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PELOS CAMINHOS DA VIDA

Elias Jacob

Fotos do livro no álbum:


http://picasaweb.google.com.br/peloscaminhosdavida

APRESENTAÇÃO

PELOS CAMINHOS DA VIDA descreve a adaptação de um casal que, vindo do Líbano, vem a criar seus
filhos no interior do Estado de Minas Gerais. É, sobretudo, uma novela que exibe com fidelidade as maneiras
de uma cidade do interior: seus tipos, sua poesia, sua gente. PELOS CAMINHOS DA VIDA enfoca com
nitidez de contornos a união de uma família, a Família Jacob, em torno de um ideal comum e venerado por
todos: a preservação da UNIDADE familiar.
ELIAS JACOB não embota a imaginação do leitor, esgotando informações sobre fatos, casos e mesmo
sentimentos de seu livro. Antes, através do seu estilo próprio, obriga-nos a meditar e a entender seus
personagens de forma indireta. Seus próprios sentimentos, ele nos revela aos poucos na seqüência de suas
imagens.
ELIAS JACOB leva-nos a momentos de intensa emoção e surpresa. É assim quando descreve com ternura a
morte de sua mãe: o leitor, influenciado por visões transcendentais da narrativa, sente um misto de tristeza e
alegria. Em outro momento do livro ELIAS JACOB consegue, pela sutileza de suas observações críticas,
paralisar a atenção do leitor quando faz citações de "Frases de Salão" que coletou de seus companheiros de
Buraco, em Juiz de Fora.
PELOS CAMINHOS DA VIDA é, antes de tudo, um cântico de otimismo. Poesia em prosa, PELOS
CAMINHOS DA VIDA é delicado, romântico, maduro e de uma realidade simples sem encenações.
O caráter reconciliador e pacífico do autor despeja-se por inteiro em cada uma das páginas da sua obra. "As
topadas nos ensinam a caminhar".
Todo imigrante, toda pessoa que tenha laços com o interior, todo pai e mãe, todo velho, todo homem, toda
mulher, todo ubaense, e, principalmente, toda pessoa de sensibilidade encontrará em PELOS CAMINHOS
DA VIDA um pedaço de sua própria história e uma esperança nova de um mundo melhor.

Antonio José Soares

DEDICATÓRIA

• A meus pais, que habitam a mansão celeste, o meu profundo amor e saudade.

• A Maria, esposa e companheira, que em todas as horas desta longa existência lutou denodadamente
lado a lado comigo e cuja determinação tornou possível o êxito de nossas realizações.
• Aos queridos irmãos Miguel, Ibrahim, Tufy, Nacib e Eduardo e aos pranteados Jorge e João e seus
familiares, principal razão deste livro.

• A meus filhos, genros, nora e netos, com muito carinho.

AGRADECIMENTOS

• A meus filhos, genros e nora pelo incentivo e revisão deste modesto trabalho.

• A Lúcia Maria da Silva pela paciência de datilografar os meus rabiscos.

• Ao mano Ibrahim Jacob pelo apoio a mim dispensado sempre e pela ajuda na obtenção de algumas
fotos.

• Ao Emílio José pela boa interpretação em Árabe das poesias de mamãe e ao Paulo Noujaim que, com
sua bela caligrafia, fez a redação final. (Com importante colaboração de Najwa Safar Seif nesta
edição)

• A todos que, direta ou indiretamente, contribuíram para a confecção deste livro.

Foto: http://picasaweb.google.com.br/peloscaminhosdavida

Jacob e Sarah. Amaram o Brasil como sua segunda pátria e fizeram de Ubá o Altar de suas devoções

Sentindo saudades do esposo que partira para o Brasil Sarah, com seus dois filhos, nos idos de 1910, ainda no
Líbano, envia-lhe numa das missivas a seguinte mensagem:
Ó passarinho leva minhas lembranças ao meu amor
Beijam-lhe suas mãos, os meninos que muito o amam.

Diz-lhe, também, que desde que partiu de nossa terra

O coração pede a Deus por ele e as lágrimas rolam na face

Com saudades dele, os meninos também.

Que nossa morada seja junto de você, todos juntos!

E se eu adoecer, meu amor, traga-me o remédio.

E se eu morrer, quero todos juntos à minha sepultura!

PREFÁCIO

Diz, se não me engano Leon Tolstoi que o homem se realiza quando tem filhos, plantou árvores e escreveu
um livro. Apesar de ter plantado árvores, ter três filhos e escrito este livro, não me julgo realizado, pois
acredito com muita convicção que a realização plena consiste no AMOR. Quando o homem amar seu
próximo como a si mesmo, aí sim, pode-se considerar realizado! Este livro foi escrito por uma contingência.
Com o falecimento do sempre lembrado mano Jorge, em 1971, pesou sobre meus ombros a responsabilidade
de elucidar aos meus irmãos e parentes a origem de nossos pais, suas Terras de nascimento e familiares no
Líbano. Sendo eu de origem libanesa, por ter nascido na terra dos cedros milenares, o que orgulha a qualquer
mortal, nada conheci de lá a não ser o que meus pais contavam, pois cheguei ao Brasil ainda criança, razão
pela qual fui registrado em Ubá e hoje dou-me por muito feliz por ser brasileiro e de Ubá, esta cidade
incrustada no Estado de Minas Gerais, de cuja cidadania e prerrogativas muito me desvaneço.
Foi muito difícil para mim escrevê-lo. Levei muitos anos para prosseguir na sua confecção; muitas lágrimas
foram derramadas e muitas vezes a emoção me impedia de fazê-lo. A lembrança de nossos pranteados pais e
nossos entes queridos que se foram, como também os acontecimentos nestes setenta e cinco anos de vida, ora
alegres, ora tristes, muito me emocionavam. Não tenho nele nenhuma pretensão literária e quero repetir a
frase de meu dileto sobrinho Ibrahim Jacob Filho no seu apreciado livro "Dr. Pobreza": "A arte de escrever
depende do coração de quem escreve e do amor de quem lê".
Portanto, leitor amigo, seja indulgente comigo.

O Autor

PRIMEIRA PARTE

PELOS CAMINHOS DA VIDA

CAPÍTULO I

O PODER DA FÉ

Este livro é um instrumento de elucidação para os descendentes de uma família da qual faço parte.
Vou contar a história de meus pais, abrangendo seus filhos, até o momento presente. Começo de onde minha
memória alcança e também pelo que me contavam.
Descendemos de Jacob e Sarah. Jacob tinha como avô Nacife Issa e como pai Ibrahim Issa. Sarah era filha de
João Feres. Nossos avós paternos são, portanto, Ibrahim e Tacla e maternos Hanna (João) e Uarde (Rosa).
Minha lembrança me leva aos idos de 1913, no sobradão do Sr. Chico Gervásio, na Rua de Cima, hoje Rua
Governador Valadares, em Ubá, com três anos de idade e meu irmão Jorge, com seis.
Nosso pai veio do Líbano, deixando a mulher e nós dois, com esperança de voltar breve, porém, não sendo
bem sucedido, resolveu trabalhar uns tempos aqui no Brasil, na cidade de Cataguases e em Astolfo Dutra,
antigo Porto de Santo Antônio. Foi compelido pela circunstância de já ter estado em primeira viagem nessas
localidades, com seu irmão Naufel, e deixado dinheiro com um patrício que, mais tarde, ficou impossibilitado
de lhe pagar. Daí a necessidade de ter ficado.
Cartas iam, cartas vinham, até que conseguiu mandar buscar a família, que, entre lágrimas, partia de sua terra
natal para o desconhecido.
No porto do Rio de Janeiro a primeira coisa que aconteceu à corajosa D. Sarah foi beijar a terra e agradecer a
Deus a ventura de ter chegado. Sofrera muito nos longos trinta dias de navio de terceira classe, com o filho
em febre de sarampo, que era eu.
Papai havia se estabelecido em Itamaraty, perto de Cataguases e para lá fomos os quatro.
Mas vamos voltar ao sobrado do Chico Gervásio. O proprietário ocupava a parte de cima e nós a de baixo,
loja de três portas e casa de muito conforto para uma família pequena.
Só me recordo que mamãe estava muito doente e mais tarde fiquei sabendo que a moléstia, que durava mais
de um ano, havia sido adquirida em Itamaraty, na época sem recursos médicos, e que um viajante, que
passara por aquela praça, comunicou ao Sr. Assad Jabour em Ubá, dando a descrição e o nome da família.
Como Assad Jabour era muito amigo do papai, amigo de infância e quase conterrâneo, imediatamente enviou
recursos para que viéssemos para Ubá. Lembro-me bem da feição cadavérica de mamãe e sua magreza a
espantava tanto que chorava constantemente em pensar na morte, deixando o marido e dois filhos. Foi
medicada por vários médicos da época e tudo em vão. Mas a fé continuava presente no coração de papai.
Ao chegar à cidade um médico recém-formado, filho de tradicional família ubaense, o Dr. Gladstone Alvim,
papai foi a ele como uma tábua de salvação. O Dr. Gladstone era pediatra, mas, examinando a doente,
constatou talvez ser inútil receitar, pois vira que todos os medicamentos indicados já haviam sido prescritos
por seus colegas e ele nada mais poderia acrescentar. Para não desanimar a doente e nem o aflito marido,
falou: "o senhor procura a receita no meu consultório". Momentos depois papai foi estar com ele para
apanhar a receita e qual não foi seu espanto quando o médico lhe disse: "Sr. Jacob, não tenho nada a receitar,
lamento muito, mas o caso está perdido". Duas lágrimas rolaram imediatamente na face de papai que pensava
estar se agarrando à última tábua de salvação, mas, mesmo assim, implorou que receitasse qualquer remédio.
Não queria voltar para casa sem uma justificativa para a doente.
O Dr. Gladstone, condoído, receitou uma fórmula de mais ou menos duzentos gramas. Na farmácia, papai
aguardou o farmacêutico pacientemente até que lhe foi entregue o vidro com remédio escuro: uma colher de
sopa de três em três horas. O preço, diante de outras receitas, era irrisório (seiscentos réis). A avaliar pelo
preço o remédio não valia nada.
Papai, de posse do vidro, saiu da farmácia muito desanimado. Só pensava como iria informar em "Chirran",
sua terra natal, a morte da esposa, que há menos de um ano havia partido de lá forte, sadia e cheia de vida.
Ao passar pela Praça São Januário e avistando o cruzeiro no jardim, mentalmente se juntou a ele e implorou:
"Ó Deus, faça com que esse remédio seja a esperança e a vida". E, com a fé dos justos, pareceu ouvir: "não
desanime". Ao chegar em casa, foi logo dando a primeira colher. Momentos depois, mamãe disse: "esse
médico acertou comigo, sinto uma sensação agradável com a primeira colher". "Deus queira", repetiu papai
com esperanças. Seguiram-se outras colheres de três em três horas e o vidro foi repetido, já com sensível
melhora e dentro de um mês, mais ou menos, já estava a D. Sarah recuperada e pronta a enfrentar a vida, a
luta, para a qual fora predestinada.
Além de Chico Gervásio, nosso senhorio, sempre solícito juntamente com sua família, outros vizinhos foram
pontos marcantes com muita solidariedade humana, como Antônio Picorelli e sua família, além dos patrícios,
como o Assad Jabour, o Chicri Assis, D. Dibe, José Mauád, Buliês, seu filho Elias Mauád e Burbara, sua
mulher, e outros, que sempre nos visitavam.
Deflagrada a guerra em 1914, era rara a comunicação com os parentes. Sabia que tinha uma avó, mãe de
papai e tio Naufel. Meu tio mais velho, Nacife, morrera antes de eu nascer. Correspondia muito conosco o
Padre Celibistrus, primo de papai (primo de meu avô), caligrafia muito bonita com traços firmes, que
denotam um caráter bem formado.
Em 1915 mudamos para uma casa de propriedade de Nilo Lentini, que era loja e casa de família. Ficamos
vizinhos muitos anos. Nilo Lentini e sua mulher Maria Matilde tinham muitos filhos e as idades equivaliam:
Jorge com Pedro e Landico, e eu com Geraldo.
Do lado esquerdo era a casa do Manezinho Baltar, como era conhecido o cidadão português Manoel
Rodrigues Ferreira da Costa. Diziam que tomou esse nome, Manezinho Baltar, porque viera de Portugal com
o cidadão português Manoel Afonso, que o tomara aos seus cuidados. Muito novo ainda, empregou-se em
casa de Manoel Baltar, chefe de numerosa prole e mais tarde, casando-se na família com D. Regina Baltar,
seu verdadeiro nome foi ofuscado temporariamente.
Jorge e eu nos ajustamos bem com a meninada da Rua de Cima. Era o Landico, o Geraldo, o Tonico De
Fellippo, o Abelardo Baltar, o Lêca, o Dône e o Chico Fusco, o Chicri Rachid e o Amaury Antônio Mauad
(conhecido como Antônio Burbara). Entre os demais meninos sempre havia um ou outro que integrava o
time, os filhos do Sr. Vitor Lombardi, Zico e Nico, entre outros.
Em 1915, na casa acima citada, nascia o Miguel. Como nós já éramos grandinhos, fizemos um carrinho com
um caixote e puxávamos o pequeno Miguel pela calçada com grande algazarra da molecada. E os dias se
sucediam alegres e felizes.
Em 1917 nascia o João. A família estava crescendo e tudo corria na Santa Paz do Senhor. Só que, certo dia,
chegava carta de luto; era minha avó que falecia e outras cartas iguais se sucediam a respeito de outros
parentes. Antes meus pais só pensavam em voltar à terra natal e agora que perderam seus entes queridos, e
com o nascimento de dois filhos, foram desistindo da idéia e pouco a pouco se convenceram de que o Brasil
seria a terra ideal.
Com a morte de minha avó (mãe de papai), e a de seu irmão Naufel, todos os imóveis ficaram para papai.
Consistiam em casas e vários hectares de terra boa e cultivável. O padre ficou como administrador dos bens
até o dia em que o Criador o chamou.
Raiava o Ano de 1919 e, nessa madrugada, ouviu-se um batido na porta. Quem é? Sou eu, o Picorelli.
Mamãe muito assustada exclamou: "coitada da comadre Burbara", ao que Picorelli retrucou ao ouvi-la: "não
foi Burbara, é o Elias que está duro como pau". Foi aquela correria no amanhecer do Ano Novo. Era a
terrível febre Espanhola que, após a guerra de 14 a 18, ceifava vidas e enlutou milhares de famílias.
Justificava o engano de mamãe em pensar que era a comadre Burbara pelo fato de ela estar doente há várias
semanas com a febre e o compadre Elias são como um coco; mas foi uma morte violenta e surpreendente. O
homem tinha uma compleição de gigante. Alto, espadaúdo e vendia saúde. Presenciei-o várias vezes furando
uma melancia com o dedo indicador. Teve um enterro soberbo, com seu caixão envolto na bandeira da Liga
Operária de Ubá, fundada meses antes. Fora um dos primeiros a se subscrever fundador da Liga, porque na
sua terra natal era operário (pedreiro). A Banda 22 de Maio tocava a marcha fúnebre. Deixou viúva e três
filhos: Antônio, Maria, afilhada de mamãe, e Nestor, além de seu pai, o inesquecível Bu-Lliês e seu tio Bu-
Hessef. De Bu-Hessef e de Bu-Lliês não guardei os nomes, pois, no Líbano, o pai do primogênito toma seu
nome com o prefixo Bu- Exemplificando: se o primogênito é José, em Árabe fica sendo Bu (pai) lussef
(José), o que se entende que o primogênito do tio é Hessef e nós o conhecíamos como Bu-Hessef.
Foi neste ano de 1919 que fiquei sabendo o que era carnaval. Tudo para mim era novidade. O primeiro Bloco
Carnavalesco feito em nossa rua foi com o pessoal dali mesmo. Havia em nossa vizinhança o Sr. Pedro Rosa,
pedreiro, preto de cabelos brancos e de porte patriarcal, que possuía uma grande família: quatro moças e dois
rapazes. Só da casa do velho Pedro Rosa saíam nada menos de seis elementos para maior brilhantismo do
cordão de carnaval. Eram quatro cabrochas alegres e bonitas que enfeitavam a nossa rua com seus cantos
carnavalescos: "A pombinha voou - voou", etc. O bonde, puxado a burros, era de propriedade do Sr. Galdino
Alvim e como era vagaroso, a meninada pegava a traseira para concorrer com a algazarra dos passageiros.
Três dias apenas, que pena...!
Jorge e eu já estávamos freqüentando a escola e minha primeira professora foi D. Rita Louriçal. Era uma
escola particular ministrada por essa denodada professora, a quem devo as minhas primeiras leituras; na
figura desta mestra inesquecível rendo minha homenagem e gratidão a todas as educadoras primárias. Tinha
como companheiro de carteira o alegre propagandista de hoje, o célebre Antônio Perpétuo. Como havia
chegado a Ubá o Padre Bunambarak e pretendendo reunir crianças para estudar o Árabe, meu pai nos
matriculou, Jorge e eu. Desta forma, fomos compelidos a mudar de educandário. O Padre se estabeleceu em
casa de D. Josefina Marcatto que, tendo enviuvado recentemente, cedeu parte de sua casa na Rua Municipal,
hoje Avenida Raul Soares, e para lá fomos estudar o Árabe e o Português. Tínhamos vários colegas que
vinham de cidades vizinhas, destacando Eduardo Felippe (Viçosa), Salim e Jorge Amin, filhos de Calixto
Amin (Rio Branco, hoje Visconde do Rio Branco), Elias Chalhoub (São João Nepomuceno). De Ubá, Salim
Atayde, Felippe Ziede e seu irmão Teófilo. Dos colegas de Ubá faço destaque a Fausto e Anízio Nacle, filhos
de Nacle Haikal, inteligentes e muito vivos, destacando-se dos demais pela facilidade de aprender. Como a
casa de D. Josefina tornou-se pequena, diante da demanda de vários alunos que vinham de fora, o Padre
alugou um casarão em frente ao atual Grupo Escolar Coronel Camilo Soares e no fim do ano letivo de 1919
foi promovida uma festa de alunos aprovados. Dr. Hanna Achar e Gabriel Atalla eram professores de
Francês; lussef Saada de Árabe, revezando, às vezes, com o padre. Fui laureado, nesse ano, como aluno
brilhante. Nesta noite inesquecível, no Salão Nobre da Escola, perante um auditório numeroso, fui levado à
tribuna pelas mãos do Professor Gabriel Atalla, de saudosa memória. Recitei o poema de "Antar" e as
palavras finais foram sufocadas com palmas e vivas. Quando cessaram as palmas, vi minha mãe chorando de
alegria com papai e Jorge muito comovidos. Noite inesquecível. Noite de glória. Abenção papai. Abenção
mamãe. Fomos dormir confiantes no dia de amanhã. Tinha a fé nos dois escudos, pai e mãe, para proteger-
me. Oh! Como é bom lembrar. Como é bom sentir-se seguro.

CAPÍTULO II
DOLOROSO DRAMA

Mamãe, apesar de jovem ainda, começava a transparecer em seus cabelos muitos fios brancos. Talvez por
hereditariedade ou ainda pagando um preço bem alto por ser mãe. Meses antes, Miguel estava brincando na
linha de bonde e, ante a gritaria do povo lá fora, mamãe vê seu filho cortado pelo bonde. Miguel estava com
um porrete na mão e a tragédia foi abrandada pela satisfação de não perder o braço. Presume-se que o porrete
o amparou no resvalo da roda, deixando-lhe apenas um sulco profundo no braço, pertinho do ombro. João,
ainda no começo de seu andar, puxa pela asa uma caçarola de leite saído do fogo, derramando o conteúdo em
seu corpinho frágil. Mais susto, mais choro, mais trinta dias acalentando a criança toda ferida pela
queimadura.
Nilo Lentine havia vendido a casa em que morávamos para uma senhora viúva, que viera de Teixeiras e, ao
que me parece, a senhora queria a casa para morar. Tinha três filhos maiores. Mas, decorrido algum tempo,
por interesses particulares, desistiu de morar em Ubá, voltando para Teixeiras. De lá, a senhora escreveu uma
carta propondo-nos a venda da casa por três contos de réis. Não podíamos dispor desta quantia no momento e
papai, achando que a casa precisava muito de certos reparos assaz dispendiosos e achando que o negócio lhe
era necessário por causa do ponto, ficou aguardando o filho mais velho da senhora para um possível
entendimento, de acordo com os dizeres da missiva.
Nesta época, papai estava recomeçando a sua vida, pois no ano anterior (1918), praticamente só gastou e
nada ganhou. Como disse antes, a distração era jogar o "bastra" (escopa árabe) com os parceiros ideais: Elias
Mauad, Rachid Habib e Antônio Miguel, e isso todas as noites, revezando de casa em casa de cada um. E
essa parceirada já vinha de muito tempo jogando juntos, alterando às vezes com algum amigo que os visitava,
ao qual o dono da casa cedia o lugar. Certa vez, a comadre Dibe, madrinha do Miguel, recebeu a visita de um
primo que viera de Rochedo e o lugar do dono da casa foi a ele oferecido para que participasse. Em conversa
casual durante esse jogo, papai disse que venderia todo o seu estoque pelo preço de custo, apesar da
mercadoria já valer mais, pois estava subindo de preço. O visitante, na mesma hora, se apresentou como
comprador e o negócio foi fechado. Chamava-se Antônio Jorge. No dia seguinte começou o balanço da loja,
ante a surpresa dos amigos e a desolação da mamãe. Encerrado o balanço, a mercadoria estava sendo
encaixotada, com o auxílio do Buliês e do Simão Queiroz, quando a comadre Dibe, vendo mamãe chorar,
propôs que ela poderia fazer o primo desistir do negócio, sem a quebra da palavra do Jacob. Mamãe não
concordou, pois sabia que papai iria ficar sentido em quebrar o trato. Consumado e pago os quatro contos e
quinhentos mil réis pelo valor da mercadoria que seria despachada para Rochedo, nos últimos pregos do
último caixote o Buliês fez para o Simão, que era seu conterrâneo, o verso mais bonito que já ouvi. Dizia
mais ou menos o seguinte: "Oh Simão, eu e você somos irmãos, pois nossos pais viveram e cresceram
juntos".
No dia seguinte, minha mãe, que levantava muito cedo, após fazer o café, foi imediatamente para a porta da
rua, porta da loja como de costume. Quando viu as prateleiras vazias caiu em convulsivo choro. O que fazer?
Abriu a porta que era o acesso à rua e ainda chorava. Nós éramos pequenos para entender a extensão de seu
sofrimento. Papai consolou-a dizendo que ia trabalhar com cereais por atacado e iria ganhar muito dinheiro.
Informado que em Coimbra havia muito feijão, para lá se dirigiu e dias depois, a carga de feijão ensacado
chegava pela Estrada de Ferro Leopoldina. Retirada a carga, o Sr. Jacob, que não sabia mexer com feijão, a
não ser no prato e bem feito, espalhou-o num quarto vazio e no dia seguinte mandou vir terra de formiga para
misturar e deixá-lo ao sol, no passeio em frente à nossa casa. O feijão estava bichando e se não o vendesse
imediatamente o prejuízo seria total. Traz feijão, recolhe feijão, até que vendeu o dito com grande prejuízo, e
não foi nada fácil, não.
O dinheiro estava diminuindo e só aumentava a tristeza de mamãe quando perguntavam: vocês vão mudar? E
a loja, vendeu? Por quê? Tudo isto tinha resposta entrecortada de soluços. Os viajantes, acostumados com o
cafezinho de D. Sarah, eram verdadeiros amigos, destacando na época: Aurélio Camacho, que vendia para a
fábrica de tecidos Sarmento, de São João Nepomuceno, o viajante dos Peixoto, de Cataguases, também muito
amigo, o Sr. Aristides Pinto e outros do Rio e de São Paulo. Todos eles se ofereceram para papai comprar e
renovar a loja. Mas a mercadoria estava subindo e não podia concorrer com outros colegas. E o tempo
passando, o dinheiro diminuindo, quando numa tarde, quase ao anoitecer, o "Cavalheiro da Esperança",
apareceu. Tomado o café, o homem disse: "por que o senhor não quer continuar com a loja, se é a única coisa
que o senhor sabe fazer?" Papai, alisando seu vasto bigode, retrucou: "meu amigo, os viajantes querem me
vender, mas o preço agora está bem mais alto e não consigo equilibrar-me com os concorrentes". "Mas eu
tenho para o senhor uma solução", disse o visitante. "Procure, em Teixeiras, o Sr. Ibrahim Tomb, pessoa
muito boa, que quer regressar à sua terra. Tem um estoque variado, bom e quer vender". Depois de alguns
minutos o visitante se despediu e nunca mais o vimos e nem lhe sabemos o nome para ao menos, com a
modéstia do meu lápis, render-lhe um preito de gratidão.
Inútil dizer que meus pais não dormiram bem naquela noite, ante a expectativa agradável daquela
informação.
O Misto (um trem de ferro da E. F. Leopoldina, denominado Misto porque se compunha de vagões para
passageiros e vagões para cargas), saía para Ponte Nova às 3:40 da manhã e quando o dia amanheceu o Sr.
Jacob já se encontrava na porta do estabelecimento, à espera do Sr. Ibrahim Tomb do qual o desconhecido
lhe havia falado.
Às 7:00 horas, mais ou menos, aparecia o homem com a chave na mão para abrir a porta quando meu pai o
abordou: "o senhor é Ibrahim Tomb?" "Sim". "Eu sou Jacob Ibrahim Elias e estou vindo de Ubá". Entraram
juntos no estabelecimento, fizeram o balanço sem interferência de ninguém, pois papai, apesar de não saber
ler nem escrever, havia confiado naquele homem que tinha aspecto de esbanjar dignidade. Despachada a
mercadoria, que era um pouco mais daquela que tínhamos, a loja voltou a ser abarrotada de mercadoria. A
informação do desconhecido foi fiel. A mercadoria era sortida, sem encalhes, e pelo custo de fatura.
Começou, desta forma uma nova era para nossa loja, que antes vendia muito pouco e passou a fazer negócios
quase duplicados.
É verdadeiro o dito popular: "Tem topada que ajuda a caminhar".
Voltando ao assunto da compra da casa, o negócio estava ainda pendente, quando o citado filho da senhoria,
chegando a Ubá junto com o Sr. Elias David, um patrício de Viçosa e, ao apresenta- lo ao papai, disse: "esse
é o proprietário da casa. Fechamos negócio ontem". "Mas como? O senhor nem viu a casa!" disse papai
dirigindo-se ao Sr. Elias, mas este, entre evasivas, deixou transparecer que já tinha informações sobre ela.
Nos meses que precederam essa venda, tivemos dias terríveis na antiga casa, pois uma parede havia ruído
pelo lado do vizinho Manezinho e, felizmente, não feriu ninguém, porque era noite alta. Nossa mãe, ao ouvir
um forte estalo, pressente que a parede iria cair e, como uma leoa, corre ao quarto onde Jorge e eu
dormíamos e, com a presteza e a coragem de mãe, agarra os dois e retira-os dali quando, após um minuto
apenas, se tanto, a parede, com grande ruído, cai. ...
Loja e quarto sem parede do lado esquerdo. Chuva durando dias e noites... Vigília noturna de papai
revezando às vezes com mamãe naquelas tenebrosas noites. Como não há mal que sempre dure, dias de sol
vieram e, assim, se pôde restaurar a casa, construindo novas paredes. Justifica-se plenamente o espanto de
papai ante a comunicação da venda da casa ao Sr. Elias David, quando papai lhe disse: "o Senhor nem ao
menos viu a casa!"
D. Sarah, que fazia versos lindos e bem construídos, apesar de, como já disse, não ter estudo algum, disse a
propósito os seguintes versos, bonitos e críticos:
Esses versos significam mais ou menos o seguinte:

Ano de prejuízo sobre prejuízo


Penitencie e reze ó Sarah
Que motivo pode ter sido
O de quem comprou essa casa

Que motivo pode ser


Arranjo do Iskandar Sallum
Ele e o Mirched podem crer
Fizeram conosco um ardil

Certo dia nos visitaram


E sobre a escritura perguntaram
Ao saberem que o negócio estava pendente
Informações por carta mandaram
O Iskandar, ó irmão de fé
Você fez conosco uma esperteza?

Comprou a casa sem vê-la ó Iliéss


Caíram as paredes até o alicerce
Causando a todos surpresa
Não é modo de se negociar.

Não é uma compra de fumo


Que se avalia
Fumando um único cigarro de palha !

Iskandar, Mirched e Iliéss eram comerciantes de fumo em corda e daí o final irônico.
Antes disso, quando estávamos restaurando a parede da casa, fizemos também outras benfeitorias. Para
completar naqueles dias a marafunda dos pedreiros, mandou-se fazer um alçapão na cozinha ligando-a ao
porão, que era alto, através de uma escada interna, evitando-se, desta forma, ter que sair pelo lado de fora da
casa para se atingir o porão ou o terreiro. Veio o Sr. Chico que se dizia carpinteiro, mas era vagaroso demais
e a cozinha ficou quase interditada por causa do buraco no assoalho, criando para D. Sarah um grande
transtorno: cozinhar, olhar as crianças e a lerdeza do Sr. Chico. Aí mamãe emendou:

Significam os versos acima:


Completou ainda com esse carpinteiro
Que se diz oficial e obreiro,
Mas nunca pegou num serrote
Nem inchá, nem plaina, de pequeno porte!

E hoje, quando vejo e leio o poema de Dom Ramon Angel Jara, Bispo de La Serena, Chile, intitulado
RETRATO DE MÃE, com tradução de Guilherme de Almeida, eu me lembro daquela que numa noite
tenebrosa do longínquo ano de 1919, com uma criança em cada braço, retira os filhos, ante a ameaça de ruir a
parede, que acabou desabando um minuto após.

RETRATO DE MÃE

"Uma simples mulher existe que, pela imensidão de seu amor, tem um pouco de Deus; e pela constância de
sua dedicação tem muito de anjo; que, sendo moça, pensa como uma anciã e, sendo velha, age com as forças
todas da juventude; quando ignorante, melhor que qualquer sábio desvenda os segredos da vida e, quando
sábia, assume a simplicidade das crianças; pobre, sabe enriquecer-se com a felicidade dos que ama e, rica,
empobrece-se para que seu coração não sangre ferido pelos ingratos; forte, entretanto, estremece ao choro de
uma criancinha e fraca, entretanto, se alteia com a bravura dos leões; viva, não lhe sabemos dar valor porque
à sua sombra todas as dores se apagam e, morta, tudo o que somos e tudo o que temos daríamos para vê-la de
novo e dela receber um aperto de seus braços, uma palavra de seus lábios. Não exijam de mim que diga o
nome dessa mulher, se não quiseram que ensope de lágrimas este álbum, porque eu a vi passar no meu
caminho. Quando crescerem seus filhos, leiam para eles esta página; eles lhe cobrirão de beijos a fronte; e
dirão que um pobre viandante, em troca da suntuosa hospedagem recebida, aqui deixou para todos o retrato
de sua própria mãe".

***

Dona Rosa Baltar, viúva do Manoel Baltar, além de possuir residência própria em nossa vizinhança, tinha
mais três casas alugadas e uma delas ela ofereceu à mamãe prometendo, às suas próprias expensas, abrir as
janelas, que eram três, e fazê-las portas. Dava uma loja bem maior do que a nossa, pelo mesmo aluguel. E foi
assim que passamos a morar em casa de D. Rosa Baltar, onde nasceu Ibrahim no ano de 1920. E a vida
continuava sem grandes sacrifícios. Cinco filhos, a não ser o sarampo e a coqueluche, todos gozavam de
muita saúde. As noites eram de visitas e "Bastra", os patrícios muito unidos. De vez em quando uma
"Sahiriê" - noite de cantos. Chicri Assis, que morava em casa da comadre Dibe, viúva com uma filha
adolescente, casou-se com ela e mais tarde seu irmão Paulo tornava-se genro de D. Dibe, desposando a bela
Tamini.
Os patrícios da Rua de Cima na época eram: Bu-Hessef, Bu-liês, Rachid Habib, Chicri Assis, Paulo Assis,
Antônio Miguel, Joaquim Ayuppe. A não ser os dois primeiros, todos os demais eram casados. A maior prole
entre esses era a do Rachid, na época com os filhos Nazira, Chicri e Arthur e a de nossos pais com Jorge, eu,
Miguel, João e Ibrahim.
Havia chegado de pouco o Sr. Salomão Noujaime que mais tarde mandou vir a família, D. Zaine, sua esposa,
e quatro filhos: Paulo, Elias, Saide e Emília, hoje todos casados, com filhos e netos enriquecendo a Terra de
Santa Cruz com o talento e profícuo trabalho.
Chicri Rachide, Antônio Mauad e Mário Ayuppe eram, além de outros já citados, elementos de nossas
peladas de bola de meia ou às vezes de borracha. Mas os patrícios não se limitavam ao reduto em que viviam;
compartilhavam, é claro, das noitadas alegres das "Sahiriê" que se formavam na casa de Aristides Salomão,
Nacle Haikal, Salomão Noujaim, Alexandre Sallum, Felipe Abualla, e outros.
Chicri Assis valorizava as noitadas com seu "Alahúd" (violão oriental). Eram cantadores na época: Rachid
Habib, Daud Salomão e o Atalla. O próprio Chicri, além de tocar, tinha boas piadas em canto de "Radiê"
(Radiê é um canto que tem resposta, mais ou menos à maneira dos repentistas brasileiros). Mas havia
também o "Migêna" (canto popular da terra natal) e o "Hatêba", este último uma das mais importantes
improvisações, pois consiste em dar o recado bem dado de quatro versos, sendo as três primeiras frases
rimadas com palavras iguais e sentidos diferentes - homônimas - e a última dando o sentido completo da
frase.
Minha mãe, apesar de não saber ler nem escrever, fazia versos muito bonitos. Daud Salomão, irmão de
Aristides, era um repentista extraordinário. Dono de uma inteligência invulgar, construía versos muito
bonitos, de improviso.
Certo dia, chegando a Ubá o Sr. Chicralla Antun, muito amigo dos Salomão, onde se hospedara, lá fomos
cumprimentar o visitante, que era conterrâneo nosso e dos Salomão, porque no Líbano a terra de papai e
minha é Chirran. Mamãe era de Gidêil e o ilustre hóspede era de Gidêil e os Salomão de Ralbun. Ora, Bíggi
(terra de nosso protetor Assad Jabour), Ralbun, Gidêil, Chirran e Hamchit fazem parte de uma só
comunidade ligada entre si. Todos se conhecem e se amam como irmãos. Daud em certa hora cantou:
"Tomara que as noites felizes se estendam por meses e anos".

***

Freqüentando a escola de D. Alaíde Pimenta, no sobrado da Praça São Januário, ali tinha como colegas o
Waldeck, o Walter seu irmão, o Sebastião Ferreira, Arlindo Sol, o Paulo Godoy e tantos de quem não me
lembro os nomes, a não ser o Fued, filho de Mirched, um menino de compleição franzina, de ar muito triste,
que sentava quase sempre perto da janela. Dias depois fomos surpreendidos com a morte do Fued. Teve uma
crise cardíaca e não resistiu. Tinha um irmão chamado Américo e moravam na vizinhança da escola.
Com Waldeck e Sebastião Ferreira à testa dos movimentos, não raras vezes éramos, os menores, motivados a
acompanhá-los na fuga, quando nossa professora se distraía lá dentro de sua casa. Era acompanhar ou sofrer
as conseqüências e não tínhamos alternativa; lá ficava a sala de aula vazia. No dia seguinte, exigida
explicação, ninguém "dedava" ninguém.
Confesso que já estava gostando dessa marotagem. Era o banho de rio, no Izac Cabido, que seduzia os
moleques.
O rio Ubá fazia um remanso nos terrenos do Izac Cabido, hoje Jardim Glória. Na época havia só pasto e uma
olaria do João Amato. Nesse remanso a molecada se banhava e muitos outros vinham da Estação.
Denominavam Estação o território abaixo do Largo São José, hoje Praça da Independência.
E como havia rivalidade, não raro saía uma briga entre os de cá com os de lá, originando outras tantas como
vingança daqueles que ficassem prejudicados.
Nós tínhamos como escudo o Waldeck e eles o José da Rosária. Quando um estava com medo do outro o
banho do Izac Cabido terminava sem novidade, mas era muito raro nada acontecer. Eu era brigão. De vez em
quando enfrentava um moleque e sempre me saí bem graças ao meu físico, na época muito forte, e tinha a
proteção do Jorge, quando em desvantagem.
Jorge se inclinara muito cedo ainda para os pássaros. Estava sempre com um canário e um alçapão no quintal
à espera do incauto canarinho que caía sempre na armadilha.
Era entusiasta no gênero de passarinhos. Chegou a ter Canário da Terra, Curió e Sabiá. Três gaiolas que lhe
davam muito trabalho e prazer. Com a chegada do Nagib Assis a Ubá, entusiasmou-se pelos canários do
Reino Belga, pois Nagib, além de possuir os melhores Belgas, era também criador. Tinha viveiros próprios.
Jorge aprendeu muito com ele, e chegou a ter uma criação razoável de Belgas amarelinhos como gema e
Pintagórios, cruzamento de Belga com Pintassilgo. O vento soprava bem para papai. Estava ganhando bem.
Anualmente fazia o balanço. Confiava muito nas minhas contas de multiplicar, dividir e somar. Estava indo
ao Rio três a quatro vezes ao ano. Fazia suas compras e quando chegava era para nós uma festa. Trazia
sempre doces árabes e outras guloseimas. Depois de conferir as notas de compras que sempre eu fazia, pois
tinha orgulho em dizer aos amigos que seu filho fazia o balanço, escrevia cartas em Árabe para a terra e
mamãe não escondia a vaidade de contar a todos que no Líbano ficavam admirados do pequenino Elias, com
nove anos, fazendo esse prodígio. Este relato, me perdoem, somente o faço por entender hoje, o que se
passava na alma de nossos pais. Hoje, que sou pai, é que sinto e avalio o deslumbramento de mamãe naquela
época. Nas noites de chuva era costume aguardar alguém até às 8 horas, mas quando não vinham visitas, as
histórias que mamãe contava sempre tinham um fundo moral do maior gabarito. Certo dia, depois de uma
briguinha com outro menino, a mãe deste veio reclamar esbravejando com todos. Era sempre assim: se o
garoto levava desvantagem, lá vinha a mãe, ou a tia a contar desaforos, caso contrário tudo estava bem... O
certo é que nunca mamãe reclamou nada na porta dos outros brigões. Apenas dizia para nós em tom calmo:
"mãe nenhuma gosta de ouvir que seu filho não presta, que é um vagabundo, etc." e dava um exemplo muito
simples e de grande sabedoria. Dizia ela: "se alguém disser a um alfaiate, sapateiro ou pintor que aquilo que
fizeram não presta, ficam feridos no amor próprio e é uma roupa, um sapato ou uma caricatura. Como uma
mãe deve se sentir quando dizem que seu filho é ruim, é mau e perverso? Não gosta nada, não é?". Naquele
tempo, apesar de tudo, não conseguia entender a profundidade do sábio ensinamento, mas tudo isso serviu
para amalgamar e construir uma consciência sadia pelo tempo afora.
Devo dizer ainda, sem mágoa, que os patrícios eram muito humilhados, razão pela qual era freqüente ouvir
desaforos em quase todos os casos insignificantes de crianças que brigavam às vezes por causa de uma
manga! A razão de tudo isto era explicável: nós, os libaneses, não tínhamos consulado no Brasil. Vínhamos
todos com passaporte passado por agentes turcos, porque na época o Líbano era dominado pela Turquia. Na
guerra de 14, ou Primeira Guerra, a Turquia foi aliada da Alemanha. O Brasil, quase no fim, entrou na
contenda ao lado dos aliados. Vejam a ironia do destino: os libaneses eram aqui no Brasil tidos como turcos e
mal sabiam os brasileiros que nós estávamos torcendo pela derrota da Alemanha e consequentemente da
Turquia, sob o jugo da qual sofriam os libaneses em sua própria Pátria.
Houve durante a guerra muita perseguição aos "turcos" e, em certas cidades, houve até chacinas. Muitos
covardes e de índole sanguinária se aproveitaram disso e raro era o dia em que não se tinha informações de
assassinatos a sangue frio, como aconteceu em Muriaé e outras cidades.
Em Ubá, terra pacata e ordeira, houve um ensaio de linchamento, insuflado por comerciantes que temiam a
concorrência dos "turcos", mas uma voz se levantou mais alto: era a voz da maior autoridade eclesiástica em
Ubá, o intrépido Monsenhor Paiva de Corrêa Campos. O "Padre Juca", vigário da Paróquia, (só havia uma) e
com a valiosa contribuição do Poder Executivo, Dr. Levindo Coelho, abortou o levante fazendo para o povo
no largo de São Januário um longo discurso explicando aos presentes o que eram os libaneses. Falou também
um orador, até então desconhecido, José Ramia que, com grande eloqüência, fez ver que o libanês não é
covarde, sendo tolerante até quando pode ser. E apontava o erro de certas pessoas que estavam sendo
enganadas. Foi um discurso corajoso e leal. Mas tudo isto foi pouca água para tanta fervura. Jorge e eu,
crianças, não compreendíamos a extensão do perigo. O moleque chamava-nos turcos e lá ia a pedrada! Papai
sofria com as conseqüências. Houve tanto menosprezo à nossa raça que certo carroceiro pegou o Miguel com
sua carroça, passando a roda em cima do seu corpo frágil de menino de quatro anos apenas. Não é preciso
dizer que, nem com os gritos de pavor do público, não teve ele curiosidade de olhar para trás. Acredito que a
ignorância e o menosprezo pela vida humana não poderia atingir até ao ódio a quem nunca lhe fez mal
algum. Mamãe quase morre de susto, antes o bonde, agora a carroça. Mas o condutor do bonde não viu a
criança, e o carroceiro nem parou para ver se estava vivo ou morto. .
A vizinhança acorreu e o menino foi posto numa bacia de água com sal, enquanto vinha o médico. Devo
informar, e me lembro com muita satisfação, que nossa vizinhança era muito boa. Dona Regina, esposa do
Manezinho Baltar, Dona Pepina Fusco, Dona Maria Lentine, Dona Châna Devita e outros patrícios
consolavam mamãe. Felizmente, a despeito da marca da roda ainda muito vermelha, não chegou a ferir nem a
fraturar (a carroça estava vazia). Papai, que estava no Rio, ao chegar, se inteirou do acontecido. Não disse
nada. Mas dias depois o carroceiro tomou uma surra de "metro de baraúna", que lhe valeu uma semana de
curativos. É certo que papai foi detido e ao chegarmos da aula, eu e Jorge ficamos sabendo que papai seria
preso. Mamãe chorava e aguardava a volta do Nilo Lentine que fora também como testemunha e prometera
voltar com papai.
Com o advogado, Dr. Tatão Ramos, e Nilo Lentine, papai chegou em casa à tardinha, quase ao anoitecer,
para tranqüilidade de todos. Dormiu naquela noite o sono dos justos. Cumprira seu dever. Desse dia para cá
fiquei sabendo realmente o que é ser valente. Valente era meu pai. Calmo, tolerante, quase humilde. Todavia
mostrou sua masculinidade na hora exata.

BRAVO PAPAI. GRANDE JACOB.

***

A casa de Dona Rosa Baltar, onde morávamos, começou a apresentar inconveniências. José e Quita Baltar
resolveram criar porcos e como a nossa casa, nos fundos, fazia um porão bem alto, os porcos ficavam
embaixo do assoalho. Nós nos divertíamos muito com a matança dos porcos, que era feita de madrugada.
Bem cedinho, Jorge e eu íamos ver a matança dos capados, precedida de fogueira de palha para sapecar os
bichinhos. Para nós tudo isto era muito divertido, mas para mamãe foi um desassossego. Ficamos os dois
impossibilitados de calçar, tal a quantidade de bicho-de-pé e alguns, depois de retirados, produziam
inflamação. Como eram filhos de D. Rosa, José e Quita mandavam no quintal todo e, com o tempo, a
fedentina atingia toda nossa casa. Surgindo a oportunidade de vagar a casa do Sr. Bernardino Gomes Pinto,
na Rua Municipal, hoje Avenida Raul Soares, vizinha da antiga escola Árabe que era na casa de D. Josefina
Marcatto, para lá nos mudamos deixando a Rua de Cima com muita saudade...
A casa da Avenida Raul Soares, onde em 1922 nascera o Tufy, era muito grande, com loja de três portas, sala
com duas janelas e um quarto entre a loja e a sala, também com uma janela. Portanto era uma casa com três
janelas para a rua.
A entrada pelo portão dava acesso à sala e, pela primeira vez, iríamos morar família e loja independentes um
do outro. Lá dentro três vastos quartos de dormir, uma sala de jantar e ampla cozinha. Além de tudo isto,
ainda um grande quintal com frutas e grama para quarar roupas. No quintal tinha uma casinha simples, de
três cômodos, também de direito do locatário. Havia três pés de manga - ora bolas, em Ubá todo terreiro tem
manga, que bobagem a minha! O aluguel era bem maior, mas precisávamos mudar e o Sr. Bernardino alegou
que a renda do aluguel da casinha de fundo poderia atenuar a diferença e estava com a razão porque, além do
mais, havia um portão de serviço independente que dava acesso à casinha. Mamãe, e sempre ela, é que tomou
a iniciativa da mudança e, como tantas outras boas iniciativas, viu na casa o que ninguém até então
imaginara: abrir a janela do quarto contíguo à loja e retirar a parede apenas, ficando assim uma loja de quatro
portas, ampla e arejada.
O Sr. Bernardino, no entanto, não queria fazer tal modificação porque achou que nós não iríamos ficar ali,
dizendo taxativamente: "a senhora me desculpe, mas não vão demorar aqui. Este lugar não é o ponto de
comércio e ninguém até hoje foi bem sucedido".
Mamãe respondeu-lhe: "Major (era da guarda nacional), tenho fé que se abrirmos uma loja no alto do morro,
nós teremos fregueses". "Se assim é, a fé remove montanhas, eu vou mandar amanhã mesmo tirar a parede e
tirar a janela e fazê-la porta".
Buliês, com a ausência do irmão, que havia partido para a "Terra", desde a morte do filho não teve mais
alegria. Chorava constantemente. Todo sábado regressava da mascateação e em todos os Finados lá estava
ele na sepultura do seu amado e primogênito Elias, chorando convulsivamente. Papai reservou para ele um
quarto em nossa casa, ficando ele assim morando conosco algum tempo.
Ibrahim, o mais novo dos irmãos, estava com pouco menos de dois anos quando nos instalamos na Avenida
Raul Soares e, como os afazeres da mamãe estavam aumentando, Jorge lhe servia de "Ama Seca" no bom
sentido pois, além dos passarinhos, gostava extremamente dos irmãos. Levava o Ibrahim até o largo da
matriz e no bar do Messias Siqueira, jogava uma partidinha de bilhar, enquanto vigiava o pequeno irmão.
Certa vez, demorando-se muito, ao ser inquirido, não queria dizer ao certo onde estava, quando o Ibrahim
disse "tava a dabilal" e aí ficou entendido que ele estava jogando bilhar. Mas tudo isto não passou de um
susto para o Jorge, como também serviu para demonstrar a vivacidade do garoto de um ano e pouco!
Nesta época, o Manoel Ribeiro de Almeida, (Manoel Português), o tamanqueiro, vindo de Juiz de Fora, se
estabeleceu com "Fábrica de Tamancos", mas pouco tempo depois desfez a sociedade, preferindo fabricá-los
em casa, à mão mesmo. Manoel Tamanqueiro gostava de futebol e dizia ter jogado no Tupinambás de Juiz de
Fora. Gostava de passarinhos. Jorge e ele, apesar da idade, Jorge era bem mais novo, ficaram amigos. Os
pássaros uniram os dois.
Era o Manoel trocando canários ou vendendo, ou era o Jorge que se deleitava em ver a passarada do Manoel,
o fato é que se tornaram amigos e mais tarde o Manoel ficou amigo de toda a família, chegando às vezes a
integrar o time de "bastra", que aprendeu com facilidade. Na época o campo de futebol era no Caxangá - "S.
C. Ubaense" - e, nos domingos de jogo, lá ia eu com os moleques de nossa rua conseguir uma entrada
debaixo do arame. Jogava no gol do Ubaense o Lincoln Ernesto, grande goleiro, mas de físico franzino para
essa posição. O futebol daquele tempo permitia "abafar" na porta do gol e jogar o goleiro lá dentro, com bola
e tudo, e era gol. O goleiro tinha que ser rassudo ou esperto como gato para fugir ao impacto. Mas o Ubaense
tinha na defesa o Bêco como beque e seu irmão Leléo como beque de frente (antigamente os beques jogavam
em sentido vertical: beque número um e beque número dois). Eram robustos e corajosos, não permitindo a
entrada da linha para o "abafa". Felizmente no tempo atual, com o aperfeiçoamento das regras deste esporte,
existe uma tranqüilidade maior para os jogadores.

CAPÍTULO III
O MAPA DA MINA

Completei meu primário com a veneranda professora Vicença Cotta e, pelas mãos desta senhora, fui
conduzido à Escola Regina Godinho. A professora era Dona Zita Godinho, irmã mais nova. Dona Regina não
lecionava mais; emprestava seu digno nome a esse educandário modelo. Não era fácil conseguir vaga nesta
escola e Dona Zita era muito rigorosa na seleção de alunos. Feito o teste, fui plenamente aprovado para a
classe dos "maiores" confirmando, assim, a apresentação de minha mestra ao dizer: "Zita, trago-lhe o melhor
aluno que tive". Fui matriculado imediatamente e eu me senti alegre em poder ser incluído entre os "maiores"
como era chamada a classe dos adiantados. Os "menores" representavam mais ou menos o primário. Tive
bons colegas de classe, alguns hoje de grande projeção. Evandro e Ivanoff eram filhos de Dona Leocádia e
Messias Siqueira e, embora sobrinhos de Dona Zita, não gozavam de maior regalia. Eram duas criaturas
admiráveis pela inteligência e muito aplicados. Célio Rodrigues e seu irmão Zezinho eram colegas e vizinhos
do lado direito de nossa casa. Havia ainda Luiz Raymundo Gomes e outros fulgurantes alunos como Sílvio
Cattete Braga, Nestor Duarte Pacheco e Toninho Simões. Tínhamos um time de futebol e eu iria integrá-lo
para o próximo jogo que seria com o Colégio de Dona Sinhá, o famoso Colégio Brasileiro, na época. O time
de Dona Sinhá havia vencido duas vezes, enquanto o de Regina Godinho só vencera uma em três partidas
efetuadas no ano anterior. Marcado o jogo para o próximo domingo, nem era preciso treinar; todos nós
estávamos super treinados com nossas peladas ao lado da igreja onde se destacava, pela força e agilidade, o
Antônio Pretão, que era meu amigo e companheiro de peladas e molecagem. Jogamos a partida no campo do
Caxangá. Jogava eu no "half" direito, hoje médio apoiador.
O jogo estava muito duro e difícil. O time de lá tinha como enxerto um rapaz no gol, de excelente qualidade,
e o zero a zero permanecia até quase o final, quando, recebendo uma bola, caminhei uns vinte metros e
centrei para o Chita e o Ademar, que eram dois exímios jogadores. Mas, para a estupefação de todos, a bola
subiu alto e caiu junto com o goleiro, que fora enganado pelo vento. Um a zero na bamburra!!! E que
bamburra!!! ...
O nosso time continuou jogando e sempre se saía bem. Tínhamos bons jogadores de linha de frente. Toninho
Simões, que foi mais tarde grande beque do Aymorés, também defendeu com brilhantismo o nosso time da
Regina Godinho.
Meu companheiro de carteira era o Nestor Duarte Pacheco, aluno muito aplicado e inteligente. Nestor
morava no sítio que ficava no princípio da estrada do Divino (então distrito de Ubá, hoje cidade de
Divinésia), vinha e voltava todos os dias a pé e sem se preocupar com condução - na época havia só mesmo o
cavalo. Não gostava do "banheiro" do Izac Cabido e nunca compartilhava de "gazetagem" ou "parede" nos
dias meio feriados ou santificados.
Ficamos amigos e ainda o somos, pois, apesar de tudo, temos muita coisa em comum. Papai já andava
desconfiado com o "Mosva Marto Nhoba" dos meninos quando me chamavam. Toninho Simões, o nosso
querido Antônio Simões Junior, colega de escola e de "banho", assobiava, papai ouvia e via-me acudir ao
assobio para sair. Embora houvesse rigidez de papai para que ficássemos na loja ou estudando em casa,
muitas e muitas vezes eu via aquele admirável papai se fazer de desentendido, disfarçava para que eu saísse.
Não era consentimento e, sim, aquiescência.
Jorge já tinha um papagaio, além dos passarinhos. Comprou-o de Manoel Tamanqueiro - "Fala que é uma
beleza", mas "isto" não fala nada, dizíamos. Fala sim, ele está é estranhando a casa, dizia o Jorge. O papagaio
estranhou a vida toda! Manoel, Jorge e outros fundaram o "Vila Nova Futebol Club". Arrendaram um pasto
de Galdino Alvim e todos os dias ia a turma limpar o mato, aplainar o terreno somente com uma enxada
velha.
O campo nunca foi inaugurado! O Manoel tinha umas idéias!!!...
Sr. Gaudêncio vendia carne e toucinho em tabuleiro fechado de quatro pés, espécie de mesa com
compartimento de trinta centímetros, envidraçado para mostrar a mercadoria. Nós éramos fregueses do
Gaudêncio que, além de boa criatura, tinha a virtude de "Benzer Cobreiro". Ibrahim apanhou um equizema e
todos diziam "é cobreiro, manda benzer que sara". O Sr. Gaudêncio entrou até a cozinha, pediu um machado
e começou a benzeção. Balbuciava palavras entre lábios enquanto o machado feria os portais de lado e o de
cima; pancadas leves, não chegavam a estragar a porta. O cobreiro desapareceu para sempre... Gaudêncio era
homem muito humilde e manso de coração. Dele é o Reino dos Céus.

