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SUMARIO

INTRODUÇÄO

Primeira Parte: A REVELAÇÄO DO ESPAÇO E OCEANO


ATLÅNTICO
I. DA REVELAÇÄO DO OCEANO
Os mitos e as lendas
O descobrimento do século XV
A cavalaria insular em Marrocos
As viagens para Ocidente
Colombo e as ilhas
As ilhas do Sul
II. A OCUPAÇÄO DAS ILHAS
Os incentivos do povoamento
O regime de propriedade
O degredo como política de povoamento
As isenções fiscais
Etnogenia Insular
Os estrangeiros
Estratificação Social
Os escravos
A emigração insular
A Madeira e Canárias
As ilhas e a Guiné
A Emigração no século dezanove

Segunda Parte: O MUNDO ATLANTICO


I. A POLÍTICA ATLÂNTICA
A luta pela posse do oceano
O sistema de fortificação das ilhas
O Atlântico e as ilhas nos séculos XVIII e XIX
A nova geografia económica
II.AS ESCALAS DO OCEANO
IV.A ECONOMIA INSULAR
Os Componentes da Dieta Alimentar
Os cereais
A Vinha e o Vinho
Os Produtos de Exportação
A cana-de-açúcar
A expansão da cana-de-açúcar
O pastel
Aproveitamento dos Recursos
O Comércio
O comércio de cabotagem
O comércio inter-insular
O comércio Atlântico
A Europa e as ilhas
IV. AS INSTITUIÇÖES INSULARES
O senhorio das ilhas
O município
Os funcionários
A alçada
As posturas municipais
As instituições régias
A igreja nas ilhas
As constituições sinodais
Os judeus e a Inquisição
CONCLUSÄO
NOTAS
CRONOLOGIA
MICROBIOGRAFIAS
BIBLIOGRAFIA
PRIMEIRA PARTE: A REVELAÇÄO DO ESPAÇO E OCEANO ATLÅNTICO

INTRODUÇÄO

O Atlântico não é só uma imensa massa de água, polvilhada de ilhas, pois a ele
associa-se uma larga tradição histórica que remonta à Antiguidade, donde resultou o
nome de baptismo. Aqui deparamo-nos com um conjunto polifacetado de ilhas e
arquipélagos que se tornaram relevantes no processo histórico do Oceano, quase
sempre como intermediários entre o mar-alto e os portos litorais dos continentes
europeu, africano e americano. As ilhas anicham-se, de um modo geral, junto da
costa dos continentes africano e americano, pois apenas os Açores, Santa Helena,
Ascensão e o grupo de Tristão da Cunha se distanciam dela.
Desde o pioneiro trabalho de Fernand Braudel 1 que às ilhas foi atribuída uma
posição chave na vida do oceano e do litoral dos continentes. A partir daqui a
Historiografia passou a manifestar grande interesse pelo seu estudo. Note-se ainda
que, segundo Pierre Chaunu·, foi activa a intervenção dos arquipélagos da Madeira,
Canárias e Açores, que designou Mediterrâneo Atlântico, na economia castelhana dos
séculos XV e XVII.
Para o Atlântico português a conjuntura era diversa, pois a actuação em três
frentes - Costa da Guiné, Brasil e Índico - alargou os enclaves de domínio ao sul do
oceano. Neste contexto surgiram cinco vértices insulares de grande relevo – Açores,
Canárias, Cabo Verde, Madeira e S. Tomé - imprescindíveis para a afirmação da
hegemonia e defesa das rotas oceânicas dos portugueses. Aí assentava a coroa
portuguesa os principais pilares atlânticos da sua acção, fazendo das ilhas desertas,
lugares de acolhimento e repouso para os náufragos, ancoradouro seguro e
abastecedor para as embarcações e espaços agrícolas dinamizadores da economia
portuguesa. No primeiro caso podemos referenciar a Madeira, Canárias, Cabo Verde,
S. Tomé, Santa Helena e Açores, que emergem, a partir de princípios do século XVI,
como os principais eixos das rotas do Atlântico.
Aqui há necessidade de diferenciar aquelas ilhas que se afirmaram como pontos
importantes das rotas intercontinentais, como as Canárias, Santa Helena e Açores, e
as que se filiam nas áreas económicas litorais, como sucede com Arguim, Cabo Verde,
e o arquipélago do Golfo da Guiné. Todas, à excepção de S. Tomé, vivem numa
situação de dependência em relação ao litoral que as tornou importantes. Apenas a
de S. Tomé, pela importância da cana-de-açúcar, esteve fora desta subordinação por
algum tempo.
O protagonismo das ilhas das Canárias e dos Açores é muito mais evidente no
traçado das rotas oceânicas que se dirigiam e regressavam das Índias ocidentais e
orientais, resultado da sua posição às portas do oceano. Elas actuaram como via de

1 . O Mediterrâneo e o Mundo Maditerrânico na época de Filipe III, 2 vols., Lisboa, 1984 (1ª edição em 1949).
entrada e de saída das rotas oceânicas, o que motivava a maior incidência da pirataria
e corso na região circunvizinha. Mas os dois arquipélagos não foram apenas áreas de
apoio, uma vez que o solo fértil permitiu um aproveitamento das suas
potencialidades por meio das culturas europeio-mediterrâneas. Foi esta última
vertente que os projectou para um lugar relevante na História do Atlântico.
A valorização sócio-económica dos espaços insulares não foi unilinear,
dependendo da confluência de dois factores. Primeiro os rumos definidos para a
expansão atlântica e os níveis da sua expressão em cada um. Depois as condições
propiciadoras de cada ilha ou arquipélago em termos físicos, de habitabilidade ou da
existência ou não de uma população autóctone. Quanto ao último aspecto é de
salientar que apenas as Antilhas, Canárias e a pequena ilha de Fernão do Pó, no Golfo
da Guiné, estavam já ocupadas quando aí chegaram os marinheiros peninsulares. As
restantes encontravam-se abandonadas -- não obstante falar-se de visitas esporádicas
às ilhas dos arquipélagos de Cabo Verde e S. Tomé por parte das gentes costeiras -- o
que favoreceu o imediato e rápido povoamento, quando as condições do ecossistema
o permitiam. Se na Madeira esta tarefa foi fácil, não obstante as condições hostis da
orografia, o mesmo não se poderá dizer dos Açores ou de Cabo Verde, onde os
primeiros colonos tiveram que enfrentar diversas dificuldades. Para as ilhas já
ocupadas as circunstâncias foram diferentes, pois enquanto nas Canárias os
castelhanos tiveram que se defrontar com os autóctones por largos anos (1402/1496),
em Fernão do Pó e nas Antilhas foi mais fácil vencer a resistência indígena.
Nos séculos XV e XVI este conjunto variado de ilhas e arquipélagos firmou um
lugar de relevo na economia atlântica, distinguindo-se pela função de escala
económica ou mista: no primeiro caso surgem as ilhas de Santa Helena, Ascensão,
Tristão da Cunha, para o segundo as Antilhas e a Madeira e no terceiro as Canárias,
Os Açores, Cabo Verde, são Tomé e Príncipe.
Neste grupo emergem a Madeira e as Canárias pelo pioneirismo da ocupação que,
por isso mesmo, se projectaram no restante espaço atlântico por meio de portugueses
e castelhanos. Daqui resulta a evidente vinculação económica e institucional da
Madeira ao espaço atlântico português, como o é das Canárias com as índias de
Castela. Daí também a importância que assume para o estudo e conhecimento da
História do Atlântico a valorização da pesquisa histórica sobre ambos os
arquipélagos. Se nas Canárias tal necessidade se tornou um facto com o empenho de
muitos investigadores e instituições, nomeadamente a partir do Colóquio de História
Canario-Americana (1977), na Madeira só em 1986 com a criação do Centro de Estudos
de História do Atlântico. Na verdade, nos últimos quinze anos, as condições criadas ao
nível institucional levaram a que surgisse uma nova geração de jovens historiadores
insulares, que têm procurado desenterrar dos arquivos a realidade recôndita dos seus
antepassados.
Por tudo isto fica justificada a nossa opção pela abordagem do protagonismo das
ilhas portuguesas do Atlântico, relevando a sua afirmação na estratégia lusíada de
domínio deste espaço e usufruto que nelas tiveram das inúmeras potencialidades
económicas.
I. A REVELAÇÄO DO OCEANO

Por vezes os conceitos que corporizam determinada realidade histórica colocam-


nos inúmeras ciladas, que podem pôr em causa esse mesmo conhecimento. Vem isto
a propósito do uso dos conceitos mais adequados para definir o que realmente se
passou no século quinze com a revelação ao Ocidente daquilo a que viria a ser a nova
realidade atlântica: as ilhas.
Certa Historiografia, partindo de uma visão eurocêntrica do mundo e do pretenso
pioneirismo da iniciativa da gentes das plagas lusitânicas, pretende ver nisto um acto
descobridor e, na consequente fixação, uma forma de colonização. Ambos os
conceitos viciam a realidade e por isso mesmo têm sido motivo de acesa polémica.
Hoje o problema é meramente académico, substituindo-se o seu uso por outros
conceitos, como encontro de culturas, redescobrimento, reconhecimento. E poucos
são já aqueles que mantêm a terminologia tradicional.
O Atlântico, considerado uma revelação ou redescobrimento quatrocentista dos
portugueses, passou a assumir um lugar de protagonista activo em épocas muito
anteriores a esta centúria. Desde a Antiguidade, nomeadamente a partir do século VI
A.C., que surgem testemunhos abonatórios da presença dos povos ribeirinhos do
Mediterrâneo nas suas águas 2 . Primeiro os cartagineses e depois os árabes
preludiaram a gesta concretizada em pleno no século XV pelos portugueses e
castelhanos.
São inúmeros os documentos de vária índole (textos narrativos, portulanos e
vestígios arqueológicos) que abonam em favor do conhecimento do oceano pelos
povos mediterrânicos em data muito anterior à presença portuguesa. O lendário
relato da Atlântida, imortalizado por Platão, os textos narrativos de autores clássicos
greco-romanos, e as mais recentes pesquisas arqueológicas assim o denunciam. Mas o
facto de alguns dos testemunhos assumirem, até ao momento, apenas a dimensão da
lenda, como sucede com a Atlântida e a viagem de Robert Machim, têm levado
muitos historiadores a manter a clássica perspectivação da realidade.
Na actualidade abundam os testemunhos abonatórios de um conhecimento, ainda
que limitado, do Atlântico, das ilhas e plagas ocidentais do continente africano. Deste
modo a gesta portuguesa iniciada em 1418, segundo a tradição, com a primeira
viagem à Madeira, assume apenas a função reveladora à Cristandade ocidental do
novo mundo e não a descoberta. Mais importante que a descoberta, foi a valorização
sócio-económica que definiu a iniciativa dos portugueses.
As provas que fundamentam a presença dos argonautas antigos nestas paragens
acumulam-se e vêm sendo apontadas desde o século XVI pela Historiografia
portuguesa, como o testemunham António Galvão, Damião de Góis e Gaspar

2. Uma das mais recentes aportações reveladoras do interesse dos povos mediterrânicos pelos espaços insulares atlânticos pode ser
comprovada, ainda que só para as Canárias, em Marcos Martinez, Canarias en la Mitologia, Las Palmas, 1992. Confronte-se A. von
Humbolt, Cristóbal Colón y el descubrimiento de América, 2 vols, Madrid, 1925 e 1926; A. García y Bellido, Las islas atlánticas en el mundo
antiguo, Las Palmas, 1967.
Frutuoso. Todavia o empenhamento da historiografia nacional nas reivindicações
imanentes da partilha oitocentista do continente africano conduziu a uma opinião
afirmativa, mantida até à actualidade, da prioridade lusíada no conhecimento do
Atlântico ocidental, oriental e Índico. A publicação em 1954 do polémico estudo de
Armando Cortesão sobre a carta náutica de 1424, em que o autor se declarava a favor do
testemunho da literatura greco-latina, foi mal acolhida. Desta forma se corporizava uma
nova realidade do processo de conhecimento do oceano.
Durante séculos o Atlântico foi considerado o mar das trevas, incapaz de ser
sulcado pelas embarcações mediterrânicas e de se submeter às técnicas de navegação
em uso. O empenho de cartagineses, árabes e peninsulares veio a revelar o contrário e
a torná-lo, a partir do século quinze, no principal centro de convergência dos
interesses europeus. A ponte entre o mundo antigo e moderno fez-se por via dos
árabes, mas foram os portugueses que materializaram a nova realidade. Ao grego ou
romano esta vasta massa de água materializava a dicotomia do bem e do mal,
expressa em visões aterrorizadoras, contrárias à navegação mas favoráveis à sua
afirmação como paraíso dos deuses da mitologia. Mas para o europeu, dos séculos
XV e XVI, ele será a imagem de uma esperança de total mudança dos interesses
económicos. Onde o homem antigo via o paraíso inalcançável, os peninsulares
tornavam real o mítico paraíso.
Esta criatividade literária greco-romano-árabe deu origem a várias ilhas
fantásticas, que surgem com maior acuidade desde o século XIV, como o alvo
preferencial de alguns navegadores incautos. Primeiro divulgou-se a Atlântida,
depois as Afortunadas, Hespérides, Antília (ou Sete Cidades), S. Brandão e Brasil. As
três últimas, que surgem pelo menos desde o século XIV, dominaram a imaginação
dos cartógrafos nesta e posteriores centúrias, cativaram o interesse de outros tantos
navegadores, persistindo, em alguns casos, até ao século dezanove.
A ilha de S. Brandão manteve-se na cartografia desde o século XIII ao XIX, sendo
deslocada para os espaços inexplorados do oceano. Entretanto a Antília atraiu alguns
portugueses, como Fernão Teles (1474), Fernão Dulmo (1486), João Afonso do Estreito
e os irmãos Corte-Reais, que solicitaram junto da coroa o necessário direito de posse.
Para Gaspar Frutuoso 3 estas e outras ilhas não passaram de meras fantasias dos
literatos europeus que o precederam. Na sua obra está bem expressa a total oposição
a esta realidade e à Atlântida de Platão, sendo vários os argumentos apresentados
para fundamentar a sua ideia. Resta saber se esta opinião é corroborada por todos os
seus contemporâneos. Todavia a última perdurou até hoje, conquistando inúmeros
adeptos nos diversos ramos da ciência, que lhe dedicaram muito tempo em estudos e
pesquisas que se tornaram infrutíferos.
Neste contexto as iniciativas portuguesas, desbravadoras do vasto oceano,
atribuíram a nova imagem à realidade atlântica. À visão de Avieno sobrepôs-se a de
Duarte Pacheco Pereira ou de D. João de Castro e Pedro Nunes. A situação
preferencial do português levou-o à defesa do mare nostrum, que depois teve de ser
partilhado com Castela e mais tarde com vários outros europeus. Esta partilha

3 . Saudades da Terra. livro primeiro, Ponta Delgada, 1969, capítulos XXVIII-XXX.


quatrocentista mereceu o comentário incisivo de Gaspar Frutuoso: "não entendo esta
mistura, como neste mar houve dois senhores diversos". Na verdade só a constatação da
conjuntura política permitirá entender a razão desta disputa e partilha pelas duas
coroas peninsulares.
Em face disto podemos afirmar que o conhecimento das ilhas e litoral africano
ganhou forma na Antiguidade, sendo expresso num confronto entre a lenda e a
realidade, de que o mito da Atlântida é a versão mais entusiástica. A Atlântida surge
pela primeira vez na obra de Platão - Timeu e Crítias de 421 A.C -, como corolário de
uma tradição antiga que definia o mar ocidental de uma forma especial. Aí se situava
a mansão dos deuses, o local de destino dos heróis da mitologia grega, definido como
a Makaron Nesoi (=ilhas afortunadas).
O conhecimento da costa africana teria resultado de algumas expedições
realizadas de que se destacam: a primeira por ordem o faraó Necao II em 610 A.C.,
depois a viagem de Sataspes (480-470 A.C.) até à Guiné, e o périplo de Halo em 485
A.C.com sessenta navios desde Cartago, que teria percorrido a costa africana até
Cabo Verde. Estas e outras viagens referenciadas não têm cativado o interesse da
historiografia que se mostra renitente em aceitar a verdade dos relatos contidos nos
textos clássicos. A Historiografia dos séculos XVIII e XIX afirmava peremptoriamente
a veracidade destas informações e defendeu a ideia de que os fenícios projectaram o
seu empório comercial na costa ocidental africana. Apenas os portugueses, pela voz
dos seus eruditos mantiveram a tese de que esta área estava por revelar no início das
navegações henriquinas.
Os autores clássicos (desde Homero, Píndaro, Hesíodo, Plínio o Velho, Diodoro
Sículo, Plutarco, Ptolomeu e Ovídeo) corporizam e testemunham nos escritos que nos
legaram a primeira abordagem pelos povos mediterrânicos a partir do século V A.C.
A estas ilhas foram atribuídos vários nomes e ficaram como palco de inúmeros
acontecimentos da mitologia grega. Talvez por isso mesmo, devido a esse misto de
lenda e realidade, que incorpora os testemunhos, eles não têm merecido o necessário
acolhimento da historiografia europeia. Todavia as preocupações recentes da
Arqueologia poderão conduzir a uma mudança para o conhecimento do Atlântico.
Note-se, por exemplo, que a referência à estatua da ilha do Corvo por António
Galvão e Gaspar Frutuoso e a notícia do encontro em 1749 de moedas púnicas na ilha
do Corvo, que não obstante ter entusiasmado alguns investigadores como Podolyn,
Humbolt e Ernesto do Canto, não conseguiu firmar a sua veracidade. A última foi
reabilitada com a pesquisa arqueológica de B. Iserlin 4 . Quanto à hipotética estátua
equestre, que teria existido na ilha do Corvo ficou, demonstrado por José Agostinho
que a mesma era uma ilusão óptica 5 .
Convém esclarecer que não é nossa intenção afirmar, tal como o fez o Visconde de
Santarém, que o descobrimento das ilhas teve lugar apenas no século XV. Mas referir,
a exemplo de Luís de Albuquerque·, que das ocasionais ou assíduas viagens "não

4. B.S.J. ISERLIN, "Did Carthaginnian mariners reach the island of Corvo (Azores)? Report on the results of joint field investigations

indertaken on Corvo in June 1983", in Rivista de Studi Fenici, XII, Roma, 1084, 31-46.
5. José AGOSTINHO, "Achados arqueológicos nos Açores", in Açoreana, IV, 97.
perdurou memória da experiência adquirida" capaz de guiar ou motivar as expedições
posteriores dos séculos XIV e XV. Dizemos experiência adquirida e não
conhecimento! Pois das expedições, perpetuadas pela literatura perdurou apenas um
conjunto de ilhas, com nomes variados e indiscriminadamente colocadas ao longo da
costa africana até ao golfo da Guiné.
Por outro lado esta visão que tem prefigurado a História do Atlântico antes do
século XV é demasiado reducionista, por tentar definir o nível de conhecimento à
presença ou passagem de apenas os europeus, ignorando qualquer iniciativa das
populações africanas, desde Marrocos até ao golfo da Guiné. A tal perspectivação
eurocêntrica sobrepõe-se a realidade do Atlântico dominado por ilhas vizinhas ou
não da costa africana, alvos de assíduas visitas ou de uma fixação de gentes, como
sucedeu no arquipélago das Canárias e na ilha de Fernão do Pó. A presença de uma
população autóctone oriunda da costa africana atesta que o espaço insular não se
manteve desconhecido e que certamente muitos dos textos que para nós se afiguram
como mera ficção têm que ser reapreciados à luz desta nova realidade.
Os aborígenes do arquipélago canário foram resultado de dois surtos emigratórios:
um primeiro, em data incerta, entre 2500 e 1000 A.C., que levou à fixação das
primeiras gentes nas ilhas próximas do Cabo Juby (Lanzarote e Fuerteventura); e um
segundo entre os séculos VI e IX, provocado pelo avanço árabe no Norte de África,
que conduziu ao total povoamento do arquipélago.
Em Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe é referenciada a presença de gentes africanas
antes da chegada dos portugueses no século XV. Todavia as ilhas encontravam-se
abandonadas à sua chegada na segunda metade do século XV, o que demonstra que
estes encontros, a terem lugar, deveriam ter sido fortuitos. O povoamento delas não
apresentava, então, qualquer interesse, sendo ocasional o da ilha de Ano Bom.
Se para estes arquipélagos, porque próximos da costa, o contacto com as
populações do litoral africano foi uma realidade. O mesmo já não se poderá dizer da
Madeira e dos Açores, cujo distanciamento do litoral, e a navegabilidade dos mares
circunvizinhos não foram de molde a favorecê-lo, ainda que de forma ocasional.
Talvez por isso mesmo seja impossível detectar o rasto da sua existência e
conhecimento na tradição histórico-literária, o que não sucede com as Canárias, por
exemplo.
Ao devassar do oceano na Antiguidade sucedeu nas décadas iniciais da Idade
Média um período de esquecimento. Estivemos perante um acantonamento ao velho
continente e mar mediterrânico, sendo o Atlântico considerado, por isso mesmo, um
mar tenebroso. A ideia começou a ganhar forma com Avieno, que o define como
Ophiusa (= Mar das Trevas). Apenas os geógrafos árabes conhecedores da tradição
clássica e atentos às expedições dos seus compatriotas, continuavam a acreditar na
navegabilidade do mar para além das colunas de Hércules.
Este conhecimento manteve-se por muito tempo fora da área de influência dos
povos peninsulares. A causa disso foi a conjuntura envolvente da alta Idade Média,
em que se sobrepõe a concepção ptolomaica do mundo ocidental, onde imperava a
inabitabilidade e intransponibilidade da zona tórrida 6 . Assim o acesso aos mercados
asiáticos só seria possível pelo mar do Levante.
O oceano continuará por muito tempo como um mar intransponível, repercutindo-
se em Edrisi (1099-1154) as teses de Séneca e Avieno. Mas com o advento do novo
milénio algo estava para acontecer no Ocidente: as cruzadas, por um lado, os
progressos técnicos (bússola, o leme e o navegar à "bolina") e económicos, por outro,
conduziram à abertura dos portos oceânicos. Deste modo às isoladas expedições
árabes: primeiro dos aventureiros de Lisboa em 1147, depois de Ibn Fatima e
Mohamed Ben Ragano, seguiram-se outras, com alguma frequência, sob o comando
de italianos, bretões, bascos, biscainhos e catalães, ao longo do século XIV. Das
últimas, para além do testemunho em texto, perdurou a sua expressão na cartografia,
a partir de finais do primeiro quartel do século catorze.
Desde o século XIII a costa ocidental africana, aquém do Bojador, passou a ser
devassada pelas populações ribeirinhas do litoral mediterrânico que, dando
continuidade à tradição clássica da pesca, encontraram aqui infindáveis riquezas.
Primeiro o aproveitamento dos recursos disponíveis nos mares circundantes. Depois
a procura de plantas tintureiras (urzela) e o resgate de escravos canários. Após a
pioneira viagem dos irmãos Vivaldi, em 1291, seguiram-se outras entre 1342 e 1339,
sendo de referenciar as
Hipotéticas viagens dos "Matelots de Cherebourg", antes de 1312, de Lanzarotte de
Malocello, ao serviço do rei de Portugal, cerca de 1310 e, finalmente, a de Angiolino
del Tegghia de Corbizi e Nicoloso de Recco em Junho de 1341, ao serviço de D.
Afonso IV de Portugal.
Outras viagens tiveram lugar cuja notícia escapou ao nosso conhecimento. Elas, no
entender de Raymond Mauny 7 , deixaram traços evidentes na cartografia do século
XIV. Desde 1325 os portulanos e cartas passaram a representar as ilhas, sendo a
imagem quase irreal, mas a partir de meados da centúria ela aperfeiçoa-se em termos
de perfil e de posição. No caso da Madeira a evolução é flagrante. Em 1339 na carta
Dulcert no seu local surgem três ilhas com o nome de S. Brandão ou das Donzelas.
No Atlas Mediceu de 1350 elas foram substituídas por outras com o nome real e
actual (Porto Sco, I.de lo Legname, I.Deserte), faltando apenas as Selvagens que
aparecem cinco anos depois no Atlas de Abraão Cresques. Em qualquer dos casos o
contorno e posição aproximam-se da realidade. Quanto às ilhas do sul aponta-se,
ainda que erradamente, que a "ixola otinticha" da carta de Andrea Bianco (1448?) com
uma das ilhas de Cabo Verde, possivelmente descoberta por Vicente Dias.
O progresso na representação cartográfica da Madeira resultou de uma assídua
observação presencial a que não pode ser alheio o incremento das expedições ao
vizinho arquipélago das Canárias. Em 1344 o próprio papa de Avinhäo estava ao
corrente do que aí se passava, concedendo o senhorio das ilhas Afortunadas a D. Luís
de La Cerda. Tal ordem condicionou uma acesa disputa pelo arquipélago das
Canárias, que só terá o seu epílogo em 1479 com o tratado de Alcáçovas. Enquanto os

6 Confronte-se W. G. L. RANDLES, Da terra plana ao globo terrestre, Lisboa, 1990.


7 . Raymond MAUNY, Les Navigations médievales sur les côtes ssahariennes antérieures à la découverte portugais (1434), Lisboa, 1960.
monarcas de Leão e Castela manifestavam o seu regozijo, a posição do rei português
D. Afonso IV foi de desagravo e reivindicação, por carta de 12 de Fevereiro de 1345 8 .
A recusa era fundamentada pela proximidade geográfica e pelas expedições
realizadas, pois, como refere o monarca lusitano, "os nossos naturaes foräo os primeiros
que acharão as mencionadas ilhas". Também o protelamento da conquista é justificado
pela "guerra que se ateou primeiro entre nós e os reis sarracenos".
Quanto ao arquipélago açoriano, muito mais adentro no oceano e aquém da costa
africana, a presença na cartografia não está ainda devidamente esclarecida. Note-se
que inúmeros historiadores têm identificado o arquipélago como sendo as ilhas
fantásticas desenhadas no local dos verdadeiros Açores. A primeira é a "insula de
bracir", identificada com a Terceira, na carta dos irmãos Pizzigani de 1367. Depois
num Atlas de Jaffuda Cresques de 1375-77 aparece em seis ilhas no sítio dos Açores, a
que se juntaram mais duas em 1384. Esta representação teve continuidade na
cartografia posterior e também havia sido expressa pela primeira vez no "Libro Del
Conoscimiento" de meados da centúria. Luís de Albuquerque 9 e Gaetano Ferro 10 não
concordam com a sua associação aos verdadeiros Açores. Um dos aspectos que
fundamentam a sua tese é o facto de as cartas de Cristóvão Soligo de 1455 e de
Gracioso Benincasa (1482) apresentarem ao lado dos verdadeiros Açores aquelas ilhas
que até entoo se pensava representar o arquipélago.
As expedições portuguesas ao longo da costa africana não ficaram alheias à
presença em Portugal de Manuel Pessanha, contratado em 1317 por D. Dinis para
criar a frota real e preparar os marinheiros nos conhecimentos necessários na arte de
marear. Na realidade, a já referenciada viagem de 1341 às Canárias, é apontada como
uma consequência disso. Note-se, ainda, que o rei D. Dinis havia conseguido em
1320 11 o necessário apoio por parte do papado para levar a cabo uma guerra de corso
na costa africana, o mesmo acontecendo com o seu sucessor em 1341 12 . A presença de
armadas nestas paragens é um indício de que os mares eram frequentados com
assiduidade. Para além disso estas viagens propiciaram aos marinheiros um primeiro
conhecimento das ilhas próximas, havendo, por outro lado, uma relação entre a
última armada e a expedição enviada neste ano às Canárias.
O confronto aberto em terras peninsulares com os árabes fez esquecer por algum
tempo a disputa pelo novo espaço oceânico. Os portugueses tinham esperado até à
sua definitiva saída do Algarve e à solução de problemas internos para regressarem
ao oceano. O mesmo sucedeu, mais tarde, com os reis católicos que fizeram depender
o apoio à viagem de Colombo da vitória na guerra contra os mouros, que teve lugar
em Granada no início de 1492.

8. Introdução à História dos Descobrimentos Portugueses, Lisboa, 1986, 165-169.


9. As Navegações Portuguesas no Atlântico e no Índico, Lisboa, 1989, 43-44.
10. Monumenta Henricina, I, Coimbra, nº 97, 230-234.
11. J.M.Silva MARQUES, Descobrimentos Portugueses, I, 40-42.
12. Ibidem, 66-70
OS MITOS E AS LENDAS

A par destas notícias, mais ou menos verídicas, de viagens desbravadoras do


oceano Atlântico persiste no primeiro milénio um conjunto variado de lendas que
falam das expedições aí realizadas. A tradição clássica, que apresenta o oceano como
um espaço paradisíaco, apenas acessível aos deuses e heróis, ganha expressão na
literatura da Idade Média. Durante muito tempo acreditou-se que o Eden da Bíblia se
situava algures no Atlântico. A busca do paraíso é um recôndito desejo dos
navegadores, que persiste, ainda, em Colombo.
O momento conturbado que se vivia na Europa, pautado, por um lado, pelas
invasões normandas, por outro, pela ameaça dos árabes, provocou um conjunto de
lendas denunciadoras desta saída forçada. Tudo parecia indicar que a solução estava
no Atlântico. Primeiro tivemos, no século VI, a aventura do monge irlandês S.
Brandão, que fugindo com os seus companheiros aos normandos encontrou assento
numa ilha de delícias, no meio do oceano. Depois em 714 foi a vez de um arcebispo e
seis bispos lusitanos fugirem às investidas dos mouros tendo encontrado no percurso
uma ilha, a Antília ou ilha das Sete Cidades. Esta ilha, representada na carta
portuguesa de 1424, é associada por Armando e Jaime Cortesão às Antilhas.
Ambos os episódios tiveram eco na cartografia dos séculos XIV e XV que as
representa sempre em espaços inexplorados ou pouco conhecidos do oceano. Por
vezes elas confundem-se com os arquipélagos da Madeira, Açores e Canárias, mas a
sua perpetuação até uma fase tardia revela a inexistência de qualquer relação com as
verdadeiras.
Num período tardio surge a viagem de Robert Machim à Madeira, considerada
por uns como lenda e, por outros, como um facto real. A forma como o relato é
apresentado, na versão original de Francisco Alcoforado 13 , adulterada por Valentim
Fernandes 14 ou romanceada por D. Francisco Manuel de Melo, na Epanáfora Amorosa
de 1660, não é de molde a propiciar o nosso total apoio. Em qualquer dos casos
surgem anacronismos de ordem interna e externa que nos fazem antever um misto de
lenda e verdade. Depois de um aceso debate, aberto em 1873 por Álvaro Rodrigues
de Azevedo 15 , o tema passou a ocupar inúmeros investigadores até à actualidade.
Daí resultou o aparecimento do texto original da referida viagem e a fundamentação
genealógica da existência do protagonista da aventura. Verdade ou lenda, o certo é
que o mesmo relato ficará a ilustrar o panorama literário madeirense como
testemunho do conhecimento do arquipélago em pleno século XIV.
É de referir, a propósito, que a versão contada por Valentim Fernandes, onde
Robert Machim é referenciado como um degredado, encontra semelhanças com o
descrito em documento de 1406 16 . Nesta data, de entre o numeroso grupo de
cidadãos expulsos de Inglaterra encontrava-se um Machim e um Machico.

13. "Relação de Francisco Alcoforado", in Arquivo Histórico da Marinha, I, Lisboa, 1936, 317, 329.
14. O Manuscrito de Valentim Fernandes, Lisboa, 1940, 106-108.
15. "Notas", in Saudades da Terra, Funchal, 1873.
16. Public Reccord Office, Rotuli Parliamentorum, VII, 571-572.
O DESCOBRIMENTO OU ENCONTRO DO SÉCULO XV

Não obstante a existência de dados reveladores de um conhecimento dos


arquipélagos atlânticos aquém dos trópicos, a partir do século XIV, a historiografia
continua a insistir na tese do descobrimento quatrocentista. Para isso terá contribuído
a conjuntura nacionalista da segunda metade do século XIX, que estabeleceu esta
opção como resposta às ditas expoliaçöes lançadas pelos franceses, castelhanos ou
ingleses. As intervenções de J. J. da Costa Macedo 17 e do Visconde de Santarém 18
deram corpo à tese oficial da História dos Descobrimentos. Durante muito tempo
continuou a pensar-se que era crime de lesa-majestade apresentar-se a descoberta dos
arquipélagos em data anterior à chegada dos portugueses.
Esta defesa intransigente dos descobrimentos portugueses procurou fundamento
nos cronistas do reino, onde colheu os argumentos da sua tese e de combate aos
detractores. A tradição fez dela uma verdade irrefutável 19 .
A partir da década de quarenta do presente século começaram a surgir opiniões
contrárias, fundamentadas numa aturada e séria investigação. Daí resultou que a tese
da descoberta quatrocentista do Atlântico Oriental se desfez com argumentos
evidentes da cartografia ou fontes narrativas. No caso da Madeira e dos Açores, se
folhearmos as "Saudades da Terra" de Gaspar Frutuoso 20 , uma das fontes primárias em
que assentava a defesa da tese oficial do descobrimento de ambos os arquipélagos,
vamos encontrar os argumentos que a contrariam. O autor ao escrever, em finais do
século dezasseis, esta resenha sobre a história das ilhas, reuniu tudo o que encontrou
na tradição oral e escrita. Deste modo ao lado do testemunho do descobrimento
quatrocentista surgem-nos outros, com a mesma evidência, que apontam para um
conhecimento em data anterior.
Desta e doutras questões relacionadas com o conhecimento das ilhas atlânticas
apresentaremos uma breve síntese do debate havido até ao momento. Daqui
sobressai uma verdade, talvez a única certeza: não há consenso na Historiografia
quanto à data e nome dos descobridores das ilhas e a cada época, escola ou corrente
corresponde uma tese diferente, que em nada contribui para a solução do problema.
Para a Madeira, Açores e Cabo Verde continua-se a discutir a prioridade ou não do
descobrimento pelos portugueses. Nas Canárias, já ocupadas desde tempos recuados,
a questão está em saber quem primeiro contactou com este povo e de lá trouxe o
primeiro resgate de escravos.
Desde a Antiguidade à baixa Idade Média sucedem-se relatos avulsos a atestar
esta abordagem, mas, sem dúvida, o mais importante quanto ao arquipélago foi a
disputa entre portugueses e castelhanos pela sua posse. E é disso que iremos tratar.

17. Memórias para a História das Navegações e Descobrimentos Portugueses, Lisboa, 1819.
18. Memória sobre a Prioridade dos Descobrimentos Portugueses na Costa Ocidental Africana, Lisboa, 1958.
19 O ponto da situação pode ser feito em Pierre Chaunu,Expansão europeia do século XIII ao XV,São Paulo, 1978 (1º ed.1969), pp.183-

196.
20. Confronte-se os livros segundo, terceiro, quarto e ssexto das Saudades da Terra.
A disputa das ilhas Canárias nos séculos XIV e XV é o prelúdio de novos
confrontos com objectivos exclusivistas, bem patentes nos reinos peninsulares 21 . A
defesa do mare clausum e os problemas da sucessão das mesmas coroas foram os
principais responsáveis pelo conflito que teve lugar em dois palcos afins: a Península
Ibérica e o Atlântico Oriental.
O dealbar de uma nova era no século XV conduziu a profundas mudanças na
geografia política da Europa Ocidental. O Mediterrâneo cede lugar ao Atlântico. A
partir de entoo o último oceano, considerado intransponível, passa a afirmar-se como
um dos principais palcos dos acontecimentos onde intervêm as coroas peninsulares,
melhor posicionadas para a disputa.
As ilhas situadas às portas do Novo Mundo têm um papel primordial no processo
de transmutação. Deste modo a disputa pelo vasto oceano inicia-se no mundo
insular, pois do seu domínio dependerá o exclusivo das navegações e comércio no
Atlântico para sul. Assim o entenderam os monarcas de Portugal e Castela, que
desde o século XIV, estiveram envolvidos numa acesa disputa pela sua posse. Por
Portugal tivemos, primeiro, D. Afonso IV e depois, o Infante D. Henrique. O último, a
partir de finais do primeiro quartel do século XV, apostou forte nesta empresa. O
alheamento parcial da coroa castelhana favoreceu o reforço da posição henriquina em
face do seu opositor, a burguesia andaluza. Esta aposta do Infante na conquista das
Canárias e a forma de intervenção na Madeira e nos Açores levou Charles Verlinden
a perguntar-se se estava nos intentos do infante criar um estado insular.
A viagem de Jean de Betencourt em 1402 evidencia, por um lado, o afastamento da
Normandia da opção atlântica e, por outro, o reforço da terra andaluza, uma vez que
o referido expedicionário apenas conseguiu conquistar o apoio da comunidade
sevilhana, nomeadamente da família Las Casas. Depois o conquistador submeteu-se
à suserania do rei de Castela, no sentido de cativar apoios, o que veio a legitimar, à
priori, a soberania castelhana. À burguesia andaluza interessava a posse das ilhas
porque se apresentavam como um mercado importante para o comércio de escravos
e materiais corantes e, mesmo, como base de apoio para posteriores incursões no
litoral africano. O monarca de Castela, grato pela intervenção de Afonso de Las Casas
neste processo, decidiu premiar o seu esforço, solicitando em 2 de Maio de 1421 a
confirmação papal para a posse das ilhas de Gran Canaria, Tenerife, La Gomera e La
Palma.
Perante o evoluir dos acontecimentos ao infante D. Henrique restavam apenas
duas alternativas: a solução diplomática fazendo valer os direitos portugueses junto
do papado ou o recurso a uma intervenção bélica, legitimada pelo espírito de
cruzada, uma vez que os guanches eram pagãos. Assim tivemos as viagens de D.
Fernando de Castro (1424-1440) e António Gonçalves da Câmara (1427).
Nas alegações apresentadas em 1435 no Concílio de Basileia defrontaram-se as
duas opções políticas das coroas peninsulares: a portuguesa pela voz do bispo de
Viseu, D. Luís Amaral, e a castelhana pelo bispo de Burgos, D.Alonso de Cartagena.
Na dissertação do último foram apresentadas as normas que pautavam o direito

21 . Peter E.RUSSELL, O Infante D. Henrique e as ilhas Canárias. Uma dimensão mal compreendida da biografia henriquina, LLisboa, 1979.
internacional da época no que concerne à legitimação da posse das ilhas atlânticas 22 .
Algumas das razões aí aduzidas já haviam sido invocadas no século XIV por D.
Afonso IV para contrariar a ordem papal de conceder a D. Luís de La Cerda o
senhorio das ilhas Afortunadas. Mas numa e noutra frente as conquistas foram
efémeras e não permitiram uma solução imediata do conflito que perdurou por mais
alguns anos, que só foi conseguida por via do tratado estabelecido no ano de 1479 em
Alcáçovas e confirmado pelos monarcas no seguinte em Toledo. A sua assinatura
assinala o abandono definitivo das pretensões portuguesas pela posse das Canárias e
o aparecimento de novos locais de disputa além do Bojador.
Quais os motivos que levaram a esta mudança de atitude?
Por parte dos portugueses ela não deriva apenas do facto de estarmos perante uma
opção henriquina, e que terá morrido em 1460 com o infante, pois que se associam
também mudanças provocadas no espaço Atlântico com o avanço de reconhecimento
de terras para sul. As Canárias, que num primeiro momento eram imprescindíveis
para o apoio à navegação e comércio no litoral africano, perderam-na em favor da
Madeira ou das feitorias recém-criadas na costa africana, como foi o caso de Arguim
(1445). Além disso os avanços na técnica náutica e construção naval permitiam uma
maior autonomia das embarcações deixando de ser necessária esta escala. Por último
acresce o facto de a burguesia andaluza estar empenhada no comércio da Costa da
Guiné, fazendo aí várias incursões, que colocavam em perigo o exclusivo comercial
lusíada. Perante este panorama só uma solução era possível: a via diplomática por
meio da assinatura de um tratado de partilha do oceano.
A proximidade da Madeira ao arquipélago canário em consonância com o rápido
surto do povoamento e valorização económica do solo madeirense orientaram as
atenções dos primeiros colonos para uma activa intervenção na disputa ao lado do
infante. Primeiro foi João Gonçalves, sobrinho de Zarco, que em 1446 foi enviado pelo
infante à ilha de Lanzarote para firmar o contrato de compra da ilha com Maciot de
Betencourt, depois foi a forte presença dos madeirenses na armada para lá enviada
em 1451. Daí resultou inevitavelmente a abertura de uma rota de contacto entre os
dois arquipélagos, que perdurou nas centúrias seguintes.
Enquanto nas Canárias se fala apenas em conquista, cujo inicial obreiro foi Jean de
Betencourt, para os arquipélagos portugueses, abandonados quando da ocupação, o
debate subsistiu em torno da autoria e da data do seu descobrimento. As lacunas e
contradições das fontes diplomáticas ou narrativas não propiciam qualquer consenso.
Para Cabo Verde a disputa gira apenas em torno do nome do descobridor, na
Madeira e nos Açores não existe acordo quanto à data e ao nome do verdadeiro
descobridor.
Quanto aos Açores há os que defendem a tese tradicional apontando Gonçalo
Velho como o seu descobridor em 1439, e os que fundamentam a sua tese numa
legenda da carta Valsequa (1439), que afirma peremptoriamente o descobrimento em
1427 por Diogo de Silves 23 . Esta última opção conquistou a historiografia no

22 . J.M. Silva MARQUES, Descobrimentos portugueses, t. I, 886-88, 291-346.


23 . A questão foi amplamente discutida por Damião Peres, História dos Descobrimentos Portugueses, Porto, 1983, pp.71-77.
momento presente. A controvérsia gerada resulta, fundamentalmente, da
precariedade das informações reunidas nos textos coevos (Gomes Eanes de Zurara e
Diogo Gomes) ou na confusa organização das diversas versões, como sucede por
exemplo em Gaspar Frutuoso 24 e seus seguidores.
A partir da versão frutuosiana do descobrimento dos Açores a Historiografia dos
séculos dezanove e presente encarregou-se de estabelecer várias teses, que podem ser
resumidas em quatro: trecentista, quatrocentista, henriquina e gonçalista. As três
últimas defendem o seu encontro no século quinze, divergindo apenas quanto à sua
autoria: marinheiros anónimos, que tanto podiam ser da casa do Infante D. Henrique
ou Diogo de Silves, numa viagem de retorno da costa ocidental africana, ou Gonçalo
Velho Cabral, cerca de 1431. Esta última resulta da interpretação dada à referência
feita por João de Barros sobre estas ilhas. Mas aí e nos demais documentos Gonçalo
Velho é citado apenas como povoador, situação corroborada também por Zurara e
Diogo Gomes.
Da primeira versão o principal fundamento é a cartografia do século XIV, onde
surgem representadas umas ilhas que se pensa serem as dos Açores. Contudo não há
consenso quanto à sua autoria. Para uns foram marinheiros italianos ou catalães,
enquanto outros referem a intervenção de portugueses e pilotos genoveses ao serviço
de D.Afonso IV. Alguns historiadores negam esta última possibilidade dizendo que
tais representações cartográficas são fantásticas e nada têm a ver com os verdadeiros
Açores. Aprova disso é a sua presença ao lado das ilhas verdadeiras nas cartas dos
séculos XV e XVI.
Quanto ao arquipélago da Madeira o problema apresenta-se mais difícil, uma vez
que as versões são tantos quantos os cronistas que a tal propósito escreveram. Em
Francisco Alcoforado 25 , João de Baros 26 , António Galvão 27 , Valentim Fernandes 28 ,
Jerónimo Dias Leite 29 , Gaspar Frutuoso surgem-nos diferentes interpretações do
acontecimento com diversos protagonistas. Aqui o facto mais saliente é o relato da
aventura de Robert Machim, apresentado em diversas versões. Mas vejamos, ainda
que sumariamente, a forma como o problema tem sido abordado pelos cronistas e
Historiografia.
Todos os autores referenciados suo unânimes em considerar o povoamento da
Madeira como obra portuguesa, tendo como dirigente o infante D. Henrique, apoiado
em João Gonçalves Zarco, com ou sem a colaboração de Tristão Vaz. A polémica tem
lugar quanto à data do descobrimento e à autoria. Para uns as ilhas foram
descobertas por portugueses: João Gonçalves Zarco com Tristão Vaz, ou apenas
Afonso Fernandes. Para outros foi uma iniciativa de estrangeiros: castelhanos no
Porto Santo e ingleses na Madeira. De acordo com isso podemos definir quatro
versões coevas, que serviram de base à Historiografia do século dezanove e presente:

24. Gaspar FRUTUOSO, ob. cit., livros III, IV e VI.


25. "A relação de...", in Arquivo Histórico da Marinha, Vol.I, 1963, 317-329.
26. Asia.década primeira, Lisboa, 1988, livro primeiro ccapítulos II e III.
27. Tratado dos Descobrimentos, Barcelos, 1987.
28. O Manuscrito de Valentim Fernandes, Lisboa, 97- 131.
29. Descobrimento da ilha de Madeira e Discurso da vida e Feitos dos capitães da dita ilha, Coimbra, 1947.
1. Relação de Francisco Alcoforado, atribui o descobrimento da ilha ao inglês
Roberto Machim e o reconhecimento e ocupação aos marinheiros do infante,
2. Relação de Diogo Gomes, considera o feito como iniciativa do piloto português
Afonso Fernandes, mantendo o povoamento como uma tarefa henriquina,
3. Gomes Eanes de Zurara, na crónica, atribui a João Gonçalves Zarco e Tristão
Vaz a tripla missão de achamento, reconhecimento e ocupação,
3. Cadamosto prefere deixar vaga a referência a autoria, sendo concreto apenas
quanto aos povoadores.

A partir desta informação, consignada nos textos dos cronistas coevos ou quasi-
coevos, encontrou a Historiografia os meios para fundamentar a tese do
descobrimento do arquipélago. Desde o primeiro estudo de Álvaro Rodrigues de
Azevedo (1873) até às mais recentes publicações poderemos estabelecer duas formas
de encarar a questão. Para uns o conhecimento terá sucedido no século XIV, como
resultado das expedições portuguesas às Canárias, sendo prova disso os portulanos e
cartas da época, ou a aventura de Roberto Machim. Enquanto outros, baseados nos
textos de Zurara, João de Barros e Gaspar Frutuoso, afirmam que o descobrimento
teve lugar no século quinze por iniciativa de João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz.
Estranhamente nos documentos da Chancelaria régia aqueles que a tradição
aponta como os descobridores das ilhas não são referenciados como tal mas apenas
como povoadores. Aliás o infante D. Henrique em carta de 18 de Setembro de 1460 30
referia-se à Madeira como ilha que "novamente achei", enquanto D. João II noutra carta
de 8 de Maio de 1493 31 refere que a mesma havia sido "descoberta y ocupada" por seu
bisavô.
Conjugadas estas informações com as anteriormente referenciadas a conclusão
mais plausível para o caso da Madeira e dos Açores é que o seu conhecimento era
anterior à presença dos portugueses, que surgem como redescobridores e povoadores
deste novo espaço. As abordagens anteriores não foram suficientes para lhes atribuir
o real valor que lhes estava reservado no século XV. Desde entoo elas firmaram-se
como protagonistas activas do novo mundo. A Madeira foi por muito tempo um
porto necessário às navegações ao longo da costa africana, enquanto os Açores
mantiveram idêntica missão nas viagens para ocidente e no retorno das viagens
exploratórias da costa africana e das grandes rotas oceânicas.
De acordo com Zurara 32 a Madeira emerge, a partir de 1445, como o principal
porto de escala para as navegações ao longo da costa ocidental africana. O rápido
surto económico da ilha, associado às já referidas dificuldades encontradas nas
Canárias, assim o determinaram. Os excedentes agrícolas que a ilha produzia eram
suficientes para abastecer as caravelas henriquinas de biscoito, vinho e demais
víveres frescos.

30. Monumenta Henricina, vol. XIII, nº 193, 347-349.


31. Alvaro Rodrigues de AZEVEDO, "Notas", in Saudades da Terra, 1873, 675-677.
32. Crónica de Guiné, Porto, 1973, caps. XXXI, XXXV, LI, LXVIII, LXXV, LXXXV, LXXXVII.
A Madeira foi por algum tempo a escala obrigatória das viagens portuguesas no
Atlântico, sendo uma das provas disso a passagem pela ilha de Cadamosto, em
meados do século quinze. A partir do século seguinte o arquipélago madeirense
perderá esta função em favor de Cabo Verde ou das Canárias, pelo que a referência
nos roteiros será ocasional. Desde entoo a escala madeirense só se justificará pela
necessidade de aprovisionamento de vinho, pois os ventos de nordeste e sudoeste
dificultavam-na.
Como corolário destas circunstâncias a Madeira firmou-se como um local
importante nas navegações e descobrimentos no Atlântico Oriental. O rápido surto
de desenvolvimento económico e o empenho dos principais povoadores em dar
continuidade à empresa de reconhecimento do Atlântico reforçaram a posição da
ilha, relevando os serviços prestados pelos madeirenses.
Para a aristocracia nascente o empenho nas acções marítimas e bélicas foi ao
mesmo tempo uma forma de homenagem ao monarca ou senhorio e de aquisição de
benesses ou comendas. Tais condicionantes atraíram todos os madeirenses, sem
exclusão de idade. Em 1445 Fernão Tavares, de idade avançada, participou numa das
expedições sendo armado cavaleiro no Cabo Resgate. Zurara 33 confirma a situação,
salientando que a presença dos madeirenses nas viagens henriquinas se orientou
pelos princípios e tradições da cavalaria medieval, tendo como objectivo primordial
servir o seu amo, o infante D. Henrique. A esta acção aderiram os elementos mais
influentes das casas dos capitães do Funchal e Machico, que entre 1445 e 1460 foi
bastante evidente.
Mas os cavaleiros madeirenses não se preocuparam apenas com as viagens
africanas, pois também estiveram envolvidos em diversas batalhas de defesa das
praças marroquinas e depois na busca de mar e terra desconhecidos para Ocidente, a
partir dos Açores. Quanto às praças africanas para além deste apoio bélico é de
salientar a presença sempre constante da ilha fornecendo materiais de construção
para as fortalezas, custeando as despesas ou abastecendo-as de cereal.

AS VIAGENS PARA OCIDENTE


A partir do reconhecimento das ilhas açorianas, na década de vinte do século XV,
as possibilidades da volta pelo largo nas expedições africanas e o avanço para o
Ocidente foram uma realidade. Os testemunhos da existência de terra para além da
linha do horizonte ocidental das ilhas começaram a surgir com frequência nas plagas
açorianas e madeirenses: pedaços de madeira, cadáveres, canoas, inúmeras sementes,
despertavam a natural curiosidade dos insulares 34 . Na extensa praia da ilha de Porto
Santo era frequente o aparecimento de troncos de madeira e de sementes de árvore,
trazidos pela corrente do golfo, sendo famosa a castanha do mar ou "fava de
Colombo" (entada gigas). Parte significativa desses destroços legados pelo mar era
usada na construção e como combustível, uma vez que na ilha a floresta era escassa.

33 . ob. cit., caps. LXVIII, LXX, LXXV, LXXXVII.


34 . Arquivo dos Açores, IV, 433-437.
A tudo isto veio juntar-se um conjunto variado de lendas medievais, que
despertaram de novo a atenção dos navegadores insulares e os conduziram à gesta
desbravadora dos mares ocidentais. Primeiro foi a viagem de Diogo de Teive e Pero
Vasquez de la Frontera, depois seguiram-se outras, de que temos notícia de algumas
através do pedido antecipado da posse das terras que pensavam descobrir. Muitas
destas cartas pertencem a madeirenses, ligados à safra açucareira. E foi com o
dinheiro conseguido com esta cultura que financiaram as suas frustradas expedições,
pois a coroa nunca aceitou financia-las. Tão pouco estaria disponível para o fazer com
Colombo.
As expedições para Ocidente, que precederam a primeira viagem de Cristóvão
Colombo, continuaram até finais do século XV. Destas, realizadas entre o último
quartel do século XV e os anos iniciais da centúria seguinte, resultou o conhecimento
da Terra Nova e da costa da América do Norte. Primeiro foi João Vaz de Corte Real,
capitão de Angra, que participou nas viagens para o NW por ordem do rei Cristiano I
da Dinamarca, no período de 1472-1476, depois seguiram-no Vasco Eannes Corte
Real e os seus irmãos Gaspar e Miguel, que entre 1501-1502 reconheceram a costa
setentrional da América do Norte.
As provas disso são várias mas há a tendência para a reafirmação da pedra de
Dighton, cuja leitura é por muitos contestada e hoje não colhe apoio da comunidade
científica. Esquece-se a referência do texto de Gaspar Frutuoso, a carta de 17 de
Outubro de 1501 de Sebastião Cantino e o planisfério do mesmo, datado de 1502,
onde suo declarados como os seus verdadeiros descobridores. Ainda outra carta de
1506 apresenta para tal área a seguinte legenda: "Terra de Corte Real". Seguiu-se depois
João Alvares Fagundes 35 .
Acrescente-se ainda que, em finais do século quinze, residiam na Madeira dois
indivíduos cujo apelido - Terra Nova - se associa facilmente a esta área, mas é difícil
saber qual a relação possível com as terras ocidentais. Um deles, Anrique surge em
1486 no Funchal como fiador de um alfaiate, enquanto o outro, Guirarte, é
apresentado no estimo do açúcar de 1498 com proprietário de canaviais nas partes do
fundo.
Entretanto nos anos de 1491 e 1492 Pedro Barcelos e João Fernandes o lavrador
teriam partido para aí ao serviço do rei português, resultando daí a descoberta da
terra a que se chamou do Lavrador. A prova disso é apresentada num documento de
1511, onde o mesmo é citado ao serviço dos ingleses de Bristol. Numa carta de Lázaro
Luís de 1563 surge esta sugestiva legenda: "A Terra do Lavrador q[ue] descobrio Joam
Alvares".

COLOMBO E AS ILHAS

A entusiástica adesão de açorianos e madeirenses à procura das terras ocidentais


despertou o interesse de Colombo quando fixou residência na Madeira e Porto Santo,
o que veio a contribuir para a definição e amadurecimento do plano de abordagem

35 . LUís de ALBUQUERQUE, Estudos de História, vol. V, Coimbra, 1977, 109-134.


da Índia por esta via. Discute-se a data da gestação do projecto colombino, mas não a
importância dos contactos com as gentes das ilhas na decisão final.
Colombo foi na verdade o homem das ilhas, pois durante os cinquenta anos de
vida percorreu inúmeras delas no Mediterrâneo e Atlântico. Neste último oceano
esteve a norte, na Islândia, e a sul, devassando o espaço oceânico e as ilhas da costa
oriental (Madeira, Canárias, Cabo Verde e Açores) e ocidental (Antilhas). A sua
presença neste grupo inicia-se na década de setenta do século XV pela Madeira. Aqui
aportou o navegador na qualidade de mercador de açúcar e daqui, parece ter saído
como um marinheiro empenhado na descoberta das terras ocidentais.
A primeira viagem terá sucedido no Verão de 1478, onde veio por ordens de
Paolo di Negro para conduzir a Génova, às mãos de Ludovico Centurione, dois mil e
quatrocentas arrobas de açúcar. A ilha, as suas gentes e produtos não lhe eram
estranhos. Certamente que entre os seus companheiros e compatrícios falar já dela
como a terra do pastel e do açúcar. Era assim que a conheciam. Por outro lado ao
pisar o solo madeirense não se sentiria sozinho uma vez que contaria com a presença
de compatrícios seus que aí se fixaram, atraídos pelo comércio do açúcar. Note-se que
é precisamente a partir da década de setenta que se identificam alguns italianos na
Madeira: Francisco Calvo, Baptista Lomelino, e António Spínola, depois, João
António Cesare, Jerónimo Cernigi. Muitos deles fixaram morada na ilha, atraídos
pela produção açucareira, e, mercê do relacionamento matrimonial com as donzelas
das principais famílias adquiriram uma posição relevante na sociedade e economia
madeirenses.
Em 1479 Colombo estava de novo em Lisboa, mantendo vivo o interesse pelo
arquipélago, o que o levou a consorciar-se com Filipa de Moniz, filha de Bartolomeu
Perestrelo, capitão do donatário na ilha do Porto Santo, também ele de origem
italiana. O casamento deu-
se, segundo Bartolomé de Las Casas, em Lisboa no final de 1479 e depois disso o casal
teria vindo residir no Porto Santo e Madeira, onde nasceu o único filho, Diogo.
Esta permanência, ainda que temporária, nas duas ilhas facultou-lhe o
conhecimento das técnicas de navegação usadas pelos portugueses, a possibilidade
de participar em algumas expedições à costa da Guiné e abriu-lhe as portas aos
segredos, guardados na memória dos argonautas insulares, sobre a existência de
terras a Ocidente. Fernando Colombo e Bartolomé de las Casas insistem que foi a
partir da estância na Madeira que o mesmo definiu o plano da viagem, com base nos
escritos e cartas de marear que recebeu das mãos da sogra. Esta uma incógnita difícil
de fundamentar, uma vez que Bartolomeu Perestrelo não é referenciado pela tradição
histórica madeirense como navegador.
Colombo ouviu histórias e relatos dos aventureiros madeirenses, sendo-lhe
facultadas as provas materiais da existência das terras através dos destroços trazidos
pelas correntes marítimas. Deste modo à sua saída da Madeira levava consigo a firme
certeza da existência próxima das plagas ocidentais. A ilha e as suas gentes ficaram-
lhe no coração e nunca mais os esqueceu. A sua gratidão ficou expressa em 1498 com
a sua passagem, quando da terceira viagem, pelo Porto Santo e Madeira onde,
segundo B. de Las Casas, foi alvo de uma apoteótica recepção. Nesta terceira viagem
Colombo demorou-se por algum tempo nas ilhas orientais: primeiro a Madeira e
Porto Santo, depois Gran Canaria e La Gomera e, finalmente, as ilhas do Sal, Boavista
e Santiago. O objectivo da passagem por Cabo Verde era claro: atingir um paralelo
mais a sul no sentido de encontrar o rumo certo para o encontro do Cipango e, ao
mesmo tempo, carregar gado vacum para a sua ilha Hispaniola.
Se destas ilhas Colombo guardava gratas recordações o mesmo não se poderá
dizer das açorianas, onde aportou apenas em 1493 no regresso da primeira viagem.
Após uma violenta tempestade de que foi vitima a notícia de terra firme, no caso a
ilha de Santa Maria, seria um bom presságio caso o acolhesse de bom agrado mas não
foi isso que aconteceu. Ele, considerado primeiro corsário e, depois, pelo uso da
bandeira castelhana, um intruso nos mares portugueses, foi mal recebido em terra
pelo capitão João de Castanheira. Talvez por isso mesmo nas três viagens que se
seguiram o navegador não mais aportou aos Açores, passando sempre ao largo. Mas
esta primeira viagem teve o mérito de traçar o rumo das rotas de comércio do novo
mundo, ficando Angra, no dizer de Gaspar Frutuoso, como a "escala do mar ao poente".

AS ILHAS DO SUL

Enquanto prosseguia a azáfama valorizadora dos arquipélagos da Madeira e


Açores, continuavam as viagens de reconhecimento da costa africana, que
conduziriam à sua revelação total e das ilhas vizinhas. Várias foram as dificuldades
que surgiram ao longo desse percurso e que condicionaram os rumos de
reconhecimento da costa: primeiro o problema do retorno mercê dos alísios do
nordeste e da corrente das Canárias, depois a sobreposição do interesse comercial ao
interesse geográfico com o comércio dos escravos, e, finalmente, a morte do infante
D. Henrique em Novembro de 1460, considerado o principal obreiro das viagens. Foi
neste intervalo de tempo que se descobriram as ilhas do arquipélago de Arguim por
Nuno Tristão, Gonçalo de Sintra e Cadamosto nos anos de 1443 e 1444. De imediato
se estabeleceu uma feitoria em Arguim (1455) que se firmou como um importante
entreposto para o comércio e navegação na área.
O descobrimento português das ilhas de Cabo Verde e S. Tomé só terá lugar muito
mais tarde, num momento em que o povoamento da Madeira estava já numa fase
avançada. As ilhas do primeiro arquipélago são visitadas pelos marinheiros do
infante D. Henrique ainda em sua vida, sendo resultado do avanço das viagens para
sul. O reconhecimento do cabo verde (1444) e depois da costa até à Serra Leoa (1460)
terá conduzido ao encontro das ilhas próximas da costa que assumiram o nome do
cabo em questão.
Para a Historiografia depara-se mais um dilema. A quem atribuir o descobrimento
das ilhas, qual a data exacta para a sua concretização? Confrontadas as fontes
narrativas verifica-se a existência de vozes discordantes e a apropriação indevida,
segundo alguns, por parte de Cadamosto do descobrimento das ilhas de Boavista e
Santiago e de António da Noli das que Diogo Gomes se dizia como descobridor.
Outros, ainda, adiantam o feito para 1445, sendo o seu protagonista o navegador
Vicente Dias 36 .
Um breve parêntesis para dizer que era comum na época atribuir àqueles que se
diziam descobridores das ilhas a sua administração, daí resultou a disputa pela
prioridade do encontro das ilhas de Cabo Verde. Perante isto surgem opiniões
diversas quanto à autoria deste feito, apontando uns a iniciativa de Vicente Dias,
Antonio da Noli, Diogo Gomes ou Cadamosto e, outros a parceria de Diogo Gomes e
Antonio da Noli 37 . De todos realce especial para Cadamosto que nos legou o
testemunho da sua descoberta no relato das suas navegações 38 e do encontro da
maioria das ilhas do arquipélago. Diz ele: "... Depois, pela fama destas quatro ilhas (Maio,
Santiago, Sal, Boavista) que eu tinha encontrado, outros... as foram descobrir...".
Diferente é, no entanto, a ideia expressa nas fontes diplomáticas que definem de
modo preciso o nome do descobridor. Em carta régia de 19 de Setembro de 1462
declarava-se que Antonio da Noli havia sido o descobridor de cinco ilhas --Santiago,
Boavista, Maio, Sal e Fogo--, ainda em vida do infante D. Henrique, isto é antes de 18
de Novembro de 1460. Noutra carta de 28 de Outubro de 1462 surge Diogo Afonso
como o descobridor das demais ilhas do arquipélago, tendo ocorrido a revelação
nesta data ou em época anterior. Este Diogo Afonso, escudeiro do infante D.
Fernando, era também seu contador na ilha da Madeira e um dos muitos
madeirenses que se empenharam no descobrimento da costa ocidental africana. Além
disso deverá lembrar-se que o infante D. Henrique no testamento de 28 de Outubro
de 1460, depois de aludir às ilhas do arquipélago da Madeira, fala da "Guinea com suas
ilhas", o que deverá ser considerado uma alusão segura às ilhas orientais de Cabo
Verde, descobertas no ano por António da Noli. Mais tarde, a 3 de Dezembro, o rei
doava cinco destas ilhas ao infante D. Fernando, referindo que as mesmas haviam já
pertencido ao infante D. Henrique. A elas vieram juntar-se as ocidentais por carta de
19 de Setembro de 1462, o que prova terem sido conhecidas no intervalo de tempo
que medeia entre as duas doações por Diogo Afonso.
Na cartografia é patente a vinculação das ilhas a António da Noli, pois num mapa
de 1488-1493 ele aparece como descobridor e noutro de Juan de La Cosa de 1500 elas
são referenciadas como as "yslas de Antonio o del cavo verde".
Tal como o dissemos a morte do infante D. Henrique condicionou o ritmo das
viagens exploratórias da costa africana. Elas só foram retomadas em Novembro de
1469 como consequência do arrendamento do comércio da área a Fernão Gomes. Um
das cláusulas do contrato obrigava ao reconhecimento anual de uma determinada
área de costa. Foi precisamente no seu decurso que, entre 1470 e 1472, João de
Santarém e Pedro de Escobar descobriram as ilhas do Golfo da Guiné. Primeiro S.
Tomé e Príncipe (de início designada de Santo António), depois Fernando Pó e Ano

36.Damiaão Peres, História dos Descobrimentos Portugueses, Coimbra, 1960, 137.


37. Esta discussão é apresentada por Luís de Albuquerque, "O descobrimento das ilhas de Cabo Verde", in História Geral de Cabo
Verde, tomo I, Lisboa/Praia, 1991, pp.23-39.
38.Jm.Silva MARQUES, Descobrimentos Portugueses, suplemento ao vol.I,Lisboa, 1944, 232-235.Confronte-se Viagens de Luís Cadamosto

e de Pero de Sintra, edição de Damião Peres, Lisboa, 1948.


Bom. O nome das duas últimas é denunciador da autoria e data do descobridor. As
restantes ilhas do
Atlântico foi descobertas no decurso das primeiras viagens para a índia: João da
Nova descobriu Trindade (1501) e Santa Helena (1502), enquanto a Tristão da Cunha
se deve o descobrimento em 1506 do arquipélago a que foi atribuído o seu nome.

II. A OCUPAÇÄO DAS ILHAS

A Madeira foi de todas as ilhas a primeira a merecer uma ocupação efectiva por
parte dos colonos europeus. Por isso ela emerge no contexto do espaço atlântico
como uma área pioneira e depois modelo para os processos, técnicas e produtos que
serviram de referência para a afirmação portuguesa.
O povoamento iniciou-se a partir de 1420 e os primeiros colonos tinham ao seu
dispor inúmeras condições propiciadoras do êxito da iniciativa. Era uma ilha que
estava abandonada, aberta a qualquer iniciativa de povoamento, rica em madeiras e
água e com boas enseadas para a sua abordagem. O mesmo não sucedia nos Açores
ou nas Canárias, Cabo Verde e S. Tomé, onde surgiram inúmeras dificuldades à
fixação peninsular. No primeiro caso foram os sismos e vulcões que fizeram
afugentar os primeiros colonos. No segundo, a presença de uma população autóctone
- os guanches - difícil de dominar, enquanto nas últimas duas foram as condições
inóspitas do seu clima que dificultaram a presença europeia.
Por tudo isto a Madeira merece uma referência especial, uma vez que serviu de
modelo para as demais actividades de ocupação levadas a cabo pelos portugueses e
castelhanos no espaço atlântico.
Tal como já aqui demos conta, não obstante a existência de provas irrefutáveis
sobre o conhecimento das ilhas aquém do Bojador desde tempos remotos, só em
princípios do século XV surgiu a necessidade de as reconhecer e ocupar. A
conjuntura peninsular, a que se alia inevitavelmente a disputa pela posse das
Canárias, condicionou a imediata aposta portuguesa no povoamento da Madeira.
De acordo com os cronistas o processo foi faseado. Zurara refere-nos quatro
expedições, a partir de 1418, que conduziram ao redescobrimento, reconhecimento e
ocupação por meio do envio dos primeiros colonos. Aqui discute-se a data e o
comando das tarefas de povoamento.
Os cronistas insistem na activa intervenção do infante D. Henrique, mas os
documentos e o próprio infante referem algo diferente. Assim é o mesmo infante diz
que só em 1425 tomou conta do processo, enquanto a documentação estabelece o ano
de 1433 como o de início da sua intervenção como senhor da ilha, ficando ela,
segundo o dizer de João Gonçalves da Câmara em 1511, num "horto do senhor
infante". Mas o próprio D. Afonso V declarava em 1461 que João Gonçalves Zarco
fora o primeiro povoador aí enviado pelo infante, o que contraria a ideia defendida
por alguns, de que a coordenação desta tarefa pertenceu ao rei, por intermédio do
vedor da fazenda João Afonso. De concreto apenas se sabe que foi no uso dos plenos
poderes que o infante D. Henrique distribuiu, a partir de 1440, as terras do
arquipélago àqueles que haviam procedido ao seu reconhecimento e seriam os seus
capitães.
Dizem os cronistas que a ocupação das ilhas da Madeira e do Porto Santo teve
lugar no Verão de 1420 e que os promotores da iniciativa (João Gonçalves Zarco,
Tristão Vaz Teixeira e Bartolomeu Perestrelo) se fizeram acompanhar de homens,
produtos e instrumentos necessários para aí lançarem a semente europeia. Esta era a
terceira de um conjunto de expedições realizadas ao arquipélago nos dois anos que a
antecederam.
Com a distribuição das terras pelos três povoadores, as ilhas do Porto Santo e
Madeira ficaram divididas em três capitanias. O Porto Santo por ser ilha pequena
ficou entregue na totalidade a Bartolomeu Perestrelo, enquanto a Madeira foi
separada em duas por uma separação em linha diagonal entre a Ponta da Oliveira e a
do Tristão. A vertente meridional, dominada pelo Funchal ficou quase toda em poder
de João Gonçalves Zarco, enquanto a restante área dominada pela costa norte ficou
para Tristão Vaz.
Se no caso do Porto Santo surgiram problemas, primeiro com os inúmeros coelhos,
depois com, as condições pouco propícias do meio, o mesmo não sucedeu na
Madeira, onde os primeiros colonos encontraram todos os meios necessários à
fixação. De acordo com Gaspar Frutuoso 39 a ilha do Porto Santo era "pequena, mas
fresca (...) não tem boas águas, por ser seca e de pouco arvoredo" enquanto a Madeira era o
inverso, sendo caracterizada pela "fertilidade e frescura (...) e das muitas ribeiras e fontes de
água". Deste modo o povoamento, iniciado nas áreas do Funchal e Machico, alastrou
rapidamente a toda a costa meridional, levando à criação de outros locais em Santa
Cruz, Câmara de Lobos, Ribeira Brava, Ponta do Sol e Calheta.
A orografia da ilha condicionou a forma de povoamento, enquanto a elevada
fertilidade do solo e a pressão do movimento demográfico implicaram a rapidez do
processo. Aos primeiros obreiros e cabouqueiros seguiram-se diversas levas de
alguns homens livres e a necessidade de procurar escravos na costa africana.
De entre o grupo de povoadores merecem referência a trinta e seis homens da casa
do mesmo infante, na sua maioria escudeiros ou criados, que adquiriram uma
posição relevante na estrutura administrativa e fundiária. Eles pertenciam ao
numeroso grupo de filhos-segundos do reino ou à pequena aristocracia, todos à
procura de títulos e bens fundiários. Isto poderá estar na origem da atitude de João
Gonçalves Zarco ao solicitar ao rei quatro varves de qualidade para casarem com as
suas filhas. O rei acedeu com o envio de Garcia Homem de Sousa, Diogo Afonso de
Aguiar e Martim Mendes de Vasconcelos. Numa lista dos homens-bons da capitania
do Funchal, elaborada em 1471, surgem apenas 10% de cavaleiros e 5% como
fidalgos. Mas a partir de então o número aumentou mercê dos títulos, conquistados
com a participação na defesa das praças marroquinas e de reconhecimento da costa
africana, e do enobrecimento pela intervenção na estrutura administrativa e na
economia açucareira.

39 . Gaspar FRUTUOSO, livro primeiro. Saudades da Terra, 56, 84.


