiva que poderia apontar a direção. Vimos que a unidade racional, entre racionalidade e
fé, a que Tomás de Aquino deu por fim uma forma sistemática, foi rompida menos pelo
desenvolvimento da fé que pelos novos progressos da racionalidade. Como etapas desta mútua
separação, poderíamos nomear a Descartes, Spinoza, Kant. A nova síntese unificadora que Hegel
tentou não devolveu à fé o seu lugar filosófico, apesar de ter tentado transformá-la em razão e
aboli-la como fé. A este absoluto do espírito, Marx opôs a unicidade da matéria; a filosofia teve
que se ater por completo à ciência exata. Só o conhecimento científico exato continuou
merecendo o nome de conhecimento. A idéia do divino foi exonerada. A profecia de Augusto
Comte, de que um dia haveria uma física do homem e que as grandes perguntas até então a
cargo da metafísica deveriam ser tratadas dali em diante tão “positivamente” como tudo o que
já é hoje ciência positiva, teve em nosso século XX, na ciências humanas, uma ressonância
impressionante. A separação que operou o pensamento cristão entre física e metafísica é
relegada cada dia mais ao abandono. Tudo deve se tornar de novo “física”. Cada vez mais, a
teoria da evolução se cristalizou como a via para que desaparecesse para sempre a metafísica,
para que a “hipótese de Deus” (Laplace) se tornasse supérflua e se formulasse uma explicação
do mundo estritamente “científica”. Uma teoria da evolução que explique de maneira conjunta a
soma de toda a realidade se transformou numa espécie de “filosofia primeira”, que representa,
digamos, o fundamento verdadeiro da compreensão racional do mundo. Qualquer tentativa de
pôr em jogo outras causas além das elaboradas por esta teoria “positiva”, qualquer intento de
“metafísica”, é visto como uma recaída abaixo da razão, como uma perda de nível diante da
pretensão universal da ciência. Por isso, a idéia cristã de Deus se considera forçosamente como
não científica. A esta idéia não corresponde mais nenhuma theologia physica: só a theologia
naturalis é, nesta visão, a doutrina da evolução, e esta precisamente não conhece nenhum Deus,
nem Criador no sentido do cristianismo (do judaísmo e do Islã), nem alma do mundo, nem
dinamismo interior no sentido da Stoa. Eventualmente, o mundo inteiro poderia ser considerado,
no sentido do budismo, como uma aparência, e um nada, como a verdadeira realidade, e
justificar assim as formas místicas da religião que não estão, ao menos, em concorrência direta
com a razão.

Foi dita então a última palavra? A razão e o cristianismo estão separados de maneira definitiva?
Em qualquer caso, não existe caminho que possa evitar a discussão sobre o alcance da doutrina
da evolução como filosofia primeira e sobre a exclusividade do método positivo como única
forma de ciência e racionalidade. Esta discussão deve ser feita entre ambas as partes com
serenidade e na disposição de escutar, o que até agora ainda não aconteceu. Ninguém pode
questionar seriamente as provas científicas dos processos microevolutivos. A respeito, R. Junker
e S. Scherer dizem em seu “manual crítico” (kritisches Lesebuch) sobre a evolução:
“Semelhantes acontecimentos (os processos microevolutivos) se conhecem bem com base nos
processos naturais de variação e de formação. Seu exame, mediante a biologia da evolução,
levou a conhecimentos significativos sobre a capacidade genial de adaptação dos sistemas
vivos”. Dizem neste sentido que a investigação das origens pode se qualificada com justiça como
a disciplina régia da biologia. A Pergunta que o homem de fé formulará diante da razão moderna
não se refere a isto, mas sim à extensão de uma philosophia universalis que pretende se
transformar em uma explicação geral do real e tende a abolir qualquer outro nível de
pensamento. Na doutrina mesma da evolução, o problema se destaca no trânsito entre a micro e
a macro evolução, trânsito do que Szamarthy e Maynard Smith,2 ambos partidários convictos de
uma teoria globalizadora da evolução, admitem: “Não há motivo teórico que permita pensar que
as linhas evolutivas se tornam mais complexas com o tempo; também não há provas empíricas
de que isto suceda”. A pergunta que deve ser formulada aqui vai, para falar a verdade, mais a
fundo: a questão é saber se a doutrina da evolução pode se apresentar como uma teoria
universal de tudo o que é real, além da qual já não se permitem e nem sequer são necessárias
perguntas ulteriores sobre a origem e a natureza das coisas; ou se estas perguntas últimas não
transbordam, no fundo, o terreno da investigação aberto às ciências naturais.