***

Jorge sempre arranjava dinheiro e nunca me dizia onde o obtinha, por mais que eu insistisse. Se bem que
compartilhava comigo em pequenas frações. Um domingo eu o vi sair da porta dos fundos da loja, que estava
fechada. Sem que ele percebesse descobri o jeito de ter dinheiro: a gaveta estava fechada, mas na lateral
havia uma fenda que cabia a mão. Deste dia em diante o Sr. Jacob arranjara dois sócios.
Joaquim Fidélis, cansado da colher de pedreiro, abriu um bar debaixo do antigo sobrado do Alexandre
Sallum onde mora hoje a família do Dr. Cataldo. No fundo, numa padaria ministrada por seu cunhado, o Sr.
Virgílio Dutra de Moraes, havia um reservado para os mais discretos tomarem seus traguinhos e ao lado
deste, PROIBIDO PARA MENORES, um salão com amplo tablado onde se jogava víspora. A ficha era de
quatrocentos réis. Todas as noites íamos eu e Jorge até o bar. Eu ficava no reservado torcendo, torcendo e de
quando em vez ouvia o esperado "chega". Na primeira noite ganhou dois mil réis. Tomamos Mineirinho e
voltamos para casa, dizendo que estávamos na reza. Era mês de Maria.
De 1o. a 31 de maio é o mês de Maria e no meu tempo de criança faziam-se barracas ao lado da igreja e
outros as improvisavam com tabuleiros de doces, broas de melado, pé-de-moleque, cocada baiana, etc.
Eram muitos os vendeiros, todavia merece-me destaque o Nico da D. Rosa, como era muito conhecido.
Todos os dias, às três horas mais ou menos, vinha o Nico com seu vasto sortimento de doces. Era um sujeito
educado a despeito de sua fealdade. Cabeça muito grande, corpo comum para um metro e meio de altura, mas
pernas curtas, o que lhe tirava a harmonia, mas vamos aos doces. O Nico era por demais conhecido de todos
nós, pois nascera e se criara na Rua de Cima. Criado por D. Rosa Padeira e sempre que eu passava rumo à
minha escola, quando muito pequeno, era ele que embrulhava minha merenda, no balcão da padaria, ali perto
do largo das Mercês. Era um tijolo de pé-de-moleque que custava quarenta réis (um cobre). Mas o Nico
aproveitava também as noites do mês de Maria e lá estava com seu tabuleiro de quatro pés perto do "Café
Quente". O Sr. Vicente ficou cognominado Vicente do Café Quente. Até o filho, que já era mocinho, era
conhecido como Vicente, filho do Café Quente. Era uma gritaria de ensurdecer: "café quente, broa de
melado, olha o pé-de-moleque..."Terminada a coroação e os últimos estampidos dos foguetes, lá vinha o
pregão do Sr. Domingos. Eram oferendas que os fiéis tinham o hábito de fazer para ajudar a Igreja, e lá vinha
a primeira oferta. "Quanto me dão pressa cana?"; um feixe de cana com folha e tudo. E os lances se
sucediam: um mil réis para ser pros meninos; mil e duzentos para não ser; mil e quatrocentos para os
meninos; e mil e quinhentos para não ser...
Geralmente a contenda dos lances era vencida “pros” meninos e quanta algazarra faziam ao disputar os
pedaços, rolando pelo chão afora, na maior alegria. Havia também frangos, capados, melancia, etc. No fim do
leilão o escriturário, geralmente Irmão do Santíssimo, entre eles o Sr. Rafael Girardi, dava a conhecer o
resultado. Lá vinha o Sr. Domingos: "meus senhores, o leilão de hoje rendeu trezentos e quarenta e dois mil e
quatrocentos réis".
Confesso que nunca fizemos parte na turma que disputava a cana ou as laranjas que o Sr. Domingos atirava
mas achava muito divertido o puxa pra lá e o puxa pra cá dos meninos. Mês de Maria! Tempo bom que não
volta mais!

***

Já estava cursando o primeiro ano na Escola Regina Godinho quando, em companhia de Fausto Nacle,
comecei a andar de bicicleta de aluguel e quando passei pela praça da estação (hoje Guido Marliére) tive a
infelicidade de derrapar e cair em cima de um automóvel parado na praça. Fiquei ferido no supercílio e a pele
ensangüentada me cobriu o olho direito. Ao olhar no espelho pensei que estava cego deste olho. Conduzido
ao consultório do Dr. Rezende, este, após o curativo inicial, disse que era preciso levar três a quatro pontos e,
assim, o médico com uma agulha e linha, costurou a minha vasta "sobrancelha". No instante do meu tombo,
mamãe, que não sabia onde eu andava, chegou para o papai com muita aflição dizendo: "não sei o que tenho,
mas meu coração está puxando" e apertava o peito com as duas mãos. Papai, tranquilizando-a, disse:
"bobagem sua, estão todos bem", referindo-se aos filhos.
Enquanto conversavam, ainda perto da porta da loja, passou o Vicente Caruzo, velho fabricante de Vermouts,
Quinados e Vinhos, dizendo: "Sr. Jacob, não se assuste, mas seu filho caiu e machucou, não é nada grave,
está em casa do Dr. Rezende". Quando papai chegou, já me encontrou comendo biscoito de polvilho que
Dona Izaura, esposa do médico, me dera. Coração de mãe nunca se engana. E como sofre!

CAPÍTULO IV
O ALVORECER DE UM NOVO DIA

Quase todas as noites, após a faina do dia, mamãe saía com Ibrahim e João para passear na calçada, fazendo
hora para os meninos dormirem e, como seu sonho dourado era ter uma casa própria, fazia conjecturas sobre
essa ou aquela casa, sem, contudo, encontrar uma solução. Os negócios iam bem, papai continuava indo ao
Rio fazer compras. Dizia: "Comprar à vista é bem mais barato!" Os balanços anuais apresentando sempre
bons lucros. Tinha um nome respeitável no comércio, pagava todas as faturas em dia. Só faltava o sonho de
mamãe ficar realizado. Num desses passeios, passando pela casa número 105, hoje lamentavelmente
demolida, fez uma parada e começou a contar as janelas: uma, duas, três, quatro. Ficou maquinando, uma
janela seria a sala, as demais dois quartos; olhando para o fundo sua mente trabalhou: "tem fundo pequeno,
mas o terreno é grande". Chegando em casa contou ao papai, quando este lhe retrucou: "será que é do
Monsenhor?" Tomada a informação, ficaram sabendo que a casa era de Dona Raymunda, viúva que morava
na Rua de Trás (Rua Santa Cruz), na mesma direção da casa, os quintais se comunicavam. D. Raymunda
queria vender a casa, o aluguel e consertos da mesma não estavam satisfatórios. Pediu nove contos e
quinhentos mil réis. Fechado o negócio, a escritura lavrada, mandou-se fazer mais um quarto para compensar
a abertura das janelas. Assim ficou uma casa com loja de três portas, sala com entrada independente e
alpendre novo; dois quartos grandes, um menor (quarto de empregada) que servia de despensa, uma grande
cozinha onde se comia numa mesa de caber dez pessoas, além da sala de jantar. No fundo um galpão ligado
com a cozinha todo fechado, onde se guardava lenha e despejos. Não fizeram a compra sem antes ter
consultado o Mestre Campanha. O grande construtor Nicola Campanha, muito amigo e responsável pelas
melhores construções que ainda perduram em Ubá. No princípio do ano de 1923 já estávamos habitando a
casa própria, para felicidade de mamãe e todos nós.
Ficamos assim: vizinho da direita, Monsenhor Paiva Campos e seus familiares. Dona Marfisa, sobrinha do
padre, era casada com o Sr. Antônio Muzitano. Tinham vários filhos e o mais velho, da minha idade, era o
Wilson.
A casa do Monsenhor era um sobrado e na parte inferior, que dava frente para a rua, o Muzitano tinha a sua
alfaiataria. Nos fundos, além de um cômodo grande - "Sala de Aulas" - Dona Marfisa tinha uma escola.
Moravam também lá o Sr. Archanjo e família, cuja mulher era cria do Monsenhor. Archanjo era marceneiro e
tinha muitos filhos, sendo o mais velho Adão, mais ou menos da idade do Wilson.
Do lado esquerdo, fazendo esquina, um casarão do nosso amigo Sebastião Ramos -Tatão Ramos, chefe de
numerosa família. Dinho e Tãozinho foram colegas também.
Em frente à nossa casa era a residência de D. Amaziles Ernesto, viúva do grande músico João Ernesto. De
João Ernesto conheci a bela composição "Vitória dos Perseguidos" numa das retretas do dia 22 de maio.
Tinha desse matrimônio cinco filhos: Lincoln, que brilhou como violonista, falecendo muito cedo ainda, bem
como sua irmã Doinha. Sobreviveram Priscila, Duta e Natália. Do segundo matrimônio, Gastão e Vanja,
filhos de Gastão Soares, ambos casados.
À tardinha costumava vir à nossa porta, para o bom bate-papo, o inesquecível Máximo de Araújo Marques.
Velho músico, do tempo da fundação da banda 22 de Maio. Sentavam ali no passeio e eu, às vezes,
compartilhava do assunto. O velho Máximo conhecia a fundo a vida de Ubá. Com esses encontros fiquei bem
informado de Ubá, de quarenta anos atrás, até nossos dias. De vez em quando eu o ouvia tocando seu
clarinete. Sua casa era quase em frente à nossa.
O velho Ozório, maestro e professor de música, era parente também do Monsenhor. Fiquei conhecendo o
maestro na alfaiataria, onde tinha um jogo de dama. Em conversa, fiquei sabendo que o Ozório e o Muzitano,
que também era músico, estavam reabilitando a Banda Musical Sagrado Coração de Jesus, banda do padre,
como era vulgarmente chamada. Meses depois, eis a banda com todo seu fulgor, acompanhando as virgens
no mês de Maria.
Só não entendia a rivalidade entre as duas bandas. Era encontrar e se empenhavam naquela disputa de tocar
mais alto para abafar o som da outra. Mas acabava tudo bem. Somente divergiam os comentários. Cada uma
delas tinha "torcida organizada".
Miguel, com oito anos, estava freqüentando a escola de Dona Marfisa e João ia como ouvinte. Desde cedo o
Miguel demonstrou muita iniciativa, queria fazer alguma coisa nas horas de folga. Foi aí, com a amizade do
Wilson e seu irmão, que ele começou a trabalhar, sem remuneração, na imprensa do Monsenhor. A política
estava sendo reativada pelo jornal do padre "A Verdade". O padre era do partido oposicionista e Dr. Levindo
o governista. Compunha a linha de frente da oposição, além do padre, o Dr. Glenalvam Alvim, Geronymo
Salgado, Gabriel Costa, Dr. Arthur Rodrigues, Ozório Theobaldo Silva, Getúlio Faria e outros.
Miguel chegou a compor chapas, estava treinado nos tipos de imprensa e, decorridos alguns meses, estava
ganhando seu dinheiro.
Aprendeu a tocar o sino da igreja e quase chegou a ajudar na missa... Garoto levado!...

***

A data de 22 de maio era e é ainda muito significativa na vida dos Ubaenses. A alvorada pelas ruas dava um
acordar feliz.
À noite havia retretas no jardim, quando tinha o coreto, e na praça Guido Marliére, com palanque
improvisado. Sempre à frente da banda estava o grande maestro Sollero, cujo entusiasmo se media pelo
fulgor de seu rosto. A vida do professor José Sollero estava ligada à banda 22 de Maio, como integrante de
sua própria família.

***
Jorge, já mocinho, despontava como grande balconista e ajudava o papai na loja. Mamãe dividia o tempo na
cozinha, filhos e loja, pois nunca deixou de dar a mão. À noite lá vinha o companheiro do Jorge, o Manoel
Tamanqueiro e suas novidades. Arranjei um canário que tem um "trinado que é uma beleza", mas não é para
vender. Lá iam os dois até o Fuzaro tomar um Mineirinho ao ar livre. A "Casa Fuzaro", na Rua Nova (hoje,
15 de Novembro), era uma grande casa de cereais -Atacado e Varejo -fábrica de macarrão, fábrica de bebidas
e do melhor refrigerante que conheci, de nome "Mineirinho", em cuja fórmula entrava "chapéu de couro"
(folha com propriedades medicinais). O Mineirinho, tomado no bar dos fundos do armazém, custava, na
época, quatrocentos réis e nos bares seiscentos réis. Nos dias quentes, era comum estarem superlotadas as
mesas debaixo do aprazível caramanchão.
A brincadeira que faço com alusão ao Sr. Manoel Ribeiro de Almeida -o "tamanqueiro" não tem nada de
pejorativo. Era, antes de tudo, um exemplar chefe de família e ótima companhia para o mano, no verdor de
seus quinze para dezesseis anos.
Outros meses de Maria vieram. Outras Semanas Santas se passaram. Terminei na Escola o meu curso e
ingressei no Ginásio Ubaense, prédio antigo que fazia esquina da Praça São Januário com Avenida Raul
Soares, hoje Posto Esso, um sobrado de grande dimensão e um pátio enorme, onde brincávamos no recreio.
Na base do teste, fui ingressado, com louvor, no segundo ano ginasial, cujas matérias eram para mim
familiares; sobrava-me tempo para matar aulas. Era a grande e preciosa base que trazia de minha Escola.
Completado o ginásio, não quis mais estudar. Comecei a me sentir entediado de tanto estudo. Mesmo porque
não podia sacrificar meus pais para sair de Ubá e fazer cursos em cidades maiores. Havia probabilidade de
não continuar. Queria colaborar com eles na loja permanentemente. Muitos dos meus colegas se formaram na
Escola de Farmácia e Odontologia, fundada pelo grande educador Lívio Carneiro. Nesta minha desistência
não houve de parte de meus pais nenhuma influência.
Tive que ir ao Rio, levado por meu pai, em duas oportunidades, por causa da queda que sofri de um pé de
manga, entortando a coluna vertebral. Fui prejudicado no crescimento, confirmando a previsão do médico no
Rio, mas sem maiores conseqüências, felizmente.
Vagando um ponto comercial no jardim, onde é hoje o Bar do Olintho, papai resolveu nos encaminhar no
comércio, montando ali uma loja. Jorge e eu trabalhamos menos de um ano. Não deu resultado. Éramos
verdes demais para assumir responsabilidades. Voltada a mercadoria para casa, ficamos mais alguns meses,
sem, contudo, deixar de pensar em abrir outra filial e dois anos depois, em 1926, Jorge e eu nos
estabelecemos com loja na Praça da Independência na antiga casa pertencente ao saudoso Nacle Haikal, lado
fronteiriço à antiga Igreja de São José, hoje demolida para dar lugar a um estabelecimento comercial.
Tudo corria bem, e chegamos a formar bom capital. Nessa época o Jorge já estava pensando em se casar.
"Casar cedo é bom porque quando chegar a velhice, os filhos já estarão grandes", dizia mamãe. Andou
arrastando asas e tinha muitas pretendentes. Era, além de moço bonito, grandes olhos azuis, muito insinuante
e delicado. Dona Blanca, senhora do Calil Mansur, estabelecidos com padaria ali pertinho, de vez em quando
dava-lhe sugestões sobre essa ou aquela moça. Mas ainda não tinha a sua eleita. Além do Sr. Calil Mansur na
nossa vizinhança, contávamos com Abdo Haikal e Francisco Ribeiro, chefe de família e grande amigo. Abdo
Haikal tinha chegado de Cachoeiro do Itapemirim. Fora até aquela cidade do Espírito Santo para desposar a
Dona Olinda. Ao chegar a Ubá, o casal foi alvo de magnífica recepção. Os patrícios promoveram uma
"Sahirie" que durou até madrugada. Uma das "Radiês" dizia mais ou menos assim: "Todos foram e não
trouxeram. Abdo Haikal foi e trouxe". Esses versos são, em Árabe, muito significativos e enaltecem
sobremodo a pessoa trazida, no caso a recém-casada. É pena que a tradução não exprima o verdadeiro sentido
da poesia. Chicri Assis no "Alahud" fazia o encanto da festa. Abdo e Olinda enriqueceram a cidade com
filhos que enobrecem e dignificam a Nação.

CAPÍTULO V
MESSIAS, O SETE CABEÇAS

De onde não sei, mas apareceu em Ubá uma mulher franzina com seu filho cabeçudo. Chamava-se Messias e
foi apelidado de Sete Cabeças. Tinha um corpo muito pequeno em contraste com a cabeça. Não era normal o
rapaz, nem de corpo e nem de mente. Era um excepcional quase adulto, devia ter mais ou menos quinze anos.
Viviam aqui e ali, sem morada certa. Nós. os meninos, gostávamos do Messias que muitas vezes arranjava
uma briga e vencia dando cabeçadas. Era o seu estilo de brigar. Os tempos foram passando, a mãe morreu e o
rapaz ficou vivendo ao Deus dará. Todos gostavam dele. Era serviçal, levava marmitas do hotel para os
fregueses mensalistas e no Centenário Hotel foi o lugar em que ele mais parou.
Dava recados, fazia biscates e era muito correto nestas atribuições. Neném Carneiro (Dominicano Carneiro),
virtuoso homem do passado, que era proprietário do referido hotel, ao vendê-lo levou o Messias para a sua
casa. Mas Messias não tinha parada.
Era visto em vários pontos da cidade. Dormia ao relento e deu-se ao vício de beber. Tornou-se o "Messias
Sete Cabeças" muito popular e não faltava quem lhe desse um prato de comida.
Alguém contou uma grande proeza atribuída a ele: havia em Visconde do Rio Branco um indivíduo valentão
e assassino, temido pela própria polícia. Não conseguiram prender o José Vicente, mesmo dobrando o
contingente policial. De certa feita, o José Vicente entrou na cidade com seus capangas, todos armados, fez
fechar o comércio e apavorou a população inteira com tiroteios para o ar. Para o ar, não é bem o termo. É que
ninguém queria ser alvo de tantos tiros. Era um Deus nos acuda. Saqueavam, batiam e matavam... O
delegado, reunido com o primeiro sargento e mais treze praças, depois de demorada conferência na
delegacia, instalada no Edifício do Fórum, chegou a uma conclusão: chamar o Messias de Ubá, pois é o único
homem capaz de salvar a cidade. Messias, corajoso e valente, aceitou o convite. Dirigiu-se para a vizinha
cidade e lá ficou aguardando a vinda do Zé Vicente que, invariavelmente, vinha às sexta-feiras. Quando a
noite caiu, lá veio o Zé Vicente montado no seu corcel baio. Alguém o mostrou ao Messias, quando o
valentão passava pela Rua Nova. Esse alguém fugiu deixando o Messias agir ao seu modo.
Zé Vicente entrou no bar Eldorado para tomar pinga. O Messias também entrou e pediu cachaça. Queria agir
com método próprio, e a própria polícia não devia estar por perto. O bandido entrou no reservado. onde havia
jogo de campista, e pediu ficha para jogar. Inútil dizer que o "Cacifeiro" não lhe cobrou as fichas, temendo
contrariar o valentão. Meia hora depois, olha o sururu. Ouviu-se um tiro. Era Zé Vicente exigindo o dinheiro
todo da banca. Tá pra mim, disse o Messias, invadindo o reservado. Pegou o Zé Vicente pela gola da camisa,
deu-lhe três murros e uma cabeçada. Zé Vicente acordou no hospital São João Batista cercado do carinho de
três policiais e um par de algemas. Nunca mais Zé Vicente quis ser valentão, pelo menos enquanto havia o
Messias de Ubá.
Os braços magros, o corpo franzino, cada vez mais minado pelo álcool, o nosso Sete Cabeças acreditou na
história e a contava sempre. E eu era sua testemunha! "Pergunta ao Elias se é mentira"
Morreu feliz - Foi um herói!

***

Com a morte de Buliês, o seu grande amigo Simão Queiróz passou a freqüentar o bairro de baixo. Fez
amizade com os Abijaude e por lá fazia suas bastras. O time de cá, da parte de cima, tinha agora outro
elemento: Miguel Samôr, vindo do Rodeiro. Estabeleceu-se na Rua de Trás (Rua Santa Cruz) com sua
família: a esposa D. Saide, os filhos Camilo, Elias e Maria, e sua progenitora D. Takla. O Sr. Miguel jogava
bem, fazia parceria com o Mansur, este chegado há pouco do Líbano. Mansur era filho de Buliês e chegou a
ver seu pai antes deste morrer.
Como dizia, era papai com Antônio Miguel e Miguel Samôr com o Mansur revezando, às vezes, quando
vinha o Jorge Sallum.
Jorge Samôr anualmente vinha a Ubá visitar o irmão e familiares. Tinha uma irmã, no Rodeiro, esposa de
Ibrahim Sallum e mãe de dois filhos, Joãozinho e Maria. Sua irmã, D. Amélia, ficava radiante nestas
oportunidades. Normalmente ficava trinta dias em Ubá, para depois regressar ao Rio para seus afazeres.
Nesta época, a mãe era viva e seu irmão Calil Samôr havia se transferido para Ubá. Muitos motivos tinha o
nosso querido Jorge Samôr para vir a Ubá anualmente, até que se transferiu de vez para morar junto. D.
Saide, esposa de Miguel Samôr, senhora de acrisoladas virtudes, ficou sendo amiga de mamãe e a amizade
continuou por tempos afora, como veremos mais tarde. Jorge Sallum não jogava bem, mas confiava na sorte.
Quando errava numa jogada e, ante a recriminação do parceiro, dizia: jogo é assim - "Joga errado para dar
certo"
Certa noite, jogando em nossa casa, aconteceu o quase impossível. No calor das jogadas e no abafa das cartas
finais, joga um e joga outro, o perdedor, no caso o Jorge Sallum, taca com a carta tão forte na mesa que esta
desaparece por encanto!
A mesa lá de casa era elástica e redonda. É certo que jogavam sem toalha, mas era uma mesa perfeita. A
carta sumiu... Olha aqui, ali, lá, nada. Todos se levantaram, sacudiram a roupa. Debaixo da mesa, das
cadeiras, nada. Mas como? A mesa arrastada, as cadeiras também, nada de carta - mistério!
Não sei quem deu um palpite, talvez por troça: quem sabe se está dentro da mesa? Não é que é? Aberta a
mesinha, lá estava a carta. Raciocínio único: a carta foi direto na fenda. Difícil, mas é. Experimentaram
colocá-la com a mão - passou com muita dificuldade.
Coincidências. As coisas acontecem...

CAPÍTULO VI
HOMEM COM H MAIÚSCULO

Minha infância começava a se distanciar de mim. Para trás estavam ficando as peladas de futebol, as
quadrilhas da Rua de Cima contra a Rua de Baixo, o brinquedo de pique e de esconder no jardim da igreja
com o Pretão e Pedrinho Singulani (o jardim no meu tempo era muito arborizado e tinha em cada canto um
enorme carvalho), o banheiro do Izac Cabido, o brinquedo de rodas das meninas: "Pai Francisco entrou na
roda..." "O Sali Salisá, meu bem vem cá...", o nosso circo armado no quintal do major Toté, as brigas, tudo
isto me parecia acenar de longe, como se fosse a pessoa amada que estava desaparecendo à primeira curva do
comboio que me conduzia para o imprevisível, para nunca mais voltar. Já estava moço, lia muito Castro
Alves, Guerra Junqueiro, Humberto de Campos, Casemiro de Abreu. Amava a poesia lírica e as serestas em
noite de lua.
Meus companheiros e amigos, Chicri Rachid e Fuad Miguel, este recém-chegado de Juiz de Fora, já dirigiam
automóvel e gostavam muito de passear na vizinha cidade de Visconde do Rio Branco. Compartilhava eu
destes passeios e dirigia também. O carro de praça era alugado na base da camaradagem do Jesuíno ou do
0lavo. Às vezes era do Walter ou do Mário Ayuppe, todos amigos. Fuad se vestia com muito esmero e
elegância. Gostava também de jogar "Bozó" copo de couro com cinco dados e as partidas de pôquer que
valiam um refrigerante. Fausto Nacle revezava com seu irmão Anízio nas viagens para o Estado do Espírito
Santo na venda de fumo do armazém de seu pai, Nacle Haikal. Era um bom jogador de bilhar. Jogava tão
bem a ponto de empolgar a assistência com suas tacadas magistrais. Entre muitos fãs, o Fausto conquistou a
simpatia do Dr. Carlos Pereira, médico cirurgião, que para Ubá viera com a sua família. Dr. Carlos era um
bom jogador de bilhar, mas não com o brilhantismo do Fausto, que só encontrava dificuldade em vencer o
Coronel Carneiro (Domiciano Carneiro Filho). Este era um grande exímio das três bolas e o maior
competidor do Fausto. Além destes dois, havia o Niquinho Lauria, o Waldeck, o Guarino Casarin, o Genaro
Crispi, o Zézinho Brando. Jorge jogava também o bilhar regularmente. Seu gosto era dar pancadas fortes nas
bolas. Dizia ele: "se as bolas são grandes e a mesa é pequena, elas têm que se encontrar". Às vezes dava
certo.
Tive um companheiro e amigo, de saudosa memória, o Uriel Feital. Uriel era um rapaz de boa formação
moral e idéias muito avançadas para a época. Tinha uma cultura acima da média e às vezes surpreendia-me
com teses pouco comuns na época como: igualdade de direitos do homem, injustiça social, etc. Lia muito e
sua prosa era agradável. Não era fácil entender o Uriel, mas ficamos amigos.

***

Com a divisão das "Paróquias", coube ao Monsenhor Silvestre a direção da paróquia de São Januário, por
desistência do Monsenhor Paiva Campos, que era contrário a essa divisão. Em editorial da "A Verdade" o
articulista comentava o fato com grande amargura, enquanto que a "Folha do Povo" noticiava o
acontecimento, como fato comum, para uma cidade que cresce. Monsenhor Paiva Campos, na oportunidade,
recebeu muitas visitas que lhe davam apoio moral neste momento trágico de sua vida eclesiástica e já no
crepúsculo da vida. Entre muitos amigos e companheiros de jornada política, fiquei conhecendo o destemido
advogado e chefe de numerosa família, o Dr. Arthur Rodrigues, que marcou sua curta permanência em Ubá
com seus "artigos de fundo" no "Jornal do Padre" com o brilho de sua inteligência invulgar.
Guardo da " A Verdade" as frases que me impressionaram muito e carrego até hoje com infinita ternura o
fecho de um artigo, em alusão a alguém da oposição: Deus! Livrai-nos dos Amigos, que dos Inimigos
sabemos nos livrar... De outra feita, no mesmo jornal, de autoria do Dr. Arthur Rodrigues, o célebre TEM
BOLÃO, que consistia na diferença do toque do sino. Quando morre um rico, o repicar funerário do sino era
tem bolão-bolão-bolão, tem boião... e para o pobre o sino tocava: não tem não-não-não... parece bobagem,
mas é uma brincadeira bem verdadeira.

***

A família do Sr. Jacob e D. Sarah estava crescendo. Nascido o Tufy em 1922 e em 1924 o Nacib, portanto
com sete filhos, todos do sexo masculino, era muito divertido para muitos ver uma senhora de cabelos
brancos amamentando um bebê. Nesta época, apesar de relativamente nova, minha mãe tinha
prematuramente branqueado seus cabelos e daí se entende o amor paternal que Jorge alimentou a vida toda
por seus irmãos, pois nesta época já contava com seus dezessete anos.
Tio Tanús, irmão de mamãe, chegara do Líbano, inesperadamente. A odisséia do tio recém-chegado é das
mais importantes. Analisar esse intrépido homem dedicado a vida toda ao trabalho, seria quase impossível.
Sabemos que havia emigrado para os Estados Unidos, foi feliz, ganhou dinheiro e regressou à sua terra.
Casou-se lá e desse matrimônio teve um filho. Meses depois resolve emigrar para a Argentina, onde estava
seu irmão Jorge, nosso tio mais velho. Desta feita, igualmente foi feliz. Voltando à sua terra e com a morte de
sua mulher, contraiu mais tarde matrimônio sem, contudo, ter filhos do segundo enlace.
Só sei que acidentalmente veio para o Brasil em sua terceira viagem de conquista. Recém-casado, mais uma
vez, deixa sua terceira esposa engravidada; ele já velho e sofrido. Apesar de ser irmão de mamãe, sua
semelhança física com papai era muito acentuada: forte, baixo e bigodudo.
Sua situação econômica no Líbano era muito boa. Havia adquirido dois sítios e casa própria, com plantio de
azeitonas e boa terra para lavoura, mas veio novamente em conquista de mais dinheiro, porque contraíra
dívidas com novas compras de faixas de terra.
A uma indagação de mamãe, certo dia sobre a dívida, alegou o Tanús: "precisava comprar porque é terra
anexa". Mas os anexos não terminam nunca, dizia mamãe. O mundo todo é ligado, o anexo não tem fim. Essa
conversa foi originada muito tempo depois de sua chegada. Já velho e cansado, não falando o idioma, a vida
é muito mais pesada.
As cartas que recebia de seu filho Caram davam notícias de sua madrasta, de sua irmã, recém-nascida, e
pediam dinheiro para manutenção, donde se deduz que, apesar de ser um moço de seus dezoito a dezenove
anos, não tinha condições para explorar a terra, adquirida com sacrifício.
Tio Tanús mascateava e no princípio, até adquirir algum conhecimento da língua, fui um companheiro dele
durante meses, e modéstia à parte, fui-lhe muito útil sem, contudo, lograr um centavo, contrariando a vontade
do tio, que queria dividir comigo o lucro; mas era tão pouco, coitado! Isso, no entanto, serviu para patentear
sua inequívoca honradez.
Tio Tanús, apesar da idade, carregava pesada mochila de mercadoria e mascateava pela roça de Ubá,
Tocantins e adjacências.
Comumente voltava aos sábados com a mochila quase vazia e uma sacola cheia de dinheiro, até que pôde
comprar um cavalo, para auxiliá-lo na tarefa.
Os anos foram correndo, a idade aumentando e suas forças consequentemente foram se reduzindo. A
fatalidade estava conduzindo o tio para a decrepitude, adoecendo de quando em vez, mas se reabilitando com
incrível facilidade. E a vida continuava. Cartas vinham e cartas iam. Mandava dinheiro para a família e
chegou ao ponto de conseguir resgatar a dívida que deixou. Mas o dilema continuava martelando seu amor
próprio. Voltar sem dinheiro seria uma desonra para quem parte para a América. Era uma ingrata intimação
para os imigrantes - "Voltar rico ou nunca mais voltar" - Pensamento da época.

***

Nos anos de 1924 a 1925 o carnaval de Ubá tomava dimensão dos carnavais do Rio. Ubaenses Carnavalescos
e Dragões Carnavalescos eram dois clubes de acirrada rivalidade. Os Ubaenses registraram as cores preta e
branca, enquanto que as dos Dragões Carnavalescos eram vermelha e branca; Os festejos de Momo
começavam no sábado gordo com o famoso Zé Pereira. Domingo era o dia do desfile dos blocos e corsos
com automóveis de capota abaixada, ligado um com o outro por milhares de serpentinas. Segunda-feira era o
dia dos "blocos de sujo" e outras brincadeiras que a moçada improvisava, não faltando à noite as célebres
batalhas de confetes, serpentinas e lança-perfume que precediam os bailes. Mas tudo isso, cada qual com o
seu clube. Qualquer invasão do território era briga certa e terça-feira era o esperado desfile de carros
alegóricos. Antenor Machado, vindo de Guarany com sua família, instalou-se em Ubá com engenho de café,
arroz, etc. Tinha uma situação econômica invejável e era relativamente moço. Com o fascínio da cor ou pela
gentileza do convite, optou para os Dragões. Neste mesmo ano foi eleito presidente do clube vermelho e
branco.
Durante o ano todo se falava no preto e branco e vermelho e branco com a mesma rivalidade de um Fla-Flu,
e nos meses que precediam o carnaval havia a estratégia dos dirigentes em contratar os melhores
cenografistas para o desfile de carros alegóricos.
Dizem que neste ano Antenor Machado fez questão de mandar vir, às suas próprias expensas, o grande
cenógrafo Lazarine, que foi o responsável pelo êxito daquelas formidáveis alegorias, cujo carro-chefe era
denominado "O Sonho do Rajá"
Mas por capricho ou vaidade, Antenor Machado gastou uma fortuna nos carnavais de Ubá e como sempre
acontece, quando suas reservas se esgotaram seus amigos também se afastaram. Saiu de Ubá, com sua
família, quase no anonimato. A labareda das disputas foi se atenuando até a extinção total e estas ficaram
para trás, esquecidas na poeira do tempo...

***

Era o ano de 1926 e a cidade se movimentava para festejar mais um Sete de Setembro e, neste ano, a parada
prometia maior brilhantismo. Recém-criada a Escola de Farmácia e Odontologia de Ubá e com a afluência de
muitos alunos, inclusive os de fora, o festejo neste ano teria o desfile dos rapazes do tradicional Ginásio São
José, da Escola de Farmácia e Odontologia (ambos os sexos), da antiga Escola Normal Sacré-Coeur du
Marie, dos Grupos Escolares e vários outros educandários, além do Tiro de Guerra, que com seus clarins e
ruflar de tambores, emprestava a esta festa o brilhantismo de suas execuções. As bandas musicais 22 de Maio
e Sagrado Coração de Jesus. A Liga Operária de Ubá compartilhava igualmente do grande acontecimento.
Era bonito ver os garbosos rapazes e moças desfilando cada qual com sua "Porta-Bandeira" mais linda!...
O ano de 1926, com os carnavais fantásticos, também foi o marco do nascimento do "Esporte Clube
Aymorés", cujo primeiro campo, sem grama, foi inaugurado no local onde hoje é o aprazível bairro Santa
Cruz, cujo terreno mais tarde foi rasgado e loteado pelo denodado batalhador José Pires da Luz. Neste local,
o Aymorés fez vibrar uma cidade inteira com os jogos realizados, sempre aos domingos. Era uma festa para
os olhos o campo repleto de torcedores vibrando e sofrendo, às vezes, as conseqüências de um revés no
placar. As grandes jogadas de Zinho Aroeira, secundadas pelo Nicola Lauria, que vinha do infantil, eram de
extraordinária beleza, com passes muito precisos e quase sempre era o gol tão desejado pela torcida. Certa
feita, com uma boa "Kodak", cheguei a obter o melhor instantâneo da época. Nêgo Rosa passa para Olegário
e este imediatamente para Job, médio apoiador, que manda para o Zinho e este para Nicola, em profundidade.
A defesa do Tupy não acreditou muito no garoto e Nicola, infiltrando entre os beques, chuta rasteiro e forte
no canto esquerdo do Tufy, o grande goleiro do Tupy - Goool - Aymorés 1x0, e o jogo terminou com esse
marcador. Outros jogos vieram e muitas vitórias haveriam de suceder, mas saber perder sempre foi uma
virtude do Aymorés, cuja tônica de jogo era sempre de competir. Sua primeira diretoria, não sei bem como
foi constituída. Sei que nasceu na Rua de Cima e os Baltares são os responsáveis pelo êxito exuberante do
Aymorés de hoje, de cuja fundação tenho a honra de ter compartilhado. Foi neste campo, de terra batida que
presenciei e constatei o valor de ser homem, mas homem com H maiúsculo. Num domingo de jogo, antes de
começar a partida, numa das elevações do terreno, feitas para o público se sentar, estava o José Albino e
outros sentados e acomodados, quando passa o João Bananeiro. Assim era conhecido o minúsculo João,
muito pequeno apesar da idade - João Bananeiro vendia bananas e outras frutas, mas o apelido de João
Bananeiro ficou-lhe bem porque todos os dias saía pela rua apregoando: olha o bananeiro.
João Bananeiro neste dia não vendia bananas; fora ao campo com o balaio cheio de pastéis e, passando pelo
José Albino, este interceptou-o com a bengala e o João tropeçando quase caiu. No susto, o João não pensou e
nem podia pensar, coitado, era fraco de físico e de memória, lascou um tapa de estalar na face do José
Albino. José Albino de Souza, filho de tradicional família ubaense. Os Albinos são todos valentes e sempre o
demonstraram nas horas certas. Aceitar um tapa do João Bananeiro não era mole não... Mas nesta hora,
quando poderia surgir uma tragédia para o indefeso e pobre João - os amigos, a polícia, a virilidade e a força
física do próprio José Albino, e o corre-corre dos amigos, era de se prever um linchamento no infeliz
bananeiro. Eis, que, para minha surpresa, o José Albino de Souza, ergueu-se e, com autoridade de general de
comando, grita para a turma: "deixem o rapaz - Eu é que fui o errado. Mereci o tapa”
Esse episódio sublime me faz lembrar um conto de Malba Tahan:
Havia um monarca muito orgulhoso de si e seu poder se estendia a muitos lugares longínquos.
Ao receber uma visita de outro rei, mandou que se preparasse o almoço ao ar livre. Acomodados à mesa os
anfitriões e convidados, eis que um dos servidores deixa cair um pingo de sopa na barba do monarca.
Indignado, decreta morte ao humilde servidor que, no descuido, foi infeliz. Suplicando ao monarca o perdão
pelo deslize, o rei não lhe atendeu e mandou que o enforcassem - "Se tenho que ser enforcado por uma gota
de sopa, que vá toda a terrina". As veneradas barbas ficaram molhadas de sopa. A reação do servo foi
benéfica, pois enquanto o monarca limpava a barba, teve tempo de refletir: "Soltem o escravo - Eu estava
errado"
Reconhecer o erro é mais importante do que não cometê-lo. E cada vez mais me convenço do velho adágio:
"Valente é aquele que, consciente de sua própria força, não a emprega contra os fracos"

CAPÍTULO VII
A ODISSÉIA

Confesso que, por hereditariedade talvez, nunca fomos invejosos. Tínhamos, como jovens, situação
relativamente boa comercialmente. Mas merecem destaque no comércio de Ubá, na década de 20 as casas
que deixaram saudade: "Casa Fernandes" de F. A. Fernandes e Cia. de propriedade do Sr. Francisco Amério
Fernandes, nosso amigo; "Bar e Bilhar Central" na Praça São Januário, do Sr. Messias Siqueira, marido da
professora e poetisa D. Leocádia Godinho Siqueira; "A Mascotte" de Castro e Martins, este último pai de
Manoel Martins Filho, meu colega de escola - o colega e amigo "Mané Gato"; "Casa Salomão" de Aristides
Salomão e Irmãos, nossos amigos e conterrâneos, como descrevo atrás; "A Brasileira" de Lopes Pereira; "
Armazém Gentil" da viúva Gentil e filhos; "A Econômica" de Antônio Fuzaro e Cia.; "A Casa Fuzaro", como
era denominada, teve a virtude de criar e manter fornecimento a centenas de pequenos comerciantes de
gêneros alimentícios, em Ubá, através de longos anos; "Casa Caputo" de Miguel Francisco Caputo, homem
alegre e sempre bem disposto a um bom "bate papo"; "Casa Abualla"; "Casa do Paulo e Irmão" de Paulo e
Elias Noujaime, nossos amigos: Paulo e Irmão eram tão populares que quando se referia a um filho de um
deles, diziam: filho de Paulo Irmão; "A Violeta" de Diógenes de Oliveira Gomes; "Armazém Theobaldo" de
Ozório Theobaldo, cujos filhos, nossos amigos, são atualmente grandes empresários e industriais em Juiz de
Fora; "Alfaiataria Flor da Mocidade" de Franklin de Almeida, responsável pela elegância dos jovens de duas
gerações; "Casa Rozendo" de Francisco Rozendo e Irmão, que permanece até hoje; "Barbearia do Hilário" na
Praça São José; "Casa Syria" de Jacob Ibrahim Elias na Av. Raul Soares, 105; "Casa Flor do Brasil" de Elias
Aiuppe; "Barbearia do Alberto Guilhermino", nosso amigo até hoje. " A Oriental" de Alexandre Sallum;
"Casa São José" de José Antônio Cheuhen; "Casa Rachid" de Rachid Habid Elias; "Casa Vitória" de Braz
Brando Netto; "Padaria e Confeitaria Brando" de João Brando; "Bazar Renê" de Adelardo Salgado e Cia.;
"Padaria Laurindo de Castro"; "Padaria Thomaz Luchinni; "Tipografia e Papelaria Siqueira" de Joaquim de
Siqueira; "Farmácia Aroeira" de João Tertuliano Aroeira; "Farmácia do Honório Carneiro"; "Farmácia Pinto"
de Evaristo Pinto; "Moinho do Dr. Fécas" (José Januário Carneiro), produtor do "Fubá Mimoso", distribuído
pelo Sérgio com sua carroça; "Armazém do Sr. Joaquim do Carmo", também fabricante do delicioso
refrigerante "Abacatinho" ; "Fábrica de Macarrão Crispi" de Francisco Crispi e Filhos; a "Agência Ford",
mais tarde "Chevrolet" de Camilo dos Santos, o gigante do pioneirismo na cidade de Ubá, tendo como
seguidor seu primogênito José dos Santos, tanto em Ubá como em Juiz de Fora, onde mantém uma majestosa
agência Chevrolet, tendo há poucos anos atrás inaugurado no Parque Halfeld, o Edifício Camilo dos Santos,
homenagem em concreto a seu pai.
Camilo dos Santos, a quem Ubá deve uma homenagem, introduziu o automóvel na cidade. Financiou a
muitos profissionais do volante e foi criador do "Bar do Ponto" e bilhares. Foi o introdutor de sinucas em
Ubá quando esse esporte ainda era novidade no Rio. O Salão de Sinuca e Bilhar Francês até hoje funciona na
praça Guido, mas o saudoso e querido Bar do Ponto encerrou suas atividades há poucos anos, sob a direção
dos irmãos Provezano.

***
A nossa loja no largo São José estava em franco progresso. Tínhamos até exclusividade em calçados de
senhoras, mercadoria esta em que nós nos especializamos. Havia uma fábrica no Rio que tinha modelos
muito bonitos sem, contudo, ser artigo fino. Um calçado médio, mais para popular, e que se vendia muito
bem. Estávamos nessa ascensão quando um dia (e sempre na vida tem um dia de sorte ou de azar!), José
Leite, genro do Antônio Cezar, viajante de uma grande firma de tecidos do Rio de Janeiro, persuadiu a nosso
pai que, em vista de ter filhos muito bons balconistas, devia comprar a "Casa Cezar" dos irmãos Cezar.
Para nós, modestos comerciantes, ficar com a Casa Cezar, esquina da Rua São José com Sete de Setembro,
casa com oito portas, enorme e uma das mais afamadas casas de Ubá, seria um sonho quase irrealizável.
Entretanto, nem tudo pode ser medido pelo tamanho. O negócio da Casa Cezar foi realizado, pois seu
principal sócio, o industrial e acatado homem de negócios, o Sr. Antônio Cezar, prontificou-se a desdobrar o
pagamento de sua firma, em pagamentos suaves, o que motivou a realização da compra; todavia, o passivo da
firma seria transferido ao comprador com promessas de pedir adiamento aos credores, em maioria do Rio de
Janeiro. A transferência da dívida foi muito rápida, pois os credores tinham confiança demasiada na firma
Jacob. E assim assumimos o controle da Casa Cezar, Rua São José, 21 e 31, esquina com Sete de Setembro,
mais tarde denominada "A Imperial". Mas a boa-fé de papai, e a pouca experiência que Jorge e eu tínhamos
na malandragem comercial, redundaria mais tarde num fracasso imperativo. Se não vejamos: os Cezar só
tinham de capital seis contos de réis e a dívida em duplicatas atingia a cifra de cinqüenta e sete contos de réis.
Mesmo com a dívida transferida com prorrogação de dois a três meses a situação estaria de ruim para pior
porque, com as compras que eram imprescindíveis para sortir a casa que estava deficiente de sortimentos, as
duplicatas novas coincidiram com os vencimentos das transferidas e aí é que a gente teve de "pular sem ser
pipoca". Estávamos na iminência de atrasar com os pagamentos, coisa que nunca havia acontecido antes,
porque caminhávamos dentro dos limites e agora estávamos involuntariamente alcançados, pois, mesmo que
as vendas triplicassem neste novo empreendimento, ainda assim, estávamos em deficiência. Jorge e eu
evitávamos que nosso pai ficasse preocupado com o acontecimento e era informado que tudo corria bem, até
quando não se pôde mais "tapar o sol com a peneira". Transferiu a Casa Syria da Avenida Raul Soares para
engrossar o estoque da Imperial, transferindo residência também para a Rua Nossa Senhora da Saúde, mais
perto da loja e assim, dando maior assistência. Esses fatos ocorreram no ano de 1929. Eduardo já estava
nascido e assim a família ganhava mais um membro.
Em 1929 Jorge já tinha vinte e dois anos, eu dezenove, Miguel quatorze, João doze, Ibrahim nove, Tufy sete,
Nacib cinco e Eduardo um ano. Oito filhos e os negócios fracassando aos poucos.
Havia necessidade de um "milagre" mas a fibra e o trabalho nunca faltaram a nós e esperávamos dias
melhores, de difícil chegada. Nessa casa da Rua Nossa Senhora da Saúde casou-se o Jorge com Nagla em
1930. Houve uma festa muito bonita com danças árabes, ou seja, a "Dabke". D. Saide, D. Mahmude e D.
Habka, sua irmã, dançavam ao ritmo de flauta executada pelo Salim Abud. Foi uma festa inesquecível. Mas
com a revolução de outubro de 1930, derrotado o governo do Sr. Washington Luiz, foi guindado à
presidência o Sr. Getúlio Vargas. Este acontecimento teve conseqüências ruins para Ubá e para nós,
comercialmente, agravando mais ainda a situação. Ubá fora alvo de bombardeio, sem, contudo, ter tido
conseqüências graves, com prejuízos apenas materiais. Maria (filha de Miguel Samôr) já era minha eleita e
pretendia me casar também. Contudo, a situação não permitia temporariamente que isto se efetuasse. A
família regressa novamente para a nossa casa da Avenida Raul Soares, pois não houve compensação, devido
ao nosso inquilino; além de não pagar o aluguel estava estragando a casa. Foi nesta oportunidade que
enriqueci mais ainda os meus conhecimentos no idioma árabe. Todas as noites eu ia ver Maria e como o Sr.
Miguel estava doente da perna, a bastra era em casa dele. Todavia, mesmo assim, estava impossibilitado de
se levantar e com os livros de contos fantásticos, como Mil e Uma Noites e outros de guerreiros famosos,
como Hantar e demais heróis, brindava os presentes com histórias muito bonitas de famosos gladiadores.
Como Mitre, Younes, Merhy e a bela Habla. Eram, realmente, um encanto esses contos do Sr. Miguel.