Tudo isto condicionou o forte impacto do surto imigratório que se repercutiu de
forma evidente no movimento demográfico da ilha: Zurara, cerca de 1453, fala em
150 fogos, enquanto Cadamosto, em 1455, refere já 800 fogos. Depois disto o ponto da
situação só é possível em finais do século XVI com Gaspar Frutuoso.
O progresso do movimento demográfico foi de encontro ao nível de
desenvolvimento económico da ilha e reflecte-se na estrutura institucional. A criação
de novos municípios, paróquias e a reforma do sistema administrativo e fiscal foram
resultado disso. Como corolário tivemos ao nível religioso o desmembramento das
iniciais paróquias com o aparecimento de novas: Santo António, Câmara de Lobos,
Ribeira Brava, Ponta do Sol, Arco da Calheta e Santa Cruz. Ao nível administrativo a
situação repercutiu-se no aparecimento dos primeiros juízes pedâneos de Câmara de
Lobos e Ribeira Brava e depois os municípios da Ponta do Sol e Calheta,
respectivamente em 1501 e 1502.
Na capitania do Funchal é evidente o progresso sócio-económico das áreas
limítrofes, além do povoado, onde se criaram depois os primeiros municípios. Numa
listagem dos homens-bons do município do Funchal feita em 1496 temos um grupo
importante de gentes de Câmara de Lobos, Ponta do Sol e Calheta. Foi certamente a
pressão dos últimos que levou ao aparecimento de novos municípios.
Entretanto na capitania de Machico o progresso não foi tão evidente porque o
meio não oferecia as mesmas condições em termos de contactos e da economia
agrícola. Deste modo só a localidade de Santa Cruz foi uma excepção, disputando por
vezes a primazia com Machico. Daí resultou a criação da vila em 1515. Inserido no
perímetro desta capitania estava toda a costa norte, que, pelas dificuldades de acesso,
foi alvo de um povoamento tardio e lento. Isto contrastava com a do Funchal, onde o
progresso se dava a um ritmo galopante, o que motivou em 1508 a elevação a cidade.
Esta atitude da coroa é justificada pelo elevado número de fidalgos e cavaleiros que
aí viviam e o importante movimento comercial do porto 40 .
O progresso no povoamento da ilha é também visível na administração religiosa
reflectindo-se no aparecimento de novas paróquias e nas mudanças ao regime de
côngruas. Aqui mais uma vez é evidente a supremacia da vertente sul da capitania
do Funchal. Das quarenta e duas freguesias criadas na Madeira, nos três primeiros
séculos de ocupação, vinte e cinco pertenciam à capitania do Funchal e as restantes à
de Machico. As últimas surgem com maior incidência no século dezasseis, momento
em que há notícia de mais treze novas paróquias. No Funchal o período que decorre a
partir de meados do século dezasseis foi marcado pelo incremento de novas
freguesias, com particular relevo para a área envolvente à cidade do Funchal.
A dimensão assumida por estas freguesias poderá ser verificada através do valor
das côngruas e dos consequentes alvarás de acrescentamento. No período de 1572 a
1591 pelos alvarás em questão conclui-se que as freguesias com menor número de
fogos, inferiores a 100, estavam localizadas na área da capitania de Machico,
enquanto as do Funchal rondariam na sua maioria com valores superiores. Entretanto

40 . Arquivo Regional da Madeira, Câmara Municipal do Funchal, tomo I, fls. 278vº-279.


o recenseamento de 1598 41 esclarece isso com maior exactidão. As oito freguesias da
cidade do Funchal surgem com mais de dois terços do quantitativo. Em toda a costa
norte entre o Porto Moniz e Porto da Cruz este valor não atinge em ambos os casos os
10%.
O mesmo se poderá dizer do impacto desta realidade ao nível da estrutura
institucional, cujas alterações foram no sentido de adaptá-la à nova realidade. Aqui
merecem referência as iniciativas da infanta D. Beatriz com a criação de uma
alfândega em cada sede de capitania e, depois de D. Manuel, a partir de 1486. Em
ambos os casos as medidas estabelecidas favoreceram a vila do Funchal, dando um
impulso decisivo à sua afirmação como principal porto da ilha.
Se é certo que o povoamento da Madeira se concretizou com uma rapidez
inaudita, o mesmo já não poderá ser dito das demais ilhas portuguesas do Atlântico.
Dificuldades de vária índole fizeram com que o processo fosse lento e que em alguns
casos, como Cabo Verde, só se concretizasse em pleno século dezanove. Na Madeira
todas as condições eram propícias ao rápido surto do povoamento. Aqui estávamos
perante duas ilhas, de clima ameno e dispondo dos meios indispensáveis para a
fixação de colonos. Ao invés nos Açores ou em Cabo Verde a proliferação de ilhas
com características distintas e as dificuldades resultantes do seu ecossistema foram
um entrave.
Nos Açores o infante D. Henrique ordenou em 1439 a Gonçalo Velho que iniciasse
o povoamento das ilhas de S. Miguel e Santa Maria, fazendo aí lançar gado bravio.
Mas esta iniciativa não surtiu efeito pelo que dez anos mais tarde repete-se a mesma
ordem. As cartas de doação das capitanias das ilhas esclarecem-nos que o efectivo
povoamento só teve lugar na década de sessenta ou setenta, sendo isso resultado da
presença de flamengos no Faial e de madeirenses em S. Miguel. Todavia as ilhas mais
ocidentais - Corvo e Flores - ainda se encontravam em 1507, segundo Valentim
Fernandes, por povoar.
Tais dificuldades resultaram, fundamentalmente, do facto de nas ilhas estarem
activos alguns vulcões e de as mesmas estarem sujeitas a assíduos terramotos. Para S.
Miguel fala-se em erupções nos anos de 1444-45 a que sucederam as de 1563 no Pico
Sapateiro e 1630 nas Furnas. Quanto às demais ilhas temos idênticas situações em S.
Roque do Pico (1562), em S. Jorge (1580) e Faial (1672). Nas duas últimas os efeitos
foram devastadores: em S. Jorge perderam-se quatro mil cabeças de gado e
quinhentas pipas de vinho, enquanto no Faial o fenómeno provocou um primeiro
surto emigratório para o Brasil.
A infanta D. Beatriz, ao confirmar em 1474 a compra da capitania da ilha do S.
Miguel por Rui Gonçalves da Câmara refere que a "dita ilha desde o começo da sua
povoação até ao presente foi mui mal aproveitada e povoada". Na verdade foi este filho-
segundo do capitão do Funchal quem deu o arranque definitivo ao povoamento da
ilha. Ele fixou residência em Vila Franca do Campo, onde esteve até que a mesma foi
soterrada por um terramoto em 1522. Para essa necessária valorização do solo
açoriano ele contou com a presença de muitos madeirenses, já habituados a este tipo

41 . Arquivo Histórico da Madeira, vol. II, Funchal, 1932.


de tarefas. Ninguém melhor que ele tinha os ingredientes necessários para fazer
brotar desta terra virgem as culturas mais comuns da época. A administração da sua
fazenda na Lombada da Ponta de Sol, que acabava de arrendar a João Esmeraldo,
servira de escola. À sua morte em 1497 o capitão deixava abertas várias frentes de
arroteamento - Nordeste, Água de Pau, Ribeira Grande, Ponta Delgada e Lagoa - que
nos vinte e cinco anos seguintes viriam a adquirir o estatuto de vilas e uma delas
cidade em 1546.
A ascensão de Ponta Delgada foi rápida e fez-se à custa do abandono de Vila
Franca do Campo como resultado da sua exposição a catástrofes como a de 1522. O
primeiro assentamento de colonos data de 1499, mas oito anos depois esta localidade
era já vila e bastaram mais trinta e nove anos para ser cidade. Gaspar Frutuoso defini-
o de forma sintética: "primeiro foi solitário como saudoso logar e pobre aldeia, e depois
pequena vila, a que agora é grande, rica, forte e tão afamada cidade". E, depois, conclui "a
que dantes era sujeita e sufragânea e outra vila é ao presente quasi feita senhora, a que vão
obedecer todas as vilas e logares de toda esta ilha" 42 . Tudo isto resultou do facto de "ser
grande e nella aver mais gente que em todas as outras villas e por os carregadores a maior
parte do anno estarem nella e hi se fazer a carregaçam dos pasteis e os guados se criarem nas
outras villas mais que nessa por ser caize toda terra delle aproveitada de pastel e terras de
pam..." 43 .
A ilha de S. Miguel, após um período de dificuldades, acabou por conquistar um
lugar cimeiro na economia do arquipélago açoriano. Aí foram criados seis municípios
que serviam trinta e duas freguesias guarnecidas de noventa clérigos. A ilha surgia
em finais do século dezasseis com 5587 fogos (39%) e 20477 almas de confissão (36%),
sendo de destacar a cidade de Ponta Delgada, a vila da Ribeira Grande. Vila Franca
do Campo, a primeira capital e mais importante vila até 1522, surge agora em terceiro
lugar.
Na Terceira o arranque definitivo do povoamento teve lugar na mesma década
com a divisão da ilha em duas capitanias (Praia e Angra). Os primórdios da
ocupação, a que se associa-a a figura enigmática de Já come de Bruges, não estão de
todo esclarecidos. O rápido incremento populacional está expresso na criação de uma
terceira vila em S.Sebastiäo (1503) e na elevação da de Angra a cidade em 1533. Deste
modo esta ilha foi apenas terceira de nome, pois que em importância económica e
social acabou por firmar um lugar cimeiro. Nas vinte freguesias, servidas por cento e
quatro clérigos, contavam-se, em finais do século dezasseis, 4970 fogos e cerca de
21371 vizinhos. Também aqui a cidade de Angra adquiriu um papel dominante no
relacionamento interno e externo da ilha.
O processo de ocupação das ilhas menores, não foi idêntico às duas anteriores, que
no global representavam cerca de três quartos da população total do arquipélago. Ele
foi lento e só se conseguiu afirmar em pleno a partir da primeira metade do século
dezasseis. Aqui podemos salientar as de Faial e Pico pelo volume populacional que
adquiriram.

42 . Gaspar FRUTUOSO, Saudades da Terra, livro quarto, vol. II, (1924), 302.
43 . Arquivo dos Açores, IV, 55.
A outro nível podemos falar de S. Jorge, uma pequena e acidentada ilha, onde a
estrutura administrativa e religiosa foi empolada devido às dificuldades de contacto
entre os vários núcleos de povoamento. Para apenas 2269 vizinhos temos três
municípios e sete freguesias, número excessivo quando comparado com o Faial, S.
Miguel e Terceira. Nesta ilha o povoamento, mercê da configuração do solo, teve
lugar a partir de três núcleos do litoral, as fajãs (primeiro Velas, depois Topo e
Calheta), que assumiram a categoria de vilas. Aqui os colonos dispunham de uma
pequena baía de acesso ao mar, água, terra e vegetação adequada por entre as
falésias 44 .
Nas demais ilhas o povoamento foi lento e as mesmas também não foram alvo de
um idêntico progresso social e institucional tão evidente. Enquanto a ilha do Faial
permaneceu com uma vila, nas de Graciosa e Pico viram surgir duas novas vilas na
década de quarenta do século dezasseis: S. Roque no Pico (1542) e Praia na Graciosa
(1546). A criação regeu-se única e exclusivamente pela dispersão geográfica dos
núcleos de povoamento, que fazia aumentar a distância à sede do concelho.
Nas ilhas mais ocidentais, de Flores e Corvo, a presença de colonos é tardia,
processando-se apenas no século dezasseis. E no caso do Corvo só a partir de meados
do século com escravos do capitão das Flores, Gonçalo de Sousa.
As dificuldades no recrutamento da população açoriana surgiram apenas no século
quinze pois que no seguinte foi fácil encontrar colonos e rápido o incremento da
população, sendo testemunho disso o texto de Gaspar Frutuoso e os alvarás de
acrescentamento das côngruas nos séculos XVI e XVII. Contra isso se apresentavam
as epidemias e as calamidades. A peste de 1523 a 1531 em Ribeira Grande e Ponta
Delgada e por fim o dilúvio sobre a Vila Franca do Campo (1522) que terá
vitimado mais de 5000 micaelenses. Note-se que a peste foi sentida também no Faial,
Pico, S. Jorge e Terceira em 1599, de que resultaram cerca de mil mortos só na última
ilha.
Pior foi o que sucedeu em Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe, onde a fixação de
colonos foi prejudicada pelas condições difíceis do clima. Na realidade o clima
apresentou-se como o principal entrave à fixação de colonos europeus, atrasando o
processo de povoamento e valorização económica. São inúmeros os testemunhos que
denunciam as dificuldades aí sentidas pelos europeus.
De acordo com Valentim Fernandes "estas ylhas (Cabo Verde) erä de primeyro tä
sadias que quantos gaffos alli vinham saravam. Mas agora (em 1506) som tam
doentias que a gente saä adoece. Creo que depois que os negros trouveram a ellas
corromperam ho ar como em sua terra que he doentia" 45 . Opiniäo diferente era a de
Gaspar Frutuoso, em finais do século dezasseis, que afirma peremptoriamente: "todas
as ilhas são muito sadias e têm muitos ares frescos nortes e nordestes (...) e pera
concluir toda a infâmia que há destes serem doentes e muito enfermas é falsa, porque
os homens regrados de comer e no beber, tendo castidade, vivem muito nelas e,

44 Cf. António dos Santos Pereira,A ilha de S.Jorge(séculos XV-XVII).Contribuição para o seu estudo. Ponta Delgada, 1987.
45 . Monumenta Missionária Africana, I, 119.
sendo luxuriosos, morrem a poder de câmaras e de sangue" 46 . Mas os que lá viviam
testemunhavam as palavras de Valentim Fernandes e, por infinitas vezes, deram do
facto conhecimento ao rei. São prova disso os testemunhos de D. João de Castro em
1545 e os Jesuítas para aí enviados entre 1607-1609. Por outro lado os factos que
ilustram esta realidade reflectem-se na elevada mortalidade dos funcionários régios
para lá enviados. Daí resultou, em certa medida, a anarquia reinante na do
arquipélago, com a necessidade de substituição, quase permanente dos funcionários,
por abandono do cargo ou morte. Pêro de Guimarães, ao ser enviado para Santiago
como corregedor socorreu-se da protecção de Santo António, construindo em sua
memória uma ermida para afugentar "os maus ares da dita terra" 47 . Mesmo assim ele
não ficou imune, pelo que após as primeiras febres acabou por solicitar a sua retirada
em 1517, pois como afirma ela "não perdoa ninguém" 48 .
Para cativar a presença de novos povoadores a coroa acenava com um soldo
dobrado em relação ao do reino e as possibilidades de comércio na costa africana. Os
privilégios concedidos em 1466, para o comércio nas costas da Guiné, exceptuando as
mercadorias defesas e o trato de Arguim, foram o principal chamariz para os novos
colonos esquecerem as agruras do clima. Mas estas situações só se manteve até 1472,
sucedendo-se a partir de então restrições a esta situação privilegiada dos moradores
de Santiago e obriga-los a apostar nas culturas locais, as únicas a que estavam
autorizados a comerciar com a costa africana. A inércia inicial ao povoamento da ilha
havia sido ultrapassada.
Mais abaixo, em plena região equatorial, estava o arquipélago de S. Tomé e aí as
condições de sobrevivência eram extremamente limitadas. A situação está descrita no
testamento de Álvaro Caminha (1499), numa carta do corregedor da ilha em 1517 e
numa consulta da Mesa da Consciência e Ordens de 1597. Na última atribui-se a
dificuldade de manutenção do clero na ilha ao facto "de a terra ser muito enferma e
sogeita à praga de mosquitos, que são muitos e mui nocivos 49 ". Mais tarde em 1571 o bispo
aludia às condições de insalubridade da terra como a principal causa da ausência dos
predecessores no cargo 50 .
Foram inúmeros os portugueses que pereceram sob o calor tórrido, sendo de citar
o caso dos dois mil jovens judeus para aí enviados em companhia de Álvaro
Caminha em 1493, de que só existiam seiscentos, passados apenas seis anos. Nas
mesmas condições estiveram juntar os funcionários régios, os padres da Companhia
de Jesus e os mercadores que aí morreram no exercício de funções, ficando os bens a
saque dos que sobreviveram. Deste modo a partir de 1497 a coroa procurou moralizar
essa situação. Primeiro em Santiago criou-se o cargo de administrador e recebedor
dos bens dos defuntos 51 . Depois em 1519 deu um regimento ao tesoureiro-geral dos
defuntos. Aí se determinava, entre outras coisas, que os capitães e oficiais régios não

46. Ob. cit., 182.


47.ANTT, Corpo Cronologico, I/12/20, 22 de Maio de 1513, publ. in História Geral de Cabo Verde. corpo documental, I,219
48.ANTT,Corpo Cronologico,I/36/93, 6 de Maio.
49. Monumenta Missionária Africana, III, 557-558.
50. Ibidem, III, 7-35.
51. Ibidem, I, 377-392.
estavam autorizados a ficar com os bens, que reverteriam para a rendição dos cativos
ou para o hospital de Santiago, criado em 1497 52 . A par disso o rei nomeou um
provedor dos defuntos para as ilhas de Cabo Verde e S. Tomé, que em 1549 já se
encontrava em funções.
Por aqui ficaram demonstradas as dificuldades sentidas pelos portugueses no
povoamento destas ilhas. Em relação a Cabo Verde apenas se avançou com o
povoamento das ilhas de Santiago e Fogo, ficando as restantes por algum tempo
como zona de pastagens. Em Santiago o processo teve início em 1462 tendo-se para o
efeito dividido a ilha em duas capitanias: uma para D. Branca de Aguiar, com sede na
Ribeira Grande e a outra para Diogo Afonso, com a capital em Alcatrazes.
O progresso das ilhas é testemunhado em 1498 por Cristóvão Colombo que por aí
passou com destino ao Novo Mundo. O navegador começa por contestar o nome
atribuído à ilha, pois como refere "son tan secas que no vi cosa verde en ellas y toda la
gente enferma (...)" 53 . Depois o mesmo refere a sua estância em Boavista e Santiago. Na
primeira ilha dá conta do elevado número de tartarugas de que os portugueses se
serviam para a cura dos leprosos. Aqui encontrou apenas seis ou sete moradores que
tinham a função de matar as cabras, salgar a carne e couros e enviá-los para o reino.
De entre estes refere Rodrigo Afonso, escrivão da fazenda real que lhe propiciou o
necessário abastecimento de carne e sal. Após isso esteve em Santiago, com o intuito
de recolher gado vacum para Hispaniola, mas o calor tórrido molestou a sua
tripulação, vendo-se forçado a seguir viagem antes do previsto.
Valentim Fernandes, nove anos mais tarde, refere-nos o estado de ocupação da
ilha de Santiago ao enunciar que "é povoada de muita gente", e para o Fogo diz apenas
"de gente" e às demais resume-se a afirmar que estavam "povoadas de cabras e não de
gente". Mesmo assim o número de vizinhos de ambas deveria ser reduzido, pois em
1513 Pêro de Guimarães apresenta um retrato pouco animador da vila da Ribeira
Grande: " os vizinhos homens honrados brancos são cinquenta e oito; e os vizinhos negros são
dezasseis; e os que ora são estantes estrangeiros, naturais dos vossos reinos são cinquenta e
seis; e quatro mulheres brancas solteiras; e negras umas dez e assim está outra gente forasteira
que logo nos navios que aqui estão se partirão; e clérigos, co o vigário da dita ilha, são doze,
entre os quais dois são pregadores." 54 . Tão pouca gente para mais de meio século de
ocupação!
Em 1533 a vila passa à categoria de cidade e sede do bispado de Cabo Verde. Isto
deverá ter contribuído para o progresso sócio-económico da ilha, pelo menos durante
cerca de sessenta anos. A partir daqui abundam os testemunhos sobre a riqueza da
terra, o que deverá ter actuado como um chamariz aos novos colonos europeus. Mais
tarde, em 1548, esta e a da Praia apresentavam 1200 moradores. Ambas com os
demais núcleos de povoamento de Santiago e do Fogo surgem em 1582 com 13408
almas 55 . Nas duas ilhas, se acompanharmos a criação das paróquias, bem como os
alvarás de acrescentamento das côngruas dos vigários, constataremos o progresso da

52. Ibidem, III, 125-126.


53. Consuelo VARELA, Cristóbal Colón. textos y documentos completos, Madrid, 1984, 243.
54.ANTT, Corpo Cronológico, I/12/120, de 22 de Maio, publ História Geral de Cabo Verde. corpo documental, I, 220.
55. António CARREIRA, "A capitania das ilhas de Cabo Verde", in Revista de História Económico Social, nº 19, 1987, 295-303.
população no século dezasseis, com especial destaque para o último quartel em que
foram criadas onze freguesias, sendo apenas duas no Fogo, com mais de 1200 almas
de confissão.
A ilha do Fogo foi a segunda a ser povoada, para isso contribuiu o facto de dispõr
de algodão e de estar próxima da anterior. note-se que desde 1472 as gentes do
arquipélago, mais propriamente da ilha de Santiago, deveria comerciar apenas com
os produtos da terra e esta ilha dispunha de um produto importante nessas
transacções: o algodão. O primeiro capitão da ilha, Fernão Gomes, surge em 1493,
podendo situar-se por essa década o início do seu povoamento. Entretanto em 1515
fala-se já no município de S. Filipe. Em 1572 são referidas duas freguesias - S. Filipe e
S. Lourenço do Pico - com 240 fogos, quando as oito freguesias de Santiago
apresentavam 1040 fogos. Passados dez anos a mesma ilha surge num relatório de
Francisco de Andrade ilha apresentava-se com 300 moradores livres e 2000
escravos 56 .
Depois foi o povoamento das ilhas de Brava (1545), de Santo Antão (1548) e S.
Nicolau. Das restantes apenas se sabe de alguns dados soltos da população em datas
diversas: S.Nicolau é referenciada em 1595 com sessenta almas de confissão, Boavista
recebia em 1677 o primeiro pároco, Maio apresentava-se em 1699 com duzentos e
trinta habitantes, enquanto o Sal só deverá ter sido ocupada em data incerta nesse
final do século. Até ao aparecimento de um pároco nas ilhas, o que se concretiza em
1677 em Maio, Boavista e S. Nicolau, o serviço religioso era prestado uma vez no ano
por um padre visitador.
Em Santiago a Ribeira Grande, pelo facto de aí desaguar uma ribeira de abundante
água e uma enseada que favorecia o contacto permanente com o mar, servindo de
escala às rotas da Índia, firmou-se como a capital do arquipélago e sede do bispado
em 1534. Mas a "insalubridade do clima" levou a coroa a determinar em 1652 a
transferência da capital para a Praia, onde deveriam residir o bispo e o governador.
Algo semelhante sucedeu na outra capitania onde a vila de Alcatrazes foi substituída
em 1516 pela de Santa Maria da Praia, enquanto a da Lapa em S. Nicolau foi
transferida em 1693 para a Ribeira Brava.
Em S. Tomé a primeira leva de colonos é 1486, quando João de Paiva se ofereceu
para a ir ocupar, usufruindo dos privilégios lavrados no foral de 16 de Dezembro de
1485. Depois foi a vez de João Pereira em 1490, mas pensa-se que o povoamento só
começou, de facto, em 1496 com Álvaro Caminha com o auxílio dos referidos judeus
e africanos. Quanto à ilha do Príncipe este processo só se iniciou em 1500, com a
doação a António Carneiro, que delegou em Vasco Carneiro a tarefa de povoamento.
Nas ilhas de Ano Bom e Fernando Pó o processo foi mais tardio, tendo a dificultá-
lo na última a presença de africanos. É de estranhar o facto de ela ter sido alvo de
uma ocupação tardia, uma vez que era a maior do grupo e estava servida de uma
densa floresta. A presença de população e a situação marginal em termos das rotas
mais frequentadas na zona contribuíram para o arrastar deste processo.

56 .Arquivo General de Simancas, Guerra Antigua, legajo 122 doc. 180, publ. Monumenta Mssonária Aricana, 2ª série, II,104.
OS INCENTIVOS DO POVOAMENTO

Em todas as ilhas as dificuldades sentidas no momento da ocupação foram


inúmeras, variando o grau à medida que se avançava para Ocidente ou Sul. Deste
modo a coroa e o senhorio sentiram-se na necessidade de atribuir incentivos à fixação
de colonos: a entrega de terras de sesmaria, privilégios e isenções fiscais variadas, a
saída forçada com o degredo dos sentenciados. Tudo isto começou na Madeira,
alargando-se depois às restantes ilhas.
A concessão de terras foi, a par dos inúmeros privilégios fiscais, um dos principais
incentivos à fixação de colonos, mesmo em áreas inóspitas como Cabo Verde e S.
Tomé. A avidez de terras e títulos por parte dos filhos-segundos e da pequena
aristocracia do reino contribuíram para alimentar a diáspora.
Sabe-se, de acordo com um capítulo de uma carta de D. João I inserido noutra de
1493, que foi o rei quem regulamentou a forma de entrega das terras na Madeira. Ela
deveria ser feita de acordo com o estatuto social do colono. Assim os vizinhos de
mais elevada condição e possuidores de proventos recebem-nas sem qualquer
encargo. Os pobres e humildes que viviam do seu trabalho só a elas tinham direito
mediante requisitos especiais, e apenas as terras que pudessem arrotear e tornar
aráveis num prazo de dez anos. Com estas cláusulas restritivas favorecia-se a
concentração da propriedade num reduzido número de povoadores.
A partir de 1433 com o senhorio das ilhas em poder do infante D. Henrique, tal
prerrogativa passou para a sua alçada, com a salvaguarda as anteriores medidas. Isto
comprova, mais uma vez, que a primeira iniciativa e regulamento de distribuição de
terras coube ao monarca. O infante, fazendo uso de tais prerrogativas, delegou os
seus poderes nos capitães. De acordo com o foral henriquino, cujo texto se
desconhece e o pouco que se sabe resulta de referências indirectas, as terras as terras
eram entregues aos colonos por um prazo de cinco anos, findo o qual se as mesmas
não estivessem aproveitadas, caducava o direito de posse e a possibilidade de nova
concessão.
Esta mudança no regime de distribuição das terras deverá ser resultado da pressão
do movimento demográfico e da rarefacção das terras baldias, disponíveis para
serem arroteadas. Note-se que em 1466 os moradores do Funchal reclamavam junto
do senhorio contra a continuidade da distribuição de terras, que lhes fazia perigar a
cultura açucareira, por falta de lenhas e madeiras. Mas somente em 1483, em face da
atitude do capitão de Machico de distribuir terras nos montes próximos do Funchal, o
senhor da ilha D. Manuel repreende o dito capitão, para depois em 1485 proibir
totalmente a distribuição de terras nos montes e arvoredos do norte da ilha. E,
finalmente em 1501 e 1508 ficou proibida qualquer concessão de terras em regime de
sesmarias.
Estas medidas limitativas da distribuição de terras poderão ser entendidas como
uma forma de defesa dos interesses da aristocracia fundiária empenhada com a
cultura da cana-de-açúcar. A situação deverá estar na origem de vários conflitos que
implicaram a intervenção do senhorio, por meio de normas punitivas e o envio de
uma laçada a cargo do seu ouvidor. A par disso as dificuldades na preparação das
terras para cultivo, resultantes da falta de mão-de-obra e da orografia da ilha,
levaram os madeirenses a reclamar a suspensão dos prazos estipulados no foral
henriquino, com o argumento de que as terras eram "bravas e fragosas e de muytos
arvoredos"
Entretanto um regimento, não datado, estipulava a forma de expressão nos
Açores, estabelecendo normas conducentes a sanar os pleitos que a referida
distribuição de terras havia gerado 57 . A principal novidade estava a obrigatoriedade
de assistência ao acto do almoxarife e seu escrivão. Mas para Gaspar Frutuoso a
entrega de terras na ilha de S. Miguel seguira já no início esta norma. De acordo com
os regimentos de 1470 e 1483 as concessões que não tinham sido feitas de acordo com
estas regras eram consideradas nulas. Além disso o citado regimento estabelecia a
obrigatoriedade do registo, com a referência das confrontações, os produtos e área
disponível. Quando as ilhas passaram a depender directamente da coroa a entrega de
terras passou a realizar-se de forma diversa. De acordo com o regimento de 1530 o
acto era superintendido pelo corregedor.
Em síntese poder-se-á afirmar que no período de 1433 a 1495 a concessão de terras
de sesmaria era feita pelo capitão, em nome do donatário. A carta de entrega era
lavrada pelo escrivão do almoxarifado na presença do capitão e almoxarife. No
enunciado deste documento deveriam constar as condições gerais que estabeleciam
este tipo de concessão, as confrontações, a extensão e qualidade do terreno, a
capacidade de produção e o tipo de cultura adequada, bem como o prazo para o seu
aproveitamento. O colono só tomava posse plena da terra ao fim de cinco anos, desde
que a torna-se arroteada, podendo então vender, doar, "escambar ou fazer dela e em
ela como sua propria coisa".
O rápido progresso do povoamento da Madeira levou a coroa a estabelecer
entraves a novas sesmarias como forma de preservar a floresta, necessária à safra do
açúcar. Desde 1483 as limitações sucedem-se com frequência, culminando com a total
proibição por regimentos de 1508 e 1513. Também nos Açores se apresentaram
idênticas medidas em 1518 e 1532.
A partir desta época toda a aquisição de terras só poderia ser feita mediante a
compra, aforamento, arrendamento, herança ou dote. A política de compra e venda
surge como um mecanismo de concentração da propriedade nas mãos da aristocracia
e burguesia madeirenses ou dos estrangeiros recém-chegados, enquanto a herança e
dote actuam no sentido inverso, conduzindo à desintegração da grande propriedade.

O REGIME DE PROPRIEDADE

Foi a partir das doações sesmarias que se estabeleceu os primórdios da situação


fundiária das ilhas. É nele, aliás, que se estabeleceu o princípio da acessibilidade à
posse da terra.

57 . Arquivo dos Açores, II, 302 e 386.


O regime fundiário madeirense ganhou nova forma a partir de meados do século
XVI, com a generalização do sistema de contracto de arrendamento, aforamento ou
doação de meias. Este processo conduziu ao paulatino afastamento do proprietário
da terra e propiciou o emparcelamento da propriedade e ao aparecimento do contrato
de colonia, a partir da segunda metade do século XVII 58 . Daqui resultou uma nova
dinâmica para estrutura fundiária e forma de uso da força de trabalho, tornando-se
desnecessário, ou melhor, obsoleto, o uso da mão-de-obra escrava. Esta conjuntura
propiciou processo de alforria dos escravos que, de um modo geral, passaram a
colonos do antigo senhor.
Registe-se que as ilhas de Santa Maria, S. Miguel, Terceira e S. Jorge também foram
marcadas pelo absentismo dos seus proprietários, que preferiram a vida fácil da corte
em Lisboa. Mas aqui, ao contrário da Madeira, a situação não foi motivo de um
sistema peculiar de exploração fundiária, pois mantiveram-se as tradicionais formas
de aproveitamento das terras.
O referido sistema de relações, que legitimava a posse da terra é específico e
emerge na Madeira como resultado do absentismo rural do grupo possidente. A
especificidade está no facto de existirem duas formas de propriedade: útil (a terra) e
as benfeitorias.
Este sistema, legitimado apenas pelo direito consuetudinário, definiu uma forma
diferente de interdependência, de carácter perdulário, entre ambas as partes, o
senhorio e o colono. A sua afirmação, a partir de meados do século dezasseis, tem
uma dupla origem: social e económica. Primeiro foi a conjuntura demográfica que em
consonância com a escassa área agrícola, associada às dificuldades no recrutamento
de escravo, despoletaram ao seu aparecimento. Depois o baixo rendimento agrícola e
a necessidade de investimentos na viticultura tornaram inevitável a mudança no
domínio fundiário.
A partir da segunda metade do século dezoito o sistema, que se havia afirmado
como uma solução para a agricultura madeirense, passou a ser responsável pelo
abandono das terras e por uma forte sangria populacional através da emigração. Para
o combater as autoridades estabeleceram medidas no sentido de repor a exploração
directa da terra, sendo de referir as medidas exaradas para o Porto Santo já em 1770.
A quase totalidade das terras da ilha eram foreiras dos Conventos da Encarnação e
Santa Clara, das misericórdias e confrarias do Santíssimo Sacramento do Funchal e
Santa Cruz e de proprietários singulares, todos eles residentes fora da ilha. Deste
modo o seu aproveitamento só seria possível mediante contrapartidas mais
favoráveis para o agricultor. As mesmas nunca chegaram à Madeira e só em 1976, por
legislação regional, o regime foi abolido.
Por outro lado a Madeira foi também a terra onde os morgados e capelas se
afirmaram em pleno. De acordo com testemunho do século dezanove, mais de dois
terços das terras cultivadas estavam vinculadas. Próximas dela estavam as ilhas
Terceira, S. Miguel, Santiago e Fogo. Na ilha de S. Miguel a presença dos senhorios

58. J. José de SOUSA, "O Convento de Santa Clara do Funchal. Contratos agrícolas (séc.XV a XIX)", in Atlântico, nº 16, 1988, 295- 303.
Jorge de Freitas BRANCO, Camponeses da Madeira, Lisboa, 1987, 154-186.
era considerável nos finais do século XVI, consistindo a sua riqueza nas rendas
acumuladas em moios de trigo, tal como se poderá verificar pelo texto de Gaspar
Frutuoso. A casa de Jacome Dias Correia, que no entender deste autor parecia uma
corte, recebia anualmente 300 moios de trigo. Deste modo as medidas para a extinção
dos morgados, levadas a cabo a partir do Marquês de Pombal que culminaram em
1863 com a total abolição, tiveram reflexos evidentes na estrutura fundiária.
Durante o período em análise dois produtos materializaram a safra agrícola
madeirense: o açúcar e o vinho. Cada um por si define uma diversa forma de
aproveitamento do solo e de investimentos: os canaviais requerem áreas especiais
abastecidas de água e a principal benfeitoria se resume praticamente ao engenho, que
não é apanágio de todos os lavradores de canaviais; os vinhedos exigem constantes
cuidados, ainda que menos onerosos, com levantamento de latadas e a construção do
lagar.
Construir e pôr a funcionar um engenho não era tarefa fácil, pois implicava um
elevado investimento, que não estava ao nível de todos os proprietários de canaviais.
No estimo de 1494 para 221 proprietários produzindo 80.451 arrobas temos apenas 14
engenhos, o que dará uma média de 5.746 arrobas por safra, em cada um dos
engenhos. Todavia em 1493 refere-se a existência de 80 mestres de açúcar para uma
produção de cerca de 80.000 arrobas o que poderá indicar maior número de
infraestruturais na ilha.
Em S. Tomé o engenho e os canaviais assumiram outra dimensão, sendo também
diferente a estrutura produtiva. Para uma produção avaliada entre as 150.000 e
450.000 arrobas de açúcar o número de engenhos ia de 60 a 450, o que equivaleria a
uma média mais baixa por unidade. Mas o número de fazendas é muito mais
reduzido (em 1615 fala-se em apenas 62 fazendas), denotando-se uma tendência para
a concentração da propriedade fundiária.
Por aqui se conclui que a estrutura fundiária madeirense que corporizou a safra
açucareira estava muito aquém das congéneres säotomense e brasileira. Aliás os
canaviais madeirenses nunca atingiram a dimensão dos do Brasil, sendo evidente
uma tendência para o parcelamento com o recurso ao sistema de arrendamento. As
condições da orografia e o sistema de distribuição das terras assim o haviam
determinado. Se compararmos os canaviais referenciados no estimo de 1494 e os
valores da arrecadação dos quartos e quintos entre 1500 e 1537, conclui-se que a
cultura se processou na ilha em regime de pequena e média propriedade. A grande
propriedade, logicamente à dimensão da ilha, surge com maior evidência nas
comarcas da Ribeira Brava e Calheta. No século XVI apenas vinte e dois
proprietários, que produzem mais de 2.000 arrobas, somam 37% do total de açúcar
produzido na ilha. Este valor é duas vezes superior ao dos seus congéneres de 1494.
Perante esta evidência parece-nos ponto assente que a primeira metade do século
XVI foi pautada pela afirmação da grande propriedade, que se consolidou em pleno
nas "Partes do Fundo", isto é, nas comarcas da Calheta, Ponta de Sol e Ribeira Brava.
Na do Funchal e na capitania de Machico afirmou-se, respectivamente, a média e
pequena propriedade. O número de proprietários com menos de 100 arrobas é
reduzido na capitania do Funchal (5%) e, nomeadamente, nas comarcas das Partes do
Fundo (com valores entre 1% e 5%), enquanto na capitania de Machico atinge mais de
metade, ou seja 53%. Deste modo podemos também concluir que, desde finais do
século XV, é dominante a tendência concentracionista dos canaviais.
A crise no cultivo dos canaviais, a partir da década de trinta, contribui também
para isso, expressando-se na redução do número de canaviais e número de arrobas
arrecadadas por cada proprietário. O endividamento e a consequente penhora
conduziram à transferência de muitos canaviais para o grande proprietário: o
aristocrata, funcionário ou mercador. Tal conjuntura conduziu, as comarcas da
Ribeira Brava e Calheta, ao reforço da grande propriedade, enquanto no Funchal e na
Ponta do Sol teve um efeito contrário.

AS DADAS DE TERRAS DE CABO VERDE E S. TOMÉ

A forma de distribuição das terras utilizada na Madeira manteve-se nos Açores,


Cabo Verde, S. Tomé e Brasil, adequando-se às condições de cada espaço. A diferença
mais significativa surgiu em Cabo Verde, onde algumas ilhas foram concedidas em
regime de contrato para usufruto das pastagens, pelo que não estava atribuída a
faculdade de as subdividir. Por outro lado o regime de distribuição de terras, tendo
em conta a pouca aderência de novos colonos, era mais amplo e permissivo, dando
aos interlocutores uma maior liberdade de acção. Também aqui, a exemplo da
Madeira e dos Açores os capitães dispunham da prerrogativa de distribuir terras aos
moradores, com a obrigação de estes as aproveitarem num prazo de cinco anos.
Todavia há que distinguir no arquipélago de Cabo Verde as ilhas de Santiago e Fogo
das demais. Nas primeiras sucede-se tudo igual, enquanto nas outras a sua doação é
feita em sistema de uso exclusivo ao seu capitão, que deverá providenciar a ocupação
com homens da sua confiança.
Em S. Tomé, de acordo com o piloto anónimo de meados do século dezasseis, mais
de duas partes da ilha encontravam-se ainda por esmontar o que facilitava o acesso a
qualquer forasteiro à posse de terras: "(...) logo porém que algum negociante de Espanha e
Portugal donde qualquer outra nação vem aqui habitar é-lhe assinado pelo feitor de el-rei, por
via de compra ou por preço cómodo tanto terreno quanto lhe parece que tem modo de fazer
cultivar" 59 .
As diferenças mais evidentes entre a propriedade madeirense e das outras ilhas
resultam das condições mesológicas do solo arável e dos produtos definidores da
agricultura. Enquanto na Madeira a orografia condicionou o excessivo parcelamento
do solo, que veio a desembocar no célebre contrato de colonia, nos Açores, Cabo
Verde ou em S. Tomé perduraram as grandes propriedades expressas em áreas
extensas. Deste modo o sistema fundiário que serviu de suporte à safra do açúcar de
S. Tomé poderá ser considerado como o prelúdio dos grandes e extensos canaviais
brasileiros, enquanto a Madeira, será, ainda, e por razões óbvias a expressão da
pequena propriedade.

59 .Ob.cit.,59
O DEGREDO COMO POLÍTICA DE POVOAMENTO

A política moderna de degredo como forma de incentivo ao povoamento dos


lugares ermos não era novidade, pois vinha sendo utilizada para o povoamento do
litoral algarvio e zonas fronteiriças de Castela. A coroa, de acordo com o seu
interesse, ordenava aos corregedores o destino a atribuir aos degredados. Depois do
Algarve, vieram Ceuta e as ilhas atlânticas. O primeiro sentenciado de degredo para a
Madeira, de que ficou notícia, foi João Anes. Ele entretanto fugira para Ceuta e em
1441, passados onze anos, veio a solicitar o perdão régio. Para os Açores o
encaminhamento dos degredados passou a ser feito por pedido expresso do infante
D. Henrique no período da regência de D. Pedro. Mas as ilhas pouco cativavam a sua
atenção, como se depreende do requerimento feito por João Vaz para que lhe fosse
comutada a pena para Ceuta, pois no seu entender "as dictas ilhas nom eram taes pera
em ellas homens poderem viver".
A partir da década de setenta do século XV o principal destino dos degredados foi
o arquipélago de Cabo Verde, que na centúria seguinte foi substituído por S. Tomé.
Segundo o corregedor de S. Tomé em 1517 60 o número de degredados na ilha
representava um quarto da população, o que era motivo para sérias preocupações,
mercê do comportamento insubmisso. Aqui ou em Cabo Verde muitos deles fugiam
e faziam-se homizíados, o que veio a determinar inúmeros problemas, pelo que a
coroa estabeleceu alguma ponderação na política de degredo com destino às ilhas.
Assim em 1575 61 o rei ordenou à Casa da Suplicação que no degredo para S. Tomé e
Mina se tivesse em conta aqueles que não fossem acusados de crimes ruins, uma vez
que eram maus exemplos para os escravos. Em 1622 Manuel Severim de Faria
apontava-os como a principal causa das dificuldades sentidas no ensino da doutrina
os escravos cabo-verdianos 62 . Mas nem todos eram motivo de queixa, pois em 1499 63
em carta de Pero de Caminha à referida a vida exemplar de João Mendes, "böo homem
e que está o milhor afazendado da ilha".

AS ISENÇÖES FISCAIS

O estabelecimento de inúmeras isenções fiscais e privilégios foi o meio mais eficaz


para promover a fixação de colonos nas ilhas. O sistema iniciou-se em 1439 na
Madeira e alastrou depois às restantes ilhas. Os colonos madeirenses usufruíram, por
cinco anos, da isenção do pagamento da dízima e portagem nas mercadorias
enviadas aos portos do reino. Em 1444 este privilégio foi renovado, sendo às ilhas
açorianas, onde se manteve até 1482. Em 1479 os funchalenses manifestaram o seu
apreço por esta salutar medida, atribuindo-lhe o progresso do povoamento da ilha: "a

60. António CARREIRA, Cabo Verde, Lisboa, 1983, 300-301.


61. Monumenta Missionária Africana, I, 770.
62. Ibidem, IV, 625.
63. Ibidem.
principal causa porque esta terra povorou do seu princípio e povora hoje em dia hé
principalmente porque sejamos libertados de nö pagarmos peyta nem semelhantes
trebutos..." 64 .
Quer em Cabo Verde, quer em S. Tomé e Príncipe as dificuldades de fixação foram
redobradas e por isso mesmo houve necessidade de reforçar os incentivos. Foi no
comércio na vizinha costa africana que a coroa encontrou a melhor forma de
promover o povoamento das ilhas. E os poucos colonos que para lá seguiram foram
guiados por este promissor comércio. Para Cabo Verde ficou estabelecido em 1466 o
privilégio exclusivo nas trocas comerciais com os Rios da Guiné. Os vizinhos de
Santiago estavam autorizados a comerciar na área, excepto em Arguim. Além disso
usufruíam de isenções fiscais na exportação de produtos para o reino e ilhas.
Algumas destas prerrogativas foram cerceadas: primeiro foi a restrição do espaço de
comércio na costa africana (1472), depois o estabelecimento de mercadorias defesas
(1480, 1497, 1514, 1517), isto é, armas, ferramentas, navios e apetrechos, e, finalmente,
a limitação do trato de escravos às necessidades dos moradores de Santiago sendo a
troca com os produtos locais, ou seja o algodäo e panos(1472 e 1517). Mas o mais rude
golpe a tais prerrogativas surgiu com a carta de 1472. Ela surge como corolário da
nova situação surgida com o contrato estabelecido em 1469 com Fernão Gomes.
Havia que estabelecer as áreas de trato e de acabar com certos atropelos, por isso
ficou determinado que a ilha de Santiago era o local de partida e destino das
embarcações e que só os vizinhos dela poderia intervir em tais negócios, servindo-se
exclusivamente dos produtos da terra. Pior foi contudo a determinação de que os
escravos trazidos deveriam ser apenas para uso dos vizinhos de Santiago e não para
qualquer negócio fora da ilha. Esta foi uma das prerrogativas. Passados dois anos é a
obrigatoriedade de licença para qualquer armação na costa africana.
As razões apresentadas pela coroa para fundamentar tais restrições eram as
seguintes: os danos causados à Fazenda Real e a necessidade de motivar os residentes
para uma maior valorização económica do solo das ilhas. Mas o município da Ribeira
Grande ao contestar em 1512 a medida régia devolveu a responsabilidade para os
cristäos-novos, que eram aí os rendeiros da coroa. Sena Barcelos refere que a
estagnação do movimento demográfico do arquipélago no século dezasseis foi
resultado das leis " sobre os resgates não ter dado mais ampla liberdade aos
mercadores" 65 . Na verdade, como o referiram em 1510 os vizinhos da Ribeira Grande
(ao solicitar ao rei uma cópia dos privilégios por os anteriores terem sido roubados)
"a dita ilha he tam alongada destes regnos e tam maa de doenças que necessita que lhes de V.
A. o dito privilegio e ainda outros somente por abitarem na dita ilha e se nom despoborar..." 66
(23). Idêntica foi a solução encontrada para as ilhas do Golfo da Guiné, onde a coroa
estabeleceu também as referidas isenções fiscais no comércio com o reino (1485) e o
privilégio de resgatarem na costa até ao Congo (1493 e 1500).

64. Arquivo Histórico da Madeira, XV, 97-100.


65. Monumenta Missionária Africana, I, 71.
66. História Geral de Cabo Verde. Corpo Documental, I, 187-188.
ETNOGENIA INSULAR

O povoamento dos arquipélagos atlânticos resultou das condições oferecidas pelo


meio que iam no sentido de satisfazer as necessidades cerealíferas e da
disponibilidade política e social do enclave peninsular. No caso português a
inexistência de população nas ilhas entretanto ocupadas levou à necessidade de
canalizar para aí os excedentes populacionais ou os disponíveis no reino.
O fenómeno de transmigração da época quatrocentista apresenta, ao nível da
mobilidade social, um aspecto particular das sociedades insulares. Elas foram
primeiro pólos de atracção e depois viveiros disseminadores de gentes para a faina
atlântica. No começo a novidade aliada aos inúmeros incentivos de fixação definiram
o primeiro destino, mas depois as escassas e limitadas possibilidades económicas das
ilhas e o fascínio pelas riquezas das Índias conduziram a novos rumos. No primeiro
caso a Madeira, porque foi rápida a valorização económica, galvanizou as atenções
portuguesas e mediterrânicas. Só depois surgiram novos destinos insulares, como as
Canárias, Açores, Cabo Verde e S. Tomé, onde, note-se, os madeirenses foram
importantes. Desta forma a Madeira do século XV poderá ser definida como um pólo
de convergência e redistribuição do movimento emigratório no mundo insular.
No século XVI desvanece-se todo o interesse pelas ilhas, estando todo o empenho
no Ocidente, descoberto por Cristóvão Colombo ou Pedro Alvares Cabral, e o Oriente
a que Vasco da Gama chegará por via marítima.
Os fermentos da geografia humana das ilhas foram peninsulares, de origens
diversas, cuja incidência as fontes históricas nos impedem de afirmar. Insiste-se para
a Madeira, Açores e Cabo Verde que as primeiras levas de povoadores foram de
proveniência algarvia, mas não há dados suficientemente claros sobre a sua
dominância. Esta dedução resulta do facto de o infante D. Henrique ter fixado
morada no litoral algarvio e de lá terem partido as primeiras caravelas de
reconhecimento e ocupação das ilhas. Mas como "exportar" gente numa área que
carecia dela? Os que partiam do Algarve eram mesmo daí oriundos ou gentes que aí
afluíam atraídas pela azáfama marítima que lá se vivia? 67
Orlando Ribeiro afirma, a este propósito, que nas ilhas da Madeira, Porto Santo,
Santa Maria e S. Miguel, ao primeiro impacto de gente do sul seguiu-se o nortenho.
Mas a documentação avulsa que compulsamos nega tal proveniência para a Madeira
e S. Miguel. Numa listagem sumária dos primeiros povoadores da Madeira a
presença nortenha é maioritária, e além disso os registos paroquiais da freguesia da
Sé para o período de 1539 a 1600 corroboram a ideia, dando-nos um número
maioritário de nubentes das regiões de Braga, Porto e Viana. Também na listagem do
grupo de mercadores, nos primeiros anos é dominante a presença de gentes de Entre-

67Vejam-se as aportações de Alberto IRIA(O Algarve e a ilha da Madeira no século XV(documentos inéditos), Lisboa, 1974) e a crítica de
Fernando Jasmins PEREIRA ("O Algarve e a ilha da Madeira. Críticas e aditamentos a Alberto Iria", in Estudos sobre História da
Madeira, Funchal, 1991, pp. 283-296). O tema foi retomado por Artur Teodoro de MATOS("Do contributo algarvio no povoamento
da Madeira e dos Açores", in Actas das I Jornadas de História medieval do Algarve e Andaluzia, Loulé, 1987), que releva a importância das
gentes algarvias no povoamento da Madeira e Açores.
Douro-e-Minho, nomeadamente dos portos costeiros de Ponte Lima, Vila Real e Vila
do Conde.
Em S. Miguel a listagem dos primeiros povoadores fornecida por Gaspar Frutuoso
leva-nos a concluir por uma idêntica afirmação das gentes do Norte de Portugal: em
137 famílias aí referenciadas 59% eram do reino e 24% da Madeira. Das primeiras a
maior percentagem situa-se na região de Entre-Douro-e-Minho. A mesma ideia
poderá ser expressa para as demais ilhas do arquipélago, não obstante algumas
especificidades evidenciadas pela Historiografia.
Os dados fornecidos pela Genealogia, Antroponímia, Linguística e Etnologia
referem uma origem variada para os primeiros colonos que actuaram como o
fermento da nova sociedade açoriana: minhotos, alentejanos, algarvios, madeirenses
e flamengos corporizam o começo da sociedade. É compreensível que, a exemplo do
que sucedeu na Madeira, no grupo de povoadores das ilhas de Santa Maria e S.
Miguel surgisse um grupo de gentes algarvias ou aí residentes, que corporizaram a
oligarquia local. Mas depois a principal força-mo triz da sociedade e economia
açorianas deveria ser, necessariamente, do norte de Portugal. E se no início os
contactos eram, preferencialmente, com o Algarve diversificaram-se depois a
exemplo da Madeira manteve-se uma forte vinculação às terras nortenhas.
Partindo do princípio de que o povoamento das ilhas foi um processo faseado, que
atraiu a totalidade das regiões peninsulares e até mesmo mediterrânicas, é de prever
a confluência de gentes de várias proveniências, em especial nos espaços ribeirinhos
de maior concentração dos aglomerados populacionais. Se é certo que o litoral
algarvio exerceu uma posição de relevo nas primeiras expedições henriquinas no
Atlântico, também não é menos certo que esta era uma área de recente ocupação e
carenciada de gentes. Assim
o grosso dos cabouqueiros do mundo insular português deveria ser de origem
nortenha, sendo em muitos casos os portos do litoral algarvio o local de partida.
Do Algarve vieram, sem dúvida, os criados ou servidores da Casa do Infante, cuja
origem geográfica está ainda por esclarecer. Eles tiveram uma função de relevo no
lançamento das bases institucionais do senhorio das ilhas.
Também em Cabo Verde é referenciado para as ilhas de Santiago e Fogo, uma
incidência inicial de algarvios na criação da nova sociedade, a que depois se juntaram
os negros, como livres ou escravos. Mas será de manter esta filiação dos primeiros
povoadores com o litoral algarvio, quando o processo teve lugar após a morte do
infante D. Henrique?
De S.Tomé sabe-se apenas da presença de uma forte comunidade judaica,
resultado da segunda leva de povoadores ordenada por Álvaro Caminha,
desconhecendo-se a origem dos primeiros aí conduzidos por João de Paiva.
Cedo se reconheceram os efeitos nefastos da presença dos judeus nestas paragens,
responsabilizados pela quebra do comércio e das receitas do erário régio. Deste modo
em 1516 D. Manuel ordenou que eles só poderiam residir em Cabo Verde mediante
ordem régia, o mesmo sucedendo em 1569 para S. Tomé.
O processo de formação das sociedades insulares da Guiné foi diferente do da
Madeira e Açores. Aqui, a distância do reino e as dificuldades de recrutamento de
colonos europeus devido à insalubridade do clima condicionaram, de modo evidente,
a forma da sua expressão étnica. A par de um reduzido número de europeus, restrito
em alguns casos aos familiares dos capitães e funcionários régios, vieram juntar-se os
africanos, que corporizaram o grupo activo da sociedade. Mas a presença de negros,
sob a condição de escravos, incentivada no início, foi depois alvo de restrições. O seu
espírito insubmisso, de que resultaram algumas e sérias revoltas em S. Tomé, foi a
principal razão destas medidas.

OS ESTRANGEIROS
Confrontadas as Canárias com as ilhas portuguesas conclui-se que o processo de
ocupação e agentes que o corporizaram foram diversos, sendo também diferente a
conjuntura em que tal se desenrolou. Nas Canárias a iniciativa da conquista partiu de
um estrangeiro e o processo de povoamento foi marcado pela presença genovesa,
enquanto nas ilhas portuguesas todo ele foi um fenómeno nacional sob a orientação
da coroa.
A presença estrangeira nas ilhas portuguesas é evidente desde o início do
povoamento. Primeiro a curiosidade de novas terras, depois a possibilidade de uma
troca comercial vantajosa: eis os principais móbeis para a sua fixação nas ilhas. A sua
permanência está já documentada na Madeira a partir de meados do século XV,
integrados nas segundas levas de povoadores. E mais não entraram porque estavam,
até 1493, condicionados à concessão de carta de vizinhança. Aliás a Madeira foi a
primeira ilha a despertar a atenção dos mercadores estrangeiros, que encontraram
nela um bom mercado para as suas operações comerciais. Note-se que o rincão
madeirense foi a primeira de todas as ilhas atlânticas a merecer uma ocupação
efectiva imediata e de apresentar um conjunto variado de produtos com valor
mercantil, o que despertou a cobiça dos mercadores nacionais e estrangeiros. Nos
demais arquipélagos este processo foi moroso e tardou em aparecer produtos capazes
de gerarem as trocas externas. No caso das Canárias e dos Açores isso só foi possível
a partir de princípios do século XVI, com a oferta de novos produtos, como o açúcar,
o pastel e cereais. Depois no último arquipélago a sua afirmação como importante
entreposto do comércio oceano fez convergir para aí os interesses de algumas casas
comerciais empenhadas no contrabando dos produtos de passagem.
Na Madeira, ultrapassadas a partir de 1489 todas as barreiras à presença de
estrangeiros, a comunidade forasteira amplia-se e ganha uma nova dimensão na
sociedade e economia. A presença de agentes habilitados para a dimensão assumida
pelas transacções comerciais e a injecção de capital no sector produtivo e comercial
favoreceram a evolução do sistema de trocas. Neste contexto destaca-se a
comunidade italiana, que veio em busca do açúcar. A importância assumida pela
cultura na ilha e comércio do seu produto no mercado europeu foi resultado da
intervenção desta comunidade. Florentinos e genoveses foram os principais obreiros
disso. Os primeiros evidenciaram-se nas transacções comerciais e financeiras do
açúcar madeirense no mercado europeu. A partir de Lisboa controlam à distância,
por meio de uma rede de feitores, o comércio do açúcar madeirense. Para isso
conseguiram da fazenda real o quase exclusivo do comércio do açúcar resultante dos
direitos cobrados pela coroa na ilha, bem como o monopólio dos contingentes de
exportação estabelecidos pela coroa em 1498. Nomes como Benedito Morelli,
Marchioni, João Francisco Affaitati, Jerónimo Sernigi, têm interesses na ilha onde
actuam por iniciativa própria ou por intermédio dos seus agentes, madeirenses e
compatrícios seus.
A penetração deste grupo de mercadores na sociedade madeirense é por demais
evidente. O usufruto de privilégios reais e o relacionamento matrimonial
favoreceram a sua integração na aristocracia madeirense. Eles, na sua maioria
apresentam-se como proprietários e mercadores de açúcar. São exemplo disso Rafael
Cattano, Luís Doria, João e Jorge Lomelino, Lucas Salvago, Giovanni Spinola, Simão
Acciaiolli e Benoco Amatori. Convém referenciar que os estrangeiros tiveram aqui
uma presença forte na agricultura, pois o conjunto destes produtores de açúcar
alcançou os 20% da produção.
Também os flamengos e franceses surgiram na ilha, desde finais do século XV
atraídos pelo comércio do açúcar. Todavia destes são poucos os que criam raízes na
sociedade madeirense - João Esmeraldo é uma excepção -, o seu único e exclusivo
interesse é o comércio do açúcar.
Nos Açores a situação foi diferente pois os flamengos surgem desde o início como
importantes povoadores. Eles foram imprescindíveis para o povoamento das ilhas do
Faial, Terceira, Pico e Flores. O primeiro a desembarcar nos Açores terá sido Jácome
de Bruges, apresentado em documento de 1450 como capitão da ilha Terceira. Da sua
acção pouco se sabe e há quem duvide da autenticidade do título de posse da
capitania da ilha. Mais importante foi, sem dúvida, a vinda de Josse Huerter em 1468
como capitão das ilhas do Pico e Faial. Acompanharam-no inúmeros flamengos que
contribuíram parta o arranque do povoamento das ilhas do grupo central e ocidental.
Martim Behaim 68 refere para 1466 a presença de dois mil flamengos no Faial,
enquanto Jerónimo Munzer 69 , vinte e oito anos depois, refere serem apenas mil e
quinhentos os que residiam aqui e no Pico.
Na ilha de são Miguel fala-se da existência de uma comunidade bretã no lugar da
Bretanha. Segundo alguns ela deriva do inicial fluxo de povoadores mas para outros
deverá ser tardia, situada entre 1515 e 1527, pois só na última data o local surge com
tal nome. Todavia é de estranhar que Gaspar Frutuoso não faça qualquer comentário
sobre ela e os registos paroquiais sejam omissos. Mas isto não invalida a presença
desta comunidade, talvez em data posterior, comprovada aliás em alguns apelidos,
topónimos, características físicas da população, das casas e dos moinhos de vento.
A esta leva inicial de estrangeiros como povoadores sucederam-se outras com
objectivos distintos. O progresso económico do arquipélago despertara a atenção da
burguesia europeia, que surge aí à procura dos seus produtos. O pastel atraiu,

68 . Archivo dos Açores, I, 442-443.


69 . O Itinerário do Dr. Jerónimo Munzer, Coimbra, 1926, 65-66.
primeiro os flamengos e, depois os ingleses. Daqui resultou a importante colónia
destes últimos na cidade de Ponta Delgada.
Para os arquipélagos de Cabo Verde e S. Tomé a comunidade estrangeira assume
menos importância, sendo, em certa medida, delimitada pela política exclusivista da
coroa portuguesa, que criou sérios entraves à sua presença. Todavia o facto de S.
Tomé ter merecido uma exploração diversa com a cultura da cana sacarina levou a
que aí afluíssem técnicos e mercadores, ligados ao produto. Por outro lado, no
entender de um piloto anónimo no século dezasseis, havia a preocupação de cativar
colonos de diversas origens para o povoamento da ilha: "Habitam ali muitos
comerciantes portugueses, castelhanos, franceses e genoveses e de qualquer outra
nação que aqui queiram viver se aceitam todos de mui boa vontade..." 70 .
Numa listagem possível deste grupo é evidente o seu reduzido número e o facto
de eles na sua maioria terem adquirido a nacionalidade portuguesa e aportuguesado
os seus nomes. Num e noutro arquipélago encontrámos alguns italianos e flamengos.
Aliás à descoberta do arquipélago de Cabo Verde estão associados dois italianos -
Cadamosto e António da Noli -, que se encontravam ao serviço do infante D.
Henrique. A eles poderemos juntar, para Cabo Verde, Joham Pessanha, Pero Sacco,
Antonio Espíndola, Bastiam de Lila, Rodrigo Vilharam, Fernam Fied de Lugo, para S.
Tomé: Cristóvão Doria de Sousa, Andre Lopes Biscainho, Jácome Leite, Pedro e Luís
de Roma, Francisco Corvynel, Antonio Rey, Jorge Abote. Note-se que Cristóvão
Dória de Sousa era em 1561 o capitão e governador da ilha de S. Tomé.
A existência da comunidade estrangeira, maioritariamente composta por
mercadores, está em consonância com a conjuntura peninsular e europeia, por um
lado, e os atractivos de índole económica que elas ofereciam, por outro. Desta forma o
lançamento de culturas com elevado valor comercial, como o pastel e o açúcar, está
associado a isso. Eles surgem nas ilhas como os principais financiadores da referida
actividade agrícola e animadores do comércio. Na Madeira e nos Açores a introdução
e incentivos às culturas do pastel e cana-de-açúcar, encontram-se-lhes também
ligadas. Assim o pastel é apontado pela historiografia açoriana como um legado da
colónia flamenga do Faial, enquanto o açúcar madeirense é considerado resultado da
presença genovesa.
Em síntese poder-se-á afirmar que as comunidades italianas e flamenga deram um
contributo relevante ao povoamento e valorização económica das ilhas. Na Madeira e
nas Canárias evidenciaram-se os genoveses como principais arautos da economia
açucareira, enquanto nos Açores os segundos afirmaram-se como povoadores de
algumas ilhas e principais promotores da cultura do pastel. A presença flamenga na
Madeira e Canárias é tardia, o que não prejudicou a sua vinculação à cultura e
comércio do açúcar. Entre eles merece especial referência os Weselers com
importantes interesses na Madeira e em La Palma.
Se tivermos em conta que a presença do grupo de forasteiros resulta
fundamentalmente de interesses mercantis, compreenderemos a maior incidência nas
ilhas ou cidades onde a actividade foi mais relevante. Deste modo as ilhas da

70 . Viagem de Lisboa a S. Tomé, Lisboa, s.d., 51.


Madeira, Gran Canaria e Tenerife galvanizaram muito cedo o seu empenho e
conduziram a que eles estabelecessem uma importante rede de negócios a partir de
Lisboa ou Sevilha. Só assim se pode explicar a posição dominante aí assumida.
Nos Açores a presença da comunidade estrangeira divide-se entre os interesses
fundiário e comercial, mas foi sem dúvida este último, derivado da importância que
aí assumiu a cultura do pastel, que fez chamar a atenção dos mercadores flamengos,
franceses e ingleses para os portos de Angra e Ponta Delgada. Mais tarde a
importância definida por esta área nas rotas comerciais do atlântico atraiu a cobiça
dos estrangeiros como corsários ou mercadores empenhados no contrabando.
Em idêntica situação surgiram muitos dos forasteiros nas ilhas de Cabo Verde e do
Golfo da Guiné, atraídos pelo rendoso comércio de escravos, mas as limitações
impostas pela coroa à sua permanência não foram de molde a que estabelecessem um
vínculo seguro.
Registe-se, por fim, a presença dos ingleses, que adquiriram um lugar relevante
nos arquipélagos da Madeira, Açores e Canárias a partir do século XVII. O seu
principal interesse era o vinho de que se salientaram como os mais importantes
consumidores na terra de origem ou nas colónias orientais e ocidentais. Eles
permaneceram até a actualidade, deixando rastos evidentes no quotidiano das ilhas.

ESTRATIFICAÇÄO SOCIAL

Foi a partir da mescla dos primeiros povoadores europeus, oriundos de várias


regiões e estratos sociais, que se definiu a estrutura social das ilhas. Todavia, é
necessário ter em conta que foi diferente a sua expressão. Assim a Madeira e os
Açores apresentam uma estrutura distinta da dos arquipélagos da costa e do Golfo da
Guiné. Nos dois primeiros estamos perante uma população maioritariamente
europeia, onde se incluíam livres e degredados. Nas últimas ilhas o principal
fermento populacional é definido maioritariamente por africanos da costa vizinha.
O clima foi a principal causa a condicionar a presença dos europeus em Cabo
Verde e S. Tomé, sendo o recurso à população negra a ele habituada o único meio
possível. Mas aqui os portugueses assumem-se como os detentores de regalias, bens
fundiários e cargos administrativos, enquanto os negros foram a principal mão-de-
obra de que eles se serviam "para cultivar as terras, para fazer as plantações e extrair os
açúcares" 71 . Deste modo o rei havia determinado em 1472 que os vizinhos de Santiago
pudessem "haver escravos, escravas, machos e fêmeas para seus serviços e sua melhor
vivenda e povoação".
Sucede que, sendo a maioria dos europeus solteiros ou tendo deixado as mulheres
no reino, foi fácil o relacionamento com as negras, o que levou a uma necessária
miscigenado populacional. As escravas, conhecidas como mulheres "lavadeiras",
estavam ao serviço dos europeus como amas. Em meados do século dezasseis um
piloto anónimo descreve-nos o que sucedia em S. Tomé: "os portugueses, castelhanos,

71 . Monumenta Missionária Africana, IV, 625.


franceses e genoveses e de qualquer outra nação (...) morrendo-lhes as mulheres brancas as
tomam negras no que não fazem muita dificuldade, sendo os habitantes negros de grande
inteligência e ricos, e criando as suas filhas ao nosso modo, tanto nos costumes, como no traje,
e os que nascem destas tais negras são de cor parda e lhes chamam mulatos" 72 .
Isto não agradava ao bispo e coroa que, por isso mesmo, procuraram estabelecer
dificuldades ao avanço da mancebia. Em 1549 73 o rei determinou que as penas
aplicadas às mulheres solteiras devassas e prostitutas fossem até ao degredo para o
reino. Entretanto em Cabo Verde uma ordem de 1620 estabeleceu-se o envio para aí
das mulheres que até então eram degredadas para o Brasil, como forma de se
combaterem as relações sexuais entre brancos e negras, e de se acabar com os
mulatos.
A presença do africano, sob a condição de escravo, liberto ou livre, é uma
constante na sociedade criada pelos portugueses nas ilhas tropicais. A sua
intervenção era, no entanto, extremamente limitada, pois poucos foram aqueles que
adquiriram um lugar de relevo. E destes os que se evidenciaram foram precisamente
aqueles que na vizinha África pertenciam às elites étnicas. O piloto anónimo refere-
nos para S. Tomé, o caso de João Menino.
Diferente foi a posição assumida pelos africanos nas ilhas da Madeira e dos Açores
onde, sob a condição de escravos ou libertos, se encontravam incluídos entre os
estratos baixos da sociedade. A partir disso o edifício social assumiu outra
complexidade, não se limitando apenas à diferença entre livres e escravos, pois no
primeiro grupo surgem-nos diversos estratos. Ao lado das pessoas "honradas e de
grande fazendas", temos os artesãos, os assalariados e, finalmente, os escravos. Do
primeiro grupo saiu a oligarquia da terra cumulada de títulos, bens fundiários e
cargos administrativos. A presença dos outros estratos sociais na "governança" só foi
facilitada ao grupo oficinal por ordem régia de 1484, através dos procuradores dos
mesteres.

OS ESCRAVOS

Sem dúvida, o aspecto mais peculiar e relevante desta estrutura social foram a
posição assumida pela escravatura. Para certa historiografia torna-se paradigmático o
caso madeirense, que se assume como revelador da forma de passagem da sociedade
mediterrânica para a atlântica, através da vinculação ao açúcar.
De facto as ilhas do Atlântico Oriental foram o filão do açúcar que catapultou a
mão-de-obra escrava para a uma afirmação nas referidas sociedades e economias. Daí
resultou que nos Açores, onde a safra açucareira foi diminuta, este grupo social não
adquiriu a mesma dimensão da Madeira e Canárias. Mas é difícil, em qualquer dos
arquipélagos, estabelecer uma contabilização exacta. No caso da Madeira refere-se,
com base em Gaspar Frutuoso, que os escravos representariam em 1552 cerca de 14%
do total dos habitantes do Funchal e 29 % de toda a ilha, mas os dados por nós

72 . Ibidem, IV, 625.