Queria expor a pergunta de maneira ainda mais concreta. Será que tudo já foi dito com o tipo de
resposta que encontramos, por exemplo, em Popper, assim formulada: “A vida, tal como a
conhecemos, consiste em ‘corpos’ físicos (melhor: em processos e estruturas) que resolvem
problemas. É o que as diversas espécies ‘aprenderam’ da seleção natural, quer dizer pelo
método de reprodução mais variação; um método que, por sua parte, aprendeu-se segundo este
mesmo método. trata-se de uma regressão; uma regressão ao infinito...”? Não creio. Afinal de
contas, trata-se de uma alternativa que nem as ciências naturais nem a filosofia podem
simplesmente resolver. O ponto está em saber se a razão ou o racional se acham ou não no
começo de todas as coisas e no seu fundamento. O ponto está em saber se o real surgiu a partir
do acaso e da necessidade (ou, com Popper, com Butler, do lucky cunning [feliz casualidade e
previsão]), e por conseguinte, do que não tem razão; se, em outras palavras, a razão é um
produto periférico e acidental do irracional e se for finalmente tão insignificante no oceano do
irracional, ou se continua sendo verdade o que constitui a convicção fundamental da fé cristã e
de sua filosofia: In principio erat Verbum — no começo de todas as coisas está a força criadora
da razão. A fé cristã é, hoje como ontem, a opção pela prioridade da razão e do racional. Esta
pergunta última, como se disse, já não se pode resolver com argumentos tirados das ciências
naturais, e o mesmo pensamento filosófico encontra aqui os seus limites. Neste sentido, não é
possível oferecer uma prova última da opção cristã fundamental. Mas pode a razão, afinal, sem
renegar a si mesma, renunciar à prioridade do racional sobre o irracional, à existência original do
logos? O modelo hermenêutico que Popper oferece, o qual reaparece sob diversas formas em
outras apresentações da “filosofia primeira”, mostra que a razão não pode evitar o pensar o
irracional segundo a sua medida, quer dizer, racionalmente (resolver problemas, elaborar
métodos), restabelecendo assim, de maneira implícita, a primazia da razão questionada. Por sua
opção em favor da primazia da razão, o cristianismo continua sendo ainda hoje “racionalidade”, e
penso que a racionalidade que se desfaz desta opção implicaria, contrariamente às aparências,
não uma evolução mas sim uma involução da racionalidade. Vimos anteriormente que, na
concepção da Antigüidade cristã, as noções de natureza, homem, Deus, ethos e religião estavam
indissoluvelmente vinculadas, e que este vínculo permitiu ao cristianismo divisar a crise dos
deuses e a crise da antiga racionalidade. A orientação da religião dirigida a uma visão racional
do real como tal, o ethos como parte desta visão, e sua aplicação concreta sob a primazia do
amor se associaram. A primazia do logos e a primazia do amor se revelaram idênticas. O logos
não apareceu apenas como razão matemática na base de todas as coisas, mas sim como um
amor criador, ao ponto de se tornar compaixão da criatura. A dimensão cósmica da religião que,
na potência do ser, venera o Criador, e a sua dimensão existencial, a questão da redenção, se
interpenetraram e se tornaram um só problema.

De fato, uma explicação da realidade que não pode fundar por sua vez um ethos de maneira
sensata e compreensiva, é necessariamente insuficiente. Entretanto, é um fato que a teoria da
evolução, quando se arrisca a ampliar-se em uma philosophia universalis, tenta também
refundar o ethos sobre a base da evolução. Mas este ethos da evolução, que inegavelmente
encontra sua noção chave no modelo da seleção, e por conseguinte, na luta pela sobrevivência,
na vitória do mais forte, na adaptação obtida, oferece poucos consolos. Mesmo quando se tenta
embelezá-lo de várias formas, continua sendo afinal um ethos cruel. O esforço por destilar o
racional a partir de uma realidade em si mesmo insensata, fracassa aqui a olhos vistos. Tudo isto
de pouco serve para o que precisamos: uma ética da paz universal, do amor prático ao próximo
e da necessária superação do bem individual. A tentativa de devolver, nesta crise da
humanidade, um sentido pormenorizado à noção de cristianismo como religio vera, deve apostar,
por assim dizer, tanto na ortopráxis como na ortodoxia. Seu conteúdo deverá consistir, no fundo
(para falar a verdade, hoje como ontem), em que o amor e a razão coincidem como pilares
fundamentais propriamente ditos do real: a razão verdadeira é o amor e o amor é a razão
verdadeira. Em sua unidade, são o fundamento verdadeiro e o fim de todo o real.

Cardeal J. Ratzinger

Notas
1. A Cidade de Deus, São Agustín, Livro VI.
2. Existe uma versão em castelhano de seu Handbook on Evolution. [Nota da T.]

[Traduzido por Pe. Celso Nogueira, LC]

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