***

Ubá vivia uma vida agitada socialmente. No Bar do Ponto se reunia a fina flor da sociedade Ubaense, pois
além do café, que era o melhor da região, tinha também uma inauguração recente, o "Chopp da Brahma",
complementado também por bilhares franceses e sinuca. O fundador do Bar do Ponto, como já citado, foi
Camilo dos Santos que, mesmo ainda em sua gestão, transformou o prédio antigo num majestoso edifício de
concreto, sem ter que paralisar o movimento um dia sequer. O autor desta obra foi o grande construtor
Virgílio Gori, que além de construtor era chefe de uma grande fábrica de ladrilhos à Rua levindo Coelho.
Além do Camilo dos Santos, seu proprietário, e da direção de nosso amigo Salvador Citadino (Dodô), outros
também dirigiram o Bar do Ponto por transferências - Camilo passou para o Sr. Antônio Simões, pai do
nosso dileto amigo Toninho Simões. Este, mais tarde, transferiu para o Sr. Nelson de Freitas, sucedendo-lhe
seu filho, o Sr. Talmon de Freitas. Mudou-se de dono o bar desde Camilo dos Santos até Talmon, isto durante
muitos anos, só não mudando os empregados Ozório Neves de Castro e Orozimbo Alfenas. Duas criaturas
nascidas para o trabalho e a dedicação. Essa dupla marcou época na vida do Bar do Ponto, não só pela boa
atuação dentro do estabelecimento, como também pela finura no trato aos fregueses.
Muitos outros empregados passaram pelo Bar do Ponto, porém, somente a dupla era realmente a "dura na
queda". Ozório, mais tarde, ficou sendo sócio de Talmon e assim só ficou o Orozimbo como empregado mais
antigo. Mas o Chopp da Brahma fazia sucesso nos dias de calor e o Bar Glória, sob direção do nosso amigo
João Brando, inaugura também o Chopp da Antarctica com um anúncio em cores vivas: "Contra a Antarctica
Ninguém Brahma!" Neste mesmo edifício, de propriedade de Camilo dos Santos, no terceiro andar, foi a sede
do Aymorés, ainda na direção do nosso estimado amigo Luiz Fuzaro que como presidente teve atuação
brilhante. Na sede acima citada havia bailes semanais e a fina flor da sociedade ubaense dançava ao som do
"Giggi Band Jazz". Tinha também a sala de jogos como ping-pong, dama, xadrez e jogos de cartas, com
destaque para o pôquer. Nesta época, predominava a elegância do Nadyr Aroeira, do Floriano Ferreira de
Souza (Boquim), Rubem Aroeira, Carlos e José Giacóia, Elias Rozendo, o José Martins Silveira, João
Carneiro Filho (Tinô), o José Magalhães (Nenen Barbeiro), o Tufy Felício, o Chicri Rachide, o Naime
Antônio Jorge, o José de Rezende Brando (Zezinho), o Abelardo Rodrigues da Costa e os irmãos Esteves:
João, Flóro, Garibaldi e Lauro. João casou-se com Conceição Carneiro e mantinha agência de filmes
cinematográficos com Garibaldi. Flóro comerciava ambulante: de vez em quando ia ao Rio e trazia perfumes
e outros objetos dizendo que eram comprados de borda de navio, em Santos, portanto contrabando. Ele
gostava dessa palavra e dizia: "pode estar certo que é contrabando"
Flóro era um sujeito extraordinário. Certa vez, durante um jogo de pôquer em que ele estava ganhando, disse
que a "santinha que ele achara na rua" estava lhe dando sorte e dias depois ele ganhava novamente, dizendo
que era a "santinha". Mas quando começou a perder foi aquela lástima. Jogou a santinha em cima da casa
Paschoal Oliva na Avenida Roças, fronteiriça ao salão de jogo!
Garibaldi era de compleição franzina e estatura de um metro e sessenta, se tanto. Na balança devia pesar no
máximo cinqüenta quilos, mas era um indivíduo de muita personalidade. Possuía um forte magnetismo
pessoal, mas tinha "pavio curto" ao ponto de entrar em brigas constantemente. Mas o "deixa disto" sempre
abortava as confusões que ele arranjava, principalmente quando bebia. Lauro era pacífico, assim como o João
e Flóro; tempos depois, mandaram buscar o velho pai e duas irmãs que eles deixaram em Sergipe, sua terra
natal.
Eu, particularmente, não tinha nada contra os Esteves, pelo contrário, éramos até amigos. Certo dia,
encontrando-me com Garibaldi no Bar do Ponto e tomando café juntos, fiz-lhe uma pergunta: "como é que
você, com essa munheca tão fina, procura briga com homens fortes?" Ao que ele retrucou: "no norte há um
ditado que diz: garrancho (gravetos) é que derruba panela".
Lamentavelmente, a panela foi quem derrubou o garrancho; e numa noite de domingo, na Praça Guido
Marliére cheia de gente, ainda cedo da noite, com o "footing" em sua maior agitação, ouviu-se estampido de
armas de fogo. Era o Garibaldi perseguindo o Homero Maliverno com um revólver, disparando em Homero a
carga da arma e este, sem alternativa, dispara um tiro de garrucha, como defesa, pois, além de Garibaldi,
mais dois entraram na contenda contra o Homero. O tiro da garrucha prostou Garibaldi mortalmente,
falecendo no dia seguinte no Hospital São Vicente de Paula.
Milagre, ou como queiram atribuir, eu vi as marcas das balas no corpo do Homero, todavia, só marcas, pois
os projéteis não penetraram no seu corpo.
E assim começou a decadência da família Esteves. João, mais tarde, acometido de doenças nervosas, muito
embora bem assistido pelos médicos e pela dedicação da esposa, não resistiu muito tempo, falecendo poucos
anos depois.
Homero foi impronunciado, pois o Juiz de Direito reconheceu flagrante legítima defesa. Com a morte de
João Esteves e mais tarde seu velho pai também falecido, Lauro mudou-se de Ubá, ficando apenas Flóro
morando com a irmã casada e como era benquisto na cidade, mantinha um círculo de amizade muito grande,
mas a decadência, a doença e a idade iam dizimando o nosso amigo. Certo dia, precisando de dinheiro para
cigarro, o nosso amigo Rubens Gonçalves, como de costume, deu-lhe um maço e neste mesmo dia, ele
marcando os pontos no quadro da sinuca, jogo entre Rubens e Zézinho Cara Lisa, valendo dois mil réis por
partida, o Rubens observou que o Flóro estava marcando mais pontos para o Zezinho. Constatado o flagrante
o Rubens observou: "Flóro, você está marcando menos para mim e mais para o Zezinho. Por quê?" Ele
retruca naquele sotaque nordestino: "Oi Rubens, você é rico, não precisa. Cara lisa precisa!"
Sobre Flóro, tem tantos casos engraçados, sobretudo quando regressou de Belo Horizonte, cuja ida foi
patrocinada pelos amigos numa coleta. Contou casos da "Sul América Capitalização", seu primeiro emprego
na Capital do Estado. Dizia ele: "A condição imposta na Companhia para a minha admissão seria conseguir
vender, ao menos, um título para Sua Eminência o Sr. Arcebispo de Belo Horizonte. Isto para mim foi fácil,
dizia ele, pois o Sr. Arcebispo é nosso conterrâneo e fora aluno de papai. Conseguindo a venda do título, fui
admitido como Agente no. 1 para vendas. No primeiro dia consegui promessas de "Quatro Rodas" (na
linguagem da Companhia cada Roda tinha vinte e cinco títulos) , de acordo com os dias marcados para a
minha volta aos clientes, ou seja, dois no dia 6 e dois no dia 8.
No dia 6 procurei os comerciantes, cuja promessa formal era de uma Roda, e no primeiro visitado, recebi a
resposta de que no momento não estava sendo possível:
-TIVE VENDO, COISA E TAL ...
-Mas faça pelo menos meia Roda!
-não, tive vendo, coisa e tal...
-Então faça cinco, três ou dois títulos, pelo menos.
-Não, muito obrigado, mas a firma prefere fazer uma Roda mais tarde.
-Tá bem, passe bem.
No segundo cliente a cantarola foi a mesma, os meus argumentos sempre os mesmos:
-Então façam dois títulos para dar início
-Não senhor, preferimos fazer uma Roda (vinte e cinco títulos) mais tarde
Esgotados os recursos da minha capacidade, retirei-me com um muito obrigado. Nesta altura estava no
terceiro dia de Sul América e já estava arrependido de me apresentar fumando charutos caros, para
impressionar bem os clientes. Mas nem tudo estava perdido Havia esperança nas duas firmas do dia 8. Neste
dia saí a campo com determinação e coragem.
Na primeira firma o chefe me acolheu com toda a solicitude no escritório e, ato contínuo, chamou um sócio
e me apresentou: Sr. Esteves da Sul América. Muito Prazer, Encantado, etc. Mas na hora de subscrever, a
história era a mesma: "Nós pensamos muito sobre a vantagem de comprar uma Roda, mas achamos prudente
deixar para mais tarde". Argumentei, persuadi, chegando a oferecer um título, pelo menos. Não, nós
preferimos deixar para mais tarde e fazer os vinte e cinco títulos, o que é vantagem para a nossa firma.
Estava quase desanimado, mas tinha ainda um cliente para visitar. Em lá chegando, foi aquela festa! Oh, o Sr.
Flóro da Sul América, vamos entrar no escritório. Sentado, já um tanto animado com a perspectiva de bom
negócio, quando o chefe diz: Sr. Flóro, - já sei, eu mesmo disse: Agora não podemos. TIVE VENDO COISA
E TAL - Uai, como o senhor sabe disso? - É mania docês"
De outra feita, foi na Rua Belo Horizonte (Morro das Corujas) em Ubá. Flóro gostava de tirar uma soneca
depois do almoço. A vizinha do lado tinha um papagaio que fazia um barulho danado - Pluc-taco-ta-ta-taco -
ó louro. E o Flóro, do seu quarto berrou "papagaio dos diabos, não deixa a gente dormir" A vizinha retruca
do lado de lá "dormir de dia, é pra vagabundo" "vagabundo é a mãe" e ia por ai afora.
Todos os dias o episódio era o mesmo, Flóro xingando e a mulher retrucando: vagabundo é quem dorme de
dia. Mas, dias depois, Flóro chegando em casa para o almoço, ouviu a mulher esbravejando e chorando a
morte de seu louro dizendo foi mau olhado de vagabundo, ao que Flóro retruca no seu sotaque nordestino "ói
minha senhora, se eu tivesse o puder de matar seu papagaio com mau olhado, eu matava era a família toda -
ouviu?"
Assim era o Flóro, um sergipano amante da paz e da concórdia, mas a sífilis e outras doenças acumuladas
com a idade deixou-o na decrepitude. Faleceu em Ubá, cidade que o acolheu bem, mas onde não foi feliz.
Faço esse perfil do amigo Flóro, como homenagem póstuma a um homem que nunca fez mal a ninguém. Foi
em vida uma boa criatura. Deus o tenha no céu!

CAPÍTULO VIII
O SACRISTÃO

A nossa loja, A Imperial, estava indo regularmente. Tínhamos cuidado de ter boas marcas de calçados, entre
eles o calçado Luzo e Minerva. Desta última, nós mantivemos por longo período exclusividade em Ubá. E
nas propagandas impressas vinha esse "slogan": Sapatos Minerva - Formas Verdadeiramente Anatômicas.
O calçado Luzo, de ambos os sexos, era de qualidade superior ao popular e também essa marca era de nossa
exclusividade.
Já em 1933, dispensávamos empregados. O Cezar, filho de Augusto Cezar, ficou conosco até o dia em que se
empregou melhor num Banco. Já tínhamos o Miguel e João como balconistas. Jorge se desligara e mantinha
um comércio próprio ambulante, mas o Miguel não gostava da loja. Já estava com dezoito anos e queria sua
independência cedo. Nesse ano foi fundada a Associação dos Empregados do Comércio, entidade que vive
até hoje graças à capacidade de amigos e deste grande batalhador Dilson Brêtas Aleixo.
Dr. Ary Gonçalves, seu primeiro presidente, era um jovem recém-formado a quem a turma idealizadora
solicitou que redigisse a primeira ata. Edmundo Thomaz Salgado, Mário Duarte Vieira Lana, Miguel Jacob,
João Jacob, José de Rezende Brando, Naime Antônio Jorge, Arthur Rachide, José Português, Cícero Silveira,
Elias Jacob e outros, a quem peço desculpas da omissão involuntária, foram os fundadores.
Os dias iam correndo normalmente e os negócios tinham tendência de melhora, quando surgiram
fornecedores de bons artigos como Calçado Luzo, sapatos de homens e senhoras, cujos modelos tínhamos o
privilégio de exclusividade e, sobretudo, a promessa de Distribuição da Fábrica Ubaense de Colchas,
recentemente fundada em Ubá pelo dinâmico industrial e homem de negócios, o Sr. Antônio Cezar - Tonico
Cezar, como era conhecido o ex-proprietário da Casa Cezar, adquirida por nós. Nosso contrato era somente
para vendas de colchas R.1 , ou seja, refugo de primeira e retalhos do produto. Chegamos a receber as
primeiras remessas, que eram vendidas com muita facilidade no varejo e em pequeno atacado. Entretanto,
esse negócio não chegou a um ano sequer . Tonico Cezar precisava de capital de giro e não o conseguia,
apesar de ser um homem acreditado. Não sei bem ao certo o porquê, mas o Sr. Antônio Cezar apelou para
todos os recursos e não conseguindo na época cinqüenta contos de réis foi obrigado a entregar a maquinaria
para uma firma do Rio de Janeiro, que a adquiriu.
Foi uma tristeza ver desmontar uma fábrica inteira e ser despachada para fora de Ubá, sepultando de vez o
sonho do velho Tonico Cezar.
Esses acontecimentos afetaram também nossos negócios.

***

Maria, ainda muito nova, quase menina ainda, era aprendiz de costura com D. Mulata Michiriffe, porém seu
ideal seria costurar camisas e pijamas para homens. Adquiriu muita prática e aprendizado com o Sr. Marinho
Gomes e senhora, que tinham em Ubá uma pequena fábrica de camisas e pijamas e atendiam a encomenda
particular e sob medida. Fez o curso de costura na Escola da Singer também.
Adquirindo uma máquina de costuras "Singer", ei-la, tempos depois, trabalhando em sua casa na confecção
de camisas sob medida. O Sr. Miguel, a duras penas, conseguiu montar no quintal de sua residência uma
oficina com motor a gasolina que fazia girar a serra de fita e a serra circular, a plaina, etc. Menos mal para
quem tinha que fazer o serviço a mão. Camilo era seu auxiliar e já era considerado oficial de marceneiro,
demonstrando-se, desde cedo, muito hábil e inteligente, mormente quando se tratasse de mecânica. Certa vez
o motor enguiçou e, chamado o mecânico, ficou constatado que havia queimado. Chamado outro especialista
no ramo de motores, igualmente ao primeiro não deu solução. Num domingo de folga, Camilo, sem consultar
o pai, desmonta o motor e faz reparo numa pequena roldana e torna a montá-lo. Eis que o motor rodou que
uma beleza ao acionar-lhe a chave de partida.
Nesta época a "Cia. Força e Luz Cataguases Leopoldina", em Ubá, não tinha condições de fornecer energia
para motores além dos cadastrados, razão pela qual se era forçado a utilizar motores a gasolina.
Elias Samôr inclinava-se mais para molduras e vidros. Restaurava espelhos e espelhava vidros novos, sempre
com a ajuda do Sr. Miguel que tinha a fórmula de espelhagem adquirida no Rio de Janeiro, onde residiu
algum tempo. Além desta fórmula de espelhar possuía pequenas máquinas de molduras de folha de Flandres
para confecção de espelhos de vários tamanhos com alças de arame para pendurar ou como suporte sobre
qualquer móvel. Essas pequenas prensas estavam desativadas há muito tempo, quando Elias resolveu dar
curso à fabricação de espelhos, mas isso exigia muito capital e, na oportunidade, limitou-se apenas ao serviço
de vidraceiro. Cortava vidros muito bem e com sua habilidade granjeou a confiança de muitos fregueses.
Aparecendo em Ubá uma mulher com uma criança, ambas muito mal trajadas e carentes de tudo, Maria ficou
com a menina para criá-la. Para tanto, exigiu que a mãe ou tia, não se sabia bem o que a mulher representava
para a criança, desaparecesse dali. A criança se chamava Maria Antônia e ficou mais tarde, por adoção dentro
da lei, a chamar-se Maria Antônia Samôr. Maria teve que aumentar a idade para adotar a Toninha que
recebeu os maiores cuidados e carinhos de D. Saide e Sr. Miguel que lhe devotavam amor paternal. Maria
ficou sendo a madrinha, isto é, a Fada Madrinha da pequenina Toninha.
Hoje, Toninha, como é carinhosamente cognominada, é casada com Waldemiro Higino de cujo enlace tem
quatro filhos, com vida próspera e feliz em Ubá, com os quais nossa amizade perpétua. Toninha mais tarde se
tornaria madrinha de minha filha Elimar.
Jorge e Nagla foram contemplados com o nascimento do primeiro filho, o querido Edson, nosso primeiro
sobrinho, para a felicidade de seus avós paternos Jacob e Sarah e maternos José Féres Reskalla, e Cotinha
Féres Reskalla, além dos tios maternos Féres, Nagib, Felippe e Líbia, todos, na oportunidade, residentes em
Ubá.

***

Ubá vivia uma efervescência política com a criação em todo país do Partido Integralista chefiado pelo Sr.
Plínio Salgado. Eram milícias de camisas verde cujo núcleo de Ubá obedecia a orientação do Sr. João
Esteves. O integralismo, diziam, é cópia fiel do nazismo e fascismo que dominavam a Alemanha e Itália sob
o comando supremo de Hitler na Alemanha e Mussolini na Itália.
Getúlio Vargas, presidente da república, tolerava o integralismo, cujo poder chegou a um ponto quase
insustentável, pois havia nas grandes cidades e capitais do país quase um governo paralelo. Getúlio, homem
sagaz, procurava manter vistas grossas ao crescimento dos liderados de Plínio Salgado com o objetivo de
combater o comunismo, que estava crescendo e, como são ideologias antagônicas, um dizimava o outro, sem
grandes cuidados do poder central.
Eu não fazia parte dos integralistas, apesar de convidado ter sido reiteradas vezes. Tinha, ao contrário, certa
simpatia pelo comunismo. Conhecia algumas pessoas bem intencionadas que falavam de governo
comunitário, comunismo, socialismo, etc. e, como estava lendo o Capital de Carl Marx (isso, na época,
proibido), meus pensamentos me transportavam aos anos de 1925 e 1926 quando conheci o Sr. Marçal. José
Maria Marçal era um senhor de quarenta anos, moreno escuro, mineiro de Ouro Preto. Tinha uma cultura
escolar muito pequena. Entretanto, com sua vivência, e homem muito inteligente, podia manter um diálogo
com qualquer letrado. Era bem humorado e seus assuntos, bem discorridos, agradavam muito. Era sacristão
no tempo do Monsenhor Silvestre, na paróquia de São Januário. Às noites, no passeião da igreja, às vezes
bebericando vinho, trazido da adega da igreja, quando a oportunidade surgia, lá estávamos nós, e mais o
Uriel Feital, o socialista e o Antônio Kleitell, um alemão jovem ainda, não se sabendo a razão, há poucos
meses chegado a Ubá. Empregara-se na Farmácia Pinto do Sr. Evaristo Pinto, à Praça São Januário.
Ficávamos os quatro conversando, eu mais ouvindo do que falando. Ouvíamos o Sr. Marçal discorrer sobre
seus falecidos pais em Ouro Preto, na antiga Vila Rica, capital do estado. Falava do palácio do governador,
dos inconfidentes, sobretudo de Tiradentes, a quem ele demonstrava grande simpatia. Seus olhos
lacrimejavam quando aludia ao Mártir da Inconfidência, como símbolo da igualdade e fraternidade, razão
pela qual o comunismo era o ideal; porque, no pensar dele, se baseava na fraternidade universal, terminando
de vez com o enriquecimento ilícito e a exploração do homem pelo homem. Seus pensamentos eram
verdadeiramente cristãos. Uriel falava muito no capitalismo opressor, asfixiante e cruel, entretanto não
combatia o direito de propriedade, combatia o sistema da apropriação indébita de poucos, em prejuízo de
muitos. Combatia o latifúndio; milhares de famílias brasileiras dentro de seu país, sem terra, sem pão e
liberdade. Uriel e o Sr. Marçal preconizavam um comunismo pacífico dentro da lei e da ordem e davam
exemplos tais como: ali em frente, apontando para o colégio "Sacré-Coeur du Marie", temos as venerandas
freiras da congregação que dirigem o colégio. É um pequeno governo dentro daquele prédio onde trabalham
desde a madre superiora à mais humilde das irmãs em seus afazeres diários, cada qual em sua atribuição. O
dinheiro que recebem das alunas é dividido para suprimento da própria sobrevivência pessoal de cada uma e
melhoria material no colégio. Não se vê nenhuma freira se enriquecendo em prejuízo das outras. Vê-se, sim,
uma comunidade que trabalha em favor de um todo. O Sr. Marçal, a quem aprendi a admirar, era um coração
magnânimo e com o tempo, comecei a amar sua terra, a consagrada Ouro Preto, pátria dos Inconfidentes.
Havia, portanto, razão de sobra para não adotar a doutrina integralista. Entretanto, também não me filiei ao
outro, que estava, na época, fora da lei.
Dessa época do Sr. Marçal até nossos dias pouca coisa mudou. O comunismo no Brasil não passou do
engatinhamento. Tinha razão o Sr. Marçal quando dizia que os estudantes que são presos, trucidados,
repudiados pelas suas idéias avançadas, quando ganham seus diplomas mudam completamente seu modo de
pensar. Acomodam-se com a vida faustosa e com os cargos públicos, tornando-se eles os algozes e
opressores de outras gerações vindouras, de jovens idealistas como eles próprios o foram. Esquecem com
facilidade de seu passado e seus companheiros de luta.

***

O Aymorés, já no seu novo campo próprio na Avenida Raul Soares, continuava a dar alegria nas tardes de
domingo. Oh, que saudade dos domingos de Ubá, da máquina fotográfica que o Sr. Mazzei me emprestava
para eu levar ao campo e com ela registrar os lances mais importantes do jogo, principalmente do trio de ouro
do Aymorés.
Dizíamos na época "Trio de Ouro" referindo-nos ao Nicola, Mundinho e Guará. Ou pela ordem Mundinho,
Guará e Nicola. Digo pela ordem porque o time era formado por onze jogadores assim distribuídos em
campo:
goleiro: Zezinho Brando
zagueiros: Coronel e Simões
linha média: Itim, Olegário e Job
linha de ataque: Augusto, Mundinho, Guará, Nicola e Date.
Portanto era assim.
Hoje em dia os times não têm a mesma composição; inventaram outra escalação que, a meu ver, não
melhorou, pelo contrário, tirou do espectador a beleza dos lances. Houve destaque para o trio acima, sem
demérito para os outros jogadores, pelo fato de terem os três jogado juntos através de muito tempo, enquanto
que na extrema direita e extrema esquerda houve muitas variações, que foram Arnau Gribell e outros na
ponta direita; Raul, Urjas, Sebastiãozinho e outros na ponta esquerda. Muitas fotos foram tiradas e sempre os
filmes eram revelados pelo amigo Guerino, cunhado do Sr. Celidonio Mazzei e grande jogador de sinuca, na
época campeão de Ubá.
Antes do futebol ia ver Maria que aos domingos visitava sua velha protegida, a Sá Maria Leite, que morava
numa casinha no alto do Caxangá. Íamos juntos. Maria tinha especial afeição pela velhinha e aquelas visitas
domingueiras eram quase imperativas. Levava-lhe bolos, doces e outras guloseimas, mas a velha Sá Maria
Leite fazia questão mesmo é da presença de Maria. Ficava muito alegre nas nossas chegadas e triste quando
da despedida. Esta amizade continuou até o falecimento da doce velhinha. Deus a tenha no seu reino.

***

Papai, Sr. Miguel, Mansur, Antônio Miguel, Jorge Sallum, Simão Queiroz, José Abjaude, Jorge Samôr,
quando em visita, Jorge, nosso irmão, José Gomes e outros, nos fins de ano, do Natal ao Ano Novo, reuniam-
se em nossa casa à Avenida Raul Soares, 105 para o jogo de VINTE E UM - Cacife de vinte mil réis.
Jogavam até meia-noite ou pouco mais. Mamãe, D. Marina, D. Saide e D. Maria do Antônio Miguel eram
pródigas no oferecimento de sonhos, biscoitos e café. Eram momentos de muita confraternização e alegria,
empanados, às vezes, com o azar do jogo do Simão Oueiroz, que pedia uma carta, pouco... mais uma,
queimou e quando se repetia esse azar, muito nervoso rasgava a carta. Fim do jogo. Saía sem dizer palavra,
para no dia seguinte trazer um baralho novo. Todos já conheciam o Simão Oueiroz, homem nervoso no jogo,
porém era uma alma grande e uma bondade infinita. Gozava da estima de todos, principalmente do Mansur
que, além de conterrâneo no Líbano, era seu amigo, conforme relato atrás sobre a exaltação do Buliês no
episódio do encaixotamento da mercadoria da venda de papai.
Outros jogos foram realizados e outros baralhos foram rasgados, porém sempre com reposição do nosso
amigo, com pedidos de desculpa.
De certa feita, quase meia-noite, o Simão acabou com o jogo da forma costumeira e se preparava para sair.
Mansur começou a fazer pagamento das fichas, e era ele nesta noite o cacifeiro. Notou o Mansur falta de
vinte mil réis no caixa, lembrando-se em seguida que ele fornecera essa importância ao José Abjaude a
pedido do Simão. Mansur, lépido, corre e alcança o Simão ainda em frente à casa do Monsenhor. Neste
momento os fiéis estavam saindo da Missa do Galo e a rua cheia de gente possibilitou ao Mansur alcançar os
dois, Simão e Abjaude. "O que você quer?" pergunta Simão. Mansur responde-lhe que se esquecera de pagar
o cacife do Abjaude. "Toma", disse-lhe, apresentando uma nota de vinte mil réis. Mansur, de posse do
dinheiro, e para não dar a impressão que só os alcançou por causa do cacife, disse-lhes com muita
amabilidade: "vamos voltar". Simão com a carranca que Deus lhe deu responde: "Pra quê, você vai me dar o
recibo?" .

***

CORPO ESTRANHO

Camilo, sentindo o olho direito e notando que estava vermelho, procurou molhar com água boricada e outras
diligências caseiras até que se convenceu de que teria que procurar um médico, mormente pelo agravamento
dos arranhões que sentia. Era uma limalha que lhe caíra no olho quando amolava uma ferramenta.
Chegando ao Hospital São Vicente de Paula, um médico disse-lhe: "isto é corpo estranho" e saiu. Chegava
outro e mais outro sem dar solução ao tal corpo estranho. Camilo já estava cansado de esperar sem, contudo,
ter tido esperanças de ficar aliviado do tal corpo estranho quando o médico, Dr. Hellen, recém-chegado a
Ubá, com consultório à Rua São José, lhe disse, entregando-lhe seu cartão: "vá ao meu consultório na parte
da tarde que eu vejo isto para você"
Não queria o Dr. Hellen atendê-lo ali mesmo por questão ética ou talvez porque era o único médico estranho
ao corpo médico do hospital. À tarde Camilo se dirigiu à residência do médico, que era também seu
consultório e em menos de cinco minutos Camilo já estava livre do incômodo que a tal limalha provocara em
seu olho sem, contudo, ter gasto nada.
Dr. Hellen era filho adotivo do Sr. Marcos Winogradoff, um comerciante de roupas feitas que se estabelecera
em Ubá havia três anos mais ou menos e nos tornamos amigos. Gostando da cidade, convidou seu filho,
recém-formado no Rio de Janeiro, para vir a Ubá e talvez por isso é que tivemos a grata satisfação de
conhecer um médico de expressivo caráter humanitário que infelizmente, pouco tempo depois, regressou com
sua esposa para o Rio de Janeiro.
Sr. Marcos e D. Eliza, sua esposa, não tinham filhos. Ficaram tristes com a partida do Dr. Hellen, mas se
conformavam com a boa perspectiva do filho adotivo ter conseguido uma chefia num posto de saúde no Rio
de Janeiro.
Éramos amigos do casal Marcos e Eliza, não obstante a idade, pois o Sr. Marcos contava com seus quarenta e
cinco anos de vida. Muito saudável e corado como é a maioria dos russos. Eles eram de nacionalidade russa e
se orgulhavam de dizer que eram da cidade de Odessa, porto importante de seu país.
Assim como os Feinstein, da casa de móveis, também era judeu. Todavia, pelos seus feitos e amizades, fez-
me esquecer o malefício do judeu Laxua Kadus, no caso do Salomão dos idos de 1922/23. Aristides Salomão
& Irmão, firma respeitável no comércio de Ubá, na década de 20. Família respeitável, emigraram para o
Brasil com a velha mãe D. Ismanjún e os filhos Aristides, David, Malaque, José, Hanne, Sultane e
Agostinho. Os negócios corriam bem com seus estabelecimentos de tecidos, armarinho, roupas feitas,
calçados, etc., à Rua São José, prédio próprio, esquina com a Rua Santo Antônio, com prolongamento nesta
rua de mais um prédio com duas moradas. Infelizmente a família fora abalada com a morte prematura do José
e, pouco tempo depois, do Agostinho, para a consternação da família libanesa e desespero da velha mãe e
familiares.
Aristides Salomão & Irmão resolveram tempos depois montar um armazém-depósito de fumo em corda.
Liquidaram o estabelecimento de tecidos para se dedicarem ao comércio de fumo, denominado "Fumo
Águia". Nessa oportunidade, seriam necessários viajantes para vender o produto, o que seria feito pela prata
da casa. David e José Féres, este vindo de Barbacena com a família, transferiram suas residências para Ubá.
José Féres Ralbune, cunhado dos Salomão, era casado com Malaki e assim integraria a firma com seu
profícuo trabalho.
Tudo parecia indo bem, quando surgiu o primeiro e definitivo tropeço. Surgindo a necessidade de uma
injeção de dinheiro na firma, que estava em franco progresso, procuraram o Laxua Kadus, um judeu que
emprestava dinheiro. Conversa vai, conversa vem, o Laxua conseguiu um contrato de sócio da firma. Fora
tão mal redigido que, mesmo com o pagamento do empréstimo, o credor ainda mantinha domínio sobre os
negócios e, sobretudo, nos imóveis. Não houve ninguém na época capaz de demover o Laxua de seus
intentos maléficos. O caso ficou rolando na justiça por muitos anos e com o falecimento do Aristides, que
sobrevivera pouco tempo à sua mulher, ficara a velha mãe com os dois órfãos na casa da Rua Santo Antônio,
única coisa que lhes sobrara.
Hanne, já casada com Wady Garios, morava em Tabuleiro. Sultane, casada também, com Nacib Tanus,
morava em Ubá, transferindo-se tempos depois para Juiz de Fora. David, tempos depois, foi para São Paulo,
ali se casando.
José Féres Ralbune e D. Malaki, depois de residirem algum tempo em Ubá, partiram de mudança para Juiz de
Fora com os filhos e a velha. Esses fatos, ocorridos na década de 20, foram para nós e nossa família motivo
de muita consternação pelo motivo já aludido atrás. Os Salomão são nossos conterrâneos e amigos, existindo
um laço indelével de compadresco, pois o David e Hanne eram padrinhos do nosso inesquecível irmão João,
e Sultane era madrinha de Tufy.
Hoje apenas D. Malaki sobrevive à família Salomão, de cujo consórcio com o saudoso José Féres e para
nosso convívio com muita amizade aí estão os filhos: Saad, Jamil, Munir, Munife, Agostinho, Anuar e
Vitória, enriquecendo a sociedade juizforana no esporte, na cultura, no comércio e na indústria.
Lamentavelmente, a morte, muito cedo, nos roubou o amigo Elias José Féres.
David Salomão, vindo de São Paulo, firmou residência em Juiz de Fora, ali falecendo, deixando viúva D.
Madalena Cury e sua filha Elizabeth e familiares com os quais mantemos carinhosa amizade. Desta forma, a
impressão de que judeu é coisa ruim ficou totalmente apagada da minha mente.
Marcos Winogradoff era uma criatura simples e de coração generoso na prática do bem. Todos os dias,
impreterivelmente após o almoço, vinha ao nosso estabelecimento e sempre tinha um assunto de grande
alcance social. Havia acabado com sua casa de roupas feitas e assim tinha tempo disponível para um bate-
papo. Pela sua experiência e cultura, muita coisa de útil se aproveitava de suas palestras. Ao falar, certo dia,
do orgulho de certos homens que se sentem poderosos em menosprezo aos pequeninos, dizia ele, sem se
referir ao sermão da montanha, que os humildes serão exaltados, conquanto esses humildes sejam bem
intencionados e amantes da paz e do amor ao próximo.
Descrevia o homem neste planeta terra como um ser infinitamente pequeno diante do poder supremo, Deus,
Senhor dos Mundos, e num pedaço de papel fazia um círculo representando a galáxia e o planeta terra que,
diante dessa imensidão, era representado por um ponto minúsculo, dizendo: "neste ponto, que representa a
Terra, que não passa em proporção de um grão de arroz, está a humanidade toda. Pergunto eu diante disto: "0
que é o homem?"
Assim era o Marcos, um judeu boníssimo que me fez mudar o conceito sobre judeus, pois como no
cristianismo, entre os maometanos, budistas, existem castas. Bons e maus, compete a nós separar o joio do
trigo.

***

Miguel, aos dezoito anos, em 1933, não gostava de trabalhar na loja. Queria trabalhar como viajante e
arranjou uma representação de chapéus de palha e assim o mano Miguel iria ganhar sua vida viajando. Aliás,
o Miguel sempre teve iniciativas próprias, gostava de sua liberdade. João, já com dezesseis anos, era um
balconista de grande perspectiva e Ibrahim, com treze anos, dava uma mãozinha de quando em vez, pois
ainda estava estudando.
Os negócios estavam capengando e as dificuldades eram visíveis quando do vencimento das duplicatas.
Talvez seja uma das razões do Miguel querer viajar, aliviando a gente de mais despesas.
"A Imperial", nosso estabelecimento, ficava quase em frente do "Bazar Renê", de Adelardo Salgado e Cia.,
firma esta que mantinha filiais em Porto Novo, Ponte Nova, Cataguases e Leopoldina. No Rio de Janeiro era
sua Matriz, de onde se emanavam todas as instruções e diretrizes. Tínhamos como vizinho de frente também
a barbearia do nosso amigo e saudoso Alberto Guilhermino, filho do Sr. João Guilhermino, proprietário do
prédio da barbearia e do Bazar Renê. Do nosso lado esquerdo, era a residência e estabelecimento do Sr. José
Antônio Cheuhen, sobradão que ainda existe em Ubá, de propriedade de descendentes seus.
José Antônio e D. Maria, sua esposa, eram compadres e comadres de nossos pais, padrinhos do Ibrahim, e
esta amizade está sendo cultivada através de seus filhos e nós, com destaque para o Adib, seu primogênito
que reside em Ubá, Fued, que reside aqui em Juiz de Fora e o Tuna, que mora em Leopoldina, todos casados,
com filhos e netos. Lamentavelmente a morte prematura do Nacib nos privou de agradável convívio, pois
éramos parceiros de bilhar, esporte no qual ele chegou a brilhar com boas tacadas. Do sexo feminino,
também quatro filhas completavam o patrimônio de oito filhos do casal José Antônio e D. Maria: Alice,
Maria Amélia, já falecida, Adelina e Ivone, todas casadas e com filhos e netos, propiciando felicidade a seus
pais e avós.
Num outro sobradão era residência do nosso estimado e saudoso Vicente Guilhermino e família. Vicente era
alfaiate e exerceu essa profissão por muitos anos. Na parte inferior do sobradão era residência da família
Rotello. O Sr. Rotello já estava avançado em idade, mas, mesmo assim, vendia loterias de casa em casa. Sua
família era constituída de mulher e três filhas muito prendadas em afazeres artesanais, razão pela qual, a vida
deles não era de muita penúria.
Sua técnica para vender a loteria consistia em oferecer o bilhete insinuando que estava premiado, e o freguês
retrucava: "qual o quê, está branco, e esse número não dá". "branco não está, ele é colorido!"
E, sempre insistindo, naquele sotaque italiano: "Pode ser que não dá, mas pode ser que dá". E nesta dúvida
raramente deixava de vender. E assim, por muitos anos, o Sr. Rotello fez parte do nosso convívio e sua morte
deixou saudades. Defronte ao Sr. Rotello era a residência dos Lamarca, família numerosa da qual até hoje,
entre outros, remanesce o nosso amigo Francisco Lamarca, o alegre Chiquito Lamarca residente em Juiz de
Fora, já com filhos e netos, em pleno gozo da felicidade junto aos seus familiares.
Do nosso lado à direita, como era esquina, era a Rua Sete de Setembro, fronteiriça à linha férrea da Estrada
de Ferro Leopoldina, onde era a residência e Armazém de Gêneros Alimentícios do Sr. Moysés Felippe e D.
Maria Moysés e vários filhos. O primogênito, Moysés, casou-se com Alice Cheuhen, falecendo muito novo
ainda. Tínhamos como vizinhos a Casa de Móveis do Sr. Luiz Feinstein, moço muito prestativo e amável,
mantendo também a fábrica de móveis à Rua São José, onde residia com sua família e seus velhos pais.
Quase em frente à Imperial ficava a entrada do Parque Cinema, hoje Rua João Guilhermino, com muitos
prédios residenciais e comerciais, rua esta que dá acesso às ruas Vicente Leite e Belo Horizonte.
Denominou-se "Parque Cinema" pelo motivo de ter sido uma entrada para uma vasta área onde se armava
Circos e Parques de Diversão e, quando chegava o circo a Ubá, era aquela festa da meninada da época. No
meu tempo de criança era armado o circo no terreno do Izac Cabido, ali bem pertinho de nossa casa, logo ali
à Rua Monsenhor Paiva Campos que nos leva ao Tabajara Clube. Era um terreno muito grande de caber o
circo e barracas para os componentes do mesmo.
Lá vinha na frente do corso o burrico com o palhaço virado de costas: "ó vai o sol, desponta a lua, olha o
palhaço que está na rua. Hoje tem marmelada? Tem sim sinhô. O palhaço o que é? E ladrão de mulhé",
respondia a garotada. Logo atrás do palhaço vinha aquele préstito de caminhões e automóveis precedidos de
elefantes que caminhavam todos enfeitados de fitas multicores. Nos caminhões vinham as feras: leões, tigres,
leopardos, etc., mas o ponto alto para os rapazes era a mocinha que sorria jogando beijos, sob o aplauso do
público.
Estava falando do Parque Cinema e me perdi em doces divagações do meu tempo de criança.
E por que Parque Cinema, se só se falou em parques e circos? Certa ocasião, uma empresa cinematográfica
queria instalar um cinema e, para tanto, construiu um prédio que ficou inacabado por algum tempo, talvez em
questão com o proprietário do terreno que era o Sr. Mendes Sobrinho. Enquanto isto, armavam uma tela fora
da casa inacabada e nesta projetavam os filmes. A entrada era grátis. A empresa apenas se valia de um bar,
onde se vendia para os freqüentadores cerveja, refrigerantes, comestíveis, etc. E ali, ao ar livre, assistíamos a
grandes filmes "farwest" de Buck Jones, Elmo Lincoln e comédias como os filmes de Carlitos, Gordo e o
Magro, etc., e daí o cognome de Parque Cinema.

***

Já estava com dois anos o meu namoro com Maria, quando meus pais acharam por bem que fosse feito o
pedido de casamento. Era comum e quase imprescindível que fossem os pais do rapaz incumbidos deste
mister, dando um cunho de validade e respeito ao ato. Feito o pedido, o Sr. Miguel não deu o sim, tão
esperado, alegando que tinha uma consulta a fazer e voltaria ao assunto com a resposta. Meses depois, e
sempre juntos no jogo da bastra ou mesmo nas leituras de histórias, o silêncio do Sr. Miguel quanto a
resposta causou mal-estar e preocupação por parte de meus pais e, vendo que a resposta não vinha, a despeito
de eu ter muito boa acolhida em sua casa, resolveram voltar ao assunto do pedido de casamento quando o Sr.
Miguel muito constrangido falou: "Não tenho nada contra seu filho, ao contrário, gosto muito e faço gosto no
casamento. Entretanto, gostaria que ele tivesse vida própria e independente". Justificava a atitude do Sr.
Miguel no fato de eu, na época, não ser nem empregado e nem patrão e o nosso sustento seria do "monte" da
família e ele preconizava para nós uma vida modesta, porém de independência. A princípio houve um
desaponto natural por parte de meus pais, porém, com o correr dos dias e a volta à razão, ficaram
conformados, mesmo porque a amizade continuava e as visitas nunca foram interrompidas.
Diante de nossa situação comercial, que não era boa, eu não podia abandonar o comando dos negócios
porque Miguel com dezessete anos, João com quinze e Ibrahim com doze anos ainda não podiam arcar com
responsabilidades, acrescido, ainda, de que Jorge estava se preparando para sair. Esse dilema foi atenuado
pela Maria que, em todas as oportunidades em que o assunto surgiu sobre casamento, dizia que ela não tinha
pressa para casar e me incentivava muito nas minhas realizações e foi muito compreensiva quanto à minha
situação no caso.
Continuava freqüentando a casa do Sr. Miguel e D.Saide, que me recebiam com muito carinho e afeição.
Tinham como vizinho de frente o Coronel Otaviano da Rocha, cidadão ubaense da melhor estirpe e chefe de
numerosa família. Dos filhos do coronel Otaviano faço destaque para duas filhas, amigas de Maria: Elvina e
Lourdes. Casando-se Elvina com Luiz Gori e Lourdes com José Salles Collares, ambas já com filhos e netos,
conservam a mesma amizade com Maria e consequentemente comigo também. Por extensão desta amizade,
seu mano, Simpliciano Martins da Rocha, alcunhado carinhosamente de Prico, tornou-se nosso compadre
quando fui honrado com o convite para padrinho de crisma do então galante Murillo. Do lado esquerdo,
residência geminada com a casa do Sr. Miguel, morava o Sr. Luiz Porto e sua família. Ótimos vizinhos, com
quem mantemos amizade até hoje, através de seus filhos, com destaque para o Luizinho (Luiz de Araújo
Porto). Do lado direito, numa casa modesta plantada no meio de um grande terreno, era residência do Sr.
João de Araújo e D. Maria de Araújo com numerosa prole.
Maria e eu ficamos compadres e comadres do casal pelo batismo do garotinho que na pia batismal recebeu o
nome de Elmar que, por ter nascido no domingo de Ramos, é cognominado Raminho. Esse acontecimento se
deu quando ainda éramos solteiros. Dos filhos dos compadres João e Maria Araújo, já falecidos, ainda
mantemos contato e amizade com Maria Araújo Apolinário (Nenen), casada com Geraldo Apolinário e seus
filhos, residentes em Braz de Pina, no Rio; Ercília Araújo (Cila) e Geraldo são solteiros e Raminho, nosso
afilhado, é casado, com duas filhas e mais duas irmãs, todos residindo em Caxias, também no Estado do Rio.
Também nas proximidades da casa de Maria, como bons vizinhos e amigos, era residência do Sr. Raimundo
Collares e sua esposa D. Otília Ferrugem Collares e seus filhos, um dos quais, o Ricardo, é afilhado de
Maria. Também a residência do Sr. Talles Ramos e sua consorte, D. layá Galindo Ramos, com numerosa
prole e especial destaque para a Mirtes que mais tarde casou-se com Mário Britto e desta união tiveram dois
filhos: Mário Magno e Mirtes Mara, sendo que o primeiro é nosso afilhado pelo batismo.
No sobradão à esquerda era residência do cidadão português Antônio Simões chefe de numerosa família, pai
do meu dileto amigo de infância, Toninho Simões, além de outros filhos, com destaque para Livinha, de
saudosa memória, amiga de Maria; um pouco adiante era a residência do Sr. Pedro Rocha, carinhosamente
Rochinha, e família, com destaque para a Paula, amiga de Maria. Mas o círculo de amizade de Maria não se
restringia somente à Rua Santa Cruz, onde reside até hoje uma das mais dedicadas amigas, a carinhosa Olga
Januzzi, filha única do Sr. Pepino Januzzi e sua esposa, a não menos querida D. Arminda Januzzi, já
falecidos. Olga casou-se com Nenen Espanhol, cujo nome verdadeiro é Israel Garcia, de cujo enlace nasceu
Luzia Eva, mimoso fruto dessa união, nossa afilhada pelo batismo, o que tanto nos orgulha.
Havia também na Av. Raul Soares as amigas Ninita Marcato, Delorme e Elza Cezar, esta falecida quando
muito jovem ainda.
Nessa época o cupido lançava suas setas nos casais de namorados: Nhozinho Cezar e Silvia Gonçalves; José
Martins Silveira e Olga Carneiro; Tinô Carneiro e Alicinha Gonçalves; Adauto Horta e Branca Barros;
Jurema Aroeira e Marieta Côdo; Walter de Paula e Ninita Marcato; José Salles Collares e Lourdes Rocha;
Chicri Rachide e Lida Lombardi; Lincoln Dias e Carmelita Lombardi; Luiz Gori e Elvina Rocha; Zezinho
Brando e Anita Lentini; Floriano de Souza (Boquim) e Bilú Rinco; Ruy Andrade e Maria Singulani; Ozório
Neves de Castro e Anita Provezano. Entre os outros, Maria e eu completávamos os casais amorosos. Todos
eles casaram-se com seu par, com exceção do Chicri e do Tinô, este que mais tarde desposaria a bela
Alicinha, como veremos no decorrer de outros capítulos.

***

Ubá sempre foi dotada de malucos mansos, uns sisudos, outros cômicos e alegres, cada um com sua
característica.
Na Avenida Raul Soares havia a residência de duas moças, já de certa idade, e um irmão de nome Tatão.
Certamente Sebastião Barbosa. Isto lá pros idos de 1923 devia ter ele mais ou menos trinta anos. Eram
parentes do coletor Estadual Ouintiliano Barbosa.
As moças, muito prendadas na arte culinária, eram especialistas em salgados para casamentos, aniversário,
etc. O Tatão ajudava na entrega das encomendas.
Sua fraqueza principal era colecionar chaves. Andava com um molho de chaves de quase um quilo e não
tolerava ver uma folhinha com data atrasada. As folhinhas em blocos, que agora quase não existem, eram
muito úteis, pois cada folha marcava o dia do santo, fases da lua, etc., tendo no verso, invariavelmente, uma
trova ou um adágio de muita utilidade e beleza.
Mas o Tatão, sem falar, entrava casa adentro e arrancava a página atrasada pondo a folhinha em dia. Todos já
o conheciam e ninguém achava ruim com o Tatão Cachueta, pois, pela sua mansidão, era muito benquisto.
Havia também, na mesma rua, o João Ramos - João do Bicho, como era conhecido. Fazendo sol, calor ou
frio, o João do Bicho não tirava o sobretudo preto. Todos os dias o João saía de casa, fumando seu cachimbo
de barro e ao passar pela rua as senhoras donas-de-casa que gostavam de uma "fezinha" perguntavam: João,
que bicho vai dar roje? E a resposta vinha: hoje dá peru. Para outras dava o palpite tigre e outros gato ou
cachorro. Assim, como ele era portador dos jogos, ganhava suas gratificações na certa, das pessoas que
acertavam em seu palpite. De bobo não tinha nada, mas era muito divertida a volta do João, depois das três
horas: deu o leão. Neste dia o João passava de liso. Não acertou no palpite. João Ramos, homem de cor,
morava com duas irmãs que, com suas habilidades em bordar e costurar, mantinham sem grandes
dificuldades as despesas da casa. Mané Cabecinha: ninguém lhe sabia o nome e nem tampouco donde veio.
Apareceu em Ubá nos idos de 1925 a 1929 cantando e encantando o pessoal da época. Era muito versátil o
Cabecinha: além de cantar, fazia discursos e com tal verbosidade que ganhou a simpatia dos estudantes da
Escola de Farmácia e Odontologia, dos quais tornou-se mascote. De certa feita, os estudantes o
condecoraram com muito aplauso do público num dia festivo de Sete de Setembro. Ganhava o Mané
Cabecinha, neste dia, além de roupa, uma medalha em fita verde e amarela como amigo dos estudantes.
Mané Cabecinha fez agradecimentos num pronunciamento longo e bem feito.
Ao morrer, seus funerais foram custeados pelos estudantes e seu enterro teve grande acompanhamento. Suas
palavras finais em todos os discursos eram: Ôba! Esta cidade de Ubá! Ôba!!!
Manoel Flautista: sem "eira nem beira", o Manoel, homem dos seus trinta a trinta e cinco anos, ao contrário
do Cabecinha, era calado. Apenas tocava sua flauta de lata, daí a alcunha de Manoel Flautista. Não pedia
nada a ninguém, mas tocando sua flautinha não faltava quem lhe desse uns trocados ou mesmo um prato de
comida, ocasião esta, 1928-1929, ano em que apareceu o Eurico.
Eurico, sem sobrenome, ninguém o conhecia. "Alguns disseram que viera de Piraúba, cidade distante de Ubá
mais ou menos uma hora e meia pela antiga Estrada de Ferro Leopoldina, hoje desativada. Moço ainda, de
seus trinta anos mais ou menos, claro, olhos azuis, bem apessoado, falava muito bem em certos momentos.
Chegaram a dizer que fora professor em sua terra e sua caligrafia, muito bonita, lhe dava este crédito.
Entretanto, nas horas de desequilíbrio, lá vinham os discursos inflamados do Eurico.
De certa feita, estando ele em visita ao hospital São Vicente de Paula de Ubá, presume-se que ele tenha tirado
o endereço de uma folhinha de fábrica de camas hospitalares porque, dias após sua estada ali, apresentou-se à
direção do hospital o representante da firma de indústria de camas, atendendo a um pedido de trinta camas,
por carta, exibida no ato de sua apresentação. A firma havia estranhado a quantidade e o representante
gostaria de ter confirmação diretamente do próprio hospital; e qual não foi a surpresa do Provedor ao ler a
carta. Estava muito bem redigida, todavia em papel totalmente branco, sem timbre do hospital. Fora o Eurico
o autor desta façanha, mesmo porque em todos os discursos falava muito em falta de leitos para os pobres.
Tempos depois, parentes do Eurico levaram-no para sua terra ou para um hospital psiquiátrico, sem nunca
mais termos notícias dele.
João Ramos, Mané Cabecinha, Manoel Flautista, Eurico e Messias Sete Cabeças, viveram numa só época, o
que levou o Minotte Lentine a dizer certa feita: Ubá é terra de loucos; se eu fosse autoridade aqui, mandava
murar a cidade e eu ficava dentro do muro também - (Ser louco é ser feliz) - todos eles, cada qual ao seu
modo, eram felizes!

***
Major Joaquim de Siqueira, proprietário da antiga "Tip. e Pap. Siqueira", tipografia e papelaria, a mais antiga
da cidade, até hoje em atividade na direção do nosso amigo Cícero Silveira, que desde tenra idade, menino
ainda, empregou-se há mais de cinqüenta anos com o Siqueira.
Pela papelaria passaram muitos empregados através dos longos anos, tipógrafos, balconistas, entregadores,
etc. Major, como era conhecido, pela patente da Guarda Nacional, fundou o "Lábaro", jornal semanal de
grande tiragem. Distribuição gratuita. Todos os sábados era entregue de casa em casa o jornalzinho, que
trazia matérias sociais e políticas, estas com tendências oposicionistas. Criticava, entre outras coisas, a cidade
não ter mictório público. Criticava também a ponte da Rua São José, que fora feita com passeio estreito e
dentro do vão da rua, e ele achava que o passeio teria que ser fora do corre-mão da ponte.
Mantinha no jornal uma seção dos compadres que era muito engraçada, duas estampas de homens, vestidos à
antiga, conversando. Aí vinha o assunto de todas as semanas sobre os compadres que não perdoavam as
autoridades por terem construído uma ponte com aquele perigo. De certa feita, um compadre disse para o
outro: "veja compadre que nesta ponte sua comadre com seu afilhado quase morreram, se eu não chegasse na
horinha certa pra tirá-los dali". O outro retruca: "será que ninguém vê isto?"
Sobre o mictório vinha semanalmente, em versos, críticas variadas, mais ou menos como esta:
Sai o trem da estação
Sai o arroz dos arrozais
Sai o amor do coração
Só tu ó Mic não sais.
Com a virada da política, coube ao médico Dr. Philippe Balbi, da oposição ao Dr. Levindo, a chefia do
município e, nesta oportunidade, em 1931, foi nomeado para prefeito de Ubá o Major Joaquim de Siqueira.
Seu primeiro ato foi modificar a ponte da Rua São José, transferindo o passeio para fora do corremão,
evitando assim a passagem pela pista central. De fato ficou bem melhor e mais seguro para os pedestres.
O mictório foi também construído no Beco do Padilha, hoje Rua Coronel Carlos Brandão, quase em frente à
Oficina de Motores Elétricos dos Baião. Como se tornava difícil a conservação higiênica do tal mictório, o
mau odor e outras inconveniências levaram-no a ser depredado e mais tarde desativado. "Jornal de Ubá"
substituiu o "Lábaro", com a mesma linha jornalística até o falecimento do Major, em 1955.
TIP. e PAP. Siqueira, fundada em 1911, funciona até hoje na direção do nosso amigo Cícero Silveira,
guardando assim um passado glorioso de ter servido a muitas gerações escolares, inclusive a minha.
Parabéns Cícero Silveira, pela sua perseverança e amizade à Casa que você ajudou a erguer e que conserva
como parte de sua família.

CAPÍTULO IX
RECORDAR É VIVER

Quanta lembrança me leva em devaneio e saudade da minha rua, a Avenida Raul Soares! Saudades dos que
brincavam, brigavam ou jogavam bola. Saudade da vizinhança - Sr. Raul Porto e sua senhora, D. Anita, e os
filhos Paulo, Cora, Irene e Raul. Cora fora minha colega na escola Regina Godinho, bem como D. Zulmira
Marques, irmã de D. Anita; dos filhos do major Toté, Antônio, Zica, Tóte, Ari-Tiquinho e outros. Dos filhos
do major Tito César: Doro, Delorme, Nozinho, João, Paulo, Elza e Binga; dos filhos do Sr. Ulisses Brum
Lauriano: Urjas, Inez, Joel, luzi, Nadjr e outros; dos filhos de D. Neném Alvim: Geraldo, Paulo Maria José e
Lígia; do Zé Bonetti; do Zé Garida; do João Valone; dos filhos do Sr. Atos Albino: Dinah, Zilah e outros.
Dinah e Zilah cursaram a "Regina Godinho" no meu tempo. Dos filhos do Sr. Gastão Soares de Moura,
vizinho de frente na primeira casa, só me lembro do Izac Cabido Soares, hoje figura de alta projeção no Rio
de Janeiro. Dos filhos do Dr. Levindo, com destaque para o Ozanan, que deve ser da idade do Miguel. Dos
filhos de D. Josefina Marcato: o Zézinho, primogênito, Nieta, Ninita, Edinha e Eduardinha, de saudosa
memória. Dos filhos do Dr. Gorazil Brandão, com destaque ao José, entre outros. Os filhos do capitão João
Baptista Rodrigues: Zezinho, Bernadete, Célio, Paulo e Lourdes. O Umberto Alpino, o José Lacerda, o João
Lopes Quatorze Voltas, o José Cabreiro, o Sílvio Catette Braga, o Otávio Dutra de Meireles. Dos filhos do
Genaro Crispi, com destaque para o Chiquito; dos filhos de Antônio Crispi; dos filhos do Nicolau Stoduto:
Emília, Alvina e Capitão; dos filhos do Affonso De Filippo: Gesualda, Tonico, Ivo, Xulipa e outros.
Aos que se foram o meu preito de saudade e aos que vivem o meu fraternal abraço.