73 . Ibidem, II, 443-445.
compulsados para toda a ilha e relacionados com o recenseamento de 1598 ficam-se
por 5%, enquanto nas Canárias orientais tal percentagem rondaria os 15%. A
percentagem do grupo nos registos paroquiais é reduzida, não ultrapassando na
totalidade os 3%. Os valores mais elevados surgem nos baptismos e casamentos em
1590 com, respectivamente, 12% e nos óbitos de 1569 com 19% 74 .
A presença desta mão-de-obra resultou só das dificuldades sentidas no
recrutamento de colonos derivadas das inúmeras exigências da safra do açúcar e da
facilidade do resgate nas Canárias ou costa africana. Note-se que, mais tarde, uma
maior procura por outros mercados carentes causou aqui dificuldades à sua
manutenção sendo mais fácil e barato e recurso à mão-de-obra livre.
Os escravos tiveram nestas ilhas uma função marcante no processo socio-
económico nos séculos XV e XVI. Para isso terão contribuído, por um lado, as
facilidades no acesso ao seu mercado africano e, por outro, a incessante procura desta
força braçal derivada das dificuldades no recrutamento de colonos no reino,
conjugada com a sua permanente solicitação em face das más condições do solo a
desbravar e da inusual necessidade pela safra e fabrico do açúcar.
Na Madeira o processo de abertura de frentes de arroteamento foi moroso e
necessitava de uma mune rosa e barata mão-de-obra. A preparação do solo para as
sementeiras foi demorada: as queimadas, a construção de paredes para retenção das
terras e a abertura de levadas para a utilização da água no regadio e fruição da sua
força motriz nos engenhos. Depois foram as culturas agrícolas.
Esta situação aliada à forte presença madeirense nas campanhas de defesa das
praças africanas, de conquista das Canárias e de reconhecimento da costa africana
implicam a solução da escravatura de canários ou africanos, muitos deles presas
dessas façanhas. Deste modo estava aberta a via para a afirmação da escravatura na
ilha, dispondo para isso de múltiplas frente de recrutamento: primeiro as Canárias,
depois a costa africana, desde Marrocos até Angola. Mas o principal surgidouro de
escravos foi a área da Costa e Rios de Guiné. Aí chegaram os madeirenses e
estabeleceram, em Santiago e depois em S. Tomé, um importante entreposto para este
comércio com destino à sua ilha. Mais tarde eles alargaram os seus interesses até ao
tráfico transatlântico. Esta situação contribuiu para que a Madeira fosse um
importante entreposto de comércio de escravos para o reino ou Canárias.
A escravatura na Madeira adquiriu uma dimensão diferente das ilhas de Cabo
Verde e S.Tomé ou das Antilhas. Esta diferença não se radica apenas no número
deles, pois também se alarga à mundividência estabelecida pela estrutura social
madeirense. Na Madeira o escravo é parte integrante da sociedade. O mundo do
escravo entrecruzava-se com o do livre. Vários factores condicionaram estas
especificidades: a dimensão adquirida pela propriedade no solo madeirense
associada à estrutura social e económica favoreceu esta simbiose.
Os regimentos régios, as posturas municipais, insistiam na necessidade de
controlo do acanhado espaço de convívio do escravo, procurando evitar qualquer

74Para a situação da Madeira nos séculos XV a XVII veja-se o nosso estudo Os escravos no arquipélago da Madeira.séculos XV a XVII,
Funchal, 1991.
situação propiciadora da revolta. Perante isto o escravo estava amarrado ao
quotidiano do senhor e só poderia desprender-se dele em condições especiais e
mediante o seu consentimento. Deste modo o escravo só existia perante a sociedade
associado ao seu senhor. A par disso a mulher escrava mantinha um estreita ligação
com o proprietário, seja ele do sexo feminino ou masculino, servindo-o em tudo o que
era necessário. As disposições testamentárias favorecem-nas precisamente por esta
situação.
É comum associar-se o escravo à cultura e fabrico do açúcar: o binómio
escravo/açúcar é considerado para muitos uma realidade insofismável. É-o sim em
S.Tomé Antilhas e Brasil, mas na Madeira e Canárias a situação é diversa. Na verdade
esta cultura foi a mola
propulsora da afirmação dos escravos nas ilhas, mas as condições específicas do
sistema de propriedade permitiram uma diversidade de relações sociais em torno da
produção.
Na Madeira, ao contrário do que sucedeu nas áreas supracitadas, a cultura dos
canaviais adquiriu expressão fundiária diversa. Neste caso deparamo-nos com um
excessivo parcelamento dos canaviais e a afirmação de uma nova forma de posse e
usufruto da terra -- o arrendamento -- que colocava em segundo plano a função do
escravo no processo produtivo. Depois a crise açucareira provocou a afirmação de
outra cultura -- a vinha -- que relegou para um plano secundário a presença do
escravo no sector produtivo. Acresce ainda que o binómio engenho/canaviais era
pouco frequente, sendo usual o recurso ao engenho de outrem para a moenda das
canas e fabrico do açúcar. Esta divisão de tarefas e a pequenez dos canaviais não
facilitaram a permanência de uma mão-de-obra fixa, antes possibilitando uma
afirmação da força de trabalho eventual. Perante isto só nos resta dizer que no caso
da Madeira e mesmo das Canárias as tarefas da cultura e fabrico do açúcar foram
executadas por uma mão-de-obra mista: escravos e livres trabalham a terra e animam
a vida do engenho, mas os últimos dominam, ao contrário do que sucedeu nas
Antilhas ou em S.Tomé.
Também nos Açores o escravo misturou-se com o criado e trabalhador na
prestação de serviços domésticos, agro-pecuários e artesanais. Mas aqui a escravatura
não adquiriu a dimensão que assumiu na sociedade madeirense. Para isso terão
contribuído a forma de organização da estrutura fundiária e o relativo afastamento
dos mercados abastecedores de escravos.
Em Cabo Verde e S. Tomé, porque próximos do mercado de resgate e funcionando
como feitorias para este tráfico, a situação era diversa. No primeiro arquipélago, por
exemplo, foi apenas a sua disponibilidade nos Rios da Guiné. A coroa havia
determinado em 1472 que os moradores de Santiago pudessem "haver escravos,
escravas, machos e fêmeas para seus serviços e sua melhor vivenda e povoação". Até
mesmo o clero não dispensava os seus serviços, como se depreende de uma carta de
1607 do padre Barreira, missionário na Serra Leoa. Dizia ele: "a experiência nos tem
demonstrado que nem a ilha (Santiago) nem cá podemos viver sem escravos".
Nas ilhas do Golfo da Guiné o processo foi diferente uma vez que a isso se deverá
juntar o facto de o açúcar ter aí vingado em larga escala, necessitado de enormes
excedentes de mão-de-obra africana, mais justificados pela reduzida dimensão dos
europeus. Aqui laboravam mais de trezentos engenhos, no século dezasseis, todos
eles alimentados pela força do trabalho escravo. De acordo com uma relação de 1554
cada engenho teria ao seu dispor entre cento e cinquenta a trezentos escravos. Álvaro
de Caminha declara no testamento, feito em finais do século XV, ter ao seu serviço
"nas obras, roças e sementeiras" mais de quinhentos escravos. A estrutura fundiária e
social, geradas pelo açúcar, ganham uma dimensão idêntica à que assumirá mais
tarde no Brasil e Antilhas. Esta situação é o prelúdio do que iria suceder, depois, aos
africanos escravizados e obrigados a fazer a travessia do oceano.
Quer em Cabo Verde, quer em S. Tomé o trabalho dos escravos era a força motriz
da economia agrícola. O seu dia à dia era estabelecido pela tradição africana de uma
forma peculiar. Seis dias era o tempo reservado para os escravos tornarem
produtivas as terras do amo e apenas um dia lhes era facultado para encontrarem os
meios de subsistência diária. Ao contrário do que sucedia na Madeira ou nos Açores
"o senhor não dá coisa alguma àqueles negros (...) nem mesmo faz despesa em dar-lhes
vestidos, nem de comer, nem em mandar-lhes construir choupanas porque eles por si mesmo
fazem todas as coisas" 75 . Contra isto reclamava o Padre Manuel de Barros em 1605,
dizendo que os escravos aos domingos e dias santificados não cumpriam o preceito
religioso, porque "tais dias dá Deus ao cativo para trabalhar para as suas necessidade (...) e
nada para o senhor". Note-se que isto não era novidade para os negros, que sendo
escravos no continente já estavam submetidos a tal regime de trabalho e foi de lá que
os portugueses o copiaram.
Os escravos assumiam aqui uma posição muito mais importante na composição da
sociedade, do que nas ilhas aquém do Bojador. Neste grupo devemos diferenciar,
quer em Santiago, quer em S. Tomé, os escravos residentes e os de resgate. Os
últimos, depois de alguns dias de permanência nos armazéns da feitoria, seguiam
rumo ao seu destino, para a América, a Europa ou as ilhas atlânticas. Eram
numerosos mas de permanência limitada. Valentim Fernandes dá-nos conta disso em
princípios do século XVI, referenciando para S. Tomé, entre os mil moradores livres,
o dobro de escravos residentes e entre cinco a seis mil de resgate. Com o decorrer dos
tempos a relação entre os livres e os escravos residentes aumentou, de modo que em
1546 existiam seiscentos brancos para igual número de mulatos e dois mil escravos.
Na ilha do Príncipe em 1607 nos cinco engenhos em funcionamento contavam-se dez
homens brancos casados, dezoito crioulos e quinhentos escravos 76 .
Em Cabo Verde os dados disponíveis sobre a presença dos escravos cobrem
apenas as ilhas povoadas desde o início (Santiago e Fogo) no período de 1513 e 1582.
Na primeira data referencia-se na Ribeira Grande a residência de cento e sessenta e
dois vizinhos, sendo destes trinta e dois escravos. Para o segundo surgem já 13.700
escravos (87%) e 1.008 vizinhos (13%), nas duas ilhas. Aqui é evidente a maior

75 . Viagem de Lisboa à ilha de S. Tomé, Lisboa, s.d., 54-60.


76 . Monumenta Missionária Africana, I, nº 137, 383.
concentração na Ribeira Grande, onde representam mais de 92% da população 77 .
Perante isto torna-se evidente a diferença entre o fenómeno da escravatura dos dois
arquipélagos com os atrás citados.
Em todas as ilhas a presença do escravo negro não era pacífica, sendo considerada
em muitos momentos como um factor de forte instabilidade social. Os fugitivos, num
e noutro lado, geravam a habitual apreensão das autoridades, que tudo faziam para
sanar os aspectos nocivos que a sua presença poderia causar. Mas enquanto na
Madeira e nos Açores a conflituosidade era sazonal, não assumindo proporções
graves, o mesmo não se podendo dizer das ilhas da Guiné.
Em S. Tomé, os fugitivos reuniam-se nas montanhas em quadrilhas e assaltavam
esporadicamente as vilas. Daí resultaram também algumas sublevações importantes
(em 1547 e 1595) que puseram em causa a permanência dos europeus e a
continuidade da cultura da cana-de-açúcar açucareira. Ficou célebre a revolta de
1595, comandada por Amador, escravo fugitivo de Bernardo Vieira 78 . O
afrontamento dos escravos fugitivos começou a ser evidente a partir de 1531, ano em
que os moradores de S. Tomé manifestaram a sua apreensão ao rei pela presença de
tais grupos de cativos fugidos, considerados uma ameaça permanente para a ilha. Daí
resultava a necessidade de medidas por parte da coroa, caso contrário "se perderá esa
ylha e cedo será toda dos negros".
Também nos Açores, mais propriamente em Vila Franca do Campo, ficou
registada uma revolta de escravos em 1522, tendo por chefe um Badail, escravo de
Rui Gonçalves da Câmara, mas sem qualquer efeito para a sociedade. Na Madeira
onde o grupo era mais numeroso não se conhece qualquer tipo de revolta, para além
dos casos isoladas de violência dos escravos fugitivos nos caminhos que circundavam
as serranias da ilha.

A EMIGRAÇÄO INSULAR

A elevada mobilidade social é uma característica da sociedade insular. O


fenómeno da ocupação atlântica lançou as bases da sociedade e a emigração
ramificou-a e projectou-a além Atlântico. As ilhas foram assim, num primeiro
momento, pólos de atracção, passando depois a actuar como áreas centrífugas. A
novidade aliada à forma como se processou o povoamento activou o primeiro
movimento. A desilusão, a escassa e limitadas possibilidades económicas e a cobiça
por novas e promissoras terras, o segundo surto.
Primeiro foi a Madeira, depois as ilhas próximas dos Açores e das Canárias e,
finalmente, os novos continentes ou ilhas. Desiludido com a ilha o madeirense
procurou melhor fortuna nos Açores ou nas Canárias, e depositou, depois, na costa
africana as promissoras esperanças comerciais. Neste grupo incluem-se
principalmente os filhos-segundos desapossados da terra pelo sistema sucessório. É

. António CARREIRA, Cabo Verde, Lisboa, 1983, 373-374.


77

. Rui RAMOS, "Rebelião e Sociedade colonial: alvoroço e levantamento em S. Tomé (1545-1555)", in Revista Internacional de Estudos
78

Africanos, nº 4/5, 1986, 17-74.


disso exemplo Rui Gonçalves da Câmara, filho do capitão do donatário no Funchal,
que preferiu ser capitão da ilha distante de S. Miguel a manter-se como mais um
mero proprietário na Ponta do Sol. Com ele surgiram outros que deram o arranque
decisivo ao povoamento desta ilha. Deste modo a Madeira evidencia-se também no
século quinze como um centro de divergência de gentes no novo mundo.
A elevada mobilidade do ilhéu levou os monarcas a definirem uma política de
restrições no movimento emigratório em favor da fixação do colono à terra, como
forma de se evitar o despovoamento das áreas já ocupadas. Mas o apelo das riquezas
fáceis, do resgate africano ou da agricultura americana eram mais convincentes,
tendo a seu favor a disponibilidade dos veleiros que escalavam com assiduidade os
portos insulares. A emigração era inevitável.
A Madeira desfrutava no século XV, a exemplo das Canárias, de uma posição
privilegiada perante a costa e ilhas africanas. Deste modo ela afirmou-se por muito
tempo como um importante centro emigratório para os arquipélagos vizinhos ou
longínquos continentes. Para isso contribuiu o facto de estar associada ao madeirense
uma cultura que foi a principal aposta das arroteias do Atlântico, isto é, a cana
sacarina.
Os madeirenses aparecem nas Canárias, Açores, S. Tomé e Brasil a dar o seu
contributo para que no solo virgem brotem os canaviais, apareçam os canais de rega
ou de serviço aos engenhos, a que também foram seus obreiros nos avanços
tecnológicos. A crise da produção açucareira madeirense, gerada pela concorrência
do açúcar das áreas que os seus habitantes contribuíram para criar, empurrou-nos
para destinos distantes. Nesta diáspora atlântica, iniciada na Madeira, é de
referenciar o caso da emigração inter-insular dos arquipélagos do Mediterrâneo
Atlântico. As ilhas, pela proximidade e forma similar de vida, aliadas às necessidades
crescentes de contactos comerciais, exerceram também uma forte atracção entre si.
Madeirenses, açorianos e canários não ignoravam a condição de insulares e, por isso
mesmo, sentiram necessidade do estreitamento destes contactos.
A Madeira, mais uma vez, pela posição charneira entre os Açores e as Canárias e
da anterioridade no povoamento, foi, desde meados do século XV, um importante
viveiro fornecedor de colonos para estes arquipélagos e elo de ligação entre eles. A
ilha funcionou mais como pólo de emigração para as ilhas do que como área
receptora de imigrantes. Se exceptuarmos o caso dos escravos guanches e a inicial
vinda de alguns dos conquistadores de Lanzarote, podemos afirmar que o fenómeno
é quase nulo, não obstante no século dezasseis os açorianos surgirem com alguma
evidência no Funchal. Note-se, ainda, a presença de uma comunidade de açorianos
nas ilhas Canárias, principalmente nas ilhas de Gran Canaria, Tenerife e Lanzarote,
dedicados à cultura dos cereais, vinha, cana sacarina e pastel. Mas açorianos e
canarianos, bem posicionados no traçado das rotas oceânicas, voltaram a sua atenção
para o promissor novo mundo.

A MADEIRA E AS CANARIAS
Um dos aspectos reveladores das conexões madeirenses e açorianas foi o
relacionamento com as Canárias. Para Perez Vidal 79 a presença portuguesa no
arquipélago resultou da sua intervenção em dois momentos decisivos: um primeiro,
demarcado pelas acções da coroa e do infante D. Henrique, nos séculos XIV e XV que
terá o seu epílogo em 1497 com o tratado de Alcáçovas; o segundo, de iniciativa
particular, abrangendo os séculos XVI e XVIII, em que os impulsos individuais se
sobrepõem à iniciativa oficial. Este último foi o momento de expressão plena da
presença lusíada e do seu paulatino definhar em face da Restauração da monarquia
portuguesa e da guerra de fronteiras mantida até 1665.
A questão ou disputa pela posse das ilhas Canárias foi o prelúdio de novos
confrontos com o objectivo de monopólio das navegações atlânticas. O inicial
afrontamento foi entre Portugal e Castela, tendo como palco as ilhas Canárias. Esta
disputa começou em meados do século catorze mas só na centúria seguinte por
iniciativa do infante D. Henrique teve a sua maior expressão.
A expedição de Jean de Betencourt em 1402 marca o início da conquista das
Canárias enquanto a sua subordinação à soberania da coroa castelhana e o
reconhecimento em 1421 pelo papado desta nova situação fez reacender a polémica
do século XIV. Ao infante português restavam apenas duas possibilidades: a solução
diplomática, fazendo valer os seus direitos junto do papado e o recurso a uma
intervenção bélica, legitimada pelo espírito de cruzada que a ela se pretendia
associar. Desta última situação resultaram as expedições de D. Fernando de Castro
(1424 e 1440) e de António Gonçalves da Câmara (1427). Mas em todas as frentes as
conquistas foram efémeras e de pouco valeu, por exemplo, a compra em 1446 da ilha
de Lanzarote a Maciot de Bettencourt, por 20.000 reais brancos ao ano e regalias na
ilha da Madeira. Disso apenas resultou a ramificação desta importante família à
Madeira e, depois, aos Açores. O litígio encerra-se em 1480 com a assinatura de um
tratado em Toledo. Desde então a coroa portuguesa abandona a sua reivindicação
pela posse dessas ilhas com garantias de que a burguesia andaluza não se
intrometerá no trato da Guiné.
A conjuntura destas ilhas e do relacionamento das coroas peninsulares
acompanhou desde o início as conexões canário-madeirenses. No século XV a
vinculação da Madeira a Lanzarote filia-se na célebre na disputa das coroas
peninsulares pela posse das Canárias. Em finais do século seguinte a sua reafirmação
e alargamento a todo o arquipélago canário foram resultado da ocupação da ilha em
1582 por D. Agustin Herrera, acto que materializou na Madeira a unido das duas
coroas peninsulares. Entretanto nos Açores tivemos desde 1582 a presença de
importantes contingentes militares espanhóis, mas sendo reduzida a presença de
canários. Todavia o efeito social dos dois fenómenos em ambos os arquipélagos foi
diverso. O primeiro permitiu a afirmação madeirense em Lanzarote, enquanto o
segundo, para além do natural reforço da realidade condicionou a presença canária

79. "Aportación portuguesa a la población de canarias. Datos", in Anuario de Estudios Atlânticos, nº 14, 1968. Este e outros estudos

foram reunidos em Los portugueses en Canarias. portuguesismos, Las Palmas, 1991.


no Funchal, que nunca foi muito significativa. Talvez o momento de maior
intervenção seja o do século XV com a presença dos aborígenes canários, como
escravos, ao serviço da pastorícia e safra do açúcar.
Se à componente política se deverá conceder o mérito de abertura e incentivo das
conexões humanas, ao económico ficou a missão de reforçar e sedimentar este
relacionamento. Desta forma os contactos comerciais surgem em simultâneo como
consequência e causa das migrações humanas. Todavia tal intercâmbio só adquiriu a
plenitude no século XVI, incidindo preferencialmente no comércio de cereais dos
mercados de Tenerife, Fuerteventura e Lanzarote.
A proximidade da Madeira ao arquipélago canário e o rápido surto do
povoamento e valorização sócio-económica do solo orientaram as atenções do
madeirense para esta promissora terra. Assim, decorridos apenas vinte e seis anos
após a ocupação do solo madeirense, embrenharam-se na controversa disputa pela
posse das Canárias ao serviço do infante, em 1446 e 1451.
A presença madeirense na empresa canária conduziu a uma maior aproximação
dos dois arquipélagos ao mesmo tempo que influenciou o traçado de vias de contacto
e comércio entre os dois arquipélagos. Pela Madeira tivemos, primeiro, o saque fácil
de mão-de-obra escrava para a safra do açúcar e, depois, o recurso ao cereal e à carne,
necessários à dieta alimentar do madeirense. Pelas Canárias foi o recurso à Madeira
com o porto de abrigo das gentes molestadas com a conturbada situação que aí se
viveu no século XV. Em 1476 com a conquista levada a cabo por Diogo de Herrera,
muitos dos descontentes com a nova ordem emigraram para a Madeira ou Castela.
De entre eles podemos referenciar Pedro e Juam Aday, Juan de Barros, Francisco
Garcia, Bartolomé Heveto e Juan Bernal.
Esta corrente migratória resultante do descontentamento gerado em face da
conquista e ocupação do arquipélago canário iniciara-se já por volta de meados do
século XV, sendo seu arauto Maciot de Bettencourt. O sobrinho do primeiro
conquistador das Canárias, amargurado com o evoluir do processo e em litígio com
os interesses da burguesia de Sevilha, cedeu o direito do senhorio de Lanzarote ao
infante D. Henrique mediante avultada soma de dinheiro, de fazendas e regalias na
Madeira. Iniciava-se assim uma nova vida para esta família de origem normanda que
das Canárias passa à Madeira e aos Açores, relacionando-se aí com a principal
nobreza da terra, o que lhe valeu uma lugar de relevo nas sociedades madeirense e
micaelense do século XV.
Acompanharam o desterro de Maciot de Bettencourt a sua filha Maria e os
sobrinhos e netos Henrique e Gaspar. Todos eles conseguiram uma posição de
prestígio e avultadas fazendas mercê do relacionamento matrimonial com as
principais famílias da Madeira. D. Maria Bettencourt, por exemplo, casou com Rui
Gonçalves da Câmara, filho-segundo do capitão do donatário do Funchal e futuro
capitão do donatário da ilha de S. Miguel.
A compra em 1474 por Rui Gonçalves da Câmara da capitania da ilha de S. Miguel
implicou a ramificação da família aos Açores. Com D. Maria Bettencourt seguiu para
Vila Franca o seu sobrinho Gaspar, que mais tarde viria a encabeçar o morgado da tia
em S. Miguel, avaliado em 2.000 cruzados. Os filhos, Henrique e João evidenciaram-
se na época pelos serviços prestados à coroa, tendo recebido em troca muitos
benefícios. Henrique de Bettencourt preferiu o sossego das terras da Band'Além, na
Ribeira Brava, onde viveu em riquíssimos aposentos. Aí instituiu um morgado e
participou activamente na vida municipal e nas campanhas africanas. Os
descendentes destacaram-se na vida local e nas diversas campanhas militares em
África, Índia e Brasil.
Se esta primeira vaga migratória traçou o rumo e destino madeirense, a expedição
pacificadora de D. Agustin Herrera, conde de Lanzarote, em 1582, sedimentou e
estreitou os contactos entre a Madeira e Lanzarote. O próprio conde de Lanzarote, na
curta estadia na ilha, foi um dos arautos deste relacionamento, pois ligou-se aos
Acciaiolis, importante casa de mercadores e terratenentes florentinos, fixada na ilha
desde 1515. As suas hostes seguiram-lhe o exemplo, tendo muitos dos trezentos
homens do presídio criado família na ilha. No período de 1580 a 1600 os espanhóis
surgem em primeiro lugar na emigração madeirense 80 .
O descerco em 1640 trouxe consigo consequências funestas para tal
relacionamento. Assim os madeirenses residentes em Lanzarote foram alvo de
represálias, sendo de referir o confisco dos bens do filho varão de Simão Acciaioli que
casara com a filha do Conde de Lanzarote.
O impacto lusíada nas Canárias surgiu muito cedo tendo a Madeira como um dos
principais eixos do movimento. A presença alargou-se às ilhas de La Palma,
Lanzarote, Tenerife e Gran Canaria. Os portugueses assumiram um lugar de relevo,
situando-se entre os principais obreiros da valorização económica das ilhas. Eles
foram exímios agricultores, pescadores, pedreiros, sapateiros, mareantes, deixando
marcas indeléveis da portugalidade na sociedade canária 81 .
A tradição bélica e aventureira de alguns madeirenses levou-os a participar
activamente nas campanhas de conquista de Tenerife, recebendo por isso, como
recompensa, inúmeras dadas de terra. Daí resultou a forte presença lusíada nesta
ilha, onde em algumas localidades, como Icode e Daute, surgem como o grupo
maioritário. Aliás Granadilla foi fundada por Gonzalo Gonzalez Zarco filho de João
Gonçalves Zarco, capitão do donatário do Funchal. A prova mais evidente da
importância da comunidade lusíada na ilha está documentada nos "acuerdos del
cabildo de Tenerife" onde foram sempre referenciados em segundo lugar. O mesmo se
poderá dizer para a ilha de La Palma onde os portugueses marcaram bem forte a sua
presença, tendo a testemunhá-lo a existência de alguns registos paroquiais feitos em
português. Entretanto em Lanzarote o forte impacto madeirense está comprovado
pelas inúmeras referências da documentação e pelo testemunho de Vieira y Clavijo
de que a Madeira era familiar para os lanzarotenhos que era aí conhecida como a ilha.
A acentuada presença lusíada no arquipélago foi resultado das possibilidades
económicas que o mesmo oferecia e as necessidades em mão-de-obra e da
possibilidade de penetração no comércio com a costa africana e depois com o novo

80 . Luis Francisco de Sousa Melo, "Imigração na Madeira. Paróquia da Sé 1539-1600, in História e Sociedades, nº 3, 1979, 52-53.
81 Cf J. Perez Vidal
continente americano. Assim num primeiro momento fomos confrontados com um
numeroso grupo de aventureiros dos quais se recrutaram os oficiais mecânicos e
agricultores e só depois surgiram os agentes de comércio e transporte, todos eles com
uma acção decisiva na economia do arquipélago nos séculos XV e XVII.
É fácil testemunhar a assiduidade dos contactos mas difícil se torna avaliar a
dimensão assumida pela presença portuguesa neste arquipélago, quanto à sua
origem geográfica. Nos diversos actos notariais, que compulsámos, ignora-se, muitas
vezes, a origem geográfica dos intervenientes portugueses. O facto de muitos
surgirem em diversos actos relacionados com outros da Madeira ou outorgando
poderes para a cobrança de dívidas e administração das heranças leva-nos a suspeitar
a sua origem madeirense.
Uma vez que os contactos entre a Madeira e as Canárias foram mais frequentes é
natural a presença de uma importante comunidade madeirense nesse arquipélago,
com principal relevo para as ilhas de Lanzarote, Tenerife e Gran Canária. Aí foram
agentes destacados do comércio e transporte entre os dois arquipélagos ou artífices,
nomeadamente sapateiros. Os açorianos, maioritariamente das ilhas Terceira e S.
Miguel, surgem em menor número e preferentemente ligados à faina agrícola.
A classe mercantil de origem madeirense nas Canárias segue um rumo peculiar.
Eles ao contrário dos flamengos e italianos não se avizinham de imediato, mantendo
o estatuto de estantes. A necessidade de fixação é quase sempre o corolário do
progresso das suas operações comerciais e dos investimentos fundiários.
As mudanças operadas na conjuntura política a partir dos acontecimentos do ano
de 1640 condicionaram a presença do madeirense. Ele que até então usufruía de um
estatuto preferencial na sociedade e economia lanzarotenha, por exemplo, desaparece
paulatinamente do palco de acção. E, facto insólito, os poucos que conseguimos
rastrear na documentação procuram ignorar ou apagar a sua origem, surgindo
apenas como vizinhos sem outra referência.
Esta situação coincide com o fim do relacionamento comercial incidindo sobre os
cereais de Canárias pois a partir de 1641 deixou de aparecer no Funchal, sendo
substituído pelo açoriano ou por novos mercados como a Berbéria e América do
Norte. Será ela resultado da crise da cultura cerealífera canária ou fruto da ambiência
de mútua represália peninsular? Note-se, ainda que a partir de então surgiram novos
e mais promissores destinos para a emigração, como o Brasil, que terão motivado esta
mudança.
Da presença da comunidade portuguesa em Canárias resultaram inúmeras
influências, hoje ainda visíveis nas aportações linguísticas e etnográficas. Neste caso
são evidentes os portuguesismos na nomenclatura dos ofícios, utensílios e produtos a
que estiveram ligados: açúcar, vinho, pesca, construção civil e fabrico de calçado. No
inverso também temos alguns testemunhos da presença dos aborígenes de Canárias
na Madeira e Açores. A sua presença como escravos ou os assíduos contactos entre as
ilhas favoreceram estas aportações. Na ilha de S. Miguel, não obstante estar
testemunhada apenas a presença de dois guanches -- um pastor e outro mestre de
engenho-- a sua presença deixou rastro na toponímia com o pico e lagoa do canário.
Na Madeira para além dessa referência toponímica persistem vestígios da sua
presença na construção de furnas para habitação (Ribeira Brava) e culto religioso (S.
Roque do Faial) e no Porto Santo o uso generalizado do gofio.

MADEIRA E AÇORES

O movimento emigratório entre a Madeira e os Açores é muito mais tardio, tendo


como seu iniciador Rui Gonçalves da Câmara, que em 1474 se tornou capitão da ilha
de S. Miguel. Não obstante estar referenciada em época anterior a estância de Diogo
de Teive, que em 1452 teria descoberto as ilhas das Flores e Corvo, o certo é que só a
partir da década de setenta se generaliza esse movimento, que conduziu às ilhas de S.
Miguel, Terceira Santa Maria e Pico muitos filhos segundos da aristocracia
madeirense. Na Madeira havia-se esgotado a possibilidade de fácil aquisição de
terras, coisa que nos Açores era facilitado. Note-se ainda que o incentivo de culturas,
como a cana sacarina e a vinha, estão também ligados os madeirenses.
O movimento inverso foi pouco frequente e só teve lugar a partir de princípios do
século XVI. Para isso deverá ter contribuído a assiduidade dos contactos entre os dois
arquipélagos provocada pelo comércio de cereais e, ainda, o temor das crises sísmicas
que assolaram as ilhas açorianas, com especial relevo para as de 1522 e 1563.

AS ILHAS E A GUINÉ

As ligações dos arquipélagos da Madeira e Açores com os dois da costa e golfo da


Guiné não foram frequentes, sendo a primeira motivação a busca de escravos negros.
Neste contexto a abordagem feita pelas gentes insulares é quase sempre sazonal, o
tempo suficiente para as operações comerciais. Todavia encontramos em S. Tomé e
Santiago referências à presença de madeirenses e açorianos avizinhados. Esta
presença é resultado da ida de técnicos ligados à cultura do açúcar e, depois, de
comerciantes interessados no comércio de escravos para a Madeira ou para as
Antilhas, como sucedeu no século XVII. Um caso exemplificativo disso é Francisco
Dias 82 . Ele fixou-se na Ribeira Grande, donde coordenava uma rede de negócios que
ligava os Rios da Guiné aos Açores, Madeira e Antilhas de Castela.
Em Cabo Verde e S. Tomé os movimentos migratórios foram definidos por outros
impulsos, estando-se perante uma imposição das contingências da economia
atlântica. A necessidade de mão-de-obra escrava, do outro lado do Atlântico,
conduziu à saída forçada dos africanos, tendo em Cabo Verde e S. Tomé dois eixos
importantes do movimento a partir do século dezasseis. Tal conjuntura levou à
vinculação extrema das ilhas ao litoral africano com o reforço das conexões
económicas e humanas.

82 .Arquivo Regional da Madeira, Misericórdia do Funchal, nº.684, fls.785-790vº.


No grupo, que divergia a partir de Santiago, evidenciam-se os lançados ou
tangomaos, que foram um dos suportes mais importantes do comércio ilegal de
escravos. Eles eram na sua maioria africanos "ladinizados" que aí se aventuravam ao
serviço dos mercadores cabo-verdianos.
Os fenómenos emigratórios açorianos e madeirense ultrapassaram as barreiras do
mundo insular e projectaram-se além fronteiras no Brasil e no Oriente. Num e noutro
espaço os insulares foram importantes como povoadores, guerreiros e descobridores.
Para muitos filhos-segundos esta foi a única alternativa que a sociedade lhes
possibilitava no acesso a comendas, títulos e cargos: primeiro a defesa das praças
africanas a atrair a atenção dos bravos cavaleiros, depois as promissoras terras
orientais e, finalmente, o Brasil.
No caso madeirense existiu uma relação permanente, desde o século quinze, com
as praças marroquinas, sendo eles que acudiam com o cereal e mais mantimentos
para as guarnições das praças, os homens para as defender, o dinheiro e materiais de
construção para as fortalezas. Muitos aí morreram na defesa das possessões e outros
que adquiriram títulos e honras. As praças eram um local de "diversão" para a
cavalaria madeirense. Por outro lado alguns madeirenses usufruíram de cargos
governativos, sendo exemplo disso o caso de António de Freitas, provido em 1508 no
de comendador de Safim, Fernão Gomes de Castro, em 1610 nomeado capitão de
Tanger. Talvez, por isso mesmo, foi com desagrado que os madeirenses encararam a
política de abandono de muitas das praças por D.Joäo III e aderiram em força à
campanha africana de D.Sebastiäo.
Madeirenses e açorianos tiveram um papel importante na conquista e defesa das
feitorias do oceano Indico. Pelo lado madeirense evidenciaram-se João Rodrigues de
Noronha como comandante de Ormuz (1521), Jordão de Freitas, capitão de Maluco
(1533) e António de Abreu, capitão de Malaca (1522).

A EMIGRAÇÄO DO SÉCULO DEZANOVE: UMA NOVA REALIDADE DOS


MOVIMENTOS MIGRATÓRIOS INSULARES

A emigração do século dezanove apresenta características completamente


diferentes desta primeira vaga. Até agora estávamos perante uma saída feita de
acordo com as solicitações externas, onde se aliava o desejo de aventura aos
interesses económicos. A partir de então foram os impulsos internos que conduziram
à saída forçada dos insulares. A terra que os recebera há quatrocentos anos
apresentava-se agora madrasta, incapaz de satisfazer as necessidades vitais e, por
isso mesmo, impelia-os para a aventura americana. Tudo isto surge como resultado
das mutações da conjuntura interna e internacional.
A centúria oitocentista foi um momento de particular significado para a História
das ilhas Atlânticas. Várias foram as alterações a que as mesmas serviram de palco. A
mais relevante foi a desarticulação entre o movimento demográfico e a situação
depressionária da economia.
A partir do século dezanove as fomes sucederam-se com alguma frequência em
Cabo Verde e o mesmo se poderá dizer para a Madeira e os Açores. Entretanto do
outro lado do Atlântico estávamos perante um momento de euforia económica, com
a mineração ou safra agro-industrial, que não se compadecia com as medidas de
abolição da escravatura. Perante isto o ilhéu, desapossado da terra pelo regime
sucessório e de mando económico, abandona o seu próprio meio e sai rumo a tais
destinos, aliciado pelas propostas dos engajadores, a substituir o escravo. Daí
resultou que muitos comentadores políticos consideravam esta emigração como uma
forma de "escravatura branca".
Em síntese a emigração oitocentista materializou a simbiose do sonho e ambição
individual com os impulsos e exigências da conjuntura emergente da política
abolicionista. Neste surto emigratório demarca-se no caso da Madeira uma incidência
nas ilhas (Antilhas e Hawaii), enquanto os açorianos e cabo-verdianos preferem os
espaços continentais (Brasil e E.U.A.). No último caso as rotas da baldeação ligavam-
se com os dois arquipélagos, facilitando o movimento. Aí os insulares foram como a
mão-de-obra necessária à substitutiva dos escravos nos canaviais, mineração e
pecuária.
O caso das ilhas de são Tomé e Príncipe apresenta-se diferente pois aqui a ingente
falta de mão-de-obra para a safra do cacau e do café incentivaram o movimento
imigratório. Primeiro de escravos e depois com a abolição da escravatura (1854) de
trabalhadores ou serviçais. A forma de recrutamento de mão-de-obra foi
acerrimamente criticada pelos ingleses. No período de 1876 a 1920 entraram nas ilhas
mais de cento e quarenta mil trabalhadores para o trabalho das roças, provenientes
de Moçambique, Angola e Cabo Verde.
No arquipélago açoriano a emigração iniciou a sua marcha já na segunda metade
do século XVIII orientada pela coroa para o povoamento da parte sul do Brasil.
Todavia é no século seguinte que o fenómeno se afirma em pleno, continuando a ser
o seu destino preferencial o Brasil, logo seguido das ilhas Sandwich, a que se veio
juntar nas duas últimas décadas os Estados Unidos da América, como resultado da
presença açoriana na pesca da baleia.
A emigração madeirense atingiu o auge na década de quarenta do século
dezanove, para isso em muito contribuíram a perseguição aos protestantes (1844-46)
e a crise do comércio do seu vinho, principal sustento das sua gentes, a partir de 1830
e a fome que alastrou a toda a ilha em 1847. No período de 1834 a 1872 saíram mais
de trinta mil madeirenses com destino ao Brasil e Antilhas. Apenas a ilha de
Demerara recebeu entre 1841 e 1889 cerca de quarenta mil, enquanto o Hawaii, entre
1878 e 1913, atraiu mais de vinte mil.
Nas ilhas da Guiné a conjuntura foi idêntica, evidenciando-se em Cabo Verde
motivada pelas fomes, que foram uma constante da História das ilhas nos séculos
dezoito e dezanove. Todavia o período de maior incidência teve lugar no período de
1863-64. A América, o Brasil e o continente português foram os principais destinos,
aproveitando-se as rotas de comércio que então persistiam.
SEGUNDA PARTE O MUNDO ATLÅNTICO

I.A POLÍTICA ATLÅNTICA

O século quinze marca o início da afirmação do Atlântico, novo espaço oceânico


revelado pelas gentes peninsulares. O mar, que até meados do século catorze se
mantivera alheio à vida do mundo europeu, atraiu as suas atenções e em pouco
tempo veio substituir o mercado e via mediterrânicos. A abertura, como vimos, foi
titubeante, mas geradora, no início, de inúmeros conflitos: primeiro foi a disputa pela
posse das Canárias, que se alargou, depois, ao próprio domínio do mar oceânico.
Portugueses e castelhanos entraram em aceso confronto, servindo o papado de
árbitro nesta partilha. Os franceses, ingleses e holandeses que, num primeiro
momento, foram apenas espectadores atentos, entraram também na disputa a
reivindicar um mare liberum e o usufruto das novas rotas e mercados. Nestas
circunstâncias o Atlântico não foi apenas o mercado e via comercial, por excelência,
da Europa, mas também um dos principais palcos em que se desenrolaram os
conflitos que definem as opções políticas das coroas europeias, expressas por meio da
guerra de corso.
É esta contenda político-económica, que o oceano gerou, o tema que prenderá
agora a nossa atenção. Aqui faremos um breve sumário das questões, pondo em
evidência as que nos parecem imprescindíveis para a compreensão do protagonismo
dos espaços insulares. Na realidade, como teremos oportunidade de ver, as ilhas
foram os principais pilares da estratégia de domínio do oceano, e por isso mesmo
todas as iniciativas neste âmbito repercutiram-se de modo evidente nelas.

A LUTA PELA POSSE DO OCEANO

Quando os portugueses se lançaram, no século XV, à exploração do oceano


encontraram, à partida, um primeiro obstáculo. As Canárias, que tão necessárias se
apresentavam para o controlo exclusivo do oceano, estavam já a ser conquistadas por
Jean Betencourt, um estranho navegador, financiado pelos mercadores de Sevilha.
Esta foi a primeira dificuldade, que causou inúmeros problemas à plena afirmação do
mare clausum lusitano. Em face disso, só havia uma possibilidade: tomar posse de
uma das ilhas por conquistar (La Gomera, por exemplo) e avançar com o
povoamento da Madeira, que poderia funcionar como área suplementar no apoio ao
avanço das viagens para o Sul.
A esta seguiram-se outras dificuldades de igual importância que entravaram o
progresso das viagens para Sul. A procura de uma rota de regresso da costa africana
além do Bojador preocupou os marinheiros e entravou a progresso das viagens para
Sul. A volta pelo largo com a passagem pelos Açores foi a solução mais indicada, mas
tardou em ser descoberta. Em 1434, ultrapassado o Bojador, o principal problema não
estava no avanço das viagens, mas sim na forma de assegurar a exclusividade a partir
daí, já que na área aquém deste limite isso não fora conseguido. Primeiro foi a
concessão em 1443 ao infante D. Henrique do controlo exclusivo das navegações e o
direito de fazer guerra a sul do mesmo cabo. Depois a procura do beneplácito papal,
na qualidade de autoridade suprema estabelecida pela "res publica christiana" para
tais situações. As bulas de Eugénio IV (1445), Nicolau V (1450 e 1452) preludiaram o
que veio a ser definido pela célebre bula "Romanus Pontifex" de 8 de Janeiro de 1454
e "inter coetera" de 13 de Março de 1456. Nela se legitimava a posse exclusiva aos
portugueses dos mares além do Bojador pelo que a sua ultrapassagem para nacionais
e estrangeiros só seria possível com a anuência do infante D.Henrique.
A presença de estrangeiros, a partir deste momento, foi considerada um serviço
ao referido infante, como sucedeu com Cadamosto, António da Noli, Usodimare,
Valarte e Martim Behaim, ou uma forma de usurpar o domínio e afronta ao papado.
Na última situação surgem os castelhanos a partir da década de setenta, procurando
intervir nas costas da Guiné como forma de represália às pretensões portuguesas pela
posse das Canárias. Não obstante as medidas repressivas definidas em 1474 contra os
intrusos no comércio da Guiné a presença castelhana continuará a ser um problema
de difícil solução, apenas alcançado com cedências mútuas através do tratado
exarado em 1479 em Alcáçovas e depois confirmado a 6 de Março do ano seguinte em
Toledo. A cedência portuguesa estabeleceu a primeira partilha política do oceano,
sancionada pelo papa Sixto IV por bula "Aeterni patris" de 21 de Junho de 1481.
A partir de então ficava legitimada a posse exclusiva para Portugal do mar além
do Bojador. A esta partilha do oceano, de acordo com os paralelos, sucedeu mais
tarde outra no sentido dos meridianos, provocada pela viagem de Colombo. O
encontro do navegador em Lisboa com D.Joäo II, no regresso da primeira viagem,
despoletou, de imediato, o litígio diplomático, uma vez que o monarca português
entendia estarem as terras descobertas na sua área de domínio. Mas, apressadamente,
os reis católicos tiraram partido da presença de um castelhano à frente do papado --
Alexandre VI -- e procuraram legitimar a posse das terras descobertas como
pertencendo à sua fatia do Atlântico, por bula de 4 de Maio de 1493, alterada, depois,
por outra de 26 de Setembro.
O conflito só encontrou solução com novo tratado, assinado em 7 de Julho de 1494
em Tordesilhas e ratificado pelo papa Júlio II em 24 de Janeiro de 1505. A partir de
então ficou estabelecida uma nova linha divisória do oceano, a trezentos e setenta
léguas de Cabo Verde.
Para os demais povos europeus, habituados desde muito cedo às lides do mar, só
lhes restava uma reduzida franja do Atlântico, a norte, e o Mediterrâneo. Mas tudo
isto seria verdade se fosse atribuída força de lei internacional às bulas papais, o que
na realidade não sucedia. O cisma do Ocidente, por um lado, e a desvinculação de
algumas comunidades da alçada papal, por outro, retiraram aos actos jurídicos a
medieval plenitude "potestatis". Deste modo em oposição a tal doutrina definidora do
mare clausum antepõe-se a do mare liberum, que teve em Grócio o principal teorizador.
A última visão da realidade oceânica norteou a intervenção de franceses, holandeses
e ingleses neste espaço 83 .
A guerra de corso teve uma incidência preferencial nos mares circunvizinhos do
Estreito de Gibraltar e ilhas, e levou ao domínio de múltiplos espaços de ambas as
margens do Atlântico. Em especial, podemos definir dois espaços de permanente
intervenção destes: os Açores e a Costa da Guiné e da Malagueta.
Os ingleses iniciaram em 1497 as sucessivas incursões no oceano, ficando célebres
as viagens de W.Hawkins (1530), John Hawkins (1562-1568) e Francis Drake (1578,
1581-1588). Entretanto os franceses fixaram-se na América, primeiro no Brasil (1530,
1555-1558), depois em San Lorenzo (1541) e Florida (1562-1565). Os huguenotes de La
Rochelle afirmaram-se como o terror dos mares, tendo assaltado em 1566 a cidade do
Funchal.
A última forma de combate ao exclusivismo do atlântico peninsular foi a que
ganhou maior adesão dos estados europeus no século XVI. A partir de princípios da
centúria o principal perigo para as caravelas não resultou das condições geo-
climáticas, mas sim da presença de intrusos, sempre disponíveis para assalta-las.
Deste modo a navegação foi dificultada e as rotas comerciais tiveram de ser
adequadas a uma nova realidade: surgiu a necessidade de artilha-las e uma armada
para as comboiar até porto seguro. As insistentes reclamações, nomeadamente dos
vizinhos de Santiago levaram a coroa a estabelecer um conjunto de armadas para
protecção e defesa das áreas e rotas de comércio: costa ocidental do reino, litoral
algarvio, dos Açores, da costa e golfo da Guiné, do Brasil 84 . Eis algumas das
preocupações dos peninsulares nos séculos XVI e XVII.
Cedo os franceses começaram a infestar os mares circunvizinhos da Madeira
(1550, 1566), Açores (1543, 1552-53, 1572) e Cabo Verde, e depois seguiram-lhe o
encalço os ingleses e holandeses. Os primeiros fizeram incidir preferencialmente a
sua acção nos arquipélagos da Madeira e Açores, patente na primeira metade do
século XVI, pois em Cabo Verde apenas se conhecem alguns assaltos em 1537-1538 e
1542. Os navegantes do norte escolhiam os mares ocidentais ou a área do Golfo e
costa da Guiné, tendo os mares circunvizinhos das ilhas de Santiago e S.Tomé como o
principal centro de operações. A partir da união peninsular sucederam-se inúmeros
assaltos franceses à Madeira, no que tiveram a pronta resposta de Tristão Vaz da
Veiga.
Nos arquipélagos de Cabo Verde e S.Tomé, ao perigo inicial dos castelhanos e
franceses, vieram juntar-se os ingleses e, fundamentalmente, os holandeses. Na
década de sessenta o corso inglês era aí exercido por John Hawkins e John Lovell. É
de salientar que os ingleses não macularam a Madeira, pois aí tinham uma
importante comunidade residente e empenhada no seu comércio. a sua acção incidiu,
preferencialmente, nos Açores (1538, 1561, 1565, 1572) e Cabo Verde.

83Confronte-se Frei Serafim de Freitas, Do Justo Império Asiático dos Portugueses,vol.I, Lisboa, 1960.
84Confronte-se -vitorino Magalhães Godinho, "As incidências da pirataria e da concorrência na economia marítima portuguesa no
século XVI", in Ensaios II, Lisboa, 1978, pp. 186-200.
A presença de corsários nos mares insulares deve ser articulada, por um lado, de
acordo com a importância que estas ilhas assumiram na navegação atlântica e, por
outro, pelas riquezas que as mesmas geraram, despertadoras da cobiça destes
estranhos. Mas se estas condições definem a incidência dos assaltos, os conflitos
políticos entre as coroas europeias justificam-nos à luz do direito da época. Deste
modo na segunda metade do século XVI o afrontamento entre as coroas peninsulares
definiu a presença dos castelhanos na Madeira ou em Cabo Verde, enquanto os
conflitos entre as famílias régias europeias atribuíam a legitimidade necessária a estas
iniciativas, fazendo-as passar de mero roubo a acção de represália: primeiro foi,
desde 1517, o conflito entre Carlos V de Espanha e Francisco I de França, depois os
problemas decorrentes da união ibérica a partir de 1580. Esta última situação é um
dado mais no afrontamento entre as coroas castelhano e inglesa despoletado a partir
de 1557.
O período que decorre nas duas décadas finais do século XVI é marcado por
inúmeros esforços da diplomacia europeia no sentido de conseguir a solução para as
presas do corso. Para isso Portugal e França haviam acordado em 1548 a criação de
dois tribunais de arbitragem, cuja função era anular as autorizações de represália e
cartas de corso. Mas a sua existência não teve reflexos evidentes na acção dos
corsários. Note-se que é precisamente em 1566 que temos notícia do mais importante
assalto francês a um espaço português. Em Outubro de 1566 Bertrand de Montluc ao
comando de uma armada composta de três embarcações perpetrava um dos mais
terríveis assaltos à vila Baleira e à cidade do Funchal. Acontecimento parecido só o
dos argelinos em 1616 no Porto Santo e Santa Maria, ou dos holandeses em S. Tomé.
A mui nobre e rica cidade do Funchal durante quinze dias ficou a mando destes
corsários, que roubaram os produtos agrícolas (vinho e açúcar), profanaram as igrejas
(a Sé do Funchal) e aprisionaram muitos escravos. Parte desta presa foi leiloada no
momento da partida com os residentes, ou então vendida na ilha de La Palma, onde
fizeram escala. Deste assalto ficaram alguns relatos e testemunhos presenciais, mas o
mais pungente e pormenorizado foi o de Gaspar Frutuoso, que no livro das
"Saudades da Terra" dedicado à Madeira descreve de modo sucinto os
acontecimentos e condena o descuido das suas gentes. Tal como refere a cidade
estava " mui rica de muitos açúcares e vinhos, e os moradores prósperos, com muitas
alfaias e ricos enxovais, muito pacífica e abastada, sem temor nem receio do mal que
não cuidavam" 85 .
Uma das principais consequências deste assalto foi o maior empenho da coroa e
autoridades locais nos problemas da defesa da ilha e, principalmente, da sua cidade,
que por estar cada vez mais rica e engalanada despertava a cobiça dos corsários. O
desleixo na arte de fortificar e organizar as hostes custou caro aos madeirenses e, por
isso, foi geral o desejo de defender a ilha. Reactivaram-se os planos e recomendações
anteriores no sentido de definir uma eficaz defesa da cidade a qualquer ameaça. O
regimento das ordenanças do reino (1549) teve aplicação na ilha a partir de 1559,

85 . Ob. cit., livro segundo, 328.


enquanto a fortificação teve regimentos (1567 e 1572) e um novo mestre-de-obras,
Mateus Fernandes.
O corso a partir da década de oitenta tomou outro rumo, sendo as diversas
iniciativas uma forma de represália à união das duas coroas peninsulares. Ele ficou
expresso na intervenção de diversas armadas: Francis Drake (1581-85), Conde de
Cumberland (1589), John Hawkins, Martin Forbisher, Thomas Howard, Richard
Greenville e o Conde Essex (1597). Elas não se limitavam apenas ao assalto às
Embarcações peninsulares que regressavam à Europa carregadas de ouro, prata,
açúcar e especiarias, pois a sua acção foi também extensiva à terra firme onde
intervinham à procura de um abastecimento de víveres e água ou do volumoso
saque, como sucedeu em 1585 em Santiago e em 1587 na ilha das Flores.
A presença dos holandeses nesta disputa rege-se por condições específicas. Eles
porque detinham importantes interesses na cultura açucareira americana,
procuravam assegurar o domínio de S.Tomé, Santiago e demais feitorias do comércio
de escravos. A isso juntava-se o empenho na manutenção das rotas do tráfico e o
objectivo de destruir os interesses açucareiros da área. Em 1598 foi o ataque a
Santiago e no ano imediato a S.Tomé. Na última destruíram todos os engenhos em
actividade.
Mais tarde, com a ocupação da Baía e Pernambuco, os holandeses voltaram-se de
novo para a Guiné com o objectivo de dominarem as rotas do comércio dos escravos.
Daqui resultou a passagem em 1624 e 1625 de duas armadas para a Baía, com o
objectivo de aí tomar posição, retornando depois em 1628 para conquistar Santiago e
em 1641 para ocupar S.Tomé e Angola. Nas duas últimas áreas mantiveram-se até
1648, momento em que foram expulsos pelos portugueses.
Perante a incessante investida de corsários no mar e em terra firme houve
necessidade de definir uma estratégia de defesa adequada. No mar optou-se pelo
necessário artilhamento das embarcações comerciais e pela criação de uma armada
de defesa das naus em trânsito. Esta ficou conhecida como a armada das ilhas, fixa
nos Açores e que daí procedia ao comboiamento das naus até porto seguro. Em terra
foi o delinear de um incipiente linha de defesa dos principais portos, ancoradouros e
baías, capaz de travar o possível desembarque destes intrusos.

O SISTEMA DE FORTIFICAÇÄO DAS ILHAS

O sistema de defesa costeiro surge neste contexto com a dupla finalidade:


desmobilizar ou barrar o caminho ao invasor e de refúgio para populações e haveres.
Por isso a norma foi a construção de fortalezas após uma ameaça e nunca de uma
acção preventiva, pelo que após qualquer assalto de grandes proporções sucedia,
quase sempre, uma campanha para fortificar os portos e localidades e organizar as
milícias e ordenanças.
É disso exemplo o assalto dos huguenotes à cidade do Funchal em 1566, que
provocou de imediato uma reacção em cadeia das autoridades locais e da coroa na
defesa do burgo. Na verdade foi só a partir deste assalto que se pensou em organizar
de forma adequada o sistema defensivo da ilha. Primeiro foi a reorganização das
milícias (1549), vigias (1567) e ordenanças (1570), depois o plano para fortificar da
cidade do Funchal (1572) a cargo de Mateus Fernandes. Isto repetiu-se nas demais
ilhas, sem nunca se ter conseguido definir uma estrutura defensiva eficaz. As ilhas
tiveram sempre as portas abertas ao exterior, sujeitando-se, por isso mesmo, à
presença destes intrusos.
A instabilidade provocada pela permanente ameaça dos corsários, a partir do
último quartel do século XV, condicionou o delineamento de um plano de defesa do
arquipélago, assente numa linha de fortificação costeira e de um serviço de vigias e
ordenanças. Até ao assalto de 1566 pouca ou nenhuma atenção foi dada a esta
questão ficando a ilha a as suas gentes entregues à sua sorte. Em termos de defesa
este assalto teve o mérito de empenhar a coroa e os locais na definição de um
adequado plano de defesa. Desde 1475, com o avolumar das ameaças do corso, que
os madeirenses solicitaram ao senhor da ilha que se empenhasse na defesa da sua
ilha com a construção de uma fortaleza na vila do Funchal. Mas só em 1493 86 D.
Manuel, Duque de Beja e senhor da ilha, estabeleceu um regimento para que se
fizesse uma "çerca e muros" na vila, a exemplo do que se havia feito em Setúbal. Os
madeirenses entenderam esta ordem como uma opressão o que levou ao adiamento
da obra e só em 1513 começou a traçar-se esse plano sob orientação de João Cáceres,
mestre-de-obras reais na ilha. A primeira fase foi concluída em 1542, constando de
um baluarte e uma cortina de muralha.
O assalto francês de 1566 veio a confirmar a ineficácia destas fortificações e a
reivindicar uma maior atenção por parte das autoridades. Assim realmente
aconteceu, pois pelo regimento de 1572 87 foi estabelecido um plano de defesa a ser
executado por Mateus Fernandes, fortificador e mestre-de-obras. Daqui resultou o
reforço do recinto abaluartado da fortaleza velha, a construção de outra junto ao
pelourinho e um lanço de muralha entre as duas. Esta situação é testemunhada, em
finais do século dezasseis por Gaspar Frutuoso:

Está a cidade amurada, da ribeira de Nossa Senhora do Calhau, junto da qual está uma
fortaleza nova, onde tem o capitão sua morada, donde defende o mais da cidade que fica fora do
muro, da banda de loeste até São Lázaro, e, pela ribeira de Nossa Senhora do Calhau, vai o
muro em compridão perto de meia légua pela terra dentro, a entestar com rochas mais ásperas,
fortes e defensáveis que ele mesmo, o qual fabricado com cubelos e seteiras, da banda da ribeira
tem tres portas, em que estão suas vigias e guardas, pelas quais se serve a cidade, que fica da
banda de loeste deste muro para dentro e para fora. e no muro da banda do muro tem uma
porta de serventia, junto de Nossa Senhora do Calhau, e outra, mais no meio da cidade, junto
dos açougues, e outra, que é a mais principal, aos Varadouros, defronte da rua dos
Mercadores.

86 Arquivo Histórico da Madeira, vol.XVI, 1973, doc.169, pp. 284-288 (21 de Junho).
87 Rui Carita, O regimento de fortificação de D.Sebastião(1572)..., Funchal, 1984.
Meio tiro de besta desta porta principal está a casa da Alfandega, mais próspera e de
melhores oficinas que a da cidade de Lisboa, bem amurada de cantaria e fechada pela terra e
pelo mar, que está junto dela e nela bate muitas vezes, quando há aí maresias.
Adiante logo da Alfândega um tiro de besta está a Fortaleza Velha, que é a principal,
situada sobre uma rocha, e tem pela banda do mar seis grandes e formosos canos de água, que
dela sai e nela nasce, na mesma rocha sobre que é fundada, e de nenhuma maneira se pode
tomar nem tolher, pela banda da terra, de nenhuns imigos; a qual fortaleza tem, pela parte do
mar, dois cubelos, como torres mui fortes, que guardam o mesmo mar e artilharia, de que estão
bem providos, e, pela banda da terra, outros dois, que guardam toda a cidade por cima, por
estarem mais altos que ela, em a qual parte tem também um muro muito alto e forte, com uma
fortíssima porta de alçapão;... 88 ".

O plano de defesa do Funchal completou-se no período da união das duas coroas


peninsulares com a construção da Fortaleza de Santiago (1614-1621) consequente
aumento do troço de muralha costeira, e do Castelo de S. Filipe do Pico (1582-1637).
O espaço insular não poderá considerar-se uma fortaleza inexpugnável, pois a
disseminação por ilhas, servidas de uma extensa orla costeira impossibilitou uma
iniciativa concertada de defesa. Qualquer das soluções que fosse encarada, para além
de ser muito onerosa, não satisfazia uma necessária política de defesa. Perante isto ela
era sempre protelada até que surgissem ameaças capazes de impelir à sua
concretização. Na Madeira foi o assalto de 1566. Nos Açores foi temor de idêntico
assalto que levou à sua definição nas ilhas Terceira e Faial.
O plano de defesa das ilhas açorianas começou a ser esboçado em meados do
século dezasseis por Bartolomeu Ferraz, como forma de resposta ao recrudescimento
do corso, mas só teve plena concretização no último quartel da centúria. Bartolomeu
Ferraz apresentou à coroa o seu rastreio: as ilhas de S.Miguel, Terceira, S. Jorge, Faial
e Pico estavam expostas a qualquer eventualidade de corsários ou hereges; os portos
e vilas clamavam por mais adequadas condições de segurança. Segundo ele os
açorianos precisavam de estar preparados para isso, pois "ome percebido meo
combatido" 89 . Daí terá resultado a reorganização do sistema de defesa levado a cabo
por D.Joäo III e D.Sebastiäo. Foram eles que reformularam o sistema de vigilância e
defesa através de novos regimentos. A construção do castelo de S. Brás em Ponta
Delgada e, passados vinte anos, do castelo de S. Sebastião no Porto de Pipas (em
Angra) e de um Baluarte na Horta, eis os resultados mais evidentes desta política.
Mais tarde, com a ocupação castelhana do arquipélago açoriano, foi muito sentida
a necessidade de uma imponente fortaleza em Angra, capaz de guardar as riquezas
em circulação e pô-las fora do alcance da cobiça de qualquer corsário e de suster os
ânimos exaltados dos angrenses. O início da construção do mais imponente reduto
do espaço atlântico teve lugar em 1592, a partir de um plano traçado por João de
Vilhena, e só ficou concluído em 1643.

88 . Saudades da Terra, livro segundo, 109-110.


89 . Arquivo dos Açores, Vol. V, 364-367 (1543); confronte-se Ibidem, vol. IV, 121-124 (sem data).
A exemplo do castelo de S. Filipe de Angra, os castelhanos também construíram
uma fortaleza com o mesmo nome no Funchal, para além de terem concluído a linha
defensiva da praia funchalense com o forte de Santiago (1614). Neste campo foi
incansável a iniciativa de Tristão Vaz da Veiga 90 , provido em 1585 no cargo de "geral
e superintendente das coisas da guerra", lugar idêntico ao assumido na Terceira por
Juan Urbina, nomeado em 1583 governador das ilhas e mestre de campo do terço
castelhano 91 .
Pior foi o estado em que permaneceram as ilhas da costa e golfo da Guiné pois as
insistentes acções de piratas e corsários não foram suficientes para demover os
insulares e autoridades a avançar com um adequado sistema defensivo. São poucas
as referências à defesa destas ilhas mas o suficiente para atestar a sua precariedade.
Ele resumia-se a pequenos baluartes, muitas vezes sem qualquer utilidade.
Em S. Tomé começou a erguer-se a primeira fortaleza na Povoação com o capitão
Álvaro Caminha, que lhe chamava apenas torre, concluída com o seu sucessor Fernão
de Melo. No tempo de D. Sebastião, as constantes investidas de corsários franceses -
ficou célebre o de 1567- levaram à construção da fortaleza de São Sebastião, concluída
em 1576 e reformulada em 1596. Todavia tornou-se ineficaz no assalto holandês de
1599 pelo que se ergueu outra de apoio em Nossa Senhora da Graça.
Em Cabo Verde o empenho na defesa das povoações e portos costeiros tardou
uma vez que o principal alvo dos corsários, nomeadamente franceses, estava no mar.
Mais do que construir fortalezas havia necessidade de limpar os mares e as rotas da
presença destes intrusos. Para isso, e correspondendo aos pedidos incessantes dos
moradores, a coroa criou uma armada para guarda e defesa do mar e costa. Além
disso a petição dos moradores da Ribeira Grande em 1542 apontava a necessidade de
apetrechar o porto da cidade com um sistema de defesa adequado. Os assaltos de
Francis Drake a Santiago (1578 e 1585) levaram à construção de uma fortaleza na
Ribeira Grande apoiada por um lanço de muralha, no período filipino.
Esta preocupação defensiva demonstra que o oceano deixou de ser o mare clausum
luso-castelhano passando a mare liberum de todos os europeus, com especial
evidência para os holandeses, ingleses e franceses, que se afirmaram como os
principais agentes do novo empório oceânico. No caso inglês a posição hegemónica
foi conquistada, em parte, à custa dos tratados de amizade, celebrados com Portugal
(1654, 1661).
No século dezassete os mecanismos comerciais estavam em mudança, afirmando-
se, cada vez mais, uma tendência para o proteccionismo económico, definida pelas
companhias comerciais e de legislação restritiva: os holandeses criaram em 1629 a
companhia das Índias Ocidentais, os portugueses em 1649 a Companhia Geral do
Comércio para o Brasil e os ingleses em 1660 a Royal Adventuress in to Africa e,
depois, em 1672, a Royal Campany of England. A política monopolista e
proteccionismo dos ingleses iniciou-se em 1651 com o Acto de Navegação e teve

90 . Saudades da Terra, livro segundo, 199-211.


91 . Avelino de Freitas menezes, Os Açores e o domínio filipino (1580-1590), Angra do heróismo, 1987, 171,210.
continuidade nos actos posteriores de 1661 a 1696. Em França a política do cardeal
Richelieu (1624-1642) havia dado o mote para a nova realidade político comercial.
O mar que séculos atrás fora apenas um privilégio dos peninsulares era agora
património dos diversos empórios marítimos europeus. A anterior divisão política
deixou de ser uma realidade e deu lugar à era dos imperativos económicos.

O ATLÂNTICO E AS ILHAS NOS SÉCULOS XVIII E XIX

As mudanças no domínio político e económicas operadas ao longo dos séculos


dezoito e dezanove não retiraram às ilhas a função primordial de escala e espaço de
disputa do mar oceano. A frequência de embarcações manteve-se enquanto o corso
ficou marcado por uma forte escalada, entre finais da primeira centúria e princípios
da seguinte. Aos tradicionais corsários de França, Inglaterra, Holanda vieram juntar-
se os americanos do norte e sul.
Nestas circunstâncias as ilhas foram de novo confrontadas com uma conjuntura de
instabilidade, idêntica à de um século antes. Ela foi má para o comércio e segurança
das populações insulares. Entre 1763 a 1831 as ilhas da Madeira e Açores foram
confrontadas com as ameaças e intervenção do corso europeu (franceses, ingleses e
espanhóis) e americano, salientando-se nos últimos a represália dos insurgentes
argentinos. Ambos os arquipélagos evidenciaram-se como a encruzilhada de
intercepção do fogo resultante da guerra de represália americana e europeia. Por isso
os interesses económicos insulares foram molestados, nos períodos de maior
incidência.
O corso europeu incidia preferencialmente sobre as embarcações espanholas e
francesas e motivava uma resposta violenta das partes molestadas, como sucederá
com a investida francesa contra os ingleses em 1793, 1797, 1814. Mas os últimos foram
de todos aqueles que actuaram com maior segurança, pois haviam montado um
plano de domínio do Atlântico, servindo-se do Funchal como principal porto de
apoio para as suas incursões.
O mar açoriano era o alvo preferencial dos corsários americanos pelo que a
maioria dos seus assaltos têm aí lugar. As principais vítimas do corso americano
foram os portugueses e espanhóis. A presença dos corsários americanos surge como
consequência da Guerra da Independência dos Estados Unidos da América do Norte
(1770-1790) a que se aliaram, a partir de 1816, os insurgentes das colónias castelhanas.
Enquanto na Madeira a actividade do insurgente é mais evidente na década de
oitenta do século XVIII, nos Açores demarca-se no período de 1814 a 1816, ficando
célebre a batalha naval da Horta em 1814.
Os insurgentes actuaram a partir de 1816, sendo as suas investidas " consequência
da parte que Portugal tinha tomado na guerra actualmente existente trazia ordens de
cativar todos os meios que encontrasse pertencentes aquela nação e igualmente
espanhóis" 92 . O facto de a tripulação ser composta por ingleses e espanhóis levou as
autoridades portuguesas a considerá-los como piratas e nunca como corsários. Os

92 . Arquivo Histórico Ultramarino, Açores, maço 69.


mares dos Açores mantiveram-se como principal palco de acção. Para obstar à sua
investida, estabeleceu-se a patrulha dos mares açorianos com duas embarcações 93 .
Em Cabo Verde passava-se algo diferente, sendo a presença corsária derivada da
represália francesa, de que são notórias as duas invasões da cidade da Praia (1712 e
1781) e uma de Santo Antão (1712) e Brava (1798).
A permanente ameaça de corsários redobrou o empenho nas obras de defesa, que
resultaram várias campanhas, entre finais do século dezoito e princípios do seguinte.
A incidência foi maior nas ilhas da Madeira, S. Miguel e Terceira, as mais fustigadas
pela presença e acção dos corsários.
Concluídas as obras de restauro das fortificações, apaziguado o ímpeto dos
corsários, viveu-se, a partir da década de trinta, um período de relativa acalmia,
seguido nas décadas de cinquenta e sessenta com novas campanhas de rectificação
dos recintos fortificados, conforme os princípios orientadores da Engenharia Militar.
Isto não tem paralelo nas ilhas de Cabo Verde, onde as dificuldades económicas com
que as populações se deparavam inviabilizavaram tais medidas, não obstante o
interesse demonstrado por alguns governadores.
Desde o último quartel do século XVIII, a Engenharia Militar havia adquirido um
novo fôlego, procurando adequar os recintos fortificados aos avanços da poliorcética
e pirobalística. Nos diversos estudos e levantamentos realizados reconheceu-se a
urgência da sua rectificação. Em 1798 94 enunciava-se que as fortificações açorianas
eram alheias aos mais elementares princípios da arte de fortificar, ao mesmo tempo
que se tomaram medidas rigorosas quanto ao restauro ou reconversão, punindo os
que actuavam de modo contrário ao estabelecido. Com o alvorecer do século XIX, as
intervenções da Engenharia Militar iam no sentido de as adequar aos princípios da
teoria de fortificação e conjuntura insular. Em 1815 95 , numa memória sobre o porto
de Angra, dizia-se que um plano de defesa deveria ter em conta os seguintes
aspectos: conhecimento do terreno, qualidade e disposição do recinto fortificado,
forças, artilharia e munições disponíveis. E, trinta e nove anos depois 96 , afirmava-se,
de modo peremptório, que "não basta ter grandes baterias e muitas obras de
fortificação, é preciso que tudo isto seja disposto e construído segundo as regras
fundamentais da ciência e da arte em harmonia com os meios de agressão", daí a
necessidade da referida visita e de um plano adequado de defesa.
A partir daqui surgiram as campanhas de reparo e rectificação das fortificações da
área costeira. No século XIX o estado daquelas disponíveis para os três arquipélagos
era de tal modo lastimável que muitos tiveram que ser abandonados, pelo estado de
ruína em que se encontravam ou pela inadequação aos fins que estavam
vocacionadas. Exemplo disso é a ilha de S. Jorge onde apenas dois baluartes estavam
em estado conveniente 97 . Todavia é necessário dizer que as campanhas da
engenharia militar neste período quase que se resumiu a verificar o facto, sendo

93. idem, - ibidem, maço 79.


94. Idem, Ibidem, maço 19.
95. Idem, Ibidem, maço 65.
96. Arquivo Histórico Militar, 3/9/105 E-25.
97. Ibidem, 3/9/104 D 1-B.
poucas ou nulas as medidas de valorização do parque defensivo costeiro. Na verdade
a linha de defesa disponível assumia pouco utilidade numa época em que toda a
acção dos corsários se desenrolava no mar.

A NOVA GEOGRAFIA ECONÓMICA

Tal como tivemos oportunidade de afirmar, a definição dos espaços políticos fez-
se, primeiro de acordo com os paralelos e, depois, com o avanço dos descobrimentos
para Ocidente, no sentido dos meridianos. A expressão real resultava apenas da
conjuntura favorável e do acatamento pelos demais estados europeus. Mas o oceano
e terras circundantes podiam ainda ser subdivididos em novos espaços de acordo
com o seu protagonismo económico. Dum lado as ilhas orientais e ocidentais, do
outro o litoral dos continentes americano e africano.
A partilha não resultou dum pacto negocial, mas sim da confluência das reais
potencialidades económicas de cada uma das áreas em causa. Neste contexto
assumiram particular importância as condições internas e externas de cada área. As
primeiras foram resultado dos aspectos geo-climáticos, enquanto as últimas derivam
dos vectores definidos pela economia europeia. A partir da maior ou menor
intervenção de ambas as situações estaremos perante espaços agrícolas, vocacionados
para a produção de excedentes capazes de assegurar a subsistência dos que haviam
saído e dos que ficaram na Europa, de produtos adequados a um activo sistema de
trocas inter-continentais, que mantinha uma forte vinculação do velho ao novo
mundo. O açúcar e o pastel foram os principais produtos definidores da última
conjuntura.
De acordo com isso podemos definir múltiplos e variados espaços agro-mercantis:
áreas agrícolas orientadas para as trocas com o exterior e assegurar a subsistência dos
residentes; áreas de intensa actividade comercial, vocacionadas para a prestação de
serviços de apoio, como escalas ou mercados de troca. No primeiro caso incluem-se
as ilhas orientais e ocidentais e a franja costeira da América do sul, conhecida como
Brasil. No segundo merece referência as ilhas que, mercê da posição ribeirinha da
costa (Santiago e S.Tomé), ou do posicionamento estratégico no traçado das rotas
oceânicas (como sucede com as Canárias, Santa Helena e Açores), fizeram depender o
processo económico disso.
A estratégia de domínio e valorização económica do Atlântico passava
necessariamente pelos pequenos espaços que polvilham o oceano. Foi nos
arquipélagos (Canárias e Madeira) que se iniciou a expansão atlântica e foi neles que
a Europa assentou toda a estratégia de desenvolvimento económico em curso nos
séculos XV e XVI.
Ninguém melhor que os portugueses entendeu esta realidade que, por isso
mesmo, definiram para o empório lusíada um carácter anfíbio. Ilhas desertas ou
ocupadas, bem ou mal posicionadas para a navegação, foram os verdadeiros pilares
do empório português no Atlântico. Talvez, por isso mesmo, Frédéric Mauro tenha
sido levado a afirmar tão peremptoriamente: " iles sans doute, mais iles aussi importants
que des continents" 98 . Opiniões idênticas já haviam manifestado Fernand Braudel, e
Pierre Chaunu, sendo secundados por Charles Verlinden e Vitorino Magalhães
Godinho.
Foi precisamente F.Braudel quem pela primeira vez se apercebeu desta realidade,
atribuindo aos arquipélagos da Madeira, Açores e Canárias o nome de Mediterrâneo
Atlântico, isto é a finisterra da economia mediterrânica e o princípio da nova economia
atlântica. Entretanto Pierre Chaunu anotou esta realidade e confrontou-a com aquilo
a que chamou "Mediterrâneo Americano" (Antilhas). Desde então ficaram estabelecidas
duas áreas para o rosário de ilhas atlânticas. Em face disto a abordagem e
conhecimento das sociedades insulares é um dos domínios da pesquisa histórica
muito solicitado nas últimas décadas, como o demonstra a vasta produção
bibliográfica.
Os autores supracitados exerceram um papel decisivo na afirmação
historiográfica deste espaço ao permitirem a inserção no âmbito mais vasto da
vivência atlântica, valorizando o inter-relacionamento com o litoral africano,
americano e europeu.

II.AS ESCALAS DO OCEANO: AS ILHAS

O Atlântico surge, a partir do século XV, como o principal espaço de circulação dos
veleiros, pelo que se definiu um intrincado liame de rotas de navegação e comércio
que ligavam o velho continente às costas africana e americana e as ilhas. Esta
multiplicidade de rotas resultou da complementaridade económica das áreas
insulares e continentais e surge como consequência das formas de aproveitamento
económico aí adoptadas. Mas a isso deverão juntar-se as condições geofísicas do
oceano, derivadas das correntes e ventos que delinearam o traçado das rotas e os
rumos das viagens.
Neste contexto a mais importante e duradoura de todas as rotas foi sem dúvida
aquela que ligava as Índias (ocidentais e orientais) ao velho continente. Ela
galvanizou o empenho dos monarcas, populações ribeirinhas e acima de tudo os
piratas e corsários, sendo expressa por múltiplas escalas apoiadas nas ilhas que
polvilhavam as costas ocidentais e orientais do mar: primeiro as Canárias e a
Madeira, depois Cabo Verde, Santa Helena e os Açores.
Nos três arquipélagos, definidos como Mediterrâneo Atlântico, a intervenção nas
grandes rotas faz-se a partir de algumas ilhas, sendo de referir a Madeira, Gran
Canária, La Palma, La Gomera, Tenerife, Lanzarote e Hierro, Santiago, Flores e
Corvo, Terceira e S. Miguel. Para cada arquipélago firmou-se uma ilha, servida por
um bom porto de mar como o principal eixo de actividade. No mundo insular
português, por exemplo, evidenciaram-se, de forma diversa, as ilhas da Madeira,
Santiago e Terceira como os principais eixos.