***
Tio Tanus, apesar da idade, continuava a mascatear pelas redondezas de Ubá. Adquirira um cavalo que
deixava no sítio do Sr. Titi e vinha a pé com a mochila vazia.
Sr. Titi morava pertinho da cidade, mais ou menos a uns três quilômetros. Às segundas-feiras, lá ia o tio
Tanus carregando seu pesado fardo ao encontro do cavalo para mais uma jornada de trabalho. Muita fibra e
disposição tinha o velho tio. As cartas que vinham do filho Caram informavam sobre a situação da "Terra" e
de seus parentes, principalmente da pequena Zakie, sua irmã, que nascera na ausência do pai e já estava
andando e pediam que mandasse dinheiro. Era, portanto, mais penoso para nosso tio suportar essa vida de
mascateação com tantas atribulações na sua cabeça, mormente levando em conta sua idade avançada e,
apesar disto, era visto, muitas vezes, na estrada, carregando a mochila para descansar o cavalo, o que era
considerado sem a mínima lógica; entretanto era demonstração de um bondoso coração.
Maria, como especialista em camisas e pijamas, não deixava escapar oportunidade de fazer costuras
diferentes. Muito tempo costurou gravatas para a fábrica do Sr. Miguel Jorge. Trabalhava em casa. As
gravatas vinham para ela cortadas com seus respectivos forros e voltavam armadas e passadas, prontas para a
embalagem. Fazia serão quase constantemente para dar conta da tarefa. Nesses serões, é claro, eu estava
sempre presente, sob os auspícios do bom café de D. Saide e o aconchego amigo da família Samôr.

"Quem passou pela vida em branca nuvem;


E em plácido repouso adormeceu;
Quem não sentiu o frio da desgraça;
Quem passou pela vida e não sofreu;
Foi espectro de homem, não foi homem;
Só passou pela vida e não viveu"

Francisco Otaviano.

***

Os nossos negócios foram caindo, caindo,... até que o inevitável aconteceu. Papai, sentindo que não havia
mais recursos para continuar, resolveu, certo dia de agosto de 1935, o encerramento definitivo da "A
Imperial", que de majestosa só ficou o nome e a decepção. Jorge já se acostumara à vida de comércio
ambulante numa luta árdua, já com Edson e Olguita, dois filhos que lhe davam muita felicidade, felicidade
esta empanada pela adversidade que teimosamente nos invadia no campo comercial. Não sei precisar quantas
lágrimas foram derramadas no silêncio do seu cotidiano, pois Jorge, sempre muito sensível, amava, como já
disse, muito a seus irmãos. Sempre fora bom filho e neste transe teve, como eu, sentimento de culpa, da qual
nunca foi culpado.
MAKTUB, estava escrito... Nesta vida ninguém é dono de seu destino, como dizia o Sr. José Féres Ralbune
ao nos confortar. Dizia: "Meu filho: quem fala que sabe, sabe nada; quem fala que sabe, sabe caramba". Essa
expressão, simples e filosófica, bem define que a criatura humana é joguete do destino. Esta frase eu a
conservo até hoje com muita ternura. Os maus amigos diziam que não soubemos conservar o que o velho pai
adquirira através de anos. Entretanto, éramos os mesmos que poucos anos atrás mantínhamos uma casa
comercial em franco progresso, no largo São José...
Na vida tudo é assim: Tirano é quem perde a guerra. Herói é aquele que a vence, mesmo que haja inversão de
valores. É muito constrangedor e ao mesmo tempo desagradável para um respeitável e acreditado
comerciante, como foi o papai através de tanto trabalho, ter seu crédito comercial abalado, pois, o comércio e
as instituições econômicas não têm alma, não levam em conta um passado honroso nem tampouco a
credibilidade que o cidadão traz como bagagem a vida toda. Levam em conta somente o número de sua conta
bancária e o que ele possui de concreto. Lamentavelmente, este conceito vigora até nossos dias. Esse desastre
comercial, apesar da tristeza, não abalou a estrutura da família Jacob. Continuamos unidos, pais e filhos,
sofrendo os dissabores da derrota. Todavia, de todos os escombros sempre se salva alguma coisa preciosa, ou
seja, a amizade inconteste e o apoio de viajantes que nos confortavam com amizade e respeito, dos quais,
entre outros, o Sr. Mário Novaes, Carlos Moreira e Elias Accar, este último morando em Ubá desde 1930,
residente à Rua Monsenhor Paiva Campos, com sua esposa D. Filomena e sua dileta filha Many.
Como sua passagem era invariavelmente pela Avenida Raul Soares, fazia sua parada em casa para um "bate-
papo" saudável e cheio de esperanças em dias melhores que o Sr. Elias preconizava para nós; às vezes jogava
uma "bastra" de "mano" com papai, nos dias de folga. E a nossa amizade com o Sr. Elias Accar perdurou a
vida toda, felizmente.

CAPÍTULO X
A HORA DA PARTIDA

Andei perambulando, muito sem graça, pelas ruas de Ubá, fugindo muitas vezes de alguns conhecidos,
evitando desta forma qualquer assunto que se referisse aos nossos negócios e o porquê do fracasso. Estava
como um peixe fora d'água; entretanto, com o passar dos dias, a situação melhorava para mim que,
resignado, já estava aceitando este estado de coisas quase como normal.
Encontrei guarida e conforto na pessoa do amigo Adauto Horta que, já cego das duas vistas, vendia loterias,
sempre em companhia do amigo Geraldo Alemão, rapaz abnegado, amigo e companheiro do Adauto desde o
princípio de sua desdita ao ficar completamente cego. Com Adauto e Geraldo integrei-me em sua companhia
e era quase diário encontrarmo-nos no Bar do Ponto ou no Bar Glória e juntos formamos o "Bolo Esportivo",
um jogo semanal baseado no futebol do Rio, dos jogos de fins-de-semana.
Essa nova atividade dava para tirar uns trocados, ou seja, para o cigarro e cafezinho ou pouco mais. Escrevi
para o Jorge Samôr, no Rio, que me mandasse algumas dúzias de gravatas de sua própria fabricação,
deixando a escolha a critério dele. Dias depois recebo pelo correio seis dúzias de gravatas sortidas e muito
bonitas, as quais entreguei ao Adauto e Geraldo para vender. Foi de muita valia. As gravatas eram vendidas
com muita facilidade e o lucro era dividido sempre com a maior parte para o Adauto. Afinal era ele o
vendedor e dono do negócio. Nesta ocasião tive o conforto também do prezado amigo e companheiro de
muitas jornadas, o Joviano Pinto, que não podendo se estabelecer, praticava seu ofício de barbeiro a
domicílio e muitas vezes eu me servi do seu trabalho em casa, sem que ao menos aceitasse receber uma única
vez.
Do dileto amigo José Martins Silveira, recebi com muito agrado os meus melhores encômios e apoio moral,
bem assim do amigo "Tino", João Carneiro Filho, que teve palavras carinhosas e encorajadoras, que muito
me sensibilizaram e, em retribuição a esses amigos, o meu eterno reconhecimento.
Miguel não se deu bem com as viagens e, com seu espírito aventureiro, foi para o Rio, convencido de que na
Capital estaria seu futuro. João, diante das circunstâncias, já com dezessete anos, aceitou convite da "A
Brasileira", de Cataguases, por indicação do Amaury Antônio Mauad, nosso prezado amigo que militou no
comércio de Ubá e, por longos anos, fora o balconista número 1 da "Casa Aurora", casa comercial do Sr.
Elias Antonio Cheuhen.
João, como era esperado, agradou muito ao proprietário da casa do Sr. Antonio Gomes, o qual, tempos
depois, fiquei conhecendo, bem assim seus dois filhos, também auxiliares na loja: Silvio e Atheniense, gente
simples e boa. Semanalmente João vinha a Ubá passar o domingo e voltava segunda-feira, até que numa
dessas viagens, vindo de carona num carro, sofreu um pequeno acidente prejudicando-lhe as costelas do lado
esquerdo. O médico na ocasião, diante da chapa de Raio X, tranquilizou-nos: "Não houve fratura".
Maria me animava muito, entretanto não tínhamos um plano de vida em vista. Precisava de capital, o que era
difícil, principalmente naquelas circunstâncias. As noites eram, como de costume, para as bastras, sempre no
mesmo rodízio: Jorge Sallum, Mansur, Sr. Miguel e Antônio Miguel em nossa casa.
Aos poucos nossos pais foram se recuperando do abalo causado pelo nosso prejuízo e foram se adaptando à
nova vida, ou seja, do começo de vida. Difícil, porque é mais fácil não ter, do que ter e perder.
O importante, porém, como já disse, foi a conservação da unidade familiar na plenitude da paz e harmonia.
João, já recuperado da costela, após alguns dias de descanso, foi instado a não voltar, a conselho dos pais e
do próprio médico, que lhe prescreveu repouso e algumas dietas. Papai conseguiu liquidar todas as dívidas
que ainda persistiam. Lembro-me bem da última duplicata resgatada, no valor de três contos e duzentos mil
réis, importância esta correspondente à venda da máquina registradora no valor de três contos e quinhentos
mil réis, adquirida pelo então comerciante, o Sr. José Chartuni, de Tocantins.
Desta forma, sobrou para nós, além da casa própria, um pequeno estoque de tecidos, calçados e armarinho,
que não dava para continuar com a loja aberta totalmente, a qual fora diminuída para duas portas, sobrando
duas para mais um quarto. A meninada estava crescendo. Miguel, de vez em quando vinha a Ubá e
regressava depois para o Rio. Já estava com quase vinte anos, João dezessete; Ibrahim, quatorze; Tufy, doze;
Nacib, dez; Eduardo, seis e eu encabeçando a turma com vinte e quatro anos, como um náufrago sem bússola
e ainda completamente atordoado. Jorge tinha sua família e vida própria.
E assim, o restante dos meses que precediam o Ano Novo de 1936 passaram-se neste vai-e-vem à Praça
Guido, com Adauto e Geraldo Alemão, Joviano Pinto, Clube do Aymorés, onde tinha amigos como Olegário
Filgueiras, Juca Machado, um dos melhores "center halfs" da região e jogava no Aymorés. Tinha um
aposento contíguo ao Clube, era solteiro e não tinha família em Ubá, razão pela qual o presidente "Giggi" -
Luiz Fuzaro - lhe concedera essa facilidade porque, além de jogador do Aymorés, o Juca tomava conta do
jogo (pôquer, etc.) e administrava o Departamento Esportivo do Clube. Havia também ping-pong (tênis de
mesa), mas no pôquer é que se concentrava a maior parte dos sócios. Havia várias mesas e vários preços de
cacifes. O Juca era encarregado das fichas. Quase sempre o jogo era feito entre amigos, na época o Chicri, o
Amaury (barba rala), Zezinho Brando, José Silveira, Tufy Felício, Olegário Filgueiras, Enéas, estudante da
Escola de Farmácia e Odontologia, e Abelardo, o Tonico De Fellipo, Floro Esteves, o "Coronel" Domiciano
Carneiro Filho, meu primeiro professor na arte de jogar pôquer, e muitos outros.
Jorge Samôr, ao chegar a Ubá, em suas visitas costumeiras de trinta dias, era alvo de muitas manifestações
dos amigos, inclusive dos nossos pais que o tinham como membro de nossa própria família.
Jorge Samôr também era fatalista. O que tem de acontecer acontece. Está escrito! Dizia sempre. Conversava
muito com ele e tínhamos algumas idéias análogas, razão pela qual éramos amigos. Aproveitei sua estada em
Ubá para lhe pagar a nota das gravatas e pedi nova remessa que foi enviada logo que regressou ao Rio. Desta
forma o Adauto ficaria novamente abastecido do produto. Quanto à idéia da família de se transferir para o
Rio que, no dizer do mano Miguel, era o ideal, o Jorge Samôr não disse não e nem sim. O argumento do
Miguel era de que o campo era muito maior e a rapaziada iria, por certo, encontrar melhor oportunidade.
Entretanto Jorge Samôr não nos animou a mudar. Sei lá, ele tinha suas razões, embora não manifestasse.
Os dias foram se passando e o ano de 1936 quase chegando ao meio, sem a menor perspectiva, quando
chegou uma carta do Miguel informando que, de acordo com os entendimentos verbais conosco, em Ubá,
estava providenciando uma casa de moradia e voltaria ao assunto. Essa diligência do Miguel foi muito boa,
iria abrir para nós um novo horizonte, amplo e de muita esperança.

***

"Quem parte, parte chorando,


Quem fica morre de dor"

E assim chegou o dia fatal. Mudança providenciada e o dia da partida chegou, com os primeiros raios da
aurora inundando de luz aquela manhã fresca de agosto. Entretanto, para mim era um dia triste, de uma
tristeza sem adjetivos, sem palavras para descrever e sim sentir. A família iria pela E. Ferro Leopoldina e no
caminhão do Sr. Raymundo Collares, com a mudança, iríamos o Ibrahim e eu.
Maria não queria me ver partir. Despedimo-nos na véspera, à noite, no jardim. Sentamo-nos num banco em
frente à Igreja e por muito tempo nossa despedida entre lágrimas fora de juras de amor eterno. Ela me
esperaria e eu prometi voltar para ela, e, assim, nossas lágrimas se confundiram em nossas faces, testemunhas
silenciosas de um grande amor.
Depois de uma longa e estafante viagem, pois o caminhão foi trocado em Juiz de Fora pela Empresa
Picorelli, com a qual o Sr. Raymundo Collares mantinha conexão, chegava a Caxias, Estado do Rio, fora da
hora permitida para passar para o Rio.
Houve demora demasiada em Paraibuna, divisa de Minas com o Estado do Rio, no Posto de Fiscalização.
Depois de longos argumentos sobre Nota Fiscal, etc., é que nosso caminhão foi liberado para a viagem, razão
pela qual houve essa demora. Diante das circunstâncias, e tendo o endereço de nossa residência nova, à Rua
Uranos, tomamos o subúrbio da Leopoldina, em Caxias. Ibrahim e eu chegamos a Olaria e nos dirigimos à
Rua Uranos, já alta hora da noite e eis que todos estavam no passeio, em frente a casa, à nossa espera, com
muita aflição, e deram graças a Deus à nossa chegada. O caminhão, pela previsão, deveria chegar bem mais
cedo do que o trem da Leopoldina que saíra de Ubá às 10:20 horas e chegava ao Rio, quando não atrasava, às
9 :30 horas da noite. São coisas da vida!!!

***
Instalados no Rio, nossa preocupação principal era a saúde do mano João, que manifestava estar acometido
de doença grave, tossindo muito e tornou-se inapetente, preocupando seriamente a incansável Mamãe que,
não medindo esforços, tudo fazia para atenuar a situação. Em Braz de Pina, logo ali acima da Penha, havia
um ambulatório para doenças pulmonares e para lá me dirigi levando o mano João para um exame com
médico especialista, o qual receitou para ele, além de medicamentos, aplicação dia sim, dia não, de
"Pneumotorax" no próprio laboratório.
Às primeiras aplicações eu o acompanhava, entretanto depois ele ia sozinho. Tomava o bonde na Rua
Uranos, quase em frente a nossa casa, e saltava em Braz de Pina. Trajeto simples. Ibrahim, conduzido pelo
Miguel, arranjara um emprego na cidade. Eu ainda sem saber o que fazer, atendi a um anúncio no jornal
sobre vendedores; assim tornei-me vendedor de "pickles". Visitava bares, restaurantes, armazéns e vendia
regularmente esse produto. Entretanto, não era meu ideal. Gostaria de trabalhar no ramo que eu conhecia:
tecidos, armarinhos e calçados.
"Um bom vendedor deve conhecer bem o que vende".
Assim eu pensava, assim eu queria.
Jorge, nosso mano querido, sempre preocupado conosco, escreveu uma carta propondo, em nome do
Nicolino Peluso, nosso amigo e muito amigo do Jorge, o comércio de frangos e ovos, que ele, Nicolino,
mandaria de Ubá sob minha administração no Rio, proposta esta que agradeci ao Sr. Nicolino Peluso, mas
recusava por completa incompatibilidade com o ramo de aves e ovos.
Louvável, muito louvável o esforço do mano Jorge!
Maria me escrevia sempre. Mantínhamos correspondência semanalmente, às vezes mais de uma carta por
semana. Dava-me notícias de Ubá, dos nossos amigos, de nossa gente... Mamãe sempre ficava satisfeita ao
receber carta de Maria e era imprescindível que eu a lesse para ela. Parece que ela deglutia palavra por
palavra, pois ela gostava muito de Maria e fazia muito gosto no casamento que um dia haveria de se realizar.
Pedia, nas respostas, que transmitisse a ela e seus pais o afeto que nutria por eles.
Cartas iam e cartas vinham trazendo e levando notícias, com juras de amor, afeto e saudade.

CAPÍTULO XI
O ENIGMA DE SIÁ MARIA

Certo dia o médico nos aconselhou, para melhor clima para o João, que procurássemos morar na região mais
alta, de preferência a "'Boca do Mato" e, desta forma, mudamos para Ouintino Bocaiúva, Rua Goiás, 1102.
Ouintino fica localizado numa região aprazível da Central do Brasil. Conseguimos uma casa com portas de
aço, loja e casa nos fundos. Na realidade era um armazém com algumas repartições nos fundos que, dividido,
dava uma moradia confortável e uma loja de frente, com o aluguel de duzentos mil réis.
Nunca ficamos conhecendo o proprietário da casa; conhecíamos somente o encarregado do aluguel, o
Oswaldo, filho do Sr. Manoel do açougue, nosso vizinho. Se há alguém neste mundo que mereça honras de
gratidão, essas eu as transfiro ao Oswaldo, moço simples e amável que nunca nos preocupou com o aluguel,
muitas vezes em atraso.
Miguel era vendedor pracista, Ibrahim, colocado na cidade, transferiu-se para o Meyer, como balconista, bem
mais próximo a Ouintino podendo, desta forma, almoçar em casa. João fazia aplicação de Pneumatorax no
Posto de Meyer e quase sempre eu tinha que ir buscá-lo. Mamãe ficava muito aflita com a demora dele, por
causa do almoço, e lá ia eu dar de nariz no posto fechado e o mano João num bar deliciando-se com um
refrigerante em companhia de uma moça bonita, também colega de doença e de posto. Importante, porém,
que, ao me ver, largava tudo e vinha comigo; nunca teve alteração ou rebeldia.
Reconhecia seu erro calado e talvez fosse até grato comigo por não lhe ter admoestado e nem censurado. Na
realidade ele tinha muita atração para o sexo oposto.
Em Ouintino fomos alvos de simpatias dos vizinhos, com os quais mantivemos amizade. Era o Sr. Manoel do
Açougue, seus filhos Oswaldo e Rodrigo, este exímio "center half" e que mais tarde brilhou no Bangu
Esporte Club. O Sr. Jacob Danielian, armênio, exercia a profissão de alfaiate, sua mulher e dois filhos, um
deles se chamava Daniel. O Sr. Assad, libanês, comerciante, solteiro, morava sozinho nos fundos da loja. O
Assad tinha a peculiaridade de deixar a loja e sair até lá em casa para bater um papo. Dizia, ao lhe perguntar
pelo perigo de deixar a loja sem vigia: "Quintina morte", nesta hora ninguém passa por aqui. Realmente a não
ser a chegada dos trens, quando dele saltavam três ou quatro pessoas, nada mais tinha de movimento durante
o dia. Entre o almoço e o jantar, só se via o Sr. Mussi passar pelo açougue e levar o Sr. Manoel para um jogo
de dominó no Bar do Gil.
O Sr. Mussi era um homem de quarenta e tantos anos, sadio, forte de corpo, mas era surdo. Dizia: "Eu falo e
vocês escutam." Morava na Rua Vital, bem próximo à nossa residência. Era viúvo e tinha dois filhos: Elias e
Adyr que, com uma tia materna, viviam juntos.
Na esquina da Rua Vital era o armazém de secos e molhados do Sr. Felippe, libanês, com três filhos, dois
meninos e uma menina de seus dezesseis anos mais ou menos; era morena e muito bonita e se fazia de babá
para seus irmãos menores. Portanto, da esquina da Rua Vital até o Bar do Sr. Gil, formávamos um quarteirão
de moradores até a Rua Columbia, com açougue, alfaiataria, casa de móveis, loja de armarinho e bar. Éramos
visitados pelo Assad diariamente, bem assim um patrício chamado Ibrahim, que trabalhava como ambulante,
vendia à prestação à base da confiança. Não havia, como hoje, os crediários e o Serviço de Proteção ao
Crédito (S.P.C.). Também era muito assídua a presença lá em casa do Sr. lussef Bestane, libanês já velho,
sessenta anos mais ou menos, que vivia sozinho. Homem simples, vendedor ambulante, sem grandes
empenhos. Sua situação econômica estava boa relativamente.
O Sr. Bestane era conhecido como BU-BARKÊT. Certo dia, estando o Ibrahim e o Bestane em visita à noite
e conversa vai, conversa vem, papai contou a estória do BUBARKÊT, estória esta que se compara mais ou
menos com a do Pedro Malazarte do nosso folclore. A estória agradou tanto que todas as noites ele pedia
para contá-la de novo, o que papai, contente, repetia com certa alteração para agradar ao velho. Entretanto,
papai, desde aquele primeiro dia de estória, perdera seu verdadeiro nome. O velho entrava, mesmo de dia,
casa à dentro chamando: Cadê o Bu-Barkêt. Daí o cognome do velho Bestane, de Bu-Barkêt.
Gente simples e boa, graças a Deus!

***

A minha atividade como vendedor de "pickles" durou pouco, nem comissão recebi das últimas vendas. Não
era produtivo o negócio, pela grande concorrência. Entretanto, já em Ouintino há quase um mês, resolvi
visitar a Fábrica de Calçados Luzo, nossos fornecedores de calçados. Em lá chegando, fui recebido pelo Sr.
Manoel Gonçalves, chefe da firma S. Gonçalves & Irmão, com o maior carinho. Ao informar-lhe de minhas
pretensões para pracista no Rio de Janeiro, o Sr. Manoel me disse que não tinha a menor dúvida em me dar a
representação, entretanto dependia do atual vendedor em exercício, o Sr. Carlos Bittencourt, voltar às suas
atividades de viajante no Norte do país, interrompidas pela morte de sua mulher."Contudo, fico muito
satisfeito em poder atendê-lo", disse o Sr. Manoel, "principalmente porque sua firma em Ubá foi muito
correta conosco. Houve atraso, porém, houve muita honestidade".
"Pode aguardar uma resposta para breve", disse-me ele ao despedir. Confesso que saí da fábrica muito
satisfeito da vida, principalmente com o reconhecimento ao nosso pai, que não aceitara fazer concordata, a
conselho de um advogado amigo que lhe garantira o direito de concordata. Valeu, Sr. Jacob! Valeu muito!
Dias depois de minha visita a Luzo, vejo no jornal o seguinte anúncio:

Precisa-se que tenha conhecimento de


Armarinho e Artigos para Farmácia.
VENDEDOR
Apresentar-se à Rua da Conceição, 37, Sobrado
- Horário Comercial.

No dia seguinte, às 8:00 horas, lá estava eu no endereço acima. Fui recebido pelo dono do estabelecimento.
Era uma sala grande com estoque variado de armarinho, etc, e o escritório junto. Fui recebido pelo chefe da
firma, Sr. M. Pimentel, que de pronto me atendeu. Nesta primeira entrevista deu para perceber a grandeza de
alma do Sr. Pimentel que, mesmo sabendo que eu era do interior e desconhecia completamente a zona que
iria percorrer, teve confiança na minha afirmação de que isto não seria para mim empecilho, porque dentro
em breve já estaria apto para o trabalho, como de fato o foi.
Meu contrato de trabalho foi verbal. Comissão de 5% nas vendas e mais quarenta e cinco mil réis de ajuda de
custo. Estava já no terceiro mês e a situação começou a piorar para a firma. Isto já estava nas minhas
previsões quando fiz boas vendas de galochas da marca "Hevea" e o Sr. Pimentel não contava com o
bloqueio de seu crédito. A fábrica não lhe mandava o pedido, deixando os fregueses em falta e eu, que
contava com as comissões, fiquei desconcertado e muito mais preocupado com o Sr. Pimentel, homem bom,
chefe de família, carinhoso com o filho doente, o qual fiquei conhecendo porque residia no próprio local de
trabalho. A casa era grande e bem dividida. E assim os negócios do Sr. Pimentel foram caindo por falta
absoluta de crédito. Certo dia, recebo um telegrama com os seguintes dizeres: "Favor comparecer nosso
escritório assunto interesse. Luzo"
Fui correndo, na certeza de ter conseguido a representação, quando em lá chegando ficou confirmada minha
admissão no quadro de vendedores, para toda a Zona Norte do Rio, Estado do Rio, inclusive Niterói. Tive a
felicidade de conhecer Carlos Bittencourt. que pretendia voltar a viajar para o Norte e com o qual mantive
amizade por longos anos, inclusive seus familiares residentes em Nilópolis.
Diante disto, procurei o Sr. M. Pimentel para informar do ocorrido e agradecer-lhe a confiança e amizade que
ele me dispensara naqueles três meses em que estivemos juntos, prometendo-lhe, a seu pedido, sempre que
fosse possível, aparecer lá para uma conversa informal.
Aprendi muito com o Sr. Pimentel, homem honrado e amoroso. Tinha um grande coração e sempre voltado
para o bem.
Como vendedor de calçados, tive o grato ensejo de conhecer o Sr. Tanius Richa que negociava com calçados
à Rua Senhor dos Passos, se transferido pouco tempo depois para a Rua Regente Feijó, entre o Senhor dos
Passos e Alfândega. Era um casarão de porta e janela na frente e vários cômodos nos fundos, sendo que um
deles era moradia do Richa e o restante depósito de calçados.
O Sr. Richa tinha família, mulher e quatro filhos: Odete, Fued, Adib e Hélio. Os filhos moravam com a mãe
em Ipanema e trabalhavam com o pai que, por incompatibilidade de gênio, era separado da esposa. Aos
sábados dava uma ajuda nas vendas, sempre mais ativas no fim-de-semana. Fiquei amigo da família,
entretanto não tive oportunidade de conhecer a Sra. Richa, lamentavelmente.
Infalivelmente aos domingos. éramos visitados pelo nosso amigo Jorge Samôr que vinha de trem ou mesmo
de bonde. O bonde passava na Avenida Suburbana, com ponto de parada na Rua Vital. Andava-se pouco e
logo se alcançava a Rua Goiás. Já o trem de ferro, era só subir a passarela e descer, nossa casa ficava em
frente à estação. E essas visitas nos davam muito prazer. Mansur também nunca deixou de nos visitar quando
ia ao Rio fazer compras. Era uma grande satisfação que nos dava o compadre e amigo Mansur Mauad,
quando chegava trazendo notícias dos amigos, do Jorge, do tio Tanus, enfim, de todos os que nos eram caros.
Quase todos os meses era essa alegria renovada, até que, de tanto martelar para voltarmos para Ubá, nossos
pais prometeram estudar a proposta e dariam a resposta mais tarde.
Mantínhamos correspondência com o Sr. Ulisses Brum, nosso amigo e vizinho em Ubá, o qual fora
incumbido de vender a casa. O preço dado era de 10:000$000 (dez contos de réis).
Certo dia, recebemos uma carta do Sr. Ulisses informando que só achou quem comprasse a casa por
9:000$000 (nove contos de réis). Diante disto, papai fez uma consulta a nós sobre a venda. Mamãe se absteve
de falar, entretanto, eu, talvez num momento de boa inspiração, disse não! Argumentei na ocasião que os
nove contos de réis, chegando a nossas mãos, facilitaria o desejo de uma roupa nova para cada um e o
restante não daria para movimentar uma loja, razão pela qual discordava, dizendo: "Vamos fazer de contas
que não temos a casa e temos que sobreviver sem ela". Foi sorte, ou Deus iluminou-nos. Concordamos em
não vender mais a casa, por preço nenhum. Assim sendo, escrevemos ao Sr. Ulisses sobre nossa deliberação,
com nosso agradecimento pelo esforço em nos servir.
João sentia melhoras. Seu estado de saúde parecia bom e queria trabalhar. Certo dia empregou-se na loja do
Meyer, onde o Ibrahim trabalhava. Não demorou no emprego. Sua saúde ainda não lhe permitia esforço de
espécie alguma. Mamãe, de tanto ser batalhadora, se cansou. Era a cozinha, a roupa lavada, a luta com a
doença do mano, a saudade de Ubá, de sua casa! Chorava às vezes convulsivamente, mas muito discreta para
que o mano João não a visse.
João era muito sensível e poderia até prejudicá-lo. Nesta faina do dia-a-dia desta Mulher, que não tinha
descanso nem aos domingos, não fosse a fé em Deus que ela nunca abandonara, estaria em completo
desespero. Cansada, adormeceu e sonhou. Sonho bom! Sonhou que sua sogra, vovó Takla, que Deus a tenha,
lhe dissera: "Paciência, muita paciência. Você vai voltar para sua casa e sentar à sombra da mangueira. Tenha
fé, Deus não vai desamparar você", ALA IKUN-MAHIK, que traduzido é: "Deus esteja com você!
De manhã, bem cedo, mamãe me contou o sonho, que na realidade não fora um sonho. Mamãe se achava
acordada. O cansaço acabou completamente. Esse sonho, ou aviso celestial, foi um bálsamo benfazejo que
lhe restaurou as forças do corpo e da mente. Naquele dia D. Sarah só ficou pensando no sonho, ruminando
palavra por palavra ditas naquele transe. Quando à tarde, sentada na porta da rua, à espera dos meninos para
o jantar, surge-lhe uma mulher de cor preta, já idosa, roupas brancas e lenço na cabeça, carregando uma
pequena trouxa. "Boa Tarde!" "Boa tarde", responde mamãe. "A senhora está precisando de empregada".
Não foi uma pergunta e sim uma afirmação. Mamãe lhe responde que sim, "mas para quem a senhora quer
emprego?" "Para mim" "Vamos sentar, entra, faz o favor". Mamãe, com receio de que empregada no Rio
fosse caro, faz-lhe a seguinte pergunta: "Quanto a senhora tem costume de ganhar?" "Não senhora; eu nunca
fui empregada e quanto ao ordenado, a senhora não se preocupe, depois a gente acerta. “Chamo-me Maria”.
"E eu, Sarah", responde mamãe. Com esta simples apresentação, D. Maria foi conduzida para dentro. Não
quis jantar. Mamãe arrumou-lhe a cama que ficava num quarto pequeno, porém confortável. D. Maria deitou-
se muito cedo, antes, porém, disse que só podia ficar até 14 de fevereiro. Estávamos em novembro. Esses
dizeres da velha não nos preocuparam. Caíram no vazio. "Onde já se viu uma velha destas entender de
calendário!"
No dia seguinte, pela manhã, já feito o café, a Siá Maria foi apresentada à turma. Este é o Elias, o Miguel, o
João, o Ibrahim, o Tufy, o Nacib, o Eduardo. À hora de fazer o almoço e como mamãe iria fazer charuto de
repolho nesse dia, disse-lhe: "Siá Maria, o almoço hoje é árabe". Ao que ela retrucou: "Faz favor de sentar e
descansar, que eu faço o almoço". Mamãe, muito surpresa com os dizeres da velha, diz: "Siá Maria, a
senhora nunca foi empregada e como sabe cozinhar comida de "turco"?" "Isso para nós é coisa comum",
responde a velha e, com toque sutil, no ombro de mamãe com mão espalmada, ordena: "Vá descansar, fique
sossegada!" Mamãe, apesar de ser enérgica e determinada em todas as ocasiões, recebeu aquela intimação
com obediência de filha com a mãe. Naquele momento não era a empregada que falava, pois o magnetismo
pessoal da velha era tanto que mamãe obedeceu sem ao menos ter tido a menor reação ao convite de Siá
Maria. Vá descansar, eu cuido de tudo. Mamãe ainda perplexa com o acontecido e sem forças para reagir, ao
ver-me entrar em casa, disse-me: "Elias, essa mulher - referindo-se à Siá Maria - está fazendo o almoço e não
quer que eu vá à cozinha. Mas, pelo que vi da porta, está fazendo o charuto como eu faço, ou talvez melhor.
Incrível, porque ela me disse que nunca foi empregada. Converse com ela"
Ao dirigir-me à cozinha e após o "Bom dia" de praxe a velha Siá Maria parecia que adivinhava meu
pensamento ao me responder sem o menor embaraço às minhas perguntas.
"Sô Elias, nós, de onde viemos, essas comidas são muito comuns para nós" (nunca se referia na primeira
pessoa). "Mas, Siá Maria, de onde é que a senhora veio?" "De muito longe daqui. O senhor não vai
entender". "Mas como? Entendo sim, Siá Maria. Da Europa, da Ásia, da África, de onde afinal?" Ela ria
deixando à mostra as gengivas muito vermelhas, e carinhosamente me dava um tapinha no ombro. Não sei
porque, mas o assunto ficava sem definição, sem contudo criar dissabores, ao contrário, inundava a gente de
bem-estar e confiança. Certo dia, já quase passados trinta dias, num domingo, Siá Maria disse: "De onde nós
viemos não tem preto nem branco. Essa pele que o senhor vê, não existe. Nós temos tanta claridade que é
preciso uma coisa qualquer para passar no rosto, para não ser tão claro"
Palavras de louca, mas Siá Maria era lúcida e muito segura de seus atos. Mamãe, naquela oportunidade, teve
um descanso quase total. Siá Maria cozinhava, lavava roupa e aos sábados lavava a área cimentada dos
fundos da casa e para isto mamãe comprara no armazém do Sr. Filippe um par de tamancos a fim de
proteger-lhe os pés da umidade. E assim a presença da velha Síá Maria criou entre nós e ela verdadeira
amizade, muito além de patrões e empregados. Já estávamos considerando-a membro da nossa família,
quando, à véspera do dia aprazado, ou seja, 14 de fevereiro, Siá Maria deu o aviso: Amanhã é dia de ir
embora. Tristeza geral! Todos nós movidos pelo mesmo sentimento de amizade à velha Siá Maria, agora não
tanto pelo serviço dela, mas sim pelo apego carinhoso a uma criatura que só bem nos trouxe, ficamos
pesarosos com a separação. Entretanto, havia mais um dia para persuadi-la de desistir do seu intento. Essa
esperança se desvaneceu quando no dia seguinte, o dia fatal para a partida, Siá Maria, com todo afeto que lhe
era peculiar, disse: "Não podemos ficar mais!" Papai e mamãe argumentaram: "A senhora não tem família; ir
para onde? Nós aqui somos sua família". E ela com toda a doçura nas palavras: "Não podemos. Meu dia
chegou". Apenas esperou que todos chegassem para sua despedida. Recusou qualquer tipo de pagamento ou
recompensa, até o tamanco ela o deixou na área de serviço. Não quis aceitar pano para o vestido, da pequena
loja que mantínhamos e até recusou dinheiro para a condução. Mamãe e eu argumentamos que para qualquer
lugar que fosse, teria necessidade de condução. Entretanto, Siá Maria continuava irredutível. E assim, com
sorriso nos lábios e muito amor no coração, a mesma hora de sua chegada era a de sua partida. Siá Maria
despediu-se de todos, um por um, pronunciando os respectivos nomes sem claudicar: Elias, Miguel, João,
Ibrahim, Tufy, Nacib, Eduardo, com o mais afetivo dos abraços e saiu. Todos nós ficamos tomados de torpor
quando mamãe, acordando de um transe hipnótico, vindo tão de repente, fala para mim: "Elias, vai atrás dela.
É uma vergonha para nós deixar Siá Maria sair sem levar nada daqui de casa". Corri imediatamente para a
porta para alcançar Siá Maria que, com seus passos lentos caminhava a uns trinta metros, já quase chegando
à leiteria do Sr. Gil. Portanto a possibilidade de alcançá-la antes da esquina da Rua Colúmbia era muito
grande. Apressei-me o máximo e já estava próximo a ela quando chamei: "Siá Maria espere!" Neste
momento ela virava a esquina da rua Colúmbia. Virei também quase no calcanhar da velha e, para espanto e
surpresa, Siá Maria sumiu! Vale dizer que a Rua Colúmbia era completamente despovoada. Havia um muro
de mais de cem metros de um lado e outro; não havia, portanto, casa alguma nesse perímetro. Voltei desolado
e triste! Siá Maria não existe. Em casa todos me aguardavam e ante a minha explicação, ficaram sabendo que
convivemos com um ser sobrenatural, afável e amoroso!
Esse relato eu o faço como um episódio real da nossa vida, tendo como palco Ouintino Bocaiúva e o
testemunho dos que também o viveram: Miguel, Ibrahim, Tufy, Nacib e Eduardo. Lamentavelmente nosso
pranteado irmão João partiu para a mansão dos justos e nossos queridos pais, os verdadeiros protagonistas
deste merecimento, há muito estão gozando de Deus a merecida Bem-Aventurança!

***

Mês de fevereiro, carnaval, alegria. A turma saía para Cascadura e Madureira para assistir o carnaval. João,
já mais disposto, manifestou vontade de ver o desfile dos Fenianos, Democratas e Tenentes do Diabo. Eram
os Clubes mais importantes da Capital e o desfile seria terça-feira, na Avenida Rio Branco. Fomos juntos. A
avenida, toda decorada com motivos de Momo, dava a sensação de viver num planeta diferente. João se
alegrou muito, principalmente com os blocos de foliões que se sucediam naquela onda de serpentinas e lança-
perfumes. Entretanto, na hora do desfile dos carros alegóricos, que pela ordem seria: os Fenianos, Tenentes e
Democratas, parece-me que prevalecia um sorteio, caiu um "toró" daqueles! Como estávamos próximos ao
Teatro Municipal, refugiamo-nos ali na sua parte inferior, onde cabiam centenas de pessoas, ali igualmente
abrigadas da forte chuva que estava caindo.
O carnaval de 1937 terminou ali para nós. Regressamos para Ouintino de bonde, mais de meia-noite, já com
o tempo melhorando. Pena, mas foi divertido!

***

A vida continuava naquele tranqüilo Ouintino Bocaiúva, sem maiores novidades, quando de uma de suas
costumeiras viagens, o compadre Mansur foi lá em casa e disse: "Compadre e comadre, vocês fazem parte de
minha família. Gostaria que vocês me ouvissem: Vamos voltar para Ubá. Sua casa está vazia, o inquilino a
desocupou e eu faço questão que vocês voltem, e podem contar comigo. Ante essas palavras, ditas mais pelo
coração, o amigo Mansur chorou. Ele era sensível e sua amizade era verdadeira. Tomados pelo ânimo e o
encorajamento do compadre, nossos pais resolveram voltar para Ubá, pelas mãos benfazejas do Mansur.
Diante desta deliberação, ficamos entendidos de que o Ibrahim, Miguel e eu ficaríamos no Rio. Tínhamos
nosso serviço e bem ou mal a gente estava tocando o barco. E assim fomos os três morar na Rua Nerval de
Gouvêa, em um quarto cedido pela irmã do Assad, senhora casada, com dois filhos, cuja casa era muito
grande e o aluguel de um quarto favorecia-lhe no planejamento financeiro. Ficamos, portanto, do outro lado
da linha férrea da Central, mas mesmo assim, muito perto dos amigos da Rua Goiás. A família voltando para
Ubá. Para mim foi de muita satisfação, afinal estava voltando para sua própria casa!
Começava a concretização do sonho de mamãe, quando vovó em sonho lhe dissera: "Você vai voltar para sua
casa". Ibrahim, tempos depois, saudoso da família, foi a Ubá e no regresso, poucos dias depois, foi tomado de
certo desânimo no seu emprego. Constatei que o mano Ibrahim, muito triste com a separação, o que era
natural, manifestava vontade de voltar para Ubá, o que de pronto concordei com ele e dei-lhe força neste
sentido. Dias depois era eu que já estava com saudades do companheiro e irmão que partia feliz para sua
cidade natal.
Miguel, pouco tempo depois, propôs que fôssemos morar no centro e diante de minha aquiescência, ficamos
morando num quarto na Av. Tomé de Souza, entre a Senhor dos Passos e Alfândega. Tempos depois,
conseguindo vaga para viajar, o mano Miguel pegou sua mala e lá se foi o companheiro de quarto e querido
irmão ser viajante da Fábrica de Calçados Luzo, para a Zona da Mata. Fiquei temporariamente sozinho,
saudoso dos pais, dos irmãos, mas com a certeza de que tudo estava correndo bem para todos, mormente pela
notícia que o Ibrahim trouxera de sua ida a Ubá, de que o mano Jorge estava estabelecido com armazém de
secos e molhados à Rua Nova, hoje 15 de Novembro, e que Tufy estava dando uma mãozinha no armazém.
De regresso de sua primeira viagem, o Miguel trouxe a alvissareira notícia de que o Ibrahim estava
trabalhando no armazém do Jorge, papai negociando em sua própria casa com duas portas abertas, de outras
duas fizera quarto, conforme já dito. Mamãe, feliz, porém saudosa do querido ausente que era eu, pedia a
Deus que nos reunisse novamente. Recebia cartas de Maria e também do nosso pessoal, cujas notícias sempre
boas eram para mim prenúncio de dias melhores.
Minha amizade com a família Richa se consolidava, era muito benquisto por todos. Às noites, quando não
saía para um passeio com o querido Jorge Samôr, entretinha-me ali na loja do Richa, onde numa mesinha e
quatro cadeiras sentavam os jogadores para um jogo de Sueca. Achava muito divertido o Teófilo, Abrão,
Jorge, Ibrahim e o Richa fazerem jogadas, cujo entusiasmo se media comparado ao final do jogo de Bastra.
Não jogava Sueca, não sei porque, não gostava, mas compartilhava do entusiasmo do Richa e seus parceiros
quando ganhavam uma partida.
Continuava morando na Av. Tomé de Souza quase sozinho num quarto de duas camas, pois o Miguel
continuava viajando. Certo dia, me deparo com o Paulo César que, embora estivesse estudando no Rio,
raramente nos víamos. Paulo estava apavorado com o Comício dos Integralistas, realizado dias antes na
Esplanada do Castelo, quando o Sr. Plínio Salgado, ameaçador e autoritário, proferira um dos maiores e mais
violentos discursos, encerrando com a frase bíblica: "Não ficará pedra sobre pedra". Paulo ficara tão
impressionado que resolveu abandonar a pensão perto do Largo da Lapa, principalmente porque essa pensão
abrigava um ninho de integralistas e, desta forma, a meu convite, ficou morando temporariamente comigo,
sem favor algum, pois o amigo Paulo César fora para mim um excelente companheiro na ausência do mano
Miguel.

***

Do reduto do Senhor dos Passos e Alfândega fiquei amigo de muitos rapazes. Fiquei conhecendo os filhos do
Sr. Antônio Nojaime, comerciante e industrial na Rua da Alfândega, dos quais destaco o Eduardo e o Nacib.
Abrão, que viera do interior, era primo dos Nojaime, rapaz alegre e bem humorado que também jogava a
Sueca de parceria com o velho Richa. Porém, Abrão não dava muita atenção ao jogo e, nestas circunstâncias,
o Richa perdia a partida, mas sem nunca deixar de exclamar: "Você não sabe trabalhar". Abrão ria e tudo
voltava ao normal quando chegava outro parceiro a quem o Abrão dava o lugar. Na Rua Senhor dos Passos,
além do prezado Jorge Samôr, também mantinha amizade com o Henrique Felippe, velho amigo e
companheiro de nossas serestas de Ubá. O Henrique era viajante da firma de calçados AREOSA, de
propriedade da firma J. Felippe & Irmãos, da qual era sócio. Entretanto, com o falecimento de um irmão,
assumiu a direção da fábrica. Jorge Samôr continuava com a fábrica de gravatas, que eram vendidas por ele
próprio. Encontrávamos-nos sempre ao jantar, no mesmo "Restaurante São Jorge", cujo dono tornou-se meu
camarada, porque certo dia ele me propôs que fizesse as refeições à base de "vale" e o pagamento seria
mensal, com desconto de 10%, o que equivalia à gorjeta do garçon. Aceitei a oferta, um tanto admirado e,
pelo que observei, era um sistema de prender o freguês que ele próprio inventara, somente para fregueses
escolhidos e como eu era amigo do Jorge Samôr, já se vê, portanto, o interesse do proprietário.
Fui cliente do Restaurante São Jorge por muitos meses e modéstia à parte, levei para o Restaurante alguns
amigos, entre os quais o Fuad Audi, moço educado e de bons princípios. Era guarda-livros da firma J. Issa &
Irmãos, na Rua da Alfândega. Todas as noites, exceto nos fins-de-semana, encontrávamo-nos para um bate-
papo e tomar um cafezinho na Praça Tiradentes.
No sábado à tarde, ele ia a São Pedro d'Aldeia, no Estado do Rio, ver a noiva e regressava na segunda-feira,
pela manhã. Como tínhamos muita afinidade, propôs-me ele, certo dia, de alugar um quarto de sociedade e
que fosse de mais conforto, pois tanto ele como eu não estávamos satisfeitos com as moradias. Eu,
principalmente, porque a minha senhoria admitira mais duas famílias no mesmo sobrado e o banheiro era
somente um para muita gente.
Daí, fomos morar juntos, num quarto na Rua dos Inválidos, pertinho da Polícia Central. Era um apartamento
de primeiro andar pertencente a um casal de portugueses, já em idade madura e sem filhos, do qual ocupamos
um quarto bem grande e arejado, com uma grande janela para a área, com direito ao café da manhã, ao preço
de 120$000 (cento e vinte mil réis), 60$000 para cada. Era morada de luxo, pois um quarto da Avenida
Thomé de Souza ou da Rua da Alfândega, onde o Fuad morava, custava no máximo 40$000 (quarenta mil
réis) e foi desta forma que eu e o amigo Fuad ficamos alguns meses companheiros, amigos e confidentes.
O ano de 1938 já ia quase ao meio, quando de uma das cartas de Ubá os manos afirmavam que tudo estava
bem e que precisavam de minha presença em Ubá, em virtude de novos negócios surgidos naqueles dias.
Tratava-se do seguinte: Maria vendo na "Folha do Povo" um anúncio que lhe chamara atenção,
imediatamente, levou o jornal lá em casa e mostrou-o à mamãe, lendo para ela:

Casa Comercial
Passa-se a loja "A Favorita", boa mercadoria e pelo custo real.
Tratar à Rua São José, 154.

Mamãe ficou entusiasmada ante a expectativa e coincidindo com a chegada do mano Jorge lá em casa, Maria
animou-o a ir conversar com o proprietário do estabelecimento, o Sr. Francisco Américo Fernandes, o nosso
amigo Chiquito, como era conhecido o nosso Chiquito Fernandes. D. Regina, sua esposa, era quem dirigia a
casa, pois "A Favorita" era uma casa de armarinho e tecidos finos e pelo motivo do Sr. Chiquito estar com a
saúde abalada, resolveu transferir o estabelecimento.
Dias depois, o balanço foi dado com a participação do Jorge, João e Ibrahim. Setenta e quatro contos de réis,
o montante da mercadoria, divididos em pagamentos de sete contos de réis, em promissórias mensais que
foram avalizadas pelo compadre Mansur. Desta forma, nascia uma nova e promissora expectativa.
Precisávamos, é certo, de reforço de estoque, o que era natural, mas tudo isso seria superado. Tratava-se
desta feita do sucessor de F. A. Fernandes, firma respeitável que nos tornaria bem à vontade com os
fornecedores, como ARP & Cia., Ernesto Matheis, Machine Cottons Ltda. e outras firmas que confiavam na
firma Jacob Ibrahim Elias, cujo passado foi de muito bom conceito, felizmente.
Diante de novas alterações em nossa vida, e sempre para melhor, informei ao amigo Fuad esta ocorrência.
Dias depois conseguimos um amigo para companheiro do Fuad, a quem deixei a minha cama patente como
legado. Acertei minhas obrigações com a Luzo e outros detalhes. Despedi dos amigos com um "até breve" e
parti para Ubá, feliz da vida, como uma "ave que volta ao ninho antigo depois de um longo e tenebroso
inverno".

CAPÍTULO XII
ALEGRIA E TRISTEZA

Assumi a direção da "A Favorita" com João e Ibrahim, procurando não desmerecer o conceito dos que em
nós confiavam. João sempre foi, como já disse, excelente balconista e os ventos favoráveis sopravam para
nós, embora lamentavelmente a saúde do mano deixasse muito a desejar. O médico receitava fortificantes,
porém carecia, sobretudo, de repouso que, segundo o médico, era o principal. Diante destas circunstâncias, o
mano teria que seguir determinações médicas e não era fácil, na época, convencê-lo a repousar. Queria
colaborar porque tudo o que a loja tinha era dívida. Mas a doença foi mais forte que sua vontade férrea e
dinâmica.
Já estávamos no ano de 1939, com a situação sempre para melhor, quando, a conselho médico, ele teve que ir
se tratar em Belo Horizonte. Havia muita esperança na capital mineira de se conseguir uma cura total em
virtude da existência de vários sanatórios para doenças pulmonares, aliada também ao clima propício. E lá se
foi o mano João para Belo Horizonte, em busca da saúde e felicidade que seria nossa também. E assim
ficamos desfalcados de um grande elemento para nossa atividade; todavia, o Ibrahim, mesmo cursando o Tiro
de Guerra, era um companheiro ideal e muito atuante. Tufy já estava colaborando também.
"A Favorita", Rua São José, 154 - Ubá -Boas propagandas, idéias felizes nas compras. Conseguimos muitas
especialidades no ramo de armarinho, principalmente em lãs em novelos e meadas de marca Santista e meias
de marca Rosita que conseguimos a R.P., refugo de primeira, que se vendia em abundância por se tratar de
preço reduzido em mais de 20%. Eu, toda semana, pessoalmente, saía de Ubá pela manhã e à tarde já estava
voltando com as meias. Esta loja era alugada das irmãs Citadino: D. Rosinha e Naninha, irmãs do Dodô, o
amigo Salvador Citadino, gente boa, sempre lembrada em minhas preces.
D. Rosina e Naninha eram vizinhas da direita, separadas apenas por uma parede. Mantivemos amizade
duradoura através dos anos e ainda a conservamos através da Estella, Pupu e Dedé, remanescentes da família
Citadino, a quem queremos o maior bem do mundo.
À esquerda era a casa e farmácia do amigo Clóvis Reis e sua família (Clovis, amigo de infância, fez seu
curso na Escola de Farmácia e Odontologia, diplomando-se em 1935). Logo em seguida era a residência do
amigo José Ramos Alvim e sua "Cicle Ramos"
Logo ali em frente era a residência das irmãs Freitas, filhas do Sr. Nelson de Freitas e mais adiante era a casa
do Sr. Ouintiliano Barbosa e sua família, composta de duas belas moças e um rapaz, o nosso querido Hélio
Mamão, grande taco da sinuca e, um pouco além, mesmo do lado fronteiriço à "A Favorita", era a residência
dos irmãos Lauria - Francisco e Raphael e sua numerosa prole. Do Sr. Rafael Lauria era maior o número de
moças e rapazes que abrilhantavam a Rua São José com sua contagiante alegria, de onde se emana o amigo e
contemporâneo na Escola Regina Godinho, Nazeas, o José Lauria, sempre irrequieto e amável.
O primeiro balanço já estava com indícios de progresso, as promissórias foram resgatadas em dia e desta
forma ficamos apenas com dívidas a vencer em duplicatas que, felizmente, eram pagas rigorosamente em dia.
A firma cresceu e cresceu bem, quando no ano de 1940, lá pro finalzinho, resolvi ter a minha própria loja.
Foi quando me ofereceram o fundo de negócios da firma dos Irmãos Laktin, Hamed e Alcino. Consistia em
tecidos finos, sedas, linho e algodão. Vagando uma casa na Rua São José, 328, onde morava o amigo Miguel
Jorge, procurei o seu proprietário, compadre de papai e mamãe, Sr. José Saud. O amigo Nasre prontamente
me cedeu a chave ao preço de 250$000 (duzentos e cinqüenta mil réis) mensais. Consistia em casa de
família, com entrada independente, loja com três portas e um grande quintal. Comprei tábuas já aparelhadas
no tamanho requerido pelo Camilo Samôr, o qual armou as prateleiras. O balcão foi conseguido de segunda
mão. Na lateral direita da loja já havia prateleira. Comprei brinquedos para o Natal, que se aproximava, e no
dia 23 de dezembro de 1940 inaugurou-se a "Casa Central" - Rua São José, 328 - Ubá - Tecidos, Armarinho,
Brinquedos. Tudo isto se deveu ao sucesso comercial da "A Favorita", proporcionando-me um impulso de
coragem e determinação. Há um provérbio chinês que diz mais ou menos assim: "Em vez de dar um peixe ao
necessitado, ensine-o a pescar". Baseado na confiança e no amparo da "A Favorita", fui em frente, na certeza
de que, se fosse preciso, tinha onde escorar, o que não foi preciso, felizmente. Contudo, pelo tempo afora
tenho que louvar a Deus a magnitude dos irmãos, que nunca, em época alguma, nenhum se negou a auxiliar o
outro em caso de necessidade.
20 de fevereiro de 1941. Depois de um curto noivado e em simples solenidade, com o altar armado em casa
do Sr. Miguel, tendo como padrinhos por parte do noivo, o Sr. Mansur e senhora e Jorge e Tebte Hatem e por
parte da noiva, Walter de Paula e Ninita Marcatto de Paula, Jorge Samôr e Maria Sallum, casamo-nos
finalmente, após quase onze anos de namoro, ausências e saudades.