98 . Des produits et des hommes, Paris, 1972, 53.


As rotas portuguesas e castelhanas apresentavam um traçado diferente. Enquanto
as primeiras divergiam de Lisboa, as castelhanas partiam de Sevilha com destino às
Antilhas, tendo como pontos importantes do seu raio de acção os arquipélagos das
Canárias e Açores. Ambos os centros de apoio apresentavam-se sob soberania
distinta: o primeiro era castelhano desde o século XV, enquanto o segundo
português, o que não facilitou muito o imprescindível apoio. Mas por um lapso
tempo (1585-1642) o território entrou na esfera de domínio castelhano, sem que isso
tivesse significado maior segurança para as armadas. Mas neste período
intensificaram-se as operações de represália de franceses, ingleses e holandeses. As
expedições (tivemos em 1581 as de D.Pedro Valdés e D. Lope de Figueroa e depois as
do Marquês de Santa Cruz, em 1582 e 1583) organizadas pela coroa espanhola na
década de oitenta com destino à Terceira tinham uma dupla missão: defender e
comboiar as armadas das Índias até porto seguro, em Lisboa ou Sevilha, e ocupar a
ilha afim de aí instalar uma base de apoio e defesa das rotas oceânicas.
A escala açoriana justificava-se mais por necessidade de protecção das armadas do
que por necessidade de reabastecimento ou reparo das embarcações. Era à entrada
dos mares açorianos, junto da ilha das Flores, que se reuniam os navios das armadas
e se procedia ao comboiamento até porto seguro na península, furtando-os à cobiça
dos corsários, que infestavam os mares. A necessidade de garantir com eficácia tal
apoio e defesa das armadas levou a coroa portuguesa a criar, em data anterior a 1527,
a Provedoria das Armadas, com sede na cidade de Angra 99 .
Desde o início que a segurança das frotas foi uma das mais evidentes
preocupações para a navegação atlântica, pelo que ambas as coroas peninsulares
delinearam, em separado, o seu plano de defesa e apoio aos navios. Em Portugal
tivemos, primeiro, o regimento para as naus da Índia nos Açores, promulgado em
1520, em que foram estabelecidas normas para impedir que as mercadorias caíssem
nas mãos da cobiça do contrabando e corso.
Cedo foi reconhecida a insuficiência destas iniciativas, optando-se por uma
estrutura institucional, com sede em Angra, capaz de coordenar todas as tarefas. A
nomeação em 1527 de Pero Anes do Canto para provedor das armadas da Índia,
Brasil e Guiné, marca o início da viragem. Ao provedor competia a superintendência
de toda a defesa, abastecimento e apoio às embarcações em escala ou de passagem
pelos mares açorianos. Além disso estava sob as suas ordens a armada das ilhas,
criada expressamente para comboiar, desde as Flores até Lisboa, todas aquelas
provenientes do Brasil, Índia e Mina. No período de 1536 a 1556 há notícia do envio
de pelo menos doze armadas com esta missão.
Depois procurou-se garantir nos portos costeiros do arquipélago um ancoradouro
seguro, construindo-se as fortificações necessárias. Em 1543 Bartolomeu Ferraz traçou
um plano de defesa alargado a todo o arquipélago com tal objectivo. Os motivos
disso são claros: "porque as ilhas Terceiras importaräo muito assy pelo que per sy

99 . Cobfronte-se o nosso estudo sibre O Comércio inter-insular nos séculos XV e XVI, Funchal, 1987, 17-24.
valem como por serem o velhacoute e socorro muy principal das naos da Índia e os
franceses serem tão desarrozoados que justo vel injusto tomäo tudo que podem " 100 .
Era esta estrutura de apoio que faltava aos castelhanos nesta área considerada
crucial para a navegação atlântica que os levou, muitas vezes, a solicitarem o apoio
das autoridades açorianas. Mas a ineficácia ou a necessidade de uma guarda e defesa
mais actuante obrigou-os a reorganizar a carreira, criando o sistema de frotas. Desde
1521 as frotas passaram a usufruir de uma nova estrutura organizativa e defensiva.
No começo foi o sistema de frotas anuais artilhadas ou escoltadas por uma armada.
Depois a partir de 1555 o estabelecimento de duas frotas para o tráfico americano:
Nueva Espana e Tierra Firme.
O activo protagonismo do arquipélago açoriano e, em especial, da ilha Terceira é
referenciado com certa frequência por roteiristas e marinheiros que nos deram conta
das viagens ou os literatos açorianos que presenciaram a realidade. Todos falam da
importância do porto de Angra que, no dizer de Gaspar Frutuoso, era "a escala do
mar poente". Entretanto Pompeo Arditi havia já reafirmado em 1567 a importância da
terra terceirense para a navegação parecendo-lhe "que Deus põe milagrosamente a
ilha no meio de tão grande oceano para salvação dos míseros navegantes, que muitas
vezes lá chegam sem mastros nem velas, ou sem mantimentos e aí se fornecem de
tudo" 101 . O Pe Luís Maldonado valoriza a importância desta função do porto de
Angra na vida da população terceirense:

"Estava a ilha Terceira the este tempo a terra mais próspera em riquezas, e abundâncias
que encarecer se pode; porque como todos os annos fosse demandada de flotas das Índias de
Castella, e naos do Oriente, e outrosi de todos os navios que vinhão das conquistas do Brazil, e
Guiné, na qual se vinhão todos reforcejar, e nella achavão abundâncias de que dentro em vinte,
e coatro horas tomavão tudo o de que necessitavão, nadava verdadeiramente a ilha em rios de
prata e ouro. Apenas que chegava qualquer destas frotas, ou armadas quando imediatamente
concorrião à Ribeira do porto dAngra as gentes de toda a ilha, hus com as casas, outros com as
aves, outros com as frutas, outros com os gados, outros com panos de linho..." 102 .

A participação do arquipélago madeirense nas grandes rotas oceânicas foi


esporádica, justificando-se a ausência pelo seu posicionamento marginal no seu
traçado ideal. Mas a ilha não ficou alheia ao roteiro atlântico, evidenciando-se em
alguns momentos como uma escala importante para as viagens portuguesas com
destino ao Brasil, Golfo da Guiné e Índia. Inúmeras vezes a escala madeirense foi
justificada mais pela necessidade de abastecer as embarcações de vinho para
consumo a bordo do que pela falta de água ou víveres frescos. Não se esqueça que o
vinho era um elemento fundamental da dieta de bordo, sendo referenciado pelas suas
qualidades na luta contra o escorbuto. Acresce ainda que este vinho tinha a garantia
de não se deteriorar com o calor dos trópicos, antes pelo contrário ganhava

100. Arquivo dos Açores, vol. V, 364-367.


101. "Viagem...", in Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira, VI, Angra do Heroismo, 1968, 179.
102. Fenix Angrense, vol. I, Angra, 1989, 267.
propriedades gustativas. Motivo idêntico conduziu à assídua presença dos ingleses, a
partir de finais do século dezasseis.
A proximidade da Madeira em relação aos portos do litoral peninsular associada
às condições dos ventos e correntes marítimas foram os principais obstáculos à
valorização da ilha no contexto das navegações atlânticas. As Canárias, porque
melhor posicionadas e distribuídas por sete ilhas em latitudes diferentes, estavam em
condições de oferecer o adequado serviço de apoio. Todavia a situação conturbada
que aí se viveu, resultado da disputa pela sua posse pelas duas coroas peninsulares e
a demorada pacificação da população indígena, fizeram com que a Madeira surgisse
no século XV como um dos principais eixos do domínio e navegação portuguesa no
Atlântico.
Tal como nos refere Zurara a ilha foi desde 1445 o principal porto de escala para as
navegações ao longo da costa africana. Mas o maior conhecimento dos mares, os
avanços tecnológicos e náuticos retiraram ao Funchal esta posição charneira nas
navegações atlânticas, sendo substituído pelos portos das Canárias ou Cabo Verde.
Assim, a partir de princípios do século XVI, a Madeira surgirá apenas como um
ponto de referência para a navegação atlântica, uma escala ocasional para reparo e
aprovisionamento de vinho. Apenas o surto económico da ilha conseguirá atrair as
atenções das armadas, navegantes e aventureiros.
Deste modo poder-se-á concluir que as ilhas situadas às portas de entrada e saída
protagonizaram um papel importante nas rotas atlânticas. Mas para sulcar longas
distâncias rumo ao Brasil, à costa africana ou ao Indico, era necessário dispor de mais
portos de escala, pois a viagem era longa e difícil.
As áreas comerciais da costa da Guiné e, depois, com a ultrapassagem do cabo da
Boa Esperança, as indicas tornaram indispensável a existência de escalas intermédias.
Primeiro Arguim, que serviu de feitoria e escala para a zona da Costa da Guiné,
depois, com a revelação de Cabo Verde, foi a ilha de Santiago que se afirmou como a
principal escala da rota de ida para os portugueses e podia muito bem substituir as
Canárias ou a Madeira, o que realmente aconteceu.
Outras mais ilhas foram reveladas e tiveram um lugar proeminente no traçado das
rotas. É o caso de S. Tomé para a área de navegação do golfo da Guiné e de Santa
Helena para as caravelas da rota do Cabo. Também a forte projecçäo dos
arquipélagos de S. Tomé e Cabo Verde sobre os espaços vizinhas da costa africana
levou a coroa a criar duas feitorias (Santiago e S. Tomé) como objectivo de controlar,
a partir daí, todas as transacções comerciais da costa africana. Desta forma no
Atlântico sul as principais escalas das
Rotas do Índico assentavam nos portos das ilhas de Santiago, Santa Helena e
Ascensão. Aí as armadas reabasteciam-se de água, lenha, mantimentos ou procediam
a ligeiras reparações. A par disso releva-se, ainda, a de Santa Helena como escala de
reagrupamento das frotas vindas da Índia depois de ultrapassado o cabo: missão
idêntica à dos Açores no final da travessia oceânica. Para Santiago são referenciados
alguns testemunhos sobre a importância do porto da Ribeira Grande como escala do
oceano, sendo disso testemunho uma carta dos oficiais da câmara em 1512 103 :
"É grande escala para as naus e navios de Sua Alteza e assi para os navios de são Tomé e
ilha de Príncipe e para os navios que vão do Brasil e da Mina e todas partes de Guiné, que
quando aqui chegam perdidos e sem mantimento e gente aqui são remediados de todo o que lhe
faz mester".
As escalas de Afonso Albuquerque e Álvaro Barreto, no regresso da Índia, e no
sentido inverso, a do Padre António Vieira em 1652 de volta ao Brasil, que aí passou o
Natal, são disso prova.
Entretanto Gaspar Frutuoso havia referido isso, dizendo que por aí "vão as naus
de Espanha para as Índias de Castela e as de Portugal pera Angola, pera Guiné e pera
o Congo, como também à tornada, vêm deferir à ilha Terceira" 104 . Tenha-se em conta
que a rota das Índias de Castela havia sido traçada em 1498 por Cristóvão Colombo,
que fez escala em Santiago e Boavista com a finalidade de tomar gado vacuum para a
colónia de Hispaniola.Esta função da ilha de Santiago com escala do mar oceano foi
efémera. A partir da década de trinta do século XVI são menos assíduas as escalas. O
mar era já conhecido e as embarcações de maior calado permitiam viagens mais
prolongadas. Apenas os náufragos dos temporais aí aparecem à procura de refúgio.
O posicionamento das ilhas no traçado das rotas de comércio e navegação atlântica
fez com que as coroas peninsulares dirigissem para aí todo o empenho nas iniciativas
de apoio, defesa e controlo do trato comercial. As ilhas foram assim os bastiões
avançados, suportes e símbolos da hegemonia peninsular no Atlântico. A disputa
pelas riquezas em circulação tinha lugar em terra ou no mar circunvizinho, pois para
aí incidiam os piratas e corsários, ávidos de conseguir ainda que uma magra fatia do
tesouro. Deste modo uma das maiores preocupações das autoridades terá sido a
defesa dos navios. Mas no caso das ilhas da Guiné isso nunca foi conseguido,
tardando, ao contrário do que sucedeu na Madeira, Açores e Canárias, o
delineamento de um sistema defensivo em terra e no mar. Isto explica a extrema
vulnerabilidade destes portos, evidente nas inúmeras investidas inglesas e
holandesas na primeira metade do século XVII.
Para o século dezanove estava reservada uma total mudança no sistema de rotas
do Atlântico. Os progressos no desenvolvimento da máquina a vapor fizeram com
que se elaborasse um novo plano de portos de escala, capazes de servirem de apoio à
navegação como fornecedores dos produtos em troca e do carvão para a laboração
das máquinas. Nos Açores o porto de Angra cedeu o lugar aos da Horta e Ponta
Delgada, enquanto em Cabo Verde a ilha de Santiago foi substituída pela de S.
Vicente, lugar que disputava com as Canárias. Entretanto o Funchal viu reforçada
pela dupla oferta como porto carvoeiro e do vinho da ilha, o que fez atrair inúmeras
embarcações inglesas e americanas. A par disso a posição privilegiada que os ingleses
gozavam na ilha levou a que eles se servissem do porto do Funchal como base para
as actividades de corso contra os franceses e castelhanos.

103 .ANTT, Corpo Cronológico, I/12/23, 25 de Outubro, in História Geral de Cabo Verde. corpo documental, I, Lisboa, 1988, nº 71, 213-214.
104 . Ob. cit., livro primeiro, 183.
III. A ECONOMIA INSULAR

A definição dos espaços económicos não resultou apenas dos interesses políticos e
económicos derivados da conjuntura expansionista europeia mas também das
condições internas, oferecidas pelo meio. Elas tornam-se por demais evidentes
quando estamos perante um conjunto de ilhas dispersas no oceano. Tal como nos
refere Carlos Alberto Medeiros "são fundamentalmente condições físicas que estão na base
do arranjo da paisagem: as climáticas que permitem compreender as diferenças entre elas, e
morfológicas que, dentro da conjuntura climática de cada um, assumem o papel essencial" 105 .
No conjunto estávamos perante ilhas com a mesma origem geológica, sem
quaisquer vestígios de ocupação humana, mas com diferenças marcantes ao nível
climático. Os Açores apresentavam-se como uma zona temperada, a Madeira como
uma réplica mediterrânica, enquanto nos dois arquipélagos meridionais eram
manifestas as influências da posição geográfica, que estabelecia um clima tropical
seco ou equatorial. Daqui resultou a diversidade de formas de valorização económica
e social.
Para os primeiros europeus que aí se fixaram a Madeira e os Açores ofereciam
melhores requisitos, pelas semelhanças do clima com o de Portugal, do que Cabo
Verde ou S. Tomé. Nestes dois últimos arquipélagos foram inúmeras as dificuldades
de adaptação do homem e das culturas europeio-mediterrânicas. Aí o europeu cedeu
lugar ao africano e as culturas mediterrânicas de subsistência foram substituídas
pelas trocas na vizinha costa africana. A preocupação pelo aproveitamento dos
recursos locais surge num segundo momento.
Por fim é necessário ter em conta as condições morfológicas, que estabelecem as
especificidades de cada ilha e tornam possível a delimitação do espaço e a sua forma
de aproveitamento económico. Aqui o recorte e relevo costeiro foram importantes. A
possibilidade de acesso ao exterior através de bons ancoradouros era um factor
importante. É a partir daqui que se torna compreensível a situação da Madeira
definida pela excessiva importância da vertente sul em detrimento do norte. E nas
ilhas do Golfo da Guiné o facto de Fernando Pó ser preterida em favor de S. Tomé.
De um modo geral estávamos perante a plena dominância do litoral como área
privilegiada de fixação ainda que, por vezes, o não fosse em termos económicos. Nas
ilhas em que as condições orográficas propiciavam uma fácil penetrar no interior,
como sucedeu em S. Miguel, Terceira, Graciosa, Porto Santo, Santiago e S. Tomé, a
presença humana alastrou até aí e gerou os espaços arroteados. Para as demais a

. "Acerca da ocupação humana das ilhas portuguesas do Atlântico", in Finisterra. Revista Portuguesa de geografia, vol.IV, nº 7, Lisboa,
105

1969, 144-145. Sobre os aspectos geo-climáticos vejam-se os seguintes estudos: Ilídio do AMARAL, Santiago de Cabo Verde. A Terra e
os Homens, Lisboa, 1964; Raquel Soeiro de BRITO, A Ilha de São Miguel. Estudo geográfico, Lisboa, 1955; J. Medeiros CONSTANCIA,
Evolução da paisagem humanizada da ilha de São Miguel, Coimbra, 1963-64; António Brum FERREIRA, A Ilha da Graciosa, Lisboa, 1968;
Carlos Alberto Medeiros, A Ilha do Corvo, Lisboa, 1967: Orlando RIBEIRO, Líle de Madère, Étude géografique, Lisboa, 1949; Idem, A Ilha
do Fogo e as suas erupções, Lisboa, 1954; Francisco TENREIRO, A Ilha de São Tomé. Estudo Geográfico, Lisboa, 1961.
omnipresença do litoral é evidente e domina toda a vida dos insulares, sendo aí o
mar a via privilegiada. Os exemplos da Madeira e S. Jorge são paradigmáticos.
De acordo com as condições geo-climáticas é possível definir a mancha de
ocupação humana e agrícola das ilhas. Isto conduziu a uma variedade de funções
económicas, por vezes complementares. Deste modo nos arquipélagos constituídos
por maior número de ilhas a articulação dos vectores da subsistência com os da
economia de mercado foi mais harmoniosa e não causou grandes dificuldades. Os
Açores apresentam-se como a expressão mais perfeita da realidade, enquanto a
Madeira é o reverso da medalha.
O processo de povoamento das ilhas, já atrás abordado, definiu-lhes uma vocação
de áreas económicas sucedâneas do mercado e espaço mediterrânicos. Assim o que
sucedeu nos séculos XV e XVI foi a lenta afirmação do novo espaço, tendo como
ponto de referência as ilhas.
A mudança de centros de influência foi responsável porque os arquipélagos
atlânticos assumissem uma função importante. A tudo isso poderá juntar-se a
constante presença de gentes ribeirinhas do Mediterrâneo, interessadas em
estabelecer os produtos e o necessário suporte financeiro. A constante premência do
Mediterrâneo nos primórdios da expansão atlântica poderá ser responsabilizada pela
dominante mercantil das novas experiências de arroteamento aqui lançadas.
Certamente que os povos peninsulares e mediterrânicos, ao comprometerem-se
com o processo atlântica, não puseram de parte a tradição agrícola e os incentivos
comerciais dos mercados de origem. Por isso na bagagem dos primeiros
cabouqueiros insulares foram imprescindíveis as cepas, as socas de cana, alguns
grãos do precioso cereal, de mistura com artefactos e ferramentas. A afirmação das
áreas atlânticas resultou deste transplante material e humana de que os peninsulares
foram os principais obreiros. Este processo foi a primeira experiência de ajustamento
das arroteias às directrizes da nova economia de mercado.
A aposta preferencial foi para uma agricultura capaz de suprir as faltas do velho
continente, quer os cereais, quer o pastel e açúcar, do que o usufruto das novidades
propiciadas pelo meio. Aqui estamos a lembrar-nos de Cabo Verde e são Tomé onde
a frustração de uma cultura subsistência europeia não foi facilmente compensada
com a oferta dos produtos africanos como o milho zaburro e inhames. Em Cabo
Verde, cedo se reconheceu a impossibilidade da rendosa cultura dos canaviais. Mas
tardou em valorizar-se o algodão como produto substitutivo, tal era a obsessão pelo
açúcar e pelas trocas da costa da Guiné.
A sociedade e economia insulares surgem na confluência dos vectores externos
com as condições internas dos multifacetado mundo insular. A sua concretização não
foi simultânea nem obedeceu aos mesmos princípios organizativos pelo facto de a
mesma resultar da partilha pelas coroas peninsulares e senhorios ilhéus. Por outro
lado a economia insular é resultado da presença de vários factores que intervêm
directamente na produção e comércio.
Não basta dispor de um solo fértil ou de um produto de permanente procura, pois
a isso deverá também associar-se os meios propiciadores do escoamento e a
existência de técnicas e meios de troca adequados ao nível mercantil atingido pelos
circuitos comerciais. Deste modo, para conhecermos os aspectos produtivos e de
troca das economias insulares torna-se necessária uma breve referência aos factores
que estão na sua origem.
Ao nível do sector produtivo deverá ter-se em conta a importância assumida, por
um lado, pelas condições geofísicas e, por outro, pela política distributiva das
culturas. É da conjugação de ambas que se estabelece a necessária hierarquia. Os
solos mais ricos eram reservados para a cultura de maior rentabilidade económica (o
trigo, a cana de açúcar, o pastel), enquanto os medianos ficavam para os produtos
hortícolas e frutícolas, ficando os mais pobres como pasto e área de apoio aos dois
primeiros.
A esta hierarquia definida pelas condições do solo e persistência do mercado
podemos adicionar para a Madeira outra de acordo com a geografia da ilha e os
microclimas que a mesma gera. A explicação foi dada por Orlando Ribeiro 106
podendo o leitor aperceber-se disso no século dezasseis, a partir da leitura da obra de
Gaspar Frutuoso. A realidade em causa é específica da Madeira e apenas encontra
algo parecido na ilha de S. Tomé 107 .
Para que tudo isto tivesse lugar de forma ordenada houve necessidade, por parte
do senhorio e da coroa, de definir normas para o aproveitamento dos recursos
agrícolas dos novos espaços. Daí resultaram inúmeras medidas regulamentadoras
das actividades produtivas. Esta política esboça-se já com a entrega de terras, onde se
estabelecem, muitas vezes, os produtos mais adequados para o seu cultivo. Na
Madeira em 1492 elas apontavam para a preservação das searas, mas em 1508 a
prioridade estava nos canaviais. O mesmo sucedia nos Açores, onde em S. Miguel se
estabeleceu em 1532 uma divisão equitativa do solo em searas e terras de pastel. No
caso de Cabo Verde a doação das ilhas pequenas tinha como finalidade a criação de
gado, mais pela riqueza das suas peles do que pelo valor alimentar.
Não se esgotava aqui a iniciativa das autoridades no ciclo produtivo uma vez que
a fase de transformação dos produtos era outro domínio a cativar o seu empenho.
Tudo isto é proporcional ao volume e especialização das tarefas. Assim no caso do
açúcar, cujo processo de era moroso, havia um apertado controlo e regulamentos
para as tarefas, por meio de regimentos e posturas específicos.
Maior e mais evidente era a actuação ao nível do sector comercial. Neste caso as
autoridades intervinham com o duplo objectivo de assegurar, por um lado, o
comércio monopolista da burguesia nacional, por outro, da normalização dos
circuitos. A par disso deverá referir-se as posturas municipais que defendem, única e
exclusivamente, interesses dos concidadãos. Isto é, garantir o abastecimento do
mercado local de produtos essenciais. As posturas, de que se conhecem as do
Funchal, Angra, Ponta Delgada, Ribeira Grande, Velas, Vila Franca do Campo, são
disso testemunho como teremos oportunidade de o afirmar 108 .

106. A Ilha da Madeira até meados do século XX, Lisboa, 1985 (1ª edição em 1949), 37/43 e 56/59.
107. Francisco TENREIRO, A Ilha de S. Tomé, Lisboa, 1969, 49-54.
108. Alberto VIEIRA, "As posturas municipais da Madeira e Açores nos séculos XV a XVII" in III Colóquio Internacional Os Açores e o

Atlântico, Angra do Heroismo, 1989.


As Canárias, pela riqueza dos recursos humanos e naturais, surgiram no século
XV como o primeiro alvo. Mas a conquista e ocupação foram retardadas pela disputa
entre as duas coroas peninsulares e o afrontamento dos guanches. Deste modo a
Madeira assumiu uma posição cimeira no processo, uma vez goradas as iniciativas
no Porto Santo.
O arquipélago açoriano e as demais ilhas na área da Guiné surgem numa época
tardia, sendo o processo de valorização económica atrasado mercê de vários factores
de ordem interna a que não são alheias as condições mesológicas. O clima e solo
áridos, num lado, sismos e vulcões, no outro, eram um cartaz pouco aliciante para os
primeiros povoadores. Em ambos os casos o lançamento da cultura da cana sacarina
esteve ligado aos madeirenses. Eles haviam recebido as técnicas dos italianos mas
cedo se prontificaram a difundi-las em todo a espaço atlântico.
A Madeira, que se encontrava a pouco mais de meio século de existência como
sociedade insular, estava em condições de oferecer os contingentes de colonos
habilitados para a abertura de novas arroteias e ao lançamento de novas culturas nas
ilhas e terras vizinhas. Assim terá sucedido com o transplante da cana-de-açúcar para
Santa Maria, S.Miguel, Terceira, Gran Canária, Tenerife, Santiago, S. Tomé e Brasil.
A tendência uniformizadora da economia agrícola do espaço insular esbarrou
com vários obstáculos que, depois, conduziram a um reajustamento da política
económica e à definição da complementaridade entre os mesmos arquipélagos ou
ilhas. Nestas circunstâncias as ilhas conseguiram criar no seu seio os meios
necessários para solucionar os problemas quotidianos -- assentes quase sempre no
assegurar os componentes da dieta alimentar --, à afirmação nos mercados europeu e
atlântico. Assim sucedeu com os cereais que, produzidos apenas nalgumas ilhas,
foram suficientes, em condições normais, para satisfazer as necessidades da dieta
insular, sobrando um grande excedente para suprir as carências do reino.
Um dos iniciais objectivos que norteou o povoamento da Madeira foi a
possibilidade de acesso a uma nova área produtora de cereais, capaz de suprir as
carências do reino e depois as praças africanas e feitorias da costa da Guiné. A última
situação era definida por aquilo a que ficou conhecida como o "saco de Guiné".
Entretanto os interesses em torno da cultura açucareira recrudesceram e a aposta na
cultura era óbvia. Esta mudança só se tornou possível quando se encontrou um
mercado substitutivo. Assim sucedeu com os Açores que, a partir da segunda metade
do século dezasseis, passaram a assumir o lugar da Madeira.
O cereal foi o produto que conduziu a uma ligação harmoniosa dos espaços
insulares, o mesmo não sucedendo com o açúcar, o pastel e o vinho, que foram
responsáveis pelo afrontamento e uma crítica desarticulação dos mecanismos
económicos. A par disso todos os produtos foram o suporte, mais que evidente, do
poderoso domínio europeu na economia insular. Primeiro o açúcar, depois o pastel e
o vinho exerceram uma acção devastadora no equilíbrio latente na economia das
ilhas.
A incessante procura e rendoso negócio conduziram à plena afirmação, quase que
exclusiva destes produtos, geradora da dependência ao mercado externo. Este para
além de ser o consumidor exclusivo destas culturas, surge como o principal
fornecedor dos produtos ou artefactos de que os insulares carecem. Perante isto
qualquer eventualidade que pusesse em causa o sector produtivo era o prelúdio da
estagnação do comércio e o prenúncio evidente de dificuldades, que desembocavam
quase sempre na fome.
Terá sido com base nisso que Fernand Braudel defendeu para as ilhas da Madeira
e Açores o regime produtivo baseado na monocultura 109 . Mas aquilo que sucedia nas
ilhas era muito mais complexo. A heterogeneidade de espaços não era propiciadora
disso. Deste modo as reacções não tardaram em aparecer por parte de investigadores
mais atentos e conhecedores destas ilhas. Primeiro foi Orlando Ribeiro 110 a rebater a
ideia, sendo secundado por F. Mauro e Vitorino Magalhães Godinho. O último
definiu a economia insular por um regime de produtos dominantes e nunca de
monocultura.
Na verdade, foi isso que sucedeu em qualquer um dos arquipélagos do
Mediterrâneo Atlântico, exceptuando-se as ilhas dos arquipélagos de Cabo Verde e S.
Tomé, onde a situação foi diversa. Na Madeira e nos Açores esta tendência foi
entravada por múltiplos factores: no sector produtivo a diversidade do solo e clima
condicionou um verdadeiro mosaico de culturas, de que o texto de Gaspar Frutuoso é
testemunho. Nos contactos com o exterior, não obstante a ausência de registos
alfandegários, a situação é também diferente, sendo corroborada pelos diversos
visitantes.
A estrutura do sector produtivo de cada ilha moldou-se de acordo com isto,
podendo definir-se em componentes da dieta alimentar (cereais, vinha, hortas,
fruteiras, gado) e de troca comercial (pastel, açúcar e algodão). Em consonância com a
actividade agrícola verificou-se a valorização dos recursos disponibilizados por cada
ilha, que integravam a dieta alimentar (pesca e silvicultura) ou as trocas comerciais
(urzela, sumagre, madeiras). É isso que nos propomos tratar, já de seguida.

OS COMPONENTES DA DIETA ALIMENTAR

A presença nas ilhas de um grupo de colonos, oriundos de uma área em que as


componentes fundamentais da alimentação se baseavam nos cereais, definiu para
eles uma função primordial na abertura das frentes de arroteamento. No começo
tudo foi moldado à imagem e semelhança do rincão de origem e, onde isso se tornava
difícil, era quase impossível recrutar e fixar gentes. Assim surgiram as searas, os
vinhedos, as hortas e as fruteiras dominadas pela casa de palha e, mais tarde, pelas
luxuosas vivendas senhoriais.
A partir do século dezassete o Atlântico foi devassado por novas culturas dos
espaços recém-conhecidos, que passaram a fazer parte da dieta alimentar das
populações: primeiro o milho, depois, o inhame e a batata. Todavia a sua presença na

109 . Ob. cit., (edição de 1949), 123.


110 . Ob. cit., 48.
agricultura insular variou de arquipélago para arquipélago. O milho chegou cedo aos
Açores e a S. Tomé, enquanto na Madeira o seu aparecimento só teve lugar no século
dezanove. A batata começou a ter aceitação na Madeira e Açores na segunda metade
do século dezassete.

OS CEREAIS

Na Madeira, até à década de setenta do século quinze, a paisagem agrícola foi


dominada pelas searas, decoradas de parreiras e canaviais. A cultura cerealífera
dominava a economia madeirense, gerando grandes excedentes com que se
abasteciam os portos do reino, as praças africanas e a costa da Guiné. Tudo isso foi
resultado da elevada fertilidade do solo provocada pelas queimadas para abrir
caminho às primeiras arroteias.
Em meados do século XV Cadamosto referia a colheita de três mil moios de cereal,
que excediam em mais de 65% as necessidades da população madeirense. Deste mil
moios estavam destinados a encher o "saco de Guiné ", isto é, a abastecer as feitorias
da costa africana. Mas a partir da década de sessenta a dominância da cultura dos
canaviais conduziu a uma paulatina quebra das searas, de modo que a partir de 1466
a produção cerealífera passou a ser deficitária, não podendo assim assegurar os
compromissos de abastecimento das praças e feitorias africanas. Desde então a ilha
necessitava de importar parte significativa do cereal que consumia. Em 1479 a
colheita dava apenas para quatro meses, dependendo o abastecimento do restante
cereal importado dos Açores e das Canárias. A cultura tinha lugar nos municípios da
Calheta e Ponta de Sol e na ilha do Porto Santo.
Esta conjuntura derivou da dominância dos canaviais e do rápido esgotamento do
solo resultante do cultivo intensivo a que foi alvo. Giulio Landi retrata-a de forma
explícita em 1530:
"a ilha produziria em maior quantidade se se semeasse. Mas a ambição das riquezas fez
com que os habitantes, descuidando-se de semear trigo, se dediquem apenas ao fabrico do
açúcar, pois deste tiram maiores proventos. O que explica não se colher na ilha trigo para mais
de seis meses, por isso há uma carestia de trigo, que em grande abundância é importado das
ilhas vizinhas" 111 .

A coroa havia estabelecido em 1508 que os Açores eram o celeiro do mundo


atlântico, suprindo as carências da Madeira e substituindo-a no fornecimento às
praças africanas e cidade de Lisboa. Na verdade a crise cerealífera madeirense
coincidiu com o incremento da mesma cultura em solo açoriano, tendo-se
determinado, nomeadamente em S. Miguel, um travão ao avanço da cultura do
pastel.
Apresentando-se o arquipélago açoriano com uma vasta área e um solo variado foi
difícil delinear uma política de aproveitamento. A falta de mão-de-obra fez com que
se fizesse incidir o povoamento apenas em áreas definidas, muitas vezes, já em vias

111 . "Descrição da ilha da Madeira", in A Madeira vista por estrangeiros, Funchal, 1981, 84.
de arroteamento. Na ilha de S. Miguel e Santa Maria, o ritmo acelerado das arroteias
e as elevadas possibilidades do solo para a expansão da cultura cerealífera,
conduziram à afirmação como principais produtores de trigo, relegando segundo
plano as restantes.
Santa Maria foi a primeira ilha a ser lavrada, mas o espaço de cultura reduzido
conduziu-a para uma posição secundária, dando lugar à de S. Miguel, com uma área
plana apropriada para o incentivo das arroteias, não obstante as dificuldades
derivadas das erupções vulcânicas e da sismicidade. Deste modo a ilha verde
afirmou-se, ao longo do século XVI e XVII, como a principal área produtora de trigo
do arquipélago.
A Terceira, onde o processo inicial foi conturbado, desfrutou, a partir de 1460, uma
posição privilegiada na cultura de cereais mantendo-se, até meados do século XVI,
como uma forte concorrente de S. Miguel. Mas os factores geográficos orientavam-na
para uma acção de apoio e provimento das naus, enquanto as constantes solicitações
do sector terciário atraiam cada vez mais gentes ao burgo angrense, colocando o
campo em semi-abandono. Deste modo a manutenção de contactos regulares com as
ilhas de S. Jorge, Graciosa e S. Miguel eram, cada vez mais, imprescindíveis para
poder-se assegurar o serviço de abastecimento das embarcações que demandavam o
porto.
A partir de finais do século XVI foi evidente a afirmação do arquipélago açoriano
como principal produtor de trigo no Atlântico. A economia cerealífera açoriana
estava organizada em torno de dois portos importantes (Angra e Ponta Delgada) que
tinham à sua volta um vasto hinterland, abrangendo as áreas agrícolas da ilha e das
vizinhas. Assim a ilha de Santa Maria estava colocada sob a alçada de S. Miguel e as
restantes adjacentes ou dominadas pelo porto de Angra. Note-se que até mesmo o
comércio de cereal das Flores e Corvo se fazia a partir de Angra, como sucedeu em
1602.
Em síntese: as arroteias do cereal no arquipélago distribuíam-se consoante as
possibilidades do solo e a existência de eixos de escoamento ou, mais propriamente,
da confluência de rotas capazes de escoarem os elevados excedentes das colheitas.
A ilha de S. Miguel, sendo a de maior extensão do arquipélago e a que oferecia
melhores condições às arroteias, afirma-se, desde o início, como a principal produtora
de cereal. Ele crescia, lado a lado, com o pastel. Todo o espaço em torno da cidade, a
área agrícola mais importante da ilha, estava ocupado com as duas culturas.
Frutuoso, em finais do século XVI, confirma isso. Em 1640, a ilha produzia 13.800
moios de trigo, sendo mais de metade (7.705 moios) das searas situadas entre a
Ribeira Grande e Ponta Delgada, situando-se em segundo lugar o litoral desde a
Bretanha às Feiteiras, com 2.360 moios, Vila Franca do Campo com 1.235 e o Nordeste
com apenas 1.220 moios. A área dominante da cultura situava-se próximo do porto
de Ponta Delgada, à data o principal porto do comércio micaelense.
A Terceira é referida em todas as fontes narrativas como uma das principais ilhas
de produção de cereal do arquipélago. Em 1527 Francisco Alvares atribuiu-lhe o
epíteto de mãe do trigo 112 . No mesmo sentido se refere António Cordeiro quando
afirma que ela em tempos recuados deram "quasi o mesmo que S. Miguel" 113 .
As restantes ilhas encontravam-se numa posição secundária, mas, mesmo assim,
com um excedente confortável, capaz de manter activo o comércio local e externo.
Assim sucedia com a ilha Graciosa, onde a colheita de trigo e cevada "excede ao das
mais ilhas" 114 . Para isso contribuíam as condições favoráveis propiciadas pela
orografia. Quanto às restantes ilhas Valentim Fernandes e Jean Alphonse referem a
abundância de cereais. Gaspar Frutuoso alude às de S. Jorge e Pico como terras de
pouco pão, ao Faial à colheita de muito trigo, às Flores como auto-suficiente, à
Graciosa e Corvo como terras de pão 115 .
A historiografia quinhentista é unânime em afirmar a elevada fertilidade do solo
açoriano. O texto mais modelar é de Frutuoso que nos dá conta, de modo exaustivo,
das diversas formas de actividade económica do arquipélago tendo em conta os
factores de produção. O autor traça-nos, de modo clarividente, a conjuntura da
economia açoriana na década de oitenta. O mesmo na descrição das ilhas salienta que
o solo açoriano, de um modo geral, se apresentava apto para a cultura do trigo, quer
pelas condições geográficas, quer pela fertilidade, se tornava desnecessário o uso de
arroteias de pousio. Assim conclui que as ilhas dos Açores "são tão abundantes de pão,
que logo no princípio do seu descobrimento dava cada moio de terra semeada de trigo ou
cevada quarenta ou cinquenta ou sessenta moios e, ainda muitas vezes, recolhem os lavradores
de um alqueire de semeadura vinte e trinta" 116 .
Na análise particular de cada ilha destaca a fertilidade das de Santa Maria e S.
Miguel, dizendo, quanto à primeira:
"Semeia-se um moio de terra com trinta e cinco até quarenta alqueires de trigo, e não sofre
tanta semente como as outras ilhas, porque é de muita criação, e acham-se pés de trigo de um
grão que dá cento e dez, cento e vinte espigas; e o comum daqueles que bem criam, são
cinquenta e sessenta, dez, quinze, vinte e trinta, quarenta" 117 .

Quanto à ilha de S. Miguel o mesmo refere a elevada fertilidade do solo, de tal


modo que as terras não necessitavam de pousio, pois "dão abundantíssimo fruto,
maiormente no princípio do seu descobrimento, em que tinham todo o seu vigor e força...",
anotando mais adiante, que "no morro da vila da Ribeira Grande, e em outras muitas
partes desta ilha, respondia a terra a sessenta moios por moio de trigo, e o mesmo de cevada; e
tão basto, e grado era o pão, que dois ceiföes segavam trezentos feixes no dia, e cada feixe dava
um alqueire de trigo... 118 ". Isto foi confirmada por Frei A. de Monte Alverne, referindo
que nos Fenais, um moio de terra dava sessenta de trigo, tendo-se encontrado aí "um
pé de trigo que tinha 107 espigas" 119 .

112. Verdadeira Informação 2ª parte, cap. IV.


113. História Insulana, 302.
114. Ibidem, 435.
115. Saudades da Terra, livro VI.
116. Ibidem, livro VI, 4.
117. Ibidem, livro III, 98.
118. Ibidem, livro IV, tomo II, 17 e 23.
119. Crónicas da província de S. João Evangelista das ilhas dos Açores, vo.II, Ponta Delgada, 1961, 16.
A média de produtividade do trigo oscilava entre 15 a 20 sementes, embora
houvesse anos com referências elevadíssimas e exageradas. Este número é
considerado espectacular se tivermos em conta que na medievalidade ocidental
oscilava entre 3 e 4 sementes, nunca excedendo em anos de boa colheita, as 10
sementes. Caso idêntico sucedeu em Portugal, onde a média rondava estes valores,
apenas se encontrando valor superior nas terras do mosteiro de Alcobaça (com 8 a 13
sementes) e na região de Barcarena (com 8 sementes).
Se aceitarmos as informações fornecidas por Gaspar Frutuoso como seguras,
teremos de considerar que estávamos perante uma colheita invulgar, que excedia os
limites até aí considerados normais na economia agrária europeia. A admiração com
que ele e outros autores (Zurara, V. Fernandes) referem a elevada produtividade do
cereal açoriano é mais um argumento a corroborar esta realidade. Tudo seria possível
numa terra rica e virgem, onde o trigo crescia facilmente.
O Europeu encontrou nas ilhas, por explorar, o meio adequado e capaz de suprir
as dificuldades geradas com a degradação, cada vez maior, do terra continental,
esgotados os recursos à adubagem do solo, o variado sistema de afolhamento e
rotação de culturas. O solo, agora cultivado, produzia quantidades elevadas de
cereal, sem precisar do pousio, pelo que uma área reduzida era capaz de produzir
soma igual a uma vasta área na Europa.
A cultura do cereal, nestas paragens, fazia-se no solo apropriado e numa faixa
reduzida de terreno, ficando as restantes
cobertas de arvoredo a aguardarem um melhor dimensionamento da política das
arroteias. Cedo o solo se esgotava, como resultado de um aproveitamento intensivo,
sem a necessária fertilização do solo por meio dos estrumes, tremoço ou pousio.
Assim sucedeu em S. Miguel a partir de princípios do século XVI, agravando-se em
meados do mesmo século. O nível de produtividade baixou para 6 ou 7:1, tornando-
se necessário o recurso ao tremoço e à fava como fertilizantes. Gaspar Frutuoso,
escrevendo na década de oitenta, salienta que o solo micaelense "agora não responde
com tanta abundância como dantes", enquanto as Flores que "foram terras muito fertiles e
grossas, mas já agora são mui fracas e lavadas dos ventos, e não lhe aparece mais que a
pedra" 120 . Em documento de 1557 a Câmara de Angra referia "que as terras estavam fracas e
produziam pouco" 121 .
A partir de meados do século XVI a cultura cerealífera sofreu uma forte quebra,
motivada pelo esgotamento do solo a que se associou depois a alforra. Esta
conjuntura conduziu a profundas mudanças na economia agrária açoriana de que se
realça o alargamento da área arroteada e as mudanças na estrutura agrícola. Assim
tivemos o recurso ao sistema de afolhamento bienal, o uso de fertilizantes do solo
com o tremoço e fava e, ainda, o sistema de rotação de culturas, primeiro com a
batata e, depois, com o milho e inhames, no século XVII.
Até princípios do século XVI não encontramos qualquer referência à falta de trigo
no arquipélago, antes se mantém a "avondança de pão". Somente a partir de 1508 o

120 . Saudades da Terra, livro quarto, vol. II, 17.


121 . F.F.DRUMOND, Anais da ilha Terceira, vol I, 122.
trigo foi valorizado devido à esterilidade que se manteve por alguns anos, obrigando
os moradores a comerem roläo. A conjuntura agravou-se a partir de 1532 com os
reflexos do esgotamento do solo insular, sentido de modo evidente na Terceira:
"Senhor esta ylha Terceyra estam tam necessytada de trygo como nunca esteve porque
esta em condiçom d'allguma gente alguns dyas nom comerem pam bem que por isso nom ham
de morrer, porque ha cousas ca na terra com que se manterem este pouco tempo que lhes
falecer. Isto Senhor causou nom aver boa semente porque em terra de um moyo de semeadura
se semeou moyo e meio em que se lançou à terra quinhentos moyos de trigo do que se
costumava lançar, isto causou esta mingoa de trygo que ora ha e também semearam-se mais
terras do que nunca se semearon e segundo ha enformaçam que tenho em todas estas ilhas dos
Açores ha isto sallvo a ilha de Santa Maria que dyzem ter o trygo que lhe he necessaryo..." 122 .

Deste modo estava comprometido o fornecimento das armadas até às novas


colheitas, isto é, para o período de Abril e Junho.
Em meados do século XVI o aparecimento da alforra veio agravar a situação.
Assim no Inverno de 1552 todo o arquipélago padeceu de fome. As populações de S.
Miguel, Faial, S. Jorge amotinaram, manifestando-se contra a saída ilimitada de cereal
do comércio e das rendas régias e particulares para o reino. Em princípios do 1552 os
vereadores contrariam os planos de Afonso Capiquo, que vinha buscar o dinheiro
das rendas, pois como referem "nestas ilhas este anno aja muita necessidade de triguo
e seja mais caro do que muitos annos..." 123 .
Entretanto os moradores de S. Miguel queixavam-se ao monarca da actividade
especulativa dos senhorios que, procurando tirar maior lucro, o exportavam, ficando
a ilha "em muita necessidade e no Inverno vem a valer muito e por lhe não ir de fora falta às
vezes". Deste modo propuseram a Sua Majestade a obrigatoriedade de cada
proprietário deixar na ilha 1/3 da colheita. Mas o alvará régio apenas determinou que
fosse apenas 1/4.
Caso semelhante se passava na Praia (Terceira), onde a vereação dominada pelos
grandes produtores de trigo permitia a saída de 4000 moios e aumentava o seu preço,
colocando os moradores na miséria. Perante isto o corregedor ordenara o
encerramento do porto e proibira a saída de qualquer trigo, mas o município actuou
junto do monarca tendo conseguido legitimidade para a sua posição.
A primeira metade do século XVI foi marcada por crises sazonais de produção,
que se sucederam com um intervalo aproximado de 20 anos (1508, 1532, 1552), em
que se notam os reflexos do esgotamento do solo. Isto torna-se evidente em S. Miguel
nas décadas de setenta e oitenta e na Terceira em finais do século XVI.
A conjuntura que se esboçou no período de 1570 a 1670 foi pautada por 25 anos de
penúria e teve reflexos mais evidentes na Terceira e S.Jorge. Na primeira o
agravamento teve lugar a partir da década de oitenta, mercê do assalto filipino. Deste
modo até 1600 nunca foi atingida a necessária estabilidade, pois que as épocas de

. Arquivo dos Açores, vol. I, 118-119.


122

. Maria Olímpia da Rocha GIL, O Arquipélago dos Açores no século XVII. Aspectos sócio-económicos (1575-1675), Castelo Branco, 1979,
123

284.
penúria, sendo demoradas, sucediam-se com um intervalo de 2 a 3 anos. Em S.
Miguel apenas se registaram duas crises espaçadas de 11 anos (1562, 1573).
Que factores conduziram a esta diferente evolução da conjuntura cerealífera em
ambas as ilhas? A divergência surge-nos como resultado de uma política de
desenvolvimento, diversificada e orientada por rumos, igualmente diversos, embora,
complementares. A Terceira passou, a partir da primeira metade do século XVI, a
apresentar-se como o principal entreposto do Atlântico.
A cidade e porto de Angra atraíram todo o esforço terceiras. A população
abandonou a dura labuta da terra para se dedicar ao comércio retalhista. Aliás
poucas soluções se deparavam a uma ilha como a Terceira, onde as arroteias não
eram abundantes (Angra, S. Sebastião, Praia). são Miguel, ao contrário oferecia uma
vasta área de terreno fértil e por desbravar.
No início do povoamento, o colono fixou-se nas zonas ricas (Ribeira Grande, Vila
Franca do Campo, Ponta Delgada), onde as colheitas eram abundantes, não
necessitando de alargá-las. Mais tarde, com o esgotamento de algumas das arroteias e
com o aumento da mão-de-obra campesina a área cultivada expandiu-se, sendo
incessante a procura de solo fértil. Assim teremos, desde os inícios do século XVI, o
alargamento das searas, de modo que em finais do século se havia atingido o máximo
de aproveitamento do solo, com 1/3 do total da área da ilha. Ela estava condenada a
ser o celeiro açoriano enquanto a Terceira seria o grande centro de comércio e tráfico
internacional atlântico. De um lado uma ilha extensa com vastas áreas propícias à
cultura do cereal, do outro uma área com fracas possibilidades agrícolas, mas
desfrutando de uma posição estratégica.
A economia açoriana estruturou-se a partir da primeira metade do século XVI, sob
o signo desta ambiência, dando origem a duas áreas de actividade económica
dominantes, em torno das quais se posicionam as demais como regiões periféricas.
É comum definir-se esta viragem na cultura cerealífera açoriana como resultado de
uma actuação do movimento demográfico insular. No entanto, se tivermos em conta
os dados demográficos para os anos de 1567 e 1578, podemos concluir que não houve
mudança significativa no natural movimento ascendente. Apenas há a salientar um
reajustamento da geografia populacional quinhentista, com a dominância das áreas
em franco desenvolvimento. Assim sucedeu em S. Miguel com o espaço agrícola em
torno do eixo de Ponta Delgada/Ribeira Grande e na Terceira com a cidade de
Angra.
A deficiência cerealífera de algumas áreas do arquipélago açoriano deve
fundamentalmente a uma mudança na estrutura económica, a que não foi alheio o
seu posicionamento na dinâmica económica do mundo colonial atlântico. As
alterações mais significativas ocorreram na Terceira com o sector de actividade
dominante: o primário deu lugar ao terciário. Em S. Miguel ele manteve a
supremacia, relegando para segundo plano os demais.
A partir de meados do século XVI, de acordo com o rumo definido por estas áreas,
a conjuntura cerealífera será assimétrica, demonstrativa desta viragem. Desde então a
Terceira manter-se-á como uma ilha carente, que busca o provimento na Graciosa, em
S. Jorge e, mesmo, em S. Miguel, enquanto o solo micaelense se afirmará como área
agrícola, por excelência, onde se cultivava o pastel e o cereal. A última estava
preparada para ser o potencial celeiro do Atlântico europeu, tendo apenas a impedi-
lo a cultura rendosa do pastel. Deste modo a conjuntura cerealífera definida por
Frédéric Mauro, entre 1570 e 1669 não põe em causa a teoria divulgada, de que os
Açores foram o celeiro de Portugal e das praças de África, antes confirma e reforça a
nossa ideia de que ele se situava em S. Miguel.
Esta ilha era a principal produtora de cereal do arquipélago e, igualmente, a que
oferecia melhores condições em termos de extensão e solo. A análise da conjuntura
cerealífera, pelo menos, o especifica. Na verdade, em S. Miguel as crises cerealíferas
são raras e espaçadas, sendo na maioria curtas e resultantes de factores ocasionais,
como as tempestades. Assim sucedeu em 1573, em que um forte temporal destruiu
todas as sementeiras. Ainda no século XVI tivemos outra conjuntura de crise em
1591-1592 que obrigou à importação de cereais. Ela foi descrita como resultado da
concorrência do pastel, que tendia a substituir o trigo. O que foi resolvido em favor
do cereal uma vez que ele, embora considerado uma cultura de inferior
rentabilidade, era necessário, sendo um dos imperativos da coroa a sua persistência.
De 1591 até 1640 manteve-se um hiato prolongado em que não é referenciada
qualquer crise. A falta no último ano foi resultado da incompatibilidade entre os
interesses da aristocracia citadina, proprietária e ligada ao comércio de exportação de
cereais e o necessário provimento do micaelense, de modo especial da cidade de
Ponta Delgada.
As medidas proteccionistas, com o estabelecimento de um contingente de reserva
ou proibição de saída de trigo, e o exame aos granéis, foram relegados para segundo
plano, ou esquecidos, de modo a facilitar-se o comércio. Somente em 1677 a falta de
cereal resultou de uma quebra das colheitas, que não teriam ultrapassado a metade
do ano anterior. O trigo "hera tam pouco que corria o risco de sustentar-se esta
ilha" 124 .
A conjuntura de extrema miséria e fome agravou-se a partir dos anos quarenta do
século XVII, conduzindo à amotinaçäo do povo faminto. Assim sucedeu em 1643,
1647 e 1695. Na primeira data o povo amotinado procurou evitar a pratica
especulativa dos vereadores comprometidos com o comércio do cereal, impedindo o
embarque de uma caravela com trigo, quando "o não achaväo na cidade à venda para
comer e semear" 125 .
Em 1590 os pobres de S. Miguel, oriundos das áreas rurais revoltam-se contra a
aristocracia e burguesia de Ponta Delgada, Ribeira Grande, Vila Franca do Campo,
forçando-as a pôr cobro ao comércio e preço especulativo do pão.
A falta de cereal em S. Miguel, a partir de meados do século XVII, surge como
consequência dos maus anos agrícolas e da acção especulativa da aristocracia e classe
mercantil micaelenses, empenhadas no comércio do cereal e com forte influência nas

124 . Biblioteca Pública e Arquivo de Ponta Delgada, Câmara Municipal de Ponta Delgada, nº 53, fls. 188vº-189vº
125 . Helder Lima, Os Açores na Economia Atlântica (subsídios) séculos XV, XVI e XVII, Angra do Heroismo, 1978, 353-354.
vereações das três edilidades, e nunca resultado de uma quebra nas colheitas. Os
poucos dados disponíveis comprovam esta tendência.
Diferente foi o que sucedeu aos colonos portugueses quando chegaram a Santiago
e S.Tomé. Aí não medravam as culturas que definiam a dieta alimentar europeia e foi
com redobrado desgosto que se defrontaram com as primeiras espigas mirradas.
Valentim Fernandes (1506-1508) refere que Santiago "não dá trigo nem cevada",
enquanto o Pe. Baltasar Barreira em 1606 tem opinião contrária. Deste modo houve
necessidade de estruturar de forma diversa o povoamento das ilhas e as culturas a
implantar. O recurso aos africanos, como escravos ou não, foi a solução mais acertada
para transpor o primeiro obstáculo. Eles tinham uma alimentação diferente dos
europeus, baseada no milho zaburro, no arroz e inhame, culturas que aí, nas ilhas ou
vizinha costa africana, medravam com facilidade. Perante isto os poucos europeus
que aí se fixaram estiveram sempre dependentes do trigo, biscoito ou farinha,
enviados das ilhas ou do reino, ou tiveram que se adaptar à dieta africana.
O padre Baltazar Barreira retrata em 1606, de forma clara, a situação nas ilhas de
Cabo Verde:
"a principal sementeira que fazem é de milho zaburro deste comem ordinariamente os
crioulos e pretos, e fazem muita quantidade de tuém e cuscuz (...) vem muita farinha de fora
de que se amassa cada dia todo o pão que comem os portugueses" 126 .

O milho e o arroz eram cultivados na ilha de Santiago, conforme o testemunham


Gaspar Frutuoso 127 e o piloto anónimo 128 .Além disso o arquipélago era rico de
pastagens de gado miúdo e vacuum que dava a carne, que com o peixe, existente em
abundância nos mares circundantes, completavam e definiam a sua alimentação. Mas
também existia um circuito de abastecimento de milho e arroz da costa africana e de
trigo do reino e ilhas, sob a forma de grão, farinha e biscoito do reino. Acresce ainda
os ricos pomares e hortas, uma referência constante nos viajantes dos séculos
dezasseis e dezassete.

A VINHA E O VINHO

Junto ao cereal plantou-se também os bacelos donde se extraía o saboroso vinho de


consumo corrente ou usado nos actos litúrgicos. O ritual cristão fez valorizar ambos
os produtos que, por isso mesmo, acompanharam o avanço da Cristandade. Em
ambos os casos foi fácil a adaptação às ilhas aquém do Bojador o mesmo não
sucedendo com as da Guiné. Todavia a videira conseguiu ainda penetrar neste último
espaço, se bem que tenha adquirido uma importância diminuta.
Martin Behaim refere em finais do século quinze o plantio de videiras em S. Tomé,
enquanto um piloto anónimo testemunha em 1607 a existência de vinhas na ilha do
Fogo. E noutros documentos encontramos a referência ao seu cultivo também em S.

126. Monumenta Missionária Africana, IV, 45.


127. Livro primeiro das Saudades da Terra, cap. XXI, 175-185.
128.Viagem de Lisboa à ilha de S. Tomé, 25
Nicolau e Maio. O vinho produzido na ilha do Fogo era considerado por alguns
viajantes, que por aí passaram e tiveram oportunidade de o provar, semelhante ao da
Madeira. Deste modo a viticultura ficou reservada às ilhas do Mediterrâneo Atlântico,
onde o vinho adquiriu um lugar importante nas exportações.
Na Madeira a cultura da vinha surge já com grande evidência no começo do
povoamento, sendo uma importante moeda de troca com o exterior. Cadamosto em
meados do século XV fica admirado com a qualidade e valores de produção das
cepas madeirenses. Na verdade a cultura da vinha havia imediatamente adquirido
uma extensa parcela do terreno arroteado na frente sul, alastrando depois a toda a
área agrícola da ilha, a partir de finais do século XV. Mas o seu desenvolvimento foi
entravado pela dominância dos canaviais e por isso mesmo a afirmação plena só terá
lugar a partir do momento em que surgiram as primeiras dificuldades no comércio
do açúcar.
A evolução da safra vitivinícola madeirense dos séculos quinze e dezasseis só
pode ser conhecida através do testemunho de visitantes estrangeiros, uma vez que é
escassa a informação nas fontes diplomáticas. Hans Standen definia em 1547 a
economia madeirense pelo binómio vinho/açúcar, passados vinte e três anos só se
falará do vinho como principal factor do sistema de trocas com o exterior. Os trigais e
canaviais deram lugar às latadas e balseiras. A vinha tornou-se a cultura quase que
exclusiva do colono madeirense. Deste modo vinho adquiriu o primeiro lugar na
economia madeirense, mantendo-se assim por cerca de três séculos.
A rápida e plena afirmação do vinho da Madeira no mercado atlântico derivou do
elevado teor alcoólico que lhe favoreceu a expansão em todo o mundo. Ele conseguia
chegar em condições desejáveis aos destinos mais inóspitos e impróprios para a sua
conservação. Em Cabo Verde, S. Tomé ou Brasil o vinho madeirense era preferido aos
demais por ser o único que resistia ao calor tórrido a que estava sujeito.
Os mestres e tripulantes das embarcações, que demandavam a região equatorial,
não escondiam também a sua preferência, pelo que escalavam com assiduidade o
Funchal para se abastecerem de vinho. Este era dos poucos, talvez o único vinho que
não avinagrava à passagem nos trópicos, antes pelo contrário, adquiria propriedades
gustativas, o que muito os alegrava.
Nos Açores a cultura da vinha esteve longe de adquirir, no início, a mesma
pujança que teve na Madeira ou nas Canárias, dificuldades do meio impediram que
em algumas das ilhas se produzisse vinho de qualidade com as cepas para aí levadas
pelos madeirenses no século XV.
são inúmeras as queixas dos estrangeiros que visitaram o arquipélago no século
dezasseis sobre a fraca qualidade do vinho que aí encontraram. Linschoten refere, a
propósito, da Terceira a "grande abundância de vinho, mas muito fraco e que não pode
guardar-se nem ser transportado para fora. É, contudo, utilizado pela gente pobre, pois que os
mais ricos usam ordinariamente dos vinhos da Madeira e Canárias" 129 . Mesmo assim a
cultura continuou, adquirindo um lugar relevante na agricultura das ilhas de S.
Miguel, Pico e S. Jorge. Na primeira ilha a colheita de finais do século XVI poderia

129 . "História de Navegação", in Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira, I, 151.


atingir as cinco mil pipas, sendo maioritariamente da área de Ponta Delgada e Lagoa.
Em S. Jorge chegava a atingir as três mil pipas, enquanto no Pico rondava as mil e
novecentas pipas.
No século dezassete alargou-se o mercado consumidor do vinho açoriano,
nomeadamente no Brasil, gerando um importante hinterland em torno do porto da
Horta, um dos eixos do comércio açoriano. A partir daí a principal ilha produtora foi
a do Pico, que produziu cerca de trinta mil pipas em 1649, passando para sessenta mil
em 1658. O vinho ou vinagre de S. Jorge, Pico e Graciosa tinham escoamento fácil a
partir do porto. Depois nos séculos seguintes elas mantiveram a hegemonia no
mercado vitivinícola açoriano.
A alimentação dos insulares não se resumia apenas a estes dois produtos basilares
da economia, pois que a eles se poderiam juntar as leguminosas e as frutas, que
participaram na luta a favor da subsistência.
A fruticultura e horticultura definem-se como componentes importantes na
economia de subsistência, sendo referenciadas com grande insistência por Gaspar
Frutuoso em finais do século XVI. As leguminosas e frutas, para além do uso no
consumo diário, eram também valorizadas pelo provimento das naus que aportavam
com assiduidade aos portos insulares.
Esta última situação surge na Madeira e Açores mas também em Cabo Verde
(Santo Antão e Santiago) e S. Tomé. Alguns viajantes testemunham-no, podendo-se
citar para Santiago o caso de André Álvares de Ornelas que em 1583 ficou admirado
com a presença de fruteiras e de a terra ser abastada 130 . A mesma ideia é expressa
pelo piloto anónimo (1607) para S. Tomé, que refere a existência de "muitas quintas e
jardins com diversidade de fructas" 131 .
A alimentação dos insulares completava-se com o aproveitamento dos recursos
disponíveis no meio e que adquiriam valor alimentar, isto é a caça e pesca e os
derivados da actividade pecuária, como a carne, o queijo e o leite. A pesca terá sido
uma importante actividade das populações ribeirinhas, que usufruíam de uma
grande variedade de mariscos e peixe. Em Cabo Verde realça-se ainda a exploração
de sal e do âmbar: o primeiro recolhe-se na ilha com o mesmo nome, Maio e Boavista,
sendo usado para a importante indústria de salga do arquipélago e exportação à
costa africana, enquanto o segundo surge nas ilhas S. Nicolau, Brava e Sal. O sal, tal
como o anotam os cronistas, é espontâneo, sendo famosa a grande salina marinha da
ilha do Sal, que lhe deu o nome. Mas foi a de Maio que se afirmou como o principal
centro de apanha e comércio do sal.
O gado adquiriu nas ilhas, principalmente nos Açores e em Cabo Verde, uma
importância fundamental na economia. Isto resultou da dupla função. Ele para além
do uso como força de tracção nos transportes e na lavoura foi valorizado pela
disponibilidade de derivados para a alimentação (carne e queijo) e nas indústrias
artesanais (peles e sebo). Tendo em conta esta múltipla utilidade os municípios
intervieram no sentido de valorizar a componente pecuária na economia local. Em

130 . A.T.MOTA, Dois escritores quinhentistas de Cabo Verde, Lisboa, 1971, 27.
131 . Estabelecimentos e Resgates Portugueses (...), Lisboa, 1881, 16.
Vila Franca do Campo, Angra, Ponta Delgada e Funchal, as posturas surgem com
alguma assiduidade a atestar a importância do sector na vida local.
Em Cabo Verde, excepto nas ilhas de Santiago e Fogo, ao contrário do que sucedia
na Madeira e Açores, não existiu qualquer ligação entre a pecuária e a agricultura,
sendo diferente a forma de aproveitamento. Aqui há uma evidente especialização das
demais ilhas numa pecuária extensiva, assente em gado bovino e caprino. As ilhas
eram arrendadas a particulares, que por sua iniciativa se encarregava de explorar
estes proventos. No fundamental pretendia-se apenas explorar aquilo que dava
maior rentabilidade, isto é os couros e sebo. Por isso nas doações aludia-se quase
sempre à tributação destes e muito raramente da carne. Todavia dela se servia, sob a
forma de chacina para fornecer as armadas e conduzir ao reino e à ilha da Madeira.
Este foi um produto mais a activar as trocas externas da ilha, a partir de meados do
século XVI.
A carne salgada, sob a forma de chacina, foi por muito tempo uma importante
fonte de riqueza destas ilhas, servindo para abastecer as naus e a saída com destino
ao Brasil, a Madeira e reino. Mais importante do que isso eram as peles e o sebo
foram também uma importante fonte de rendimento, activadoras das trocas com os
portos europeus, a partir de Santiago. Numa relação dos jesuítas (1603-1604) é
testemunhada a riqueza do arquipélago cabo-verdiano, dizendo-se que "há grande
cópia de criação de gado" e que as ilhas estavam "todas habitadas de caçadores que daqui
com muita courama se levam para diversas partes" 132 .
Um facto de particular significado foi a criação, nomeadamente na ilha de
Santiago, de gado equídeo para exportação à costa africana. Cadamosto, Valentim
Fernandes e Duarte Pacheco Pereira atestam a importância do cavalo no quotidiano
das populações africanas, por questão de honra e ostentação, o que foi motivo para os
cabo-verdianos conseguirem uma nova contrapartida para as suas relações
comerciais com esta região. Com um cavalo podia-se adquirir em troca até 14
escravos. Todavia nos princípios do século dezasseis a paulatina desvalorização do
escravo nesta troca por escravos levou à diminuição da sua importância na economia
cabo-verdiana.

OS PRODUTOS DE EXPORTAÇÄO

Os produtos anteriormente citados surgem como uma necessidade emergente da


dieta alimentar dos colonos europeus ou das disponibilidades das áreas de fixação.
Outros há que aparecem por motivos diferente e que acabam por adquirir uma
importância desusada na economia insular. Estes são os produtos que designamos de
coloniais, porque impostos pela Europa com a finalidade de suprir as carências do
mercado europeu.
Foi a Europa que os valorizou e moldou de acordo com as necessidades
comerciais, distribuindo-os pelas áreas adequadas e assegurando os meios
necessários ao seu cultivo, escoamento e comércio. Nestas circunstâncias surgem a

132 . Pe. Fernão GUERREIRO, Relação anual das coisas que fizeram os padres da companhia de Jesus..., T.I., livro IV, Coimbra, 1930, 401.
cana-de-açúcar e o pastel.Os incentivos da coroa e município, aliados à elevada
valorização pelos agentes europeus, actuaram como mecanismos propiciadores do
desenvolvimento das culturas.

A CANA-DE-AÇÚCAR

A cana-de-açúcar, pelo alto valor económico no mercado europeu-mediterrânico,


foi um dos primeiros e principais produtos que a Europa legou e definiu para as
novas áreas de ocupação no Atlântico. O percurso iniciou-se na Madeira, alargando-
se depois às restantes ilhas e continente americano. Nesta primeira experiência além-
Europa a cana sacarina evidenciou as possibilidades de desenvolvimento fora do
habitat mediterrânico. Tal evidência catalisou os interesses do capital nacional e
estrangeiro, que apostou no crescimento da cultura e comércio. Se nos primeiros anos
de vida no solo insular a cana sacarina se apresentava como subsidiária, a partir de
meados do século XV já aparecia como o produto dominante, situação que perdurou
na primeira metade do século seguinte.
No começo a cultura foi alvo de mil cuidados. Era a coqueluche das plantas que
acompanharam os primeiros colonos na diáspora atlântica. Esta realidade está
evidenciada na permanente intervenção da coroa, do senhorio e município nas fases
de cultivo, transformação e comércio. Nunca uma cultura e produto final foram alvo
de tão apertada regulamentação e vigilância. Esta luta materializa-se na defesa e
manutenção da qualidade da colheita, no que foi acompanhada pelos demais, como o
vinho e pastel. A todos definiam-se, por regimentos específicos, as tarefas de cultivo,
cuidado e laboração final do produto. Nos séculos XV a XVII a intervenção das
autoridades resultava apenas da necessidade de garantir ao açúcar da ilha uma
posição dominante no mercado interno e a situação concorrencial nos mercados
nórdicos e mediterrânico. A partir do século XVI a concorrência do açúcar brasileiro
foi, por algum tempo, o motivo de discórdia entre os vários interesses em jogo. Por
isso o incremento da cultura, a partir da década de quarenta do século XVII, provoca
uma politica proteccionista, com limitações à entrada do açúcar brasileiro, incentivos
ao restabelecimento dos engenhos e a redução, a partir de 1688, dos direitos de um
quinto para um oitavo.
A cana sacarina, usufruindo do apoio do senhorio e coroa, conquistou o espaço
arroteado das searas e expandiu-se a todo o solo arável da vertente meridional. A
capitania do Funchal, ocupando a quase totalidade da área, agregava, por isso
mesmo, no seu perímetro as melhores terras para a cultura do açúcar. Entretanto à de
Machico restava apenas uma ínfima parcela e todo um vasto espaço arborizado,
necessário à construção e actividade dos engenhos. Em 1494 do açúcar produzido na
ilha apenas 20% era proveniente de Machico sendo todo o demais do Funchal: a
relação entre estes valores para o período de 1494 e 1537 oscilava entre os 5:1 (1494) e
os 3:1 (1521-1524).
Na capitania do Funchal existiam áreas distintas para o cultivo de canaviais. O
estimo de 1494 refere aí duas áreas de canaviais: o Funchal e arredores e o restante
espaço a partir de Campanário, conhecido como partes do Fundo. A última área era a
de maior colheita, surgindo com 74% das arrobas dos estimos de 1494. Passados vinte
e seis anos, a situação evolui de modo favorável para o Funchal que apresentava 33%.
O período de plena afirmação desta cultura situa-se entre 1450 e 1521. Durante
esses anos os canaviais dominaram o panorama agrícola madeirense e o açúcar foi o
principal produto de troca com o mercado externo. O ritmo de crescimento desta
cultura é quebrado apenas nos anos de 1497-1499, com uma crise momentânea na
comercialização. A partir de 1516 os efeitos da concorrência fizeram-se sentir na ilha e
conduziram a um paulatino abandono dos canaviais.
A cultura persistiu nos séculos XVII e XVIII, ainda que com reduzida dimensão.
Neste momento a capitania do Funchal continua a ser a principal área produtora,
fundamentalmente Câmara de Lobos, Calheta, Estreito da Calheta e Canhas. Em 1687
Hans Sloane 133 é peremptório: "Esta ilha é muito fértil tendo antigamente produzido
grandes quantidades de açúcar aqui cultivado e de excelente qualidade. O que agora
possuem é bom, mas muito escasso, devido à existência de muitas plantações
açucareiras nas Índias Ocidentais (...). Assim, embora consiga um produto de maior
cotação, acham que lhes é muito proveitoso dedicarem-se aos vinhos, pelo que
apenas produzem o açúcar indispensável aos gastos caseiros e ao fabrico de doces,
indo ainda compra-lo ao Brasil, às suas próprias plantações." Data da segunda
metade do século XVIII o abandono desta cultura pelo seu pouco interesse comercial,
resultante da falta de capacidade de competir com o brasileiro e antilhano.

A ESTRUTURA FUNDIÁRIA

A presença desta cultura no solo madeirense conduziu a uma reestruturação do


regime fundiário de acordo com as suas especificidades. Para a plena afirmação dos
canaviais foram necessárias algumas condições, para além das oferecidas pelo solo: a
água para o regadio e accionar os engenhos; a madeira para construir os engenhos e a
lenha para manter em funcionamento as caldeiras.
Foi de acordo com a presença destes factores que a cana se expandiu na ilha.
Mesmo assim convém esclarecer que os canaviais madeirenses nunca atingiram a
dimensão dos brasileiros e dos de são Tomé. Aqui, ao contrário do que sucedeu do
outro lado do Atlântico, a cultura só podia ser feita de modo intensivo em poios
talhados de forma engenhosa pelo madeirense.
De acordo com o estimo de 1494 poderá dizer-se que o sistema fundiário em torno
do açúcar evidenciou-se pela dominância da pequena propriedade: os proprietários
com mais de 1000 arrobas representam apenas 22 enquanto para o período de 1509 a
1536 surgem 44, sendo 15 com valores superiores a 2000 arrobas. Para o ano de 1494 é
possível saber qual a importância assumida pelos canaviais, uma vez que o estimo
era feito individualmente por cada: para um total de 209 proprietários temos 431
canaviais.