Nosso casamento se deu com antecedência do carnaval, em três ou quatro dias, se não me engano, o que para
nós deve ter sido um carnaval mais alegre e colorido. A vida de casado corria feliz com muito trabalho na
loja e na costura. Maria se entregou de corpo e alma na atividade de costurar e excelente balconista que era,
seria, como foi, o prenúncio de prosperidade. Imaginem vocês, até a mobília de quarto e sala estavam por
pagar! Adquiri os móveis de fábrica dos Feinstein, ao preço de 2.400$000 (dois mil e quatrocentos mil réis),
divididos em doze duplicatas de 200$000 (duzentos mil réis) cada.
Tínhamos como vizinho à direita o Sr. Calixto Antônio, casado com Vivinha Ganime, com estabelecimento
de calçados, chapéus e tecidos finos, denominado "A Predileta" e, mais tarde, a Farmácia do amigo Gerardo
Brandão. À esquerda, a casa do Sr. Emílio Piotto, chefe de família numerosa e grande comerciante de fumo
em corda, cujo armazém era no fundo de sua casa, onde tinha também o fabrico de "Manôjo", um tipo de
fumo tamanho de dez a doze centímetros, prensado na folha do próprio fumo, dando-lhe aparência de
charuto; entretanto era um fumo especial e, se não engano, era patenteado. Logo adiante, no lado esquerdo,
"A Queimadora", do Sr. Antônio Hakim, com residência de família. Em frente à nossa casa era a Rua 15 de
Novembro e tinha na esquina o "Banco Hypotecário e Agrícola do Estado de Minas Gerais", em cujo sobrado
era a residência do Sr. Murta e sua numerosa família. Na outra esquina, era a "Fábrica de Enxovais e
Gravatas", de Paulo & Irmão, tendo na sua vizinhança a residência do Sr. João Brando, cujo quintal se
comunicava com a "Padaria e Confeitaria Brando", à Rua 15 de Novembro, quase esquina da Rua São José.
Mais tarde instalou-se o "Bar Brando", anexo à Padaria.
Do nosso lado direito, após a casa do Calixto, era o sobrado do Sr. Cordiano Côdo e também da família
Perillo. Na mesma Rua São José, ficava a residência dos amigos Antônio e Dendém Peixoto e seus filhos.
Os nossos negócios iam bem, felizmente. Continuava a viajar para Juiz de Fora, comprava meias para "A
Favorita" e para nós também, sempre indo e voltando no mesmo dia. Em épocas chuvosas viajava pelo
"Expressinho", um trem da Leopoldina, que saía de Ubá às 6:00 horas da manhã e regressava de Juiz de Fora
às 15:00 horas. Sendo a previsão da chegada em Juiz de Fora às 12:00 horas, havia tempo de sobra para
efetivar os negócios pretendidos.
A "Casa Central" continuava a ganhar prestígio e meu crédito já estava bom. Comecei a comprar de grandes
firmas do Rio e São Paulo e pagava pontualmente e desta forma dividia a mercadoria com "A Favorita" e esta
comigo, mantendo uma escora recíproca, espécie de "uma mão lava outra". Em 1942, ao primeiro balanço, já
tivemos um lucro de 3.000$000 (três contos de réis), considerado muito satisfatório, porque era o primeiro
ano e cheio de dívidas a pagar, que felizmente foram pagas.
O astral era alto e a gente já estava confiante em que tudo iria de bem para melhor. Miguel, deixando a
viagem, fundou a "Casa Dois Irmãos". "Tecidos Genuinamente Nacionais" era a propaganda. Pouco tempo
depois, movido pelo instinto de indústria, fundou uma fábrica de caixas de papelão, que eram fabricadas
inteiramente impermeáveis e redondas, substituindo as latas de folha de flandres, cujo material, devido à
guerra, estava muito difícil de ser adquirido, pois era importado. Assim, associando-se ao Dr. Justo Córdoba
e Álvaro Trevizano, montaram uma firma e chegaram a fabricar bastante quantidade, que era vendida
mormente para a "Fábrica de Balas Cristal", muito vendidas na época. Esse negócio estava indo bem quando
surgiu uma proposta excelente no Rio para o mano Miguel e Dr. Justo montarem a fábrica lá. A firma
proponente garantiria a matéria-prima e o capital. Desta forma o Miguel foi para o Rio tentar mais uma vez a
sorte em ramo diferente daquele de outrora.
3 de setembro de 1942 - Dia marcante em nossa vida. Nascia nossa primogênita e sempre querida Elimar,
cujo nome já estava escolhido há muito tempo antes. Maria queria muito que fosse Elimar e, com a graça de
Deus, o desejo de Maria se concretizou. É indescritível a alegria daqueles dias. Mamãe ficou muito feliz,
principalmente porque ela seria a madrinha. D. Saide não cabia em si de contentamento. Papai, Sr. Miguel e
todos os nossos familiares e amigos nos visitaram por muitos dias como demonstração de muita felicidade.

***

A "Casa Zeny", loja de tecidos e armarinho adquirida por nós do seu proprietário, o Sr. Paulo Nojaime, seria
administrada pelo saudoso mano João, vindo de Belo Horizonte, já com sensível melhora em sua saúde.
Esteve em nosso poder por pouco tempo. Entretanto, não se sabe como, a família Jacob já contava com
quatro estabelecimentos à Rua São José: "A Favorita", "Casa 2 Irmãos", "Casa Zeny" e "Casa Central". É
certo que não perdurou esse estado de coisas. Miguel, como já disse, fora tentar a sorte na "Indústria de
Vasilhames de Papelão". O mano João, pouco tempo depois, sentiu necessidade de voltar para Belo
Horizonte devido ao agravamento de seu estado de saúde. E, desta forma, transferimos a "Casa Zeny" para o
Sr. Felício Marcos de Vasconcellos, cidadão amável e chefe de numerosa família que viera de Dom Silvério
motivado pela educação dos filhos, duas das quais eram internas do Colégio Sacré-Coeur de Marie. E assim
ficamos vizinhos do Sr. Felício apenas de loja, porque a família residia na Praça São Januário. Pelo seu
temperamento alegre e sempre muito bem humorado, ficamos amigos e muito amigos, quando muitas e
muitas vezes trocamos mercadorias. Dizia ele: "o que não se vende aqui - referindo-se à sua loja - pode-se
vender bem com você e vice-versa". É incrível, mas é verdade. A distância de um estabelecimento para outro
não ia além de cinco metros e do mesmo lado da Rua São José. Muito ao contrário de outros comerciantes
que vêm no seu concorrente um inimigo, graças a Deus, sempre mantivemos uma amizade harmoniosa e
duradoura, da qual sinto até hoje muita saudade. Como auxiliar, o Sr. Felício tinha no seu filho José a melhor
colaboração. Moço fino no trato, educação primorosa, José ficou sendo nosso amigo, casando-se mais tarde
com Ilce, filha de seu senhorio, o Sr. Emilio Piotto, nossa amiga e vizinha.
João voltara para Belo Horizonte, muito a contragosto. Afinal, o sacrifício que sua ausência nos causaria pela
separação era compensado pela melhora de sua saúde, que estava em primeiro plano.
"A Favorita", dirigida pelo Ibrahim e Tufy, continuava em sua ascensão quando, em uma das minhas viagens
a Juiz de Fora, consegui com o nosso fornecedor de meias R.P., o Sr. Salim Uhebe, exclusivista das meias
"Rosita", uma marca exclusiva para nós, ou seja, "ELIMAR". E, de acordo com a promessa do fornecedor, já
na próxima ida a Juiz de Fora, ficava confirmada a proposta e assim nasceu a afamada meia "ELIMAR", que
ficou sendo exclusiva da "A Favorita"; e as rádios propagavam: "ELIMAR? Só na sua A Favorita". Foi um
sucesso a mais na ocasião. No balanço do ano seguinte a "Casa Central" já se apresentava com lucro maior e
perspectivas muito boas. Tinha fornecedores de primeira linha, como Machine Cottons Limited; ARP & Cia.,
firma representada pelo amigo Luiz Franco; Perfumaria Lopes, representada pelo nosso amigo Sena Caldas e
muitas outras de real importância em nossa vida comercial. João dava notícias por carta e sempre de forma
muito otimista quanto ao seu estado de saúde. Confiava muito e tinha muita esperança de melhoras.
E assim ficamos com "A Favorita" e com a "Casa Central" em plena ascensão e grandes perspectivas para o
futuro. Como já disse, o mano Miguel transferiu a "Casa 2 Irmãos" para o amigo Godofredo Lopes Pereira,
que foi comerciante por muitos anos na Rua São José. Tenho especial apreço pelo Godofredo porque sempre
fomos amigos de toda a família Lopes Pereira, com muitos dos quais mantivemos estreita amizade, com
destaque para o José, o João, o Francisco, a Sílvia e Neguita Lopes Pereira e seus familiares, a quem
queremos muitíssimo bem.

***

Desde o nosso casamento que nosso fogão só servia para o café, pois deliberamos que comeríamos de
marmita, vinda da D. Saíde. Toninha já era uma moça bonita e bem apessoada. Fez o primário e já estava
auxiliando no batente do cotidiano à D. Saíde. Nesta época, as famílias da paróquia do Rosário, à qual
pertencíamos, recebiam, para três dias, a Santa Visitadora, que vinha em procissão do vizinho mais próximo
e nesta primeira noite celebrava-se uma curta reza na casa que a acolhia. Nesta oportunidade, os donos da
casa faziam aos fiéis presentes o convite para o terço dos dias em que seriam honrados com a santa visita. Em
nossa casa, com muita satisfação e júbilo no coração, recebemos por muitos anos consecutivos a sagrada
visita e felizmente sempre tivemos a acolhida de muitos fiéis e amigos que superlotavam a sala e outras
dependências da nossa casa. Consistia essa solenidade na necessidade de levantar fundos para a reforma da
Basílica do Rosário e, para tanto, a família visitada promovia um leilão de prendas doadas pelos conhecidos.
Sempre havia um leiloeiro voluntário e sem remuneração emprestando sua colaboração por amizade. Desta
forma, havia uma concorrência velada para superar o leilão anterior, o que seria um meio de assegurar boa
renda para a Igreja. Tempo bom e feliz!
Gozávamos de muita amizade jovem, dentre as quais a da Maria Rozendo, Lilian Lauria, Mimi Atalla, Irene
e Gracinha Brando, que sempre nos davam o prazer de sua presença em nossa casa, bem assim as irmãs Lila,
Ilce e Arlete Piotto, nossas vizinhas e amigas.
Mimi Atalla era uma criatura espirituosa e alegre, cuja presença enchia de alegrias e bem estar a todos nós.
Lilian carregava Elimar e dava um longo passeio com ela. Como era amável e bela a jovem Lilian Lauria!
Infelizmente o tempo passou depressa e hoje Mimi virou saudade, falecendo em 1984, deixando um filho, o
Edgard, de seu primeiro matrimônio.
Lilian Lauria reside atualmente em São Paulo, casada com o professor Mário Machado, de cujo matrimônio
tem um filho. Lila Piotto é casada com José Silveira Netto, com dois filhos residentes em Juiz de Fora e
nossa amizade perdura com muita satisfação para nós. Arlete tornou-se freira, recebendo o nome de Irmã
Constança.
Maria Rozendo, filha do Sr. Francisco Rozendo e D. Ercília Rozendo, é madrinha da Elma pela Crisma,
reside em Ubá, não se casando, preferindo o conselho do adágio: "Antes só do que mal acompanhada".
Entretanto, ela não está só, pois goza da companhia de suas irmãs solteiras em sua casa, à Rua São José.
Irene reside no Rio, casada e feliz. Gracinha reside em Ubá casada com Joel Barreto e mãe de filhos que lhe
dão muita felicidade.
1942. Mais um Natal. A "Casa Central” era especialista em brinquedos e os meses que antecediam o Natal
eram preenchidos com compras de brinquedos de todos os tipos, inclusive velocípedes. Numa das viagens a
Juiz de Fora, descobri uma casa que vendia artigos de vime. Foi um sucesso os carrinhos para bonecas,
cadeirinhas de quatro pés e de balanço. Era só chegar e acabar o estoque de brinquedos de vime; assim o
Natal era realmente muito colorido e alegre na "Casa Central", cuja propaganda impressa ou falada pelo rádio
era assim: "De Natal a Natal, comprem na Casa Central".
João, de vez em quando vinha a Ubá, apenas como visita, precisava voltar, era imprescindível sua
permanência em Belo Horizonte. Estava com indícios de melhoras. Estava mais corado, era melhor o seu
estado geral físico e ganhava mais corpo, o que de certa forma era motivo de muita satisfação para nós.
Matava as saudades da família, dos amigos e de seu fiel cão Nero.
Nero era um cachorro preto aveludado e de porte médio. Não tinha "pedigree", era um vira-lata privilegiado.
Jogava bola, como se fosse o goleiro. Estava sempre com uma bola de meia ou uma "mucha-mucha" perto e
assim que surgia um de nós para o almoço, já pressentido por ele, trazia a bola e punha aos pés do recém-
chegado. Muitas vezes eu fingia que não via e que estava distraído; qual o que, o Nero vinha, pulava e latia
mostrando a bola e se afastava mais ou menos uns três metros e latia pedindo a bola. Dado o chute, ele
pegava no ar, seja a bola de meia ou mucha-mucha de laranja.
Todos nós compartilhamos do futebol do Nero que, incrivelmente, cercava a bola, mesmo as mais altas. João
tinha muita amizade ao Nero e em todas as suas cartas perguntava por ele.
Nós tínhamos também um cachorro misto policial, antes do nascimento da Elimar, muito bravo, que
policiava o quintal. Demos-lhe o nome de Suez por causa da guerra e por estar na época em evidência o
Canal de Suez, no Egito. Suez era um cão muito amigo e obediente. Dentro de casa era até brincalhão.

***

1943. Carnaval. Maria aceitava encomendas de blusas carnavalescas e para nossa casa confeccionava gorros
coloridos de várias cores, inclusive das cores das Escolas de Samba: verde e branco e vermelho e branco, que
eram vendidos nos dias de reinado de Momo. Nós, como éramos sócios do "Ubá Tênis Clube",
freqüentávamos o Clube, principalmente nos três dias carnaval. Formávamos blocos para brincar.

Os companheiros mais assíduos eram Adauto e Branca. Adauto, mesmo cego, era um grande folião,
principalmente após uns copos de cerveja que tomávamos juntos. Luiz Manhães, gerente do Bazar Renê,
agora instalado no prédio do Sr. Alfredo Côdo, à Rua São José, também era um folião de causar inveja a
qualquer garoto, apesar de seus quarenta e cinco anos na época, de vez em quando fazia parceria conosco.
Mas nem tudo na vida é festa e alegria. Na tarde de 23 de fevereiro, após o jantar, tinha o costume de dar
umas voltas até a Praça Guido Marliére e, neste dia quando me dispunha a sair, Maria veio até a porta e
quando já estava quase em frente à casa do Piotto resolvi voltar. Maria perguntou o porquê de ter voltado e
eu, entretanto, não sabia dizer. Parado com ela na porta, ainda sem saber o que fazer, quando do lado do Bar
do João Brando me chamam. Telefone para você. É interurbano. Meu coração disparou. Belo Horizonte
chama. Maria foi comigo. Ela sabia que não sou bom para telefone, principalmente naquele tempo de muito
ruído e de difícil audição. João tivera uma recaída, motivada pelo abalo que sofreu quando de uma pequena
queda do estribo de um bonde.
Tinham-no levado para o hospital e estava inconsciente. Quem estava falando, em prantos, era sua namorada,
Dinorah, que morava na pensão onde o mano João estava. Deu-nos seu telefone e voltaria a se comunicar
conosco. Meu Deus! Exclamei no momento, o que vai ser de nós? Maria procurou me acalmar com palavras
de incentivo e esperança de que tudo ficaria bem e que ele, João, iria melhorar. Procurei o Jorge, o Ibrahim e
Tufy e como levar essa notícia aos nossos pais? Miguel estava no Rio; entretanto, seria comunicado caso a
nova informação não confirmasse melhoras. Jorge, Ibrahim e eu procuramos nos comunicar com Belo
Horizonte, o que era difícil naquele tempo. Quase todas as ligações eram feitas no mínimo com duas horas de
espera, entretanto, graças a compreensão da telefonista de Ubá que, condoída, talvez, com nosso drama,
completava as ligações por nós solicitadas. E, assim, avançamos noite adentro utilizando o telefone do Posto
Esso, do Sr. Expedito Collares, à Praça São Januário, que gentilmente no-lo franqueou. Junto de nós, e com
toda solidariedade humana, emprestavam seus auxílios os irmãos Trevizano, Chiquito e Álvaro, cujo apoio
moral ficou indelevelmente gravado em nossa melhor gratidão e igualmente ao Expedito Collares que nos
franqueou o telefone. Novas chamadas e do outro lado do fio Dinorah informava: parece que vai melhorar.
Deus é grande, dizia ela. Neste estado de coisas, já quase surgindo a madrugada, a nossa apreensão era
grande, quando o telefone chamou e foi o Álvaro Trevizano quem recebeu a notícia. Dinorah em soluços:
Tudo consumado. Ibrahim foi tomado de um desespero convulsivo; eu não sabia se chorava ou acalmava o
mano Ibrahim e como chegar em casa do papai naquele estado. Noite tenebrosa. Parece que todas as tristezas
do mundo desabaram sobre nós. Jorge fora incumbido de dizer que ele estava mal, porém havia esperanças e
que eu iria a Belo Horizonte para visitar o João. Estávamos em plena guerra, a gasolina racionada, alguns
ônibus eram movidos a gasogênio e neste estado de dificuldades consegui chegar a Juiz de Fora lá pelas 3:00
horas da tarde. Comunicamos com o Miguel e eis que chega-nos um telefonema do prezado amigo Jorge
Hatem que, com sua irmã, a prestimosa Tebte, dava-nos ciência de que estava tudo providenciado, inclusive
preparado para um eventual atraso em nossa chegada.
Miguel chegou primeiro e quando eu cheguei, já no dia seguinte às 9:00 horas da manhã do dia 25 na Estação
da Central do Brasil, estava sendo esperado pelo Jorge, Tebte e Miguel. No necrotério fiquei conhecendo o
anjo bom que em prantos veio ao nosso encontro. Era a inconsolável Dinorah, a noiva querida do pranteado
mano João. E assim se resume a vida daquele menino nascido na Rua de Cima, a 7 de setembro de 1917, na
cidade de Ubá e que faleceu em Belo Horizonte no dia 23 de fevereiro de 1943. Seus restos mortais
trasladados em 1982 para o cemitério de Ubá, por iniciativa do mano Ibrahim, que mais uma vez confirma
seu espírito de unidade familiar, repousam juntos aos nossos pais, no mesmo túmulo. Paz à sua alma.

CAPÍTULO XIII
DEPOIS DA TEMPESTADE VEM A BONANÇA

Miguel, nosso mano, ficara noivo da prezada Nery, filha do Sr. José Haikal e D. Adélia Chamun Haikal e a
18 de outubro deste mesmo ano, 1943, casaram-se concretizando assim o desejo de nossos pais, que sempre
foram apologistas do casamento enquanto são novos, a fim de poderem enfrentar os embates da vida. E como
a cerimônia fora na parte da manhã, os recém-casados partiram para o Rio de Janeiro, neste mesmo dia,
felizes e confiantes num futuro promissor, com as bênçãos de Deus.
A família do Sr. José Haikal, muito benquista na sociedade ubaense, era numerosa e atuante no comércio e
Ubá, com vários estabelecimentos de tecidos finos, calçados, etc.
Ibrahim namorava a Ziza, dileta filha do Sr. José Soares de Souza, velho amigo e autêntico chefe de família
que, na sua simplicidade, granjeou no seu dia-a-dia a simpatia e amizade de todos que com ele conviviam.
Jorge Samôr, que viera do Rio de mudança há mais de dois anos, estava definitivamente convencido de que
Ubá seria sua morada definitiva junto ao irmão, cunhada e sobrinhos, reforçado ainda pelo motivo de seu
irmão, Sr. Calil Samôr e sua respectiva família, há muito já estar residindo em Ubá e ele, Jorge, tinha para
com seus irmãos muito apreço e amizade.
E assim o nosso Jorge Samôr trocou o fabrico de gravatas pela fábrica de espelhos, agora movimentando as
prensas e espelhações. Elias Samôr ficara incumbido da produção e Jorge viajava e vendia toda a produção
que era pequena a princípio, mas foi se desenvolvendo gradativamente. A firma era: "Elias Samôr: Fábrica de
Espelhos" - Praça São Januário - Ubá.
Tio Tanus já estava dando mostras de cansaço. A idade pesando cada vez mais e o nosso tio demonstrava
vontade de regressar à sua terra, mas infelizmente ninguém sabia quando a guerra iria terminar. O Brasil já
há um ano declarara guerra ao Eixo (Alemanha e Itália), já tendo enviado um contingente da Força
Expedicionária Brasileira - FEB - para a Itália. A situação interna no Brasil já dava mostras de inquietação.
Rapazes, na flor de sua mocidade, iam combater lá fora do país, arriscando a vida por uma causa
completamente desconhecida. Os germanófilos não arriscavam mais seus palpites. Antes de o Brasil tomar
partido, ainda havia discussões nos bares e principalmente na Barbearia do Nenê Magalhães, reduto dos
aliados, onde meses antes o Sr. Jacinto Cuzatti dizia no seu sotaque italianado: "Vamos ver no finale". Não
havia, felizmente, maiores transtornos, afinal todos se prezavam e, honra seja feita, os ubaenses sempre se
respeitaram até nas dificuldades da política local; e assim, o pernambucano e amigo Severino, Francisco de
Albuquerque, funcionário dos Correios, radicado em Ubá havia mais de dois anos, se referia aos ubaenses
como amigos sinceros e leais. Não tinha sentido nenhuma hostilização aos italianos em Ubá. Houve
realmente um princípio de insuflação quando quiseram marchar sobre a casa do Sr. Alfredo Codo, sub-consul
da Itália, na Rua São José, mas o movimento foi abortado. Seria uma injustiça aos numerosos pracinhas
lutando no “front”, filhos de italianos, saberem que seus pais sofreram discriminações por parte de uma
minoria de agitadores. E assim, as discussões na Barbearia do Nenê ficaram resumidas ao "Noticiário de
Guerra" que as rádios do Rio transmitiam.
Tio Tanus já estava decidido a regressar à sua terra. A saudade já estava apertando-lhe o peito; esperava o
fim desta contenda que ele não encomendou, mas sofria as conseqüências. Paciência, o remédio era esperar.
Em 1944, no mês de junho, casa-se o mano Ibrahim com sua amada Ziza (Rosa Jório Soares). Ambos muito
novos, pois Ibrahim não completara 24 anos e sua dileta esposa apenas 18. Pelo amor que um dedicava ao
outro era de se prever, como felizmente o foi, um casal feliz e de mútua dedicação.
Neste mesmo ano de 1944, a 19 de julho, fomos contemplados com.o nascimento do nosso querido Emir. A
felicidade continuava bafejando nossa vida, já com dois filhos amados, para nossa felicidade e de nossos
entes queridos.
Nossos negócios estavam em franco progresso, guardadas as devidas proporções, pois, volvendo para um
passado recente, quando nas dificuldades de toda a família ainda no Rio, numa luta sem tréguas, apenas para
sobrevivência, estávamos assim em 1944, com duas firmas de muitas possibilidades de êxito, num crescendo
contínuo, aliado também à nossa vida social que era das melhores, felizmente. Nossos pais, sempre pacíficos
e ordeiros granjearam simpatia e amizade pelos longos anos de suas vidas; legaram a nós esse exemplo de
virtude e dedicação que, por felicidade nossa, o transmitimos aos nossos filhos. Deste modo sempre fomos
alvos de amizade e apreço por ocasião dos batizados dos filhos que, por questão de preferência da Maria,
foram realizados nos dias 20 de fevereiro, data do meu nascimento, de nosso casamento e agora do batismo
dos meninos, bem assim de suas "primeira comunhão". Portanto, pelo gosto de Maria, o dia 20 de fevereiro
marca um grande evento no nosso calendário.
"A Favorita" continuava em marcha crescente com Ibrahim e Tufy gozando de muito prestígio no comércio
de São Paulo e Rio. Graças a Deus, Jacob Ibrahim Elias voltou a ser firma de primeira e de crédito ilimitado
para satisfação de todos nós que sempre desejamos ver realizado esse sonho agora concretizado. Jorge, nosso
mano querido, estabeleceu-se com fábrica de balas e pastilhas, à Avenida Roças com a Rua 15 de Novembro,
"Fábrica de Balas Odette", homenagem à então caçula, a galante Odette.
Nesta oportunidade, Jorge e Nagla estavam com cinco filhos: Edson, Olga, Hélio, Edgard e Odette, com
residência à Rua São José, bem próximo à Igreja de mesmo nome, hoje demolida. Jorge, pelo seu
temperamento alegre e sempre solícito, tinha muitas amizades na cidade de Ubá, onde sempre gozou da
afeição e simpatia do Major Toté, Dr. Phelippe Balbi, Dr. Lourenço de Azevedo, Dr. Ary Gonçalves, Daniel
Magri, entre muitos outros que necessariamente teria de ter muitas folhas de papel para registrá-los, com
muito gosto e satisfação. Entretanto, como vizinho da Fábrica de Balas, mantinha sólida amizade com o Sr.
Silvio Caffini, dono de uma oficina mecânica, amizade duradoura e sincera que se estendeu aos familiares do
Sr. Caffini, prole numerosa e benquista na sociedade de Ubá.
Neste mesmo ano de 1944, no mês de maio, mês de Maria, Elimar fez sua primeira coroação, antes de
completar dois anos. Era um fato inédito na história das coroações da Virgem, uma menina com um ano e
oito meses subir os degraus do altar e lá em cima, com a coroa nas mãos, e ante o cântico da cerimônia e o
pipocar dos foguetes lá fora, fui surpreendido com "Ei papai...", proferido por ela ao me ver muito comovido,
no meio da assistência. Até o padre Jésus admirou-se de tal façanha da pequena Elimar.
Não obstante a paróquia de nossa residência ser a do Rosário, nós preferimos a de São Januário, onde
moravam os avós maternos e paternos e o pároco, o padre Jésus, que fez o nosso casamento. A coroação saiu
da casa dos sogros, à Rua Santa Cruz, passando pela Monsenhor Paiva Campos, ganhando a Av. Raul Soares,
diante da casa dos avós paternos, até a Matriz, acompanhada da Banda Musical 22 de Maio. Todos os anjos e
virgens presentes ao ato receberam, como de costume, cartuchos recheados de balas, bombons, etc. Todavia,
o cartucho convencional era de papelão em forma de cone, mas o da Elimar foi de modelo diferente e
original, confeccionado com muito carinho pelo seu tio, Elias Samôr. Foi a sensação da época. Tinha formato
de uma casinha tipo chalé, toda de vidro com uma portinha de onde se podia retirar os doces e balas de seu
conteúdo. Acompanhou cada cartucho um acróstico:

Entre alas de anjos e flores


Louvando o nome de Maria
Imaculada Rainha dos Amores
Meu coração de amores irradia
Ao coroá-la cantarei de viva voz
Rainha da paz, rogai por nós.

A vida é feita de prolongamento dos dias e anos, mas a felicidade é conquistada de instantes de alegria e
muito amor e esses instantes e esse amor através dos anos, a gente vai amealhando, pedaço por pedaço, até a
felicidade total; e essa noite para nós foi de muita felicidade, cuja lembrança ficou indelevelmente marcada
em nossos corações.

***

Miguel, de volta do Rio, fixou residência definitiva em Ubá e neste mesmo ano fora, com Nery, agraciado
com o nascimento da graciosa Leila, para felicidade de ambos e de seus avós paternos e maternos e tios
maternos: Jamile, Olga, Ivone, lida, Izabel, Jorge, Jamil, José, Fuede e Chafic.
Após um período curto na fábrica de malas e cintos, à Rua São José, dedicou-se ao ramo de tecidos,
particularmente "Retalhos" comprados no Rio à vista, com preço muito reduzido e seus negócios iam muito
bem, mormente quando dedicou-se ao comércio de rádio paralelamente ao de tecido. Como a venda dos
rádios estava satisfazendo muito, aos poucos foi se dedicando a esse ramo de negócios, o que lhe
proporcionava bons lucros. Desta forma a família do Sr. Jacob contava em Ubá com três estabelecimentos
comerciais e uma indústria de balas e pastilhas do mano Jorge, à Rua 15 de Novembro com Avenida Roças.
A "Casa Central" continuava progredindo e a felicidade era uma constante para um casal com dois filhos.
Tínhamos um auxiliar nas lides da loja, o Amadeu, cujo pai, um viajante de tecidos, fazia questão de colocá-
lo no comércio para ganhar prática. Fazia questão de dizer: "o ordenado é o que pouco importa"
Nesta oportunidade, o mano Nacib, com seus dezenove para vinte anos, tornou-se o coringa. Trabalhava no
Miguel, dava uma mão na "A Favorita" e a mim também, principalmente quando eu viajava para o Rio a
fazer compras. Honra seja feita, o Nacib, que ficou definitivamente conosco, foi-nos de uma utilidade muito
grande. Já andava de namorico com Rosa, dileta filha do compadre Mansur e D. Marina. Chegava muito
cedo, abria a loja e era um ótimo vendedor. A fim de evitar constrangimento por parte do mano Nacib
quando semanalmente lhe dava uns trocados, que ele muito a contragosto aceitava, propus-lhe uma retirada e
parte dos lucros da loja, mas o mano Nacib sempre foi dotado de boa formação moral e de desprendimento.
Seu interesse primordial era servir.
O fim do ano se aproximava e eu, como de costume, viajava para Juiz de Fora e Rio, a fim de abastecer a loja
com brinquedos, procurando sempre esmerar em novidades, como carrinhos para crianças, velocípedes,
brinquedos de madeira, bonecas de louça, pano e papelão; variedade de brinquedos de quebra-cabeça, sem
falar, é claro, dos carrinhos e cadeirinhas de vime, que eram de nossa especialidade.
Tínhamos auxiliares na atividade doméstica, como Zulmira Gonçalves, ótima formação moral, cujo pai,
enviuvando-se quando ainda Zulmira era uma garotinha, entregou-a aos nossos cuidados e nós fomos zelosos
para não desmerecermos a confiança. Zulmira, ao completar seus dezesseis anos, começou um namoro com
um elemento pouco recomendável e, ao ser advertida pela Maria, a mocinha, embriagada pelo seu primeiro
amor, ensaiou uma atitude de rebeldia. Apesar de ela ser-nos muito útil no serviço da casa e ser muito meiga
no trato com as duas crianças, Maria teve com ela atitude muito enérgica, ameaçando devolvê-la para seu pai
e trabalhar na roça; afinal era de nossa responsabilidade preservar-lhe o bom conceito de moça de família
honesta. Felizmente, reconhecendo a tempo seu erro, pouco tempo depois se enamorou do José Fernandes,
empregado na fábrica de macarrão Crispi, de nosso amigo Nico Crispi. José era um rapaz de boa formação
moral, com boa educação de berço, respeitador e honesto. Procurou-nos, certo dia, para pedir autorização
para namorar Zulmira. Fez essa solicitação como se nós fôssemos os verdadeiros pais da moça, como
demonstração de muito respeito, sabendo que nós éramos os responsáveis por ela, ao que prontamente
aceitamos seu pedido, mormente por termos tido dele as melhores referências. Zulmira e José, com menos de
seis meses de namoro uniram-se pelos laços do matrimônio, tendo nós, Maria e eu, sido os padrinhos de
casamento, bem assim, padrinhos de sua primogênita, que na pia batismal ficou se chamando Maria Helena.
Ainda nos poucos dias que antecederam ao casamento, uma mocinha quase menina, veio pedir emprego.
Maria, vendo-a tão franzina de corpo, disse-lhe: "você não agüenta pegar os meninos", ao que ela de pronto
respondeu: "sou franzina mas sou forte e tenho costume deste serviço". Maria concordou com ela, ficando
admitida para o serviço que era, na realidade, muito fácil: buscar o almoço nas marmitas e brincar com as
crianças. Emir ainda estava nos seus quatro a cinco meses de vida. Essa mocinha de então, de nome Adelina,
ao contrário de Zulmira, clara e quase loura, é preta e também de formação de berço muito boa. Ficou
conosco muitos anos, só saindo para se casar.
Em todas estas situações sempre esteve ao nosso lado a Toninha, que se tornou madrinha de Elimar, de
representação no batismo. Adelina ficara madrinha do Emir nas mesmas circunstâncias, consideração a quem
fez jus pela sua desmedida dedicação às crianças, principalmente ao Emir que ela pajeou. E, desta forma,
sobrava tempo para Maria se dedicar às costuras e trabalhar na loja com garra e determinação para vencer,
pois disposição nunca lhe faltou.

***

1944 - Chegou dezembro e com ele a exposição de brinquedos que vinham do Rio e Juiz de Fora. Nos dias
que precediam o Natal o nosso movimento era muito intenso. Nacib se inteirava de tudo. Conferia a
mercadoria, fazia a exposição, auxiliado pelo Amadeu e o Binha (filho do Nenê Magalhães), que ainda era
uma criança e, como já disse anteriormente, Nacib tinha muita disposição para o trabalho. Na noite de 24, a
casa cheia de fregueses, chega o Soares, o amigo Soares, sogro do Ibrahim e me chamou em particular. Antes
que eu levasse um choque com a notícia através de estranhos, ele, Soares, funcionário dos Correios e
Telégrafos, preferiu ele mesmo dar a triste notícia: Ibrahim fora convocado para a guerra e ele próprio já
fizera entrega do telegrama de convocação ao mano na "A Favorita"
Confesso que perdi todo o gosto para o movimento, até então alegre e festivo, empanado por essa hedionda
notícia. Comuniquei imediatamente à Maria e esta, naquele momento, compartilhava de minha dor. Ir para a
guerra era um espantalho para os rapazes e seus familiares. Todas as informações do rádio eram de boas
expectativas até o dia em que o Japão entrou na guerra ao lado do Eixo, o que, certamente, era indício de que
a contenda iria continuar perdurando até quando "Deus quiser"
Imaginem D. Sarah, que perdera o seu filho João no ano passado, ao ser informada desta terrível notícia.
Outro filho para a morte, pois guerra é morte. Todavia, os convocados teriam o prazo de Natal e Ano Novo
para, em janeiro, se apresentarem em São João Del Rey, partindo todos de Juiz de Fora. Procuramos
confortar aquela sofredora D. Sarah de que não iriam os convocados diretamente para a guerra, teriam um
estágio de muitos meses aqui no Brasil e, neste meio tempo, poderíamos provar a eles, do exército, que o
Ibrahim era arrimo de família, sua esposa esperando filho etc. e tudo ia dar certo para nós. Ela se confortava
com essa afirmação e os dias passando quando chegou o dia da apresentação, 6 de janeiro de 1945.
Já me encontrava em Juiz de Fora três dias antes da data aprazada, trazendo no bolso uma carta da Maçonaria
de Ubá, cujo Venerável, Sr. Tito César, muito nosso amigo, endereçou-a à sua co-irmã de Juiz de Fora, aos
cuidados do Sr. Miana. Não perdi tempo. Procurei o Sr. Miguel Miana na loja do mesmo nome, à Praça Dr.
João Penido, o qual, se inteirando do conteúdo da missiva, imediatamente procurou se entender com pessoas
de suas relações a fim de descobrir um meio de ajudar-me.
Não houve condições para ele, a não ser a boa vontade em servir de maiores ou melhores informações,
quando um oficial do exército muito seu amigo lhe disse: Quem sabe se o Gonzaga pode "quebrar este
galho?" A Confraria não tinha relações estreitas com o citado Gonzaga, que era na época Tenente Gonzaga.
Informaram-me de seu endereço e sua formação política, integralista. Foi o bastante. À tardinha fui à
residência do tenente Gonzaga, no prolongamento da Avenida Rio Branco, antes do começo desta avenida.
Encontrei-o em casa e, sem saber por onde começar o meu assunto, fui logo me prevalecendo do
Integralismo, sabedor de antemão que os liderados por Plínio Salgado não queriam a guerra, nem tampouco
viam com bons olhos a remessa de homens para combater lá fora. Essa coragem e essa determinação,
ocasionadas pela necessidade, fizeram de mim um afeiçoado da "Camisa Verde" até o término da guerra e
embora não prejudicasse a ninguém, sinto-me hoje no dever de pedir perdão aos que direta ou indiretamente
acreditaram em mim.
Ao me apresentar ao Tenente Gonzaga, fui logo informando do meu intento, como espécie de queixa,
pedindo-lhe uma orientação. Confesso que dificilmente se pode encontrar pessoa tão compreensiva e
cavalheiresca, pois o Gonzaga me abriu o caminho por onde iria percorrer com segurança. À véspera do
embarque para São João Del Rey, o mano Ibrahim chega a Juiz de Fora e com ele fui visitar um antigo amigo
da família, o Sr. Alfredo Lentini, filho do Sr. Nilo Lentini, vizinho e amigo de papai nos idos de 1918 e 1919.
Alfredo Lentini, diziam, tinha muitas amizades no exército; viera de Ubá para servir como reservista,
casando-se em Juiz de Fora, onde firmou residência. De alfaiate que era, passou a trabalhar em posto de
gasolina, vendas de pneus, etc., ramo que lhe deu fama e riqueza através dos anos.
Fomos recebidos em seu escritório, à Rua Bernardo Mascarenhas, bairro Fábrica. De mim ele se lembrava,
mas de Ibrahim era diferente, pois o Ibrahim é mais novo do que eu pouco menos de onze anos. Alfredo me
ouviu com atenção sobre o que pretendia. Expliquei a ele o nosso drama, a aflição de mamãe que fora
também amiga de sua própria mãe, tentando sensibilizá-lo contando casos de Ubá antigo, com envolvimento
de nossas famílias. Assim que terminada a minha estória, que era de certa forma uma súplica, ele me diz:
"Isso para mim não é difícil. O rapaz pode viajar tranqüilo para São João Del Rey, que de lá ele vai sair. Vou
providenciar tudo. Vão em paz". E com isto estendeu sua mão para despedirmo-nos, ao que retruquei: "Muito
obrigado, mas o senhor nem sabe o nome dele". "Ah! é mesmo. Como é?" Disse-lhe o nome sem a menor
esperança. Confesso que nunca fiquei tão desiludido com uma pessoa que julgava valer pelo menos uma
unha de seu próprio pai, o inesquecível e leal amigo Nilo Lentini, de saudosa memória.
Recorremos aos médicos Dr. Jamil Altaf e Dr. Botafogo, ambos em Juiz de Fora, sem, contudo, encontrar um
motivo concreto para um atestado de saúde. Felizmente o mano se encontrava muito saudável. Digo
felizmente porque a saúde está em primeiro lugar. O Dr. Botafogo foi mais claro: "O negócio é ter isto",
apresentando um quadro com retrato de gado bonito, fazendo lembrar o Marajá, um touro campeão de raça
do Dr. José Augusto de Rezende, de Ubá. Queria com isto o Dr. Botafogo insinuar que dinheiro e prestígio
eram indispensáveis para o caso. Importante é que nem Dr. Jamil nem tampouco o Dr. Botafogo aceitaram
receber a consulta. Esse crédito de agradecimento fica estendido aos familiares dos dois médicos
prestimosos, já falecidos, mas que continuam vivos em nossa memória.
De positivo, porém, tinha a informação do tenente Gonzaga para São João Del Rey, cuja partida se deu com
antecedência de dois dias para o primeiro exame dos convocados. Ibrahim seguiu num vagão especial dos
convocados, pela Estrada de Ferro Central do Brasil, com baldeação em Barbacena para E. F. Oeste de
Minas, Bitola Estreita. Fui junto, em outro vagão, é claro, chegando a São João Del Rey à noitinha. Procurei
imediatamente o Hotel Espanhol para mim e o Ibrahim. Não foi possível. Não havia um quarto sequer vago,
o que nos forçou a hospedarmos no Hotel Hudson, na ocasião o mais luxuoso e mais caro, razão de haver
ainda algumas vagas. Nesta mesma noite fui procurar o Sr. Luiz Alves, espanhol e gerente do hotel. Como já
era noite e o expediente do jantar há muito terminara, fui informado de que o gerente tinha o costume de
tomar uma cervejinha no Bar Principal. Fui ao bar e encontrei um moço de seus trinta e cinco anos, claro,
tipo de estrangeiro, tomando cerveja com um charuto entre os dedos da mão direita. Sentei-me ao seu lado
em outra mesa enquanto ele conversava com seu companheiro e observei-lhe o sotaque castelhano. Disse de
mim para mim: "É este o homem". Minutos depois eis-me dialogando com o Sr. Luiz Alves, oportunidade
oferecida quando ele ficou sozinho.
"É o Sr. Luiz?" - "Sim, em que posso servir?" E passando logo para a sua mesa, informei-lhe que havia
procurado o seu hotel, sem, contudo, conseguir uma vaga. Estava com meu irmão, vindos de Ubá e ele, o
mano, era um dos convocados. Todavia, seu nome já me era familiar, pois em Juiz de Fora obtivera dos
correligionários as melhores informações de sua pessoa, ao que o Sr. Luiz sentiu-se muito lisonjeado,
dizendo: "A gente faz o que pode", referindo-se à guerra. Amanhã vou almoçar no Espanhol, referindo-me ao
hotel e se houver vaga, tornar-me-ei seu hóspede. E com um "prazer em conhecê-lo", despedimo-nos quase à
meia-noite.
O meu almoço deliberadamente foi mais tarde do que o normal. Sentia necessidade de conversar um pouco
mais com o gerente que, certamente, teria folga para conversar com mais tranqüilidade. De princípio, o Sr.
Luiz fez-me conhecer, mesmo de longe, numa mesa do refeitório, o Dr. Ruy de Faria, 1o. tenente e chefe da
junta médica do exército, almoçando com mais dois colegas. O Tenente Ruy era moço, de idade mais ou
menos de trinta anos, claro, mais para louro, cabelo curto, natural de Juiz de Fora. Aconselhou-me o meu
interlocutor, e agora amigo, a falar pessoalmente com o Dr. Ruy, mesmo porque havia uma recomendação
verbal do seu colega de Juiz de Fora, o tenente Gonzaga, de quem eu era portador, dizendo-me: "A melhor
hora é à noite, na hora de dormir", fornecendo-me o número de quarto do médico, a fim de me facilitar o
contato com ele.
À noite, após um bate-papo com o amigo Luiz, ficamos os dois à espreita, de olho na ponte sobre o canal de
onde viria o Dr. Ruy e assim que ele despontou do lado de lá da ponte apressei-me para chegar ao hotel antes
dele e simular coincidência. Subi ao primeiro andar antes dele e assim que ele se aproximou de seu quarto
com a chave na mão, passei por ele e voltanto-me, disse-lhe: "Dr. Ruy?" "Sim, o que é?" Seu tom de voz não
era amistoso, o que me deixou um tanto preocupado, pois um passo em falso, uma palavra mal colocada
poderia por tudo a perder.
"Sou Elias Jacob, resido em Ubá. Tenho um irmão convocado e estou vindo de Juiz de Fora e trago uma
recomendação do tenente... seu amigo e meu também". Ante seu olhar fixo e penetrante me deu um branco,
esqueci-me completamente do nome Gonzaga. "Você não sabe o nome de seu amigo?" Disse-me ele, com
certa autoridade. "Como não!? Apenas quero ser discreto, como deve acontecer nesta ocasião". Enquanto
pronunciava esta última frase vasculhei o cérebro e eis a luz que se acendeu! "Ora, doutor, é o tenente
Gonzaga..." Depois de perguntar pelo Gonzaga e sua família, o tom da conversa ficou mais ameno e cordial.
"Amanhã, às 6:00 horas estarei passando pela ponte. Vocês devem chegar mais cedo para que os veja na
ponte e assim gravar a fisionomia dos rapazes: Ibrahim e Olavo de Lucas". No dia seguinte, às 6:00 hora da
manhã, já estavam os dois na ponte. De fato, o médico passou à hora prometida.
O dia dos exames parecia não terminar. A agonia da espera, a ansiedade ante uma expectativa indefinida,
nossa família em Ubá aguardando com muita aflição a notícia. Tudo isto corroendo meu cérebro, quando deu
o primeiro Boletim dos dispensados, às 13:00 horas mais ou menos. Havia alto falante para essas ocorrências.
Olavo de Lucas, que praticamente entrou na garupa de meu pedido para o mano Ibrahim, saiu neste primeiro
expediente de dispensados. Quase me apavorei, mas tive confiança e fé no segundo Boletim. Só me
desafoguei de minhas angústias quando foi proferido o nome de Ibrahim Jacob. Eram quatro e meia da tarde.
Que alívio. Graças a Deus! Imediatamente fomos ao Correio e passamos um telegrama para Ubá, dando
notícias alvissareiras. No dia seguinte despedimo- nos do Sr. Luiz Alves e com um adeus à encantadora São
João Dei Rey, partimos para Ubá alegres e felizes.
CAPÍTULO XIV
FELIZ REGRESSO