133 . A. Aragão, ob.cit., 158.


É comum dizer-se que os canaviais beneficiavam directamente amplas camadas da
população madeirense, o que parece não corresponder à verdade, pois a tendência
para o excessivo parcelamento da propriedade não diminuiu a capacidade de
afirmação dos grandes proprietários, que se serviam de arrendatários ou colonos: em
1494 dos 209 proprietários de canaviais surgem apenas 21%. Se tivermos em conta
este número de proprietários e o daqueles que surge no período de 1509 a 1536 (263
proprietários) seremos forçados admitir que a cultura beneficiava apenas um
reduzido número de madeirenses. Os demais usufruíam de benefícios indirectos,
mercê do comprometimento com as diversas tarefas ligadas à cultura, transporte,
transformação e comércio. No primeiro grupo, de beneficiários directos, incluíam-se
mercadores nacionais e estrangeiros e a aristocracia local comprometida com a
administração régia e senhorial: ambos controlavam, no século XVI, 51% da colheita,
situando-se no grupo de proprietários com mais de 1000 arrobas.
Para os séculos seguintes a grande propriedade cede lugar à pequena parcela de
canaviais. No ano de 1600 a maioria dos proprietários (isto é 89%) produz entre 5 e 50
arrobas e para o período de 1689 a 1705 a medida padrão para estabelecer a receita do
oitavo é a libra. Este tipo de análise só nos foi possível para a Madeira, onde
dispomos de alguns livros de registo dos direitos lançados sobre o açúcar arrecadado,
faltando idêntica informação para os Açores e são Tomé.
A cana-de-açúcar foi, de todas as culturas transplantadas para o espaço atlântico,
aquela que maiores cuidados requeriam num período limitado de tempo. O ciclo
vegetativo definia um acompanhamento constante ao longo do ano: plantar, mondar,
esfolhar, combate às pragas e efeitos nefastos dos animais, cortar e, depois, conduzir
ao engenho onde se moía e extraia o suco para o fabrico do açúcar. Enquanto as
tarefas relacionadas com a cultura se realizavam de forma lenta ao longo do ano, a
parte relacionada com a safra do engenho era uma actividade intensiva que deveria
ser executada num curto período. O engenho laborava dia e noite, desmultiplicando-
se as tarefas entre a casa da moenda, fornalhas e purga. Tudo isto deveria ser seguido
e realizar-se num prazo de 72 horas, pois caso contrário a cana e o suco entravam em
fermentação. Perante tal facto tornava-se justificável a presença de numerosa mão-de-
obra que só poderia ser recrutada entre os escravos. O fenómeno foi descrito, cerca de
1530, por Giulio Landi da seguinte forma:
Fabrica-se o açúcar desta maneira: apanham primeiramente as canas e estendem-nas
por ordem nos sulcos. Depois, cobertas de terra, vão-nas regando amiudadas vezes, de modo
que a terra sobre os sulcos não se torne seca, mas se mantenha sempre húmida. Daí que, pela
força do sol, cada nó produz a sua cana que cresce a pouco e pouco cerca de quatro braças e
sucedia assim porque o terreno aplicado então ao cultivo, tinha mais força de produção (...).
Assim amadurecem ao fim de dois anos e, quando maduras, cortam-nas na Primavera, rente
ao pé. Os pés, germinando de novo, produzem outras canas para o ano seguinte, as quais não
crescem tão altas, mas com cerca de menos uma braça e, ao fim de um ano, ficam maduras.
Cortadas estas segundas, arrancam totalmente as plantas para depois, no devido tempo,
reporem outras canas como se disse. Quando maduras, chegam muitas vezes a ser danificadas
pelos ratos. Por isso os escravos empregam muita diligência em apanhar e matar estes ratos
(...). Os lugares onde com enorme actividade e habilidade se fabrica o açúcar estão em grandes
herdades, e o processo é o seguinte: primeiramente, depois que as canas cortadas foram levadas
para os lugares acima referidos, puem-nas debaixo de uma mó movida a água, a qual,
triturando e esmagando as canas, extrai-lhe todo o suco. Aqui há cinco vasos postos por
ordem, para cada um dos quais o suco saído das canas passa um certo tempo em ebulição,
depois, passando para os outros vasos, com fogo brando, dão-lhe com habilidade a cozedura, de
modo que chegue a espessura tal que, posto depois em formas de barro, possa endurecer. A
espuma que se forma ao cozer o açúcar deita-se em barricas, excepto a que sai da primeira
cozedura, porque esta se deita fora; mas a outra, que se conserva, é muito semelhante ao
mel" 134 .

Na moenda da cana utilizaram-se vários meios (alçapremas, lagares e trapiches de


besta), de que teria resultado na Madeira o aparecimento do primeiro engenho de
água, patenteado em 1452 por Diogo de Teive. Todavia a processo não se resumiu
apenas a este tipo de maquinismo, uma vez que nas áreas onde não era possível
dispor da força motriz da água se fez uso da força animal ou humana. Estes eram
conhecidos como trapiches ou almanjaras. Para S. Tomé o Piloto Anónimo refere o
uso de "os braços dos negros e ainda mesmo cavalos". Deste sistema sabe-se apenas do
uso nos primórdios da exploração da cana-de-açúcar na Madeira, sendo pouco
provável a continuidade após a experiência do engenho de água de Diogo de Teive,
tendo em conta a disponibilidade de cursos de água e do possível aproveitamento
por meio das levadas.
Na Madeira os factores geo-hidrográficos foram propícios à generalização dos
engenhos de água, em que os madeirenses se mostraram exímios criadores. Também
em S. Tomé estavam criadas as condições para a afirmação da cultura. Enquanto a
primeira desfrutava de inúmeros cursos de água e de uma vasta área de floresta,
disponibilizando lenha para as fornalhas e madeira de pau-branco para os eixos do
engenho, em S. Tomé contava-se, para além do parque florestal, com o fácil acesso
aos mercados fornecedores da mão-de-obra escrava.
Toda a actividade sócio-económica gerada pelo açúcar foi dominada pelo
engenho, mas isto não significava que a existência de canaviais resultasse a presença
próxima de um engenho. Na Madeira, a exemplo do Brasil, foram inúmeros os
proprietários incapazes de dispor de meios financeiros para montar semelhante
estrutura industrial. No estimo da produção da capitania do Funchal para o ano de
1494 são referenciados apenas 14 engenhos para um total de 209 usufrutuários e 431
canaviais 135 . Todavia em documento de 1493 são referenciados 80 mestres de açúcar.
Acresce, ainda, que Gaspar Frutuoso, em finais do século XVI, dá conta de 34
engenhos. No século imediato o número de engenhos em laboração é cada vez mais
reduzido pelo que a aposta na cultura tornou necessário o reparo dos que estavam
desactivados por meio de empréstimos a isenção de pagamento do quinto por cinco
anos. Os poucos engenhos em funcionamento estavam sedeados em Câmara de
Lobos e Funchal, o que implicava redobradas dificuldades para a maioria dos

134 . "Descrição da ilha da Madeira", in A Madeira vista por estrangeiros, Funchal, 1981, 84-85.
135 . V. Rau e Jorge Macedo, O Açúcar da Madeira nos fins do século XV. Problemas e produção e comércio, Funchal, 1962.
lavradores da Calheta, Ponta de Sol e Ribeira Brava. Mesmo assim são escassos os
engenhos e, por vezes, insuficientes para os canaviais cultivados. Note-se que a partir
de meados do século XVIII só persistiu apenas um engenho em laboração na Ribeira
dos Socorridos.
O preço de montagem de semelhante estrutura industrial não estava ao nível da
bolsa de todos os proprietários. De acordo com o estimo feito para o engenho de
António Teixeira no Porto da Cruz em 1535 esta benfeitoria estava avaliada em
duzentos mil reais 136 . Noutro documento de 1547 refere-se que os canaviais, engenho
e sua água de servidão orçavam os 461.000 reais 137 . Mas em 1600 João Berte de
Almeida vendeu a Pedro Gonçalves da Câmara, no Funchal, um engenho pelo valor
de 700.000 reais 138 .
Criadas as condições ao nível interno, por meio do incentivo ao investimento de
capitais estrangeiros na cultura da cana e comércio dos derivados, do apoio do
senhorio, coroa e administração, a cana estava apta para prosperar e se afirmar, ainda
que só por algum tempo, como o produto dominante da economia madeirense.
O incentivo externo provocado pelos mercados nórdico e mediterrânico
condicionou o processo expansionista nesta e nas demais áreas atlânticas. A esta
aposta, acompanhada do incessante pedido do mercado externo, sucedeu um período
de crise resultante não só da concorrência de novos mercados produtores, mas acima
de tudo de factores internos, como a carência de adubagem dos terrenos, a desafeiçäo
do solo à cultura, as mudanças climáticas, que entretanto se sucederam, e, por fim, o
aparecimento do bicho da cana.
A primeira metade do século dezasseis é definida como o momento de apogeu da
cultura açucareira insular e pelo avolumar das dificuldades que entravaram a
promoção em algumas áreas como a Madeira onde o cultivo era oneroso e os níveis
de produtividade desciam em flecha. Nesta época as ilhas de Gran Canária, La
Palma, Tenerife e S. Tomé estavam melhor posicionadas para produzir açúcar a
preços mais competitivos. Isto sucedeu na década de vinte do século dezasseis e
avançou à medida que os novos mercados produtores de açúcar atingiam o máximo
de produção.
Mais tarde, com o controlo holandês do nordeste brasileiro, a cultura foi
reabilitada como forma de responder à sua procura na Europa e pela necessidade
resultante das indústrias de conserva e casquinha. Até 1640 o movimento
descendente havia-se agravado com a presença, cada vez mais assídua de açúcar
brasileiro no porto do Funchal.
Em 1616, para garantir o escoamento da produção madeirense, fora determinado
que primeiro se vendesse o açúcar local e que à saída se fizesse uma distribuição
equitativa de ambos os açúcares. Mas a partir desta data, com o domínio holandês
das terras brasileiras a cultura renasceu na ilha. Em 1648 o número de engenhos
existentes era insuficiente para dar vazão ao açúcar produzido. No entanto, tratou-se

136. Alberto Artur, "Apontamentos Históricos de Machico", in Das Artes e Da História da Madeira, vol. I, 8-9.
137. Arquivo regional da Madeira, Capelas, Cxa. 8, nº 9, Inventário de bens de João de ornelas e Vasconcelos de 19 de Janeiro de 1547.
138. Arquivo Regional da Madeira, Misericórdia do Funchal, nº 40 fls. 49-58, 11 de Setembro de 1600.
de uma recuperação passageira uma vez que na década seguinte o reaparecimento do
brasileiro no porto do Funchal trouxe de volta a anterior conjuntura.
O açúcar madeirense estava, mais uma vez, irremediavelmente perdido, mercê da
concorrência. Em 1658 ainda se procurou apoiar o seu cultivo ao serem reduzidos os
direitos sobre a cultura para um oitavo, mas a crise era inevitável.
O princípio fundamental que regeu o movimento de circulação do açúcar foi a
necessidade de suprir as carências de alguns mercados europeus. A conjuntura era
favorável ao aparecimento de novas áreas. O consumo ia em constante crescimento e
as rotas de canalização do produto oriental eram cada vez mais difíceis. Foi esta
conjuntura que impôs a nova cultura no espaço atlântico e ditou as regras do seu
mercado. Deste modo o consumo interno de açúcar é uma exigência tardia, gerada
por novos hábitos alimentares ou das contingências do mercado do produto. Neste
último caso assume importância o dispêndio de açúcar na industria de conservas e
casca. Parte significativa do açúcar madeirense e, mais tarde, do Brasil era usado
nisso.
O fabrico do açúcar começava em Março mas só em Agosto havia dele disponível
para distribuir às conserveiras. A partir daqui eram mais trinta e poucos dias de
árdua tarefa até que o produto estivesse disponível para exportação.
Um dos principais factores de promoção da indústria das conservas foi a
importância do Funchal como porto de escala e abastecimento para a navegação
atlântica. Muitas embarcações aportavam aí com o intuito de se fornecerem de
conservas de citrinos. Mas, sem dúvida, o consumidor preferencial das conservas e
doçaria madeirense foi, o início, a casa real e, depois, as cidades do Norte da Europa:
Rochela, S.Malo Bordéus, Amesterdão. Hamburgo.
No fabrico das conservas e doces merecem a nossa atenção as freiras do convento
de Santa Clara, da Encarnação e Mercês. Aliás, em 1687 Hans Sloane referia-se de
forma elogiosa aos doces e compotas que comeu em Santa Clara, rematando que
"nunca vi coisas tão boas"
Os confeitos, alfenim e casquinha da Madeira tiveram fama em toda a Europa,
pois por muito tempo foram a delícia das cortes europeias e o principal presente:
Vasco da Gama presenteou o xeque de Moçambique com conservas da ilha, enquanto
Simão Gonçalves da Câmara fez o mesmo ao papa Leão X. É de referir que o
comércio da casquinha foi um dos animadores do comércio da ilha na segunda
metade do século XVII.
A conjuntura económica de finais do século dezanove trouxe a cultura de regresso
à Madeira, como meio para reabilitar a economia que se encontrava profundamente
debilitada com a crise do comércio e produção do vinho. Esta situação, que se
manteve até à actualidade, não veio atribuir ao produto a mesma pujança económica
de outrora.

A EXPANSÄO DA Cana-de-açúcar
Como já se disse, as socas de cana madeirense foram levadas para os Açores pelos
primitivos cabouqueiros, promovendo-se o cultivo em Santa Maria, S. Miguel,
Terceira e Faial. Aqui a cultura foi tentada várias vezes, mas sem surtir os efeitos
desejados. As condições geofísicas aliadas à inexistência ou reduzida dimensão dos
capitais estrangeiros travaram o seu desenvolvimento.
Foram inúmeras as regalias e privilégios para o seu lançamento nas ilhas
açorianas, que mesmo assim não conseguiram suplantar as dificuldades do meio. No
primeiro quartel do século dezasseis a cultura adquiriu alguma importância em S.
Miguel, Santa Maria e Faial. Neste momento a produção representava um terço da
que se colhia nos canaviais madeirenses. Fala-se, mais tarde, de uma nova fase de
retorno da cultura a partir da década de quarenta, mas faltam-nos dados seguros
para avaliar a dimensão que terá assumido. Certamente a tendência foi, mais uma
vez, coarctada pela aposta definitiva na cultura do pastel e de cereais, pois o açúcar
começava a surgir de forma mais vantajosa no Brasil.
Aos arquipélagos de Cabo Verde e S. Tomé os canaviais chegaram muito mais
tarde e como noutras áreas a experiência madeirense foi importante. No primeiro só
nas ilhas de Santiago e S. Nicolau, mas sem nunca ter sido uma cultura rentável e
concorrencial do açúcar madeirense. As condições morfológicas e orográficas foram-
lhe adversas. A introdução deverá ter sido feita, no início do povoamento na década
de sessenta, não obstante a primeira referência datar de 1490. Por outro lado o açúcar
produzido no arquipélago, a exemplo do que sucederá em S. Tomé, não apresentava
a qualidade do madeirense, pois como nos refere Gaspar Frutuoso "nada deste chega ao
da ilha da Madeira" 139 . Apenas é conhecido o engenho do morgado de Fernão Fiel de
Lugo, o qual nas suas fazendas de Trindade e Santa Cruz cultivava canaviais, tendo
ao seu serviço um escravo Sebastião, como mestre de engenho. Também o morgado,
fundado em 1531 por André Rodrigues, com o nome de "o engenho", deverá ser
indicativo da presença doutro engenho de açúcar. Mais tarde, no século dezanove, a
cultura estava de volta ao arquipélago, sendo utilizada, principalmente, para o
fabrico de aguardente que se consumia no arquipélago e exportava para os Rios de
Guiné.
Diferente foi o que sucedeu em S. Tomé onde a abundância de águas e lenhas
associada às condições do solo foram de molde a propiciar os meios indispensáveis
ao cultivo da cana. O açúcar aí produzido tornou-se, por isso mesmo, concorrencial
do madeirense, embora sem nunca atingir a sua qualidade. Em Lisboa os confeiteiros
reclamavam com frequência contra a má qualidade do açúcar de S. Tomé, havendo
mesmo quem o refinasse segunda vez, o que foi proibido pelo município devido à
despesa elevada de lenhas.
Em S. Tomé os canaviais estendiam-se pelo norte e nordeste da ilha, fazendo
lembrar, segundo um testemunho de 1580, os campos alentejanos 140 . Um dos factos
que contribuiu para que ele se tornasse concorrencial do madeirense foi a elevada

139 . Ob. cit., livro primeiro, 180.


140 . Isabel Castro HENRIQUES, "O ciclo do açúcar em S. Tomé nos séculos XV e XVI", in Portugal no Mundo, I, Lisboa, 1989, 271.
produtividade. Segundo Jerónimo Munzer 141 ela seria três vezes superior à
madeirense. No começo só se produzia melaço, que depois era levado a Lisboa para
ser refinado, mas a partir de 1506 a ilha passou também a fazer açúcar branco, tendo-
se para o efeito construído o primeiro engenho 142 .
O Piloto Anónimo dá-nos conta também do modo como se processava a cultura na
ilha de S. Tomé. Aqui as canas levavam apenas cinco meses para amadurecerem, pelo
que, sendo "plantadas no mês de Janeiro, cortam-nas em princípios de Junho". Ao
contrário da Madeira, que a cultura era sazonal, em S.Tomé podia-se plantar e cortar
cana todos os meses, do que resultava uma maior distribuição das tarefas ao longo do
ano. A actividade dos engenhos é também referida pelo autor:
"Existem ali cerca de 60 engenhos, já construídos, onde corre água, com a qual moem a
cana e a pisam. Deitam o suco em caldeiras enormes, e depois de fervido lançam-no em formas,
nas quais fazem pães de açúcar de 15 ou 20 libras, purificando-o com cinza, do mesmo modo
que nós fazemos com a argila peneirada. Em muitos lugares da ilha onde não há água,
empregam neste trabalho os braços dos negros, e também escravos" 143 .

Maior era a dificuldade no enxugar os pães de açúcar, devido à elevada humidade


do ar. Por isso houve a necessidade de definir um método capaz de o conseguir em
pouco tempo pouco:
" Fazem um coberto alto de tábuas (...) todo fechado por cima e dos lados, sem janela
alguma, somente com a abertura da porta; levantam dentro dele um estrado da altura de 6 pés,
com traves distantes umas dos outros 4 pés, e sobre elas vão estendendo tábuas, nas quais
colocam os pães de açúcar; debaixo do dito estrado estão alguns madeiros secos, de árvores
grossas, os quais, lançando-lhes fogo, não fazem chama nem fumo, mas vão-se consumindo do
mesmo modo que o carvão. E deste modo enxugam os açúcares, como numa estufa,
conservando-os depois em lugares todos fechados com tábuas, de modo que o ar não entre".

A mais antiga referência aos engenhos de água na ilha data de 1517, altura em que
a produção da ilha rondaria as cem mil arrobas. Estes valores provam que em pouco
tempo S. Tomé suplantou a Madeira, que produzia noventa e três mil arrobas e
nunca haveria de ultrapassar a barreira dos cento e quarenta e quatro mil,
conseguidas em 1510. Em S. Tomé os canaviais produziam muito mais que os
madeirenses de modo que em 1528 a safra ultrapassava as cento e vinte mil para
alcançar nas décadas de quarenta a sessenta as cento e cinquenta mil. Neste período o
número de engenhos terá chegado aos quatrocentos.
Precisamente em 1529, ano em que coroa estipulou os necessários incentivos à
construção de engenhos, surgem as primeiras queixas dos madeirenses contra a
concorrência do açúcar säotomense. Para isso terá contribuído o facto dele ser
vendido em Lisboa como sendo da Madeira, para o fabrico de conservas.
A partir da década de sessenta começaram a surgir as primeiras dificuldades na
safra açucareira de S. Tomé. Primeiro o assalto dos corsários franceses em 1567 e
141. Monumenta Missionária Africana, IV, 1954, nº 6, 16-20.
142. O Manuscrito de Valentim Fernandes, Lisboa, 1940, 128.
143. Navegação de Lisboa à ilha de São Tomé escrita por um piloto anónimo, Lisboa, 1989, 25-29.
depois a revolta dos angolares em 1574 atingiram particularmente os engenhos.
Passados alguns anos redobraram as dificuldades com os assaltos dos holandeses
(1595-1596 e 1641) e a revolta dos Mocambos (1595-1596). A isto se poderá juntar a
presença do bicho da cana (1621) e, a partir de 1635, a falta de escravos para a safra
devido à presença dos corsários holandeses nos principais mercados negreiros. Note-
se que só em 1641, quando da ocupação holandesa, foram abandonados mais de
sessenta engenhos, sendo os restantes queimados por estes ou pelos angolares. Desta
forma os invasores impediam a sua concorrência com o pernambucano, que
pretendiam controlar. A conjuntura teve reflexos evidentes na safra da segunda
metade do século, conduzindo a cultura para um estado de crise de que nunca se
reabilitou.
Se nos preocuparmos em comparar o ciclo evolutivo da cultura da cana nos
diversos espaços do Atlântico onde foi cultivada concluiremos pela existência de
afinidades entre a sua afirmação numa área e a decadência noutras. Assim sucedeu
na Madeira com S.Tomé e desta para com o Brasil. O cultivo dos canaviais surge em
S. Tomé em finais do século XV, isto é no momento de apogeu da produção
madeirense, que atinge em 1510 o valor mais elevado, entrando depois num
movimento descendente. Esta fase depressionária, que se acentua a partir de 1525,
coincide com o momento de afirmação do açúcar säotomense. É precisamente nas
décadas decorrentes até meados do século que se atingem os valores mais elevados.
A partir do último quartel do século dezasseis foi a concorrência desenfreada do
açúcar brasileiro que definiu uma acentuada quebra no período de 1595 a 1600. A
esta conjuntura deverá juntar-se a revolta dos escravos (1595), agravada pela
destruição dos engenhos provocada pelo saque holandês. Na verdade este momento
coincide com a plena afirmação do açúcar brasileiro, cuja colheita continuava a subir
em flecha, nas décadas posteriores.
O domínio holandês de Recife, ao contrário do que habitualmente se pensa, não
provocou uma quebra deste ritmo mas apenas quebras pontuais, que se reflectiram
nos valores dos anos de 1618 e 1645. Este período, de menor oferta do açúcar
brasileiro nos portos peninsulares, não deverá ser entendido como uma quebra da
produção mas apenas um desvio dos circuitos comerciais. Esta conjuntura coincide
com o retorno da cultura na Madeira e em S. Tomé, atingindo-se na última, entre
1641-1645 as cem mil arrobas. Tal ritmo de reabilitação da economia açucareira
insular teve que enfrentar as dificuldades levantadas pelos holandeses, interessados
em manter o exclusivo do açúcar pernambucano.
A partir daí o arquipélago de são Tomé ficou a depender apenas do comércio de
escravos e da pouca colheita de mandioca e milho. Mas a crise do comércio de
escravos a partir de princípios do século dezanove fez com que se operasse uma
mudança radical na economia. Surgiram, então, novas culturas (cacau, café, gengibre
e azeite de palma) que proporcionaram uma nova aposta agrícola.

O PASTEL
O pastel aparece na economia insular em condições idênticas ao açúcar. Foi uma
cultura introduzida pelos europeus para satisfazer as carências do mercado de
têxteis. Até ao século XVII com a introdução do anil na Europa ele foi a principal
planta da tinturaria europeia, donde se extraía as cores preta e azul. A par disso a
disponibilidade de outras plantas tintureiras, como a urzela (donde se tirava um tom
castanho-avermelhado) e o sangue-de-drago, levaram ao aparecimento de italianos e
flamengos, interessados no comércio, que por sua vez nos legaram a nova planta
tintureira: o pastel.
O pastel foi primeiro cultivado na Madeira, e depois nos Açores e nas Canárias.
Mas só no arquipélago açoriano, nas ilhas de S. Miguel, Terceira, S. Jorge e Faial,
atingiu maior dimensão económica. A toponímia regista-se a sua presença e define os
espaços do seu cultivo.
Na Madeira refere-se a cultura e comércio no século XV. Os italianos teriam sido
os principais interessados no comércio o que os levou a considerarem a Madeira
como a ilha do pastel. No século XVI está documentada a sua saída para Flandres. Mas
os dados documentais são escassas as referências denunciadoras da sua presença, o
que poderá resultar da secundarizaçäo na economia madeirense em favor de outros
produtos, como o vinho e o açúcar, dominantes e granjeadores de elevados
proventos.
Foi no arquipélago açoriano que o pastel alcançou um lugar de grande relevo. A
sua importância poderá ser comparável à que assumiu o açúcar na Madeira, Canárias
e S. Tomé. Foi a cultura do pastel que activou as trocas com o exterior e despertou o
interesse dos mercadores italianos, flamengos e ingleses. A sua promoção nas ilhas
resultou da presença dos flamengos, mas foram os ingleses nos séculos dezasseis e
dezassete que tiveram dele consumo preferencial. Eles participaram no povoamento
da Terceira e do Faial. Todavia foi na ilha de S. Miguel que se produziu a maior parte
do pastel exportado dos Açores, sendo ele responsável pelo aparecimento de várias
fortunas, como sucedeu com Jorge Botelho e Francisco Arruda da Costa.
A exemplo do sucedido com o açúcar na Madeira, a coroa concedeu vários
incentivos para a promoção da cultura, que com a incessante procura por parte dos
mercados nórdicos, fizeram avançar rapidamente o seu cultivo. Em 1589 Linschoten
referia que "o negócio mais frequente destas ilhas é o pastel" de que os camponeses faziam
o " principal mister", sendo o comércio "o principal proveito dos insulares 144 ", enquanto
em 1592 o governador de S. Miguel atribuía a falta de pão à domínio quase exclusivo
do solo pelo cultivo do pastel 145 .
Os açorianos também procediam à preparação do pastel para exportação. As
folhas eram apanhadas e depois moídas num engenho para se retirar todo o sumo.
Depois faziam-se bolos redondos que eram vendidos aos mercadores. Eram estes que
procediam à granagem das referidas bolas em tanques de água. A operação era
morosa e requeria a presença diária dos granadores, cujas funções eram fiscalizadas
pelos lealdadores. Os regimentos régios e municipais davam maior atenção a esta

144 . Ob. cit., 152-154.


145 . Arquivo dos Açores, II, 130.
fase. Gaspar Frutuoso legou-nos um testemunho precioso sobre o cultivo e laboração
do produto:
"É o pastel um quarto género, de usam os tintureiros para dar cor azul, sobre a qual se dá
melhor a cor preta;... O qual apanhado em folha, se moe nos engenhos que disse, e está em um
tabuleiro a massa dele até o outro dia, escorrendo algum sumo, e então são obrigados os
lavradores a o embolarem, fazendo uns bolos redondos, cada um quanto podem compreender
ambas as mãos no meio, e, depois de embolado, se põe a enxugar em uns caniços ao sol e ao
vento, e seco se guarda em casa até o mês de Janeiro, Fevereiro e Março, em os quais o pesam e
recebem os mercadores e recolhem em suas tulhas ladilhadas e rebocadas, onde quebrando
aqueles bolos, a cada dez quintais, pouco mais ou menos, botam uma pipa de água, com que o
trazem trinta dias ganhando grande quentura e virando-o cada dia. Passados os trinta dias
por algum espaço de tempo, o viram cada dois dias, e depois o vem a virar o grandota, que o
grana dois dias na semana até se enxugar, e depois o vendem os da terra aos de fora ou aos da
mesma terra... 146 ".
A morosidade das tarefas de fabrico, de que dependia a qualidade do pastel,
levou a coroa estabelecera em 1536 pelo "regimento sobre o beneficiar do pastel e enleicäo
dos lealdadores" as normas adequadas à sua cultura e fabrico do produto final de
exportação.
A urzela foi também um importante recurso das ilhas que teve idêntico
aproveitamento na indústria tintureira. Esta é uma planta indígena das ilhas dos
Açores, Canárias, Cabo Verde e Madeira. Todavia a sua importância na economia
insular só será relevante a partir do século dezoito. Esta planta surgia na rocha
íngreme do litoral, tornando a operação de apanha um trabalho arriscado.

O ALGODÃO, O LINHO E OS PANOS

Nos arquipélagos além do Bojador ignora-se a presença do pastel, não obstante a


importância que aí assumiu a cultura do algodão e o consequente fabrico de panos. O
clima, o desconhecimento das técnicas de tinturaria, demonstrada na entrega da
exploração da urzela aos castelhanos João e Pêro de Lugo, favoreceram esta
conjuntura. Mas aqui a cultura do algodão foi imposta pelos mercados costeiros
africanos, carentes de fio para a indústria têxtil.
De acordo com Valentim Fernandes a cultura do algodão incidia sobre as ilhas
Santiago, Maio e Fogo 147 . Todavia foi nesta última ilha que ele ganhou maior
importância. Assim a coroa em 1513 oitocentos e noventa quintais de dízimo, o que
significa que estávamos perante uma importante produção, existindo, por isso
mesmo, um feitor do algodão. Até 1517 ele era exportado em bruto, depois de
reunido e limpo em Santiago, mas a partir daí os insulares passaram a fabricar panos
que depois enviavam para a costa da Guiné.

146 . M.O.R. GIL, O Porto de Ponta Delgada..., 90-100.


147 . Valentim FERNANDES, ob. cit., 118-121.
No decurso dos séculos XVI e XVII o algodão apresentou-se como primordial para
a economia cabo-verdiana, sendo o principal incentivo, ao lado do sal, para as trocas
comerciais com a costa africana, nomeadamente Casamansa e o rio de S. Domingos.
Na ilha do Fogo apostou-se forte na produção algodoeira mas era Santiago que o
comerciava, tal como o estipula o regimento do feitor do algodão de 1520 148 . Mas ele
foi também um dos mais importantes alvos da cobiça dos corsários. Ao nível da
economia cabo-verdiana ele funcionou muitas vezes como moeda nas trocas directas
no arquipélago e costa africana. Com ele compravam-se os escravos mas também os
panos e marfim.
Nos arquipélagos da Madeira e Açores sabe-se apenas que foi cultivado o linho,
do qual se fabricavam os panos mais comuns usados pela gente modesta, uma vez
que os tecidos de luxo eram importados do reino ou do estrangeiro. Mas foi em S.
Miguel, nomeadamente nos municípios da Ribeira Grande e Lagoa, que a cultura
teve maior incentivo, produzindo-se panos (de estopa, de guardanapos, toalhas de
mesa) para uso da terra e exportação para as ilhas vizinhas, enquanto as pedras de
linho podiam ser enviadas para o estrangeiro, nomeadamente Inglaterra.

APROVEITAMENTO DOS RECURSOS

A economia das ilhas não se resumiu apenas aos produtos trazidos pelos colonos
europeus, pois elas também dispunham de recursos marinhos e terrestres. Quanto ao
primeiro aspecto é necessário ter em conta que os insulares, pela forma de
assentamento ribeirinha, assumiram-se como exímios marinheiros e pescadores,
tendo, por isso mesmo, extraído do mar um grande número de recursos com valor
alimentar. A actividade piscatória nos principais portos e ancoradouros cativou a
atenção, pela abundância de peixe e mariscos.
A área marítima definida pela costa ocidental africana, entre o Cabo Aguer e a
entrada do Golfo da Guiné, era muito rica em peixe, sendo frequentada pelos
vizinhos da Madeira e das Canárias, bem como pelos pescadores algarvios e
andaluzes 149 . Todavia o balanço das capturas dos madeirenses e açorianos não foi
suficiente para colmatar a carência dos mercados, uma vez que havia necessidade de
importar peixe salgado ou fumado da Europa do norte. Em Cabo Verde para além da
pesca existiu a indústria do sal da ilha com o mesmo nome, Maio e Boavista,
consumido, preferencialmente, no mercado da costa da Guiné.
No solo das ilhas abundavam recursos com valor mercantil imediato que
mereceram também o interesse dos insulares. A urzela surgia com abundância nas
ilhas da Madeira, Porto Santo, Desertas, Selvagens, S. Jorge, Corvo, Flores, Santa
Maria, La Gomera e nas de Cabo Verde. Nas últimas a exploração foi concedida em
1468 a João e Pedro de Lugo, passando em 1527 para Vasco de Foios. Em 1513 ela foi

148 .ANTT, Leis e Regimentos de D. Manuel, fls. 121vº-126, 13 de Janeiro, publ. in História Geral de Cabo Verde. corpo documental, I, 297.
149 . António RUMEU DE ARMAS, "Pesquerias espanolas en Africa (siglos XV e XVI", in Anuário de Estudos Atlânticos, nº 23, 371.
arrendada em S. Nicolau e Santa Luzia por 55.500 reais 150 . Na primeira metade do
século dezanove teve grande incremento o comércio da urzela, que esteve entregue a
rendeiros estrangeiros, passando em 1844 para o exclusivo do estado e passados
cinco anos passou a ser livre. Ela exportava-se para Inglaterra, Holanda e França. O
mesmo sucederá na Madeira e Açores.
É de salientar igualmente a importância que assumiu a extracção do sangue-de-
drago na ilha de Porto Santo: foi também um importante ingrediente da tinturaria.
Valentim Fernandes e Gaspar Frutuoso referem-nos a abundância de dragoeiros na
ilha, que por muito tempo foram o principal suporte económico. No âmbito da
silvicultura sobressaem, ainda, o aproveitamento das madeiras, necessárias à
construção de barcos, casas, engenhos e meios de transporte e das lenhas, usadas
como combustível caseiro e industrial (nos engenhos e forjas), do pez para a
calafetagem de navios.
A insistente solicitação de madeiras e lenhas, nomeadamente, nas ilhas onde a
cultura dos canaviais adquiriu alguma importância, foi desastrosa para o equilíbrio
ecológico, não poupando mesmo a Madeira, que mereceu tal nome pela abundância e
esplendor do arvoredo. Isto levou os municípios a tomarem medidas de controlo no
desbaste florestal, que surgiram com maior evidência na Madeira, onde o parque
florestal foi desgastado pela safra açucareira. Em Cabo Verde e S. Tomé é de referir,
por último, a importância que assumiu o comércio de madeiras da Guiné com
destino ao reino.
Valentim Fernandes, em princípios do século dezasseis, e mais tarde Gaspar
Frutuoso, celebram a riqueza do arquipélago madeirense neste recurso. As madeiras
de pau-branco, barbuzano, teixo, cedro, til e aderno serviam as necessidades da
indústria local e exportavam-se para o reino e praças mediterrânicas. Dizia-se até, no
século XV, que as madeiras da ilha revolucionaram a construção civil de Lisboa,
permitindo o aparecimento de construções com mais de um piso.
No sentido de defender este rico património estabeleceram-se regimentos em que
se regulamentava o corte de madeiras e lenhas, sendo os mais importantes de 151 e
1562. A ilha que no início da ocupação havia atemorizado os povoadores pelo denso
arvoredo era agora na vertente sul uma escarpa em vias de desertificação. Não foi o
inicial incêndio, que a tradição diz ter durado quinze anos, o motivo desta situação,
mas sim a incessante procura de lenhas para o fabrico de açúcar.

O COMÉRCIO

O sistema de trocas, no amplo e multifacetado mundo insular, dependeu de um


múltiplo conjunto de factores, activadores ou não do intercâmbio. Neste contexto
valorizamos os produtos, mas é necessário ter em conta que eles não foram por si só
suficientes para a manter o sistema de trocas. Para que isto tivesse lugar foi
necessária a existência de condições que as favorecessem, como os meios e as vias de

150 . História Geral de Cabo Verde - corpo documental, nº 88, 241-243.


contacto, a presença de agentes capazes de corresponder aos diversos desafios e os
instrumentos de pagamento adequados ao volume e duração das trocas.
O comércio é, em simultâneo, a causa e o corolário da conjugação harmoniosa
deste conjunto de factores que conduziram ao progresso da sociedade e economia
insulares. O processo histórico evidencia de forma clara esta realidade. Terá sido o
surto do comércio açucareiro que condicionou o desenvolvimento de infra-estruturas
portuárias e que implicou o nível de progresso dos centros urbanos na Madeira,
Canárias e S. Tomé. O mesmo sucedeu em S. Miguel com o surto do pastel.
Esta actividade, que mereceu o pleno apoio dos insulares e aí encontrou os
mecanismos adequados para isso, não estava alheia às venalidades da economia
atlântica, bem como aos obstáculos humanos e naturais. Foi o europeu quem definiu
os circuitos comerciais e procurou mantê-los sob controlo. As ilhas foram, portanto,
encaradas como espaços periféricas que dependiam umbilicalmente do centro
europeu. Por outro lado as coroas peninsulares, empenhadas em definir um comércio
monopolista, intervêm, com assiduidade, regulamentando de forma exaustiva as
actividades económicas e delimitando o espaço de manobra dos seus agentes.
A excessiva intervenção da coroa, aliada às intempéries sazonais, tempestades
marítimas, peste, pirataria e corso, foram principais responsáveis em determinados
momentos pelo bloqueio dos circuitos comerciais. A tudo isto se poderá juntar o
permanente empenho no controlo e regulamentação do sistema de trocas, que
derivou, em primeiro lugar, da ingente necessidade de preservar para a coroa o
monopólio do comércio de determinados produtos em áreas definidas e, em
segundo, da necessária acção com o objectivo fundamental assegurar o abastecimento
local e, ao mesmo tempo, definir os produtos adequados a uma troca no mercado
atlântico-mediterrâneo.
As instituições da fazenda real (o almoxarifado e, depois, a Provedoria da
Fazenda) com os municípios ditavam as ordens necessárias para tal política
económica e controlavam a sua execução. Esta atitude é constante e abrange todos os
sectores de actividade.
As autoridades intervêm na produção, processo transformador das matérias-
primas, na distribuição e comércio dos produtos, locais ou de fora. Enquanto o
município legisla sob a forma de postura, a coroa actua por meio de alvarás e
regimentos. Deste modo os produtos e as actividades que definiam a economia
insular regiam-se pelos princípios básicos da comunidade insular que ia no sentido
de assegurar o abastecimento, qualidade, preço, peso e medida adequados. Por outro
lado as repartições régias afirmavam-se, muitas vezes, como mecanismos coercivos,
tendo como finalidade básica a defesa do património da coroa. Aqui a luta incidia,
preferencialmente, no combate às situações fraudulentas e lesivas do património.
O contrabando surge neste circuito, ao mesmo tempo, como causa e consequência
da apertada estrutura de controlo dos produtos no mercado insular, pois a excessiva
regulamentação dos mecanismos de troca, para além de a entorpecer e retardar,
criava ou tornava necessário o recurso a circuitos paralelos.
Ao mercador insular e europeu não satisfaziam as medidas intervencionistas da
coroa e município, pois limitavam-lhe o restrito campo de manobra e oneravam a sua
acção. Daí a atitude deles no sentido de intervirem activamente na formulação de tais
normas, caso contrário restava-lhe o recurso a múltiplos subterfúgios para contrariar
aqueles que lhes eram lesivos.
O comércio é assim o corolário de todos os circunstancialismos incentivadores ou
não do sistema de trocas. E deste modo as trocas nesta vasta área só podem ser
entendidas mediante um correcto equacionar do mercado de cada ilha, arquipélago
ou do espaço atlântico. No último espaço existiu um intricado liame de rotas
comerciais que ligavam o mercado europeu ao Novo Mundo.
O desenvolvimento sócio-económico espaço insular articula-se de modo directo
com as solicitações da economia atlântico-europeia. As ilhas como região periférica
do centro de negócios europeus ajustaram o desenvolvimento económico às
necessidades do mercado e às carências alimentares europeias. Depois actuaram
como mercado consumidor de manufacturas, cuja troca era muito favorável ao
europeu. E, finalmente, intervêm como intermediário nas ligações entre o Novo e o
Velho Mundo. É nesta tripla função que se deverá entender a economia insular e
buscar o fundamento para a sua frágil estrutura.
Nas ilhas da costa e golfo da Guiné a dependência dos espaços continentais é
muita mais acentuada. O facto de estarem defronte de uma área importante no tráfico
negreiro fez com que se mantivessem, necessariamente, como meras feitorias. A
valorização dos recursos açucareiros de S. Tomé ou pecuários e algodoeiros do
arquipélago cabo-verdiano não foram suficientes para competir com as rotas do
tráfico negreiro, a partir do século dezasseis.
De acordo com isto é comum definir-se a economia das ilhas pelo carácter
periférico, mas necessária para a afirmação dos interesses hegemónicos além-
Atlântico. Deste modo o mercado insular definiu-se pela carência de identidade e de
estruturas ou meios que lhe possibilitassem suplantar tal posição.
Uma análise mais aprofundada dos mecanismos sócio-económicos insulares
revela-nos que nas sociedades insulares se desenvolveram actividades económicas
fora da alçada dos vectores dominantes. Em certa medida as relações inter-insulares,
derivadas da complementaridade, são o exemplo mais evidente disso.
Com base nisto emerge a estrutura comercial dos arquipélagos, definida pela
heterogeneidade, expressa numa variedade de áreas, produtos, circuitos e agentes
comerciais, que deram origem a três
formas do sistema de trocas:
1.o comércio de cabotagem interna e inter-insular, englobando as comunicações e
contactos comerciais no mercado interno, ao nível local, regional e inter-regional,
definindo o último os contactos entre as ilhas do mesmo arquipélago;
2.o comércio inter-insular, estabelecendo as conexões ao nível dos arquipélagos
atlânticos;
3.o comércio atlântico, circunscrito aos contactos de longa ou curta distância com
os mercados europeu, africano e americano.
À permanente e sempre actuante comunidade peninsular associaram-se desde o
início os elementos mais proeminentes do tráfico internacional nórdico e
mediterrânico, que conduziram à excessiva vinculação das ilhas aos grandes espaços
continentais. Assim, na Madeira e Canárias, assumem particular importância as
colónias italiana e flamenga. Eles esqueceram por algum tempo os conflitos religiosos
e uniram-se em prol de uma causa comum: o comércio. O interesse fundamental foi o
açúcar. Mas nos Açores a presença dos flamengos e depois dos ingleses é motivada
pela oferta do pastel, enquanto os castelhanos, holandeses e ingleses surgem em Cabo
Verde ou S. Tomé impelidos pelo trato negreiro.
A rota de ligação do mundo insular às origens europeias foi, sem dúvida, a mais
importante do comércio externo nos séculos XV e XVI. Mais tarde a ela sobrepõem-se
as de contacto ao mercado americano, que tiveram uma importância especial para as
ilhas da costa e golfo da Guiné. A permanência e fortalecimento destes contactos
foram resultado da existência de produtos e mercados adequados à troca com estes
destinos.
Ao europeu as ilhas foram, acima de tudo, um mercado capaz de suprir as
necessidades alimentares, de produtos industrias e mão-de-obra escrava. A isso
acresce a possibilidade de os mesmos serem os consumidores dos excedentes das
manufacturas europeias. A disponibilidade desta última fazia aumentar os lucros das
transacções comerciais e definia uma extrema dependência dos mercados insulares,
agravada pela troca desigual.
Diferente foi o relacionamento das ilhas com o mercado americano. O
protagonismo de cada arquipélago dependeu da oferta de produtos e serviços e o
mútuo empenho de insulares e americanos no reforço destes contactos. No
Mediterrâneo Atlântico ele expressou-se por duas fases distintas: primeiro de apoio
ao lançamento das novas sociedades com a troca de experiências de aproveitamento
económico e o serviço de apoio às rotas de ligação a este novo mercado; depois foi o
relacionamento directo das ilhas com a oferta do vinho. Nas ilhas de Cabo Verde e
S.Tomé releva-se a função de mercados redistribuidores do tráfico negreiro,
necessário para a economia americana.
A desmesurada importância do impacto continental, europeu, africano ou
americano, relegou para segundo plano as, não menos relevantes, formas de contacto
e comércio no mercado insular. Foram poucos os estudiosos que se aperceberam da
importância da última realidade e lhe atribuíram o verdadeiro significado. Para nós é
ponto assente que tais conexões marcaram de forma evidente a sociedade e economia
insulares, principalmente no Mediterrâneo Atlântico.
A vizinhança, as facilidades nas comunicações aliadas à complementaridade e
similar nível atingido pelo processo sócio-económico sedimentaram a rede de inter-
relaçöes. Neste particular, a Madeira, mercê da posição charneira entre os
arquipélagos das Canárias e dos Açores, foi importante para a manutenção deste
intercâmbio.
Os contactos inter-continentais foram diferentes, expressando-se de acordo com o
seu destino. Nas trocas com o mundo europeu dominaram em exclusivo, para além
dos escravos, os produtos conhecidos como coloniais -- o açúcar e o pastel--,
enquanto com o litoral africano para além da procura de mão-de-obra barata, subsiste
a obrigação de abastecer as feitorias e praças de cereal. A demanda das plagas
ocidentais só será possível pelo recurso, primeiro, ao contrabando e, depois, à
facilidade no abastecimento do novo mercado de vinho. Entretanto nas ilhas os
contactos internos afirmaram-se como resultado da complementaridade latente a
partir dos componentes da dieta alimentar: o vinho e os cereais.

O COMÉRCIO DE CABOTAGEM

A disposição das áreas ocupadas de acordo com as condições orográficas foi


factores preponderantes no estabelecimento da rede de contactos entre os vários
núcleos de povoamento. O facto de estarmos perante ilhas em que o mar era acima de
tudo a via privilegiada e a dificuldade crescente dos meios e possíveis vias de
comunicação terrestres, levou a que os circuitos de cabotagem fossem importantes. A
primazia das vias marítimas era atenuada naquelas ilhas em que a orografia permitia
uma fácil circulação interna. Nas ilhas da Madeira, S.Miguel e Terceira elas
expressam-se de modo diverso. Enquanto na primeira o acidentado das vertentes
quase que impossibilitava um contacto terrestre, nas restantes as terras chãs e a
suavidade dos declives facilitaram esta forma de contacto.
Na Madeira as vias de comunicação terrestre só foram uma realidade a partir do
século dezanove. Deste modo a economia agrícola da ilha teve que obedecer às
possibilidades da via marítima, sendo definido pela orla litoral. O mar dominou os
contactos e o quotidiano. O rumo traçado pelos primeiros povoadores, quando do
reconhecimento da ilha no século quinze, perdurou por muito tempo. Esta situação
condicionou a forma de progresso do povoamento e economia, que se fez a partir das
enseadas e ancoradouros. Perante isto surgiram os locais de povoamento -- Funchal,
Machico, Santa Cruz, Ponta de Sol, Calheta -- que adquiriram uma importância no
processo económico e social da ilha. Foi em torno destas localidades, com um estatuto
institucional definido, que girou todo o movimento de mercadorias e pessoas.
As redes de escoamento do açúcar são exemplar e a expressão mais perfeita da
realidade. Não obstante existir uma alfândega em cada capitania, o porto do Funchal
manteve-se como a porta de entrada e saída da Madeira. A de Santa Cruz foi de vida
efémera e a coroa sempre se preocupou em manter o sistema de trocas de cada ilha
centrado numa localidade portuária importante. Assim sucedeu com o Funchal,
Ponta Delgada, Angra e Ribeira Grande (mais tarde Praia), respectivamente, na
Madeira, S. Miguel, Terceira e Santiago.
Em todos os lugares as várias tentativas descentralizadoras foram prejudiciais em
termos de controlo da Fazenda Real. Em face disto, no caso da Madeira, a saída do
açúcar, principal produto em troca para os séculos quinze e dezasseis, fazia-se a
partir do porto do Funchal, devendo toda a produção das comarcas de Ponta de Sol,
Ribeira Brava, Calheta e mesmo de Machico, ser para ali conduzida e depois
despachada na alfândega para os múltiplos destinos. Por isso mesmo era ao Funchal
que se acolhiam os mercadores interessados no comércio do produto e era também
aqui que se recebiam o cereal e as manufacturas, que depois eram canalizadas, no
sentido inverso, para as localidades da ilha. No caso da Ribeira Brava, Gaspar
Frutuoso refere-nos que é "uma fresca quintä donde os moradores da cidade acham e lhe vai
o melhor trigo, frutas, caças, carnes e em maior abundância que em toda a ilha; e pode-se com
razoo chamar celeiro do Funchal, como a ilha de Sicília se chama de Itália" 151 . Para manter
este circuito era necessário um grupo numeroso de barqueiros. O Funchal e demais
localidades estavam em condições de satisfazer tal procura.
Situação mais evidente tinha lugar nos Açores, onde a estrutura comercial do
arquipélago se esboçou de modo complicado, definindo-se pela heterogeneidade dos
espaços económicos. De facto não existe unidade, mas sim uma variância em
produtos, circuitos comerciais, mercadores nacionais e estrangeiros. Ao centro estava
um grupo de ilhas (Terceira, Faial, Graciosa, S. Jorge, Pico) colocadas numa posição
geo-estratégica importante, de acordo com o traçado das rotas atlânticas. Por isso
tivemos duas áreas como entrepostos comerciais: Terceira (Angra) e Faial. No
extremo ocidental e oriental estavam dois grupos de ilhas deslocadas do principal
eixo comercial atlântico e, por isso mesmo secundarizadas. A sua valorização só foi
possível graças às suas potencialidades endógenas.
As ilhas de Flores e Corvo, mercê do reduzido espaço e parcos recursos naturais,
foram votadas ao esquecimento e apenas se notaram pelo apoio às duas carreiras das
Índias. As de S. Miguel e Santa Maria mantiveram uma posição privilegiada no
mercado açoriano, mercê das possibilidades de aproveitamento agrícola, com o trigo
e pastel. Deste modo podemos definir duas áreas económicas no arquipélago, onde
dominam um e outro sector de actividade: uma central dominada pela Terceira,
Flores e Corvo que se afirmará como o eixo de apoio e provimento da navegação
atlântica e comércio; outra periférica, na ilha de S. Miguel e nas restantes, onde a
agricultura foi dominante. Esta ambiência valorizadora da via marítima condicionou
também a construção naval que mereceu em ambos os arquipélagos um grande
incremento, como resultado da disponibilidade de boas madeiras. Todavia o seu
desenvolvimento teve lugar de forma controlada, estando sujeito a inúmeras
restrições por parte da coroa. Apenas nas ilhas de S. Miguel e Terceira existiram
estaleiros navais para serviço das ilhas e da navegação atlântica.
Anteriormente estabelecemos para este arquipélago dois espaços dominantes,
abarcando igual número de mercados para o comércio de trigo: a Terceira e S.
Miguel. Era a partir destas ilhas que se fazia todo o escoamento do cereal, pois eram
as únicas que desfrutavam de óptimas condições para o trato internacional. Deste
modo ao nível da definição do mercado cerealífero açoriano teremos de distinguir
duas formas de troca paralelas e similares: o comércio e transporte inter-ilhas e com o
exterior.

151 . Gaspar FRUTUOSO, ob. cit., livro segundo, 88


O comércio de cabotagem apresentava-se revitalizado com o provimento das áreas
carentes ou o envio dos excedentes para os mercados exportadores -- Angra e Ponta
Delgada. Assim sucedeu na Terceira em relação às ilhas do grupo central e ocidental,
e em S. Miguel em com Santa Maria.
O mercado terceirense, ao longo do século XVI, definia-se por três importantes
centros exportadores: Angra, S. Sebastião, Praia. A partir daí mantinha-se o comércio.
Deles evidencia-se o de S.Sebastiäo que se manteve até finais do século com um
activo movimento. Este município abarcava a melhor área de cultivo de cereais.
O micaelense apresentava igualmente dois portos de saída de cereal (Ponta
Delgada, Vila Franca do Campo) com uma zona de produção envolvente. No entanto
o de Ponta Delgada apresentou-se, a partir de 1518, como o principal centro de
comércio, relegando os outros para segundo plano ou, mais propriamente,
dependente. Isto tornou-se mais evidente no século XVII, considerando-se em 1684
que ele era "o caminho por onde se expedem as carregasons do trigo de toda ella", embora
estivesse autorizada, de 1679, a saída de cereal por qualquer um dos portos 152 .
Foi o micaelense que, após a quebra de meados do século XVI, alimentou todo o
trato comercial do trigo, ao nível interno e externo. Este celeiro acudiu a Terceira em
momentos de aflição como em 1591, enviando o trigo necessário para os militares do
presídio e, em 1675, com o quantitativo solicitado para colmatar a falta aí existente.
Aliás, em 1595, Linschoten referia que "ela produz igualmente trigo do qual provê muitas
vezes as outras ilhas em caso de necessidade" 153 .
O mercado cerealífero de S.Miguel afirmou-se, a partir de meados do século XVI,
como o principal celeiro açoriano, enquanto o terceirense é colocado em segundo
plano, perdendo toda a importância que tinha no trato, não obstante a actividade do
porto de S. Sebastião. A conjuntura perdurou até inícios do século XVII, altura em
que se pressentiu uma ligeira recuperação na Terceira, mas que durou pouco tempo,
uma vez que em 1640 se retornou ao estado anterior. Mas nesta década de quarenta a
conjuntura de crise generalizou-se a todo o mercado de trigo açoriano. O movimento
insere-se na crise da economia atlântica, atingindo o ponto culminante, no
arquipélago nas décadas de 60-70.
Na Terceira e S.Miguel a via terrestre foi um meio privilegiado para os contactos.
Por isso estabeleceram-se circuitos de distribuição interna entre os principais portos
de saída. No caso de S.Miguel foi redobrado o interesse dos municípios pelo reparo
dos caminhos e o regulamento do ofício de carreiro.
Também em Cabo Verde a afirmação dominante de Santiago, através dos portos
de Ribeira Grande e Praia, gerou idêntica trama de circuitos entre as ilhas do
arquipélago, criando-se uma dependência especial entre a ilha do Fogo e a de
Santiago, algo idêntica à sucedida nos Açores com as de Graciosa e S. Jorge em
relação à Terceira, isto é os moradores de Santiago tinham interesses fundiários na
ilha do Fogo e todo o comércio de algodão desta ilha para a costa africana fazia-se
através do entreposto da Ribeira Grande. Aí a coroa havia estabelecido uma feitoria

152 . Biblioteca Pública e Arquivo de Ponta Delgada, Câmara Municipal de Ponta Delgada, nº 54, fl. 12.
153 . J.H. LINSCHOOT, art.cit.,154.
para controlo do comércio africano. A este movimento interno de cada ilha temos de
juntar, necessariamente, em Cabo Verde, S. Tomé e Açores, aquele que se fazia entre
as ilhas de um mesmo arquipélago. No caso açoriano esta via foi importante, devido
às condições específicas de cada uma das ilhas. A isto deverá juntar-se a política de
desenvolvimento traçada pela coroa portuguesa, que conduziu a uma
compartimentação, ainda que imperfeita, dos espaços agrícolas e de serviços.
O afluxo de embarcações das rotas oceânicas a Angra fez da cidade o principal
centro de serviços de apoio à navegação atlântica e por isso mesmo criou-se à sua
volta uma diversificada rede de cabotagem de apoio, que abrangia toda a ilha e as
vizinhas (S. Jorge, Graciosa). Mais uma vez Gaspar Frutuoso, perfeito conhecedor das
ilhas, expressa isso, de forma clara, ao afirmar que "todas as outras ilhas são suas
escravas, pois quanto nela se cria vem pera ela", concluindo que eram "quintas" da
Terceira. Era o porto de Angra que fornecia as ilhas do grupo central e ocidental de
manufacturas europeias, vinho, açúcar e derivados da ilha da Madeira, a troco dos
cereais, gado, legumes, madeiras, lenha, fruta e barro. Depois o processo económico a
que as ilhas estiveram sujeitas conduziu-as para uma situação de cada vez maior
interdependência. Nos Açores a Terceira passou a manter o domínio sobre a Graciosa
e parte da costa a ela virada da de S. Jorge. O Faial ligar-se-ia ao Pico e S. Jorge, as
Flores ao Corvo e S. Miguel a Santa Maria.
A partir daqui estabeleceu-se uma especialização nos serviços prestados por cada
área ou porto. Angra foi a cidade do apoio à navegação inter-continental, Horta o
centro de comércio de vinho e Ponta Delgada o porto de comércio do cereal e pastel.
O facto de na primeira ter existido porto importante nos contactos intercontinentais
levou ao estabelecimento de serviços consulares para apoio das actividades legais e
ilegais. Primeiro foram os franceses (1609) depois os holandeses (1655) e, finalmente,
os alemães, suecos, dinamarqueses, noruegueses, castelhanos, todos na década de
oitenta do século dezassete. Pelos mesmos motivos os castelhanos, quando da união
dinástica, preocuparam-se com a ocupação do arquipélago. Para eles isso seria a
principal garantia para a segurança das suas frotas que por aí passavam. Mas só o
conseguiram, a muito custo depois de terem enfrentado a resistência terceirense
apoiada pelos ingleses e franceses, ambos interessados em manter um porto de apoio
para as incursões no Atlântico.
Mais a sul as feitorias de Santiago, Príncipe e S.Tomé, para além de centralizarem
o tráfico comercial em cada arquipélago, firmaram-se, por algum tempo, como os
principais entrepostos de comércio com o litoral africano. Santiago manteve, até
meados do século dezasseis, o controlo sobre o trato da costa da Guiné e das ilhas do
arquipélago com o exterior. E foi também o centro de redistribuição dos artefactos e
mantimentos europeus e de escoamento do sal, chacinas, courama, panos e algodão.
Enquanto a primeira situação, com o evoluir da conjuntura económica, foi perdendo
importância, a segunda manteve-se por muito tempo, definindo uma trama
complicada de rotas entre as ilhas do arquipélago.

O COMÉRCIO INTER-INSULAR
O comércio entre as ilhas dos três arquipélagos atlânticos resultava não só da
complementaridade económica, definida pelas assimetrias propiciadas pela orografia
e clima, mas também da proximidade e assiduidade dos contactos. O intercâmbio de
homens, produto e técnicas, dominou o sistema de contactos entre os arquipélagos.
A Madeira, mercê da posição privilegiada entre os Açores e as Canárias e do
parcial alheamento das rotas indica e americana, apresentava melhores
possibilidades para o estabelecimento e manutenção deste tipo de intercâmbio. Os
contactos com os Açores resultaram da forte presença madeirense na ocupação e da
necessidade de abastecimento em cereais, que o arquipélago dos Açores era um dos
principais produtores. Com as Canária as imediatas ligações foram resultado da
presença de madeirenses, ao serviço do infante D.Henrique, na disputa pela posse do
arquipélago e da atracção que elas exerceram sobre os madeirenses. Tudo isto
contrastava com as hostilidades açorianas à rota de abastecimento de cereais à
Madeira. Acresce, ainda, que o Funchal foi por muito tempo um porto de apoio aos
contactos entre as Canárias e o velho continente.
Os contactos assíduos entre os arquipélagos, evidenciados pela permanente
corrente emigratória, definem-se como uma constante do processo histórico dos
arquipélagos, até ao momento que o afrontamento político ou económico os veio
separar. A última situação emerge na segunda metade do século dezassete como
resultado da concorrência do vinho produzido, em simultâneo, nos três arquipélagos.
O trigo foi, sem dúvida, o principal móbil das conexões inter-insulares. Segundo
os testemunhos de Giulio Landi (1530) e Pompeo Arditi (1567) os cereais foram os
principais activadores e suportes do sistema de trocas entre a Madeira e os
arquipélagos vizinhos, que, por isso mesmo, foram considerados o celeiro
madeirense. A rota de abastecimento de cereais teve a sua máxima expressão em
princípios do século dezasseis. A referência mais antiga ao envio de trigo de Canárias
para a Madeira data de 1504 para La Palma e 1506 para Tenerife, enquanto a presença
do açoriano só está documentada a partir de 1508, ano em que a coroa definiu a
obrigatoriedade do fornecimento à Madeira.
O comércio do cereal a partir das Canárias firmou-se através da regularidade dos
contactos com a Madeira, sendo apenas prejudicado pelos embargos temporários,
enquanto dos Açores foi imposto pela coroa, uma vez que a burguesia e aristocracia
açorianas, nomeadamente de S. Miguel, não se mostravam interessadas em manter
esta via. Todo o empenho dos açorianos estava canalizado para o comércio
especulativo com o reino ou dos contratos de fornecimento das praças africanas.
Desde 1521 o preço e a forma de transporte do cereal açoriano na Madeira estavam
sob o controlo do município. Deste modo era difícil a especulação por parte dos
rendeiros e mercadores micaelenses.
A garantia do abastecimento interno de cereais, que havia sido uma palavra de
ordem no início do povoamento da Madeira, não
resistiu ao assalto das culturas europeias para exportação, que em pouco tempo
invadiram quase todo o território arável. O arquipélago composto apenas por duas
ilhas, sendo uma delas de fracos recursos, tinha que assegurar, necessariamente, o
abastecimento fora, socorrendo-se para isso das ilhas vizinhas. Em 1546 dos doze mil
moios consumidos apenas 1/3 foi produzido localmente, sendo o restante importado
das ilhas próximas ou da Europa.
Nos séculos dezasseis e dezassete a oferta de cereal insular, das Canárias e dos
Açores, representou cerca de metade das entradas. Para o caso açoriano ele era quase
todo proveniente de S. Miguel e do Faial, enquanto nas Canárias se evidenciaram as
ilhas de Lanzarote, Fuerteventura e Tenerife.
A permanência desta rota de abastecimento de cereais implicou o alargamento das
trocas comerciais entre os três arquipélagos, uma vez que ao comércio do cereal se
associaram outros produtos, como contrapartida favorável às trocas. Aos Açores os
madeirenses tinham para oferecer o vinho, o açúcar, conservas, madeiras, eixos e
aduelas de pipa, reexportação de artefactos e outros produtos de menor importância.
Para as Canárias a oferta alargava-se à fruta verde, liaças de vime, sumagre e panos
de estopa, burel ou liteiro.
As ilhas açorianas foram no começo um consumidor preferencial do vinho
madeirense e canário. Tudo isto pela necessidade de encontrar uma contrapartida
rentável ao comércio de cereais e pelo facto de o vinho que produziam ser de fraca
qualidade. Pois o afamado vinho do Pico afirmou-se apenas a partir da segunda
metade do século dezassete. Para o ano de 1574 o vinho da Madeira desembarcado
no porto de Ponta Delgada representava 42% das importações vinícolas, sendo o mais
cotado no mercado micaelense. O mesmo sucedia em Angra na segunda metade do
século. No século dezassete o maior incremento da viticultura das ilhas do grupo
central e a crescente melhoria de qualidade contribuíram para a subalternização do
produto no sistema de trocas com a Madeira e as Canárias. Em finais da centúria o
produto continuava ainda a ser referenciado nas entradas da alfândega de Ponta
Delgada.
O comércio entre a Madeira e as Canárias era muito anterior ao estabelecimento
dos primeiros contactos com os Açores. O relacionamento iniciara-se em meados do
século quinze, activado pela disponibilidade no arquipélago de escravos, carne,
queijo e sebo. Mas a insistência dos madeirenses nos contactos com as Canárias não
terá sido do agrado ao infante D. Fernando, senhor da ilha, interessado em promover
os contactos com os Açores. Apesar disso eles continuaram e a rota adquiriu um
lugar relevante nas relações externas da ilha, valendo-lhe para isso a disponibilidade
de cereal e carne, que eram trocados por artefactos, sumagre e escravos negros. Esta
última e peculiar situação surge na primeira metade do século dezassete, com certa
evidência nos contactos entre a Madeira, Lanzarote e Fuerteventura.
Algo diferente sucedeu nos contactos comerciais entre os Açores e as Canárias,
que nunca assumiram a mesma importância das madeirenses. A pouca facilidade nas
comunicações, a distância entre os dois arquipélagos e a dificuldade em encontrar os
produtos justificativos de intercâmbio fizeram com que estas trocas fossem sazonais.
Só as crises cerealíferas do arquipélago de Canárias fizeram com que o trigo açoriano
aí chegasse em 1563 e 1582. Por vezes a permuta fazia-se a partir da Madeira, como
sucedeu em 1521 e 1573. A contrapartida de Canárias para este comércio baseava-se
no vinho, tecidos europeus e o breu. Para o século dezassete, os registos da alfândega
de Ponta Delgada, entre 1620 e 1694, atestam um incentivo dos contactos comerciais
com este destino, pois o número de entradas e saídas encontrava-se em segundo
lugar, seguido pela Madeira.
A outro nível estavam as relações inter-insulares com os arquipélagos além do
Bojador. Primeiro as dificuldades na ocupação só conduziram ao imediato e pleno
povoamento de uma ilha em cada área -- Santiago e S.Tomé --, que passou a actuar
como principal eixo do trato interno e externo. Depois o aproveitamento económico
não foi uniforme e de acordo com as solicitações do mercado insular aquém do
Bojador, assumindo, por vezes, como sucede com S. Tomé uma posição
concorrencial. Por fim registe-se que estes espaços existiam mais para satisfazer as
necessidades do vizinho litoral africano do que pela sua importância económica
interna.
Do relacionamento dos dois arquipélagos com os do Mediterrâneo Atlântico é
evidente o empenho dos últimos no tráfico negreiro, com maior evidência para os
madeirenses e canarios. Os madeirenses que aí aparecem foram favorecidos pelo
comprometimento com as viagens de exploração e comércio ao longo da costa
africana e da presença, ainda que temporária, do porto do Funchal no traçado das
rotas. Ao invés, os Açores mantiveram-se por muito tempo como portos receptores
das caravelas que faziam a rota de retorno ao velho continente.
A posição privilegiada da Madeira e Canárias, a insistente procura de mão-de-obra
para o arroteamento das diversas clareiras entretanto abertas, geraram um desvio da
rota do comércio dos escravos, surgindo o Funchal e Las Palmas como dois
importantes eixos do tráfico E assim se mantiveram até à plena afirmação das rotas
americanas. Por outro lado o relacionamento das ilhas africanas com o Mediterrâneo
Atlântico foi facilitado pelos benefícios fiscais atribuídos pela coroa em 1507. E
sabemos, por pedido dos moradores de Santiago, que a contrapartida comercial se
baseava no fornecimento de cereal: primeiro da Madeira, depois dos Açores.
Entretanto no que se refere à Madeira a coroa concedeu em 1562 e 1567 facilidades
aos madeirenses para o comércio de escravos de Cabo Verde e Rios de Guiné, como
forma de suprir a crise açucareira, o que deverá ter contribuído para um aumento dos
contactos.
A comunidade madeirense residente em Santiago deveria ser numerosa a atestar
pelos testamentos que chegaram à nossa mão. Destes merece referência especial
Francisco Dias, morador na Ribeira Grande que, pelo testamento de 1599 154 , é
apresentando como um dos mais importante mercadores de escravos, empenhados
no tráfico com a Madeira e Antilhas. O mesmo se poderá dizer quanto aos açorianos,
embora referenciados em menor escala. A permuta baseava-se pelo lado africano em
escravos, a que se vieram juntar os produtos da terra, como o algodão, milho, cuscuz,
chacinas, courama e sal, recebidos a troco de vinho, cereais e artefactos.

154 . Arquivo Regional da Madeira, Misericórdia do Funchal, nº 684, folios 785-790vº.


As Canárias mantiveram, também, um relacionamento preferencial com Cabo
Verde. Primeiro foi o comércio da urzela, depois os contactos assíduos para trocar o
vinho por escravos, que conduziam às Antilhas ou de regresso às ilhas. Esta situação
perdurou nos séculos XVI e XVII, tendo-se iniciado, segundo M. Lobo Cabrera a
partir de 1524 155
Num e noutro caso os contactos com as ilhas do golfo da Guiné eram exíguos, uma
vez que elas estiveram por muito tempo aquém dos interesses das gentes do
Mediterrâneo Atlântico. Na realidade, se retiramos a eventual presença de
madeirenses para transmitir os segredos da cultura açucareira, este aparecimento é
tardio e rege-se pela necessidade de capturar escravos nas costas vizinhas, situação
comum também com as Canárias. A malagueta, pimenta e marfim não eram
produtos capazes de despertarem o interesse das gentes insulares e, além disso, tinha
como destino obrigatório a Casa da Mina em Lisboa. Deste modo a referência ao
carregamento de um navio com algodão e açúcar em 1542 com destino aos Açores é
esporádica 156 .