Tio Tanus iniciava preparativos para regressar. As notícias das rádios davam boas perspectivas de vitória dos
aliados, pois os E.E.U.U. haviam participado da guerra invadindo a França pelo Canal da Mancha, com
grande êxito nesta grande operação militar, desafogando a Inglaterra e a Rússia da pressão do Eixo. Papai, a
todos os noticiários, colava o ouvido no rádio e à tarde, quando passávamos por lá em casa para ver mamãe,
que estava com sua saúde abalada desde o falecimento do mano João, ouvíamos do nosso pai, com muito
entusiasmo, o relato dos noticiários do dia, com muita fé no término desta guerra, que já perdurava desde
1939 e já estávamos no princípio do ano de 1945. À noite vinha o compadre Mansur e comentava, com seu
modo vibrante, os noticiários do dia, dando maior ênfase às derrotas dos Alemães nos campos gelados da
Rússia. Era o prenúncio do fim. O jogo da Bastra ficou sendo em casa de papai quase uma constante por
causa da enfermidade de mamãe. E assim, pela simpatia que o Sr. Jacob tinha pela causa dos russos, que
expulsaram os alemães de seus territórios, com destaque para o comandante, general Timochenco, Jorge,
nosso mano, apelidou-o de "Timochenco", apelido que papai recebeu com muito agrado e satisfação.
E a vida continuava. Nossa loja, a "Casa Central", sempre progredindo lentamente, porém com segurança.
Tínhamos muitos fregueses em conta corrente. Eram contas com pagamentos mensais e alguns, no fim do
mês, davam por conta certa importância e o restante ficava com novas compras para o mês seguinte.
Freguesia toda muito boa, felizmente, como D. Arminda Januzzi, D. layá Galdino Ramos, D. Nair Carrilho,
D. Lilina Léo Santos, José Stanziolla e muitos outros que, com sua assiduidade, davam sustentáculo às
"férias" do mês.
A "Casa Central" dispunha de mercadoria com preço mais razoável, iniciando assim um pequeno atacado no
ramo de armarinho. Comprava, da Fábrica "TROL", pentes e outros artigos plásticos em quantidade exigida
pela fábrica, com descontos especiais dando-nos ensejo de revenda e, assim, tínhamos fregueses que
revendiam as mercadorias que, por certo, lhes favorecia nos preços, como Antônio José Barbosa Netto, com
loja em Guidoval, João Dei Vaux, revendedor ambulante em Rodeiro, Antônio José Salech, mascate que
exerceu essa função muitos anos nos arredores de Ubá, sem falar no Tio Tanus que, preferencialmente, tinha
preços especiais. Comprava meias refugo em grande quantidade e tinha fornecedores de malhas da Malharia
Augusta, de Juiz de Fora, dos irmãos Soares, há muito desativada. Porém a amizade até hoje perdura
solidamente na pessoa do amigo Oceano Soares e sua esposa, residentes em Juiz de Fora, bem assim seu
mano mais novo, o estimado Céu Azul Soares, residente em Belo Horizonte.
Nacib, pouco tempo após o Ibrahim e a odisséia de São João Dei Rey, recebeu convocação para a guerra,
quando ainda estava conferindo uma mercadoria na loja. Fiquei inteirado da convocação, tranquilizando-o e
me comprometendo a acompanhá-lo até Três Corações, onde ele teria que servir na Cavalaria. Maria, ao
saber da desagradável notícia, recomendou ao Nacib que, em virtude de ter alguns dias de prazo para se
apresentar, omitisse a notícia à nossa mãe, pelo menos por enquanto. D. Sarah não se sentia bem e estava sob
cuidados médicos.
Todavia, os dias foram passando e com antecedência tivemos que nos ausentar da loja. Meu primeiro passo
foi procurar o nosso amigo tenente Gonzaga, em Juiz de Fora. Porém, na Cavalaria e em Três Corações ele
não tinha conhecimentos e, assim, apesar da boa vontade, não pode me atender. De Juiz de Fora parti para
São João Dei Rey, onde tinha esperanças de obter alguma ajuda com o amigo Luiz Alves que, por sua vez,
também não tinha contato nem conhecimento sobre o corpo médico de Três Corações. Estava fora de sua
alçada. Aproveitei minha estada em São João Dei Rey para comprar uma medalhinha, a pedido de Maria, que
simbolizasse o batismo religioso. Seria uma lembrancinha para o querido Emir, que se batizaria em 20 de
fevereiro, data, como já disse, escolhida por ela. Havia uma estampa com João Batista batizando o Cristo, no
rio Jordão, e ela queria uma medalha com a mesma característica em ouro ou prata. Havia esperança de
encontrá-la em São João Dei Rey, segundo alguns comerciantes de Juiz de Fora, onde procurei e não
encontrei. Na vizinha Tiradentes, onde havia muito comércio e artesanato em prata e ouro, seria mais fácil
encontra-la.
Não encontrando na primeira joalheria e para não ser desgastante para mim e para os comerciantes com
explicações do que pretendia, pensei em adquirir uma medalhinha mesmo de alumínio ou outro material
barato, para pedir aos comerciantes uma réplica em ouro ou prata. Entrei numa loja, verdadeiro bazar. Casa
muito grande, estabelecimento antigo. Fui atendido por um senhor de seus sessenta e poucos anos que ao ser
informado da minha pretensão foi direto à prateleira, onde havia dezenas de caixas pequenas, de onde ele
retirou muitas medalhinhas, até que finalmente encontrei.
Era uma cunhagem perfeita às minhas pretensões, ao preço de 2$000 (dois mil réis) , preço irrisório, porém
como era para amostra apenas, servia-me bem. Procurei uma joalheria antiga e mostrei a medalha, pedindo
ao comerciante uma réplica em ouro ou prata e qual não foi a surpresa do vendedor que, com a medalha na
mão, foi logo dizendo: "0 senhor não precisa procurar medalha de prata porque esta sua é prata legítima e
cunhagem portuguesa das melhores". Ato contínuo ao meu espanto, chamou um seu conhecido, que
coincidentemente passava, ao qual, para tirar minhas dúvidas, perguntou apresentando a medalhinha. O
conhecido, com a maior convicção deste mundo, foi logo dizendo: "Prata de cunhagem portuguesa, das
melhores que já vi". O homem era fabricante de correntes e medalhas em Tiradentes e era fornecedor das
joalherias, inclusive daquela onde me encontrava. Sendo assim, disse eu, vou procurar quem me vendeu e
informá-lo do acontecido. Não queria eu aproveitar de um engano de um senhor idoso, pensei eu. Ao chegar
ao estabelecimento, procurei a mesma pessoa com a qual adquiri a medalhinha. Após expor-lhe a minha
surpresa na constatação de ser ela de prata e que poderia ser engano dele, respondeu-me: "Filho, seja prata ou
ouro, o que você pagou por ela é lucro da casa. Essas medalhas, no balanço, não tiveram valor, entraram com
o zero. Adianto-lhe mais: são tão antigas que já não me lembro quando foram adquiridas", dando-me a
entender que ele era o chefe da firma. Agradeci e levei a medalhinha para casa com a consciência tranqüila.
Dias depois seria a apresentação do mano Nacib em Juiz de Fora para, em conjunto com outros colegas
vindos de várias cidades vizinhas, seguirem para Três Corações, para o quartel da Cavalaria.
Fomos juntos e em Juiz de Fora os convocados seguiram num vagão da Estrada de Ferro Central do Brasil,
vagão especial. Segui junto, em outro vagão destinado a passageiros comuns. Em Barra do Piraí havia
baldeação para outro comboio. Já era quase noite e a baldeação demorava mais ou menos quarenta minutos,
prazo suficiente para jantar e transferir as bagagens para outro trem. Prevenido que em Barra do Piraí havia
muitos punguistas - na época dificilmente se falava em assaltos, mas era comum um batedor de carteira ou
mesmo pessoas especialistas em truques e boa conversa para "limpar" o otário, expressão usada - eu, que
tinha lidado no Rio com quase todas as artimanhas sem sofrer um arranhão sequer, vi-me, de repente, num
dilema ao transportar minha bagagem para outro vagão. Um rapaz da minha idade ou talvez mais velho
interpelou-me dizendo que estava viajando e de repente ficou sem dinheiro para prosseguir. Precisava de
vinte mil réis e em troca ou garantia me oferecia uma carteira de couro nova, cujo valor ultrapassava em
dobro a quantia pleiteada. Não tive dúvidas. Pelo sim ou pelo não, dei-lhe os vinte mil réis sem aceitar a
garantia, dizendo-lhe: "Qualquer dia a gente se encontra e você me paga". Agradeceu-me e saiu. Nunca mais
o vi. Quem sabe se não ficando com a carteira tenha evitado um futuro aborrecimento, que eu acho ser o mais
provável.
Chegamos, enfim, a Três Corações à noite. Por incrível que pareça não encontramos um quarto sequer nos
hotéis. Conformamo-nos em passar a noite numa pensão de terceira classe para no dia seguinte, talvez,
encontrarmos um quarto para dois, em qualquer hotel. No dia seguinte, procuramos o Sr. José de Castro
Pereira, médico conceituado na cidade, a fim de obter um atestado que facilitasse a saída do mano. Não foi
possível. Nacib estava como um "touro", felizmen1e. Todavia, insisti com o médico no sentido de dar um
diagnóstico que o impedisse para a Cavalaria, o que de fato ele, o médico, entendeu e deu o atestado que
seria uma "pega" para dialogar com o quartel. Tinha no bolso uma carta que o bondoso Sr. Miguel, meu
sogro, escrevera para o Sr. José Labrude, comerciante abastado em Três Corações, cuja missiva fazia lembrar
ao Sr. José, os tempos de Rodeiro, anos atrás, com uma frase chistosa que os dois curtiam quando eram lá
residentes.
Ao me apresentar ao Sr. José Labrude e ante a leitura da carta, que lhe causou muita satisfação e risos nas
frases nela contidas, foi muito amável, convidando-me a almoçar e conhecer sua família. Agradeci, mas
precisava de seus encômios no caso de ser possível, ou seja, conhecimento com os oficiais do exército, o que
de pronto ele me disse ter amizade com alguns e que no dia seguinte iria providenciar uma ajuda. Faltavam
ainda três dias para os exames. No dia seguinte, já me havia instalado no Hotel Brasil, dividindo um quarto
com um convocado daquelas redondezas e comecei a observar o livro de entrada e saída de hóspedes com
muito cuidado e discrição. À noite, quando procurava a chave do quarto na Portaria, ali pelas dez horas e
meia, mais ou menos, cansado das lides do dia e, principalmente, pela preocupação e dificuldades
encontradas, o moço da Portaria me informou que, em virtude de bebedeira do meu companheiro de quarto,
era preferível não entrar , já que o rapaz estava muito violento, ao que não dei grande importância,
adivinhado, de antemão, que seu caso era o engajamento no exército. Entrei no quarto, acendi a luz e, para
surpresa minha, o companheiro estava calmo, porém chorando. Procurei todas as maneiras para confortá-lo e
durante muito tempo ficamos conversando. Agora, já mais calmo, disse-me ele: "Sou arrimo de família;
minha mãe ficou sozinha chorando em casa sem a menor condição de sobrevivência, já muito velha para
qualquer serviço. Sou bombeiro hidráulico e bem ou mal a gente ia levando a vida. Apresentei a eles no
quartel um certificado de autoridades da minha cidade, como arrimo, na certeza da validade deste
documento. Qual o que! Não respeitaram nada e fui aprovado para me apresentar depois de amanhã. A minha
revolta maior, causa de ter bebido uns goles, é que gente de minha terra, Uberaba, chega aqui, fica no hotel e
nem se submetem a exame algum e são dispensados e a carteira de reservista é trazida para eles aqui mesmo
no hotel. Ainda hoje mesmo saíram dois com seus pais, tomaram seus carros e partiram com a dispensa do
exército, sem saírem do hotel. Estava com uma idéia e gostaria de sua opinião. Pretendo "dar no pé" essa
mesma noite. O que você acha?" Perguntou-me à guisa de conselho. "Eu não inventei essa guerra; não sei
nem o motivo verdadeiro da gente ir morrer no estrangeiro! Para defender o que?" "Realmente você tem
razão", disse-lhe, "mas a deserção é crime e você sabe disso. Porém não digo pra você nem sim nem não.
Mas eu, no seu lugar, faria a fuga"
Pela manhã, quando acordei, olhei para a cama do companheiro e para surpresa minha, estava vazia. Levara
seus pertences. Um bilhete dizia: "Adeus, muito obrigado. João Pedroso"
O amor filial falou mais alto! Neste mesmo dia, pela manhã, orientado pelo diálogo com meu companheiro,
procurei o livro de Registro de Hóspedes e observei que pessoas de sobrenomes iguais, confirmando o
desabafo do convocado, eram realmente de pais e filhos, dois convocados que saíram sem entrar no quartel.
Observei-lhes os nomes e localidades e mentalmente fui armazenando para depois tomar notas sem ser visto.
E, assim, consegui quatro nomes completos e localidades de origem. Lembrei-me imediatamente do Dr.
Botafogo, de Juiz de Fora: "Tem Zebu, sai. Não tem, fica"
À véspera do dia aprazado para os exames, o mano Nacib já começava a desanimar, pois apresentara o seu
atestado na Junta examinadora no quartel, sem que eles dessem a menor importância. Procurei o Sr. José
Labrude na esperança de ter conseguido algum amigo dele e qual não foi minha surpresa ao me dizer que não
lhe fora possível conhecer ou saber de ninguém com o qual eu pudesse dialogar. Ao contrário do dia em que
o conheci, neste foi muito claro: "não conheço ninguém do exército, lamento". Compreendi então que o Sr.
José estava com medo de se envolver, talvez aconselhado pela sua esposa, na qual notei atitudes frias quando
me viu.
O tempo estava se encurtando, quando, em conversa com um militar menos graduado, este me informou que
conhecia o Dr. Themístocles de Souza, com residência à Rua Campos Salles. Não sabia o número, mas era
perto da Igreja. Esse médico fazia parte da Junta. Segui imediatamente para a casa do referido médico, antes
do almoço, a fim de encontrá-lo ainda em casa. Chegando ao local indicado, deparei com uma residência
assobradada e uma placa - Dr. Themístocles de Souza - Médico. Subi os poucos degraus do prédio e, ao me
anunciar por uma campainha, veio me atender uma criança muito bonita abrindo-me a porta e me convidando
a entrar. "Seu pai está?" "Está sim". "Quem é?" "Indaga uma voz forte e vindo até a sala foi logo dizendo:
"Vamos entrar". "É o Dr. Themístocles?" "Sim, em que posso servi-lo?" Francamente, pela boa recepção,
senti-me muito à vontade e sentando-me, a seu convite, fui logo dizendo: "Doutor, eu não sou daqui e, talvez
por isso, essas subidas de morros me deixaram um tanto zonzo. “Estou com tonteira”. E ele inteligentemente,
sem acreditar na minha versão, foi direto: "O senhor tem algum convocado?" "'Sim, e estou um tanto
embaraçado, porque meu irmão não tem condições físicas para servir na Cavalaria e desejo saber como farei
para convencer a Junta Médica da qual o senhor faz parte, o que de antemão agradeço". "Eu faço parte da
Junta, porém, quem tem voz ativa e, em suma, quem decide é o tenente Ribeiro, residente à Rua Tiradentes,
bem perto do Posto de Saúde".
À tardinha, após o expediente no quartel, procurei o Dr. Ribeiro em sua residência, que era bem no centro da
cidade. Fui recebido pelo Dr. Ribeiro pouco depois de seu jantar e enquanto ele terminava sua refeição,
aguardava sua presença sentado no alpendre a convite de sua empregada, que veio atender à porta.
Falei, falei... contei o caso de São João Dei Rey, invocando colegas seus dessa cidade e também de Juiz de
Fora. Afinal, estava jogando uma cartada decisiva e precisava de muita sorte porque toda criatura humana é
dotada de órgão simpático próprio e muitas vezes esses órgãos simpáticos não encontram afinidade entre
duas pessoas pois, por muito que se queira agradar, quando acontece, num encontro ou num diálogo, a
rejeição por uma das partes é o suficiente para o fracasso. E, ao contrário do Dr. Themístocles, senti que não
estava bem com o Dr. Ribeiro, a despeito de sua gentileza e aparente cavalheirismo. Ali pelas 19:30 horas
despedi-me dele com a promessa de atender o mano Nacib às 8:00 horas da manhã. No dia seguinte, bem
cedo, muito antes da hora marcada, o mano Nacib esperou por ele e continuou esperando até a hora do
almoço. Nada. "0 tenente Ribeiro não vem mais" afirmou um funcionário. Nacib voltou desolado e quando
me encontrou no lugar combinado, notei-lhe o desânimo e a frustração.
À tarde procurei o médico para saber o que aconteceu, quando disse, com a maior cara-de-pau, ter marcado
8:00 horas da noite e não da manhã, ao que lhe retruquei: "Como pode ser oito da noite, se nesta hora eu me
encontrava com o senhor, em sua residência?" Ele se embaraçou um pouco mas teve atitude firme. "Foi mal
entendido". Neste mesmo dia o mano fora aprovado nos exames e tinha mais vinte e quatro horas para se
apresentar e ser engajado no Serviço Militar de Cavalaria.
Senti-me só e completamente desamparado naquele longínquo Três Corações e quase impotente para a
missão encetada quando, num estalo, minha mente encontrou a solução.
No dia seguinte procurei o tenente Ribeiro que, à porta de sua casa, se preparava para sair para o quartel, para
onde se dirigia a pé. A distância não ia além de duzentos metros. Caminhei com ele cento e cinqüenta metros
procurando convencê-lo de que dentro de quarenta e oito horas, prazo do Regulamento, poderia ele ainda
fazer a revisão do exame, dando-lhe a entender que pagaria qualquer despesa com essa revisão. Como disse,
o tenente parecia-me não me ter simpatia. Não cedia nada, e ante à sua manifestação de enfado com minha
conversa, parei quase a trinta metros do quartel e disse: "Tenente, até agora fui humilde e suplicante, porém
em vão. Fique sabendo que sou hóspede do Hotel Brasil e tenho documentação de todos os reservistas de
Uberaba que se foram sem se apresentarem ao quartel". E num impulso de coragem disse-lhe: "Amanhã
mesmo, na 4a. Região Militar de Juiz de Fora, onde tenho amigos, vão saber do caso, com nomes e endereços
documentados". De onde me veio tamanho destemor, não sei. É o dito popular: "A necessidade faz o sapo
pular". É o respingo da sopa na barba do monarca. "Se tenho que morrer por causa de um pingo, que vá a
terrina toda",
Essa repentina mudança na minha atitude fez tremer o tenente. Notei-lhe medo nos olhos e sua atitude um
tanto despótica se modificou e tornou-se até amável. Prometeu-me, em troca, é claro, dar ao mano Nacib uma
licença para tratamento dentro de alguns dias. Essa ocorrência terminou com final feliz. Dias depois o mano
chega a Ubá e pouco tempo depois o término da guerra e, com ela, o terrível pesadelo.
Em abril deste mesmo ano de 1945, Ibrahim e Ziza são contemplados com o nascimento de seu primogênito,
o querido Munir, para alegria e felicidade dos avós e tios paternos, como também para festejar a vida de seus
avós maternos Soares e D. Rosária e de seus tios Izabel e Joãozinho.
Mais um sobrinho, mais um neto para enriquecer a família do Sr. Jacob.
Pouco tempo após esse acontecimento, o mano Nacib contrai núpcias com a querida Rosa, enriquecendo o
patrimônio familiar de Jacob e Sarah, padrinhos de batismo da recém-casada. Nacib e Rosa formavam um
casal feliz, devotados um ao outro no trabalho e nas lides do dia-a-dia na loja adquirida do mano Ibrahim,
intitulada "Casa Munir", homenagem a seu querido primogênito. Nacib conservou o nome e assim a família
Jacob contava com " A Favorita", "Casa Central", "Casa Munir", " A Preferida", "Fábrica de Balas Odette" e
"Baião e Jacob", firma que durou pouco tempo, do mano Ibrahim e Ubaldo Baião, no ramo de rádios e
consertos. "A Favorita", menina dos olhos da família, matriz de todas as realizações, agora dirigida pelos
Irmãos Jacob, Ibrahim e Tufy, continuava progredindo, mercê do trabalho inteligente e assíduo de seus novos
proprietários.
Tio Tanus, já alquebrado pelos anos e pelas vicissitudes da vida, agora com o término da guerra, manifestava
vontade de regressar à sua terra e à sua família, Entretanto, o dinheiro, pouco que era, ele transferira para seu
filho Caram, para sustento deles lá no Líbano. De concreto mesmo, o que lhe restava da liquidação de seus
negócios não dava para a passagem de navio. Dessa forma, fizemos uma reunião familiar e decidimos ajudar
nosso tio a realizar o seu desejo. Todos colaboraram com uma importância em dinheiro e, dessa forma,
reunimos o suficiente para a sua viagem e alguma sobra, naturalmente. Como o tio pretendia viajar via
Gênova, solicitamos ao Sr. Alfredo Côdo uma carta para, no caso de necessidade, ser apresentada às
autoridades italianas em Gênova. Tudo isto fora precaução e excesso de zelo, porém justificável pela
avançada idade do tio Tanus. Embarcamos no expresso das 10:00 horas na E. Ferro Leopoldina com destino
ao Rio de Janeiro. Em lá chegando tomamos um hotel da Rua da Constituição, já meu conhecido de muitas
viagens feitas para fazer compras.
No dia seguinte, procuramos nos informar sobre a data provável de navios, cujo itinerário seria via Gênova.
Trocamos os cruzeiros por dólares e procuramos ajustar os papéis para o Passaporte, Polícia Central,
Consulado Italiano e Departamento de Viagens para estrangeiros, etc. Fomos informados de que um navio
italiano estaria no Porto do Rio de Janeiro mais ou menos em quinze dias e, desta forma, não era possível
para mim ficar tanto tempo no Rio. A convite do amigo Tanius Richa, titio podia ficar em seu sítio em
Belfort Rocho, subúrbio do Rio. E. F. Rio Douro, Bitola Estreita, viagem de quarenta minutos de duração.
Richa adquirira esse sítio, que ficava bem perto da estação, em 1938, como bom investimento de capital.
Tinha uma sede muito boa e grande, com várias casas menores para os agricultores e meeiros. Lugar onde o
Richa passava seus fins-de-semana. Consultado sobre o convite, tio Tanus aceitou de bom grado e eu fiquei
muito contente com essa solução, pois o titio teria companhia dos serviçais da casa, como também a do
amigo Richa nos fins-de-semana, o que seria preferível a ter que ficar em um hotel sozinho ou voltar para
Ubá comigo, o que não era aconselhável, por ser viagem muito cansativa. Já no terceiro dia desde nossa
chegada ao Rio, numa sexta-feira, fomos os três, Richa, tio Tanus e eu a Belfort Rocho e de lá voltei sozinho
para a cidade. Tio Tanus ficara bem alojado num quarto bem confortável, cujas janelas davam para o pomar,
de onde emanava uma brisa fresca e perfumada das flores silvestres. Felizmente o tio ficara bem instalado e
isto me despreocupou bastante, podendo viajar para Ubá tranqüilo, pois o tio estava em casa de amigo.
Os papéis para habilitá-lo para o embarque ficaram a cargo do Sr. José Saada que, segundo conhecidos, era
homem habilitado e conhecedor do ofício que se propusera a realizar. Dei-lhe cento e cinqüenta cruzeiros
para realizar esse serviço, incluídos os custeios de selos, etc. Era na época uma quantia apreciável e bem
além do que se estimara a despesa e serviço.
Parti para Ubá no dia seguinte e eis que, na semana seguinte, recebo carta informando que o tio Tanus
deixara a chácara e estava alojado em casa de um seu conterrâneo na Rua Senhor dos Passos e pedia a minha
presença. Parti incontinente para o Rio, sem ao menos saber a causa desta deliberação. Tio Tanus estava mal
alojado em uma vaga apertada, pois o seu conterrâneo e amigo era muito pobre e não tinha melhores
condições para abrigá-lo. Levei-o imediatamente para o hotel, agradeci imensamente à família que lhe dera
guarida e mais tarde fiquei sabendo do ocorrido. "Esse homem", disse o tio Tanus, referindo-se ao Richa, é
um sem vergonha, não teve respeito por mim e nem pela minha idade..." A verdade é que o tio ficara
melindrado e muito descontente com seu anfitrião. Richa, numa de suas saídas para a cidade, disse ao tio
Tanus que podia ficar tranqüilo e podia dispor de tudo ali no sítio, inclusive as mulatas, apontadas pelo Richa
: "são todas suas!" Essa brincadeira, o tio Tanus tomou-a como ofensa moral e dali o motivo de sua
precipitada mudança. José Saada, procurado por mim para acerto de contas, nada fez do que se propunha.
Gastou o dinheiro e veio com desculpas esfarrapadas, isso faltando três dias para o embarque, que seria numa
segunda-feira, dia 18 de junho de 1947, época boa porque era verão em sua terra. Pus-me imediatamente em
campo para legalizar os papéis, começando pela polícia central, onde em menos de duas horas estava com o
documento assinado e de acordo com o desejo do tio. Tomei um táxi e fomos os dois ao Consulado Libanês e
Italiano em seguida, ficando apenas a polícia estrangeira para o expediente de sábado, que atendia até ao
meio-dia. Tudo pronto para o embarque. No domingo, perguntei ao tio se queria assistir à missa na Igreja
Ortodoxa e ele, incontinente aceitou, muito admirado de saber que havia igreja de sua religião, que era
Católica Ortodoxa. Ritual Grego.
Tomamos um táxi e rumamos para a Avenida Gomes Freire. Entramos na Igreja antes do começo da missa.
Havia muita gente naquele domingo, mas encontramos dois lugares num dos primeiros bancos. Confesso que
até hoje ainda guardo a sensação daquele dia e agradeço a Deus a ventura de ter propiciado ao tio tamanha
felicidade. Nunca havia visto ou sentido em alguém tamanha emoção. Quando o padre entrou pela porta
central e as duas portas laterais do altar-mor ocupadas pelos dois diáconos, o nosso tio, de tão feliz, chorou.
Assistimos à missa e voltamos novamente para o hotel, muito felizes, eu mais ainda, pelo ensejo de ver o tio
muito satisfeito.
Neste mesmo domingo encontrei o nosso amigo e cunhado do mano Jorge, Nagib Reskalla no Largo de São
Francisco; ele iria ficar no Rio uns três dias. Sabendo que eu estava com o tio e o motivo, dispôs-se a auxiliar
no que fosse preciso mas, felizmente, tudo estava arranjado e somente aguardava o dia do embarque.
Todavia, muito prestativo, o amigo Nagib fez questão de nos acompanhar até o Cais do Porto, onde, após as
formalidades legais, o tio Tanus subiu a escada do navio, não sem antes um demorado abraço, me beijou,
com o ALA IRDE HALAIK - Deus te abençoe - antes de entrar deu-nos um aceno de mão. Foi o seu último
Adeus!
O navio apitou... Era uma vez o tio Tanus no Brasil. Boa viagem titio!

CAPÍTULO XV
HONRA AO MÉRITO

Jorge, sempre dinâmico e atuante na Fábrica de Balas e Pastilhas, conseguiu, com muito sacrifício, comprar a
casa vizinha à sua Fábrica, do Sr. Maninho Moraes, à Rua 15 de Novembro, 127 , para onde se transferiu
com sua família.
Essa casa era grande e possuía um amplo quintal, com entrada independente pelo lado esquerdo, dando
acesso à residência e, no prolongamento do corredor, um portão de madeira e o quintal, onde o mano Jorge
edificou um forno a lenha para Padaria, construindo igualmente um grande depósito para farinha e outros
utensílios necessários ao estabelecimento.
Possuía a casa três portas largas para a loja onde se venderia a varejo pães, roscas, bolos e doces de sua
própria fabricação. Desta forma nasceu a "Padaria Santa Rita", à Rua 15 de Novembro, cuja loja comunicava
diretamente com o depósito e tudo que se relacionasse com a parte interna teria forçosamente de passar pela
loja, dando assim uma segurança na fiscalização das mercadorias que saíam da parte interna. A situação do
mano Jorge era boa e de perspectivas de progresso, mormente pela expectativa de seus filhos Edson e Hélio
que, embora estudando, davam-lhe uma mãozinha no estabelecimento até que o Hélio, já moço, tomou a
frente da Padaria na parte técnica e, como era um rapaz dedicado ao trabalho, teve atuação de muita
eficiência no fabrico de pães, doces, roscas e outros produtos, chegando às vezes até a improvisar inovações
neste ramo de negócios, granjeando, desta forma, uma enorme freguesia.
Jorge, além do Sr. Cafini, tinha como vizinhos e amigos o Sr. Braz Lamarca, Abdo Haikal, Dilson Bretas
Aleixo, Antônio José Saleh, Teodomiro de Lucas, Felício João Saud, Geraldo Durço, Antonio Peixoto,
Gasparino Secchi, Oswaldo Salgado (Vazinho), Augusto Facchini, José Rinaldi, Adelino Gasparoni, Ulisses
Cavalieri e outros - aos quais peço desculpas pela falha de memória - que, com seus familiares, constituíam
para Jorge e Nagla uma comunidade saudável e feliz.
Nosso rádio "Westinghouse", comprado a prestação, possuía um som muito nítido, principalmente porque
nossa antena fora instalada pelo velho amigo Manoel Ribeiro de Almeida, então nosso confrade no
"CÍRCULO EXOTÉRICO DA COMUNHÃO DO PENSAMENTO", que funcionou algum tempo em Ubá,
em uma ampla sala cedida pelo confrade Brunini, no Edifício Iracema, à Rua São José, de sua propriedade,
denominado "TATWA NIRVANA", sob a direção do Mano Miguel na presidência. É pena que o Sr. Manoel
estivesse ausente na fotografia que tiramos.

Foto:http://picasaweb.google.com.br/peloscaminhosdavida
Da esquerda em pé: Elias Jacob, Onofre Namorato, Joaquim dos Reis, Guido Brunini, Murilo Lobo, José
Pires da Luz, Luiz Franco, Luiz Gonçalves e Salvador Marazzo. Sentados: Severino Francisco de
Albuquerque, Eduardo Cardoso, Manoel Baião, Miguel Jacob, Euclides Mendes Novaes. Os garotos Emir e
Elimar.

A Rádio Nacional do Rio de Janeiro liderava, na época, com programas de auditório da melhor qualidade,
brilhando na oportunidade: Emilinha Borba, Marlene, Aracy de Almeida, Carmem Miranda, Sílvio Caldas,
Francisco Alves, Vicente Celestino, Nora Ney, Elizete Cardoso, Gilberto Alves, Dircinha Batista e Carlos
Galhardo.
Na década de 40 surgiram novos cantores, compositores e intérpretes da música popular brasileira, cuja
contribuição vem enriquecer ainda mais nosso potencial artístico. Intérpretes de Ary Barroso, Noel Rosa,
Lupicínio Rodrigues, Cartola, Herivelto Martins, Braguinha, Wilson Batista, Lamartine Babo, brilhavam com
suas vozes até hoje admiradas em discos por todos que, como eu, são amantes das músicas românticas e seus
cantores. Alguns já falecidos, mas que ficaram eternizados em gravações como: Albênzio Perroni, Orlando
Silva, Francisco Alves e outros.
A Rádio Nacional do Rio de Janeiro tinha como apresentadores de programas locutores de grande gabarito,
destacando-se na época: César de Alencar, Paulo Gracindo, Celso Guimarães e outros de igual valor, com
destaque para Paulo Roberto, pois a apresentação de seus programas muito me tocou a alma. Às quartas-
feiras mantinha um programa patrocinado pela "ESSO" intitulado "Honra ao Mérito", cuja finalidade era
tornar de conhecimento público exemplos edificantes dos personagens focalizados: uma professora que
dedicou grande parte de sua vida a serviço do magistério, educando crianças nos seus primeiros BÊ a BÁS
sem, contudo, ter auferido vantagem pecuniária, só o fazendo pelo amor às crianças e à Pátria!!! No final de
todas as narrativas, por sinal, brilhantes e entusiastas, Paulo Roberto exclamava: "Honra ao Mérito!!!" A
música de fundo completava essa apoteose.
Muitos programas eram ouvidos por mim e por Maria, que também gostava. Entretanto, um deles calou bem
fundo em meu ser, cuja emoção invadiu toda minh'alma. Tratava do seguinte, em resumo: havia em Santa
Cruz, subúrbio do Rio de Janeiro, um médico muito estimado e chefe de família exemplar, MÉDICO DA
POBREZA, como era conhecido o Dr. Júlio Cesário de Mello. Seu consultório era muito concorrido e
diariamente atendia a um grande número de pacientes vindos de toda a região limítrofe de Santa Cruz, em
sua maioria gente pobre, aos quais dava consultas e muitas vezes remédios e até dinheiro. Assim, não tendo o
Dr. Júlio outra fonte de renda, vivia de seus parcos recursos de Chefe do Posto Estadual de Saúde. Pela
generosidade de seu boníssimo coração, sempre um ou outro compadre, que por sinal eram muitos, trazia-lhe
da roça frangos, ovos e às vezes um leitãozinho. Vivia o Dr. Júlio Cesário muito feliz com sua família, sem
nunca se importar com a opulência ou mesmo com sua modesta indumentária. Vivia feliz porque era rodeado
de amigos.
Certo dia, pela parte da manhã, um modesto lavrador vindo de paragem um tanto distante, montado num
cavalo e trazendo outra montaria para o médico, com muita aflição se dirigiu à sua residência implorando
pelo Dr. Júlio, o qual o atendeu na porta. Fez-lhe diversas perguntas sobre o filho enfermo. Pelo relato do
aflito lavrador, o médico fez seu diagnóstico e, sem demora, apanhou sua valise, já com os remédios
necessários para o caso, dizendo: "vamos embora"
Durante a caminhada, o pai, já refeito da preocupação, dado a confiança que depositava no médico, andou
procurando assunto com o companheiro de viagem. Entretanto, o doutor não estava disposto a conversar,
cavalgava cabisbaixo e triste, só dizendo que precisava de se apressar a fim de que sua volta fosse no
máximo até às 4:00 horas da tarde. Precisava estar a estas horas em casa. Após estranheza do lavrador, que
via na atitude do médico o contrário de seus hábitos, sempre brincalhão e alegre, contador de anedotas e
gostosíssimas piadas, seus pensamentos começaram a ruminar idéias das mais diversas: "quem sabe se o Dr.
Júlio deixou visitas em casa e fui interromper seu convívio ao lado de amigos? Ou quem sabe, não seja, mas
ele sempre foi de "boa prosa". O que terá acontecido a ele?"
Enquanto esse espaço de silêncio se fazia, chegavam finalmente à casa do menino enfermo. Examinado
cuidadosamente, constatou o médico tratar-se de difteria aguda. Felizmente trazia ele na valise soro
antidiftérico, de acordo com seu diagnóstico feito à porta de sua casa, pela informação do pai da criança.
Aplicado o soro lenitivo, o Dr. permaneceu calmamente à beira da cama do paciente até que, enfim, notou,
pela respiração da criança, que já se encontrava fora do perigo.
"Vamos embora, compadre. O tempo está encurtando, seu filho, felizmente, está salvo!" A mãe, em prantos,
quis beijar-lhe as mãos em sinal de agradecimento, mas o médico não permitiu, dizendo: "Quem salva é
Deus!"
A volta dos dois se deu da mesma maneira: diálogos curtos, frases soltas sem a menor possibilidade de
prosseguimento quando, ao chegarem à residência do médico, notou o lavrador uma aglomeração de homens,
mulheres e crianças, uma pequena multidão em frente à casa do Dr. Júlio. Gente entrando e saindo. O
lavrador espantado, perguntou-lhe o que significava aquilo, ao que o médico com tristeza respondeu: "A
razão de precisar voltar até as 4:00 horas da tarde é porque é hora do enterro de meu filho! "Pelo amor de
Deus, doutor, me perdoe. Não sabia e fui tirar o senhor de sua casa, logo hoje, neste doloroso transe..."
"Fique tranqüilo, compadre. Seu filho estava vivo e o meu já estava morto!"
E a exclamação comovida de Paulo Roberto:
"HONRA AO MÉRITO!"

CAPÍTULO XVI
SONHO, MÚSICA E POESIA

Tufy Felício, filho de Felício Antônio e D. Latife, moradores há muitos anos na Avenida Governador
Valadares, tornou-se nosso compadre, dada a amizade conosco, desde solteiros, pois casara-se com Sarah,
filha dileta de Tito César e D. Nêga César, também nossa amiga. Fomos padrinhos, Maria e eu, da graciosa
filha que na pia batismal se chamou Lourdes e essa amizade tornou-se mais consolidada através dos tempos.
Seu primeiro filho, Sérgio, é contemporâneo da nossa Elimar, razão pela qual os cuidados da infância eram
análogos. O mesmo médico pediatra, o Dr. Vianello, quase sempre ministrando os mesmos remédios nas
pequenas gripes ou resfriados das crianças; era comum ao compadre Tufy recorrer a nós em horas adiantadas
da noite para pedir sulfa ou mesmo outro remédio para a febre do Serginho. Estando as farmácias fechadas,
esta atitude era normal de parte a parte. Felizmente, no dia seguinte tudo estava bem. O compadre era
entusiasta do Aymorés e nisto nós empatávamos, pois desde mocinhos ambos cultivávamos o mesmo ardor
pela pequenina árvore plantada na Rua de Cima, hoje Governador Valadares, que agora se tornava mais
frondosa na direção do amigo "Tote do Toté" - Aristóteles Alves de Souza, o "Presidente das Reformas",
tendo a seu lado o recém-chegado a Ubá, onde contraiu matrimônio, o nosso saudoso amigo Rubem Barreto
Rodrigues, o "Rubem Borracheiro", alcunha esta por causa de sua profissão de recauchutagem de pneus, e
que se tornou ubaense de coração. Rubem Borracheiro, pelo seu trato afável, muito atuante e prestativo,
ganhou a amizade de todos os ubaenses e, graças à sua popularidade e carisma, tornou-se Vereador da
Câmara Municipal de Ubá, pelo PSD. Pelo Aymorés passaram muitos astros da bola além dos já citados
anteriormente, ou seja: Guará e Nicola, transferidos para o Atlético Mineiro de Belo Horizonte, onde
brilharam com seu talento, isto em 1933, ficando Mundinho, por ser funcionário da Estrada de Ferro
Leopoldina, em Ubá, e por sua opção, pois requisitado pelo Atlético ele foi, até com muito empenho.
Coronel e Simões foram a dupla de zagueiros mais duradoura no Aymorés. Entretanto, com o tempo, foram
dando lugar para outros mais novos terem oportunidade de mostrar seu talento e, com muito brilho, atuaram
Loló, Galdinho e Zé da Fita na zaga; Nardinho, Doca, Tebas no centro e Raul Urias, Cafini, o (Pirillo),
Narciso, Habib, Salles, como artilheiros, além de outros. José Rafael Mendes, o "Zé Vaca", fechou por muito
tempo o gol do Aymorés, assim como Laércio e seu irmão Zizito Sapateiro, no gol e na defesa,
respectivamente.
Vale lembrar que em todas as gestões dos Presidentes Giggi, Afonso de Carvalho, até a época do Tote, um
grande elemento contribuiu para o fortalecimento do Aymorés. Emprestando os seus profícuos trabalhos e
esforço, o nosso estimado amigo José Martins Silveira atuou como incentivador e amigo, desde sua
fundação. Era um entusiasta vibrante nos domingos de jogo, puxando o coro: (Mais um -Mais um) no meio
da torcida. Tardes inesquecíveis, quantas saudades me trazem!
Após a década de 70 o querido Aymorés tomou novo impulso, tendo à sua frente o mano Ibrahim Jacob que,
desde a infância, destacou-se como jogador do time juvenil e foi guindado à presidência do "Azulão", dando
ao clube, com suas realizações, uma projeção acima de qualquer expectativa.

***

O Sr. Miguel, agora com sua nova residência à Rua Nossa Senhora da Saúde, 193, ficara muito feliz em
morar em casa própria, ideal alcançado após muitos anos de luta. Entretanto, continuava trabalhando fora até
que, surgindo uma oportunidade de estabelecer-se por conta própria, tornou-se proprietário de uma das
melhores oficinas de marcenaria da região, instalada à Travessa Levindo Coelho, com maquinário de
primeira qualidade adquirido de Zito Barroso, no valor de cento e trinta mil cruzeiros. Como o negócio era
grande demais para ele, propus-lhe arcar com a responsabilidade total da compra e manutenção da oficina,
Fiz o negócio com o Barroso, pagando cinqüenta mil cruzeiros à vista e o restante em promissórias de dez
mil cruzeiros, vencimento mensal e sem juros, assumindo imediatamente a posse do estabelecimento, com a
Firma Elias Jacob, por insistência do Sr. Miguel que assim preferiu porque, felizmente, minha firma era
conhecida e muito acreditada, dando mais facilidade na aquisição de madeiras e outros materiais
indispensáveis ao empreendimento.
Desta forma ficamos sócios. Capital e Trabalho, juntos para vencer.
O Sr. Miguel, não obstante ser um dos melhores marceneiros da época, não tinha visão empresarial, fazendo
orçamentos como se fosse apenas o trabalho que contava, o que no final era prejuízo, pois não computava a
força motriz, o INPS dos funcionários e outras.despesas da Oficina. Trabalhava desde o alvorecer até a noite,
almoçava na Oficina e jantava às vezes às 9:00 horas da noite, preocupando muito D. Saide, que não se
conformava com esse sacrifício voluntário do esposo. Eu, particularmente, não concordava com essa atitude
do Sr. Miguel e cheguei muitas vezes a manifestar descontentamento à Maria que, também como filha, sentia
que o físico do pai, apesar de sadio, não podia agüentar tanto...
Em uma das tardes em que íamos jantar em sua casa, como de costume, D. Saide, muito apreensiva me disse:
"Fala com o Miguel pra não trabalhar tanto". Ao que lhe dizia que os operários sempre saíam às 5:00 horas e
eu já havia lhe falado várias vezes que o excesso de trabalho prejudica a saúde, mas ele, muito entusiasmado
com o serviço, não me atendia.
E assim, transcorridos alguns meses, notei que, apesar deste sacrifício, iríamos entrar em prejuízo e,
encontrando compradores para a Oficina, falei com o Sr. Miguel pedindo sua opinião no caso, alegando que
podíamos sair do negócio com um pequeno lucro. O Sr. Miguel concordou e para mim foi um alívio, pois
assim estava evitando prejuízo e, o que é mais importante, preservando-lhe a saúde, agora tão maltratada pelo
excesso de trabalho.
Feita a transferência nos moldes com que a adquirimos, deu uma sobra de dez mil cruzeiros para o sócio,
quantia esta paga ao Sr. Moysés Coelho por um motor de 3 HP. e direito à força motriz, difícil na época,
instalando uma pequena oficina em sua própria casa, cujo terreno fora aplainado para receber as máquinas.
Oficina modesta, mas só dele. Desta forma, vi com satisfação o sorriso aflorar novamente na face do querido
sogro, para tranqüilidade de sua extremada esposa, a não menos querida D. Saide.
Final Feliz!
Nossos negócios, na "Casa Central", pelo visto, estavam caminhando muito bem. Tínhamos fregueses que se
tornaram amigos, com destaque para o compadre Odilon Teixeira e sua dileta esposa Carmem Candian
Teixeira, a saudosa comadre Carminha, que nos brindaram com o honroso convite para batizar seu
primogênito, o querido Antônio de Pádua, nosso afilhado, atualmente residindo em Belo Horizonte, casado
com Vilma Laroca Teixeira e pai de dois filhos, hoje belos e robustos rapazes.
Igualmente, fomos agraciados pelos compadres José e Anita Botaro, com o convite para padrinhos de
batismo de sua graciosa filha Angelina que, hoje já moça e muito prendada, goza da estima de muitos
amiguinhos e de todos que a conhecem.
Nesses acontecimentos, aliava-se o útil ao agradável: negócios em franco progresso e amizades ótimas
tornavam nossa vida mais agradável de ser vivida.
Vale registrar, com muita satisfação, um grande número de pessoas que a "Casa Central" recebia para um
ligeiro bate-papo e, às vezes, um cafezinho, dentre as quais destacavam-se os nossos amigos Rufino Lacerda,
Otavio Gomes, Brazilino Quaglietta, Inácio Arantes, Raul Moreira Horta, Antônio Duarte Pacheco, pai do
meu dileto amigo Nestor, Emílio Piotto, velho amigo e vizinho, Elias Accar, Luiz Franco, Evaristo Fraga,
Amin Chain e outros. Faço um destaque especial para o velho Quincas Januário, tabelião aposentado, filhos
casados, cuja preocupação somente era cultivar a sabedoria oriental. Manifestava constantemente vontade de
conhecer o "ALCORÃO", que é o livro sagrado dos muçulmanos, com tradução proibida; mantinha uma
prosa por alguns minutos e seguia para a Praça Guido para, no Bar Glória, saborear uma cerveja Theotônia,
enquanto esperava do expresso das 16:30 horas do Rio, o Correio da Manhã, seu jornal preferido, trazido
pelo nosso amigo Vicente Expósito, agente da Casa de Jornais. Esse hábito, através dos anos, podia definir o
tempo, pela passagem do velho Ouincas, que era impreterivelmente às 3:00 horas da tarde.
Guardo com muito carinho o cartão de agradecimento que nos enviou e o comovente soneto de Conde
Affonso Celso intitulado: "Anjo Enfermo", em retribuição ao poema: "O Tédio", de autor desconhecido, que
lhe ofereci por ser muito de seu agrado. Vale a pena registrá-los aqui, tanto o cartão como o soneto, como
homenagem saudosa a um amigo que se foi.
"Aos prezados amigos Elias e Senhora.
Agradecemos os cumprimentos que nos fizeram pela Rádio com a música "Sempre Juntos", por motivo de
nossas Bodas de Ouro.
Gratos somos
Quincas e Ricardina. Ubá,13.10.46"

ANJO ENFERMO -(Conde de Affonso Celso)

Geme, no berço, enferma criancinha


Que não fala, não anda e já padece.
Penas assim cruéis, porque as merece?
Que mal entrando na existência vinha?
O melindroso ser, ó filha minha
Se os céus me ouvissem a paterna prece
E o teu sofrer a mim passar pudesse
Gozo me fora a dor que te espezinha!
Como te aperta a angústia, o frágil peito:
E Deus que tudo vê, não te a extermina
Deus que é bom. Deus que é Pai. Deus que é perfeito!

Sim, é Pai, e a crença no-lo ensina;


Se viu morrer Jesus, quando homem feito
Nunca teve uma filha pequenina !!!

***
Paulino Soares, o velho Paulino, era um grande afeiçoado da poesia e era poeta também. Igualmente como o
companheiro e amigo nos anos 25 e 26, o saudoso Heitor Veiga, que exercia a profissão de alfaiate na
alfaiataria do Nico Muzitano, nosso vizinho, no prédio do Monsenhor Paiva Campos. As consagradas
poetisas e senhoras de grande cultura, Regina Godinho Fernandes e Leocádia Godinho e Siqueira, tendo esta
publicado vários livros, com destaque para "Nenúnfares", poesias de muita sensibilidade e beleza. Cândido
Martins de Oliveira, de saudosa memória, também poeta inspirado e de vasta cultura, foi membro da
Academia Mineira de Letras. Teixeira Netto, falecido prematuramente, poeta de muita inspiração, que
publicou diversos sonetos na "Folha do Povo" e "Cidade de Ubá". Xavier Pereira, além de grande cultura em
prosa, também demonstra grande veia poética com a publicação de seu livro de poesias: "Sombras e Sonhos"
com destaque para o soneto "A Caveira", cujo livro foi agraciado com bonita dedicatória da década de 40.
Ary Gonçalves, brilhante cronista, também poeta muito inspirado, herança de seu velho pai, o farmacêutico
Amaro Gonçalves, também poeta e amante da poesia romântica. A saudosa Hirtes Lisboa Andrade, poetisa
de versos muito delicados, que também cultivava o idioma Esperanto, com muita dedicação e brilhantismo.
O saudoso Ulisses Campos, que publicou várias e bonitas poesias nos jornais de Ubá. Joviano Pinto, amante
das poesias e das serestas, gostava muito de "Trovas" e recitava constantemente sonetos de Bilac, Fagundes
Varella, Casimiro de Abreu e outros poetas românticos. O nosso amigo José Dias Campolina, poeta satírico
com versos muito bem humorados.
Isso além de muitos Ubaenses, que minha memória me falha no momento, que fizeram o encanto da
mocidade ubaense de então e o enlevo dos que vivem hoje, cheios de recordações e saudades!!!

***

Dos antigos músicos, minha recordação me leva à Avenida Raul Soares, "a nossa Rua", o Sr. Máximo de
Araújo Marques no seu saxofone, cujo som mavioso ouvia-se em nossa casa, dada à pequena distância que
nos separava; no violino, além do talentoso Lincoln Ernesto, brilhou por longo tempo o som límpido do
violino de Luiz Fuzaro que encabeçava o formidável "Giggi Band Jazz": Américo Nepomuceno no contra-
baixo, Zeca Muzitano no piston, Sérgio Hipólito no bombardino, Otávio Gomes no clarinete, Antônio
Trajano no bombardino, Nelson Trajano no piston, Mariano Trevizano no piston, Ângelo Trevizano, o
"Andinho", no contra-baixo, Zé Netto no tarol, Antônio Perpétuo no prato, Gasparino Secchi no bumbo, além
de outros. Fizeram a alegria de várias gerações de ubaenses, sob a batuta do maestro Sollero, na Sociedade
Musical 22 de Maio, agremiação quase centenária, que ainda hoje conserva a tradição gloriosa sob a
orientação do nosso amigo Jesú Muzitano e uma plêiade de músicos esforçados e amigos da já consagrada
"22 de Maio"
Outros brilhantes músicos atuaram na Banda Sagrado Coração de Jesus, dentre os quais me lembro dos
maestros João Cordeiro e Osório de Castro e Nico e Chico Muzitano, que não se transferiram para outra
agremiação musical após a desativação da Banda do Padre, como era conhecida aquela sociedade musical
acima citada, mas deram muita alegria à cidade nos anos 20 e 30, de saudosa memória.
Ao falar em música, merece destaque especial a veneranda senhora D. Chiquinha Paes, mestra de duas
gerações, assim como a professora e amiga Maria Campos, pianista de brilhante talento.

***

"A Favorita", sob direção do Ibrahim e Tufy, continuava em franco progresso, bem como a "Casa Munir",
agora sob a direção do mano Nacib. Eduardo, já moço, estava fazendo o Tiro de Guerra, mas dava uma
mãozinha na "A Favorita" até que, mais tarde, com a saída do Ibrahim, tornou-se efetivo junto ao Tufy,
continuando a firma Irmãos Jacob, já muito bem estruturada.
Com a mudança do sogro para a Rua Nossa Senhora da Saúde, rareavam-se as visitas à casa de meus pais,
em virtude de, às tardes, irmos jantar na casa dos sogros. Na antiga residência deles era mais fácil para nós
passarmos pela Av. Raul Soares, na ida ou na volta. Entretanto, aos domingos, era infalível a nossa visita à
mamãe que raramente saía de casa, motivada pelo distúrbio do coração, abalado desde o falecimento do
saudoso mano João.
Papai saía às vezes. Aos domingos de futebol, era um dos primeiros a chegar ao campo e, invariavelmente, se
sentava junto ao seu amigo Antenor Brum, outro "aymoreino" apaixonado, que se exaltava nos momentos de
dificuldades dos jogadores, ou com o juiz, gritando e gesticulando com o seu guarda-chuva inseparável.
Papai torcia calado, mas vibrava muito com a vitória do Aymorés. Honra seja feita à direção do Aymorés
porque, com toda a rigidez do porteiro Luiz Godói quanto às entradas, papai teve sempre franqueado o seu
ingresso. Todos os domingos íamos visitar os velhos e nos dias de semana quando havia necessidade lá
estávamos e muitas vezes improvisávamos um jogo de buraco com Jorge, Miguel, Ibrahim e, muitas
vezes,com o Ernani Arlindo da Silva, nosso amigo e comerciante na Rua São José, bem como o amigo José
Costa Andrade. Com a crise debelada e mamãe se sentindo bem com os medicamentos ministrados, ela
própria nos mandava para casa, preocupada, coitada, mais com a nossa família do que propriamente com ela.
Dizia: "Vão para a casa. Eu já estou bem. Precisam dormir, amanhã é dia de trabalho". E a gente tinha que
sair para não preocupá-la.
Os dias foram se passando, os meninos crescendo sadios e felizes e nossos negócios estavam cada vez
melhores, com crescimento paulatino, mas seguro, quando um dia resolvi montar uma indústria. A palavra
"Industrial" me seduzia. Certo dia, em conversa com o nosso amigo Salomão David, viajante, residente em
Juiz de Fora, aceitei a sugestão de fabricar cordas de algodão e, para tanto, ele conhecia um mecânico que
fabricava as máquinas, em Juiz de Fora. Combinamos que em sua volta de Ponte Nova viajaríamos juntos até
a Manchester Mineira para conversar com o Sr. Milton Dornas, o fabricante. Confesso que, à época, apesar
de ter fornecido dez mil cruzeiros como sinal do negócio, não estava convencido de que era isto mesmo que
eu queria. A matéria-prima era resíduo de algodão. Entretanto, não foi por mim que não se realizou esse
negócio e sim pelo Sr. Milton que, adoecendo, e mais tarde por vários fatores, foi obrigado com sua família a
se mudar de Juiz de Fora para São João Dei Rey. Todavia, antes que isto acontecesse, recebi um recado dele
comunicando o seu intento e pedindo que eu fosse a Juiz de Fora para um acerto de contas. Propôs-me ele um
moinho de café com motor como paga, o que aceitei, vindo a vendê-lo para o Hubêr Coutinho em Ubá, por
pouco menos do valor do meu sinal, mas ficou evidenciado o bom caráter do Sr. Milton Dornas e sua
inquestionável honestidade. Continuava ainda com o mesmo intento. Montar uma indústria era um fascínio
para mim. Muitos viajantes, com os quais conversava sobre o assunto, davam sugestão sobre esse ou aquele
produto. Entretanto, como nossa Casa Comercial era especialista em brinquedos, a sugestão do amigo João
Secco Vaz de Carvalho, viajante de brinquedos, do Rio de Janeiro, onde residia, era de montar fábrica de
bonecos de papelão. Ele mesmo vendia esse produto e sabia perfeitamente a grande aceitação que os bonecos
tinham. A princípio achei difícil produzir bonecos, em comparação a brinquedos de madeira que só exigiam
serra circular e poucos instrumentos mais. Todavia, o Sr. Secco me convencera da pouca concorrência que os
bonecos tinham, pois, quando chegava o mês de setembro, fabricante nenhum aceitava mais encomendas,
visto a produção toda já estar vendida. Realmente a demanda era maior do que a oferta e isto me deu ânimo.
Como o amigo João Secco conhecia em Del Castilho um fabricante de bonecos, que eram os mais bem feitos
de todo o Rio, tomou a iniciativa de sondá-lo a fim de que ele aceitasse montar para mim, em Ubá, uma
fábrica. Ia saber do custo do trabalho e exigências e me escreveria a respeito. Após alguns dias, recebo do Sr.
Secco uma carta informando que a pessoa em questão era Joaquim Soares, residente à Avenida Automóvel
Club no. 1110, em Del Castilho, que aceitava montar a Fábrica pelo preço de quinze mil cruzeiros e que o
próprio Joaquim Soares telefonaria.
Realmente, dias depois, fui chamado pelo telefone da Padaria do João Brando, nosso amigo e vizinho.
"Chamada do Rio", me disse a Gracinha, dileta filha do Sr. João Brando e D. Biloca. Atendi ao telefone e era
o Soares que confirmava a sua vinda, porém teria que lhe mandar uma ordem de pagamento no valor de
cinco mil cruzeiros, ao que prontamente cedi, dizendo-lhe que a ordem seguiria por telegrama. Como ele, o
Soares, marcou o dia para vir a Ubá de ônibus, fomos eu e Maria à Rodoviária, na Praça Guido, para recebê-
lo. "Como é que vamos saber quem é ele?" Perguntou Maria. "É simples, a pessoa que titubiar na saída vai
ser ele". Dito e feito. Desce um, outro, outro, até que um senhor de seus trinta e oito anos mais ou menos,
magro, altura mediana, olha para um lado e olha para o outro indeciso. Abordei-o: "É o Sr. Joaquim Soares?"
"Sim". Este primeiro encontro foi o início de uma amizade verdadeira. Nossos órgãos simpáticos eram afins
e nossa amizade estendeu-se à sua esposa Rosalina e à sua filha Dalva, bem assim ao seu irmão Laurênio,
vindo este, mais tarde, completar as fôrmas para os Bebês no impedimento do Joaquim, que ficou doente.
Moço alegre e simpático, foi o responsável pela Exposição dos Bebês no Centro de Lavradores.
Foi feito, pela primeira vez, o "stand" da Fábrica de Bonecos "Bá e Bi", com enorme sucesso.
Essa nossa amizade foi motivada, principalmente, porque o nosso trato não se restringiu ao que fora proposto
em negócio, foi muito além, pois os bonecos, normalmente, como todos os de seu gênero, teriam que ser
revestidos de alvaiade para receber o verniz tradicional no seu fabrico. Seria uma operação a mais o
revestimento de alvaiade com um custo mais elevado, não só pelo trabalho como mais despesas com
material. Assim sendo, certo dia, quando o Soares confeccionava fôrmas para os bebês maiores, sentiu que já
não estava agindo como comerciante e cliente e chegou até a confessar que no princípio do nosso
entendimento, quando pediu o adiantamento do dinheiro pelo telefone, estava provocando, com minha
natural recusa, uma rescisão de um contrato comprometido por palavras com o Sr. João Secco.
Disse-me ele na ocasião: "Não queria vir e achei que você iria recusar normalmente e como tal não se deu,
hoje me dou por muito feliz de estar aqui". Desta forma me foi confiado um segredo de fabricação. Os nossos
bonecos não seriam revestidos de alvaiade e nem seria necessário comprar verniz, pois os nossos bonecos
seriam revestidos apenas de caulim e o verniz de fabricação caseira, de baixo custo, dando melhor aparência
por preço mais abaixo do normal. Apenas me pedia sigilo absoluto da fórmula do verniz, feito à base de
caseína, processo que lhe fora confiado por um seu amigo, um químico, residente no Rio de Janeiro.
Por que "Bá" e "Bi"? Elimar muito pequena, nos seus primeiros pronunciamentos chamava seu irmão de "Bi"
e este, quando começou a balbucear Elimar, dizia "Bá", e daí o nome carinhoso como homenagem aos
queridos filhos Elimar e Emir.
Nos primeiros meses de atividade, por sugestão do amigo Joaquim Soares, o Sr. Raul de Souza veio do Rio
para ministrar às funcionárias o fabrico da pasta de papel trabalhada nas fôrmas de gesso e cimento que eram
muitas. Começava com o boneco no. O até o 10. Portanto, tínhamos bonecos nos. 0-1 -2 -4- 5- 7 -8 e 10,
sendo que este com quase sessenta centímetros de comprimento.
Era muito divertido a gente sentir que do papel, passando pelo grude, iriam sair corpo e cabeça, pernas e
braços que, secados, iriam em banho de imersão em latas de caulim preparadas para o revestimento. Nos
bonecos nos. 5-7-8 e 10, por serem maiores, as cabeças eram separadas e daí mais trabalho. Depois do
caulim, e já secos, os bonecos eram imersos em verniz somente a cabeça e mais tarde amarrados os braços e
pernas com goma de pneu e, após vestidos de papel crepom, iam para o despacho. Várias cidades de Minas,
Estado do Rio, Espírito Santo e mesmo na Capital da República ficaram conhecendo os bonecos mais bonitos
do gênero. No Rio de Janeiro era representado pelo amigo Fued Sader. É pena que durou pouco. Não se
ganhava muito, mas dava trabalho a mais de duas dezenas de moças que, mesmo com ganho pequeno, já
ajudavam no orçamento familiar. Valeu muito essa experiência, pois os operários, em maioria moças, hoje
quase todas casadas e com filhos, ainda se lembram com saudades daquele tempo feliz e, tenho certeza, com
pensamento positivo para nós, pois, afinal, eram tratadas com muito carinho e consideração, a exemplo de
nossa amiga Alice Mariano, que trabalhava na pintura dos bebês, agora residente aqui em Juiz de Fora, onde
é professora de Ioga. Em nossos encontros, invariavelmente ele aborda o assunto da Fábrica de Bonecos "Bá"
e "Bi", com boas recordações de um tempo venturoso que não volta mais.