O COMÉRCIO ATLÅNTICO

Tal como o referimos, mas nunca é demais repeti-lo, o posicionamento periférico


do mundo insular condicionou a subjugação do seu comércio aos interesses
hegemónicos do velho continente. Os europeus foram os cabouqueiros, responsáveis
pela transmigração agrícola, mas também os primeiros a usufruir da qualidade dos
produtos lançados à terra e a desfrutar dos elevados réditos que o comércio
propiciou. Daí resultou a total dependência dos espaços insulares ao velho
continente, sendo a vivência económica moldada de acordo com as necessidades,
que, por vezes, se apresentavam estranhas. Por isso é evidente a preferência do velho
continente nos contactos com o exterior dos arquipélagos. Isto é a tal relação
umbilical com a velha Europa de que falámos. Só depois surgiram as ilhas vizinhas e
os continentes africano e americano.
Do velho rincão de origem vieram os produtos e instrumentos necessários para a
abertura das arroteias, mas também as directrizes institucionais e comerciais que os
materializaram. O usufruto das possibilidades de um relacionamento com outras
áreas continentais, no caso do Mediterrâneo Atlântico, foi consequência de um
aproveitamento vantajoso da posição geográfica e em alguns casos uma tentativa de
fuga à omnipresente rota europeia. Neste contexto tornou-se mais evidente a
presença dos arquipélagos das Canárias, Açores, Cabo Verde e S. Tomé, ainda que
por motivos diferentes, da Madeira.
O arquipélago canário, mercê da posição e condições específicas criadas após a
conquista, foi dos três o que tirou maior partido do comércio com o Novo Mundo. A

155.Manuel Lobo Cabrera," Relaciones entre Gran Canaria Africa y América a través de la trata de negros", in II Colóquio de Historia
Canario Americana, Las Palmas, 1977, 77-91; idem, La esclavitud en las Canarias orientales en el siglo XVI. negros, moros y moriscos, Las
Palmas, 1979, 104-110; Elisa TORRES SANTANA, "El comércio de Gran Canaria con Cabo Verde a principios del siglo XVII", in II
Coloquio Internacional de História da Madeira, Funchal, 1990, 761-778.
156. V. RAU, Estudos sobre a história do sal português,Lisboa, 1989, 217.
proximidade ao continente africano, bem como o posicionamento correcto nas rotas
atlânticas, permitiram-lhe a intervir no tráfico inter-continental.
Para os Açores, o facto de as ilhas estarem situados na recta final das grandes
rotas oceânicas possibilitou-lhes algum proveito com a prestação de inúmeros
serviços de apoio e do eventual contrabando. Fora disso encontrava-se a Madeira, a
partir de finais do século XV. Por muito tempo este comércio foi apenas uma
miragem. E só se tornou uma realidade quando o vinho começou a ser o preferido
das gentes que embarcaram na aventura indicam ou americana. Perante isto o vinho
madeirense afirmar-se-á em pleno a partir da segunda metade do século dezassete.
Rumos diferentes tiveram os arquipélagos de S.Tomé e Príncipe e Cabo Verde: a
proximidade da costa africana e a permanente actividade comercial definiram a
inegável vinculação ao continente africano. Por muito tempo os dois arquipélagos
pouco mais foram do que portos de ligação entre a América ou a Europa e as feitorias
da costa africana. Num e noutro caso o avanço do povoamento ficou dependente das
facilidades concedidas ao comércio: em 1466 para Cabo Verde se dizia que estes só
iam viver "com mui grandes liberdades e franquezas e despesa sua" 157 ; no foral dado em
1485 a S. Tomé o privilégio do comércio com a área costeira surgia como recompensa
"do trabalho a que se despoem, em haverem de hyr viver em a dita ylha" 158 ; em 1500 na
doação da alcaidaria da ilha de Príncipe a António Carneiro é referido o resgate na
Guiné a sul do rio Real. Note-se que noutra carta de privilégios do mesmo ano o
mesmo António Carneiro, secretário do rei, recebe a mercê do resgate da malagueta,
pimenta e outras especiarias "dos nossos rios e tratos de Guiné" por dez anos 159 .
As facilidades concedidas ao comércio com a costa africana degeneraram em
problemas para a Fazenda Real, pelo que a coroa se viu forçada a tomar medidas
restritivas ao comércio dos naturais, com reflexos evidentes na evolução económica
das ilhas que dele dependiam. As primeiras dificuldades começaram com o contrato
de Fernão Gomes de 1469, que retirava aos cabo-verdianos o usufruto de uma
importante fatia da costa. Três anos depois surgiram as primeiras dificuldades a esta
actividade comercial, que tiveram continuidade no século seguinte. A resposta não se
fez esperar. Os cabo-verdianos primeiro questionaram as limitações impostas,
referindo que era a partir do comércio de escravos que se abasteciam de bens
alimentares e artefactos de outras ilhas ou da Europa. Depois acusaram os rendeiros
da coroa de serem os principais responsáveis da situação a que se havia chegado 160
(50). A coroa, no entanto, insistiu com as mesmas ordens e só em 1521 acedeu,
consignando no regimento do feitor do trato de Santiago os privilégios de 1472 161 .
A conturbada conjuntura política, que se seguiu nos finais da centúria
quinhentista e princípios da seguinte, teve o condão de conduzir a uma mudança
deste cenário. A crise dinástica e a consequente união das coroas peninsulares
levaram ao seu desagravamento da permitindo uma abertura total da área ao

157. História Geral de cabo Verde - corpo documental, nº 4, 19/22, 12 de Junho de 1466.
158. Monumenta Missionaria Africana, XIV, 3/7.
159.ANTT, Chancelaria de D. Manuel I, lº.21, fl.18vº, 22 de Março.
160. Ibidem, nº 76, 209-211, 24 de Outubro de 1512; nº 77, 213-214, 25 de Outubro de 1522.
161. Ibidem, nº 6, 25/28, 8 de Fevereiro de 1472.
comércio dos insulares, seus vizinhos e aos demais europeus, nomeadamente, os
holandeses. Perante isto Santiago deixou de ser o principal entreposto dos Rios de
Guiné, pelo que foram evidentes os reflexos na economia da ilha. Em 1622 exclamava
já D. Francisco de Moura que "está aquela ilha em tanta pobreza e necessidade que em
poucos anos se acabará..." 162 .
Com a Restauração o comércio foi sujeito a várias mudanças: em 1642 foi
franqueado a todos os vizinhos de Santiago e vassalos do reino, acompanhado por
facilidades de acesso dos estrangeiros às ilhas, depois optou-se pelo regime de
companhias, tendo-se criado as da Costa da Guiné (1664), depois de Cacheu, Rios e
Comércio de Guiné (1676), do Estanco do Maranhäo e Pará e, finalmente, do Cacheu
e Cabo Verde (1690).

A EUROPA E AS ILHAS

O comércio insular com a Europa definia-se por uma multiplicidade de produtos,


agentes, rotas e mercados. Neste aspecto a península ibérica apresentar-se-á como o
principal mercado consumidor ou redistribuidor para as principais praças europeias.
não obstante persistir uma tendência centralizadora nos portos de Lisboa e Sevilha, o
certo é que a sua expressão real, nomeadamente, no caso português foi muito mais
ampla, abrangendo os principais portos de comércio a sul (Lagos e Silves) e a norte
do país (Caminha, Viana, Porto e Vila do Conde).
Nos primeiros decénios a presença de mercadores estrangeiros, empenhados no
comércio dos produtos insulares portugueses, estava limitada à cidade de Lisboa,
mercê das dificuldades impostas no início do século XV à intervenção directa nos
mercados produtores. Mas isto não poderia manter-se por muito mais tempo e cedo
apareceram os primeiros estrangeiros avizinhados ou com licença para fazer
comércio e fixar residência. Depois abriram-se-lhes as portas, como forma de
promover o comércio excedentário do açúcar. Mesmo assim a troca esteve, por muito
tempo, sujeita a inúmeros impedimentos que impediam a livre circulação dos agentes
e da mercadoria.
No início do povoamento dos Açores a colheita de cereais dava para satisfazer as
necessidades do arquipélago e sobravam alguns excedentes que eram conduzidos a
Lisboa. A saída de cereal para este destino foi reivindicada em 1473 e 1490 pelos
moradores da cidade. Tal reclamação evidencia a competitividade que assumia o
cereal açoriano nas últimas décadas do século XV, mercê do aparecimento de novos
destinos como a Madeira e praças do norte de África. Estava, deste modo, encontrado
o celeiro substitutivo da Madeira, capaz de a abastecer a Madeira e de substitui-la
nesta função com Lisboa e praças africanas. Os excedentes assim o permitiam, pelo
que o cereal se afirmou como o primeiro e mais importante produto deste
relacionamento comercial.
O comércio do cereal açoriano alicerçou-se, primeiro no provimento do reino ,
depois no obrigatório abastecimento da Madeira e praças africanas. A rota para o

162 . C. J. Senna BARCELOS, História de Cabo Verde e Guiné, parte I, Lisboa, 1899, 223.
reino foi estabelecida como uma necessidade decorrente da promoção da cultura em
solo insular, enquanto o segundo rumo foi traçado pela política económica traçada
para o espaço insular. O último destino foi imposto pela coroa.
O mercado do reino foi o primeiro consumidor de trigo açoriano mas não o único
nem o principal destino do trigo ilhéu, pois que em lugar cimeiro e reservado
estavam as praças portuguesas do Norte de África. O movimento de trigo açoriano
para elas fazia-se sob o controlo régio por meio de assentistas que em Lisboa
recebiam o contrato de fornecimento e daí enviavam os respectivos navios a carregar
o trigo arrecadado.
Este comércio beneficiava de privilégios estabelecidos por ordens régias, sendo
considerado como prioritário nas transacções cerealíferas açorianas: todo o trato de
trigo no arquipélago, nomeadamente, em S. Miguel e Terceira, deveria fazer-se "sem
prejuízo dos lugares de África". Deste modo no início da colheita procedia-se à
arrecadação do referido trigo, avaliado entre 2.000 e 3.000 moios. Além disso o
contratador ou o procurador tinha a prioridade na compra do cereal, pelo que a livre
saída de trigo só teria lugar após o acautelamento do "saco para África". Mas esta
ordem causava prejuízo aos agricultores, caso tardasse o envio da remessa. A câmara
de Ponta Delgada recomendava em 1644 aos contratadores do dito trigo que fizessem
a compra até Agosto, caso contrário ela não se responsabilizava por quaisquer
dificuldades no cumprimento do contrato. Estas medidas eram o corolário de um
sucedâneo de situações que impossibilitavam o arquipélago de atender aos seus
compromissos e de assegurar o abastecimento interno.
A violência com que a coroa impunha a rota, coibindo o merca dor de executar as
trocas comerciais correntes ou retardando-as; o tom discricionário dos regimentos e
recomendações tendo a desfaçatez de afrontar a requisição dos navios e carros
necessários ao transporte e carregamento do referido trigo. E, por fim, a constante
presença do administrador para o provimento das praças, criaram dificuldades nas
relações de troca no mercado cerealífero açoriano.
O arquipélago estava condenado a manter o cereal sob rigoroso controlo, que
abrangia a produção e comércio. O senhorio (rei, capitão, donatário, terra tenente), o
contratador desde Lisboa controlava todos os circuitos do mercado insular, ditando
as normas que regiam as trocas. Se tivermos em conta as necessidades do consumo
local, o "saco de trigo" para as praças de África e a Madeira, pouco trigo sobejava para
o comércio.
O grande mercador de cereal criou fortuna no provimento das praças norte-
africanas, como contratador, intermediário dos senhorios (como sucede com o Conde
de Vila Franca) ou o recurso ao contrabando e especulação possíveis. Os mais
importantes mercadores locais surgem como representantes dos assentistas. tenha-se
em conta o caso de Manuel Alvares Senra, que foi procurador de Álvaro Fernandes
de Elvas, contratador do fornecimento de Tânger (1636), enquanto Guilherme
Chamberlin representou Pedro Alves Cabral e Manuel da Costa Braga.
De um modo geral os assentistas eram originários do reino e aí recebiam o
regimento régio para concretizar o referido contrato, fretando as caravelas
necessárias ao carregamento do cereal em Ponta Delgada ou em Angra. No século
XVI não há qualquer referência a procuradores ou administradores do dito
provimento. Eles só aparecem a partir de meados do século XVII. Em alguns
momentos o abastecimento fez-se de modo diverso, quer sob a responsabilidade do
feitor régio nos Açores, o provedor e contador da fazenda, quer por iniciativa de
particulares, fora deste sistema.

O COMÉRCIO COM O REINO

Os contactos entre a Madeira e o reino eram constantes e faziam-se com maior


frequência a partir dos portos de Lisboa, Viana e Caminha. Os portos do norte
mantiveram uma acção muito importante no período de apogeu da safra açucareira,
uma vez que os marinheiros e mercadores daí oriundos controlavam uma parte
importante do tráfico comercial, sendo eles que abasteciam a ilha de carne e panos,
levando em troca o açúcar para os mercados nórdicos.
A Madeira tinha para oferecer ao mercador do reino um grupo restrito de
produtos, mas capaz de cativar o seu interesse. No começo foram as madeiras, o
sangue-de-drago e os excedentes da produção cerealífera, depois o açúcar que fez
redobrar a oferta e, finalmente, o vinho, exportado para Lisboa, muitas vezes, com a
finalidade de abastecer as naus das rotas do Brasil ou outros destinos.
A ilha recebia em troca da limitada mas rica oferta um conjunto variado de
produtos, de que se destacam as manufacturas imprescindíveis ao uso e consumo
quotidianos: louça, telha de Setúbal, Lisboa e Porto, panos, azeite e carne do norte.
Além disso o porto do Funchal actuava, muitas vezes, como intermediário entre os
portos do reino e as feitorias africanas, sendo de referir o comércio de peles, escravos
e algodão de Cabo Verde.
No início do povoamento da Madeira o produto que de imediato cativou a atenção
dos portugueses foi aquele que deu nome à ilha, isto é as madeiras. Estas eram de
alta qualidade tendo usos múltiplos na ilha e fora dela. Muitas foram exportadas para
o reino e também para as praças africanas (Mogador e Safim) e portos europeus
(Ruäo). Tal como nos elucidam os cronistas estas madeiras revolucionaram o sistema
de construção civil e naval no reino .
O comércio açoriano com os portos do reino regia-se pelos mesmos princípios e
solicitações do madeirense, apenas se alteravam os produtos oferecidos como
contrapartida. Enquanto a Madeira tinha para oferecer um produto por época, sendo
a partir de determinado momento, o açúcar, os Açores apresentavam uma oferta
variada e mais vantajosa: cereais, pastel e gado. Também aqui os portos do norte do
país, nomeadamente, da região de Entre-Douro-e-Minho, estavam em primeiro lugar.
Eram eles que abasteciam os Açores de azeite, sal, louças, panos e mais artefactos,
recebendo em troca trigo, carne, couros e pastel.
A trama de relações com o velho continente não se resumia apenas aos portos
reinóis, uma vez que as culturas locais cativaram o interesse dos mercados
mediterrânicos e nórdicos: primeiro a urzela e outras plantas tintureiras como o
sangue-de-drago e o pastel, depois o açúcar e o vinho, foram produtos que estiveram
na mira dos mercadores estrangeiros. A par disso o reino não dispunha de todos os
artefactos solicitados pelas gentes insulares, cada vez mais exigentes na sua
qualidade. As riquezas acumuladas com este comércio apelavam para um luxo
ostensório no ornamento da casa, que só poderia ser conseguido nas praças de Ypres,
Ruäo e Londres.
A opulência da aristocracia madeirense e açoriana estava bem patente no recurso
desnecessário a artefactos de luxo, testemunhado por Gaspar Frutuoso em finais do
século dezasseis. A origem disso era clara: no Funchal os proventos do açúcar, em
Ponta Delgada do pastel. Esta circunstância condicionou inevitavelmente a presença
de mercadores oriundos das praças europeias. Oferecia-se o açúcar, o pastel e urzela,
o algodão e escravos, recebendo-se em troca panos, por vezes, cereais, peixe seco e
salgado.
O comércio açoriano estava orientado quase que exclusivamente para os centros
têxteis do norte, destacando-se aí as ilhas britânicas e os agentes comerciais, que no
século dezassete assumem uma posição hegemónica no porto de Ponta Delgada. Nos
registos avulsos de saída e entrada do porto, para o período de 1620 a 1694, mais de
metade das embarcações eram inglesas, sendo na maioria de e para Inglaterra. A
principal mercadoria em trânsito no porto de Ponta Delgada era o pastel, que teve o
seu momento fulgurante nas décadas de vinte e trinta. Neste contexto é evidente a
hegemonia do mercado e mercadores ingleses, pois a quase totalidade do pastel(98%)
exportado, no período de 1621 a 1676, é para aí conduzido. A parte sobrante
distribui-se pela Holanda, França, Flandres e Sevilha. Note-se que o inglês ignorou as
proibições impostas à sua presença pela coroa em finais do século XVI. A sua forte
presença na ilha e o recurso ao pavilhão de nacionalidades autorizadas possibilitaram
que esta via comercial se mantivesse aberta.
O madeirense, ao inverso do açoriano, nestes séculos XV e XVI estava orientado
para o tradicional mercado Mediterrâneo, tendo como principal aposta o açúcar.
Neste caso surgem três áreas: as praças espanholas de Sevilha, Valência e Barcelona,
as cidades italianas (Génova, Veneza e Livorno) e os portos do Mediterrâneo Oriental
(Chios e Constantinopla). As primeiras foram imprescindíveis para este comércio,
funcionando como praças de redistribuição para o mercado levantino.
O comércio do açúcar surge no mercado madeirense como o principal animador
das trocas, no decurso dos séculos XV e XVI, com o mercado europeu. Durante mais
de um século a riqueza das gentes e a contrapartida para o suprimento de bens
alimentares e artefactos. O seu regime de comércio é definido por Vitorino
Magalhães Godinho 163 "entre a liberdade fortemente restringida pela intervenção quer da
coroa quer dos poderosos capitalistas, de um lado, e o monopólio". Deste modo o comércio
do açúcar só se manteve em regime livre até 1469, altura em que a quebra do preço
condicionou a acção do senhorio, que estipula o exclusivo aos mercadores de Lisboa.
Esta política de controlo e monopólio do comércio não contou com o apoio dos
madeirenses que sempre manifestaram a sua opinião contrária. Todavia ela havia de

163 .Ob.cit., vol.IV, 87


persistir até 1508, altura em que foi revogada toda a legislação comercial, restritiva da
livre intervenção de madeirenses e estrangeiros. Em 1498 no sentido de controlar esse
comércio estabeleceu-se como limite de exportação 120.000 arrobas, divididas pelas
principais mercados do Mediterrâneo e norte da Europa. Pensámos que este
estabelecimento das escápulas em 1498 deveria definir com precisão o mercado
consumidor do açúcar madeirense, que se circunscrevia a três áreas distintas: o reino,
a Europa nórdica e mediterrânica. As praças do norte dominavam esse movimento,
recebendo mais de metade do açúcar. Aí evidenciam-se as praças circunscritas à
Flandres, enquanto no Mediterrâneo a posição cimeira é atribuída a Veneza
conjuntamente com as praças levantinas de Chios e Constantinopla.
Se compararmos os valores desta escápula com os dados referentes ao açúcar saído
da ilha entre 1490 e 1550 nota-se uma similitude nos mercados. A diferença mais
significativa surge com as cidades italianas, que surge com uma posição dominante
neste comércio. Todavia ela poderá resultar de os italianos dominaram mais de 2/3
do comércio de todo esse açúcar, actuando os portos e cidades italianos como centros
de redistribuição. À parte isso é bastante evidente a posição hegemónica dos
mercadores oriundos das diferentes cidades italianas, neste comércio com 78% do
açúcar movimentado. A partir dos dados compilados na documentação podemos
concluir pela constância dos mercados italiano e flamengo. A isto acresce os portos
do reino, nomeadamente de Lisboa e Viana do Castelo,, que surge em terceiro lugar,
com 10%.
A partir da segunda metade do século a concorrência do açúcar americano retirou
à Madeira esta situação preferencial no mercado europeu. Todavia o açúcar, ou seus
derivados, como as conservas e casca, continuaram a activar um activo movimento
com estes mercados. Para isso usava-se o pouco açúcar produzido na ilha ou então o
importado do Brasil. Neste momento é pouco o açúcar exportado, mas abundante os
produtos dele derivados. Estamos na época do comércio de casca e de conservas.
Ao açúcar juntaram-se depois as madeiras (nomeadamente de vinhático e cedro), a
urzela, o pastel, o couro e os escravos, que se trocavam por panos, trigo e objectos de
luxo.
O comércio das ilhas com o litoral africano, exceptuando o caso de Cabo Verde e S.
Tomé, fazia-se com maior assiduidade a partir das Canárias do que da Madeira ou
dos Açores. Mesmo assim a Madeira, mercê da posição charneira no traçado das rotas
quatrocentistas, teve aí um papel relevante. Os madeirenses participaram
activamente nas viagens de exploração geográfica e comércio no litoral africano,
surgindo o Funchal, nas últimas décadas do século XV, como um importante
entreposto para o comércio de dentes de elefante. Além disso a iniciativa madeirense
bifurcou-se. Dum lado as praças marroquinas a quem a ilha passará a fornecer os
homens para a defesa, os materiais para o construção das fortalezas e os cereais para
sustento dos homens aí aquartelados. Do outro a área dos Rios e Golfo da Guiné,
onde se abastecia de escravos, tão necessários que eram para assegurar a força de
trabalho na safra do açúcar.
O açoriano ficou afastado destas áreas pelas dificuldades de acesso e também
forma de exploração económica a que foram sujeitas, que o faziam prescindir dos
produtos oferecidos pelo trato da zona. A maior assiduidade dos contacto com o
continente africano fez-se por necessidade de abastecer as praças do Norte de África
e mesmo a área da costa da Guiné de cereal, substituindo a Madeira a partir de finais
do século XV. Mesmo aqui o abastecimento fazia-se, muitas vezes, a partir da
Madeira.
Os contactos de Cabo Verde ou S. Tomé com o reino e portos europeus eram
também assíduos nas primeiras centúrias da ocupação, dependendo a frequência do
traçado das rotas oceânicas e da disponibilidade de produtos. Assim, no caso de S.
Tomé a presença da cultura açucareira no século dezasseis activou as relações com o
reino e os principais mercados do norte da Europa. Mas a oferta não se resumia
apenas a este produto, pois que os navios transportavam também algodão (de Ano
Bom), especiarias (gengibre, malagueta, pimenta e canela), marfim, pau da Guiné e
Brasil 164 . Em Cabo Verde o mesmo conjunto de produtos, a que se poderá juntar o
ouro, âmbar e urzela, activou, no início, os contactos com o reino. Todavia, o
aparecimento de um novo e promissor mercado para o comércio de escravos a
Ocidente veio mais tarde a monopolizar todos os interesses.
Os contactos das ilhas de Cabo Verde e S. Tomé com a Europa não foram tão
evidentes como os que mantiveram com a costa africana ou americana. Todavia, a
disponibilidade de alguns produtos (açúcar, escravos, algodão, carne, couros, urzela),
solicitados pelo mercado europeu, levou à existência de rotas permanentes com as
principais praças europeias. Para a Flandres, directamente ou por via dos portos do
reino, exportava-se o açúcar de S.Tomé, as madeiras, marfim e especiarias
africanas(pimenta e malagueta), o algodão de Santiago. Nos contactos com os portos
reinóis fazia-se chegar estes e outros produtos, como sal, chacina, couros, gado e
escravos. Este relacionamento privilegiado com os portos do reino sucedeu no
princípio, fazendo-se por meio de licenças e sob o controlo da Casa da Guiné e da
Mina. As ilhas de Santiago, S. Tomé e Príncipe serviam de intermediárias entre os
portos europeus de destino e o litoral da costa africana. No caso de S. Tomé e
Príncipe foi um privilégio perdulário dos seus moradores, o que não sucedeu em
Cabo Verde 165 . Note-se ainda que a partir da segunda metade do século XVI com o
aparecimento de um novo mercado de destino para os escravos -o continente
americano- estas ilhas serão um ponto de escala no circuito de triangulação que liga a
Europa ao Novo Mundo. Aqui o circuito de ligação é feito pelas ilhas de Santiago e S.
Tomé, receptoras de produtos alimentares e manufacturas europeias.
De acordo com o livro de registo de avarias de navios portugueses na Feitoria de
Antuérpia entre 1535 e 1551 166 é possível estabelecer a posição das ilhas de Cabo

164. V. RAU, ob.cit., 210-221; Fernando Castelo BRANCO, "O comércio externo de São Tomé no século XVII", in Studia, nº 24, Lisboa,

1960, 83-98.
165.Confronte-se Fernando CASTELO BRANCO,Fontes para a história do antigo ultramar português-II: São Tomé e Príncipe, Lisboa,

1982;Isabel Bettencourt de SÁ-NOGUEIRA e Bernardo de SÁ-NOGUEIRA, " ilha do Príncipe no 1º quartel do século XVI:
administração e comércio", in Congresso Internacional Bartolomeu Dias e sua época. actas, vol.III, Porto, 1989,81-115.
166.Virgínia Rau,Estudos sobre a História do sal português, Lisboa,1984,210-221.
Verde, Madeira e S.Tomé no comércio internacional. A S. Tomé surge com maior
número de navios, isto é 126(88 de açúcar e 38 de carga mista), seguindo-se a Madeira
com 56 embarcações(28 de açúcar e 28 de carga mista) e Cabo Verde(1 de açúcar e 7
de carga mista). O facto mais saliente é a posição assumida pela ilha de S. Tomé com
o comércio de açúcar, distanciando-se da Madeira, que neste momento se encontra
numa fase de decadência. No conjunto da mercadoria mista saída de Cabo Verde
destaque para o algodão e marfim, enquanto em S. Tomé surge o marfim, o algodão,
as madeiras e as especiarias. Note-se ainda que era comum as embarcações
conduziram em simultâneo açúcar ou outras mercadorias dos três arquipélagos, o
que demonstra existir uma rota de ligação entre eles, na ida e no regresso. Por outro
lado assinala-se que muita da mercadoria dos arquipélagos de Cabo Verde e S. Tomé
chegava ao porto de Antuérpia a partir de Lisboa, o que demonstra a tendência para
este porto centralizar os negócios com as possessões atlânticas. No caso do açúcar de
S. Tomé temos 21 navios com partida de Lisboa.
Ao invés do que sucedia com as Canárias, Cabo Verde e S. Tomé, as ilhas dos
arquipélagos da Madeira e Açores estiveram até ao século dezassete afastadas do
comércio com o continente americano. Restava-lhes aguardar pela chegada das
embarcações daí oriundas e aspirar pelo contrabando ou trocas ocasionais. Note-se
que ao porto do Funchal chegaram também algumas destas. O desvio era
considerado pela coroa como intencional, para aí se fazer o contrabando, pelo que
foram determinadas medidas proibitivas, de pouca aplicação prática.
Os contactos entre a Madeira e o litoral americano desenvolveram-se, após a
quebra da cultura da cana-de-açúcar, com o incremento do comércio do vinho
madeirense. Ambos os produtos estavam, de facto, ligados. A pouca oferta de açúcar
na Madeira e a incessante procura levaram os madeirenses a especular com o açúcar
brasileiro, fazendo-o passar como da Madeira. Conhecida a fraude o monarca exarou
a sua proibição em 1591, alheando-se das reclamações dos munícipes. Mais tarde,
com o abandono definitivo da cultura da cana-de-açúcar, não havia motivo para
impedir este comércio. Somente o sistema de comboios marítimos condicionou, por
algum tempo, a presença madeirense.
A criação em 1649 da Companhia Geral do Estado do Brasil, detentora do
exclusivo comércio para esta área, motivou protestos dos funchalenses e angrenses,
os principais prejudicados com isso, o que levou a coroa a atribuir em 1650 ordem
especial para o envio de duas embarcações do Funchal e três dos Açores com
capacidade para 300 pipas de produtos da terra que seriam depois trocados por
tabaco, açúcar e madeiras. Mais tarde ficou estabelecido que os mesmos não podiam
suplantar as 500 caixas de açúcar. O movimento das duas embarcações madeirenses
fazia-se com toda a descrição, conforme recomendava o Conselho da Fazenda,
mediante as licenças e a sua entrega deveria ser feita no sentido de favorecer todos os
mercadores da ilha. Para estes navios havia uma escrituração à parte na alfândega.
Mas o açúcar brasileiro tinha destino diverso. Na Madeira ele era utilizado na
indústria de conservas e casquinha, enquanto nos Açores era reexportado depois
pelos mercadores estrangeiros, nomeadamente franceses, para os portos europeus.
Neste comércio assumiu uma posição privilegiada Diogo Fernandes Branco. Ele
foi em 1676 administrador dos direitos de comboio dos navios que iam ao Brasil, mas
também, activo participante nesse negócio. O mesmo havia estabelecido um
verdadeiro circuito de triangulação para os seus negócios: da Madeira levava vinho
para Angola que trocava por escravos negros, que, por sua vez servia de moda de
troca para adquirir o açúcar. Com o açúcar fabricava-se as conservas que o mesmo
exportava para os portos da Europa do Norte. Ninguém como ele se comprometeu de
corpo inteiro com este liame de circuitos comerciais do Atlântico do século XVII.
Esta situação das actividades comerciais de Diogo Fernandes Branco não é de
modo algum episódica, no contexto da estrutura comercial madeirense da segunda
metade do século dezassete, pois ela comprova uma das dominantes deste processo:
a ilha como intermediária entre os interesses da burguesia comercial do Novo e Velho
Mundo. Um dos componentes base deste puzzle é constituído pelo porto do Funchal.
Entretanto novos mercados foram surgindo no espaço americano, nomeadamente
as colónias inglesas das Antilhas e da costa do norte, que se afirmaram como
potenciais espaços consumidores do vinho madeirense e açoriano. O vinho, que até
então tinha como destino exclusivo o Brasil, passou também a ser conduzido para os
novos mercados, que assumiram um lugar dominante a partir de finais da centúria.
Aos portos de Pernambuco, Rio de Janeiro, Baía vieram juntar-se os de New England,
New York, Pensylvania, Virginia, Maryland, Bermuda, Barbados, Jamaica, Antigua e
Curaçau. No período de 1686 a 1688 das seiscentos e oitenta e oito pipas entradas em
Boston temos duzentos e sessenta e seis da Madeira e quatrocentos e vinte e uma do
Pico. Esta situação espelha uma realidade que marcará o comércio nas centúrias
seguintes: os açorianos abasteciam, preferencialmente, os portos da América do
norte, levados pelo rumo dos baleeiros, enquanto os madeirenses faziam incidir os
seus contactos nas Antilhas inglesas e francesas.
Para a Madeira a correspondência comercial de William Boltom para o período de
1696 a 1714 permite reconstituir parte desse circuito comercial que dominou no
século XVIII.Aqui é evidente a definição de um circuito comercial dominante,
delimitado pelos portos ingleses e das colónias da América Central e do Norte. _
As ilhas de Santiago e S. Tomé, mercê da proximidade da costa africana,
afirmaram-se como importantes entrepostos do trato negreiro africano nos séculos
XV a XVII, tendo como principal destino, a partir do século dezasseis, o novo
continente americano. A primeira feitoria dominava a vasta área, conhecida como os
Rios de Guiné, enquanto a segunda estendia-se desde S. Jorge da Mina até Angola,
passando por Axem e Benim. Tal como o referimos o povoamento só foi possível à
custa de facilidades concedidas aos moradores para o comércio nesta costa.
A evolução do trato não foi linear e esteve por muito tempo sujeita às mudanças
conjuntura atlântica. Assim S. Tomé assumiu um lugar relevante no comércio do
Golfo da Guiné até o último quartel do século dezasseis, sendo a crise, a partir de
1578, resultado do desvio das rotas para o litoral africano. No período que decorre até
1650 entraram em S. Tomé 94900 escravos, sendo maior a incidência nos anos de 1501
a 1575. Entretanto na época da união das duas coroas peninsulares o número de
escravos conduzidos a partir de S. Tomé para as Índias de Castela (Cartagena, Vera
Cruz e Margarita) atingiu os 4.828, isto é 20% do total. Os problemas com a economia
açucareira haviam colocado a ilha na dependência do comércio deste produto,
referenciando o escrivão da feitoria em 1551 167 que ele era o principal rendimento da
coroa, pelo que o desvio das rotas contrariava a política de fixação de colonos.
Em Santiago, principal ilha do arquipélago de Cabo Verde e feitoria do comércio
dos escravos dos Rios de Guiné, o comércio foi definido por outro rumo. No começo
ele resultou da oferta das produções locais mas depois, com a abertura de novos
mercados os escravos, foram solicitações externas que o motivaram. Eles passaram a
ser conduzidos, primeiro à Europa e ilhas atlânticas e depois ao Brasil e Antilhas 168 .
Para este último destino o comércio fazia-se sob a forma de contratos entre a coroa e
os mercadores. No período de 1551 a 1640 esta feitoria conduziu às índias de Castela
mais de 5.729 (=23%) de escravos em 146 barcos (=10%), sendo 4.439 apenas nos anos
de 1609 e 1610.
Durante muito tempo o trato, entregue a arrendatários, foi o principal motivo das
trocas comerciais na ilha. Era com ele, trocado por algodão e panos, que se adquiriam
as manufacturas europeias. Todavia os inúmeros entraves postos à circulação dos
produtos deste tráfico, os desvios de mercadores estrangeiros, nacionais e, em
especial dos lançados, vieram a prejudicá-lo em Santiago 169 .
A importância destes mercados no comércio de escravos para o continente
americano ficou demonstrada em finais do século dezasseis, altura em que os povos
estrangeiros se lançaram ao ataque dos principais entrepostos do tráfico negreiro,
com particular relevo para os castelhanos. No caso dos holandeses, que em 1630
ocuparam Pernambuco. Esta atitude era inevitável, pois só assim poderiam conseguir
os escravos necessários para a manutenção da economia açucareira. Daí resultou a
ocupação de S. Jorge da Mina (1622), Angola (1641), os constantes assaltos a S. Tomé,
que levaram à sua invasão de 1641, tendo aí permanecido até 1648.

IV. AS INSTITUIÇÕES INSULARES

A estrutura institucional é um dos domínios mais característicos no estudo das


ilhas portuguesas do Atlântico. Ela adquiriu forma na Madeira e depois expandiu-se
e desenvolveu-se nos demais arquipélagos de acordo com as particularidades de
cada. Deste modo iremos acompanhar o seu percurso a partir do modelo madeirense.
A Historiografia debate-se entre a defesa originalidade do processo e a sua
vinculação das estruturas institucionais peninsulares. Quanto a nós parece haver um
pouco de tudo. Na realidade as instituições insulares foram resultado do transplante
das estruturas institucionais peninsulares (ignorámos se houve qualquer ligação,
intencional ou não, com as formas de colonização do Mediterrâneo) e das inovações

167. Monumenta Missionaria Africana, II, 269.


168. E. VILA VILAR, Hispano-America y el comercio de esclavos. Los asientos portugueses, Sevilha, 1977; T. B. DUNCAN, Ob.cit., 198/238.
169. António CARREIRA, Cabo Verde, Lisboa, 1983, 148-149.
geradas pelo novo meio. Foi a partir da primeira e incipiente forma de estrutura
social lançada na Madeira que ela se ergueu e fundamentou. Ao contrário do que se
possa imaginar nada disto foi predeterminado, tudo emergiu de acordo com as
necessidades do momento.
O caso da Madeira é paradigmático. No princípio todas as funções de mando
ficaram centralizadas nos três homens que comandaram o processo de povoamento
das duas ilhas -- João Gonçalves Zarco, Tristão Vaz e Bartolomeu Perestrelo. Eles
dinamizaram o povoamento da área que lhes foi distribuída. Sobre eles pendia a
solução das primeiras querelas institucionais, que a nova sociedade gerou. Depois o
progresso sócio-económico criou novas necessidades, entre elas uma ajustada
estrutura institucional.
A concessão em 1433 por carta régia do governo das ilhas ao infante D. Henrique
foi o início de uma nova era. O infante permanecia como o senhorio, enquanto os
escudeiros, que haviam dado início ao povoamento do arquipélago, passaram a ser
capitães, que estavam subordinados à sua alçada. Eles ficaram conhecidos como
capitães do donatário, permanecendo como tal até finais do século quinze. As cartas
de doação das áreas, conhecidas como capitanias, confirmaram-no juridicamente.
Nelas ficaram estabelecidas a alçada e privilégios.
Aos capitães juntaram-se depois os funcionários do próprio donatário -- o ouvidor
e o almoxarife -- e uma incipiente estrutura de poder local, o município. E com o
decorrer do tempo o progresso social e económico e a dispersão territorial
condicionaram novas mudanças que desembocaram, em finais do século XV,
princípios da centúria seguinte, com uma nova dinâmica institucional, que perdurará
por muitos anos.
Daqui resulta que as instituições insulares não estavam elaboradas mas foram-se
definindo de acordo com as circunstâncias. Também os tradicionais suportes de
mando vigentes no reino poucas vezes se mostraram adequados ao governo dos
novos espaços. Por fim resta sublinhar que os portugueses não tinham uma ideia
definida sobre a forma de o concretizar. Pois só a partir de princípios do século
dezasseis surgiu por parte da coroa uma visão clara sobre a realidade institucional
para o espaço atlântico. Ora isto sucedeu numa altura em que eram passados quase
cem anos sobre o início do povoamento da Madeira. Os resultados profícuos da
experiência madeirense serviram de encorajamento para outros espaços de ocupação
portuguesa. Deste modo a Madeira funcionou como modelo para as novas
sociedades e nunca como campo de ensaio.
Algo diferente sucedeu nas Canárias, onde a presença de uma população
autóctone condicionou de modo diferente a fixação dos castelhanos. Por outro lado o
processo de conquista das ilhas foi iniciado por particulares. Só muito mais tarde a
coroa castelhana interveio activamente no processo. Sendo assim a experiência
madeirense, acompanhada de perto pelos castelhanos, não se ajustava à realidade do
arquipélago vizinho, que foi buscar a sua origem na estrutura estabelecida na
península nas terras conquistadas aos mouros. Daí terá resultado o facto de o
senhorio canário usufruir de uma jurisdição mais ampla, em certos domínios.
Também as diversas formas de intervenção no processo de conquista propiciaram
a presença de dois modos de governo, de acordo com os vários agentes: as ilhas
realengas e as ilhas de senhorio. Mereceram o primeiro nome aquelas que foram
conquistadas por iniciativa da coroa, enquanto as segundas pertenceram a iniciativa
particular. Por outro lado esta estrutura institucional parece ter sido lançada com
carácter perdulário, tendo permanecido até às cortes de Cádis (1811). O senhorio
português, ao contrário, foi circunstancial e não resistiu mais do que sessenta e
quatro anos (1498). Nas Canárias a centralização de poderes levada a cabo pela coroa
não conduziu ao apagamento da estrutura senhorial, mas apenas ao cercear de
algumas prerrogativas.
Partindo do princípio que os arquipélagos da Madeira e as Canárias
materializaram a primeira experiência das coroas peninsulares no espaço atlântico,
adivinha-se a importância que assumiram em posteriores iniciativas de povoamento
e valorização económica de continentes ou ilhas. Daqui se conclui que a Madeira
funcionou como o modelo institucional para o atlântico português, enquanto as
Canárias exerceram idêntica função para o mundo colonial castelhano: as capitanias
madeirenses expandiram-se nas ilhas portuguesas (Açores, Cabo Verde, S. Tomé) e
Brasil, enquanto o sistema de adelantado foi transplantado para a América e Antilhas
espanholas.

O SENHORIO DAS ILHAS

O senhorio português das ilhas iniciou-se em 1433 com a entrega por D. Duarte ao
infante D. Henrique, na qualidade de administrador da Ordem de Cristo, do governo
temporal e religioso das ilhas da Madeira, Porto Santo e Desertas. De acordo com a
carta de doação o infante recebia o poder de administrar e distribuir as terras, de
forma a torná-las rentáveis. Num segundo momento o infante, na qualidade de
donatário, procedeu à subdelegação de poderes nos três primeiros povoadores --
João Gonçalves Zarco, Tristão Vaz e Bartolomeu Perestrelo -- procedendo à partilha
do arquipélago em três capitanias: Machico (1440), Porto Santo (1446) e Funchal
(1450). As datas da não coincidem, havendo quem especule sobre isso. Estamos de
novo perante mais um problema académico que pouco interessa ao debate do tema.
Os primeiros povoadores a quem foi concedida a posse das capitanias, passaram a
chamar-se capitães do donatário. Eles, de acordo com as cartas de doação, eram os
representantes do infante na alçada que lhes foi acometida, exercendo em seu nome a
justiça e administração do património. Como recompensa tinham direito à posse de
terras de sesmarias, privilégios exclusivos -- como a venda do sal e fabrico de sabão,
moinhos, fornos, serras de água -- e ao usufruto da redízima sobre as rendas
estabelecidas no foral henriquino.
A alçada dos capitães estava limitada apenas ao nível da justiça, pois eles não
poderiam suplantar as competências exaradas na carta do senhorio, que lhe
retiravam o direito de apelo e sentença no caso de morte ou "talhamento" de membro.
Todavia o infante ao conceder em 1440 a capitania da parte de Machico a Tristão Vaz
declarava que este lhe pertencia, o que levou D.Afonso V a rectificar na carta de
confirmação da capitania do Funchal a João Gonçalves Zargo, em 25 de Novembro de
1451. Aí o monarca é peremptório: "honde diz na carta do dicto meu tyo que a apelaçom de
morte e talhamento de menbro venha perante elle, queremos que venham perante nos segundo
he conteudo na carta [1433] del Rei meu senhor e padre susso escrito".
Para as ilhas de Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe os capitães usufruíram de amplas
prerrogativas nas doações. As condições específicas do povoamento, a distância do
reino assim o exigiam no sentido de uma maior operacionalidade. Note-se que estas
surgem em momentos posteriores, o que prova ser uma exigência da nova realidade,
desfasada do modelo madeirense. São elas ao nível da justiça e prende-se certamente
com a rebeldia de alguns dos vizinhos e, nomeadamente dos escravos. Esta
alargamento dos poderes nos feitos cíveis e crimes deu-se por cartas de 1511 e 1520.
Os atropelos do capitão eram punidos. Neste último caso todas as suas funções eram
delegadas no corregedor, que era em simultâneo como capitão e corregedor. Assim
sucedeu em 1550 a Jorge Pimentel com a presença de um corregedor e da suspensão
do cargo.
A intervenção dos capitães do donatário é, muitas vezes, plenipotenciária,
esquecendo-se que os seus poderes estavam limitados ao estabelecido nas cartas e às
inúmeras restrições que se sucederam noutros diplomas régios. O facto de no início
eles terem sido os principais representantes da soberania nestes espaços criou hábitos
plenipotenciários, que teimaram em deter mesmo quando passaram a estar
confrontados com a presença de novas instituições e funcionários. No caso
madeirense sabe-se que até à morte do infante D. Henrique a figura e presença do
capitão era dominante nos vários aspectos administrativos. Deste modo os
funchalenses, à morte do infante D.Henrique, em 1461 apresentaram ao novo senhor
um rol de reclamações em que clamavam por medidas capazes de frenar o livre-
arbítrio do capitão do Funchal. A afirmação da estrutura de poder municipal foi uma
das respostas mais adequadas à omnipresença do capitão. Mas, esta comunhão de
interesses nem sempre vingou junto do senhorio e, depois, da coroa.
são inúmeras as ocasiões em que o monarca, correspondendo ao apelo dos
capitães ou com o fim de agraciar os seus serviços, estabelece prerrogativas de
reforço da sua alçada. No caso do Funchal vimos a jurisdição ser ampliada em finais
do século XV e princípios do seguinte, momento em que a tendência ia no sentido
inverso: em 1487 o poder de julgar os feitos cíveis foi alargado para os 15.000 reais e
no caso dos escravos foi-lhes atribuída a faculdade de justiçar no corte de orelha
(1509). A primeira medida tornou-se extensiva a todas as capitanias por ordem régia
de 1520. Entretanto em 1509 o capitão do Funchal acumulava o cargo de vedor da
fazenda. E foi precisamente neste período que a coroa interveio no sentido de reforçar
o seu poder, retirando aos capitães algumas faculdades governativas, que passaram a
ser exercidas por novos funcionários: o almoxarife e o corregedor.
Em simultâneo com isto assistiu-se à plena afirmação do município. Ele que
estivera, por muito tempo, subjugado aos interesses do capitão passou a usufruir de
ampla autonomia: ele perdeu a faculdade de presidir às eleições e de confirmar os
funcionários eleitos, revertendo para a coroa e funcionários régios. Durante muito
tempo foi evidente o conflito entre os seus interesses e do município, tendo como
pano de fundo a perda de prerrogativas governamentais. Na ilha de são Miguel os
conflitos foram mais evidentes e perpetuaram-se por mais de dois séculos, sendo
exemplo disso os municípios de Vila Franca do Campo e Ponta Delgada.
A ilha de S. Tomé apresenta uma situação singular. Primeiro os povoadores não
estiveram sujeitos à forma de soberania intermédia, sendo os fruidores das doações,
em simultâneo donatários e capitães. Por outro lado com a presença de um
corregedor, a partir de 1514, o capitäo-donatário (designa-se assim por estar
acometido das funções do donatário e do capitão) viu a jurisdição suspensa, sendo as
suas funções depois exercidas por um capitão, nomeado pela coroa. Isto sucedeu a
partir de 1541. Neste último centralizaram-se todos os poderes judiciais e militares,
sendo apoiado por um ouvidor e um letrado.
O período de união das coroas peninsulares teve reflexos evidentes na figura
institucional dos capitães, sendo exemplo disso as posições assumidas por Rui
Gonçalves da Câmara e Tristão Vaz da Veiga, respectivamente capitães de S. Miguel
e Machico, que foram cometidos de amplos poderes ao serem nomeados
governadores de S. Miguel e Madeira. Esta foi a última expressão plenipotenciária
dos capitães: a sua alçada foi, paulatinamente, reduzida até se manter no usufruto
das rendas e títulos. Perante isto poder-se-á afirmar que a iniciativa do Marquês de
Pombal foi apenas para confirmar uma situação de facto. Desde 1766 as capitanias
deram lugar às alcaidarias-mores, extintas por decreto-lei de 13 de Agosto de 1832.
Esta mudança é justificada no alvará em causa como resultado absentismo de todos
os capitães.
A carta de doação da capitania, para além de regulamentar as regalias e alçadas,
estabelecia o tipo de relações entre senhorio e a capitania. O primeiro era vitalício,
mas devendo ser confirmado pela coroa todas vezes que mudasse de mãos, enquanto
as capitanias eram hereditárias, regendo-se a sucessão pela Lei Mental. O texto das
cartas é taxativo ao enunciar que ela deveria ter lugar "de descendente em
descendente por linha direita masculina". Todavia esta entrega era precária uma vez
que havia necessidade da confirmação régia todas vezes que a coroa e a capitania
mudassem de posse. A 1 de Novembro de 1450 João Gonçalves Zarco recebeu do
infante o domínio da capitania, mas só em 25 de Novembro de 1451 a coroa
confirmou o acto.
As capitanias poderiam ser vendidas, sujeitando-se o comprador a uma
confirmação do senhorio e da coroa: Pedro Correia da Cunha, capitão da ilha
Graciosa, casado com Iseu Perestrelo, filha de Bartolomeu Perestrelo, comprou à
sogra o direito de posse da capitania do Porto Santo, tendo obtido a anuência do
infante em 17 de Maio de 1458; no entanto esta foi depois considerada nula pela coroa
a pedido do herdeiro, Bartolomeu Perestrelo. A compra da capitania da ilha de S.
Miguel por Rui Gonçalves da Câmara foi confirmada pela infanta D. Beatriz em 10 de
Março de 1474, sendo a anuência régia dada em 20 de Maio e 13 de Julho do mesmo
ano.
Tal como o referimos a norma estabelecida para a sucessão determinava a maior
idade e a linha masculina do herdeiro. A prática admitiu algumas excepções,
surgindo mulheres à frente das capitanias. É o caso de D. Branca de Aguiar, filha de
António da Noli, que veio a receber em 8 de Abril de 1497 a posse da capitania da
Ribeira Grande (Santiago), sucedendo ao seu pai, que fora capitão de toda a ilha.
Algo semelhante teve lugar em S. Tomé onde o rei concedeu em 14 de Março de 1486
parte da ilha a Mécia de Paiva. Mas o monarca não violava as normas em vigor, pois
estabelecia que o cargo de capitão deveria ser exercido por aquele que casasse com
ela. A carta régia de confirmação é clara ao afirmar que ele deveria ser de "escolha e
vontade régia". Diferente foi o que sucedeu no Funchal em 1660 em que a morte do
oitavo capitão deixou a capitania sem herdeiro, ficando em poder da sua irmã, D.
Mariana Alencastre. Daqui resultou uma demanda entre vários pretendentes do sexo
masculino, que durou até 1676.
Casos houveram em que a doação era limitada: vitalícia ou por uma e mais vidas.
Por duas vidas poder-se-á testemunhar em 1477 com a entrega do ilhéu do Bugio ao
capitão do Funchal. Por três é conhecido o caso ilha de Maio doada em 1672 a D.
Maria de Menezes, enquanto que a vitalícia aconteceu em 3 de Janeiro de 1505 com a
concessão do gado bravo da ilha de Boavista a Pedro Correia. As duas últimas,
expressas num momento em que havia sido extinto o senhorio e por isso mesmo os
capitães dependiam directamente da coroa, testemunham uma nova fase, definida
por uma maior versatilidade dos usufrutuários.
A evolução do senhorio e capitanias nos Açores, Cabo Verde e S. Tomé atesta o
comportamento seguido pela coroa, que procurou articula-los de acordo com as
especificidades de cada capitania. Deste modo nos Açores estamos perante outra
forma da sua expressão, sendo o prelúdio de uma nova etapa. Aqui ao contrário do
que sucedeu no arquipélago madeirense nem todos as ilhas ficaram sob a alçada do
mesmo donatário. A omnipresença do infante D. Henrique não era tão dominante
como por vezes se pretende afirmar.
A ilha de S. Miguel esteve até 1449 entregue ao infante D. Pedro, permanecendo as
outras, à excepção de Flores e Corvo, em poder do infante D. Henrique. As duas ilhas
mais ocidentais, descobertas por Diogo de Teive e Fernão Teles em 1452, foram
doadas em 1453 a D. Afonso, duque de Barcelos.
O senhorio do infante D.Henrique foi alargado depois a cinco ilhas de Cabo Verde,
que teriam sido descobertas em 1460 por António da Noli, como o postula a doação
régia de 3 de Dezembro. Foi este vasto património que o infante concedeu em 22 de
Agosto de 1460 a D. Fernando, confirmado por alvará régio de 2 de Setembro e 3 de
Dezembro de 1460. As demais ilhas, posteriormente encontradas, mas ainda em vida
do infante D. Henrique, foram integradas no senhorio por carta régia de 19 de
Setembro de 1462.
O descobrimento e ocupação das ilhas do arquipélago de S.Tomé e Príncipe foram
tardios e surgiu numa época em que o senhorio estava já decadente. Deste modo as
ilhas não ficaram associadas ao património da Ordem de Cristo, sendo doadas por
iniciativa régia a particulares. A 24 de Setembro de 1485 a ilha de S. Tomé foi
concedida a João da Paiva, sendo esta limitada a 11 de Janeiro do ano imediato
apenas a metade, ficando a outra em posse da coroa.
João da Paiva, como detentor de S. Tomé, encontra-se numa posição semelhante à
de um donatário um vez que não foi residir nela, mandando em seu lugar João
Pereira, que surge como virtual capitão da ilha. Mas a efectiva ocupação só teve lugar
em 1493 por iniciativa de Álvaro Caminha, nomeado alcaide-mor, com amplos
poderes nas alçadas do cível e crime. As particularidades do processo de ocupação da
ilha levaram a que a coroa concedesse, por cartas de 8 de Dezembro de 1493 e 15 de
Dezembro de 1499, os poderes de sentenciar a pena de morte e mutilação de membro
aos escravos. Estas prerrogativas caducaram por carta de 4 de Janeiro de 1500. Note-
se que a posse da capitania, das terras que Vasco Anes Corte Real ia descobrir, foi
concedida em 17 de Setembro em idênticas condições.
Está ainda por definir a política seguida pelo senhorio e coroa na distribuição das
capitanias criadas nos quatro arquipélagos. Insiste-se no facto de que elas foram
concedidas aos usufrutuários como recompensa pelos serviços prestados ao senhorio
ou rei. Todavia isto não esclarece o porquê de uns receberem uma, duas ilhas ou
apenas parte delas. Se na Madeira isto ficou plenamente esclarecido com a divisão do
território das duas ilhas pelos três iniciais povoadores, o mesmo não se poderá dizer,
por exemplo, dos Açores onde é difícil encontrar explicação para a forma como foram
estabelecidas as capitanias. Primeiro foi Gonçalo Velho a surgir como capitão das
ilhas ou de apenas duas (S. Miguel e Santa Maria), sendo uma delas com a superfície
superior à da Madeira. Depois foi o seu parcelamento, iniciado com a Terceira em
1474 dividida em duas capitanias, entre Álvaro Martins Homem e João Vaz Corte
Real. O último foi também capitão de S. Jorge (1483). Esta derradeira situação
consideramo-la estranha, uma vez que tem lugar no momento em que S. Miguel, a
maior ilha de todo o arquipélago, é confirmada apenas a um capitão, enquanto esta,
que no início abrangia apenas uma capitania, teve que ser dividida em duas partes,
quando ainda existiam ilhas para entrega, como o Pico, Graciosa, S. Jorge.
Caso idêntico sucedeu em Cabo Verde onde em Santiago foram estabelecidas duas
capitanias, permanecendo as demais por ocupar e sem capitão. Aqui, a exemplo da
Terceira, surgem capitães em idênticas circunstâncias de João Vaz Corte Real:
Rodrigo Afonso foi detentor da capitania de Alcatrazes (1490) e da ilha de Maio,
enquanto Pedro Correia teve a parte de Santiago (1522) e toda a de Boavista (1505).
Como explicar esta diferente atitude na distribuição das capitanias insulares?
Dos quatro arquipélagos em análise sobressai a Madeira, não só pelo facto de ter sido
o primeiro ocupado mas também por esta ter sido efectiva e ordenada: as três
capitanias foram a solução que perdurou. Ao invés nos demais, embora no princípio
a tendência fosse para fazer corresponder a cada ilha um capitão, num segundo
momento a conjuntura foi diversa.
O impacto deste processo nos reinóis favoreceu uma maior presença de criados da
casa do infante D. Henrique ou da coroa. Além disso era cada vez mais numerosa a
multidão de cavaleiros e marinheiros da gesta africana que clamava por uma
recompensa. Perante isto houve necessidade de redefinir a política de entrega das
terras descobertas, de modo a que se pudesse contemplar todos os interessados. Esta
conjuntura ganhou forma a partir da década de sessenta com o governo do infante D.
Fernando. Na Terceira de uma única capitania de Jácome de Bruges fez-se duas, o
que também sucedeu em Santiago e são Tomé. Mesmo assim subsiste uma dúvida:
haveria algum motivo para que a maior ilha do arquipélago açoriano (S.Miguel), com
uma superfície superior à Madeira, continuasse na posse de apenas um capitão?
A única explicação possível deverá estar, segundo o nosso entender, no facto de
ela no princípio ter sido desfavorável à fixação de colonos. Os sismos e os
permanentes fenómenos vulcânicos afugentaram os primeiros colonos, como nos
testemunha Gaspar Frutuoso, pelo que foram poucos os que disputaram a sua posse.
Apenas Rui Gonçalves da Câmara, filho segundo do capitão do Funchal anteviu aí o
seu futuro como capitão. Deste modo poder-se-á concluir que a forma de entrega das
capitanias estava de acordo com as possibilidades que elas ofereciam, capazes de
despertarem a cobiça do numeroso grupo de interessados. Só assim se poderá
compreender a diversidade de opções na distribuição das capitanias: em vinte e
quatro ilhas apenas quatro (Madeira, Terceira, Santiago e S.Tomé) foram
subdivididas, ficando as outras a definir isoladamente (Porto Santo, Santa Maria,
S.Miguel, Flores, Corvo. Graciosa, Fogo, Santo Antão, Príncipe e Ano Bom), em grupo
(Santa Maria/S.Miguel, Flores/Corvo, Faial/Pico, S.Nicolau, S.Vicente, Brava, Sal e
Santa Luzia) ou em parte (Angra/S.Jorge,Alcatrazes /Maio e Boavista).
Em síntese poderemos afirmar que a estrutura institucional que deu forma à
sociedade implantada pelos portugueses nas ilhas, definida como senhorio,
abrangendo a quase totalidade das pertencentes aos arquipélagos da Madeira,
Açores, Cabo Verde, manteve-se até o governo de D. Manuel. Ele foi, em simultâneo,
senhorio e rei o que contribuiu para acabar com a última situação em 1498. A partir
desta data desapareceu o senhorio, forma intermédia de governo, mas mantiveram-se
os capitães, que passaram a responder junto da coroa. Também ficou demonstrado,
quanto ao aspecto formal das capitanias, que não há uniformidade, havendo ilhas na
posse de um capitão que dependiam directamente da coroa e outras subordinadas a
um senhorio. Por outro lado os capitães poderiam ser detentores de uma ou mais
ilhas ou apenas duma parcela delas, como sucedeu na Madeira, Terceira, Graciosa,
Santiago e S.Tomé.
Tal como tivemos oportunidade de afirmar o título de posse da capitania estava
sujeito a inúmeros impedimentos. Em primeiro lugar, era precário devendo ser
confirmado sempre que mudasse o rei. Além disso a sucessão fazia-se
obrigatoriamente pela linha varonil, pelo que a inexistência de tais condições
implicava a sua perda, revertendo a sua posse para a coroa. Foi pela última situação
que muitas capitanias foram extintas ou mudaram de mios. Deste modo torna-se
difícil, sendo impossível, traçar o quadro dos capitães dos donatários das ilhas, a data
das doações e confirmações bem como o período de governo. Apenas as capitanias
do Funchal e da ilha de S.Miguel se mantiveram na posse da mesma família até à sua
extinção com o Marquês de Pombal.
A família dos Câmaras em ambos os casos foi persistente na preservação deste
direito, não obstante os inúmeros contratempos que se sucederam. Em 1656 a do
Funchal esteve em vias de ser extinta pelo facto de João Gonçalves da Câmara morrer
sem deixar filho varão, ficando, excepcionalmente, na posse de D. Mariana de
Lencastre Vasconcelos e Câmara.

O MUNICÍPIO

Nos primórdios do povoamento dos arquipélagos a incipiente estrutura


institucional favoreceu a concentração de poderes na figura do capitão ou senhorio,
mas o rápido processo evolutivo a que as ilhas estiveram submetidas, associado as
incessantes e reclamados abusos levaram à inevitável quebra de poderes. Todavia
não tanto como seria desejável pela maioria. Note-se que no caso do Funchal a família
do capitão continuará a deter uma posição privilegiada até ao século XVII. A par
disso o escasso corpus legislativo disponível propiciou isto pelo que a forma mais
adequada de o combater foi o recurso a medidas regulamentadoras dos vários
aspectos da sociedade.
O governo local na Madeira até 1461 regeu-se pelo foral henriquino, concedido à
ilha em data incerta. Mas nele não se consignavam todas as determinações possíveis,
pelo que muito ficava ao arbítrio do capitão. Foi contra o poder majestático do
capitão e servidores que os vizinhos do Funchal reclamaram ao novo senhor da ilha,
em 1461, a plena afirmação da estrutura municipal. Os regimentos e regulamentos
que se seguiram e uma maior actividade do ouvidor do senhorio motivaram a nova
estratégia de governo do infante D. Fernando para as áreas do senhorio.
A criação, ou melhor, a plena afirmação do município poderá ser considerado o
prelúdio, ainda que frustrado, de uma nova era para a História das recém-criadas
sociedades insulares. O município afirmou-se, em qualquer dos arquipélagos, num
momento avançado do povoamento, quando os povoadores tomaram consciência da
sua capacidade de intervir na vida política e sentiram os efeitos da política despótica
dos capitães ou seus ouvidores. Mas a omnipresença destes foi substituída pela das
oligarquias locais. Facto comum a todos os arquipélagos. No Funchal ou em Ponta
Delgada, é patente o empenho do capitão em subordinar esta estrutura de poder aos
seus interesses, entregando os cargos a parentes e servidores, ou actuando à margem
dela. Durante os séculos dezasseis e dezassete parte significativa dos conflitos
municipais são gerados por estes. Entende A. M. Hespanha 170 que a questão é o
detonador que faz gerar a dissolução da estrutura institucional medieval e afirmar a
moderna. Todavia esta é uma questão, que para as ilhas, ainda está em aberto e a
merecer a atenção de um dedicado investigador.
Em todos as ilhas a política de criação de novos municípios obedeceu a
determinados princípios: primeiro estabeleceu-se para cada capitania um município
que depois se subdividiu, de acordo com o progresso das localidades que aí

170 Poder e instituições na Europa do antigo regime, Lisboa, 1979,33.


emergem, do isolamento e da capacidade reivindicativa dos munícipes. Excepção
acontece nas ilhas de Cabo Verde onde tardou o povoamento.
O poder municipal adquiriu a plena pujança apenas na primeira metade do século
dezasseis. Só então lhe foi concedida maior legitimidade governativa. Data também
daí a subdivisão das capitanias em mais que um município. No Funchal, surgiram os
de Ponta de Sol (1501) e Calheta (1502), enquanto em Machico apenas foi permitido o
de Santa Cruz (1515). Entretanto na ilha de S. Miguel, um pouco maior que a
Madeira, o primitivo município de Vila Franca do Campo deu lugar a outros cinco:
Ribeira Grande (1507), Nordeste (1514), Agua de Pau (1515), Lagoa (1522) e Ponta
Delgada (1546).
Na pequena ilha de S. Jorge as dificuldades provocadas pela orografia
condicionaram a existência de três municípios para pouco mais de três mil
habitantes: Velas (> 1503), Topo (1510) e Calheta (1534). Enquanto na Terceira para
além dos dois municípios existentes, um em cada capitania, surgiu outro em 1503 no
lugar da Ribeira de Frei João, que se chamou de S. Sebastião. Isto contribui para
evidenciar, por um lado, a falta de um critério na política régia de criação dos
municípios, e, por outro, a maior capacidade reivindicativa dos açorianos, contrária à
presença de uma oligarquia forte nas sedes das capitanias. Só assim foi possível o
alargamento da estrutura municipal.
Desconhecemos os primórdios da estrutura municipal nos arquipélagos do golfo e
costa da Guiné, mas sabemos terem existido nas ilhas inicialmente ocupadas, isto é,
Santiago, Fogo, S. Tomé e Príncipe. Na primeira ilha a existência de duas capitanias
justificou a subdivisão em dois municípios: um com sede na Ribeira Grande e o outro
em Alcatrazes. Mas aqui a estrutura de poder terá permanecido por muito tempo
incipiente, dominada por uma reduzida mas forte oligarquia local: o número limitado
de vizinhos habilitados para o exercício desse poder -- os homens-bons -- levou a
câmara da Ribeira Grande a solicitar em 1562 à coroa que os almotacéis servissem por
três meses uma vez que não era possível reunir um grupo de vinte quatro homens
habilitados para o exercício deste cargo.
O grupo de funcionários que corporizavam a estrutura municipal nestas ilhas era
muito mais reduzido do que o dos arquipélagos da Madeira e Açores, adequando-se
aos níveis de povoamento das ilhas. Em Cabo Verde nos dois municípios de Santiago
estávamos perante dois juízes e vereadores, um procurador do concelho, escrivão,
meirinho e físico, enquanto no do Fogo o grupo resumia-se apenas a um juiz, dois
vereadores e um escrivão. No primeiro caso a alçada dos juízes estava perfeitamente
definida: um dedicava-se às causas dos marinheiros e do mar enquanto o outro
atinha-se à justiça dos que tinham assento em terra firme. Estávamos perante um
município original com alçada no espaço terrestre mais também marítimo. Tudo isto
porque Santiago era uma ilha de vocação marítima por excelência. Em S. Tomé, onde
existiu apenas um município com sede na Povoação. Aí a estrutura do senado da
câmara era em tudo semelhante à de Santiago. Diferente foi o caso da ilha de Príncipe
onde esta estrutura foi substituída pela presença de um capitão, almoxarife e juiz
ordinário.
OS FUNCIONÁRIOS

Em qualquer dos casos em análise a estrutura institucional do município era


definida por um conjunto variado de funcionários com competências específicas, que
podem ser escalonados da seguinte forma:

1. Oficiais de nomeação régia;


2. Oficiais eleitos por sufrágio indirecto, pelos
Vizinhos;
3. Funcionários administrativos, de provimento régio.

Esta disposição formal é gradativa e define as competências de cada. Os primeiros,


nomeadamente o corregedor e alcaide, detinham maior capacidade governativa do
que os outros. Os segundos -- vereadores, procurador do concelho, almotacéis,
guardas mores de saúde, procuradores dos mesteres -- eram eleitos de entre um
grupo restrito que a ele tinha acesso. O senhorio e a coroa intervinham activamente,
pois eram eles que estabeleciam as listas de homens-bons, donde se retiravam os
eleitos. A par disso os cargos de nomeação foram, num primeiro momento, de
iniciativa do senhorio e só depois, a partir de 1497, passaram a ser da
responsabilidade da coroa.
De acordo com os alvarás régios de confirmação das listas e da assiduidade às
reuniões do município é possível saber qual a importância e a capacidade
interventiva dos vários estratos sócio-profissionais na vida municipal. Neste caso
alguns dos estudos feitos para a Madeira e Açores confirmam a existência de uma
oligarquia local. A eleição dos oficiais concelhios era feita de modo indirecto a partir
de uma pauta onde estavam tombados todos os homens-bons do concelho, isto é,
todos aqueles que aí residiam e que se encontravam aptos para o exercício das
funções.
Trienalmente procedia-se, a partir da pauta, à elaboração de três róis para os
cargos de juiz, vereador e procurador com os nomes daqueles que haviam de exercer
os cargos nos três próximos mandatos. Depois eles eram colocados individualmente
em pequenas bolas de cera (= pelouros) e distribuídos por três sacos, de acordo com
os cargos, e guardados numa arca às ordens do porteiro da câmara e um dos juízes
eleitos. No final de cada mandato procedia-se à abertura solene da arca e dos
pelouros.
Os homens-bons, mesmo não fazendo parte da vereação, poderiam participar nas
reuniões concelhias e emitir parecer ou voto. Nas vereações quatrocentistas do
Funchal isto surge com assiduidade, quase sempre motivada pela necessidade de
estabelecer posturas sobre a cultura e comércio do açúcar. Das partes mais recônditas
da Calheta à Ribeira Brava, vinham os homens-bons, proprietários de canaviais, a
defender os seus interesses.
A presença dos demais vizinhos, em geral, estava simbolicamente estabelecida na
figura do procurador do concelho e depois, a partir de 1482, nos representantes dos
mesteres. No Funchal a lista era aprovada pela coroa, sendo o rei quem indicava os
vizinhos que aí deveriam constar. Das diversas listagens disponíveis a partir de 1470
sabe-se da presença maioritariamente do grupo possidente da capitania, que se
afirmara com a cultura açucareira. Deste modo os seus interesses eram coincidentes
com os do município funchalense. Idêntico foi o caso de Ponta Delgada, onde os
produtores de cereal fizeram mais do que uma vez aprovar medidas que lhes eram
favoráveis.
A representatividade dos diversos estratos sociais nos municípios de Cabo Verde e
S. Tomé apresentava-se distinta, pois aí a diferente estrutura social, demarcada pela
forte presença de escravos e libertos gerou inúmeras dificuldades. No caso de S.
Tomé elas desembocaram num confronto racial: dum lado o branco e do outro os
mestiços. Tudo isto surgiu a partir de 1520, quando o rei autorizou os últimos,
vizinhos da ilha e na condição de casados, a poderem entrar para os cargos da
câmara.
Em 1545 a situação estava expressa no senado onde os dois juízes representavam,
separadamente, os interesses de ambos os grupos. Foi em torno deles que se gerou
um alvoroço. Entretanto em 1554 os mestiços, descontentes com a fraca
representatividade no município manifestaram-se contra o sistema de eleição por
pelouros, reivindicando que fosse feita a "vozes". Mas como não foram aprovados
pelas autoridades, provocaram um motim que só foi sanado com a prisão dos
cabecilhas. Este episódio define uma das únicas contestações conhecidas contra a
forma de eleição dos oficiais concelhios e à sua representatividade.
A intervenção do município nos arquipélagos de S. Tomé e Cabo Verde não pode
ser rastreada uma vez que nos faltam os documentos capazes de nos elucidar sobre
isso. Perderam-se as actas camarárias e com elas o testemunho dos anseios e
preocupações destas gentes. Elas surgem só para a vila de Santo António de Príncipe
a partir de 1672 171 , enquanto no Funchal elas datam de 1472 e nos demais municípios
da Madeira e Açores aparecem com certa abundância nos séculos dezasseis e
dezassete. Apenas em S. Tomé estro disponíveis alguns documentos que espelham a
situação vivida na segunda metade do século dezasseis com os alvoroços que tiveram
lugar.
O funcionamento do município e o número de funcionários dependiam da
importância de cada um e do avolumar dos problemas em debate. As ordenações e os
regimentos régios estabeleciam a obrigatoriedade de duas sessões semanais para o
senado da câmara, mas esta ordem só foi cumprida nos municípios de maior
dimensão, como Funchal, Ponta Delgada e Angra. Nos restantes municípios apenas
uma reunião semanal ao sábado era o suficiente para atender aos problemas que a
vivência municipal colocava. Estão neste caso os municípios de Velas (S.Jorge), Ponta
de Sol e Calheta.

171 . Fernando Castelo BRANCO, Actas da Câmara de Santo Antonio da ilha de princípe. 1672.1677,Lisboa, 1970.
Na Madeira e Açores este ritmo de actividade era apenas quebrado com o
redobrar da faina dos campos em tempo das colheitas -- cana, cereais, pastel e uvas --,
passando as reuniões a realizarem-se quinzenalmente ou fazia-se uma pausa, por um
período determinado, nos meses de Verão. Por outro lado a leitura das actas revela
que os três primeiros meses do ano eram aqueles de mais intensa actividade.

A ALÇADA

Uma das principais preocupações do município estava no assegurar aos


munícipes os meios básicos de subsistência, procurando a evitar qualquer rotura nos
abastecimentos. As posturas definiam as regras que os oficiais procuravam cumprir
com o máximo dos escrúpulos. Todavia a não correspondência entre o ano civil,
porque se regia o governo municipal, e o ano agrícola, era gerador de dificuldades.
Daí surgiu a necessidade de se ajustar o ano administrativo ao calendário agrícola. A
medida parece ter sido seguida na Madeira até à década de setenta do século quinze,
enquanto nos Açores teve expressão prática em Vila Franca desde 1577 e Ponta
Delgada a partir de 1605. A partir daqui o mandato passou a ter início no dia de S.
João.
As prerrogativas que definiam a alçada do município estavam exaradas no foral,
concedido, pelo senhorio ou coroa, às localidades nesta situação. Na Madeira o
primeiro foi dado pelo infante D. Henrique, cujo texto se perdeu, seguindo-se outros
em 1472, 1499 e 1515 172 . O penúltimo ficou conhecido como foral novo.
O do século dezasseis foi uma tentativa uniformizadora da capacidade de
intervenção dos municípios, pois foi extensivo a todos os da ilha. Depois foram
utilizados nos Açores, com ficou testemunhado no caso de Ponta Delgada e Angra.
Para S. Tomé são conhecidos dois forais (1485 e 1524) concedidos em idênticos
moldes dos madeirenses 173 .
Os regimentos régios, ou as respostas pontuais às dúvidas colocadas pelos
munícipes complementavam a sua alçada e a capacidade de intervenção dos
funcionários. Algumas destas ordens foram depois compiladas no articulado das
ordenações do reino. É o caso dos regimentos do feitor do trato de S.Tomé de 1532 174
e de Santiago de 1520 175 .
A alçada do município era estabelecida, de forma simbólica, pelo selo, bandeira e o
pelourinho. A eles juntava-se o foral onde era atribuído o estatuto de vila e as regalias
que tinha direito. Mas as vilas criadas pelo infante D. Henrique na Madeira não
usufruíam de tais prerrogativas, pois as duas primeiras foram concedidas em 1461
pelo infante D. Fernando, a pedido dos vizinhos do Funchal e o último, símbolo do
braço implacável da justiça, só foi dado em 1486 por D. Manuel.
A ideia básica de criação do município resultou da necessidade de regulamentar
os aspectos do quotidiano e a urgência no estabelecimento de uma estrutura

172. Referenciado no foral manuelino de 1515, Monumenta Henricina, XV, 1974, 150-151.
173. Monumenta Missionaria Africana,XIV, 3-7 e 65-73, cartas de 16 de Dezembro e 19 de Maio.
174. Ibidem, II, nº 7, 14-15, regimentos de 2 de Agosto.
175. História Geral de Cabo Verde - corpo documental, nº 101, 281-283, 16 de Dezembro de 1517; nº 107, 295-301, 13 Janeiro de 1520.
institucional que fosse porta-voz dos anseios das populações. Deste modo é legítimo
de concluir que os interesses locais estavam à frente dos outros e que a sua acção
incidiu, principalmente, neste âmbito. A isto deverá juntar-se a limitada capacidade
judicial.
De um modo geral podemos considerar que o município nos séculos XVI e XVII
desfrutava de ampla autonomia e de elevada participação das gentes na governança.
Todavia a prática municipal veio a revelar alguns atropelos que levaram a coroa a
limitar a alçada por meio de funcionários régios, como o corregedor. Tendo em conta
a situação criada pelos monarcas filipinos, quando da união das coroas peninsulares
(1580-1640), procuraram cercear os poderes dos municípios portugueses procedendo
a algumas mudanças na estrutura na orgânica.
A intervenção e a alçada dos cargos municipais, porque já definidas nas
ordenações e regimentos régios, não aparecem no código de posturas. Aqui apenas se
estabeleceram normas para serviço dos funcionários municipais, como sucede com os
rendeiros do verde e os almotacéis.
Pelos acórdãos e posturas, insistentemente divulgados em praça pública, sabe-se
do empenho dos vereadores sobre os aspectos do quotidiano das gentes: defesa dos
usos e costumes, da salubridade pública e a manutenção do equilíbrio entre as
actividades económicas. Eis alguns dos domínios preferenciais.
Dos aspectos da justiça, cuja actuação está expressa no número variado de
funcionários -- juiz de fora, juízes pedâneos, alcaide, carcereiro, quadrilheiro,
meirinho da serra e cidade, guardas mores --, é necessário referir a limitada alçada,
resumindo-se apenas aos feitos cíveis, referidos nas posturas.