Foto: http://picasaweb.google.com.br/peloscaminhosdavida
Maria e eu junto às operárias no fim do ano de 1949. Da esquerda: sentados: Clotilde e Rosalina. Os garotos
Emir e Elimar. Agachado: Magno Simões.

Como a fábrica de bonecos absorvia muito o nosso tempo, decidimos transferir a "Casa Central" a José
Raymundo que, sem capital algum, assumiu a dívida total da loja, representada por promissórias, tudo mais
ou menos à base de confiança, pois os documentos não eram bem avalizados e daí a expressão "confiança".
Entretanto, apesar da honestidade do comprador, meses depois senti que tudo iria mal se não acudisse a
tempo. Aconteceu o seguinte: José Raymundo, entusiasmado com um empréstimo da Caixa Econômica
Federal de cinqüenta mil cruzeiros, que lhe fora concedido a fim de construir uma casa para morar, em
terreno que ele possuía, deu início à construção com a pequena parcela do empréstimo. Entretanto, animado e
eufórico com a construção, não quis se limitar a uma casa apenas e construiu um grande prédio, muito além
de suas possibilidades. Notei que as coisas estavam "de mal a pior"; não estava pagando as prestações e o
estoque de mercadorias ia diminuindo. Estava vendendo e empregando o dinheiro no prédio. Chamado às
falas, notei a simplicidade dele quando dizia que "pagaria a todo mundo". Mas como? O dinheiro da Caixa
Econômica fora todo empregado, o nosso também, pois de volta da "Casa Central" para nosso controle, já
havia um déficit de sessenta mil cruzeiros. Como o estoque era pequeno, tentamos soerguer a Casa com o
pouco recurso que nos sobrara, mesmo porque a Fábrica de Bonecos já estava em fase de desativação. Vários
fatores contribuíram para o encerramento desta atividade, principalmente porque sentia-me doente, com
tonteiras constantes, motivadas pela tinta e o Tinner (dissolvente) que é tóxico.
24 de março de 1950. Nasce Elma, nossa querida caçulinha, na casa do sogro, à Rua Nossa Senhora da
Saúde, 193. Os nossos negócios já não andavam bem, mas continuávamos lutando até que, certo dia, resolvi
vender a mercadoria toda a nosso amigo Jorge Sader que, com sua esposa, a prezada Jamile, era estabelecido
à Rua São José, próximo a nós. Desta forma, com as promissórias do Jorge Sader, fazia eu pagamento das
duplicatas que estavam pendentes em meu nome e o ano de 1952 foi todo dissipado em pouca atividade
comercial até que, tomado de coragem, escrevi a meu amigo Henrique Felippe pedindo a Representação de
Calçados de sua fabricação. "Calçados Areosa e Império", o qual prontamente me atendeu, mandando em
seguida o mostruário, talão de pedidos, etc.
E assim, em 1953, iniciei nova vida, voltando a ser vendedor de calçados, agora como viajante. Os primeiros
dias me foram difíceis. Fiz minha primeira venda em Ubá, destacando o primeiro pedido para meu ex-colega,
o comerciante e amigo Ernani Arlindo da Silva, de saudosa memória. Era difícil para mim ausentar-me de
casa, deixando Maria e três filhos (Elimar, com dez anos; Emir, nove e Elma com apenas três aninhos),
quando ganhei força e ânimo na pessoa do compadre Sílvio Quaglietta, o querido Lão, casado com Maria de
Mello Quaglietta, chefe de numerosa prole, sendo que seu filho Vicente é meu afilhado pela crisma. Lão
viajava para a Fábrica de malas, cintos e outros artefatos de couro de sua fabricação, tendo como sócio seu
cunhado, o nosso amigo João Gualberto de Mello. Com o ânimo do Lão senti-me menos inseguro para viajar
e a ausência de casa me acabrunharia e entristeceria ainda mais se não fossem suas palavras encorajadoras.
Saíamos juntos e para mim foi fácil a adaptação à nova atividade porque o companheiro e amigo conhecia a
freguesia, hotéis, horários de ônibus e trem de ferro, pois já tinha alguns anos de viagem e podia-se notar nele
o domínio completo do assunto.
Maria me animava muito, o que era de certa forma uma força a mais nos meus primeiros passos de atividade
completamente desconhecida. Tudo isto foi penoso para mim nos primeiros meses, mas, lá fora, com o
encontro de outros colegas e conseqüente vibração positiva em muitos deles, fui, felizmente, vencendo as
barreiras do "Marinheiro de Primeira Viagem". Todo sábado regressava, até que viagens mais longas me
impediam de voltar e, assim, de quando em vez, passava quase duas semanas, só regressando no sábado
seguinte.
Confortava-me encontrar muitos viajantes de Ubá, na ocasião antigos profissionais, como Sena Caldas, Elias
Accar, Luiz Franco, Paulo Noujaime, Ângelo dos Santos (o 18, como era conhecido), Genuíno Gomes,
Weber Barroso, Odilon Salgado, este que resolvera transferir, meses antes, sua casa comercial "Bazar Renê"
para o mano Miguel, estabelecido no prédio do Sr. Alfredo Côdo, à Rua São José. Odilon viajava com o
Paulo ou Elias, dirigindo uma caminhonete Chevrolet de propriedade da firma dos Irmãos Noujaime,
estabelecidos com depósito de Armarinho e fábrica de enxovais para batizados, à Rua Peixoto Filho. Os
irmãos revezavam-se nas viagens, pois havia necessidade de um deles à testa do estabelecimento. Odilon
tinha suas representações e a compatibilidade da zona de atividade com os irmãos Noujaime era de muita
valia para ambas as partes, pois, dirigindo o carro, estava conciliando o interesse de ambos. Neste mesmo ano
de 1953, por proposta do amigo e colega Nadir Aroeira, ingressei na "Sociedade dos Viajantes e
Representantes Comerciais do Brasil", no dia 30.11.1953 - Matrícula 283 -Categoria Fundador. Sociedade
esta da qual me orgulho de pertencer até hoje.
José Affonso Salles, o Zezinho Salles, e Domingos Demartine eram colegas e amigos desde o tempo da
"Associação dos Empregados do Comércio", onde ambos tiveram grande destaque em muitas gestões da
diretoria da consagrada Associação, nascida em 1933. Também contei com o apoio moral do Raymundo de
Melo, o Mundinho, do Jair Antunes e de outros.
O ano de 1954 veio me encontrar com mais desembaraço na minha nova profissão e estava carecendo de
mais representações paralelas a fim de melhorar o mau ganho. Como o amigo José Costa Andrade resolveu
se estabelecer com a Fábrica de Gaiolas de Arame, nos fundos do prédio do Sr. Alfredo Côdo, facilitado,
talvez, por ser este sogro do seu irmão Antônio, fui convidado para vender o produto na zona em que eu
trabalhava e, assim sendo, com um Catálogo Fotográfico das Gaiolas e um Talão de Pedidos, sem ocupar
espaço com mostruários, fui o primeiro vendedor da Fábrica "Ciama", na Zona da Mata, chegando certo dia o
José a me pedir para ir a Belo Horizonte, de avião, Táxi Aéreo do Ismael, numa urgência. Precisava de
trezentos a trezentos e cinqüenta mil cruzeiros de pedidos e já com a passagem comprada ida e volta.
Confesso que fiquei receoso quanto ao êxito desta tarefa. Tudo deu certo, felizmente, de acordo com os
planos do amigo Zé da Costa, como é denominado nas rodas íntimas.
No dia 23 de agosto de 1954 encontrava-me em Juiz de Fora trabalhando na praça de calçados e gaiolas e
lembro-me bem do pedido de calçados, o primeiro nesta cidade, a "Casa São Jorge", à Avenida Getúlio
Vargas, e o primeiro pedido de gaiolas foi destacado para o amigo Flávio dos Santos, estabelecido com
Mercearia à Rua Floriano Peixoto, próximo à Avenida Getúlio Vargas. Flávio apesar de ser alfaiate,
mantinha uma mercearia muito variada contendo até viveiros de pássaros de todos os tipos. Vale registrar que
o finado Flávio era filho de Dario Januário dos Santos, velho amigo de meus pais, nos idos de 1924 e 1925,
na cidade de Ubá. O dia seguinte, 24, foi dia fatídico para o povo brasileiro: morria Getúlio Vargas.
Dessa notícia o Brasil inteiro tomava conhecimento através de Heron Domingues, numa edição especial do
"Repórter Esso", Rádio Nacional. Getúlio havia se suicidado. Encontrava-me extraindo um pedido de gaiolas
na "Casa de Ferragens Martins", à Rua Halfeld, Juiz de Fora. Consternado com a notícia, despedi-me dos
compradores e imediatamente regressei para Ubá, naquela terça-feira, dia 24.08.1954- dia de tristeza geral.
Transcrevo a Carta Testamento como homenagem a um dos maiores estadistas brasileiros, cuja atuação à
frente do governo até hoje é questionada, mas, a meu ver, teve muito mais acertos do que erros.
"Mais uma vez as forças que os interesses contra o povo coordenaram novamente se desencadearam contra
mim. Não me acusam, me insultam; não me combatem, caluniam-me; não me dão direito de defesa... Tenho
lutado mês-a-mês, dia-a-dia, hora-a-hora, resistindo a uma agressão constante, incessante, tudo suportando
em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo para defender o povo que agora se queda
desamparado. Nada posso mais dar a não ser o meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém,
querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida. Escolho este meio de
estar sempre convosco. Quando vos humilharem sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado... O ódio, as
infâmias, a calúnia não abateram o meu ânimo. Vos dei minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada
receio. Serenamente dou a primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História".

***

Tinô Carneiro, após longos anos de ausência de Ubá, residindo na Bahia, só vindo por ocasião do Natal e
Ano Novo visitar os parentes e amigos, resolveu fixar-se definitivamente em sua terra natal, a Cidade
Carinho, desposando sua bela Alice, após longos anos de percalços em sua vida amorosa. Realizava assim, o
amigo Tinô, seu maior sonho, desposando sua amada Alicinha, vindo esta a falecer após lhe dar duas filhas.
Nosso amigo, após curta enfermidade, faleceu aos setenta e dois anos, deixando saudades em seus familiares
e amigos, dos quais me orgulho de ser um.
Foi o Tinô juntar-se à sua amada Alicinha no paraíso do Amor Eterno.

CAPÍTULO XVII
FLORES QUE ENFEITAM A VIDA, FLORES QUE ENFEITAM A MORTE

Elimar já estava cursando o ginásio no "Colégio Estadual Raul Soares", após brilhante concurso de admissão
e Emir se preparava para lhe seguir os passos estudantis, pois ainda cursava o primário na Escola da
Professora Conceição Cancella, onde Elimar também estudara. Nossa vida, na essência, nada mudara, pois na
minha ausência por causa das viagens podia confiar na eficiência de Maria na condução da casa e das
crianças o que, de certo modo, era uma tranqüilidade para mim.
Neste ano de 1954 só fazia viagens curtas, no máximo uma semana, pelo motivo de mamãe estar com a
doença a cada dia mais grave, exigindo maiores cuidados médicos e daí eu não ter sossego para ausentar-me,
regressando às sextas-feiras.
Durante meses tivemos o apoio dos amigos, o que era um conforto para nós nesse espinhoso transe da
enfermidade de mamãe. Deixo aqui consignado o meu melhor agradecimento pelas visitas e orações das
venerandas senhoras D. Anita Marques Torres e sua irmã Zulmira Marques; D. Maria Camila Carneiro, D.
Tita Martins, D. Dica Brum, D. Anita Silveira e sua filha Maria do Carmo, sem contar com a assistência
quase permanente de D. Marina e Mansur, amigos e compadres leais na bonança e no infortúnio. Os dias
estavam se arrastando preocupantes e de perspectivas sombrias quando chegou o mês de dezembro. À
proximidade do Natal e Ano Novo, todos se sentem felizes por mais um ano vencido e renovava-se a
esperança de um novo ano cheio de alegria e felicidade. Esse ano para nós não teve o mesmo sabor de outros
anos e as músicas natalinas tornaram-se melancólicas e tristes, porque no dia 25 de dezembro de 1954, às três
horas da tarde, uma senhora fechava definitivamente seus olhos azuis e sonhava: uma menina correndo pelos
prados de Gideil, no Líbano, pés descalços, feliz nos seus folguedos infantis rodeada do carinho de sua mãe,
Uarde, e de seu pai, Hanna Feres, livre como um passarinho. Não mais dores, não mais palpitações nem
sofrimento. Sua vida agora estava imune às adversidades terrenas.
Uen srrant, ia ruhy, djibule il daua
Uen mitt tkuno fauk raci uekfin.
...Se eu adoecer, meu amor, traga-me o remédio
Se eu morrer, quero todos juntos à minha sepultura.

Incrível como a perda da mãe, mesmo velha e doente, nos deixa uma lacuna enorme em nossas vidas. Quanto
a mim, nos primeiros meses de luto, senti-me desamparado como se tivesse perdido o pé de apoio ou mesmo
o sustentáculo em que me apoiava.

***

Tufy já estava casado com a cunhada Aparecida, dileta filha do Sr. Antônio Fróes e D. Ciloca Vieira Fróes,
só ficando Eduardo solteiro ainda, porém noivo da professora Olga Peixoto, querida filha do Sr. Francisco
Peixoto e D. Idalina Peixoto, com quem se casaria meses depois. Assim, o velho Jacob, já alquebrado pelo
sofrimento e perda de sua amada e companheira de mais de cinqüenta anos de convivência, passou a morar
com os filhos, cujas noras eram como se fossem filhas que ele não teve. Ninguém pode avaliar o sofrimento
de nosso pai desativando sua casa, seu lar de tantas lembranças felizes, onde criou oito filhos que lhe deram
muita preocupação, mas também muito prazer ao vê-los casados, com suas famílias, seguindo seu exemplo
de pai amoroso, pacífico e honrado.
O ano de 1955 vem nos encontrar com Elimar e Emir no Colégio Estadual, em cujo estudo ambos iam muito
bem, mormente porque trouxeram ambos muita base da Escola Professora D. Nedir, esposa do nosso amigo
Sebastião Vieira Xavier, hoje residentes em Belo Horizonte.
Ambos freqüentavam o "Ubá Tênis Clube - Praça de Esportes", como atletas, sendo que Elimar por vários
anos brilhou no Balé Aquático ministrado pelos professores Heitor Mattos e sua esposa D. Elza Mattos, cuja
equipe, formada de dezenas de moças, foi sempre muito aplaudida em várias cidades do Brasil, inclusive na
Capital Federal, que ainda era o Rio de Janeiro.
Antônio Trajano da Costa, certo dia, me oferece a sua Representação, prometendo escrever para a sua
representada me indicando para seu substituto. Dias depois vem a resposta afirmativa e, assim, fiquei sendo
também Representante de "Assis & Tueni Ltda." de São Paulo. Eram três malas "canastra" de mostruário,
contendo sedas, tecidos finos lisos e estampados, rendas, bordados, fitas e grande variedade de cetim e
tecidos para cortinas. Como o mostruário era grande demais, resumi-o em um terço mais ou menos, cabendo
numa mala construída pelo meu amigo e compadre Sílvio Quaglietta. Fiquei com essa Representação cerca
de dois anos, quando decidi transferi-la, com a aquiescência dos meus representados, para o Sr. Emílio
Bairute, libanês, residente na época em Mariana, de quem mais tarde tornei-me amigo. Dediquei-me
exclusivamente à venda de calçados, conseguindo através do próprio Henrique Felippe a representação do
calçado "Sameiro" para homens. Nesta ocasião o mano Tufy havia se mudado para Varginha, após ter sofrido
vários reveses no comércio, encerrando definitivamente a "A Favorita", de tão belas e gratas recordações.
Estava com representação de uma das maiores firmas no ramo de ferragens, maquinarias, etc., ou seja,
"Wilson Sons Company", do Rio de Janeiro, da qual o Sr. Antônio Fróes, seu sogro, era antigo representante
e assim o mano Tufy tornou-se viajante para o Sul de Minas, enquanto seu sogro fazia outra zona.
Em Varginha nasceu Alda Valéria, segunda filha do casal Tufy e Aparecida, já que seu primogênito, o
querido sobrinho Tufyzinho, nascera em Ubá, para satisfação nossa e dos avós maternos Antônio Dias Fróes
e D. Alda Vieira Fróes (Ciloca) e seus tios maternos Maria Estela, Maria Minalda, Maria Ieda, Julio Maria,
José Augusto, Nicácio, Tarcísio e Maria da Paz.
Com representação paralela, por influência do meu amigo e compadre Sebastião Samôr, o nosso querido
Tatão, consegui a da "Cama Patente L. Lício Ltda.", do Rio de Janeiro, com a qual fiquei mais de dois anos.
Nacib e Rosa foram contemplados com seu primogênito o nosso querido Antônio Carlos, para grande alegria
dos tios paternos e do vovô Jacob, como também para orgulho e satisfação dos avós paternos, os nossos
estimados Mansur e D. Mariana, bem assim dos tios maternos Elias, Habib, Vitória, Nenê e Aisser.
Nesta oportunidade, com a desativação da "Casa Central", da "A Favorita" e do "Royal Magazine", do mano
Ibrahim, ficaram apenas "A Preferida", "Casa Munir" e "Padaria Santa Rita", dos manos Miguel, Nacib e
Jorge respectivamente.
A vida não consiste apenas de luta pelo dinheiro e com esse modo de pensar procurava conciliar o trabalho e
lazer, gozando dos momentos alegres que a vida nos oferece. Assim era nos aniversários dos meninos, em
suas primeiras comunhões, nas coroações da Elimar e agora Elma, com seis anos fazendo sua primeira
coroação, em Rodeiro, na Matriz de São Sebastião, no dia 27 de maio de 1956, numa memorável noite do
mês de Maria, cujo cortejo de virgens e anjos saiu da casa dos tios de Maria, Sr. Ibrahim Sallum e D. Amélia
Sallum, ambos atualmente falecidos. Dando continuidade à família estão os nossos primos João Sallum,
casado, com dois filhos e Maria Sallum que não se casou, mas vive feliz e independente, ambos residindo em
Ubá. Nesse evento acompanhou o cartucho de doces um cartão de Santo com o seguinte acróstico:

Em meu terno coração


Levo a imagem de Maria
Mãe de Deus excelsa e Pia!
Aceitai minha oração!

***

Ibrahim, após muita luta e sacrifício, não obstante ser vereador e presidente da Câmara dos Vereadores, ou
talvez por isto, não tendo remuneração nenhuma, não foi feliz no comércio. Procurou de todas as maneiras
uma atividade para sua sobrevivência. Junto com a querida e dinâmica Ziza montaram um restaurante nos
fundos de sua casa e mais tarde tentou uma pequena fábrica de Bolas de Futebol, o que não deu certo apesar
da habilidade do Citrangulo, mestre nesta atividade. As fábricas grandes têm maior chance e levam a enorme
vantagem sobre as pequenas. Compram em maior quantidade a matéria-prima, acrescido de maquinário
moderno, não dando oportunidade às pequenas indústrias de sobreviverem. Não obstante, a dupla Ibrahim e
Ziza nunca se abateu, apesar das vicissitudes da vida. Felizmente, pouco tempo depois, a sorte veio a sorrir
porque nesta vida "Tudo Passa", e "não há bem que sempre dure nem mal que não se acabe", como diz o
adágio popular.

***

Odilon, o amigo Odilon Salgado, é casado com Dinah, filha dileta do Sr. Atos e D. Ernestina Albino e minha
contemporânea na Escola Regina Godinho. Por essa razão, ou por simpatia mútua, ficamos amigos e mais
ainda quando viajamos juntos e nos conhecemos melhor. Odilon tinha uma representação agora, de Belo
Horizonte, cuja firma concedera-lhe um "Jeep Willis", porém com despesas em combustível, peças de
reposição, etc., por sua própria conta. Assim sendo, viajávamos dividindo a despesa do carro, a fim de não
pesar muito para ele. Como suas vendas eram à base de comissão, muitas viagens foram feitas com êxitos
aparentes, pois a firma, que era atacadista, não raro despachava pouco mais da metade do que ele vendia e
daí reduzir em muito suas comissões, com conseqüente prejuízo no fim do mês. Isto me acontecera quando
vendia para Assis e Tueni. Fazia vendas durante uma semana e, quando regressava, as cartas da firma que
chegavam davam a lista de esgotados, muitas vezes em sua maioria mercadoria vendida naquela semana. Era
uma "barra difícil de segurar" o que estava acontecendo ao amigo Odilon que, felizmente, tinha compensação
na venda de guarda-chuvas e sombrinhas de uma fábrica de Valença, Estado do Rio, e chapéus de pêlo e de
palha do Rio de Janeiro, cujas vendas lhe davam um bom rendimento.
Estava nesta situação e ainda pensava em algum negócio para me estabelecer querendo voltar ao fabrico de
bonecos, porém com métodos melhores, ou seja, mecanizar a fábrica dotando-a de prensas hidráulicas a fim
de produzir muito, pois tudo que se fazia era vendido, razão pela qual ainda eu estar martelando nesta mesma
tecla.
Era amigo do Sr. Lourenço Dezert e sua esposa D. Adalgisa, que tinham o costume de passar as férias em
Ubá, pois ela era irmã de Branca. Um casal já passando dos sessenta anos, ele muito amável e ela muito
prestimosa. Ficamos, Maria e eu, amigos do casal e, por insistência do convite, mais tarde fomos visitá-los e
numa das vezes nos hospedamos em sua casa, em Niterói. O Sr. Louro, como era conhecido, era diretor da
Oficina Técnica do Estado do Rio. Oficina mecânica onde os garotos internos da FEBEM tinham seu
aprendizado, muitos dos quais saíam mecânicos qualificados. Contei ao Sr. Louro o meu intento e qual não
foi minha surpresa quando ele me disse ser possível modelar as fôrmas em gesso na própria oficina. Para
tanto ele conhecia um modelador mestre em modelagens, seu amigo, ao qual fui apresentado. O Sr.
Fulgêncio se dispôs a modelar as cabeças, corpo e membros dos bonecos, cujo original eu forneci e dentro de
sessenta dias mais ou menos já estavam prontos em gesso, uma perfeição sem igual. Agora teriam que ser
fundidos em ferro, macho e fêmea, a fim de receberem a prensa sobre a massa de papel ou serragem. O
próprio Sr. Fulgêncio se incubiu de mandar para Madureira, Rio, para uma fundição de um conhecido seu,
cujo trabalho foi muito bom. E assim que chegaram a Ubá, em três caixas lotadas de cabeças, corpos e
membros de ferro, dei início à estamparia de massas de papel ou papelão, mas nada deu certo. Faltava o
principal: técnica e conhecimento de causa. As fôrmas não tinham o espaço necessário para abrigar o produto
recebido. O macho encaixava sem folga na fêmea. Todavia, essas fôrmas com mais de duzentos quilos foram
vendidas mais tarde como ferro velho, não me causando prejuízo pela grande valorização do material, mas de
tudo isto ficou o meu reconhecimento à boa vontade do Sr. Louro e do Sr. Fulgêncio, com meus melhores
agradecimentos.

***

Clóvis Reis Lima, meu dileto amigo desde a infância, era um Getulista dos mais calorosos e por alguns anos
foi presidente do PTB. (Partido Trabalhista Brasileiro), do qual foi fundador em Ubá, chegando a candidatar-
se a prefeito. Não se elegeu, porém conduziu para a Câmara Municipal de Ubá dois Vereadores: Ibrahim
Jacob e Sebastião Batista, sendo que Ibrahim, nosso mano, foi eleito, pelos seus pares, Presidente da Câmara.
Clóvis era farmacêutico e tinha essa profissão como um verdadeiro sacerdócio. Era muito comum sair à noite
para aplicar uma injeção ou ministrar alguns remédios em pessoas necessitadas, especialmente nas camadas
pobres de Ubá. Muitas vezes os remédios eram comprados em outras farmácias ou drogarias, desembolsando
um dinheiro que ele talvez nem tivesse esperança de recuperar. E assim, esse homem bondoso se viu em
aperturas financeiras e sua farmácia ficava cada vez mais carente de estoque, mas, sua consciência estava
tranqüila no cumprimento de seu dever. Certa noite, jogando dama comigo em nossa casa, fiz-lhe uma
proposta. Quem sabe vai dar certo? Há dias, disse-lhe eu, estou com uma idéia martelando meu cérebro. É o
seguinte: Em vista de Ubá ser um grande produtor de fumo em corda, muito dos qual se perde após sessenta
dias, por falta de vitalidade. Chegava até a secar, apesar de preparado com "caramelo", uma mistura
importada que dava boa aparência ao fumo de segunda, ou baixeiro, como era denominado o de terceira
classe. Era muito comum a Estação de Leopoldina ter em seus armazéns grande quantidade de produto
devolvido de várias localidades. Se conseguíssemos uma fórmula baseada no próprio fumo, em folhas da
"cabeça", ou seja, de primeira qualidade, trituradas no almofariz da farmácia e acrescentado álcool e outros
ingredientes de seu conhecimento, como completou ele, talvez pudéssemos produzir um xarope vivificador
do próprio fumo. Seria a verdadeira transfusão do mesmo elemento.
Dias depois encomendamos as folhas de fumo ao Sr. Tãozinho (Sebastião Souza Lima) , primo do amigo
Clóvis e que se tornou também meu amigo. Fizemos a primeira experiência: as folhas, o álcool e os
ingredientes para conserva produziram um caldo cor de vinho muito cheiroso a fumo e, com mais algumas
modificações experimentais, eis o xarope pronto para ser aplicado. Arranjamos alguns pedaços de fumo seco
de várias qualidades e eis o resultado da primeira experiência no próprio fumo: alguns pedaços após as datas
de aplicação chegaram a noventa dias sem a menor alteração, continuando cheirosos e brilhantes e, fumados,
davam uma fumaça de odor agradável, de charuto Havana. Estava, portanto, descoberta uma fórmula capaz
de reabilitar um fumo já completamente perdido e quem sabe esse negócio podia nos reabilitar financeira e
economicamente? Decidimos então, por em prática todo esse conhecimento numa industrialização em grande
escala do xarope, mas para isto era necessário um bom capital. O negócio era tão fantástico, que muitos
comerciantes de fumo foram taxativos em dizer que era impossível reabilitar um fumo já seco. Arranjamos
algum dinheiro com o Banco Hypotecário e Agrícola do Estado de Minas Gerais com aval do Sr. Tãozinho,
fazendeiro em Guidoval, que, igualmente a nós, acreditou no nosso empreendimento. Compramos álcool na
usina de Rio Branco, mais ou menos mil litros, construímos tonéis para decantação do produto, num galpão
cedido pelo amigo Chiquito Fernandes na Vila Casal, e adquirimos uma máquina de moer folhas de fumo
que, agora, seria em grande quantidade. Nossa idéia de tanques para decantagem suplementar seria o
aproveitamento do líquido de uma safra de folhas de fumo só ser aplicado no ano seguinte. Assim sendo, o
líquido ganhava mais força e qualidade. Estávamos já neste estágio do empreendimento quando surgiu uma
proposta do Sr. Ataíde, funcionário do Banco do Brasil (que por ser Getulista e gaúcho, ficou muito amigo do
Clóvis) para entrar na sociedade ainda por se estabelecer, com injeção de capital, o que foi aceito, por
necessário. Estávamos, portanto, na primeira operação: encher os tanques com álcool, já beneficiado, e
aguardar a nova safra de fumo, o que se daria com demora de seis a sete meses, quando uma convulsão
política entre o PTB. e o gerente do Banco do Brasil, na ocasião nosso amigo e colega da Escola Regina
Godinho, Luiz Raimundo Gomes, fez com que a direção do Banco o transferisse, como também o Sr. Ataíde,
que fora o pomo da discórdia.
Numa noite, alguém de espírito vingativo, mais pelo Sr. Ataíde do que propriamente pelo Clóvis ou por mim,
com um pé-de-cabra destruiu os tanques, vazando todo o líquido. Indiscutivelmente ninguém quis ver o
estrago. O Sr. Ataíde saiu de Ubá e nunca mais soubemos do seu paradeiro. Que vá em Paz. Bons ventos o
levem.

CAPÍTULO XVIII
DIA E NOITE

Continuava viajando com Odilon Salgado e às vezes com o Lão, quase sempre de parceria, pois é muito
difícil para quem viaja estar sozinho numa mesa de hotel e à noite, às vezes, não encontrar um companheiro
para um cinema ou um bate-papo. Dessa forma combinávamos as viagens e o companheiro mais duradouro
foi Odilon que, não suportando mais a representação de tecidos, desistiu dela perdendo a condução própria, o
"Jeep". Entretanto, fizemos nova parceria com o amigo Cidônio Affonso nos meses em que este faria a venda
de sementes de milho híbrido da Agroceres de Ubá. Íamos os três na "Kombi" do Cidônio. Odilon, com o
mostruário reduzido, dedicou-se à venda de rádios a pilha e tinha representação das eletrolas da marca
"Luxor". Os rádios eram de pronta entrega a preços muito acessíveis. Estávamos felizes porque nós três nos
entendíamos muito bem. Cidônio, com a calma que Deus lhe deu, aliado ao seu bom humor e cavalheirismo,
era uma garantia de uma viagem alegre e feliz. E assim, dentro desta camaradagem, abortavam-se os
aborrecimentos e as dificuldades se suavizavam.

***

Com o encerramento da atividade da "A Favorita", o mano Eduardo, agora casado e residindo na Vila
Russinho, iniciou um trabalho de vendedor ambulante. A cunhada Olga lecionava num dos Grupos Escolares.
Certo dia, passando pela farmácia do Clóvis para um café na Praça Guido, como de costume, ele fez-me
entrar dizendo: "Há um cargo no IAPC para eu indicar e estou precisando de sua opinião a quem devo".
Honra seja feita, devido a nossa amizade e embora eu não fizesse parte do PTB. todas as dúvidas do Clóvis
ele as mencionava a mim, pois havia da parte dele muita confiança nas minhas opiniões. Assim fora meses
atrás, quando viajamos juntos ao Rio para falarmos com o Sr. Camilo Nogueira da Gama, então secretário do
Ministro da Fazenda, sobre algumas dificuldades surgidas no diretório de Ubá. Consegui conter o ímpeto do
meu amigo nas respostas a um suposto entendimento com pessoas alheias ao PTB que o Sr. Camilo estaria
articulando.
"É um emprego pequeno" , disse-me ele, "apenas cobrador do IAPC nas localidades de Rodeiro, Divino,
Guidoval, etc.". Respondi-lhe sem pestanejar: "ponha o nome de Nacife Jacob". E assim, Nacife Jacob, que é
o mano Eduardo, tornou-se por força de lei e um concurso interno, funcionário do Instituto de Aposentadoria
e Pensão dos Comerciários que é hoje, por junção de autarquias, o INPS.

***

3 de setembro de 1957. Elimar completava quinze anos. Maria já há dias atrás providenciava os preparativos
para o grande evento. Com o seu natural dinamismo, organizou uma festa bem aconchegante e alegre onde,
além de cervejas e refrigerantes, havia muitos litros de "Leite de Onça", fórmula dos nossos amigos José
Aroeira e sua esposa Edith, casal este sempre presente nas rezas da Santa Visitadora, como também
animando os leilões de costume. Nesta noite memorável, nossa casa estava cheia de convidados, parentes e
amigos, sempre com a colaboração do meu amigo Quaglietta, incansável em servir, propiciando a nós
momentos agradáveis de muita satisfação.
***

Por indicação do amigo Nogueira para seu substituto, tornei- me representante da CADIB (Companhia
Americana Intercâmbio Brasil) com o contrato de ajuda de custo de quatro mil e quinhentos cruzeiros,
comissão de 3% e reembolso das despesas de transporte, correios, telégrafos e telefones.
A situação voltou a melhorar. Fazia bons negócios e o que é mais importante: mesmo sem ficha do cliente
acompanhando o pedido ou mesmo quando transferido por telefone, era só pedir para despachar urgente, que
a ficha seguiria depois, que atendiam com a melhor atenção. E assim, minha vida de viajante ficou mais
facilitada. Tempos depois, o amigo Nogueira, já residindo em Niterói e tendo desistido de se estabelecer por
conta própria, voltou a ser representante da CADIB em Niterói e adjacências. Nossa amizade se consolidava
cada vez mais e em sua casa era eu estimado como se fosse parente, o que era recíproco, pois D. Francisca,
sua esposa, era um modelo de afabilidade e ternura. O casal tinha três filhos e o amigo Nogueira, muito
dinâmico, lutando com dificuldades, mesmo assim, conseguiu construir uma casa pequena em Tribobó,
distante de Niterói pouco mais de trinta minutos. Casa modesta a princípio, porém com o ingresso na SKF
sua vida melhorou e, tempos depois, aquela casinha em Tribobó, plantada num grande terreno, tornou-se uma
grande mansão, bonita e confortável. Era uma satisfação para nós aqui em Juiz de Fora quando o amigo
Nogueira nos visitava. De sessenta em sessenta dias essa alegria era renovada e em uma das suas viagens
trouxe sua família, repetindo estas visitas mais vezes o que, para nós, foi de imensa felicidade. Numa dessas
viagens disse-me ele que nas férias dos meninos iria com a família conhecer Brasília e como seu carro era
muito grande e confortável, convidou-me para ir junto. Eu a princípio não aceitei porque iria tirar o conforto
dos filhos, ao que ele me garantiu que não tinha sentido pensar nisto, visto o carro ser grande e poder muito
bem abrigar-nos sem dificuldade. Fiquei de resolver quando eles passassem por aqui para seguirem para a
Capital da República.
Em abril de 1974, aproveitando a Semana Santa, o amigo Nogueira e família passaram aqui em casa.
Entretanto, eu me achava ausente, talvez em Teófilo Otoni. Dias depois fomos informados de uma infausta
notícia: um caminhão desgovernado atravessa a pista contrária e colhe o carro do meu amigo Nogueira de
frente, quando regressavam. Morreram no ato o casal e dois filhos (menino e menina) salvando-se,
milagrosamente, apenas um dos filhos. Esta notícia trouxe-nos muita consternação. Nossas preces para que
na eternidade os amigos Francisco e Francisca Nogueira e filhos gozem de Deus a eterna Bem-Aventurança.

***

A pedido de Maria procurei descobrir fabricantes de fôrmas para plissê, o que para mim não foi difícil, pois
tive a colaboração de um antigo conhecido do Rio que trabalhava com confecção, indicando-me o Sr. João
Aquiles Costa, Rua Senhor dos Passos 63, 2o. andar.
Conversando com o Sr. Costa, à primeira vista deu-me a impressão de que só lhe interessaria vender fôrmas
por ele fabricadas. Entretanto, um papo aqui outro ali e um cafezinho de permeio, concordou em ensinar o
fabrico do plissê, como também a confecção das fôrmas, mormente sabedor de que ele não sofreria
concorrência, pois nossa atividade seria em Ubá. Assim sendo, aproveitando a boa vontade do agora amigo
Costa, fiz outra viagem para o Rio, agora com Maria, a fim de que ela se inteirasse de tudo,como ficara
combinado. Até a estufa foi confeccionada no Rio encomendada pelo amigo Costa, que nos acompanhou
pessoalmente à oficina especializada.
E assim, ficamos fabricantes de fôrmas e confeccionávamos plissês de todo tipo: reto, godê, macho simples,
macho duplo e noivas, propiciando-nos boa renda durante algum tempo. Foi bem empregado o dinheiro pago
ao Sr. Aquiles Costa, nosso amigo, a quem desejo muita felicidade, onde ele estiver.
Continuava fazendo bons negócios com material de construção da CADIB e vendia regularmente Camas
Patente. Certo dia, ainda com as representações da "Fios Plásticos", da "CADIB" e das "Camas Patente", três
ótimas representações, aconteceu um fato que me levou o pensamento ao passado longínquo. Saíra de Ubá
para Astolfo Dutra e Cataguases, chegando a Leopoldina quase à tarde, sem conseguir nas três praças, onde
tinha muitos fregueses, nenhum pedido. Fiquei um tanto abalado e no hotel à noite comecei a ter um
princípio de tristeza quando, de repente, me vem a lembrança o que mamãe contava, talvez à guiza de
ensinamentos, o que lhe era peculiar. Dizia ela que, após sua longa enfermidade, 1913-1914, ainda
convalescente, queria ajudar o marido na loja. Era um sábado, época de colheita, portanto era muito provável
que os fregueses afluíssem para compras. "Passava um, passava outro, mais outro, todos comprando nos
vizinhos. Só via fregueses passando com embrulhos de compras e na nossa loja não entrava um freguês
sequer, apesar de convidados a entrar"
Já chegando a tarde e a situação era a mesma.
"Deu-me desespero", continuou ela, "e desatei a chorar indo pra dentro de casa, onde continuava a chorar,
quando Jacob veio me confortar dizendo: o mundo não vai acabar por causa de um dia mal sucedido.
Amanhã será melhor, ou quem sabe, hoje mesmo. Voltando para a loja, entraram dois fregueses. Ele me
chamou para atender um, enquanto atendia o outro. Dois fregueses que fizeram a grande féria do dia".
Dormi naquela noite mais conformado com essa benfazeja reminiscência e no dia seguinte, em Muriaé, fiz
negócios para uma semana.
E o dito popular: Amanhã será outro dia!

***

Elimar, já no científico, cursava também a Escola Técnica do Comércio à noite, fundada pelo eminente
Professor Lívio de Castro Carneiro, homem de tantas realizações no ensino de Ubá, como o Ginásio
Ubaense, onde estudei, e a Escola de Farmácia e Odontologia, de saudosa memória, onde se formaram
centenas de profissionais, muitos do quais, vindos de fora, se fixaram em Ubá, contraindo matrimônio,
enriquecendo ainda mais a Cidade Carinho com seus familiares e frutos de seus trabalhos, dentre os quais
destaco o saudoso Agenor Barbosa, formado em odontologia, meu amigo e antigo colega no ginásio ubaense,
o farmacêutico e amigo Modesto lima, Geraldo Valle e David Abelha. Estes, já falecidos, mereceram a
amizade dos Ubaenses e principalmente a minha, pois fizeram jus a essa afeição pelo carinho que devotaram
à cidade que os acolheu. David Abelha era meu parceiro de bilhar de tantas e memoráveis partidas com
Nacib Cheuhen, José Mendes, Niquinho Lauria, José Costa Andrade, Waldeck, Coronel, Genaro Crispi,
Dedé Braga, Date Guilhermino, Guerino Cazarim e outros que muito contribuíram para o gozo de momentos
de muita camaradagem e felicidade.
Emir no ginásio e Elma no Grupo Escolar "Levindo Coelho” iam muito bem nos estudos. Aliás, felizmente,
neste particular, nunca tivemos maiores preocupações. Todos os três eram estudiosos e cumpridores de seus
deveres, sem que a isso fosse necessário recomendar.
José Raimundo, aos trancos e barrancos, concluiu seu edifício, um sobrado com quatro moradias. Para tanto
já estava trabalhando no Rio de Janeiro há alguns anos. Entretanto, correto, mandou que seu procurador em
Ubá destinasse o aluguel de uma moradia para mim, a fim de amortizar a dívida, o que foi feito através de
muitos anos. Realmente ele pagou a "todo mundo" como dizia sempre. 1959. Emir termina o ginásio e não
pretendendo cursar o científico, optou pela Escola Técnica de Ouro Preto pois, equivalendo ao científico,
dava-lhe oportunidade de sair profissional em Metalurgia e Mineração com direito a tentar o vestibular de
Engenharia, caso quisesse. Fui designado, por mim mesmo, para chefiar a caravana de rapazes seus colegas e
filhos de amigos para Ouro Preto, entre eles o Albano, filho do nosso amigo Dr. Ary Gonçalves, José Altivo,
filho do amigo Dico Brandão Teixeira, Márcio Guimarães, filho do ilustre professor Guimarães, os quais
iriam cursar uma escola preparatória para o ingresso na Escola Técnica, onde já estudavam José Sebastião e
seu irmão Afonso Celso, filhos do Sr. Francisco do Vale, nosso amigo e residente na época em Ubá, entre
outros conterrâneos e amigos. Emir ficou na Pensão Vermelha com José Altivo e os outros se espalharam por
outras pensões em virtude da falta de acomodação para todos. Devido à pouca idade dos meninos, fiquei
preocupado a princípio; nenhum deles havia se afastado tanto tempo de sua casa. Antes de regressar tomei
cuidado de recomendar muito aos proprietários das pensões, principalmente às esposas, que se
comprometeram a tratá-los como se filhos fossem, o que me deu uma certa confiança e tranqüilidade ao
regressar. A minha volta não se deu com o mesmo ufanismo da minha ida, todavia estava orgulhoso do filho
que estava iniciando o caminho de sua própria emancipação, lembrando o poeta que dizia:

Ave, que és, para a grande altura


Voa e revoa pelos ares
Mas se algum dia encontrares
No teu surto uma nuvem de amargura
Volve! Que és para nós um passarinho.
E enquanto não o desfizer o vento
Encontrarás o mesmo acolhimento
Em nossos corações que foi teu ninho!

Papai, já muito envelhecido e alquebrado pela saudade, esteve por vários meses na casa do Nacib, sob os
cuidados de sua afilhada, a nossa querida cunhada Rosa. Por motivo de maus negócios, encerrou-se a
atividade da Casa Munir e no mesmo local Nacib e Rosa estabeleceram-se com o "Restaurante e Bar
Presidente". Lamentavelmente quando as coisas dão para trás, "não há nada que segure" e o nosso mano,
cunhada e filho foram forçados a vender o prédio e todos os seus pertences a fim de liquidar dívidas e
partiram para Volta Redonda, onde Nacib conseguiu um emprego.
Mais uma vez a vida armava suas desditas, apesar das orações do velho Jacob, que se transferira para a casa
do mano Jorge, com muita tristeza pelo que acontecera ao filho, nora e seu querido neto Antônio Carlos e
suas ausências de Ubá.
(SABR AIUB) Paciência de Jó, história que ele e mamãe contavam como exemplo, para que não se
desesperassem nas dificuldades e falsetas que a vida nos prega, pois com boa vontade e perseverança tudo
volta ao normal e a bonança volta após a tempestade. Realmente tudo isto foi um sonho mau, e hoje o mano
Nacib, após alguns anos decorridos, está até achando graça dos maus momentos do passado. A felicidade
lhes sorriu novamente, com a Graça de Deus!

***

Com o nascimento da querida Sarah, dileta primogênita do mano Eduardo e cunhada Olga, o que foi de muita
felicidade para a família Peixoto como também para nós, a família já conta com duas "Sarah" como
homenagem à querida avó, sendo que Sarah Maria Jacob, filha de Ibrahim e Ziza, é nossa afilhada, o que
muito nos orgulha. Maria, desde o evento do batismo, ficou muito lisonjeada pelo cognome de Tia Madrinha!
1960. Elimar termina o científico e também recebe o diploma de Contadora pela Escola Técnica de
Comércio, dupla formatura que nos orgulhou muito.
Emir ingressa no primeiro ano da Escola Técnica de Mineração e Metalurgia de Ouro Preto, aprovado com
brilhantismo no exame de seleção. Assim, para nós, era muito gratificante acompanhar a ascensão dos filhos
que um dia nos dariam motivo de muita alegria e prazer.
Neste mesmo ano, por indicação do Ibrahim, Maria foi nomeada para o SAMDU, órgão federal hoje extinto,
cujos funcionários atualmente são do INPS. Ibrahim nesta época era o presidente do PTB e exercia a
presidência da Câmara e graças a seus esforços junto ao Governo Federal conseguiu, além do SAMDU, dotar
Ubá das agências do IAPTEC e IAPI, este último, Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Industriários,
porque antes os filiados de Ubá tinham de recorrer à agência de São João Nepomuceno, até então a única da
região.
Embora suspeito para enumerar tantas realizações em sua curta vida pública, tenho certeza algum dia Ubá vai
reconhecer os feitos de Ibrahim Jacob à frente do Legislativo ubaense nos anos 60, como parte de sua
história. Papai cada vez mais estava se definhando. Alquebrado pela saudade e velhice, pois contando
noventa e quatro anos, em casa do mano Jorge era muito bem cuidado, principalmente pelo seu primeiro
neto, o nosso sobrinho Edson que, além dos desvelos da saudosa cunhada Nagla e familiares, deu-lhe a
melhor assistência nos seus últimos dias de vida.
E no mês de outubro de 1960, recostado em dois travesseiros, quase sentado na cama, encontrei o meu pai de
olhos fechados para este mundo. Encostei meu rosto naquele amado peito a fim de auscultar-lhe a respiração
que lhe fugira momentos antes. Demorei-me um pouco neste transe de dor para sentir, pelo menos, a
sensação de receber daquele peito o que em vida tanto nos deu: amor, muito amor.

CAPÍTULO XIX
A FELICIDADE

O ano de 1961 vem nos encontrar com Elma no primeiro ano ginasial no "Sacré-Coeur de Marie" e
aguardávamos o término do ano letivo possibilitando transferência para outro educandário em Juiz de Fora,
para onde teríamos que nos mudar, em virtude da Elimar já estar nesta cidade fazendo o cursinho para
habilitá-la à Faculdade de Medicina. Ser médica era sua vocação desde criança e, assim, no fim do ano
transferimos residência para Juiz de Fora à Rua Benjamim Constant, 850 apto. 31. Elma foi matriculada no
Machado Sobrinho, não muito longe de nossa casa, para facilitar- lhe uma caminhada de cinco minutos ou
menos.
Elimar, que estava residindo na pensão de moças de D. Alzimira, à Rua Espírito Santo, voltou ao nosso
convívio. Entretanto, deixo, com satisfação, uma menção honrosa à proprietária e seus familiares pelo
tratamento carinhoso dispensado às residentes, especialmente à nossa querida filha, da qual guardo com
muita emoção sua carta de 11 de agosto de 1961, Dia dos Pais, acompanhando um bonito cartão alusivo ao
dia. Pelo que representou e representa de bom na vida, vale a pena transcrevê-la:

Meu bom e querido Papai


Abenção
Ao se aproximar o dia dos pais, sinto uma grande vontade de escrever-lhe, uma vez que estamos separados e
que talvez eu não possa vê-lo como é meu desejo. Aliás, não é preciso que seja dia dos pais para que eu
queira estar perto do senhor e que eu sinta uma saudade muito grande que me oprime. Mas é por ocasião
desta data onde tantas e tão grandes homenagens são prestadas aos pais em todo lugar que penso e avalio
como sou feliz por Deus ter-me dado o senhor como pai. O senhor que por toda vida nos amparou e estava
sempre presente quando do senhor precisamos. O senhor foi a força, foi a alavanca que nos amparou e nos
guiou. Sua presença foi sempre motivo de harmonia. O senhor foi sempre justo em julgar e pronto a
defender. Com o seu exemplo, sua personalidade e sua bondade, o senhor ensinou-nos as mais elevadas
lições de moral e de dignidade.
Pela sua conduta irrepreensível, mostrou-nos o caminho reto e conduziu-nos por ele. Nós sempre
recorríamos ao senhor, desde pequenos até agora, para os mais simples e os mais complicados problemas.
Lembro-me bem ainda dos problemas de matemática que o senhor resolvia para mim e do meu orgulho com
o qual eu dizia as minhas colegas: "Foi papai quem me ensinou".
E assim foi. Confiava e podia confiar no senhor pois tinha sempre os meus problemas resolvidos. Veio o
ginásio e mais problemas e mais trabalhos. Mas eu tinha o meu pai, ele tudo resolvia à luz da lógica e da
verdade e assim minha vida foi sempre feliz. Minha e de todos em casa, pois o senhor distribuiu
compreensão entre todos, arranjou tanta alegria que deu para satisfazer a todos nós. Com sua paciência
quanta questão foi resolvida da melhor maneira. O senhor teve grande atuação como pai de família e chefe,
sabendo guiar com bondade e firmeza, honestidade e disciplina. Se seguirmos o seu exemplo, seremos bons
como o senhor é e queridos como o senhor é. Fazemos o que o senhor pretendeu que fizéssemos: estudamos.
Mas nunca em qualquer escola que cursemos teremos as lições que o senhor nos deu e nos dá. O senhor
ensinou-nos a alargar horizontes, a abrir coração e a crescer moralmente. Recebemos do senhor o amor
que todo ser necessita.
Agora, estamos separados. Mais do que nunca eu preciso do senhor. Mais do que nunca, o senhor é força e
é amparo. Hoje, amanhã, sempre estaremos precisando do senhor, de todo amor que o senhor dá. Como
poderei agradecer-lhe todo o bem que já me fez? Não é possível, não posso fazê-lo por não possuir palavras
que expressem toda a extensão da minha gratidão. E por isso que lhe peço que abençoe esta filha que ora a
Deus pela sua saúde e que o ama muito.
Elimar.

Confesso que ao receber essa carta, cujo conteúdo me trouxe lágrimas de satisfação e felicidade, pareceu-me
que o mundo inteiro me felicitava pela boa filha que Deus me deu.

***

Nosso dia-a-dia em Juiz de Fora era de agradável expectativa. Elma no segundo ginasial no Machado
Sobrinho, Emir em Ouro Preto, já no segundo ano técnico de Metalurgia e Mineração, Elimar se preparando
para o vestibular de Medicina, estudando dia e noite até que chegou o dia. Todas as matérias eram
eliminatórias, cem candidatos, trinta vagas apenas.
Apesar de a Elimar estar muito gripada e com febre, num dia chuvoso, tomamos um táxi que nos conduziu
até a Faculdade de Medicina, na Glória. Era a última prova. Coração batendo de emoção e expectativa. Maria
e eu esperamos por ela que, ao meio-dia mais ou menos voltava, diretamente para a cama. Elimar, com muita
febre e tresnoitada, dormiu a tarde toda. Maria e eu, apreensivos pelo desgaste físico da filha e também pela
expectativa do resultado do vestibular que, dias depois, nos deu a maior felicidade e desafogo ao receber um
telefonema de Marília Werneck, sua colega, que da pensão de D. Alzimira informava que Elimar havia sido
aprovada. Etapa vencida. Valeu o esforço.

***

Consegui uma representação aqui em Juiz de Fora da firma "Incolafer - Indústria e Comércio Layr Ferreira",
Ferros, chapas, arames, etc., distribuidora da "Companhia Siderúrgica Nacional" material esse que também
era vendido pela CADIB, mas não havia incompatibilidade porque um preenchia a deficiência do outro,
muitas vezes em falta.
E assim, com a representação da "Fábrica de Artefatos de Aço Tufy", de São Paulo, ou seja, Enxadas -
Enxadões - Picaretas das marcas Tupy e Jacaré, adquirida por influência do mano Tufy, que representava a
firma há mais tempo no sul de Minas, os negócios melhoraram muito por algum tempo. Maria, com sua
transferência, continuava trabalhando no SAMDU desta cidade onde, felizmente, tivemos uma boa acolhida,
principalmente pelos nossos vizinhos, todos muito prestativos e amáveis, com destaque para o saudoso Sr.
Chiquinho Carvalho e D. Sinhá, sua esposa, também falecida. Entretanto, na pessoa de sua filha Thereza,
quero consignar nosso melhor agradecimento por tudo de bom que nos proporcionaram durante o tempo em
que convivemos no mesmo andar do Edifício Sarandi.