AS POSTURAS MUNICIPAIS

Definida que foi a estrutura de poder municipal importa agora saber como
intervinham na sociedade em que se inserem. Mas isto só se torna possível quando se
encontrem disponíveis os livros dos acordos . No caso das ilhas persistem inúmeras
lacunas que impossibilitam um estudo exaustivo. As mais antigas de vereações que
se conhece, ainda que incompleta, são a da Câmara do Funchal, que se inicia em 1472.
Por isso, e tendo em conta que a maioria das deliberações são conjunturais e de que
só as posturas, porque perdulárias, poderiam expressar melhor a situação, optamos
por analisar as últimas disponíveis apenas para o Funchal, Angra, Ponta Delgada,
Ribeira Grande e Vila Franca do Campo 176 .
As posturas, que surgiram como normas reguladoras dos múltiplos aspectos do
quotidiano do burgo, são o testemunho mais evidente da mundividência do
município. De acordo com as ordens e regimentos concedidos ao burgo, o município
estava incumbido de atribuições legislativas particulares, resultantes, nomeadamente,
da necessidade de adaptar as ordens gerais do reino às particularidades do espaço a
que seriam aplicadas: por um lado existiam as ordens gerais, estabelecidas pela

. Alberto VIEIRA, "As posturas municipais da Madeira e Açores nos séculos XV a XVII", in III Colóquio Internacional sobre os Açores
176

e Atlântico, Angra do Heroismo, 1989.


coroa, e por outras as normas de conduta institucionalizadas no direito
consuetudinário, que definia as peculiaridades da vivência local.
As características ou vectores das sociedades e economias insulares reflectem-se
no articulado das posturas. Deste modo poder-se-á entender que a maior ou menor
valorização resulta da premência do quotidiano na política municipal.
Contabilizadas as posturas dos cinco municípios constata-se, ao nível dos sectores
de actividade económica, a dominância do sector terciário com 53% delas, seguido do
secundário com 39% e do primário com apenas 8%. Esta tendência para a
terciarizaçäo da realidade sócio-económica resulta, por um lado, do facto de o meio
urbano contribuir com maior número de situações que carecem de normas e, por
outro, reflexo da sua dominância na vida económica. Todavia é necessário ter em
conta que isto não é igual nos diversos municípios. No Funchal os sectores
secundários e terciário encontram-se quase ao mesmo nível, ao contrário do que
sucede com Angra onde o último tem uma posição dominante.
A afirmação dos sectores secundária e terciário poderá ter diversas origens. Em
primeiro lugar convém referenciar que as posturas incidem preferencialmente sobre a
urbe, espaço privilegiado do sistema de trocas e oferta de serviços. Acresce ainda que
esta função sai reforçada pelo carácter atlântico e europeu das cidades em causa. Isto
torna-se mais evidente no Funchal, Angra e Ponta Delgada, importantes pólos de
atracção do movimento comercial insular e inter-continental. Além disso a actividade
oficinal e comercial do burgo implicava também uma maior atenção mercê do maior
número de situações anómalas.
Ao contrário a mundividência rural perpetuava técnicas e relações sociais
ancestrais, sendo o processo regulado pela rotina e ritmo das colheitas. Aí pouco ou
nada mudava com o decorrer dos anos. Deste modo o legislador municipal orientava
a atenção para o quotidiano do burgo, marcado pelo sucedâneo de mudanças. Mas
nas sociedades em que a faina rural se tornava importante e definidora dos vectores
sócio-económicos e onde as culturas necessitavam de excessivos cuidados, este
domínio não poderia ser menosprezado. Daí resulta a presença desta temática em
13% das posturas, na sua maioria dos municípios de Vila Franca do Campo e Ponta
Delgada, ambos na ilha de S. Miguel.
Tal como tivemos oportunidade de o afirmar o povoamento e exploração do
mundo insular fez-se de acordo com os componentes da dieta alimentar do íncola -
trigo/vinho - e dos produtos impostos pelo mercado europeu para a satisfazer as
necessidades das praças europeias (açúcar e pastel). O primeiro grupo de produtos
agrícolas, pela importância que assumem para a vivência quotidiana das gentes
insulares, solicitava maior empenho do município. Daí resulta a sua repercussão em
pelo menos 50% das posturas. Note-se que o último grupo mereceu apenas referência
em 15% delas .
A presença dos referidos produtos nos dois arquipélagos não obedecia apenas às
especificidades definidas pela orografia e clima, pois também resultava das
orientações da política agrícola definida pela da coroa e necessidades emergentes da
subsistência das populações. Tais condicionantes implicaram uma ambiência típica
no mundo insular atlântico, reflectindo-se na vivência de cada burgo.
A abundância ou carência das culturas e produtos de subsistência conduziam
diversas atitudes por parte do legislador. No primeiro caso ela abrangia todos os
aspectos da vida económica do produto, enquanto no segundo incidem
preferencialmente sobre o abastecimento do mercado interno, com normas
adequadas ao normal funcionamento dos circuitos de distribuição e troca. Assim, se
justifica a similar importância atribuída às posturas cerealíferas em S. Miguel (Ponta
Delgada e Ribeira Grande) e Terceira (Angra). Enquanto a primeira se pode
considerar como um importante celeiro do mundo insular a última surge, desde
meados do século XVI, como uma área carente que assegurava o seu abastecimento
nas ilhas vizinhas. O mesmo ocorre semelhante ocorre no Funchal, Ponta Delgada e
Angra. Apenas com os produtos típicos da economia colonial - açúcar e pastel - a
situação é idêntica na Madeira e são Miguel.
A pecuária assume em todo o espaço agrícola insular um papel fundamental
mercê da tripla valorização económica na faina agrícola, dieta alimentar e indústria
do couro. Este sector foi relevante nos municípios de Ponta Delgada, Angra e
Funchal. O seu incentivo conduziu a um maior empenho da alçada municipal na
venda de carne nos açougues municipais bem como das indústrias de curtumes e
calçado.
No caso da carne do legislador local intervêm de modo diverso: a carência
implicava uma regulamentação mais cuidada e assídua do senado do que a
abundância. Isto é evidente em Angra e Ponta Delgada, municípios que faziam
depender o abastecimento pecuário das localidades ou ilhas vizinhas. Ponta Delgada
assegurava em Santa Maria, Ribeira Grande e Vila Franca do Campo a ração de carne
e derivados, enquanto Angra fazia depender o abastecimento das ilhas de S. Jorge e
Graciosa.
O desenvolvimento da indústria de couro tinha implicações na salubridade do
burgo o que levava o senado a regulamentar rigorosamente a actividade, definindo
os locais para curtir e lavar os couros, bem como o modo de laboração dos mesteres
ligados a indústria A par disso procurou-se assegurar a disponibilidade da matéria-
prima para a indústria do calçado, proibindo-se a saída. A conjuntura é comum a
Angra, Funchal e Ponta Delgada. Esta medida aliada a outras, tendentes à defesa da
salubridade do burgo, revelam que a pecuária era importante. Era daí que se
extraiam a carne para a alimentação, os couros, para a indústria de curtumes e o
estrume para fertilizar as terras, além do usufruto da força motriz no transporte ou
lavra das terras. Este sector foi uma grande fonte de riqueza e, portanto, merecedor
de redobrado empenho pelos municípios do Funchal e Ponta Delgada.
A presença da pecuária e actividades dela derivadas geravam inúmeros
problemas. É o caso dos danos causados pelo gado solto, não apastorado, nas
culturas, nomeadamente vinhas, searas e canaviais. Daí resultou a necessidade de
delimitar as áreas de pasto e a obrigatoriedade de cercar as terras cultivadas. Depois
um conjunto variado de pragas infestava, com assiduidade, as culturas o que
obrigava a uma participação conjunta de todos os vizinhos. Uma das principais
resultava dos efeitos nefastos da presença dos pássaros, nomeadamente os canários e
corvos: os primeiros incidiam com frequência sobre o município de Vila Franca do
Campo. Para os combater os municípios estipulavam a obrigatoriedade de todos os
vizinhos apresentarem com periodicidade um número variado de cabeças dos
referidos pássaros, que depois seriam registadas em livro próprio. O número era
variável de acordo com o espaço agrícola e com a urgência do combate.
No domínio agrícola o empenho do município variava, de acordo com a
dominância das culturas existentes na extensa orla agrícola que cercava a vila. No
Funchal, que abarcava uma das mais importantes áreas de cultivo de cana-de-açúcar,
quase todo o empenho estava nos canaviais e engenhos, definindo a cada um o
complexo processo de cultivo e laboração do açúcar. Nos Açores, conhecidos desde o
século XV como o principal celeiro português, maior atenção foi atribuída ao
problema cerealífero.
Estranhamente a cultura do pastel, que tinha uma importância relevante na
economia micaelense, não mereceu grande empenho no código das posturas. Em
Ponta Delgada temos apenas duas e em Vila Franca do Campo sete, enquanto em
Angra só se referencia uma única sobre a urzela. As poucas referências às plantas
tintureiras deverão resultar certamente das existências de regimentos régios que
regulamentavam, até ao pormenor, o cultivo, transformação e comércio do produto.
Todavia no caso da Madeira com o açúcar existiram, em simultâneo, os regimentos
régios e as respectivas posturas.
O abastado celeiro açoriano, de finais do século XV e princípios do XVI,
apresentou-se, a partir de meados do século XVI, como um apertado granel, incapaz
de suprir as necessidades de pão dos insulares, cada vez mais numerosa, e do
mercado lisboeta, norte africano e madeirense, carentes dos parcos excedentes da
produção açoriana. As sete espigas viçosas haviam perecido dando lugar a outras
raquíticas e improdutivas. O solo estéril e cansado negava-se a produzir o precioso
cereal na proporção que o havia fazendo. O ilhéu habituado ao consumo de pão viu-
se obrigado a procurar outras formas de alimento sendo quisesse passar fome.
Esta conjuntura da cultura cerealífera conduziu ao depauperamento dos rendeiros,
enquanto os senhorios, mercê da acção especulativa e o contrabando, continuavam a
aumentar os seus proventos. Perante isto tornava-se urgente o estabelecimento de
uma política cerealífera capaz de os debelar e de evitar o desequilíbrio entre as
colheitas e o consumo. Mas isso só seria possível mediante o controlo total dos
circuitos de distribuição. Daí resultou a necessidade de manter as reservas
necessárias para o consumo local e provimento das naus da carreira das Índias, que
aportavam aos portos açorianos.
Esta política cerealífera do arquipélago açoriano não é original no contexto
europeu, pois que em toda a Europa e áreas oceânicas carentes se universalizaram
tais medidas. É certo que a cada área correspondia um caso variado e multifacetado,
onde esta orientação padronizada carecia dos necessários reajustamentos e
adaptações. Sendo o arquipélago açoriano definido, desde o início, como uma área de
comércio de cereais onde a conjuntura foi desfavorável, houve necessidade de
adequar a política de abastecimentos a esta realidade.
Todo o empenho das autoridades locais e régias estava na satisfação das
necessidades do arquipélago, do provimento das naus do reino e do trato obrigatório
das áreas carentes (Madeira, Norte de África). Deste modo o comércio rendoso
tornava-se, quase impossível. A vigilância constante sobre os preços lesava a classe
mercantil impelindo-a para a especulação e contrabando possíveis.
A política cerealífera açoriana baseava-se, essencialmente, em duas formas de
actuação diferenciadas, mas complementares:

1. controlo/regulamentação/proibição do comércio e transporte de cereais no


mercado interno e externo;

2. controlo das colheitas e dos circuitos de reabastecimento e guarda do cereal,


com o estabelecimento de uma reserva, o trigo do exame.

A actuação do município era variável e adaptava-se às circunstâncias emergentes


do ciclo vegetativo do cereal. De Julho a Agosto, com a colheita do cereal, era feita a
primeira vistoria aos granéis para avaliar os stocks da colheita e arrecadar a
percentagem de trigo dos exames, que ficaria de reserva. De Setembro a Novembro
carregava-se o trigo necessário para o mercado africano, madeirense e a exportação
possível.
Concluídas estas iniciativas começavam a surgir as primeiras dificuldades no
provimento da população, sendo necessário pôr cobro à actividade de contrabando
por meio de um apertado sistema de vigilância e controlo das saídas, ou a proibição.
Estas medidas estabeleciam-se de acordo com o volume da reserva de cereal.
A partir de Janeiro a falta de cereal tornava-se uma realidade permanente,
ameaçando o abastecimento do povo e dando azo à especulação geradora, muitas
vezes, de motins populares. Mas somente entre Março/Abril/Maio se procedia à
abertura do trigo dos exames nas diversas localidades, que tinha preço estabelecido
pelos vereadores. A sementeira havia esgotado os últimos alqueires dos stocks de
cereal dos rendeiros.
A exequibilidade das medidas tomadas ou estipuladas para cada momento
dependia, em primeiro lugar, da iniciativa do procurador do concelho e, depois, do
espírito reivindicativo das gentes, expresso quase sempre em motins. A actuação dos
vereadores era ambígua e expressava-se de acordo com a sua origem social. Note-se
que aí tinham assento representante do povo e dos grandes proprietários senhorios e
burguesia, comprometidos com o comércio de cereais.
Os componentes da dieta alimentar insular adquiriram um lugar de relevo na
intervenção dos municípios que a isso dedicaram 47% dos capítulos dos referidos
códigos de posturas. Tudo isto, a par da constante interpelação dos vereadores,
demonstra as assíduas dificuldades em assegurar as necessidades vitais dos
municípios. Tal empenho era, no entanto, muito variável, adequando-se à realidade
agrícola e conjuntura produtiva de cada urbe.
Tudo isto resultou, certamente, do facto de a dieta alimentar manter a ancestral
origem mediterrânica, sendo pouco variada, o que colocava inúmeras dificuldades ao
abastecimento do meio urbano. O pouco uso dos legumes e peixe derivava do abuso
de pão e vinho.
Sendo os mares insulares ricos em peixe e marisco, e toda a vivência das
populações dominada pelo mar e extensa costa, não se compreende o menosprezo
pelas riquezas alimentares marinhas em favor da carne. Note-se que as posturas
referentes à carne duplicam em relação às que referenciam o peixe. O peixe aparece
apenas nas posturas em Angra e no Funchal: aí regulamenta-se, não só a venda, mas
também a pesca, dando-se especial relevo em Angra à forma de distribuição no
mercado local.
A importância relevante do pão e da carne nos hábitos alimentares das populações
das ilhas implicou um redobrado empenho do município sobre a sua circulação e
venda. Na verdade o código de posturas acompanhava todo o processo de criação,
transformação, transporte e venda. Igual foi a incidência sobre o quotidiano que
envolve a actividade dos meios de produção a eles ligados(azenhas, atafonas, fornos
e açougue municipal).
O moleiro deveria ser habilitado e diligente no ofício, tornando-se obrigatório o
exame e o juramento anual no senado da câmara. Além disso os vereadores
fiscalizavam, diariamente, o medir do cereal, da farinha e o acto de maquiar. Na
Madeira tal tarefa estava a cargo de um rendeiro dos moinhos. Este domínio mereceu
apenas uma cuidada atenção nas posturas de Angra, Ribeira Grande e Funchal, o
mesmo não sucedendo em Ponta Delgada, que fazia moer o seu trigo nos moinhos
existentes na Vila da Ribeira Grande.
Uma vez que os moinhos disponíveis eram movidos a água estavam,
obrigatoriamente, situados nos locais onde ela existia em abundância e podia ser
canalizada para tal fim. Na Terceira só Angra apresentava em 1694 doze moinhos,
estando outros treze repartidos pela ilha. Para o Funchal esta presença era evidente
também na cidade, onde existiu mais de oitenta, sendo o eixo de maior concentração
a margem direita da ribeira de Santa Luzia.
A necessidade de precaver o moinho contra qualquer dano na farinha e farelo
levou o município a estabelecer a proibição de existência nas proximidades de
pocilga e capoeira. Além disso a animação desusada do espaço circundante ao
moinho tornava necessária a estabelecer normas de conduta social no sentido de
moralizar e disciplinar o comportamento dos habituais frequentadores. Na Madeira
as mulheres casadas ou mancebas não podiam frequentar nem prestar qualquer
serviço na moenda.
Ao moinho sucedia o forno, colectivo ou privado, que assegurava a cozedura do
pão consumido no burgo. Mas a afirmação pública deste espaço resultava da
existência de factores propiciadores disso em cada ilha ou vila. Na Madeira e Açores,
após uma fase inicial em que eles foram privilégio do senhorio, assistiu-se a uma
excessiva proliferação de fornos no burgo e arredores. Todavia a maior parte do pão
aí consumido era resultado dos fornos públicos.
O município procurava exercer um controlo rigoroso sobre o peso e preço do pão.
Ambos eram fixados pela câmara de acordo com a situação das reservas de cereal
existente nos celeiros locais. Além disso, em momentos de penúria, eram os
vereadores que distribuíam o cereal às padeiras. Esta preocupação surge apenas no
Funchal, estando a cargo dos almotaceis que procuram manter o controlo sobre o
fornecimento do cereal ou farinha e o fabrico do pão, com a conferência do peso e
preço de venda ao público. Tenha-se em conta que a vila, e depois cidade, esteve
desde finais do século XV, sob o espectro da carência de cereais. Isto gerou, como é
óbvio, especiais cuidados por parte da vereação.
O único reflexo de uma similar atitude municipal nas ilhas açorianas situa-se
apenas na feitura e venda do biscoito, elemento indispensável para a dieta de bordo
das inúmeras embarcações que
demandavam o arquipélago. Sendo os portos de Angra, Funchal e Ponta Delgada
importantes entrepostos do comércio atlântico são naturais a redobrada atenção
atribuída ao fabrico de biscoito.
O açúcar, pelo contrário, afirmou-se na economia insulana como o principal
incentivo para a manutenção e desenvolvimento do sistema de trocas. Tal facto,
associado ao carácter especializado da cultura e fabrico do açúcar, tornou necessária a
regulamentação pelo código de posturas na Madeira.
A intervenção municipal não se resumia apenas aos canaviais e ao processo de
fabrico do açúcar, alargando-se também a outros domínios que contribuíram de
modo indirecto para o desenvolvimento da cultura. Assim se justificava a extremada
atenção concedida às águas e madeiras, dois elementos imprescindíveis para a
cultura e indústria açucareira. Neste domínio a acção municipal adequava-se às
condições geofísicas de cada área produtora, variando as iniciativas de acordo com a
maior ou menor disponibilidade de ambos os factores de produção.
A Madeira, desfrutando de um vasto parque florestal e de abundantes caudais de
água, não necessitava de intervir exageradamente neste domínio, reservando maior
atenção às actividades em torno do engenho. As posturas definiam os cuidados a ter
com a cultura dos canaviais, transporte da cana e lenha pelos almocreves, bem como
a actividade dos diversos mesteres no engenho.
A este numeroso grupo de agentes de produção que asseguravam a o
funcionamento do engenho era exigido o máximo de esforço para que o açúcar
branco extraído apresentasse as qualidades solicitadas pelo mercado consumidor
europeu. Neste caso valorizou-se a formação dos operários especializados do fabrico
de açúcar (refinadores, purgadores...) ao mesmo tempo que era solicitado ao
proprietário uma escolha criteriosa dos agentes, que deveriam prestar juramento
perante o senado da câmara todos os anos. Esta política foi reforçada com ao
aparecimento do lealdador, oficial concelhio que tinha por missão fiscalizar a
qualidade do açúcar laborado.
O uso abusivo, pelos agentes, do produto em laboração, levou o município a
estipular pesadas coimas para aqueles que roubavam cana, socas, mel e bagaço. Além
disso estabeleceu-se um travão à existência de condições que apelassem para o furto,
proibindo-se a posse de porcos a qualquer agente que trabalhasse no engenho e do
pagamento dos serviços em espécie. Todavia, a última não foi tida em conta pelos
proprietários de engenho, que continuaram a pagar alguns dos serviços em açúcar.
Só assim se compreendem as quantias de açúcar disponível nas mãos de muitos dos
trabalhadores, na primeira metade do século dezasseis.
O processo de fabrico de artefactos surge também como um momento importante
de animação no burgo, ocupando um numeroso grupo de mesteres com assento em
áreas ou arruamentos estabelecidos pelo município. A necessidade de um apertado
sistema de controlo sobre a classe oficinal no sentido de uma maior exigência de
qualidade dos artefactos produzidos, de um tabelamento dos produtos e tarefas,
condicionaram este interesse do legislador insular, o que levou ao aparecimento desta
em 21% das posturas em análise.
Esta política municipal para os ofícios não era uniforme nos dois arquipélagos, uma
vez que a postura vai de encontro a uma multiplicidade de factores, condicionantes
do desenvolvimento da estrutura oficinal. Por isso a incidência foi maior nas posturas
do Funchal, Angra e Vila Franca do Campo do que nos restantes municípios. Por
outro lado nos municípios açorianos este sector de actividade não adquiriu a
importância relevante que teve na Madeira, o que poderá ser indício do fraco nível de
desenvolvimento dos serviços e do sistema de trocas.
Tal expressão da vida oficinal do burgo não é igual em todas as posturas dos
municípios estudados. Apenas no Funchal é patente a maior incidência e variedade
dos ofícios abrangidos, ao contrário do que sucede nos municípios açorianos. Por
exemplo: em Vila Franca do Campo o empenho dos vereadores incide quase
exclusivamente sobre dois ofícios ligados aos transportes - barqueiro e carreiro. É de
salientar, ainda, a importância atribuída aos oleiros, actividade com grandes
tradições neste município. Em Angra e no Funchal eram os moleiros que mais
problemas causavam ao burgo, e por isso mesmo mereceram maior vigilância dos
almotaceis.A maioria dos ofícios referenciados nas posturas pertence ao sector
secundário e terciário, tendo o primário fraca representatividade. Por aqui se
confirma a importância que os dois primeiros sectores de actividade assumiram para
os municípios.
Os ofícios são o esqueleto em que assentava a vivência do burgo. Eram eles que
animavam o quotidiano dos arruamentos e praças. Daí resultou o grande
empenhamento demonstrado pelo código de posturas. Maior atenção foi dada à
actividade transformadora e ao sector alimentar, com particular relevo, no primeiro
caso, para a indústria do calçado e, no segundo, da moenda do cereal e venda de
carne.
De um modo geral os ofícios referenciados nas posturas pertencem aos sectores
secundário (56%) e terciário (36%), com especial incidência para a actividade
transformadora e alimentar. Só no Funchal o conjunto de ofícios do sector secundário
está muito próximo, mercê do elevado desenvolvimento da estrutura oficinal. Note-
se, ainda, que era no Funchal que se encontrava uma maior variedade de ofícios,
situação contrastante com a exígua referência e sobriedade dos municípios açorianos.
Na Madeira regulamentou-se de forma exaustiva os ofícios ligados à produção
(canavieiro, esburgador), transporte (almocreve, barqueiro e mestre de navio),
transformação (alfaiate, caldeireiro, ferreiro, ferrador, forneiro, mestre de engenho,
moleiro, oleiro, ourives, tacheiro, tanoeiro, sapateiro) e comércio (carniceiro,
fanqueira, mercador, pescadeira, taverneiro e vendeira) dos produtos e artefactos.
Nos Açores, num ou noutro sector de actividade, as referências são avulsas. Esta
diversidade de actuações resulta da conjuntura sócio-económica de cada burgo.
Assim Vila Franca do Campo, dominada por grandes áreas agrícolas viu
desenvolver-se o sector de transportes, necessário ao escoamento dos excedentes. O
mesmo sucedeu na cidade de Angra em que a missão de porto oceânico conduziu ao
forte desenvolvimento dos ofícios ligados ao sector alimentar.
A intervenção do legislador municipal na faina oficinal orientava-se no sentido da
regularizar a actividade. Aí se estabelecia de modo rigoroso o processo de fabrico e a
tabela de preços para as tarefas e artefactos. A qualidade do serviço e produto não
resultavam apenas da concorrência na praça mas fundamentalmente da vigilância
das corporações e da exigência do exame ao aprendiz. O juramento anual e a
necessidade de prestar fiança completavam a alçada municipal. Na Madeira os
ourives e tanoeiros deveriam apresentar aos vereadores a marca para que constasse
dos livros da Câmara.
A oficina dava lugar ao mercado ou praça, espaço privilegiado para a distribuição
e escoamento dos artefactos. O município redobrava aqui a vigilância, estabelecendo
regras definidoras do sistema de trocas. Esta foi uma das preocupações dominantes
nas posturas, expressa pela presença de 28% dela. Aqui a actuação repartia-se entre o
abastecimento de bens alimentares e artefactos.
A praça dominava o espaço urbanizado, estabelecendo uma peculiar
compartimentação de acordo com as exigências dos vectores internos e externos da
vida económica. Aos edifícios da fiscalidade sucedem-se os armazéns e lojas de
venda. A sua importância no quotidiano está justificada por uma dupla acção:
primeiro submetendo os diversos ofícios ao juramento e fiança anuais, depois por
meio da vigilância dos almotacéis.
As normas regulamentadoras do mercado insular estruturavam-se da seguinte
forma:

1. COMÉRCIO INTERNO, uma intervenção baseada num apertado sistema


de vigilância incidindo sobre o preço de venda, dos bens alimentares e artefactos,
fixados pelos vereadores;

2. COMÉRCIO EXTERNO, actuação no sentido de delimitar as trocas com o


exterior aos excedentes ou produtos a isso destinados.
Para o comércio externo o município intervinha de acordo com o nível de
desenvolvimento sócio-económico de cada cidade ou vila. Nas de grande animação
comercial com o exterior, como Angra, Funchal e Ponta Delgada, a atenção era
redobrada, principalmente ao nível do movimento de entrada e saída. A defesa das
culturas locais implicava algumas limitações no movimento de entrada. Ao invés a
carência, nomeadamente de bens alimentares, conduzia ao estabelecimento de
medidas incentivadoras da entrada e ao controlo rigoroso do transporte e
armazenamento. As últimas completavam-se com a proibição imposta quanto à sua
saída. Estavam neste grupo o cereal, o vinho, o azeite, o pescado, o gado, a carne, o
biscoito, o linho e o couro.
A fragilidade do sistema económico insular associada à extrema dependência do
mercado europeu e atlântico condicionaram o nível de desenvolvimento do sistema
de trocas, marcado por múltiplas dificuldades no abastecimento. Deste modo as
autoridades municipais faziam incidir a sua acção sobre o sistema de trocas de modo
a assegurar a subsistência das populações. Daí resultou o especial empenho para com
questões de abastecimento, onde o cereal era escasso ou anormal. A última situação
explicita o elevado número de posturas fragmentárias em S. Miguel, considerada o
principal celeiro do mundo insular português. Saliente-se que elas surgem, com
especial acuidade, nas décadas de trinta e quarenta, período crítico para o
abastecimento e comércio cerealífero micaelense.
A vinha e o vinho integram também o grupo de culturas e produtos protegidos,
mercê da importância que assumem na dieta e sistema de trocas insulares. As
posturas estipulavam medidas para evitar os danos causados pelo gado nas vinhas,
furtos de uvas, bem como as normas para a venda do vinho atavernado. No primeiro
caso proibia-se, em Ponta Delgada, Funchal e Angra, a venda de uvas sem licença do
dono. No segundo, coibia-se os seus interlocutores de processos fraudulentos na
venda, com a fuga ao pagamento dos direitos e à baldeação de vinhos de diferentes
qualidades. Para isso cada taberna só poderia dispor de duas pipas de vinho (branco
e tinto), e ambas varejadas e abertas por um oficial concelhio, o rendeiro do vinho.
Neste contexto merece especial referência a preocupação do município angrense em
proibir a mistura dos vinhos. As indicações ao uso de açúcar, mel de abelhas e canas
dão a entender que a prática do "vinho a martelo" é antiga e já tinha lugar em Angra.
A carne e o peixe, produtos que exigiam especiais cuidados no manuseio e venda,
tiveram também uma referência relevante nas posturas. Estabeleciam-se normas
reguladoras definidoras do processo de circulação e venda. A venda do peixe deveria
ter lugar na praça e por agentes habilitados pelo senado da câmara. Deste modo aos
proprietários de barcos, arrais ou pescadores estava vedado o comércio a retalho.
Ambos os produtos só depois de fiscalizados pelo almotacel eram postos à venda. No
caso da carne o corte e venda eram feitos na presença de um oficial concelhio.
A venda por peso ou medida facilitava o dolo dos vendedores pouco honestos que
falsificavam os meios usados na medição. Deste modo o município era obrigado a
redobrar a vigilância sobre o retalhista, sendo o alvo principal as vendedeiras. Daí
ter-se estipulado o uso obrigatório de pesos e medidas, aferidos pelo padrão
municipal, sendo anual a respectiva conferência a cargo do almotacel.
A sociabilidade no acanhado espaço insular não mereceu idêntica atenção por
parte dos municípios. Para isso contribuiu o facto de os marginais não terem sido
motivo de grande instabilidade, mercê da coacção social exercida pelo meio, que
impossibilitava uma fácil fuga e de certo modo dificultava os desvios.
A urbe, espaço compartimentado da mundividência insular era animada pela
presença dos diversos agentes económicos nos domínios da produção,
transformação, transportes e comércio. A múltipla sociabilidade, derivada das
relações que se estabeleciam entre os vários estratos sócio-profissionais, forasteiros,
vizinhos e marginais, levou ao estabelecimento de normas de convivência social. Um
dos maiores problemas foi a presença de um grupo de marginais, constituído por
meretrizes, trabalhadores e escravos fugitivos.
Os escravos constituíram a principal preocupação dos municípios no domínio
social. Deste modo no articulado das posturas estabeleceram-se, minuciosamente, as
padrões de comportamento, estipulando-se os limites de convívio social. Assim ao
escravo era vedado o acesso a casa própria e mesmo a possibilidade de coabitar na
urbe. Ele deveria residir nos anexos da fazenda ou quinta do senhor, não podendo
ausentar-se sem prévia anuência do amo. Fora do seu apertado circuito de convívio o
escravo deveria ser identificável pelo sinal e estava proibido de usar arma ou
permanecer fora de portas após o toque de recolher. O seu quotidiano estava definido
em termos espaciais e temporais: serviço na casa e terras do amo até o toque de
recolher. Além disso ninguém, nem mesmo os libertos, poderiam acolher, dar de
comer ou esconder qualquer escravo foragido.
A defesa da moral pública, devidamente regulamentada nas ordenações do reino,
mereceu as necessárias adaptações nas posturas das sociedades atlânticas, definindo
o espaço e formas de convívio social no burgo. Com a finalidade de defesa da
reputação da mulher casada, delimitava-se a área de convívio para mancebia, ao
mesmo tempo que se coagia o sexo oposto a manter um comportamento regrado com
as mulheres na fonte, ribeira e via pública. Na ilha Terceira foi intenção do legislador
estabelecer formas de convívio nos espaços de maior afluência de vizinhos e
forasteiros, como tavernas, de modo a evitar os delitos e descortesias.
A defesa das necessárias condições de vida do burgo completa-se com a procura
de um nível adequado de salubridade do espaço de convívio e labor social. A
premência das doenças, nomeadamente a peste, colocava ao município a obrigação
de intervir com medidas sanitárias, que se adequavam ao nível de salubridade e
dominância de vivência rural no município. Os principais problemas concernentes
com a salubridade resultam da permanente circulação de animais no burgo, do uso
abusivo da água das fontes, poços, levadas e ribeiras para lavar, beber e uso
industrial. A tudo isto se juntava as preocupações com asseio das ruas e praças
públicas.
A solução de alguns destes problemas levou o município a delimitar a área de
trânsito e, no caso da Madeira, a construção de abrigos para os animais, conhecidos
como os palheiros.
A água, elemento vital do quotidiano e faina agrícola insular, mereceu o empenho
do município. Aí interveio-se no sentido regularizar o uso, evitando o furto e dano
pelas actividades artesanais - linho e couro. A fonte, espaço privilegiado do
quotidiano da urbe, mereceu especial atenção: restringiu-se o uso e consumo de
água, coibindo-se o serviço de bebedouro para animais ou estendal de roupa. Esta
preocupação é dominante nas ilhas Terceira e são Miguel.
O Funchal foi, sem dúvida, de todos os municípios o que desfrutou de melhores
condições de salubridade. A cidade posicionada numa encosta talhada por três
ribeiras propiciou isso. As actas das vereações e o código de posturas atribuem-lhe
pouca atenção.
Idênticas, ou senão parecidas em alguns domínios, deveriam ser as normas
lavradas nas posturas dos municípios das ilhas de S. Tomé e Cabo Verde, cujo
conteúdo nos escapa pela ausência. Nas posturas aprovadas em 1732 pela câmara
municipal de Santo Antão é variado o leque de intervenções, coincidindo algumas
com as anteriormente referenciadas para a Madeira e Açores. Elas abrangiam a
salubridade, pesos e medidas, danos causados pelo gado, pássaros e consequentes
medidas de protecção.

AS INSTITUIÇÕES RÉGIAS

Ao nível das diversas estruturas de mando nunca se alcançou uma harmonia


perfeita, uma vez que surgiram inúmeros conflitos, dentro da própria instituição ou,
o que era mais habitual, fora dela. Para isso terá contribuído, por um lado, a
insistente subdelegação de poderes e , por outro, as dificuldades na pronta
fiscalização por parte da coroa. Uma reclamação da Madeira demorava meses a obter
a concordância do senhorio ou da coroa, e piorava no caso de S. Tomé ou de Cabo
Verde.
O distanciamento da coroa e a falta do "olho justiceiro" dos funcionários
provocaram inúmeros atropelos de que foi vitima a vida municipal madeirense no
século quinze e toda a administração de Cabo Verde e S. Tomé para os séculos XVI e
XVII.
Num e noutro lado as situações são quase idênticas, sendo os capitães, cientes da
real importância nas capitanias, o principal motivo de discórdia. Em 1511 o capitão
de são Miguel entrou em conflito aberto com o ouvidor eclesiástico e o contador.
Passados cinco anos foi o do Funchal a incompatibilizar-se com o corregedor
negando-se a aceitá-lo como tal, o que levou a coroa a suspendê-lo e o seu ouvidor.
Caso parecido sucedeu seis anos depois em S. Tomé, sendo expulso o capitão João de
Melo e para o seu lugar nomeado um governador, repetindo-se com o da Ribeira
Grande em Santiago, em que ele foi substituído pelo desembargador da Casa da
Suplicação.
No libelo acusatório contra o capitão micaelense surgem inúmeros testemunhos de
poder despótico. Mas estas acusações, consideradas por Gaspar Frutuoso sem
fundamento, levaram a que ele fosse suspenso, sendo substituído pelo tio Pedro da
Câmara, sendo a capitania restituída em 1515.
Fica assim provado que a coroa manteve uma atitude implacável junto dos
capitães, mas os vícios, acumulados em anos de livre governança, longe da presença
do rei ou seus representantes, fora o principal obstáculo a essa política.
A usurpação e os confrontos assíduos de alçada das instituições e funcionários
condicionaram uma reacção em cadeia por parte da coroa. Das desinteligências
surgidas destacam-se as que tiveram lugar na ilha de S. Miguel entre os capitães e os
municípios da Ribeira Grande, Ponta Delgada e Vila Franca do Campo. Era
necessário demonstrar que a conjuntura mudara e os hábitos despóticos deveriam ser
combatidos com uma estrutura institucional nova, adequada às exigências da
imprescindível centralização régia. O senhorio desaparecera, naturalmente, sem
sobressaltos, mas deixou desamparados os capitães, incapazes de encararem os
desafios das mudanças.
Da nova estrutura institucional contava uma maior revitalização do poder
municipal, o aparecimento de novos municípios e de outras estruturas de mando,
para estabelecer-se uma barreira firme aos hábitos entranhados na vivência
quotidiana dos capitães. Deste modo houve necessidade de estabelecer uma estrutura
forte capaz de enfrentar a nova realidade. Os atropelos à autoridade legítima do rei
aumentavam de acordo com a distância das capitanias aos centros decisão no reino.
A necessidade e celeridade na nomeação dos funcionários régios para tais ilhas
estavam bem patente num requerimento do município da Ribeira Grande (Santiago)
em 1624: "É que a gente dela é revoltosa; e que há homicídios e outros crimes; o que se não
houver governador haverá muitos mais; e que os naturais por serem muitos vexarão e
consumirão as pessoas que lá estão deste reino, que são muito poucas, por ficarem livres e
senhores do governo". Foi por aí que a coroa começou, estabelecendo uma autoridade
suprema: primeiro em S. Tomé o cargo de capitão (1541), depois em Cabo Verde o de
capitão geral das ilhas (1578). Este último veio a dar origem em 1600 ao capitão
governador, sendo substituído, a partir de 1640, pelo capitão e governador general.
Além disso houve necessidade de definir uma forma específica de governo para as
ilhas. Os governadores e ouvidores passaram a ser nomeados apenas por um período
de três anos, findos os quais o seu governo deveria ser sujeito a uma sindicância.
Depois a coroa passou a enviar, com frequência, ouvidores ou desembargadores a
sindicar a acção dos governadores, ouvidores e capitães-mores.
Na Madeira e Açores os problemas resolviam-se pontualmente com a presença do
corregedor -- um no primeiro e dois no segundo -- e só a partir da união das coroas
peninsulares o novo monarca viu a necessidade de adequar a forma de governo das
ilhas à vigente nas Canárias: na Terceira foi o cargo de governador(1581), depois na
Madeira em 1585, o de "geral e superintendente das cousas da guerra" 177 . Ambas as

177 . Damião PERES, O Problema dos governadores gerais da ilha da Madeira, Porto, 1925.
situações perpetuaram-se após a restauração da independência em 1640, ficando nos
Açores como governador do Castelo de S. Filipe e das ilhas dos Açores 178 .
Também em Cabo Verde e S. Tomé a presença da autoridade régia teve início com
a intervenção do corregedor: em 1514 no segundo e 1517 no primeiro. Em S. Tomé ele
surgiu desde o início como o funcionário supremo, retirando alçada aos donatários.
Em Cabo Verde a mudança foi paulatina: no começo adquiriu a função de
funcionário supremo, sendo conhecido em 1558 como o ouvidor letrado. Em 1569 no
arquipélago de Cabo Verde a tendência era para a concentração de poderes num só
funcionário, surgindo aí o desembargador António Velho Tinoco acumulando as
funções de provedor da fazenda, dos defuntos e resíduos, corregedor e capitão da
cidade da Ribeira Grande 179 . Finalmente em 1587 surge o cargo de capitäo-general,
governador e provedor da fazenda Real, a quem competia a superintência de toda a
actividade governativa das ilhas e Rios de Guiné.
A presença de uma figura com alçada absoluta foi uma necessidade sentida desde
o primeiro momento do povoamento das ilhas. No caso de S. Tomé a mesma tornou-
se mais evidente mercê do reduzido número de europeus e dos permanentes
conflitos que subsistiram entre as autoridades locais. A actividade dos donatários,
corregedores e capitães foi pautada por inúmeros atropelos. A falta de um poder
central e forte terá condicionado alguns dos alvoroços que tiveram lugar em Cabo
Verde entre 1545 e 1555.

AS FINANÇAS DAS ILHAS

Um dos domínios de maior empenho da coroa foi, sem dúvida, o estabelecimento


da estrutura fiscal e a subsequente forma de intervenção. Enquanto o senhorio
perdurou ela ficou sob alçada do senhorio que intervinha por meio do almoxarife,
que fazia cumprir o estatuído no foral henriquino e diversos regimentos. Próximo
dele estava o capitão, que mais se afirmava como usufrutuário dos réditos e fruidor
da décima parte das rendas senhoriais.
Com o governo do infante D. Fernando esta estrutura fiscal mostrou-se
inadequada para o nível de progresso atingido pela Madeira. Daqui resultou a
necessidade de criar uma nova estrutura capaz de superintender a fazenda na ilha,
surgindo a contadoria.
Mais tarde, em 1477, o surto das trocas com o exterior, motivado pelo progresso da
cultura açucareira, conduziu a novo reajustamento, que levou ao aparecimento das
alfândegas, uma para cada capitania. Depois a estrutura foi ampliada em 1483, com a
criação de dois postos na costa além de Câmara de Lobos.
Foi, no entanto, com a coroa, a partir de 1499, que se lançou um adequado sistema
fiscal, assente em duas instituições: os almoxarifados da alfândega e dos quartos. O
primeiro intervinha no movimento de entradas e saídas e a cobrança dos respectivos

. Urbano de Mendonça DIAS, A vida de nossos avós, vol. III.


178

. A.T. MOTA, " A primeira visita de um governador de Cabo Verde à Guiné (António Velho Tinoco c. 1575)", in Ultramar, VII, nº 4,
179

1969.
direitos, o segundo foi vocacionado para arrecadar os direitos lançados sobre a
colheita de açúcar, o quarto, que depois passou a um quinto. E finalmente em 1508
deu-se uma nova forma ao sistema fiscal na Madeira com o estabelecimento da
Provedoria da Fazenda.
Dos direitos arrecadados, de início pelo senhorio, depois pela coroa, temos o
dízimo sobre os rendimentos fixos ou qualquer valia, sendo uns de usufruto do
donatário e outros da Ordem de Cristo. A esta primeira fiscalidade sobrepõe-se outra
assente nas principais produções com valor comercial. Dos cereais era o dízimo das
colheitas, enquanto do vinho era uma determinada quantidade daquele que fosse
posto à venda nas tabernas, que ficou conhecido como a imposição do vinho(1485),
cujo valor ia na totalidade para as obras de enobrecimento da vila do Funchal.
Os direitos sobre a produção do açúcar, a fatia mais avultada da fiscalidade,
sofreram várias alterações. No início, uma vez que só o infante D. Henrique tinha
direito a fabrica-lo todos os produtores deixavam no seu engenho metade do açúcar.
depois com a autorização para o uso de engenhos particulares este direito passou
para um terço e depois em 1467 para um quarto sobre a colheita.
A arrecadação deste direito fazia-se a partir da avaliação antecipada da colheita.
Esta estava a cargo do almoxarife e dois estimadores escolhidos pela vereação. Mas
este sistema gerou inúmeras críticas dos produtores pelo que em 1507 se procedeu a
um estudo sobre a melhor forma de lançar e arrecadar o referido direito. Como
corolário disso tivemos uma nova estrutura fiscal, com a criação da Provedoria da
Fazenda(1508) e um novo imposto a vigorarem a partir de 1516. O imposto passou
para um quinto da produção e a sua recolha a ser feita por uma nova estrutura
institucional, o almoxarifado do açúcar, subdividido em diversas comarcas. Assim
tivemos dois almoxarifados (Funchal e Machico) e quatro comarcas (Funchal, Ribeira
Brava, Ponta de Sol e Calheta). Esta situação perdurou até 1522 altura em que este
almoxarifado se juntou ao da alfândega formando uma estrutura única.
Nos séculos XV e XVI os direitos lançados sobre o açúcar foram a principal fonte
de rendimento da coroa na ilha, utilizados para o custear das despesas com a
manutenção das praças africanas e da casa real. Este elevado quantitativo de açúcar
era comercializado pela coroa por meio de contratos específicos com os mercadores,
na sua maioria genoveses.
Nos Açores sucedeu algo semelhante à Madeira, tendo-se por isso copiado os
alvarás e regimentos régios que corporizavam a estrutura institucional. Os forais do
almoxarifado do Funchal de 1499 e 1515, foram aplicados sem reservas nas ilhas de S.
Miguel, Terceira e certamente nas demais. O traslado em Ponta Delgada foi lavrado,
respectivamente em 1526 e 1557. Deste modo o sistema tributário implantado pelo
senhorio e coroa nos Açores foi idêntico ao madeirense, variando apenas a incidência
sobre os produtos disponíveis.
Aqui foi maior a atenção atribuída ao cereal, gado e pastel, os componentes mais
destacados da economia do arquipélago. Por informação de Gaspar Frutuoso, sabe-se
que na ilha de S.Miguel na década de oitenta do século XVI a coroa arrecadava 76500
cruzados, sendo 52% dos direitos do pastel e 26% do dízimo do trigo.
Em Cabo Verde o apuramento da estrutura institucional esboçou-se já em finais do
século XV, ficando a vila da Ribeira Grande em Santiago como principal centro
administrativo onde ficou instalado, desde 1471, o almoxarifado das ilhas. Depois o
progresso sócio-económico do arquipélago levou à criação de um almoxarifado para
cada capitania, sendo o da ilha do Fogo de 1507. Por outro lado a importância que o
arquipélago assumia em face do comércio de escravos da vizinha costa dos Rios da
Guiné conduziu a coroa a estabelecer uma feitoria, com sede em Santiago, com o
objectivo de superintender este trato. Aqui, ao contrário do que havia sucedido com
as ilhas da Madeira e Açores, optou-se pela necessária centralização das estruturas
institucionais, instaladas na capital da ilha de Santiago.
Tudo isto resultou da experiência descentralizadora madeirense e açoriana, que
ficou como a solução mais adequada aos objectivos da coroa. É de salientar que
também na Madeira e Açores a tendência para a macrocefalia foi um facto.
Enquanto na Madeira o principal centro administrativo se localizou no Funchal, nos
Açores hesitou-se várias vezes entre Ponta Delgada e Angra. A concretização desta
medida em Cabo Verde foi fácil, pois estávamos perante uma ilha dominante em
termos sócio-económicos, uma vez que as demais ficaram pelo aproveitamento do
gado. O mesmo não se poderá dizer da Madeira e, mais propriamente, dos Açores.
Idêntica foi a política levada a cabo em terras cabo-verdianas quanto à justiça,
fazendo-se assentar morada para o contador dos feitos e inquiridor e corregedor na
mesma ilha. O regimento que regulava a alçada do corregedor, datado de 1520 180 , era
igual para todo o espaço insular e a única diferença surgiu nos Açores onde se
criaram dois lugares, um em Angra e outro em Ponta Delgada.
Para Sul em S. Tomé e Príncipe, deparamo-nos com uma estrutura fiscal e judicial
de acordo com a que foi implantada em Cabo Verde. No primeiro domínio é de
salientar a existência em S. Tomé de uma feitoria, idêntica à de Santiago, com a
superintendência do trato da costa africana vizinha. Para regulamentar as iniciativas
e privilégios dos moradores foram concedidas duas cartas de foral, uma em 1485 e
outra em 1524.

AS RECEITAS

As receitas arrecadas pela Fazenda Real nas ilhas testemunham, em simultâneo, a


eficácia das instituições e a dimensão assumida pela economia, uma vez que tais
valores recaem sobre alguns aspectos do ciclo produtivo e comercial. As elevadas
despesas com a manutenção do império foram custeadas com o superavit das
finanças das ilhas. A Madeira, entre finais do século XV e o primeiro quartel do
seguinte, foi um dos financiadores, nomeadamente das praças marroquinas.
Em 1506 as finanças públicas arrecadaram cinquenta mil e quinhentos reais, sendo
mais de metade proveniente dos réditos arrecadados com o comércio do açúcar
madeirense, ficando os Açores e Cabo Verde por uma ínfima percentagem. Mas a
tendência alterou-se. Com a crise do comércio e produção de açúcar diminuiu o

180 . História Geral de Cabo Verde - corpo documental, nº 109, 305, 306.
tributo madeirense: em 1518 as receitas madeirenses decrescem em 64% enquanto as
açorianas e das ilhas da Guiné sobem em flecha. O movimento ascendente do
arquipélago açoriano continuará nos anos imediatos. A aproximação da Madeira dos
valores dos réditos açorianos só terá lugar na década de oitenta do século XVI e,
depois, a partir de 1619. No caso de S. Tomé e Cabo Verde, somente em 1526
suplantaram a Madeira e os Açores e só C.Verde volta a recuperar em 1620.

Como complemento disto temos para o século dezassete a avaliação global dos
rendimentos portuários. Os quatro arquipélagos juntos representavam 67% desta
receita sendo os valores divididos do seguinte modo:
Estes dados permitem-nos afirmar o mesmo que o escritor seiscentista, Luís Mendes
de Vasconcelos:

"As ilhas povoaram-se de uma vez, e não estão, como a Índia, consumindo homens
continuadamente, e delas nos provemos de trigo, por onde antes benefício que dano nos faz
a sua povoação, acrescentando-nos terras fertilíssimas e lavradores que as cultivam;
dão-nos pastel tinta boa para tingir panos, açúcar e outras cousas necessárias para a
vida, ainda que de todas nos aproveitamos mal 181 ".

181 . "Diálogo do sítio de Lisboa" in Antologia dos Economistas Portugueses, ed. António Sérgio, 1924, 87-88.
A IGREJA NAS ILHAS

Tal como o refere Jaime Cortesão os franciscanos encontram-se inegavelmente


ligados ao processo de reconhecimento, ocupação ou conquista do novo mundo
atlântico. Eles acompanharam as gentes peninsulares na tarefa desbravadora do
oceano, foram os primeiros a levar a palavra de Deus a estas terras recônditas e aí
rezaram a primeira missa. Daqui deverá resultar a grande importância assumida pela
ordem seráfica nas ilhas, nomeadamente, nos arquipélagos da Madeira e Açores.
A mais antiga presença da igreja nas ilhas data de 1344, altura em que o papa,
Clemente VI, concedeu a D. Luís de la Cerda o principado da Fortuna. Este facto foi o
prelúdio de acesa polémica entre as coroas peninsulares. Nesta data ter-se-ia criado
também um bispado, uma vez que 1355 Frei Bernardo, residente em Avinhão, é
citado como bispo das ilhas da Fortuna. Entretanto em 1369 o papa Urbano V
concedeu aos bispos de Tortosa e Barcelona o encargo de as evangelizar, enviando
em 1386 de um capelão para La Gomera. Mas eles nunca visitaram as ilhas e foi só
em 1404, após a primeira viagem de Jean de Betencourt, que se avançou, de facto,
com a estrutura religiosa do arquipélago criando-se o bispado de Rubicão
(Lanzarote), transferido depois, em 1438, para Las Palmas de Gran Canaria.
Nas ilhas portuguesas passou-se algo diferente. Aqui o rei concedeu o direito de
padroado à Ordem de Cristo. Primeiro em 1433 o arquipélago da Madeira alargado,
depois, em 1454, a todos os territórios descobertos, situação confirmada por bula
papal de 17 de Março de 1456. O governo espiritual ficou entregue ao vigário de
Tomar, sede da Ordem de Cristo e na condição de nullius diocese, enquanto ao
administrador da ordem competia a construção dos templos, a nomear os ministros e
pagar o seu vencimento. Á parte isso, todas as ilhas, estabeleceram-se ouvidorias
com o objectivo de organizar e exercer o governo eclesiástico. A situação mudou em
1514 com a criação do bispado do Funchal e, depois em 30 de Dezembro de 1551 com
o regresso à coroa do padroado. Esta situação, posterior ao início do povoamento da
Madeira, desagradou aos franciscanos, que haviam acompanhado os primeiros
povoadores. Alguns desentendimentos com o vigário de Tomar levou-os em 1459 a
abandonar a Madeira, fixando-se em Xabregas. A saída poderá ser considerada como
uma forma de represália por parte do infante D. Henrique em face da sua
subordinação ao vigário-geral ilhas Canárias, como postulava uma letra do papa
Nicolau V de 1450. Para colmatar a sua ausência o papa Pio II concedeu em 1462
licença aos frades da regra de S. Jerónimo para fundar um mosteiro na Madeira, o
que não surtiu efeito. Entretanto os franciscanos regressaram em 1474 ao seu cenóbio
de S. João da Ribeira e acabaram por adquirir uma posição relevante na ilha.
Mais tarde, em 1485, retirou-se para a ilha Frei Pedro da Guarda, criando o
pequeno eremitério de São Bernardino em Câmara de Lobos. Este franciscano,
conhecido como o santo servo de Deus, ficou célebre na ilha pelas suas virtudes e
milagres, o que motivou um culto arreigado às populações de Câmara de Lobos, que
se manteve até 1835, ano em que foi proibido.
A ordem seráfica firmou-se na vida religiosa madeirense criando conventos no
Funchal, Câmara de Lobos, Santa Cruz, Ribeira Brava, Calheta e Machico. Neste
contexto relevam-se os conventos de S.Francisco do Funchal e o de Santa Clara. O
primeiro para albergar os frades foi construído a partir de 1474, enquanto o segundo,
de freiras, foi erguido por iniciativa de João Gonçalves Câmara, segundo capitão do
Funchal, no espaço onde o seu pai havia edificado a sua capela da Conceição de
Cima( em oposição à da Conceição de Baixo, construída junto ao mar), que teve o
padroado do mesmo por bula (1476) de Sixto IV e por breve (1496) de Alexande VI
ficou estabelecida a sua regular observância e o início da clausura, sendo abadessa
D.Isabel de Noronha, filha do capitão, que se encontrava no Convento da Conceição
de Beja. Por fim registe-se o Convento de Nossa Senhora da Piedade, fundado por
legado estabelecido no testamento(1518) de Urbano Lomelino numa sua granja,
situada no local onde hoje se ergue o aeroporto do Funchal. Idêntico ideal moveu o
cónego Henrique Calaça de Viveiros, que em 1650 ergueu um convento de Nossa
Senhora da Encarnação em honra da restauração da independência. Este foi mais um
convento feminino da regra franciscana de Santa Clara.
O povoamento da Madeira, em termos de organização eclesiástica, parece ter sido
concretizado de acordo com um plano definido. Jerónimo Dias Leite refere que o
objectivo dos primeiros madeirenses era " pôr em obra a edificação das igrejas e das
vilas e lugares e lavrança de terras". Tais princípios nortearam não só o caso da
Madeira, mas também os dos outros arquipélagos atlânticos onde os portugueses
chegaram.
No período de 1433 a 1499 as administrações civil e religiosa estavam a cargo do
mestre da Ordem de Cristo, que no caso da alçada religiosa determinara a
superintendência pelo vigário da vila de Tomar. De acordo com a bula de 1456 as
novas áreas atlânticas eram consideradas "nullius diocesis", estando dependente
daquele vigário. Era ele quem determinava a construção das primeiras igrejas e
nomeava os prelados para o serviço religioso.
As sedes das capitanias, em data que desconhecemos, tiveram o primeiro vigário
que, depois, o progresso e a consequente pressão do movimento demográfico
conduziram ao aparecimento de novas igrejas e paróquias. Esta forma de organização
da estrutura religiosa foi igual para os Açores, Cabo Verde e S. Tomé, onde também
tivemos as primeiras paróquias e oratórios das ordens menores. Nos Açores, a
exemplo da Madeira, o primeiro serviço religioso foi obra dos franciscanos que
construíram em 1446 o primeiro oratório em Santa Maria e depois outros em Angra
(1452) e vila da Praia (1481). A ordem seráfica alargou-se depois às outras ilhas onde
fundou casas na Terceira, Faial e S. Miguel. Está também testemunhada a presença
dos jesuítas (1570) e agostinhos (1579) na ilha Terceira.
Em Cabo Verde e S. Tomé a estrutura da igreja evoluiu de acordo com o impacto
do povoamento. Todavia aqui as condições inóspitas geradas pelo clima causaram
inúmeras dificuldades à acção dos europeus e em especial do clero. Inúmeros
missionários e prelados das dioceses de ambos os arquipélagos não resistiram ao
calor tórrido destas ilhas. Daí derivou a recusa de alguns bispos em tomar posse do
lugar e daqueles que vieram às ilhas resistiram pouco tempo. Também os
missionários da Companhia de Jesus foram vitimas das condições inóspitas do clima,
o que levou a ordem a ponderar o envio de novas missões 182 .
O primeiro vigário enviado pela Ordem de Cristo para Santiago foi o dominicano
Frei João, nomeado em 1473, enquanto em S. Tomé sabe-se apenas que à morte de
Álvaro Caminha a ilha estava servida por um vigário e um clérigo. Em ambos os
arquipélagos estas dificuldades foram constantes e condicionaram de forma evidente
a presença do clero e depois do bispo e demais dignidades.
A falta de instalações condignas, os conflitos assíduos com as autoridades civis e a
quase permanente ausência do prelado da diocese são os marcos mais evidentes da
vida religiosa das ilhas. Além disso a construção das Sés de Santiago e S. Tomé foram
obras difíceis de concretizar: a primeira só se iniciou em 1585 mas passados doze
anos ainda estava por concluir, enquanto a segunda arrastou-se até 1693. Algo de
parecido teve lugar em Angra, onde as obras do novo templo foram proteladas até
1570, perdurando até 1618, ano em que foi sagrada. Diferente era o caso do bispado
do Funchal, onde a construção do templo que lhe serviu de sede foi mais rápida: o
duque ordenou em 1485 mas as obras iniciaram-se só em 1493, que ainda
continuavam em 1515, sendo sagrado no ano imediato. As riquezas geradas com o
comércio do açúcar propiciaram à coroa e vizinhos os necessários dinheiros para
erguer tão sumptuoso templo e recheá-lo de preciosas pinturas flamengas e alfaias
religiosas em ouro e prata.
A presença da ordem seráfica nas ilhas da costa e golfo da Guiné é referenciada
pelo testamento de Álvaro Caminha, de 1506. Aí está documentada a existência de
uma igreja de S. Francisco, com mosteiro. Entretanto em 1565 Frei Rodrigo das Frias
havia solicitado à rainha o necessário apoio para a fundação de um mosteiro, o que
poderá significar que o anterior estava já desmantelado, por força dos assaltos dos
corsários ou por dificuldades de outra índole.

OS BISPADOS

Extinto o senhorio, a Ordem de Cristo através do vigário de Tomar continuou a


superintender o governo eclesiástico das ilhas até que em 12 de Junho de 1514, pela
bula "Pro excellenti", foi criado o bispado do Funchal com jurisdição sobre toda a área
ocupada pelos portugueses no Atlântico e Indico. Até este momento todo o serviço
episcopal era feito por bispos titulares aí enviados pelo vigário de Tomar, sendo de
referir as visitas a Angra em 1487 e aos arquipélagos da Madeira e Açores (entenda-se
Funchal, Angra e Ponta Delgada) em 1507 e 1508. Mas o progresso económico e social
deste vasto espaço levou à criação em 1534 de novas dioceses, cujas áreas foram
desanexadas do Funchal: as de Goa, Angra, Santiago e S. Tomé.
A diocese de Angra abrangia apenas as ilhas do arquipélago açoriano, enquanto as
de Santiago e S. Tomé compreendiam, para além das ilhas dos arquipélagos que

182. Pe. Fernão GUERREIRO, Relação anual das coisas que fizeram os padres da companhia de Jesus (...), 3 volumes, Coimbra/Lisboa, 1930-

1942.
faziam parte, a costa africana vizinha. Da de S. Tomé foi desmembrada a última área,
que deu origem em 1596 ao novo bispado de S. Salvador do Congo.
Entretanto em 31 de Janeiro de 1533 a diocese do Funchal foi elevada à categoria
de metropolitana e primaz, englobando "a Madeira e Porto Santo, as ilhas Desertas e
Selvagens, aquela parte continental de África, que entesta com a diocese de Safi[m] e
bem assim as terras do Brasil, tanto as já descobertas, como as que se vierem a
descobrir". Mas esta foi uma situação passageira. Além disso a bula papal não foi
expedida do Vaticano, por a coroa a não ter pago, o que coloca a dúvida da existência
real do arcebispado do Funchal. Em 1551 o papa Júlio III revoga esta situação
passando o Funchal para simples bispado sufragâneo de Lisboa, que passará a
assumir a função de primaz das terras atlânticas, enquanto a de Goa preencherá
idênticas funções para as terras orientais. A justificação apresentada pelo papa é
expressiva da mudança operada na geografia económica do espaço atlântico:

"Nós, porém, considerando que a navegação da província arquiepiscopal para a


cidade do Funchal é muito difícil e incerta e que se torna não menos perigosa que
dispendiosa aos bispos provinciais ao clero e ao povo, e que muitas vezes
acontece que para tal navegação faltam os navios necessários e bem apetrechados, e
mesmo que os haja, nem todos ousam lançar-se ao mar numa viagem tão longínqua e
perigosa, pelo que os mesmos provinciais, que apelam para o arcebispo do Funchal, não
podem apresentar-se ao seu tribunal e à dita cidade, para fazerem valer as suas
apelações e conseguirem a justiça desejada e além disso, sofrem outros incómodos e
danos... ".
183

Aos quatro arquipélagos em estudo correspondem, a partir de 1533, igual número


de bispados, todos eles com problemas semelhantes. Primeiro foram os iniciais
prelados que preferiram a residência no reino à administração directa dos seus
bispados. Depois foram os conflitos de jurisdição com as autoridades civis e, mesmo,
com o cabido. Neste último caso merece referência as contendais havidas entre os
bispos de S. Tomé ou Cabo Verde com os governadores.
Acresce, ainda, no primeiro arquipélago o alastramento das contendas ao cabido.
A solução deste conflito, em ambos os casos, só foi possível com a intervenção dos
bispos aprovados pelo papa, após o diferendo entre Portugal e a Santa Sé, provocado
pela guerra da restauração da independência de 1640.
O relacionamento dos prelados madeirenses e açorianos com as autoridades civis
foi muito mais pacífico, não obstante alguns conflitos pontuais. Destes relevam-se,
para os Açores, as desavenças surgidas em Angra no governo de D. Pedro de
Castilho (1578-1583) e D. Jerónimo Teixeira Cabral (1600-1611). Para a Madeira só
ficou memória da contenda entre D.Frei Gabriel de Almeida (1672-1674) e o
governador e capitão-geral João de Saldanha e Albuquerque.
Em todos os bispados, à excepção do de Angra, tivemos bispos que exerceram, em
simultâneo, o governo civil e eclesiástico. Esta situação é específica do período da

183 . Pe. Manuel Juvenal Pita FERREIRA, A Sé do Funchal, Funchal, 1963, 84.
subordinação portuguesa à coroa de Castela. Primeiro tivemos em S. Tomé nessas
funções o bispo D.Frei Francisco de Vilanova(1590-1602), secundado por D. Frei
Jerónimo de Quintanilha (1611-1614) e D.Frei Pedro da Cunha Lobos (1614-1621).
Depois foi na Madeira D. Frei Lourenço de Távora, que exerceu o cargo de
governador general no período de 8 de Abril de 1614 a 17 de Dezembro do ano
seguinte. E, finalmente, D.Frei Lourenço da Gama(1627-1646) em Cabo Verde.

MISSIONAÇÃO

A actividade do clero nos arquipélagos da Guiné não se resumia apenas à


assistência religiosa dos europeus, pois também estavam incumbidos de cristianizar
os negros, conduzidos para as ilhas como escravos e os que viviam na vizinha costa
africana. Acresce, ainda, a parca presença de moradores em algumas ilhas o que
condicionava o ministério por parte do reduzido clero, limitando-o a visitas
periódicas. O mesmo sucedia na Costa da Guiné, dependente da jurisdição
eclesiástica de Cabo Verde e a do Congo sob égide de S. Tomé.
Na bula de criação do bispado de Santiago ficou estabelecido que a faixa costeira
da Guiné, de cerca de trezentas léguas, entre o Rio Gambia e o Cabo das Palmas e o
Rio de Santo André pertencia aquela área, sendo a demais até ao cabo da Boa
Esperança do bispado de S. Tomé. Deste modo era o clero dos arquipélagos, agora
elevados a bispados, que deveria assumir a difícil missão de cristianizar os negros aí
residentes ou daí retirados como escravos para a Europa e América.
Ao clero cabo-verdiano e säotomense, para além da prestação da assistência
religiosa aos europeus aí residentes, estavam cometidas as tarefas de baptizar os
escravos que aportavam às respectivas feitorias. Esta última função tornou-se por
demais evidente a partir de 1515, ano em que a coroa tornou indispensável o
baptismo massivo de todos os escravos antes da partida para as plantações
americanas. Para que isso acontecesse sem atropelos estabeleceu-se em S. Tomé a
obrigatoriedade do feitor entregar ao vigário o traslado dos assentos dos escravos
despachados pela feitoria para serem baptizados 184 .
Foram inúmeras as dificuldades surgidas no ensino da doutrina aos africanos:
primeiro a oposição do próprio clero e prelados a tais baptismos massivos dos
escravos, sem qualquer formação doutrinária e muitas vezes convertidos ao Islão ou
atinentes às práticas religiosas locais; depois, as dificuldades como o ensino do
catecismo, resultantes das barreiras linguísticas e, finalmente, a atitude contrária dos
contratadores que o consideravam um entrave aos negócios 185 . Para combater as
dificuldades linguísticas socorreram-se ao uso de intérpretes da catequese, com quem
o almoxarifado de S.Tomé gastava em 1556 vinte mil réis 186 .Neste contexto foi
importante a acção dos jesuítas, a partir de meados do século dezasseis. A companhia
de Jesus enviou para esta área várias missöes.Delas ficou notícia de duas com onze

184. Monumneta M. Africana, II, nº 123, 383, 22 de Março de 1556.


185. António CARREIRA, Cabo Verde, Lisboa, 1983, 273-192.
186. Monumenta Missionária Africana, ii, Nº 124, 384, 22 de Março de 1556.
religiosos para Cabo Verde e Guiné e outra com seis para S.Tomé 187 . Mas a eles
também advieram as dificuldades de adaptação ao clima, já sentidas pelos europeus
aí residentes. No caso de Cabo Verde morreram todos os missionários, e foi com
alguma apreensão que a Companhia de Jesus foi confrontada com a necessidade de
envio de outras missões. Para colmatar esta dificuldade o bispo de S.Tomé havia
sugerido em 1585 a criação em Coimbra de um colégio para educar os negros que
depois seriam os missionários. Mais uma vez surgiram dificuldades pois os nativos
não quiseram mandar os filhos pelo que o colégio foi de novo transferido para
S.Tomé em 1597 188 .

A REFORMA E A CONTRA-REFORMA

O século XVI é definido em termos de estrutura religiosa da Cristandade ocidental


como um momento de activo protagonismo. Para isso contribuíram a tentativa de
reforma levada a cabo por Lutero e Calvino e a pronta resposta do papado por meio
do Concílio de Trento. A Companhia de Jesus emerge neste contexto como o bastião
da resposta papal, cujo movimento ficou conhecido como "contra reforma".
A igreja e os seus membros haviam entrado na vida fácil, deixando-se corromper
pelas solicitações materiais. O estado em que se encontrava a Igreja era deveras
gritante. A vida conventual estava em degradação, dominando aí a indisciplina e
alguma imoralidade. O clero secular alheara-se do serviço nas paróquias apegando-se
aos vícios da sociedade. No caso das ilhas de S. Tomé e Cabo Verde tudo isto ficou
patenteado nos agravos contra o bispo Bartolomeu Leitão.
O absentismo atingia também a alta hierarquia da igreja católica. Os bispos eleitos
recusavam-se a assumir o governo do episcopado, preferindo a vida mundana da
corte. Os primeiros bispos nomeados para as dioceses insulares nunca pisaram o solo
das suas dioceses e daqueles que aí se fixaram foram poucos os que procederam à
indispensável visita às paróquias. Este absentismo aumentou, de acordo com as
dificuldades de fixação e a distância em relação ao reino. Deste modo as ilhas de
Cabo Verde e S. Tomé foram as mais atingidas.
Na Madeira o primeiro bispo a pisar o solo da diocese foi D. Ambrósio, em nome
do arcebispo D. Martinho de Portugal, que aí esteve em 1538 acompanhado de dois
visitadores (Jordão Jorge e Álvaro Dias). Foi a partir daí que se reorganizaram as
paróquias, estabelecendo-se normas rigorosas para a sua preservação nas igrejas,
através dos livros de registo. Depois da sua morte, em 1544, a Sé permaneceu vaga
até 1551. Neste período esteve no Funchal o bispo D. Sarello, das Canárias, que deu
"ordens a muitas pessoas e correu a ilha toda crismando comumente a todos os que disso
tinham necessidade". E, em 1552, foi provido D. Frei Gaspar do Casal, que não residiu
na ilha, sendo o facto mais saliente ter participado no Concílio de Trento. O sucessor,
D. Jorge de Lemos, nomeado em 1556 foi quem na verdade deu forma à aplicação das

. Ibidem, nº 159, 459-461, 20 de fevereiro de 1560; nº 39, 94-95, 6 de Abril de 1604; Fernão Guerreiro, ob. cit., III, 415.
187

. Monumenta Missionária Aficana, III, nº 142, 492-495, 11 de Novembro de 1595; nº 163, 548-556, 16 de Julho de 1597; vol. V, nº 208,
188

557, 30 de Setembro de 1609.


ordens do concílio, sendo seguido depois por D. Jerónimo Barreto (1574-85) e D. Luís
de Figueiredo de Lemos (1586-1608) considerados os verdadeiros obreiros desta
reforma na Madeira.
Nos Açores, para o período que decorre até à criação do bispado em 1534, o poder
eclesiástico era exercido de fora: primeiro pelo vigário de Tomar (1442-1514) e depois
pelo Bispo do Funchal. Durante este período o governo eclesiástico era feito por um
bispo visitador a quem era atribuída uma missão específica e temporária. O primeiro
que aportou às ilhas açorianas foi D. João Aranha, bispo de Safim, que esteve em S.
Miguel e Terceira. Depois em 1505 Vasco Afonso, vigário de Machico, foi nomeado
visitador geral e em 1506 Bartolomeu Fernandes foi provido no cargo de ouvidor
eclesiástico do arquipélago.
Com a criação do bispado do Funchal em 1514 os Açores passaram para a sua
alçada. Em 1523 foi o vigário de Angra nomeado para o cargo de visitador e ouvidor
eclesiástico dos Açores. Estávamos no começo da centralização do governo
eclesiástico nesta cidade. Ao mesmo tempo que foi criado o bispado de Angra
também surgiram os de S. Tomé e Santiago. Todavia nos dois últimos a presença de
um bispo gerou inúmeros problemas. Os primeiros prelados primaram pela ausência,
a exemplo do que sucedeu na Madeira e Açores, enquanto os que se seguiram
marcaram o governo por um permanente conflito com as restantes autoridades.
No Funchal e em Santiago alguns bispos acumularam em simultâneo as funções
de prelado e governador, o que comprova uma mais ampla intervenção na vida das
dioceses. No caso da Madeira tivemos três bispos: D.Frei. Lourenço de Távora (1610-
1614), D. Frei Jerónimo Fernando (1624-30) e D. Gaspar Afonso da Costa Brandão
(1758 e 1777). Em Santiago foram dois os bispos com cargos políticos: D. Frei
Cristóvão Cabral (1630) e D. Frei Francisco de S. Simão (1781).
No Funchal a reorganização das instituições religiosas e do ritual religioso
iniciados por D. Jerónimo Barreto em 1578 tiveram continuidade com D. Luís
Figueiredo de Lemos (1597, 1602), Frei Lourenço de Távora (1615), D. Fernando
Jerónimo (1622, 1629, 1634), D. Frei António da Silva Teles e D. Frei José de Santa
Maria (1610). Todos os prelados realizaram um sínodo onde aprovaram diversas
constituições. De todas elas só se publicaram as de dois (1578 e 1597) e conhecem-se
as de outro manuscritas, tendo-se perdido as restantes.

AS CONSTITUIÇÕES SINODAIS

O Concílio de Trento (1545-1563) definiu uma nova realidade para a teologia e


prática institucional da hierarquia religiosa. Por meio de um novo modelo de
catecismo pretendia-se uniformizar do ritual religioso e combater o absentismo do
clero e leigos. Um dos meios mais adequados para a aplicação destas ordens foi o dos
concílios diocesanos. De acordo com as normas estabelecidas nas diversas sessões do
Concílio foram elaboradas as normas capazes de atender aos novos desejos da prática
religiosa.
A obrigatoriedade de reunião assídua dos sínodos episcopais e o consequente
estabelecimento de constituições resultam da reforma tridentina. Até então estas
normas estavam já estabelecidas, mas nunca se cumpriam. Nos novos bispados de
Angra e Funchal apenas se reconheceram as sinodais de 1559 estabelecidas por D.
Frei Jorge de Santiago, não obstante se referir uma das mais antigas do Funchal. Em
S. Tomé sabe-se da realização de dois sínodos --um por D. Frei Martinho de Ilhoa e
outro por D. Francisco Soveral (1617)-- mas ignora-se o paradeiro delas.
No Funchal as primeiras constituições publicadas são posteriores ao concílio de
Trento. Note-se ainda que esta foi das poucas dioceses onde se cumpriram as ordens
sobre a periodicidade dos sínodos, tendo-se realizado, até finais do século XVII, nove
reuniões, de que resultaram igual número de textos. Entretanto para Angra não se
conhece nenhuma, o mesmo sucedendo em S.Tomé e Cabo Verde.
Perante isto é legítimo concluir que a igreja se deparou com a natural inércia da
estrutura eclesiástica e dos prelados, tornando-se difícil combater o absentismo, como
o determinavam as orientações tridentinas: a ausência dos prelados, a dispersão
geográfica das paróquias foi os motivos disso.
Em Trento insistiu-se numa maior presença do clero na vida das paróquias,
combatendo-se o absentismo e os desvios morais, e procurou-se dignificar a sua
actividade, por meio de uma melhor formação religiosa e meios materiais. Disto
resultou, na prática, o aparecimento dos seminários, a assiduidade das visitas
paroquiais e a melhoria substancial dos meios de sobrevivência do clero com o
aumento das côngruas.
A formação do clero através dos seminários era também indispensável para esta
mudança. A medida, já reclamada nos concílios de Nicea e Toledo, só agora tem
plena concretização. Na Madeira o Seminário surgiu em 1566 por iniciativa de D.
Jerónimo Barreto, enquanto para S. Tomé criou-se um, primeiro em Coimbra (1585),
depois transferido para a ilha em 1597.
A presença do Colégio dos Jesuítas foi importante, uma vez que a ordem,
considerada o principal bastião da Contra-Reforma, terá contribuído para esta
mudança. Primeiro na Madeira e nos Açores (1570 em Angra, 1591 em Ponta Delgada
e 1652 na Horta). Também em S. Tomé e Cabo Verde eles tiveram um papel
imprescindível no da doutrina e baptismo dos africanos. Aí não há notícia da criação
de um colégio, limitando-se a enviar missões.
Uma das recomendações mais relevantes recomendações saídas do concílio
tridentino foi a necessidade das visitas pastorais, de dois em dois anos. Mas elas nem
sempre se concretizavam com o necessário rigor. Das actas disponíveis é possível
avaliar o nível de religiosidade popular e o maior ou menor impacto das ordens do
papa e dos sínodos diocesanos. Apenas nos arquipélagos da Madeira e dos Açores
foram já divulgados alguns livros das visitas que nos dão conta de uma comum
religiosidade popular 189 .

. Maria Fernanda ENES, As visitas pastorais da matriz de São Sebastião de Ponta Delgada (1614-1739), Angra do heroísmo, 1983;
189

Eugénio dos SANTOS, "A sociedade madeirense na época moderna. Alguns "indicadores", in Actas do I Colóquio Internacional de
História da Madeira, vol. II, Funchal, 1989, 1212-1225.
As consequências do concílio de Trento são evidentes na estrutura religiosa das
ilhas. Quanto ao património do clero criaram-se as condições necessárias ao seu
magistério com o acrescentamento das côngruas e ordinárias. Para os Açores elas
ficaram estabelecidas pelos alvarás de 1563, 1569 e 1591, enquanto na Madeira
tivemos os de 1572 e 1598 190 . Tendo em conta a importância das constituições
sinodais para a definição da religiosidade apresentaremos uma breve análise das
existentes, apenas para as dioceses de Angra (1559) e Funchal (1578, 1602).
Numa análise de conteúdo verificam-se inúmeras semelhanças, o que prova haver
uma origem comum. Na realidade os textos baseavam-se num formulário comum: as
de Lisboa, aprovadas no sínodo de 25 de Agosto de 1536. Facto peculiar sucede com o
vicariato de Tomar, que após a criação da diocese do Funchal se manteve como
"nullius diocesis", mas regendo-se por um texto próprio aprovado no sínodo de 18 a
22 de Junho de 1554. No preâmbulo é referido, a exemplo das constituições de Angra
de 1559, a origem num texto anterior do Funchal. Deste modo poder-se-á afirmar que
as de D. Jerónimo Barreto (1578) não foram as primeiras estabelecidas para o bispado,
havendo umas anteriores que se perderam. Fernando Augusto da Silva 191 refere-nos,
a propósito, que o arcebispo D. Martinho de Portugal fez umas que serviram de regra
ao governo do bispado do Funchal. Para António de Vasconcellos 192 elas foram
estabelecidas por D. Diogo Pinheiro, que serviu simultaneamente de bispo do
Funchal e vigário de Tomar.
Confrontadas as sinodais de Angra (1559) com as do Funchal (1578) verifica-se que
a intervenção das normativas tridentinas foi pouco significativa, incidindo apenas
nos aspectos doutrinários, mas com pouco valor para o seu articulado. Facto evidente
de que nas ilhas a prática cultual do clero e leigo, ainda que a nível teórico, não estava
fora do bom caminho.
A doutrina expressa nas constituições pode ser dividida em cinco domínios: os
sacramentos, o ritual religioso, o clero, a administração do património e da justiça,
pecados e desvios. Enquanto os dois primeiros se manteve quase sem mudança, de
acordo com as contingências da conjuntura e das novas dúvidas que ela gera, os
demais adaptaram-se a novas conjunturas. E a fundamental mudança teve lugar após
o Concílio de Trento, como forma de o adequar às referidas normativas.
O concílio intervinha no sentido de manter uma certa uniformidade no ritual
religioso, quer ao nível da Santa Missa, quer da administração dos sacramentos.
Antes reinava a indisciplina o que gerava por vezes escândalos, particularmente no
caso do casamento: eram inúmeros os casamentos clandestinos e consanguíneos. Os
aspectos doutrinários incidem, preferencialmente, sobre o baptismo, a confissão, a
comunhão e o matrimónio.
As normativas tridentinas estabeleciam a necessidade de uniformizar do ritual dos
sacramentos e por isso encontramos as mesmas ordens nas constituições, ainda que
expressas de forma diferente. Mas aqui e acolá subsistem algumas peculiaridades.

190. Arquivo dos Açores, vol. IV, 184-192; Álvaro Rodrigues de Azevedo, "Anotações", in Saudades da Terra, Funchal, 1873, 536-566.
191. Subsídios para a História da diocese do Funchal, Funchal, 1946, 98.
192. "Nota Cronolígoco-bibliographica das constituições diocesanas portuguesas até hoje impressas", in O instituto, Coimbra, Vol. 58,

1911, 494.
Por exemplo: nos Açores insiste-se no ensino da doutrina e no baptismo e casamento
dos infiéis vindos da Guiné, Índias e Brasil, enquanto na Madeira, D. Luís Figueiredo
de Lemos estabelecia um capítulo especial sobre os escravos. Isto demonstra o
empenho da Igreja na evangelização dos infiéis e a importância assumida pela
população escrava em ambos os arquipélagos. Depois de estabelecidas estas normas
para a administração dos sacramentos o empenho passou para o clero, procurando
definir-se condutas de vida "honesta" e exemplar. Confrontadas as constituições post-
tridentinas com as anteriores nota-se uma maior incidência nas primeiras quanto ao
sacramento da ordem. Aqui recomendava-se a maior formação do clero, que derivou
na necessidade de criar os seminários.
A par disso as constituições e o próprio concílio insistem na vida regrada do clero,
de modo a evitarem-se escândalos. Para isso recomendavam-se certos preceitos no
modo de vestir e normas de sociabilidade, coibindo-os de actividades indecorosas e
do convívio e coabitação com concubinas. O último foi também motivo de alguns
capítulos das ordenações régias. Mesmo assim a vida desregrada de algum clero
continuou a ser manifesta, pelo que em 1608 o papa Paulo IV ordenou uma maior
intervenção do Santo Ofício junto dos prevaricadores. Uma consequência disto foi a
prisão em 1618 do padre Bento de Lira, vigário de S. Vicente (Madeira). Nas visitas
feitas por inquisidores do Tribunal do Santo Ofício de Lisboa à Madeira e Açores
surgem outros membros da igreja, condenados por solicitação, blasfémias,
desobediência, sodomia e crítica dos dogmas do catolicismo.
O combate ao absentismo do clero foi outra preocupação: o pároco e cura
passaram a residir obrigatoriamente na sede da paróquia e a cumprir as obrigações.
Estas surgem apenas nas sinodais post-tridentinas : Funchal (1585, 1597). Mas para
que isso acontecesse era necessário garantir ao clero meios de subsistência adequados
e capazes de o manter afastado das tarefas mundanas e residente nas paróquias.
As múltiplas recomendações quanto ao ritual religioso revelavam-se idênticas nos
diversos bispados a partir do Concílio de Trento. Desde então ficou determinada a
existência de um único missal, breviário e catecismo. A par disso definiram-se regras
sobre aspectos formais das missas, ofícios, horas e procissões. Quanto às últimas
estabelecia-se, no caso da Madeira, a obrigatoriedade do Corpus Christi, Visitaçäo de
Nossa Senhora, Ladainhas, Sexta-Feira Santa e Santiago Menor, padroeiro da cidade;
nos Açores mantinham-se as duas primeiras e adicionava-se a do Anjo Custódio.
Ao nível da estrutura institucional sobressaem os oficiais de justiça eclesiástica
(promotor, notário, ouvidor e chanceler) com as respectivas competências. O encargo
fora cometido ao ouvidor, exigindo nos Açores um para cada ilha, exceptuando-se a
Terceira com dois, uma para cada capitania, enquanto na Madeira era de quatro,
sendo um para Arguim, outro para o Porto Santo e os restantes para a Madeira, um
em cada capitania.
A sobrevivência do clero dependia dos dízimos arrecadados, dos benefícios e da
administração dos bens que pertenciam à igreja e que, de um modo geral, lhe haviam
sido dados por disposições testamentárias. Em todas as constituições existem normas
sobre isso.
A arrecadação dos dízimos eclesiásticos estava tutelada pelas instituições régias.
De acordo com as sinodais de Angra este direito da igreja deveria ser entendido como
uma forma de retribuir a Deus por lhes ter facultado estes produtos, pelo que a
sonegação era "pecado muito grave e perigoso". Na década de oitenta do século dezasseis
o valor das rendas arrecadadas nos Açores era de 76500 cruzados, sendo metade
apenas da ilha de S. Miguel. Pela mesma sabe-se também que o dízimo dava para
pagar todas as despesas das ordinárias do clero e fábricas das diversas paróquias.
A justiça eclesiástica era um domínio importante na vida da diocese. Ela tem lugar
de relevo na vida do bispado e paróquias dele dependentes. Para isso a igreja criou
uma estrutura judiciária, definindo a alçada do ouvidor eclesiástico, do bispo e do
papa. O clero, o visitador em serviço faziam parte da estrutura, estando todos
obrigados a declarar os pecados públicos e a clamar por justiça.
A igreja dispunha de estrutura judiciária própria em cada bispado . não obstante
tal alçada abranger alguns domínios da sociedade era junto do clero que se definia
com maior rigor a sua intervenção, uma vez que a imunidade eclesiástica não
permitia a presença nos tribunais seculares.
não foi fácil delimitar a área jurisdicional da justiça ao nível secular e religioso, pois
inúmeras normas estatuídas pela igreja repetem-se no articulado das leis e
ordenações régias, confrontando-se uma alçada comum. O "código das Siete Partidas",
um dos principais fundamentos das leis peninsulares, define logo na primeira partida
isto ao dedica-la por inteiro ao estado "eclesiástico". Aí ficaram lavradas inúmeras
regras que depois passaram para as ordenações régias portuguesas e constituições
sinodais. Na compilação das leis, feita no reinado D. Afonso V, um capítulo do livro
segundo é sobre o "trautar das leix, que fallam acerca das igrejas, e mosteiros e clerigos
sagraes, e religiosos" 193 , foram nele incorporadas todas as determinações acordadas
entre a Santa Sé e os monarcas antecedentes.
Todos os que incorriam em "pecados" graves, a pena mais severa, que lhes podia ser
aplicada, era a excomunhão. A respectiva carta era passada pelo bispo, havendo no
entanto penas que só poderiam ser atribuídas pelo papa, conforme o estabelecido no
final. A excomunhão foi a arma mais poderosa da justiça eclesiástica, sendo definida
nas constituições como "a mayor que ha na igreja de Deos", privando os réus "da
participação dos sacramentos, dos sufrágios della, e da comunicação dos fiéis christäos" 194 .
Deste modo a Igreja apostou nas consequências disso para fazer cumprir as normas
de conduta estabelecidas e reprimir os refractários.
A excomunhão em si representava apenas a exclusão do réu do convívio dos
cristãos na igreja e do acesso aos actos litúrgicos. Mas na realidade as suas
consequências sociais eram muito mais funestas, pois conduziam a uma coacção
social violenta e era nisso que a igreja apostava, divulgando publicamente todos os
excomungados por meio de editais à porta da igreja. As penas mais brandas eram
estabelecidas em dinheiro ou em penitências.

193 . Ordenações Filipinas, Lº III, tits. VIII-LX.


194 . Constituições Sinodaes do Bispado do Funchal, Lisboa, 1585, 153.
A aplicação dos códigos civil e religioso e a punição dos infractores fazia-se de
forma diferente. Enquanto a jurisdição secular estava expressa na actividade dos
funcionários régios (corregedor, alcaide, juiz de fora e ordinário) e das instituições
entretanto criadas, no domínio eclesiástico desmultiplica-se pelos funcionários
(ouvidor e visitador) e tribunal do Santo Ofício. Ele foi criado com um objectivo
específico, mas depois teve a alçada alargada a outros domínios.

OS JUDEUS E A INQUISIÇÄO

Os aferidores mais importantes da religiosidade dos leigos e clero são sem dúvida
os testemunhos exarados, primeiro nos diversos livros das visitações e depois nos
processos perante o Santo Ofício. Ele exercia a sua actividade através do tribunal de
Lisboa, a quem pertencia todo o espaço atlântico. A acção do tribunal nestas paragens
não era permanente e fazia-se através de visitadores aí enviados. Na Madeira e nos
Açores realizaram-se três visitas: em 1575 por Marcos Teixeira, em 1591-93 por
Jerónimo Teixeira Cabral e em 1618-19 por Francisco Cardoso Tornéo. Para Cabo
Verde e S. Tomé estabeleceu-se idêntica missão em 1591, 1618 e 1626 mas os
visitadores nunca pisaram as ilhas, detendo-se apenas no Brasil ou em Angola 195 .
Nas ilhas é manifesta uma certa conivência das autoridades com a presença da
comunidade judaica, o que poderá resultar das facilidades iniciais à sua fixação.
Lembremo-nos que o povoamento de S. Tomé se fez com crianças de origem
hebraica. Deste modo o tribunal interveio apenas nas primeiras ilhas levando a
tribunal alguns judeus, mas poucos, a avaliar pela comunidade aí existentes e pela
sua permanência. No primeiro quartel do século dezassete do rol de judeus fintados
temos 58 na Madeira e 61 nos Açores. Entretanto no intervalo de tempo entre as
visitas o tribunal fazia-se representar pelo bispo, clero, reitores do Colégio dos
Jesuítas, "familiares" e comissários do Santo Ofício.
Nos quatro arquipélagos a presença da comunidade judaica era evidente. Os
judeus, maioritariamente comerciantes, estavam ligados, desde o início, ao sistema de
trocas nas ilhas, sendo eles os principais animadores do relacionamento e comércio a
longa distância: na Madeira e Açores foi a via da Europa do Norte, enquanto em
Cabo Verde e S.Tomé a América.
A criação do tribunal do Santo Ofício em Lisboa conduziu a que avançassem no
Atlântico: primeiro nas ilhas e depois no Brasil. Tal diáspora fez-se de acordo com os
vectores da economia atlântica pelo que deixavam atrás um rasto evidente na sua
rede de negócios. O açúcar foi sem dúvida um dos principais móbeis da sua
actividade, quer nas ilhas, quer no Brasil. A par disso o relacionamento destes
espaços com os portos nórdicos conduziu a uma maior permeabilidade às ideias
protestantes, o que gerou inúmeras cuidados por parte do clero e do Santo Ofício. A
incidência do comércio dos Açores e da Madeira no açúcar, pastel e vinho conduziu
ao estabelecimento de contactos assíduos com os portos da Flandres e Inglaterra, que

195. José António SALVADOR, Os Cristãos-Novos e o comércio no atlântico meridional, S. Paulo, 1978; idem, Os magnatas do tráfico

negreiro, S. Paulo, 1981.


não era bem visto pelo tribunal. Isto deverá ter favorecido a presença de uma
importante comunidade nos dois arquipélagos, o que veio a avolumar as
preocupações dos inquisidores. Todavia a intervenção do tribunal foi reduzida, pois
só se conhece a prisão de alguns anglicanos nos Açores nas visitas de 1575 e 1618.
Na Madeira a presença da comunidade britânica era evidente mas manteve-se
ilesa. O bispo funchalense, D. Frei Lourenço de Távora, no sínodo realizado em 15 de
Junho de 1615 chamou a atenção para a presença de estrangeiros "de partes
infeccionadas na fé", apelando para a necessidade de se cumprir o estabelecido em
1608 pelo prelado anterior que determinara "que os tais estrangeiros cismáticos e
hereges não podem tratar nem disputar com a gente da terra sobre a fé, nem fazer
cousa, que dece escândalo". Isto derivava certamente da assídua frequência de
mercadores ingleses à cidade do Funchal, que assumiam uma posição dominante nas
trocas externas. Todavia é reduzido o número de anglicanos denunciados. Apenas 4
em 1618.
Analisadas as denúncias e confissões de madeirenses e açorianos perante os
inquisidores conclui-se por uma incapaz intervenção do clero no ensino da doutrina
aos leigos. A maioria dos réus é resultado da ignorância dos cânones católicos. A
mesma ideia é-nos transmitida através das visitas paroquiais da Madeira e Açores,
disponíveis e já divulgadas. Deste modo poder-se-á afirmar que as orientações
tridentinas tardaram em chegar às ilhas e que a inércia e o fraco nível cultural do
clero insular terão sido os principais responsáveis disso.
Em 1648 196 D. João IV admoestava o clero açoriano, apontando o escândalo que
provocavam os seus pecados públicos: "nessas ilhas, segundo por vezes fui
informado, se vão com tanto excesso, e pouco temor de Deus cometendo os pecados
públicos, que se poderia nelas recear viesse sobre seus moradores e grande castigo do
céu; e o que mais é para estranhar o mau exemplo como os eclesiásticos vivem,
porque devendo dá-lo bom aos seculares, há neles mais vícios que repreender".
Em 1689 é a vez de um protestante britânico, John Ovington, de visita à Madeira
apontar o estado de formação e comportamento social do clero e leigos. acerca do
primeiro refere que os jesuítas "apenas um em três com quem conversei compreendia o
latim", enquanto os cónegos da Sé "são hábeis na sua capacidade de inventar razões para
defenderem a sua indolência" e "todos fingem um grande ardor na sua fé". Dos leigos
católicos refere a sua propensão para o crime de homicídio tendo como resguardo o
recurso à comunidade eclesiástica, concluindo da seguinte forma: "Estes cristãos são
tão desregrados na prática deste crime como indulgentes nos castigos merecidos por tais
acções" 197 . Eis um breve e incisivo retrato do catolicismo dos madeirenses que, não
obstante ser traçado por um protestante, molestado com o tratamento feito para com
os seus compatrícios, não estava longe da prática e quotidiano religioso da Madeira e
demais ilhas.

196. Francisco Pereira DRUMOND, Apontamentos Topográficos, Políticos Civis e eclesiásticos para a História das nove ilhas dos Açores,

Angra do heroísmo, 1990, 196-197.


197. John OVINGTON, "A voyage to Surrat in the year 1689", in Madeira vista por estrangeiros 1455-1700, Funchal, 1981, 203-206.
O ENSINO

Até às reformas pombalinas o ensino manteve-se soba alçada da igreja, exercendo


aqui a Companhia de Jesus uma acção relevante. Deste modo onde estavam os
jesuítas poderíamos contar com a presença de escolas organizadas e por um elevado
grau de alfabetização de certos grupos. Também isso contribuiu na Madeira e Açores
para a criação de um adequado ambiente cultural, propiciador do aparecimento de
importantes vultos das letras.
Os colégios dos jesuítas permitiram a continuidade dos estudos aqueles que
haviam dado os primeiros passos nas escolas de paróquia e também lhes abriram a
possibilidade de cursarem nas universidades do reino e estrangeiras. Daqui resultou
a existência de um numeroso grupo de literatos, na sua maioria jesuítas, que firmou
uma posição relevante no panorama nacional. Nos Açores tivemos Gaspar Frutuoso,
Frei Diogo das Chagas, Frei Agostinho de Monte Alverne e o Padre António
Cordeiro, que marcaram um geração de literatos e historiadores. Na Madeira foram o
Padre Manuel Álvares (1526-1583), Leão Henriques, Frei Remigio de Assumpção,
Sebastião de Moraes, Jerónimo Dias Leite e Martim e Luís Gonçalves da Câmara. Mas
aqui, ao contrário dos Açores, a sua formação e estudo bifurca-se em vários ramos e
actividades. O Padre Manuel Álvares, natural da Ribeira Brava, ficou célebre pela
Gramática Latina, que teve inúmeras edições e serviu por mais de duzentos anos de
manual para o ensino do Latim.
A par disso a Madeira dos séculos XV e XVI viveu uma verdadeira animação
cultural gerada nos ambientes palacianos, copiados da corte pelos capitães de
Machico e Funchal. O testemunho disso está no Cancioneiro de Garcia de Resende,
compilado em 1516. Note-se que dois desses foram capitães: João Gonçalves da
Câmara, o Porrinha, segundo capitão do Funchal e Tristão Teixeira, mais conhecido
como o Tristão das Damas, segundo capitão de Machico.
A esta plêiade de poetas acresce a figura de Baltasar Dias, conhecido como o
"poeta cego da Madeira", célebre pelos seus autos teatrais de cariz vicentino. Facto
singular é o de uma das suas peças, A Tragédia do Marquês de Mantua, ter sido
representada em S. Tomé e aí perdurado até ao presente, sob o título de Tchiloli. Esta
é considerada uma das manifestações culturais que acompanhou a expansão da cana-
de-açúcar.

ASSISTÊNCIA

Outra das vertentes que pautou a intervenção da Igreja nas ilhas foi a prestação de
serviços de assistência aos cristãos e cativos. Para isso existia um conjunto variado de
instituições, que foram criadas de acordo com as necessidades dos diversos núcleos
populacionais. As cidades portuárias ficaram servidas de hospitais, que davam o
necessário apoio aos marinheiros e demais gentes de passagem. A par disso os
problemas resultantes da fome, mendicidade e a peste levaram à criação de inúmeras
instituições de beneficência, por iniciativa de particulares, que depois passaram à
alçada da igreja.
Na Madeira refere-se o empenho de Zargo em fazer construir em 1454 um
hospital junto à capela de S. Paulo, mas não sabemos se o seu desejo foi por diante. A
isto juntam-se referências a outros dois hospitais de iniciativa de particulares, sendo
um na Rua de Boa Viagem. Entretanto tivemos também as mercearias, sendo a do
Funchal fundada por Constança Rodrigues, mulher de João Gonçalves Zarco, em
1484. A partir de 1485 com a bula de Inocêncio VIII in iunctum nobis a estrutura
assistencial ganha uma nova forma. De acordo com esse espírito a coroa criou em
1498 o hospital de Lisboa maior que veio a congregar todos os menores aí existentes.
O mesmo espírito foi seguido para todas as vilas do reino, por autorização papal de
23 de Outubro de 1501, expresso na carta régia de 4 de Maio de 1507. De acordo com
as ordenações régias cabia aos bispos a sua superintência. É neste contexto que
surgem idênticas instituições nas ilhas. Na Madeira tivemos, primeiro, no Funchal
(1507) e, depois, em Machico, Calheta, Santa Cruz e Porto Santo o hospital da
Misericórdia (28). Nos Açores o hospital criou-se nas principais cidades (Ponta
Delgada e Angra) e vilas. Facto singular sucede na Terceira e em S. Miguel onde
tivemos a referida confraria nas localidades de Vila Nova e Maia, respectivamente.
Ainda a cidade de Angra pela importância do seu porto nas relações transatlânticas
viu reforçada a importância do seu hospital e da rede de assistência social aos
marinheiros e náufragos, com especial relevo para a acção dos jesuítas. Aqui, a
exemplo do sucedido em Santa Cruz na Madeira, a presença de importantes famílias
e avultados legados permitiram a sua criação. Função idêntica ao angrense era
atribuída ao hospital da Ribeira Grande em Santiago.
Das ilhas, dos seus habitantes e forasteiros deixámos aqui alguns indícios do
quotidiano exaurido através do rastro deixado na documentação disponível. Deste
passado, feito de duras canseiras, sabe-se da existência de uma identidade própria,
não obstante a excessiva vinculação à Europa ou ao litoral africano. Esta
mundividência insular ganhou a primeira expressão na Madeira e, depois, avançou
com processo expansionista ao longo do oceano onde os portugueses encontraram
novas ilhas. Por isso a Madeira foi o ponto de partida e em certas ocasiões o único
testemunho de tão fulgurante processo histórico, mercê das inúmeras lacunas
documentais que persistem nos demais arquipélagos. Também a compreensão deste
fenómeno não seria possível sem a inevitável referência e aprofundamento da
situação madeirense. Foi isso que fizemos nas páginas anteriores.
O confronto do devir histórico nos arquipélagos em questão levou-nos a concluir
por uma unidade arquipelágica, constituída na diversidade dos espaços. As soluções
para os problemas surgem em cadeia e têm como referência os casos anteriores. Deste
modo o conhecimento do passado histórico das ilhas deve suplantar o espaço dela ou
do arquipélago a que pertence e enquadrar-se no Mundo Insular, em particular, e
Atlântico, em geral.
Nas páginas anteriores procuramos levar o leitor por essa via, definindo um
périplo insular onde fosse possível reencontrar os aventureiros e marinheiros que
revelaram ao Ocidente estas paragens paradisíacas ou infernais, e testemunhar os
primeiros passos da sociedade, economia e instituições insulares. Desta última
caracterização emergem os aspectos comuns e divergentes que definem a função de
cada arquipélago ou ilha. não houve unicidade neste caso, mas um fio condutor que
definiu para os três arquipélagos uma aproximação do devir histórico. Em todos foi
evidente a dependência dos espaços continentais europeu, africano e americano. Por
outro lado a maior ou menor proximidade deles definiu a dimensão de dependência,
sendo prova disso as ilhas dos arquipélagos de Cabo Verde e S.Tomé em relação ao
continente africano.
Acresce ainda que as similitudes e conexões são definidas pelo posicionamento
geográfico dos arquipélagos. Deste modo elas são mais evidentes entre a Madeira e
os Açores e entre Cabo Verde e S. Tomé, do que entre os dois grupos. Perante isto,
que espelha por vezes um evoluir divergente do processo histórico, as aproximações
poderão ser falaciosas e causadoras de erros. Foi contra isso que lutámos,
estabelecendo uma análise cautelar em termos de forma e conteúdo. E esperámos que
o leitor tenha sido conduzido por esta via de conhecimento desta unidade construída
na diversidade.

BIBLIOGRAFIA

O estudo das ilhas atlânticas tem merecido neste século uma atenção
preferencial no âmbito da História do Atlântico. Primeiro foram os
investigadores europeus ou americanos como Fernand Braudel (1949), Pierre
Chaunu (1955-1960), Frédéric Mauro (1960) e Charles Verlinden (1960) e T. B.
Duncan (1970) a referenciar a importância do espaço insular no contexto da
expansão europeia. Depois surgiu a Historiografia nacional a reforçar este
interesse e a equacioná-lo nas dinâmicas da expansão peninsular. são de maior
importância os textos de Francisco Morales Padron (1955) e Vitorino Magalhâes
Godinho (1963).
Tudo isto condicionou os rumos da historiografia insular nas últimas décadas,
concorrendo para a necessária abertura às novas teorias e orientações do
conhecimento histórico. Neste contexto, as décadas de setenta e oitenta,
demarcam-se como momentos importantes no progresso da investigação e saber
históricos. Para isso terá contribuindo o aparecimento de estruturas institucionais
e de iniciativas afins, activadoras de um verdadeiro salto qualitativo.
O movimento editorial da Historiografia insular é desigual, dependendo da
existência de historiadores e de instituições capazes de incentivar a produção e
divulgação dos estudos. A similitude do processo vivencial das ilhas atlânticas,
aliada à sua permeabilidade às perspectivas históricas peninsulares definiram
uma certa unidade na forma e conteúdo da Historiografia insular. Gaspar
Frutuoso, em finais do século XVI, com as Saudades da Terra expressa, de forma
modelar, a visão de conjunto do mundo insular, aproximando os arquipélagos da
Madeira, Açores, Canárias e Cabo Verde. Esta situação, ímpar na historiografia,
só será retomada a partir da década de quarenta da presente centúria pelos
historiadores europeus e só agora pelos insulares. A consciência histórica da
unidade desta múltipla realidade arquipelágica foi definida de modo preciso
pela expressão braudeliana de Mediterrâneo Atlântico, que abrange os três
arquipélagos postados à entrada do oceano.
No culminar deste processo, as exigências académicas com a expansão das
universidades e do saber histórico, condicionaram um avanço qualitativo da
historiografia, a partir da década de quarenta do presente século. Todavia ela é
desigual, o que provoca também uma diversidade de níveis de conhecimento da
realidade para cada um dos arquipélagos. Deste modo foi mais assídua e
volumosa a produção histórica nos arquipélagos dos Açores e Canárias do que
na Madeira, S. Tomé e Cabo Verde. Isso a deve-se, fundamentalmente, à falta de
instituições culturais e universitárias para tal vocacionadas. Por outro lado
importa salientar o valor assumido pelas publicações periódicas e a possibilidade
de encontro dos investigadores, através de colóquios, que a década de oitenta foi
fértil.
A historiografia insulana, permeável às origens europeias, surge na alvorada
da revolução do conhecimento geográfico como a expressão pioneira desta
novidade e, ao mesmo tempo, como uma necessidade institucional de
justificativa de um processo de afirmação da soberania peninsular. Deste modo o
período que medeia entre os séculos iniciais do reconhecimento do oceano é
marcado por uma escrita mais europeia do que insular, próxima da crónica e da
literatura de viagens, onde as ideias se espraiam.
Os factos históricos e as impressões de viagem são perpetuados na escrita com
um uso posterior, de acordo com as exigências de cada geração e época. Esta
prosa histórica está impregnada de um ideal romântico e serve-se de
perspectivas e formas positivistas para justificar e fundamentar certos objectivos
políticos imanentes da conjuntura política em que emergiram.
As publicações periódicas assumem particular importância na pesquisa
histórica uma vez que é a partir delas que o público interessado toma
conhecimento dos progressos que se vão conseguindo. Para a Madeira todo o
mérito vai para duas: o Arquivo Histórico da Madeira (19 volumes editados de
1931-1990), iniciada por Cabral do Nascimento e que José Pereira da Costa
transformou em boletim do então Arquivo Distrital do Funchal; Das Artes e Da
História da Madeira (1948-1977), órgão da Sociedade de Concertos da Madeira,
revista publicada por iniciativa de Luís Peter Clode. Na actualidade merecem
referência as revistas Atlântico (1985-1989) e Islenha (desde 1987).
Nos Açores, ontem como hoje, proliferam as publicações periódicas, muitas
delas de índole geral mas com forte incidência na temática histórica. são elas a
Insulana (1944), do Instituto Cultural de Ponta Delgada; Boletim do Núcleo
Cultural da Horta (1950) e o Boletim da Comissão Reguladora do Comércio de Cereais
dos Açores (1945-1960). Uma referência especial para as publicações que apostam
no conhecimento histórico: Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira (1944) e
Arquipélago -ciências humanas, revista da Universidade dos Açores (1977), que
desde 1985 publica números em separado sobre a História.
Para as ilhas de Cabo Verde e S. Tomé o panorama não é idêntico, resumindo-
se muitas vezes a sua valorização às publicações periódicas nacionais com
incidência colonial, como sejam: Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa (desde
1875), Studia (1958) e Ultramar (1961); com carácter específico merece ser
referenciado o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa e para Cabo Verde as
Revistas Claridade (S. Vicente-1957), Cabo Verde (1950) e, mais recentemente,
Raízes (Praia-1978). Uma referência especial para os estudos publicados por
António Carreira e A. Teixeira da Mota que muito contribuíram para revelar a
parte recôndita da História destas ilhas.
Também os colóquios foram importantes na valorização e incentivo ao
conhecimento histórico. Esta é uma nova dimensão que emergiu no final da
centúria. Primeiro foram os colóquios realizados em Las Palmas desde 1977, que
ficaram conhecidos como Colóquio de História Canário-Americana, que terá em
1992 a sua décima realização, depois idêntica iniciativa nos Açores (1983, 1987 e
1990) e Madeira (1986, 1989). Das três realizações açorianas e das duas
madeirenses ficaram algumas centenas de comunicações reunidas em vários
volumes e a certeza de que a investigação histórica iniciou uma nova era.

No sentido de facilitar ao leitor um maior aprofundamento da temática


explicitada ao longo destas páginas vamos apresentar uma resenha sumárias das
obras que reputámos mais importantes.

1.(Os)Açores e o Atlântico (séculos XIV-XVII), Angra do Heroísmo, 1984. Este


volume reúne as actas do colóquio realizado em 1983. A este seguiram-se mais
dois em 1987 e 1990, tendo-se publicado as actas do segundo em volume no
Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira (vol. XLV, 1987), entidade promotor
de todos estes eventos.

2. ALBUQUERQUE, Luís de (direcção de), Portugal no Mundo, 6 volumes, Lisboa,


1989. Nos dois primeiros volumes publicam-se estudos monográficos sobre a
Madeira (Alberto Vieira), Açores (Artur Teodoro de Matos, Maria Olímpia da
Rocha Gil), Cabo Verde (Marília Lopes, Maria Manuel Torrão) e S. Tomé (Luís de
Albuquerque e Isabel Castro Henriques).

3. Arquivo dos Açores, 15 volumes, Ponta Delgada, 1878-1959 (reeditado pela


Universidade dos Açores, 1980-1984). A sua publicação iniciou-se em Maio de
1878, por iniciativa de Ernesto do Canto, que subvencionou os dez primeiros
volumes, sendo os restantes da responsabilidade de Afonso Chaves, J. B. Oliveira
Rodrigues. Neles se reúnem, ainda que de forma avulsa, os documentos mais
importantes sobre os Açores, recolhidos nos arquivos açorianos, Torre do Tombo
e outros arquivos.
4. Arquivo Histórico da Madeira, 19 volumes, Funchal, 1931-1990. Iniciativa de
Cabral do Nascimento, que depois passou a Boletim do Arquivo Distrital do
Funchal (hoje Arquivo Regional da Madeira), em que se publicaram importantes
estudos e apontamentos sobre a história da ilha. Nos últimos cinco volumes
(1977-1990), reuniu-se a documentação do tomo primeiro do registo geral da
Câmara do Funchal, com documentos de 1425 a 1623.

5. AZEVEDO, Álvaro Rodrigues de, "Notas", in Saudades da Terra, Funchal, 1873.


Em trinta e três notas (pp.313-855) apensas à edição da obra de Gaspar Frutuoso
referente à Madeira o autor reúne tudo o que conseguiu recolher, até 1873, sobre
a História do arquipélago, capaz de esclarecer algumas questões deixadas em
aberto no texto editado.

6. BARCELLOS, Christianno José Senna, Subsídios para a História de Cabo Verde e


Guiné, 5 partes, Lisboa, 1899-1911. Nestes anais de Cabo Verde e Guiné o autor
reuniu importante documentação que trata de forma cronológica, até 1842,
faltando uma adequada estrutura formal, que deverá ser reunida na obra em
preparação, dirigida por Luís de Albuquerque e M. E. Madeira Santos, com o
título de História Geral de Cabo Verde.

7. BRåSIO, António (publicação e notas), Monumenta Missionária Africana. África


Ocidental, 1ª série, 7 volumes, Lisboa, 1952-1956, 2ª série 15 volumes, Lisboa,
1952-1985. Nesta colecção de documentos o investigador encontra o que de mais
significativo existe sobre os arquipélagos de Cabo Verde e S. Tomé e neles se
juntam textos narrativos e a documentação diplomática.

8. CARREIRA, António, Cabo Verde. Formação e extinção de uma sociedade


escravocrata(1460-1878), Lisboa, 1983 (2ª edição). Pertence ao autor o maior
número de trabalhos históricos sobre o arquipélago de Cabo Verde, de que este
estudo é exemplo.

9. Colóquio Internacional de História da Madeira (actas do I e II), 3 volumes, Funchal,


1989-1990. Nos três volumes estão reunidas as actas do primeiro (1986) e
segundo (1989) colóquios realizados no Funchal pela Secretaria do Turismo
Cultura e Emigração do Governo Regional da Madeira.

10. DIAS, Urbano de Mendonça, A vida de nossos avós, 8 volumes, Vila Franca do
Campo, 1944-1948. Tentativa de recriação da vida dos antepassados com o
recurso a documentos que o autor também publica. Esta obra e outras publicadas
do mesmo autor são indispensáveis para a compreensão e estudo da história
micaelense.
11. DUNCAN, T.B., Atlantic islands. Madeira, the Azores, and the Cape Verdes in
seventeenth - century. Commerce and navigation, Chicago, 1972. O primeiro estudo,
feito de forma compartimentada, sobre os arquipélagos portugueses (Madeira,
Açores e Cabo Verde) no século dezassete.

12. DRUMMOND, Francisco Ferreira, Anais da ilha Terceira, 4 volumes,Angra do


Heroísmo, 1850-1864 (reedição em 1981). Nestes quatro volumes apresenta-se de
forma cronológica a história da ilha Terceira até 1832. Como complemento
deverá indicar-se a edição recente dos seus Apontamentos Topográficos, Políticos,
Civis e Eclesiásticos para a História das nove ilhas dos Açores servindo de suplemento
aos Anais da ilha Terceira, Angra do Heroísmo, 1990, edição de J. G. Reis Leite.

13. FRUTUOSO, Gaspar, Saudades da Terra (livros 1 a sexto), 7 volumes, Ponta


Delgada, 1977-1987. Nesta obra escrita na década de noventa do século dezasseis
o autor reuniu tudo o que conseguiu recolher sobre os arquipélagos da Madeira,
Açores, Canárias e Cabo Verde. Texto indispensável, é certo, mas a ser usado
com todo o cuidado e confronto com a documentação disponível.

14. GIL, Maria Olímpia da Rocha, O arquipélago dos Açores no século XVII. Aspectos
sócio económicos (1575-1675), Castelo Branco, 1979. Uma das primeiras tentativas
de sistematização da sociedade e economia açorianas num período crucial da
história deste arquipélago. Peca apenas pelo facto de privilegiar os núcleos
documentais terceirenses em detrimento das outras ilhas.

15. GODINHO, Vitorino Magalhães, Os Descobrimentos e a Economia Mundial, 4


volumes, Lisboa, 1981/1982. A primeira obra de síntese sobre os aspectos
económicos dos descobrimentos em que às ilhas atlânticas é atribuído um papel
relevante.

16. IDEM, Mito e Mercadoria, Utopia e Prática de Navegar. Séculos XIII-XVIII,


Lisboa, 1990. Para além da visão de conjunto que a obra pretende apresentar nos
dezassete capítulos; parece-nos particularmente relevante aquele em que o autor
nos presenteia com uma primorosa síntese sobre "As ilhas atlânticas: dos mitos
geográficos à construção do novo mundo".

17. MACEDO, António L. da Silveira, História das quatro ilhas que formam distrito
da Horta, Horta, 3 volumes, 1871 (reedição em 1981). Estudo monográfico sobre
as ilhas do Faial e Pico.

18. MAURO,Frédéric, Portugal, o Brasil e o Atlântico. 1570-1670, 2 volumes, Lisboa,


1988-1989 (1ª edição em 1960). Obra geral sobre o espaço atlântico, aqui encarado
numa perspectiva inovadora, com especial incidência na valorização que se dá
aos arquipélagos da Madeira e Cabo Verde.
19. PEREIRA, Fernando Jasmins, Estudos sobre História da Madeira, Funchal, 1991.
Compilação de estudos inéditos e publicados pelo autor sobre a História da
Madeira nos séculos XV e XVI. Este é um dos marcos referenciais da actual
Historiografia madeirense.

20. SANTOS, João Marinho, Os Açores nos séculos XV e XVI, 2 volumes, Ponta
Delgada, 1989. A primeira tentativa de análise global do processo histórico
açoriano peca porque a sua abordagem se restringir apenas à documentação
publicada e às fontes narrativas.

21. SILVA, Fernando Augusto da, Elucidário Madeirense, 4 volumes, Funchal, 1984
(4ª edição). Dicionário histórico-enciclopédico sobre o arquipélago da Madeira: a
sua leitura deverá ser feita com algumas reservas, pois enferma de certos erros
na cronologia.

22. VIEIRA, Alberto, O comércio inter-insular nos séculos XV e XVI (Madeira,


Açores, Canárias), Funchal, 1987. Neste trabalho foi nossa intenção relevar as
conexões sociais e económicas entre os três arquipélagos em causa.
CRONOLOGIA

610 A.C.- Primeira viagem de circum-navegação do continente africano,


a partir do Oriente, por ordem do faraó egípcio Neco.
485 A.C.- Périplo de Halo ao longo da costa ocidental africana.
1310 - Viagem às Canárias de Lanzarote Malocello, ao serviço do rei de
Portugal.
1317/Fevereiro/1 - Contrato entre Manuel Pessanha e o rei de Portugal,
para a organização da armada portuguesa.
1341/Junho/ - Viagem de Agostinho del Tegghia de Corbizzi e Nicoloso
de Recco às Canárias, ao serviço de D.Afonso IV.
1344 - Concessão papal do senhorio das ilhas Afortunadas (Canárias) a
D. Luís de la Cerda
1402 - Primeira viagem de Maciot de Betencourt à ilha de Lanzarote.
1404 - Criação bispado de Rubicão (Lanzarote), transferido em 1438
para Las Palmas.
1419 - Reconhecimento das ilhas da Madeira e Porto Santo, seguido de
ocupação no ano imediato.
1424 - Expedição de D. Fernando de Castro às Canárias seguiram-se
outras até 1440.
1427 - Descobrimento das ilhas dos Açores, excepto Flores e Corvo, por
Diogo de Silves, de acordo com a carta Valsequa (1439).
1433 - Doação régia do direito de padroado das ilhas da Madeira à
ordem de Cristo.
- Carta de D.Afonso V, isentando de dizima as ilhas dos Açores,
confirmada em 1447.
1433/Setembro/26 - Doação das ilhas da Madeira e Porto Santo ao
infante D. Henrique.
1439 - Concessão dos benefícios fiscais aos povoadores da Madeira nos
contactos com o reino, como forma de promover o seu povoamento.
1439/Julho/2 - Licença ao infante D. Henrique para povoar as sete
ilhas dos Açores; repetida em 10 de Março de 1439.
1440/Maio/8 - Doação da capitania de Machico a Tristão Vaz.
1443/Abril /5 - Carta de isenção da dízima, por cinco anos, no comércio
com o reino a partir dos Açores.
1443-44 - Descobrimento das ilhas de Arguim por Nuno Tristão, Gonçalo
de Sintra e Cadamosto.
1446/Novembro/1 - Doação da capitania da ilha de Porto Santo a
Bartolomeu Perestrelo
1447/Abril/20 - Carta de isenção da dízima aos moradores da ilha de
S.Miguel.
1450/Março/2 - Doação da capitania da ilha Terceira a Jácome de
Bruges.
1453/Janeiro/20 - Doação da ilha do Corvo a D.Afonso, Duque de Bragança.
1454/Janeiro/7 - Carta de D.Afonso V doando à ordem de Cristo a
administração espiritual e jurisdição das terras
conquistadas e por conquistar.
1454/Janeiro/8 - Bula Romanus Pontifex, legitimando a posse exclusiva
a Portugal das terras além do Bojador.
1458/Maio/17 - Confirmação régia da compra da capitania de Porto Santo
por Pedro Correia da Cunha.
1460/Agosto/22 (2 e 18 de Setembro e 3 de Dezembro) - Doação das
ilhas dos arquipélagos da Madeira, Açores e Cabo Verde ao
infante D. Fernando.
1462/Setembro/19 - Carta régia em que se declara António da Noli como
descobridor das ilhas de Santiago, Boavista, Maio,
Sal e Fogo, que teria ocorrido em data anterior a
18 de Novembro de 1460.
1462/Outubro/28 - Carta referenciando Diogo Afonso como descobridor
das ilhas de Brava, S.Vicente, S. Nicolau .
1462 - Início do povoamento de Santiago.
1466/Julho/12 - Carta de concessão de privilégio aos vizinhos de Cabo
Verde de comércio nos Rios da Guiné.
1468/Fevereiro/21 - Carta das capitanias da ilha do Faial e do Pico a
José Dutra.

1469/Setembro/30 - Contrato de exploração da urzela de Cabo Verde,


celebrado com João e Mendo de Lugo.
1470/1472- Descoberta das ilhas do golfo da Guiné: S. Tomé, Santo
António de Príncipe, Ano Bom e Fernando Pó
1473/Junho/21 - Doação a Rui Gonçalves da Câmara das ilhas que descobrir.
1474/Março/10 - Doação e confirmações da capitania da ilha de S.
Miguel a Rui Gonçalves da Câmara e da sua compra a
João Soares de Albergaria e Sousa, confirmada pela
coroa em 1483.
1474/Abril/2 - Doação da capitania de Angra a João Vaz Corte Real.
1474/ -Doação da capitania de Santa Maria a João Soares de Sousa.
1477/Março/15 - Criação das alfândegas nas capitanias do Funchal,
Machico e Porto Santo.
1479/Setembro/4 - Assinatura de tratado entre Portugal e Castela, em
que se estabelece a forma de partilha do mar
costeiro do continente africano, confirmado em 6 de
Março de 1480 em Toledo e pelo papa Sisto IV em 21
de Junho de 1481.
1481 - Criação do primeiro oratório dos franciscanos na Praia
(Terceira).
1483/Maio/4 - Carta de doação da ilha de S. Jorge a João Vaz Corte
Real.
1485/Setembro/24 - Doação da capitania da ilha de S. Tomé a João da
Paiva, limitada em 1 de Janeiro do ano seguinte
apenas a metade.
1485/Dezembro/16 - Carta de foral da ilha de S. Tomé.
1486/Julho/24 - Confirmação do contracto entre Fernão Dulmo e João
Afonso do Estreito sobre o descobrimento da ilha das
Sete Cidades.
1489/Junho/1 - Carta de doação das ilhas Terceira e Graciosa ao Duque
de Beja.
1493 - Início das obras da Sé do Funchal, concluídas em 1508.
1493/Dezembro/11 - Licença aos vizinhos de S. Tomé para resgatar
escravos no Congo.
1494/Julho/7 - Assinatura do tratado de Tordesilhas.
1495/Maio/12 - Doação da alcaidaria de Angra e S. Jorge a João Vaz
Corte Real.
1496 - Início do povoamento de S. Tomé por Álvaro Caminha.
1497 - Criação para Santiago do cargo de administrador e recebedor dos bens
dos defuntos.
- Criação do hospital de Santiago.
1497/Abril/8 - Doação da capitania da Ribeira Grande (Santiago) a
D. Branca Aguiar.
1499- Criação do almoxarifado da alfândega e dos quartos na Madeira.
1499/Julho/30 - Confirmação régia da posse da capitania de S. Tomé por
Álvaro Caminha.
1499/Dezembro/15 - Carta régia concedendo a Fernão de Melo a jurisdi
çäo civil e criminal até pena de morte sobre os
escravos de S. Tomé.
1500 - Início do povoamento da ilha de Príncipe.
1500/Maio /12 - Doação a Gaspar Corte Real de qualquer ilha ou terra
firme que descobrir ou achar.
1501 - Descobrimento da ilha de Trindade por João da Nova.
- Criação da vila da Ponta de Sol (Madeira).
1501/Agosto/20 - Assalto holandês à ilha de S. Tomé.
1502 - Descobrimento da ilha de Santa Helena por João da Nova
- Criação das vilas de S. Sebastião (Terceira).
1502/Julho/1 Criação da vila da Calheta (Madeira).
1503/Março/23 - Criação da vila das Velas (S.Jorge).
1504/Maio/3 - Fundação do hospital de S. Tomé.
1505/Janeiro/24 - O papa Júlio II rectifica o tratado de Tordesilhas.
1506 - Descobrimento da ilha de Tristão da Cunha pelo navegador que
lhe deu o nome.
- Confirmação do senhorio da Terra Nova a Vasco Anes Corte Real 1507 -
Criação da vila da Ribeira Grande (S.Miguel).
1507/Setembro/28 - Doação da capitania da ilha Graciosa a D. Fernando
Coutinho.
1508/Agosto/21 - Elevação do Funchal à categoria de cidade.
1510 - Criação da vila do Topo (S.Jorge).
1514/Junho/12 - Bula de criação do bispado do Funchal.
/Julho/14 - Criação da vila do Nordeste (S.Miguel).
1515/Junho/26 - Criação da vila de Santa Cruz.
- Foral do almoxarifado do Funchal.
1515/Julho/28 - Criação da vila de Agua de Pau (S. Miguel).
1520- Regimento para as naus da Índia nos Açores.
1520/Março/13 - Carta régia, estabelecendo a jurisdição dos capitães da
Madeira e Cabo Verde
1522 - Terramoto em S. Miguel, que soterrou Vila Franca do Campo.
- Nomeação de governador para S. Tomé.
- Criação da vila de Lagoa (S. Miguel).
1522/Outubro/22 - Sublevação dos escravos em Vila Franca do Campo.
1524/Maio/19 - Foral para a ilha de S. Tomé.
1525/Abril/22 - Criação da cidade de S. Tomé.
1527 - Primeira referência ao cargo de provedor das armadas na ilha
Terceira, exercido por Pêro Anes do Canto.
1533/Janeiro/31 - Elevação da diocese do Funchal a metropolitana e
primaz, situação que se manteve até 1551, altura em
que passou a sufragânea da de Lisboa.
1533/Junho/3 - Criação da vila da Calheta (S. Jorge).
1533/Setembro/15 - Nomeação do primeiro corregedor para Cabo Verde-
Bach. Esteväo de Lagos.
1534/Agosto/21 - Criação da cidade de Angra (Terceira).
1545 - Início do povoamento da ilha Brava.
1546/Abril/1 - Criação da Vila da Praia (Graciosa).
1546/Abril/2 - Elevação de Ponta Delgada (S. Miguel) à categoria de
cidade.
1547/Janeiro/20 - Sublevação dos escravos negros da ilha de S. Tomé.
1548 - Início do povoamento de Santo Antão.
1562 - Licença aos moradores da Madeira para resgatarem escravos nos
Rios da Guiné.
1567 - Assalto de corsários franceses à ilha de S. Tomé.
1574 - Revolta dos angolares em S. Tomé.
1578 - Primeiro capitão general das ilhas de Cabo Verde.
1581 - Nomeação do primeiro governador da ilha Terceira, Juan de
Urbina.
1585 - Nomeação do Geral e superintendente das coisas da guerra da
Madeira.
1585/Novembro/16 - Assalto à ilha de Santiago por Francis Drake.
1595/Julho/9 - Sublevação dos negros de S. Tomé, chefiados por Amador.
1595-1596 - Assalto holandês à ilha de S. Tomé.
1596/Maio/20 - Criação da diocese de S. Salvador do Congo.
1598 - Ataque holandês à ilha de Santiago.
1599 - Ataque holandês à ilha de S. Tomé.
1600 - Nova estrutura governativa das ilhas com o aparecimento do
cargo de capitão e governador.
1609 - Criação do consulado francês em Angra (Terceira).
1616 - Saque dos corsários argelinos às ilhas de Santa Maria e Porto
Santo.
1621 - Praga do bicho da cana nos canaviais säotomenses.
1641 - Assalto holandês à ilha de S. Tomé.
1641 - Nomeação do Conde de Salvaterra para governador do Castelo de
Angra.
1643 - Ocupação holandesa da ilha de S. Tomé, expulsos em 1658.
1649 - Criação da Companhia Geral do Comércio para o Brasil.
1652/Novembro/19 - Concessão de direito aos madeirenses e açorianos
para enviarem ao Brasil todos os anos, respectivamente, um e três
barcos; situação que se manteve
até a sua liberalização em 1670.
1664/Setembro/1 - Criação da Companhia da Costa da Guiné
1676/Maio/9- Criação da Companhia do Cacheu, Rios e Comércio de Guiné.
1682/Fevereiro/12 - Companhia do Estanco do Maranhão e Para.
1690/Janeiro/3 - Companhia do Cacheu e Cabo Verde.
MICROBIOGRAFIAS

1. CAMARA, RUI GONÇALVES DA (--/1497) . Filho de João Gonçalves Zarco e


Constança Rodrigues, sendo o primeiro nascido na ilha e o segundo na sucessão
da casa, o que lhe retirou a possibilidade de alcançar a posse da capitania do
Funchal, surgindo apenas como usufrutuário das terras de sesmarias que o pai
lhe distribuiu na Lombada da Ponta de Sol. Casou na Madeira com D. Maria
Betencourt, filha de Maciot de Betencourt, sobrinho do conquistador das ilhas de
Lanzarote e Fuerteventura.
Depois de evidenciar a sua valentia de cavaleiro nas campanhas de Arzila e
Tânger, empenhou-se na busca de uma terra onde pudesse ser também ele
capitão. Solicitou da coroa uma carta de antecipação de posse para as terras que
pensava vir a descobrir a Ocidente dos Açores, concedida por D. Afonso V em 21
de Junho de 1473. Depois foi ao encontro de outra forma mais fácil de o
conseguir, por meio da compra a João Soares de Albergaria e Sousa do direito de
posse da capitania da ilha de S. Miguel. Esta compra, no valor de dois mil réis e
quatro mil arrobas de açúcar foi confirmada pelo senhorio e pela coroa,
respectivamente, em 10 de Março e 20 de Maio de 1474. Para cobriu essa despesa
Rui Gonçalves da Câmara aforou em 1473 as suas terras da Lombada da Ponta
de Sol a João Esmeraldo.
Terá sido no Verão de 1474 que o mesmo tomou posse efectiva da sua
capitania ao fixar morada no local de Vila Franca do Campo; acompanharam-no
a mulher, os filhos naturais e "muitos honrados homens", no dizer de Gaspar
Frutuoso, que o ajudaram a corresponder o desafio lançado pela infanta de a
"fazer povoar... e a reger com justiça". É precisamente nesse momento que a ilha
adquiriu o incremento económico
necessário, mercê da intervenção de meios, técnicas, produtos e mão-de-obra
madeirenses; à sua morte em finais de Novembro de 1497 a ilha firmava já
alguma importância económica e a sua missão era dada por cumprida.

2. CAMINHA, Álvaro (--/1499). Cavaleiro da Casa Real, natural de Faro, recebeu


em 29 de Julho de 1493 a posse da capitania da ilha de S. Tomé, como
recompensa pelos seus serviços "nas coisas do mar e de terra, em Guiné e nas
partes de África, entre os infiéis". Todavia a esta doação estava ligado um
compromisso assumido perante a coroa de aí viver com continuidade, de modo a
que se pudesse dar início à ocupação efectiva desta ilha. Além disso
estabeleceram-se algumas regalias ao capitão e acompanhantes, conducentes a
isso. Ele recebeu a alcaidaria-mor da ilha (20 de Novembro de 1493), o usufruto
hereditário da capitania e uma alçada alargada no campo do civil e crime,
enquanto aos povoadores foram as inúmeras regalias no comércio das ilhas e
áreas costeiras vizinhas.
Álvaro de Caminha foi quem deu início à ocupação efectiva do solo
säotomense, servindo-se para isso de dois mil crianças judias, recém-baptizadas,
que o acompanharam em 1493. O comércio do açúcar e dos escravos africanos
fizeram da ilha um importante entreposto de comércio do golfo da Guiné, e do
seu capitão um importante e rico senhor. O testamento lavrado em 1499 é
testemunho disso, através dos inúmeros e valiosos legados que estabelecia. Aí se
refere também o seu activo comércio com o reino, onde mantinha, em Lisboa,
Álvaro Pires como feitor.

3. CANTO, Pêro Anes do (1473/1556). Filho de João Anes do Canto e de Dona


Francisca da Silva nasceu no ano de 1473 em Guimarães. Em finais dessa centúria
fixou morada na ilha Terceira onde se tornou num dos mais importantes
proprietários; as terras adquiriu-as por dote de casamento, título de compra ou
de sesmaria, enquanto os títulos nobiliárquicos (28 de Janeiro de 1539, cavaleiro
da Ordem de Cristo) derivaram da sua destreza como cavaleiro nas campanhas
de Arzila (1509) e Azamor (1515). Além disso em 1531 foi nomeado para o cargo
de prove
dor das armadas na ilha, tendo como função apoiar, defender e reabastecer as
naus da carreira da Índia que sulcavam os mares açorianos.
A sua morte em 18 de Agosto de 1556 deixava aos seus descendentes um
vasto património, repartido por três morgados e um cargo de provedor das
armadas, tudo para o seu filho varão.

4. DUTRA, Jos (-/1495). Flamengo que veio para Portugal no tempo de D. João II
tendo sido moço da Casa Real, casou com Beatriz de Macedo, dama do Paço,
filha de Fernão de Macedo de Évora. Em 1466 recebeu o encargo de povoar a ilha
do Faial, confirmada por carta de 5 de Março de 1491 a capitania desta e da do
Pico. Na viagem de ocupação fez-se acompanhar de com patrícios seus,
residentes em Lisboa, ou que, no entender de Gaspar Frutuoso, foi buscar à
Flandres. Foi da iniciativa desse primeiro grupo de povoadores que se procedeu
ao arranque definitivo do povoamento e valorização económica das ilhas do
grupo central, sendo a cultura do pastel o principal incentivo.

5. FRUTUOSO, Gaspar (1522/1591). Pouco se sabe sobre a vida deste ilustre


literato açoriano, o primeiro e principal obreiro da História das ilhas atlânticas,
até à sua saída em 1548 para Salamanca. Diz-se ser filho de Frutuoso Dias,
importante mercador de Ponta Delgada, e que teria nascido em 1522. Depois dos
estudos em Salamanca (1548-58), Coimbra e, talvez, Évora, fixou morada em S.
Miguel onde foi desde 1565 pároco (20 de Maio) e pregador (19 de Junho) da
matriz da Ribeira Grande. Aí viveu os últimos anos de vida dedicados à
investigação e escrita das Saudades da Terra.
Foi precisamente entre 1583 e 1590 que escreveu os seis livros da sua
monumental obra, em que aborda todos os aspectos das ilhas atlânticas (Açores,
Cabo Verde, Canárias e Madeira). A documentação da sua paróquia testemunha
inúmeras vezes a sua ausência neste período, certamente provocada pela
necessidade de conhecer os locais que descreve na obra.
Numa breve análise a esta monumental História das ilhas Atlânticas até ao
século XV conclui-se que o tratamento não é idêntico, pois que resulta da
possibilidade de acesso a essas informações pelo autor. Se no caso da Madeira
esta lacuna foi colmatada com o pedido expresso ao cónego Jerónimo Dias Leite
da necessária compilação dos factos, quanto às demais ilhas o autor deverá ter-se
baseado em testemunhos orais ou escritos que nos escapam. Além disso é de
referenciar o seu tratamento desproporcional desta realidade. Assim a ilha de S.
Miguel merece uma análise exaustiva, enquanto as demais ilhas são
referenciadas muito sumariamente. No caso das Canárias a incidência
preferencial na ilha de La Palma, a única que o autor descreve a sua geografia
costeira e interna, deverá resultar de uma visita ou de um testemunho cuidado
de algum mercador açoriano que aí esteve.

6. MACHIM, Robert. Aventureiro inglês que teria fugido em 1344 do Porto de


Bristol com a sua amada, Ana d'Arfet que naufragando na pequena enseada da
Madeira, que lhe deu o nome, Machico. É desta forma que Francisco Alcoforado,
Valentim Fernandes, Damião de Góis e Gaspar Frutuoso iniciam o relato da
descoberta do arquipélago madeirense. Mas
a tradição historiográfica mais recente, a partir do texto de Álvaro Rodrigues de
Azevedo (1873), passou a contestar a veracidade do relato, fundamentando-se
quase que exclusivamente na versão romanceada de D. Francisco Manuel de
Melo (1660). Mas documentos recentes testemunham existência deste apelido em
Gloucester, desde o século XIV, enquanto um documento de 1406 refere a
expulsão de Inglaterra de um Machim e um Matchico; esta situação apresenta
afinidades com o texto apresentado por Valentim Fernandes. Lenda ou verdade,
o certo é que este enigmático aventureiro ficará nos anais da História madeirense
a atestar o conhecimento da ilha em data anterior à presença portuguesa no
século XV.

7. MONIZ, D. Filipa de (-/1485). Filha de Bartolomeu Perestrelo, capitão do


donatário da ilha do Porto Santo e de Isabel Moniz. Casou em 1479 (?) em Lisboa
com Cristóvão Colombo e depois veio viver para o Porto Santo e Madeira. não
existe consenso quanto ao local de nascimento de Diogo, primeiro e único filho
deste enlace: uns dizem ter nascido em Lisboa, outros, no Porto Santo. Apenas se
sabe que após o
casamento vieram viver para a Madeira, estando em 1485 de regresso a Lisboa,
onde ela faleceu. A vinculação colombina ao arquipélago madeirense foi
importante para a concretização do projecto da viagem de 1492, pois teria sido do
contacto com os madeirenses em demanda do Ocidente que o mesmo definiu o
plano de viagem.

8. NOLI, António da (-/1496). Navegador italiano, natural de Noli (Ligúria),


sendo considerado o descobridor de cinco ilhas do arquipélago de Cabo Verde
(Santiago, Fogo, Sal, Boavista e Maio). Em 1462 recebeu das mãos do infante D.
Fernando a posse da capitania da ilha de Santiago, ano que começou a sua
ocupação, acompanhado do seu irmão Bartolomeu e o sobrinho Raffaele. Em
1472, por razões que desconhecemos o senhorio retirou-lhe o usufruto de metade
da ilha, o que o levou em 1476 a tomar partido dos castelhanos que invadiram a
ilha. Todavia retornou ao reconhecimento da soberania portuguesa sem que a
alçada total lhe fosse reconhecida; ao morrer, sem filho varão, esta parcela que
lhe restava foi doada, extraordinariamente, à sua filha D. Branca de Aguiar.

9. PAIVA, João da. Fidalgo da Casa Real, vizinho de Óbidos, recebeu em 24 de


Setembro de 1485 a posse da capitania da ilha de S. Tomé. Todavia nunca se
deslocou à ilha, deixando o encargo de a povoar a João Pereira que aí chegou em
1486. Por carta régia de 11 de Janeiro de 1486 a capitania ficou reduzida apenas a
metade da ilha, sendo a 11 de Março confirmada a sua posse pela sua filha D.
Mécia de Paiva. Mas esta acabou, por inteiro em 1490 nas mãos de João Pereira,
na qualidade de primeiro povoador.

10. PERESTRELO, Bartolomeu (1400?-1457/1458). Este fidalgo, cavaleiro da casa


do infante do Henrique e o primeiro povoador do Porto Santo era de ascendência
italiana. Foi companheiro de João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz na viagem de
reconhecimento e ocupação das ilhas do ar
quipélago da Madeira tendo ficado com o encargo de povoar a de Porto Santo, de
que recebeu a posse da capitania a 1 de Novembro de 1446. Esta situação é
justificada pelo infante "por elle ser o primeiro que per meu mandado, a dicta
Ylha pobrou e por outros muitos serviços que me fez".
Casou por três vezes, sendo apenas do último enlace com Isabel de Moniz que
nasceu o filho varão, que o havia de suceder na posse da capitania. Além deste
nasceu também Filipa de Moniz, que se celebrizou pelo casamento com
Cristóvão Colombo. Do segundo enlace uma das filhas, Iseu Perestrelo, casou
com Pedro Correia, capitão da ilha Graciosa e que também comprou a Isabel de
Moniz o direito de posse da capitania de Porto Santo, sendo confirmado pelo
infante em 17 de Maio de 1458, mas em face da maior idade do herdeiro esta
venda foi considerada nula pela coroa.
11. TEIVE, Diogo de. As genealogias madeirenses falam-nos de dois: tio e
sobrinho. O primeiro esteve entre os iniciais povoadores da Madeira, sendo
escudeiro da casa do infante. Foi ele quem em 5 de Dezembro de 1452 recebeu
das mãos do infante um alvará em que lhe era concedida autorização para
construir um engenho de água para o fabrico de açúcar, em vez dos trapiches.
Em Maio de 1454 encontrava-se já no Funchal na companhia de sua mulher,
Marina Gonçalves, sendo referenciado como proprietário de casas e de uma serra
de água. Além disso participou activamente na vida local, como homem-bom do
concelho, tendo sido eleito para diversos mandatos.
Bartolomé de Las Casas refere-o como o empreendedor, conjuntamente com
Pedro Velasco, de uma viagem para Ocidente, que se teria realizado em 1452. Foi
no regresso da viagem que o mesmo descobriu as ilhas foreiras (Flores e Corvo),
tal como o confirma a carta de doação em 1453 da ilha do Corvo ao Duque de
Bragança. Todavia outra carta de 1474 refere o seu encontro por Diogo de Teive e
seu filho João de Teive em momento muito próximo desta data. Além disso a
documentação terceirense atesta a sua presença nos inícios da década de
cinquenta como companheiro de Jácome de Bruges. Foi certamente nesta altura
que realizou a viagem para Ocidente.
12. VAN DER HAGHEN, Guilherme (-/1500). Foi um dos que acompanharam
Jos Dutra em 1470 no povoamento do Faial. O mesmo é natural de Bruges e
encontrava-se em Lisboa com sua esposa, D. Margarida de Azambuja, aquando
da viagem de povoamento do Faial. Da Flandres trouxe consigo todos os criados
e familiares, fixando-se primeiro no Faial, depois em S. Jorge e Terceira e,
finalmente, nas Flores. A ele se deve a promoção da cultura do pastel nas ilhas,
tendo trazida da Flandres as plantas e os agentes técnicos habilitados para o seu
fabrico.

13. VAZ, Tristão. Primeiro escudeiro, depois cavaleiro da casa do infante. Foram
as suas façanhas no Norte de África que lhe valeram esse último título e o
simples nome de Tristão ou Tristão da ilha. Por sua iniciativa armou uma
caravela para o reconhecimento e povoamento da Madeira, tendo depois
recebido em recompensa a posse da capitania de metade da ilha, conhecida
como de Machico, por carta de 4 de Maio de 1440.
Casou no reino com D. Branca Teixeira, de que resultaram quatro filhos e oito
filhas: o varão, Tristão Teixeira ficou conhecido pela sua arte de galantear as
damas, o que lhe valeu o epíteto de Tristão das Damas.
Pai e filho atribuíram pouca importância à administração da capitania,
empenhando-se mais nas façanhas bélicas e nas diversões de carácter militar. Um
e outro ficaram conhecidos pela prepotência do seu governo, sendo célebre o
caso do castigo infligido a Tristão Barradas, que o levou à perda da capitania e ao
degredo, perdoado por carta de 17 de Fevereiro de 1452. Depois disto abandonou
a capitania e passou a viver no Algarve, onde viria a morrer em Silves, com mais
de oitenta anos.
14. VELHO, Gonçalo. Cavaleiro, navegador da casa do infante D. Henrique,
freire professo da Ordem de Cristo e comendador de Almourol. De acordo com
os cronistas foi ele quem descobriu as ilhas açorianas a partir de 1431, e quem
iniciou a sua ocupação a partir de Santa Maria. não se lhe conhece qualquer carta
de doação feita pelo infante, apenas se sabe por alguns documentos que foi
capitão das ilhas açorianas (em carta do infante de 1460). Por outro lado numa
carta de 1443 é referenciado que estas ilhas haviam sido cedidas de prestamo ao
mesmo, para numa carta de perdão de 1455 referir-se as "ilhas de q[ue] Gonçalo
Velho tem a cargo". Perante isto será legítimo de concluir que a inicial tarefa de
ocupar as ilhas, com o lançamento de gado em Santa Maria e S. Miguel, desde
1439, foi feita por sua iniciativa, que nunca terá pisado o solo açoriano. A sua
morte a posse das capitanias de Santa Maria e S. Miguel ficou em poder do
sobrinho, João Soares de Albergaria e Sousa.

15. ZARCO, João Gonçalves (1395?-1467?). Escudeiro da casa do infante, armado


cavaleiro em Tânger, evidenciou-se como o principal obreiro do reconhecimento
e ocupação do arquipélago. Antes disto demarcou-se como um importante
corsário nas águas ribeirinhas da costa algarvia e terá sido o primeiro a utilizar a
bordo uma peça de artilharia, o trabuco.
Da sua genealogia pouco se sabe com certeza, havendo, no entanto quem
afirme ter nascido em 1395 em Tomar, filho de Gonçalo Esteves e de D. Brites
(filha de João Afonso, vedor da fazenda régia que teve o encargo inicial de
orientar o povoamento da Madeira), casou com Constança Rodrigues.
Ao receber, a 1 de Novembro de 1450, das mãos do infante a posse da
capitania e dez anos depois a carta de armas (4 de Julho de 1460), via coroadas as
suas façanhas no mar, nas praças de África e na ocupação da ilha, onde se
revelara como o mais empreendedor.
Morreu com idade avançada, talvez em 1467, deixando aos descendentes um
vasto património. Os restos mortais repousam hoje no Convento de Santa Clara,
sendo para aí trasladados da primitiva capela de Nossa Senhora do Calhau de
Cima, pelo filho varão. A partir da carta de armas deixou de usar a alcunha
(Zarco), passando a chamar-se João Gonçalves da Câmara de Lobos, em honra
dos lobos-marinhos e do sítio que hoje ostenta este nome, que era propriedade
sua.

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