***

Sem conhecer bem os freqüentadores do Salão de bilhar do Pestana, à Rua Halfeld, entrei por curiosidade
para apreciar o jogo. Era um salão muito grande com seis mesas de sinuca e duas de bilhar francês e eis uma
surpresa agradável. Manoel Carvalho, velho amigo de Ubá, nos idos de 1925, veio ao meu encontro e por ele
fiquei conhecendo a turma do bilhar, dentre os quais tive amigos e parceiros no jogo das três bolas. Alguns já
falecidos e outros, após a desativação que se deu em 1974, continuam com saudade dos tempos idos a
rememorar as grandes partidas feitas pelo falecido Cataldi, de saudosa memória. Como também a beleza do
estilo do saudoso Dr. Antônio Lessa, o "Tôco".
Jogávamos a dois ou a quatro, dois contra dois. Tenho muita saudade daquele tempo e dos amigos de então,
alguns falecidos, mas os conservo na lembrança com infinita ternura. Luiz Fonseca, Cataldi, Tufão, Dr.
Nilson, Sr. Prazeres e Major Aurino Tenório que, mesmo não jogando, era freqüentador assíduo do salão.
Gostava de apreciar e bater um papo e como era agradável o meu amigo e saudoso Major Tenório!
De vez em quando, encontro com um parceiro e amigos, com o qual rememoramos as belas partidas ganham
ou perdidas; cada qual tem sua história, a exemplo do amigo Layr Gama e seus casos, o "Tião da FEEA",
como era conhecido o nosso amigo Sebastião Gomes da Silveira, o José Farah, o Geraldinho, o João Júlio, o
Waltinho, o Garrincha, o Sobrinho, o Michel Farah, o Aleixo, o Pindoba, o Lessa, o Tenente Waldelar,
Chiquito Schettini, o Itagiba Freitas, o Naciffe, o Capitão Alfeu, o Miguel Bittar, o Manoelão, (Manoel Alves
de Oliveira), o José Chaves, o João Batista, o Haroldo, o Fábio Marques, o Cláudio, o Sr. Heitor e outros,
como também a assistência assídua do falecido Aguiar, de saudosa memória, e do folclórico Júlio de
Oliveira, também falecido, que encantava a turma com boas piadas.
Já o Dionízio, mesmo não jogando, fazia torcida para este ou aquele jogador e, como é um bom papo, tem
sempre um caso agradável para contar. O Belizário, embora jogando no segundo time, até hoje rememora
com muita saudade as belas jogadas e as melhores tacadas no salão do saudoso João Pestana, que também foi
um brilhante jogador de bilhar.

***

Minhas viagens continuavam de parceria com o Odilon, agora residindo aqui em Juiz de Fora, em carro
próprio, pois o Odilon conseguiu comprar sua própria condução, sinal evidente de progresso, o que muito me
alegrou. Desta forma, o amigo não quis aceitar divisão de despesas, como no caso do "Jeep". Fazia questão
somente de minha companhia e a recíproca era verdadeira.
Tempos depois, por conveniência de zona de trabalho, passei a viajar com meu dileto amigo Raul Lamin que,
não sendo feliz com sua casa comercial em Cataguases, onde nos conhecemos, mudou-se para Juiz de Fora
com a família, trabalhando agora com representação e por conta própria, iniciando nova atividade.

***

Como um viajor que encontra um oásis no deserto, o nosso trabalho, de Maria e meu, tinha compensações de
muito conforto, propiciados pelo amor dos filhos. Assim como Elimar, Emir envia de Ouro Preto um cartão
acompanhado de uma carta para sua mãe, por ocasião do Dia das Mães, cujo conteúdo muito a sensibilizou e
por isso vale a pena transcrevê-lo.
Ouro Preto, 19 de maio de 1962
Querida Mamãe
É com emoção que lhe escrevo esta carta, após a passagem do Dia das Mães, que constitui para mim um dia
de meditação sobre a dedicação especial com que a senhora nos tem criado durante os felizes dezoito anos
de minha existência. Realmente, o amor espontâneo que a senhora nos tem nunca poderia ser retribuído
limitadamente porque é infinito. E é com infinito amor e com infinita dedicação que lhe ofereço hoje os meus
parabéns, não a título de agradecimento, mas pelo mérito com que a senhora soube suportar, sempre com
olhos voltados para nós, tanto nas horas de prazeres como nas de sofrimento, decepções e alegrias.
Minha felicidade é em função dos que eu amo. Sou alegre quando os meus estão alegres. Sou triste quando
vocês estão tristes, sou feliz, quando encontro a felicidade perfeitamente enraizada no seio da família da
qual faço parte. Portanto, mamãe, seja alegre para que eu também o seja; nunca deixe a tristeza dominá-la,
porque ela me dominaria também; seja feliz e me faça feliz.
Do filho que a ama com ternura
Emir.

***

Por questão de interesse do proprietário do apartamento em que residíamos, fomos forçados a mudar para a
Rua Marechal Deodoro, 171 apto. 7, onde fomos igualmente muito felizes. Neste edifício com oito
apartamentos, quatro no primeiro e os outros no segundo andar, onde ficamos morando, tínhamos como
vizinhos, no apartamento 8, o Sr. Rony Casalli e família. O no. 9 era residência da saudosa D. Maria Fonseca
e seus filhos, já que era viúva, e o no. 10 era residência de D. Olga Hallack, de saudosa memória. Ali, com o
correr do tempo, tornamo-nos como se fôssemos uma só família.
Não obstante os vizinhos do primeiro andar serem todos de fino trato e amáveis conosco, no nosso segundo
andar, com o passar dos dias, tornamo-nos amigos e essa amizade perdura até hoje com o Sr. Rony, sua
esposa D. Léa e filhos.
Continuava viajando com Odilon ou com Raul, variando de acordo com os interesses da zona a percorrer,
mas tanto um quanto outro não aceitava pagamento de contribuição para as despesas. Ambos tinham
satisfação, como diziam, apenas pela companhia que, felizmente, sempre foi de muita cordialidade e sadio
companheirismo. Nessa oportunidade, Elimar e Emir já estavam no limiar de suas formaturas como médica e
engenheiro respectivamente e ambos deram aulas para melhorar o planejamento financeiro, na época um
tanto abalado pela inflação que começava a corroer os nossos ganhos. O ano de 1968, tão esperado por mim e
Maria, seria como uma redenção a esses esforços comuns, porque traria em dezembro o desejado sonho por
muitos anos acalentado por nós.
E após a contagem de trinta e três anos e oito meses de trabalho, já com os filhos formados e emancipados
requeri minha aposentadoria como Representante Comercial Autônomo. Elma casou-se com Antônio José
Soares, filho dos amigos José Soares e D. Rosária Jório Soares, Emir com Geralda Fonseca, filha do amigo
Abelardo Martins da Fonseca e da saudosa D. Virgínia Augusta e Elimar com Antenor Salzer Rodrigues,
filho dileto dos amigos Sr. Antenor de Paula Rodrigues e D. Alice Salzer Rodrigues. Dão-nos a satisfação e a
alegria de estarem muito bem casados e felizes.
***

É impressionante como a gente no calor da luta do dia-a-dia deixa de perceber coisas e fatos que só mais
tarde, quando as pessoas se voltam para si mesmas, para o seu interior, começam a brotar. Fatos e
acontecimentos temporariamente adormecidos como, por exemplo, fregueses e amigos durante os vinte e um
anos de viagem. Não posso deixar de mencionar a acolhida carinhosa a mim dispensada pelo Sr. Kessim
Lauar, em Caratinga, Sr. Tufie Nassar em Carangola, os irmãos Montezano em Muriaé, com destaque para o
Brazinho Montezano, Irmãos Guarino, também em Muriaé, com destaque para o Renato e José, como
também ao Sr. Vicente La Gatta na mesma cidade, que sempre me receberam com muita cordialidade e
especial atenção.
No campo social, a atenciosa acolhida em Caratinga onde, por motivo de jogar bilhar, era muito estimado
pelos parceiros da cidade, com quem disputei grandes e memoráveis partidas, granjeando uma amizade que
se prolongaria por muitos anos. Destaco, dentre os inúmeros parceiros e amigos, o Sr. José Bonfim, Sebastião
Araújo, Emílio José e Dr. Umberto Batista.

***

Estávamos residindo desde 1971 à Rua Santo Antônio 705, Apto. 202, onde a Elimar se casou com Antenor
Salzer Rodrigues. Antenor e Antônio José, no dizer de Maria, são filhos também, tal é a estima e amor que
nos dispensam, bem como a Geralda que não é nora, somente. É filha, com muito orgulho e satisfação!
O que pode mais desejar uma criatura que chega a uma idade quase avançada, cada vez mais tendo o
testemunho do amor filial em escala crescente. Assim como Elimar e Emir, é com muita satisfação e alegria
que transcrevo a carta da Elma acompanhando um cartão no Dia dos Pais.
Meu papai querido
Na verdade, dizer um simples "parabéns pelo seu dia" não traduz o meu amor, o meu respeito, nem a minha
admiração. Nem eu gostaria de dizer isto apenas uma vez por ano, pois o senhor está de parabéns em cada
dia do ano e tê-lo como pai sempre foi e será motivo de orgulho para mim, enquanto eu viver. Sinto um
imenso pesar, papai, por não poder estar todos os dias com o senhor e aproveitar de tudo o que pode me
ensinar da sua vivência, dessa longa trajetória de setenta anos que, por muito longa que seja, jamais será
ultrapassada, pois a sabedoria é um dom dos que viveram, dos que têm "histórias" para contar.
Agradeço a Deus por eu ser mãe, porque isto me fez compreender o quanto é difícil e muitas vezes penosa
esta missão. E me fez compreender também melhor os meus pais. Fez-me ver que se vocês erraram em uma
ou duas coisas acertaram, no entanto, em cem outras das mais difíceis.
Eu, particularmente, acho tão difícil acertar...
Mas na realidade agir certo ou errado diante desta ou daquela situação não é muito importante. O
importante é o amor e este eu sei que tiveram muito para dar. Abraços e beijos para o senhor, papai
querido, pai "pra ninguém botar defeito".
Elma
Ouro Branco, 9.8.81

CAPÍTULO XX
LAZER E SAÚDE

Deste maravilhoso tronco, Jacob e Sarah, contamos com os filhos do saudoso Jorge: Edson, Hélio, Olguita,
Edgard, Odete, Olinda e Oneida, na maioria casados e com filhos. Do Miguel: Leila, Miguelzinho e Lenir,
também casados e com filhos. Do Ibrahim: Munir, Sarah, Ibrahinzinho, Sônia, Iran e Sandra, a não ser os
dois últimos, todos casados e com filhos. Do Tufy, cujo nome de registro é Benedito: Tufizinho, casado e
com filhos e Alda Valéria. Do Nacib: Antônio Carlos, casado e com filha. Do Eduardo, cujo nome de registro
é Nacife: Sarah, Régia e Samara, sendo que as duas primeiras são casadas e com filhos; e eu com Elimar,
Emir e Elma, todos casados, tendo como netos Fernanda e Gustavo de Antônio José e Elma e Paula e
Manuela, de Emir e Geralda. Quatro netos para orgulho dos avós. Como eu me sensibilizo com os "jograis"
que eles fizeram para mim no meu último aniversário, recitanto em conjunto e em separado, cada qual com
um texto de sua própria lavra.
Sente-se o afeto e o amor nestes pequenos escritos e, apesar de ainda serem crianças, escreveram o que
sentiam em pedacinhos de papel que para mim são pepitas que guardo na Arca de Minha Existência.
Guardo também, com muita satisfação, a homilia proferida em 17.11.79 pelo próprio autor, o amigo Honório
Joaquim Carneiro na missa de centenário de nascimento de Nenén Carneiro, na Matriz de São Januário em
Ubá, a cujo evento comparecemos, Maria e eu, como um dever a uma família que sempre prezamos e da qual
sempre recebemos amizade e consideração. Foi tão emocionante! E quando a releio, me transporto para o
íntimo de seu autor e seus irmãos, para avaliar o quanto é grande e belo cultuar com amor o quarto
mandamento da Lei de Deus: "Honrai Pai e Mãe". Lamento não transcrevê-lo na íntegra, mas deixo o fecho,
que foi o que mais me sensibilizou:
"Neste instante em que estou mais perto de Deus, conversando com o Senhor, parece-me que estou vendo, lá
no céu, Nenén Carneiro, Papai. Aquele pai que nunca bateu em um filho... Eu o estou vendo agora. Em uma
cadeira de balanço. Na mão direita, uma bengala. Na esquerda, um lenço. Enxugando uma lágrima de
felicidade... De saudade..."

***

E, agora, divido-me entre Juiz de Fora, Belo Horizonte e Ubá. Passamos temporadas de alguns dias no
aconchego de nossos filhos e netos em Belo Horizonte, onde tenho igualmente amigos com os quais
recordamos, com muita satisfação, os nossos melhores tempos de Ubá, tais como José Costa Andrade,
Rogério Gentil, Sebastião Vieira Xavier, Nestor Duarte Pacheco, Francisco Caputo, Dr. Ary Gonçalves,
quando passa temporada na capital, Augusto Cezar Filho, com o qual mantemos amizade desde o tempo da
"Casa Cezar", como também seus irmãos Sonem e Deolinda, filhos de Augusto Cezar e D. Finoca, tronco
ubaense da melhor estirpe e comadre Nazira Sallum e seus filhos. Igualmente, com muita amizade e ternura
os nossos amigos e padrinhos de casamento, o valoroso Jorge Hatem e sua mana a sempre gentil Tebte, bem
assim o seu consorte, o amigo Elias Azzi, além do amigo Emílio José, sempre afável, cuja amizade nasceu
em Caratinga, onde ele era estabelecido, agora gozando de justa aposentadoria. Igualmente com o mano
Tufy, residente também na capital e com os seus amigos, que se tornaram meus também. Dos amigos
residentes em Belo Horizonte, faço destaque ao amigo da família, o sempre gentil, Airton José Cabral.
Destaco com muito prazer e amizade a estimada Divina Fonseca Vilas Boas e filhos, a afeição da comadre
Mirtes Galindo Ramos e nosso querido afilhado Mário Magno e família. Da conterrânea amiga Conceição
Alvim Reis e suas filhas Zélia, Teima e Magda e seu dileto filho Fernando.
Aqui em Juiz de Fora, além dos ubaenses que aqui residem, mantemos amizade com esse povo hospitaleiro
que é o juizforano, em cujo meio nos adaptamos muito bem. Com a desativação do "Bilhar do Pestana" em
1974 e para preencher as horas do dia, tornei-me sócio do Tupinambás cuja sede era na Praça João Pessoa
(Rua Halfeld) integrando-me no jogo de buraco (Canastra Real) onde, felizmente, convivi com a cordialidade
dos parceiros e amigos, cujas características são demonstradas nas "Frases de Salão" que eu coletei e que
abaixo transcrevo:
Tendo cartas alternativas para canastra e pegando o morto: "aguardemos Honório de Lemos". João Ruffolo.
Tendo três ou mais jogos espalhados pela mesa: "Tá tudo estrelado". Temente Salles, de saudosa memória.
"Sou apenas o vice-campeão, o campeão mesmo é o Pedro Galil". Lulu Ruffolo.
"Não faça do jogo fonte de renda para a sua manutenção, a vítima pode ser você... você... ou você". Elias
Habib (Batatinha).
"Quem joga Ás é burro e quem não pega é mais burro ainda". Sinval.
"Só quer bater". Riolino.
"Braço é braço, isto aqui é braço". Emílio Auhagi.
"Chamando por Euclides: e veio mesmo!" Paviato.
Jogando carta de canastra: "esse jogo não vale dinheiro, que é que tem?" Magalhães.
"Só não gosto de chá..." Luizinho Fonseca.
"Quem guarda tem!!! Tá?" Mauller.
"É dando que se recebe". Chiquinho Bianco.
"O meu jogo tá no encarte!" Tatão Palhares.
Pegando o morto e sem perspectivas: "Tútú-tú de Merdolú". Coelho.
"Mereço esta carta?" Capitão Duarte.
Comprando carta de canastra do adversário: "Na cozinha". Barreto.
"Cata tudo, cata". Tio Quirilos.
Para o parceiro colocando mal o coringa: "Seria mais uma canastra, certo?" Ary.
"Em vez de uma, leva duas". Pedro Galil.
"É isso aí..." Martins.
"Comprei sujeito a devolução". Quelloti.
"Debaixo de minha jogada, é difícil". Dirceu.
"Jogo muito esse jogo, jogo mesmo!" Durval.
Ao parceiro que deu mancada e com sua habitual indulgência: "Está certo. Jogou bem". Dr. Hélio.
"Lançamento mal feito é um desastre". Suiço.
"Lama Sabactana". Helói.
"Estou jogando pela Cibernética". Oceano.
"Deixa comigo". Duarte.
"Qualquer jogo... Sou campeão de qualquer jogo". Juca Palhares.
"Agora vai ser pelo giro da contrária". Oceano.
"Leva esta meu chapa". Geraldinho.
"Debaixo deste braço ninguém anda". Ouelotti.
"Em Sapucaia quem joga 7 está morto na hora". Fernando.
"Pra orientar parceiro". Aódi.
"Presente de grego". Lana.
"Eles é mau". Fazendeiro.
Simulando modéstia: "Só não perco quando não jogo". Fernando.
"Boa safra". Elias Jacob.
"Não tem valor intrínseco". Pedro Calil.
"Conheço desde priscas eras". Lana.
"Esta carta que comprei, não vai, morre aqui". Almeidinha.
"Se depender de raciocínio..." Paulino do IAPI.
Há muito que a referida sede do Tupinambás foi vendida e passamos a jogar em outros clubes até que nos
firmamos no 15o. andar do Edifício do Clube Juiz de Fora. Lamento a ausência de alguns que a morte afastou
do nosso convívio, os quais recordo com muita saudade em minhas orações.
A turma antiga, hoje mesclada com novos parceiros, continua se reunindo, quase diariamente, fazendo do
clube o seu segundo lar em agradáveis momentos de lazer e amizade.
Entre os inúmeros amigos aqui de Juiz de Fora, merecem menção os amigos e conterrâneos loná e Sofia que,
com sua incontestável amizade, nos proporcionam suas visitas que para nós são sumamente agradáveis. Essa
nossa amizade sempre crescente é para nós de muita satisfação e prazer.
Volvendo a Ubá, onde moram meus irmãos Miguel, Ibrahim, Nacib e Eduardo, sobrinhos e seus familiares e
minhas amizades, que são felizmente incontáveis, quero consignar com satisfação a amizade dos compadres
José de Almeida e Adelina Demolinare Almeida e seus familiares, com destaque para o nosso prezado
afilhado Fernando Antônio, hoje acadêmico de Odontologia; ao estimado cunhado Elias Samôr e prezada
Alzira Barbosa Samôr e seus familiares, com destaque para nossa afilhada de batismo a mui querida Saide;
aos compadres e primos Sebastião Samôr (Tatão) e Dina Aleixo Samôr e família, destacando carinhosamente
o nosso afilhado João Calil, técnico em Edificação, formado pela Universidade Federal de Juiz de Fora.
Igualmente, com muito afeto, à dedicada amiga Denden Peixoto, esposa do falecido Antônio Peixoto, de
saudosa memória; aos velhos amigos José Dias Campolina, Dedé Braga, Randolfo Santana, Raymundo de
Mello (Mundinho), Uber Coutinho e seus familiares, entre muitos outros. Destaco também a amizade dos
tempos de Esperanto, década de 50, da farmacêutica Edina Barros e sua progenitora de saudosa memória.
Guardo em minhas recordações da Cidade Carinho nos tempos idos de 1940, a nossa Praça Guido Marliére
com seus hotéis repletos de viajantes e a alegria contagiante que proporcionavam aos ubaenses; a alfaiataria
"Rener", do nosso amigo Niquinho Lauria, onde era a sede obrigatória de caçadores e pescadores, dentre os
quais a figura veneranda de Adriano Pacienza, Odilon Salgado, Olavo Cruz, Juvenal Peixoto, José Carneiro,
Nazeas Lauria, Célio Rodrigues, Joaquim "Setenta" e outros que, como o próprio Niquinho, tinham casos de
pescaria ou caçada para contar: "Mentiras à Parte", deixaram saudade; a Barbearia Globo, do nosso mui
prezado amigo José Magalhães (Nenen Barbeiro) e de seu irmão, João Magalhães, onde se fazia a chacrinha:
Ulisses Campos, Avelino Ottoni, Severino Francisco de Albuquerque, Luiz Manhães, José Campomizzi,
Tenente Penchel e, às vezes, quando passava por Ubá, viajante que era, o senhor José Maria de Macedo, que
se dizia espírita e comunista! Discutia-se tudo: religião, política, carnaval e outros assuntos. Hoje, apenas
João sobrevive à citada turma, de saudosa memória; também da Agência de Loterias do saudoso João
Honório Carneiro, tendo como seguidor o nosso estimado amigo Raymundo Carneiro; da Praça também, o
Fernando Diniz, relojoeiro e amigo, já falecido, tendo seus filhos como seguidores.

***

Todos cantam sua terra


Também vou cantar a minha
Nas débeis cordas da Lira
Hei de fazê-la rainha.

Casimiro de Abreu

Ah! se eu fosse poeta ou mesmo capacitado em literatura, gostaria de cantar em prosa e verso a beleza
de minha cidade dos tempos de minha despreocupada infância. Recordo-me com muita saudade da Rua
das Flores, da Reta do Sollero, do Morro do José Magri, do Beco do Padilha, do Caxangá, da Vila
Casal, do Quebra-Coco, da Olaria do Papa, do Rancho de Pedro Batalha, da célebre Miragaia, cujo
manancial mitigou a sede de muitas gerações e até celebrizou-se pelo ditado: "Quem bebe água da
Miragaia não sai daqui"
A Ubá, essa terra generosa que viu o meu despertar para a vida, torrão querido, berço de meus filhos e
túmulo de meus pais e entes queridos, eu renovo a cada dia da minha existência o meu mais profundo
amor .
Aos ubaenses de todos os matizes e de todas as gerações os votos de muita felicidade nos longos
caminhos da vida!

Foto: http://picasaweb.google.com.br/peloscaminhosdavida
"Você vai voltar para sua casa e sentar à sombra da mangueira..."

SEGUNDA PARTE

CAMINHOS JÁ PERCORRIDOS
REMINISCÊNCIAS INESQUECÍVEIS

CONGADO DE UBÁ

Congado de minha terra


Congado do Rei Adão
Que tanta saudade encerra
Dentro do meu coração.

Desde pequenino, ao amanhecer o dia 13 de maio, acordava ao som dos tambores, reco-recos, violão e
demais instrumentos e os cânticos festivos dos Congados de Ubá. Eram os negros festejando a data da
Abolição da Escravatura. Exaltavam em seus cânticos a Princesa Isabel - A Redentora.
E eu me recordo com saudade daquelas evoluções em duas alas de homens e mulheres todos vestidos a
caráter, roupas coloridas, gorro na cabeça, muitos ornamentos com fitas, espelhos e guizos. Dois espadachins
corriam de um lado para outro com sua espada, uma contra a outra, num ritual impecavelmente ritmado.
No centro da ala vinha a princesa e o príncipe, eleitos para reinar um ano. Somente o Rei era perpétuo. E esse
rei, cujo reinado durou mais de cinqüenta anos, foi o sempre lembrado Rei Adão que, após seu falecimento,
foi substituído pelo Mestre André, ou seja, o Rei André, também de saudosa memória.
O congado ainda vive, mesmo a duras penas, porque os velhos vão morrendo e os novos seguidores, embora
reduzidos, ainda dão continuidade a esta tradicional agremiação.
Salve o Congado de Ubá!

IVANOFF GODINHO e SIQUEIRA

Filho do Sr. Messias Siqueira e D. Leocádia Godinho e Siqueira, muito cedo despontava para um futuro
brilhante nos estudos. Inteligência fulgurante, dedicou-se às letras, vindo a formar-se, muito novo ainda, em
Direito e Jornalismo.
Guardo do amigo Ivanoff as mais belas recordações e saudades quando, ainda acadêmico, em férias, vinha do
Rio onde estudava. O nosso encontro era de festa, pela admiração e amizade que eu lhe devotava desde os
tempos escolares, pois fomos colegas e amigos na Escola Regina Godinho.
Lembro-me bem das piadas do alegre Ivanoff quando eu lhe dizia: Ivanoff Godinho e Siqueira, você é o
Esteio da Nação, Viga Mestra da Nacionalidade!
E a resposta vinha imediatamente: Elias Jacob, Protótipo da Sabedoria e outros adjetivos bonitos de que ele
era capaz, entre abraços afetuosos.
Casou-se no Rio e, ao que me parece, não deixou descendentes. Faleceu muito cedo, sem ter completado
trinta anos. Morreu Ivanoff e com ele a inteligência brilhante do jornalista e poeta. É com muita tristeza que
Ubá, Cidade Carinho, lamenta a perda de seu filho querido.

ANTÔNIO BERTELLI

Mais uma pessoa vem enriquecer minhas amizades em Ubá. Fundada a filial da "A Pernambucana", à Rua
São José, um moço, de tratamento muito afável e delicado, veio de Rio Branco, hoje Visconde do Rio
Branco, para gerenciá-la. Tratava-se de Antônio Bertelli, já conhecido do Chicri Rachid de mais tempo, pois
o Bertelli já fizera vendas, em outras oportunidades, de tecido das Casas Pernambucanas de Visconde de Rio
Branco, cujo estabelecimento mantinha vendas por atacado. Eu e Bertelli tínhamos muita coisa em comum e
ficamos amigos desde o momento da apresentação. Amizade sincera, cultivada por longos anos.
Bertelli gostava de poesias, música e charadas. Solteiro, com seus dezenove anos, isso em 1931, era nosso
companheiro nas serenatas e nas reuniões que fazíamos no Clube do Aymorés, na Praça Guido. Tempos
difíceis, os negócios não compensando, a direção da firma das Pernambucanas encerrou suas atividades em
Ubá, voltando o nosso amigo para Visconde do Rio Branco, sua terra natal, empregando-se na Usina dos
Bouchardet e mais tarde casando-se com D. Aracy Barroso Bertelli. Desse consórcio vieram quatro filhos:
Talma, Antônio, Ronaldo e Flávio.
Foi um grande lutador pela vida. Estabeleceu-se em Ubá, tempos depois, com tecidos em retalhos, mas,
apesar de muito trabalhador, os negócios não estavam apresentando um bom retorno.
Capital pequeno e a luta, em conseqüência, foi muito dura. Viajou para firmas de São Paulo e Rio sem,
contudo, acertar nesta atividade. Transferindo-se para Belo Horizonte, estabeleceu-se na Capital do Estado
com armarinho até que, um dia, foi nomeado para fiscal do INPS, cargo no qual ele chegou a se aposentar,
falecendo, infelizmente, pouco tempo depois, em 1983.
Guardo do meu pranteado amigo com muito carinho o cartão-comunicado do nascimento de sua primogênita
Talma, que foi em versos:

"Neste dia de Ventura


Que tanta coisa traduz,
Minha alma singela e pura
Deste mundo viu a luz.
Na inspiração de Maria
Que os nossos passos conduz,
A meus pais dei alegria
Por graças do Bom Jesus."

Rio Branco, 10.02.942


Talma (Remete: Antônio Bertelli e Senhora)

Ao receber o comunicado acima, mandei confeccionar um impresso em cartão, como agradecimento.

"Deste mundo viu a luz


Talma formosa menina
Como dádiva divina
Enviada por Jesus

Formulo votos ardentes


A meu Deus, Nosso Senhor,
Que lhe dê formosa flor
O mais rico dos presentes:

Vida longa de ventura


Junto de todos os seus
Abençoada por Deus
E de toda Criatura.

Com nossos agradecimentos


Elias e Maria. 12.02.942

Descanse em Paz, amigo Bertelli; e esteja certo de que nossa amizade irá se perpetuar através de nossos
filhos para todo o sempre!

PAULINO SOARES

Figura austera, cabelos muito brancos, já com sessenta anos, costumava sentar-se à mesa próxima do balcão
do Bar do Ponto. Diariamente, de 9 da manhã até 11:30, lá estava o Sr. Paulino tomando sua cachacinha.
Tomava uma, duas e às vezes mais de três. Gostava da poesia lírica e recitava sempre o "Ser Mãe" de Coelho
Netto. Declamava também Fagundes Varella, Casemiro de Abreu, Olavo Bilac e também as de sua lavra. Fez
teatro, escreveu várias peças para o teatro amador de Ubá nos anos de 1912 e 1913, tendo também
compartilhado, como ator, ao lado do Sr. Oscar Miranda e outros.
Mas o teatro amador de Ubá continuava latente mesmo depois do Paulino Soares, pois vieram outros valores
e quase sempre sob a orientação do velho Oscar Miranda. O Dodô Citadino, o Álvaro Trevizano e seu irmão
Francisco, as irmãs Hipólito - Nhá e Petita, a Rita Cancella, Nenen e João Magalhães e outros.
Com esse elenco acima assisti a uma peça intitulada "Uma Causa Célebre" de sua autoria, cujo drama era o
seguinte, em resumo: o marido partiu para a guerra deixando a mulher e uma filha de quatro a cinco anos de
idade. Com o tempo passando e estando a coluna em que servia o marido, sargento, próximo à sua casa,
resolveu ele visitar a família, sem ordem do comandante. Entrava em casa à noite e saía de madrugada. Certa
noite a filha desperta com um barulho e chama pela mãe e esta lhe acalma dizendo: não é nada, filha, é seu
pai que está aqui. Acontece que nesta mesma noite, após a partida do marido, um ladrão entra em casa e, em
luta com a senhora, dispara e fere mortalmente a mãe.
A filha apavorada grita: "foi papai, foi papai". O sargento foi preso e confessou que realmente tinha estado
em casa, mas negou que tivesse sido o autor dessa brutal agressão à sua querida esposa. Chamada a menina
diante do pai já preso, confirmou o que sua mãe dissera: "filha é seu pai que está aqui!"
O personagem sargento, vivido pelo Dodô Citadino, ajoelhou-se aos pés de sua filha e abraçando-a disse:
"minha filha, lembre-se sempre de que seu pai a ama e sempre a amará. Nunca se esqueça de que seu pai se
lembrará muito de você com muito amor"
É pena que eu não tenha a frase original, que é muito bonita.
E prossegue a peça: a menina foi adotada por uma família rica, parentes da mãe, e vivia em palácio com
bonito jardim. Tornou-se moça linda e prendada. A personagem da moça era Rita Cancella. Passeando pelo
jardim, a jovem depara com alguns sentenciados, com uniformes listrados, que eram conduzidos para outro
presídio. Cansados pela caminhada sentaram-se na relva macia próxima à mansão. O crime daquela noite
aparentemente fora totalmente esclarecido, mas o pobre sargento ainda pagava pelo mal que não cometera.
Um velho e alquebrado presidiário, ao pressentir a moça solicitou-lhe um pouco de água, estava com sede.
A moça, ao lhe trazer a água, puxou assunto com ele e ao perguntar porque estava preso, seus olhos
encheram-se de lágrimas. Contou sua história e ao chegar na frase: filha lembre-se sempre... a menina
continuou: que seu pai a ama e sempre a amará. Você é meu pai!, exclamou a jovem. Minha filha! Os dois se
abraçaram e choraram de alegria. Desce o pano.
E o velho Paulino Soares, na mesma mesa de bar tomando seu aperitivo, contava casos de Ubá de
antigamente com seus carnavais cheios de confetes e serpentinas. O velho tinha muitas recordações de sua
juventude e de seus amores.
Que Deus o tenha, saudoso amigo!

ALFREDO EMÍDIO

Figura das mais destacadas no meio boêmio, gostava do violão e cantava também. Ao amigo ele dava sua
vida. Muito leal, sua característica era falar bonito. Prendia a atenção da roda com sua habitual verbosidade
sem, contudo, ter sequer a instrução primária completa. A gente se sentia bem perto do Alfredo; onde ele
estava formava-se logo uma rodinha, era muito espirituoso e alegre, trajava-se elegantemente e estava sempre
perfumado.
Embora fosse mais velho, tornamo-nos amigos e companheiros nas noites de serestas. Gostava de recitar de
Raymundo Corrêa,

AS POMBAS

Vai-se a primeira pomba despertada


Vai-se outra, mais outra, enfim dezenas
De pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sanguínea e fresca madrugada!

À tarde, quando a rígida nortada


Sopra, aos pombais de novo elas serenas
Ruflando as asas, sacudindo as penas
Voltam todas em bando e em revoadas!

Também dos corações onde abotoam


Os sonhos, um por um céleres voam
Como voam as pombas dos pombais...

No azul da adolescência as asas soltam


Fogem, mas aos pombais as pombas voltam
E eles, aos corações não voltam mais!

Além do Alfredo Emídio e do Joviano Pinto, havia também os seresteiros Cajaba e João Léo, ambos do
Caxangá. Donos de bonita voz, encantavam as "meninas" da época com belíssimas canções de seresta.
Cajaba também se acompanhava ao violão e sua canção predileta era a "Mulher que ficou na Taça", de
Francisco Alves, o Chico Viola:
Fugindo da nostalgia
Vou procurar alegria
Na ilusão de um cabaré
Sinto beijos no meu rosto
E bebo por meu desgosto
Relembrando quem tu és.

E quando bebendo espio


Numa taça que esvazio
Veio uma ilusão qualquer
Aumentando o sofrimento
Na taça em que sedento
Vem minha paixão sufocar.

E quanto mais ponho bebida


Mais a taça se esvazia
Vejo uma ilusão qualquer.

E quanto mais bebida eu ponho


Mais eu vejo a mulher no sonho
Na taça e no coração!!!

MIGUEL SAMÔR

Nascido em Gib Janin, Líbano, veio muito novo para o Brasil com sua consorte, dama das mais acrisoladas
virtudes, a nossa D. Saide Salem Samôr. Estabeleceu-se no Rio, onde nasceu a Maria que, mais tarde,
tomaria o meu sobrenome pelos laços do matrimônio. Camilo, Elias e Maria, três filhos. Trabalhou no Rio de
Janeiro, na sua profissão de marceneiro. Homem correto, trabalhador, que se caracterizava pela honestidade.
Vindo para Rodeiro de Ubá, (na época era distrito), montou uma pequena oficina de marcenaria, satisfeito
com sua situação, pois, posso afirmar, nunca foi homem de ganância, antes, pelo contrário, foi sempre de um
desprendimento invulgar. Esse conceito de honestidade foi transferido aos filhos como uma herança que ele
também recebera, por certo, de seus pais e avós.
Um dia, uma dor inesperada envolve o corpo do Sr. Miguel e fora tão impertinente que o pobre homem,
ainda jovem, se sentiu incapacitado de trabalhar. Foi trazido o médico de Ubá, mesmo com dificuldade de se
chegar a Rodeiro, sem estrada e sem recursos de locomoção. O médico, auscultando-lhe o peito, constatou
que era tuberculose. Essa doença na época era um espantalho. Não tinha cura, a não ser com clima
apropriado e mesmo assim de difícil recuperação. O médico aconselhou D. Saide a vender a oficina e montar
uma venda de cereais, pois seria para o doente menos penoso e também porque no serviço de marcenaria
nunca mais ele poderia trabalhar. Que tristeza, que desolação no coração de D. Saide, com três filhos
pequenos. D. Amélia, dileta irmã do doente, que também morava em Rodeiro e era casada com Ibrahim
Sallum (deste matrimônio tinha dois filhos: João e Maria), também ficou muito preocupada, mais pelo fato
de que se Eduardo Reis recomendara que se chamasse um médico é porque a situação estava grave. Vale
dizer que o Sr. Eduardo Reis era farmacêutico muito capaz e honesto. Todos se prevaleciam de seus remédios
e conselhos, tanto no Rodeiro como no Diamante e circunvizinhança.
E as coisas iam neste pé quando, um dia, Balbina, uma louca mansa que morava no Rodeiro, passou pela
venda de D. Amélia cantarolando. (Balbina, apesar de tudo, era figura benquista no Rodeiro. Não havia
dificuldade para ela entrar sala adentro e ir à cozinha almoçar ou jantar com qualquer família rodeirense.)
Abatidos pelo desânimo, pois os remédios receitados não estavam surtindo efeito, entra casa adentro a Siá
Balbina cantarolando e perguntando pelo Sr. Miguel "Tem muitos dias que não vejo ele", disse ela. D. Saide
respondeu-lhe: "Miguel está doente de cama". "Posso vê ele?" "Pode, perfeitamente".
Chegando ao quarto Siá Balbina falou: "Sô Migué, o que senhor sente?" "Pontada aqui, Siá Balbina, quase
não posso respirar". "Ah, aí?" apontando a cintura do doente. "Vou fazer uma benzedura e o senhor vai ficar
bom". Nisto ela pediu uma tira de pano grande para fazer a benzeção. D. Saide prontamente atendeu ao seu
pedido, com risos do Sr. Miguel de incredulidade. Balbina é uma louca! Mas tem um provérbio árabe que diz
mais ou menos o seguinte: "O doente em aflição, se agarra até à raiz do vento". Siá Balbina, apoderando-se
da tira de pano, fez um laço envolvendo a cintura e deu o primeiro nó, deu o segundo, o terceiro, o quarto, o
quinto e não sei quantos mais, até que uma tira de mais ou menos de metro e meio, ficasse reduzida apenas à
envoltura do corpo franzino, pela doença, do Sr. Miguel.
Terminada a tarefa dos nós-cegos, Siá Balbina disse: "Quando essa tira soltar sozinha, o Sr. Miguel já está
bom!" Pasmem-se, a tira de pano na noite seguinte estava solta na cama.
Após este episódio o Sr. Miguel viveu mais de cinqüenta anos, trabalhando na profissão, da qual nunca mais
se afastou. Esse episódio é verídico; não o presenciei, mas acredito muito nas pessoas que o viram e
contaram.
0 dia primeiro de maio é dedicado ao trabalhador, é o Dia Internacional do Trabalho. Parece que foi dedicado
ao Sr. Miguel que foi um grande trabalhador. Deus o tenha.

ANTÔNIO JORGE

Conhecido em Ubá como Antônio Matanego. Essa denominação tem origem no burro de sua carroça,
apelidado "Matanego", e daí o carroceiro obteve a alcunha que lhe ofuscou seu nome verdadeiro. Trabalhou
até chegar à velhice, sempre alegre e satisfeito com a vida que Deus lhe deu. Eu era pequeno, criança ainda,
quando ele me pegava e me punha na sua carroça para passear. Lembro-me muito desta fase infantil e da
bondade do Matanego. Não pude fazer nada por ele a não ser pequenas ofertas em dinheiro, na sua velhice;
mas o Matanego nada tendo, tinha tudo! Era uma consciência tranqüila de quem cumpriu seu dever. Nada
tinha e de nada precisava.
Obrigado, Matanego, pelos passeios e pelos exemplos de honradez que serviram para estimular em mim mais
ainda a intenção de fazer o bem! Que Deus o tenha na Bem-aventurança!

ALEXANDRE SALLUM

Cidadão libanês, desde moço emigrou para o Brasil, residindo em Ubá desde 1909, tornando-se um Ubaense
de corpo e alma pelo devotamento e gratidão à cidade que o acolheu. Comerciante, era estabelecido na parte
térrea do sobradão de D. Cocóta, esquina com a Praça São Januário, local que mais tarde deu lugar ao
Ginásio Ubaense. Foi casado em primeiras núpcias com D. Latife, dileta filha do professor Nacife de fina
estirpe libanesa. Entretanto, sua esposa, após longo tempo de casada, veio a falecer deixando o nosso amigo
Alexandre enlutado e muito triste.
Alexandre, pelos seus dotes pessoais, sempre atuante, era o intérprete do anseio de todos os libaneses em
Ubá. Era maçon, numa época em que a maçonaria era sinônimo de espantalho. Devido à sua boa cultura em
Árabe e Português, tinha facilidade e trânsito livre em todas as repartições municipais, estaduais e federais.
Casou-se em segundas núpcias com D. Malvina Borjaile Sallum e, após muitos anos de consórcio, nasceu
Marunzinho, filho tão almejado pelo casal e que hoje é o grande maestro Marum Sallum Alexander, diretor
presidente da FAU - Fundação de Arte Ubaense, que tanto serviço tem prestado à cultura Ubaense.
Diplomado em Direito, todavia, pela vocação, dedicou-se à música e às artes cênicas e as exerce com
invulgar brilhantismo.
Alexandre, comerciante, fumeiro e industrial, viveu mais de sessenta anos em Ubá, falecendo já bem velho,
com grande consternação dos seus amigos, que eram muitos. O cemitério de Ubá guarda os restos mortais de
um libanês de nascimento, porém ubaense de coração.

DONA LABIBE SIMÃO

Procedente de Juiz de Fora com seus filhos, fixou residência em Ubá a senhora Labibe Simão, que enviuvara
recentemente, isso lá pelos anos de 1924 ou 1925.
Não sei bem ao certo o que motivou a D. Labibe a transferir residência para Ubá. Só sei, e me lembro muito
bem, de seu dinamismo e austeridade na condução da família. Dedicou-se à venda de meias a varejo. Vendia
meias de todos os tipos, carregando várias caixas do produto amarradas e em todas as casas de família, em
que ela se apresentava para vendê-las, era muito bem recebida. Os filhos ajudavam-na nesta tarefa. Ganhava
o seu sustento e os meninos foram crescendo, virando rapazes e as mocinhas quase adultas.
Pela sua severidade e vocação de comando, educou seus filhos na Escola do Trabalho, do respeito e da
dignidade. Voltando novamente a Juiz de Fora, firmando residência definitiva, estabelecendo-se mais tarde
na Galeria Pio X com a "Vulcão das Meias", loja especialista em meias, a sorte foi-lhe sorrindo, aliada ao
trabalho. Tornou-se, pouco tempo depois, já com os filhos adultos, proprietária da fábrica de meias com o
nome e marca registradas.
Seus filhos são hoje grandes industriais no setor de meias e malhas em Juiz de Fora, com a importante
"Malharia Viúva Simão", de onde vendem para todo o Brasil. São fiéis seguidores daquela dinâmica senhora
labibe Simão, heroína com H maiúsculo, de cuja amizade tive a honra de compartilhar. Foi em vida um
exemplo de virtude, dignidade e trabalho.

ADAUTO HORTA

Filho dileto do Sr. Raul Moreira Horta e de D. Albertina Horta, de cuja amizade eu compartilhava, era moço
muito elegante e querido das meninas dos idos anos de 30. Vestia-se com muito esmero. Era amante da
poesia, das serenatas e, sobretudo, dos bailes. Dançava magnificamente e era muito gratificante vê-lo dançar
um tango argentino ou mesmo uma valsa, principalmente quando sua dama dançava igualmente bem, como
Pricila Ernesto, que foi nesta época uma das melhores dançarinas de tango argentino, muito em voga na
oportunidade. Adauto era um boêmio lírico, amante da paz e da concórdia, tudo para ele estava bem e, ao que
é de meu conhecimento, nunca teve a menor desavença com ninguém. Era amigo de todos e todos eram seus
amigos em toda a cidade de Ubá. Freqüentador assíduo do Bar do Ponto, invariavelmente, entre um chopp e
outro, e entre amigos, recitava lindas poesias e gostava também de ouvir outras tantas que os amigos
recitavam. Esses encontros, muitas vezes, terminavam em alta madrugada, no "Janú". Janú era um bar de
boemia, fundado e administrado pelos irmãos Luiz e Floriano Ferreira de Souza, que ficou em atividade
muitos anos, com filial à Rua N. Senhora da Saúde, onde a boemia ubaense era mais notável. Nesta época,
transferido para Ubá o funcionário da Estrada de Ferro Leopoldina, o Sr. Peixoto e sua família ficaram
residindo à Rua Nova, hoje 15 de Novembro. D. Clarinda, esposa do Sr. Peixoto, era costureira e sua irmã
mais nova, a caçula da família, Branca Barros, era sua auxiliar. Branca, muito nova ainda, ficara órfã, daí ter
que morar com a irmã que lhe dava muito carinho. Branca e Adauto ficaram namorados e o amor foi tanto
que brigavam constantemente por causa de ciúme. Adauto muitas e muitas noites se afogava na bebida com
dor de cotovelo. E lá vinham as pazes entre os namorados e quando tudo ia muito bem, lá vinha um aceno à
boemia, outros transtornos, outras brigas, outros queixumes. O imprevisto inexorável mostrou sua garra
quando Adauto, sentindo que seu olho esquerdo estava com dores e embaçado, consultou um oftalmologista,
por sinal um dos melhores da Zona da Mata, o Dr. Sébas. Após demorado exame, disse-lhe que esse olho
doente já estava condenado; entretanto, para evitar que a doença passasse para o outro olho, prescreveu
vários medicamentos e uma recomendação principal: abstinência completa das bebidas alcoólicas. Perdendo
sua vista esquerda e a despeito dos desvelos de sua mãe, o carinho de suas irmãs e o conselho de seu velho
pai, o nosso amigo Adauto continuava afogando suas mágoas no álcool. Não adiantou a recomendação do
médico nem tampouco a dedicação de Branca, que o apoiava em tudo, menos naquilo que o prejudicava.
Os dias foram passando e Adauto, apesar de inconformado com a perda de uma das vistas, continuava
trabalhando dirigindo caminhão, transportando café do engenho do Sr. Luderer, seu cunhado, até a estação da
Estrada de Ferro Leopoldina, para embarque.
Todos os dias a mesma rotina, do engenho de café à estação e vice-versa. O namoro continuava, entretanto
Adauto se afastava de vez em quando, para tristeza de Branca que o amava muito. Afastava-se porque a
amava muito e não queria que ela compartilhasse de seu infortúnio.
0 destino conduzia implacavelmente o nosso amigo à escuridão total e esse dia chegou. Adauto perdera sua
segunda vista, condenado à cegueira total. Que tristeza. O desespero tomou conta dele e de seus familiares
também. Branca, muito triste, nada podia fazer para atenuar o sofrimento do amado, a não ser dobrar o
desvelo por ele, pelo amor. Começava ali o calvário de Branca. Seus familiares não queriam que o namoro
continuasse. Achavam, e com razão, que o namoro e o casamento seriam impossíveis, principalmente porque
nem um nem outro tinha condições econômicas para arcar com tal responsabilidade. Deliberadamente, o Sr.
Peixoto e família mudaram-se de Ubá, afastando Branca do convívio de suas amigas e, sobretudo, do bem-
amado Adauto, nesta trágica fase de sua vida.
O amor de Branca era grande demais para sucumbir ao primeiro tropeço, debalde os conselhos de seus
irmãos e cunhados no Rio e em Niterói, onde residiam. Branca, muito triste entre seus familiares, não
obstante o apoio que lhe davam, mantinha correspondência com amigas em Ubá e com o próprio Adauto,
durante meses após sua partida.
O amor falou mais alto. Branca rompeu a barreira dos conselhos e da boa vida que tinha com suas irmãs e
partiu para Ubá, decidida, impetuosa, com determinação para os braços de seu amado, casando-se em 1937.
Adauto, apesar da cegueira, fazia negócios ambulantes; vendia loteria, gravatas, etc., sempre acompanhado
pelo seu amigo Geraldo Alemão, Geraldo Gonçalves Ferreira que, tomando essa tarefa como obrigação, foi
durante muitos anos o seu guia, seu amigo e seu braço direito em todas as realizações que conduziram o
amigo Adauto ao progresso da "Adauto Loterias", na Praça Guido Marliére, razão pela qual Geraldo é muito
estimado pelos amigos ubaenses e especialmente por mim que me considero um de seus melhores amigos.
Adauto e Branca, não obstante o amor que nutriam um pelo outro, na adaptação do casamento tiveram a
princípio muitas dificuldades. Branca suportava tudo com muita resignação e coragem. Conseguiu comprar
uma máquina de costura e dedicou-se a roupas de crianças, especialmente meninas, e conseguia desta forma
substancial ajuda na manutenção da casa.
Adauto, tempos depois, conformado com sua cegueira, convivia bem com ela, chegando a dizer em várias
oportunidades que se lhe fosse concedido o direito de enxergar, não queria mais e lamentava ter dado muito
desgosto à sua mulher ao chegar muitas vezes alcoolizado em casa. Seus negócios progrediram e a bonança
sorriu para o casal.
Adauto e Branca faleceram, já com idade bem avançada, entretanto deixaram seus frutos sadios e espargindo
bondades e virtudes nas pessoas de seus filhos: Dalma Nize, Adauto e Raul Bráulio. Ubá palco deste grande
romance, guarda ainda lembranças e saudade dos amigos Adauto Moreira Horta e Maria da Conceição Horta,
a querida Branca.

DONATO QUAGLIETTA

Quem teve infância em Ubá nos idos de 1915 a 1930 deve se recordar, se vivo for, da figura patriarcal do
ilustre homem que foi em vida o Sr. Donato Quaglietta.
Italiano de origem, chefe de numerosa família, cujos filhos e netos nasceram em Ubá, tornou-se também um
Ubaense de coração voltado para o povo miúdo, ou seja, a camada mais carente da criançada ubaense. Era
quase um doutor no ramo da Homeopatia.
Todas as manhãs era aquela fila de gente com seu vidrinho na mão e a todos atendia com carinho e
devotamento. Pela informação das doenças, ele já fazia a sua dedução clínica e para cada caso ele mantinha
uma manipulação pelas mãos abençoadas de D. Amélia, sua devotada filha. Nunca exigiu pagamento dos
remédios. Mandava buscá-los no Rio, às suas expensas. Pedia, sim, que trouxessem os vidros. Havia casos de
doentes que careciam de exame.
O nosso saudoso amigo Sr. Rufino Lacerda, que sempre comentou os feitos benignos do Sr. Quaglietta, dizia:
"Primeiro é preciso examinar para depois receitar".
Saudoso Sr. Donato Quaglietta, avô do meu pranteado compadre Sílvio Quaglietta, o meu reconhecimento
pela sua bondade de homem simples, caridoso e bom, a quem Ubá muito deve. Descanse em paz!

JOSÉ SOARES

Como homenagem póstuma a um amigo que partiu para a eternidade deixando nossos corações pesarosos e
cheios de saudade, transcrevo aqui uma gravação feita por mim, de conteúdo singelo, porém com muito
carinho e amizade, em 18 de maio de 1980, ocasião em que se festejava seus oitenta anos:

Meu caro Soares


Neste dia festivo, cercado do carinho de sua dileta esposa D. Rosária, seus filhos, genros, netos e bisnetos, eu
não podia me furtar aos ditames de meu coração em abraçá-lo como também compartilhar da alegria que
reina em seu sagrado lar.
José Soares de Souza - velho amigo de todas as horas, você que hoje atinge a bela idade de 80 anos muito
bem vividos ao lado de sua companheira de luta, a nossa querida D. Rosária, com a tranqüilidade e confiança
no futuro que há sessenta anos vocês perseguiram até conquistarem a plenitude da felicidade.
No seu dia-a-dia de luta e trabalho, vocês conseguiram que seus filhos trilhassem o caminho do bem, pelo
exemplo de bondade e de bem servir à coletividade.
Você, Soares, o Soares de Cataguases, Guidoval, Tocantins, de Aymorés, Conselheiro Pena, Divino de Ubá,
Petrópolis, Belo Horizonte e Ubá, esta Ubá que foi praticamente o seu segundo berço natal. E por ser em Ubá
que você mais firmou residência, é que todos os ubaenses o querem bem e o admiram; e eu, especialmente,
por sermos amigos há longos anos, acrescido ainda pelo fato de que meu prezado irmão Ibrahim Jacob ser
seu genro e minha querida filha Elma ser sua nora, ficamos indiretamente com um parentesco que tanto me
orgulha.
Você, Soares, não conseguiu fortuna, dinheiro, propriedades, mas você obteve de Deus todas as felicidades
que o mundo propicia, mercê de suas excelsas virtudes, cultivando o bem-estar pela simplicidade de sua
conduta. Dando e recebendo, dando tudo de si, como manda São Francisco de Assis!
Você, Soares, é o exemplo para todas as gerações que lhe sucederem. Eu o admiro e nossa amizade há de
perpetuar até a consumação dos séculos.
Abraços afetuosos do amigo

Elias Jacob.

Maria e eu, nossos filhos e os genros, nora e netos, que vieram completar a nossa família,
reunidos em nossa casa, por ocasião do Natal de 1985.

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