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história
No búzio do areal...
do meu
Ah, quem pudesse
país, e ambas integradas na
ouvi-lo sem mais versos!
evolução mundial.
Assim puro,
(Vitorino Magalhães Godinho)
Assim azul,
Assim salgado...
I NTRODUÇÃO : A TRAMA DA REDE
O
Universal, encontro dos navegadores com
Numa palavra só realizado. a América deu-se através do
Mar-Oceano, para tomar aqui
(Miguel Torga, Mar)
uma inspiração de Colombo. Este meio
Penso, na verdade, que a natural, paulatinamente domesticado, foi
história do Brasil não é tornando-se aos poucos uma fonte de
história à parte, e que deve mistérios, de interpretações fantásticas
A
cas e do conhecimento sob controle do
reflexão sobre a escrita de Ma-
Ocidente moderno, de proporcionar uma
galhães Godinho exige um es-
acumulação ilimitada e interminável de
forço de compreensão de duas
capitais e de forças em tor no do grande
vertentes que aparecem constantemente
comércio e dos estados hegemônicos do
no estudo sobre as frotas: em primeiro
núcleo duro da economia mundo dos des-
lugar, a percepção do mundo como obje-
cobrimentos.
to de pesquisa. De uma outra perspecti-
va, Godinho revela uma preocupação
Este estudo pretende, sumariamente e
constante com a maneira de pensar a his-
tendo como foco uma escrita postada,
tória, e o ofício do historiador. Esse pro-
examinar as fontes da reflexão
cesso de conhecimento do mundo luso-
historiográfica de Godinho e os caminhos
americano encontra o seu ponto de
da sua interpretação, a partir de um tra-
imbricação quando a história da expan-
balho intitulado: Portugal, as frotas do
são é capaz de examinar, articuladamen-
açúcar e as frotas do ouro (1670-1770). te, o conceito de descobrimento, a idéia
A estrutura deste trabalho apresentará os
de Novo Mundo e a singularidade do
seguintes problemas, tomando-se por
renascimento ibérico para a cultura oci-
base a análise da escrita de Godinho: a
dental.
relação que o autor estabelece entre a
Os homens que cruzaram o Atlântico en-
crise civilizacional do mundo contempo-
tre os séculos XV e XVIII buscavam, em
râneo e o futuro dos países de língua por-
essência, especiarias que muitos navega-
tuguesa. Esse elemento atravessa os es-
dores, naturalistas e burocratas régios
tudos e cursos mais recentes do historia-
julgavam existir abundantemente nas ter-
dor português; o colonialismo luso como
ras exóticas do Novo Mundo. Nessa parte
uma etapa da história do sistema mundi-
do globo terrestre, as ações dos luso-bra-
al; a identidade entre a história do Brasil
sileiros foram impulsionadas por uma es-
e de Portugal; as frotas e o império por-
pécie de mutação mental de inspiração
tuguês. Os aspectos apontados nessa
renascentista, que, aliada ao ‘espírito’
agenda intelectual de Magalhães Godinho
aventureiro, domou as ondas da maré e
não aparecem nessa ordem, ou mesmo
quebrou a baía tranqüila da resignação
com esses títulos. Na verdade, o
em busca do alto-mar.
ordenamento deste artigo obedecerá o
ritmo das frotas do açúcar e do ouro , com Na mente e na alma do navegante deve-
um olhar sempre atento para as suges- ria haver clareza, quando tudo oscilava
tões e polêmicas implícitas num trabalho sob ele. Na ponte de comando havia tan-
preparado em 1951. to a sobriedade do conhecimento para
A liderança em torno da idéia desse con- lugar que cada um ocupa no mundo de
senso depende é claro de investimento cultura lusófona. As cidades ultramarinas
material, assim como deve estar compro- têm em comum o passado colonial, a he-
metida com atitude ética e força intelec- rança de uma longa tradição imperial
tual, que afinal concorrem para a (1415-1974) e os fragmentos de uma
materialização dos nossos ideais. multifacetada identidade cultural. A expe-
Quinhentos anos depois da expansão cul- riência de uma unidade imperial,
tural e da exploração econômica do Novo deslanchada pela cultura renascentista e
Mundo, os povos de língua portuguesa consignada pela língua, pela fé e pelo
têm refletido, cada um a sua maneira, monopólio metropolitano, caracterizou a
sobre o processo colonizador e sobre o mensagem dos descobrimentos portugue-
ras exóticas, havia a contemplação em re- da natureza como matéria filosófica, vi-
tido dos homens seculares. A perspectiva cimento que se constitui utilitário, ou seja,
cobridores, afinal céu e mar pertenciam serido nos termos de uma nova descober-
de fato aos navegantes e a todos os que ta do Novo Mundo. Dessa maneira, a na-
eram capazes de entender os sinais pre- tureza foi a chave para um controle que,
tor um percurso da aventura lusíada des- a ressuscitar, mas poder-se-á dizer que
de os trás-montanos aos minhotos, ao desapareceu de todo o sebastianismo?
Douro, às Beiras, ao passado coimbrão, a Nascido da dor, nutrindo-se da esperan-
Lisboa ultramarina dos cruzados e dos ça, ele é na história o que é na poesia a
mouros e a Lisboa peninsular/européia, saudade, uma feição inseparável da alma
e, afinal, converge para as fundações da portuguesa”.12
nacionalidade portuguesa de d. Afonso
A difícil e complexa tarefa de, tomando
Henriques, para então chegar aos
aqui a perspectiva de Fer nand Braudel,
alentejanos e algarvios, neste caso o ori-
pegar a estrada, e com os próprios olhos
ente criado pela península ibérica, região
inventariar a diversidade, interpretar a
fundadora do cisma Ocidente/Oriente des-
partir da paisagem, procurar a divergên-
de 711.
cia, o contraste, a ruptura e a fronteira,
fronteiras entre os países que for mam a memória social contida na experiência
comunidade lusófona, e aproximar algu- multissecular dos descobrimentos? A ati-
mas investigações realizadas no contexto tude de pensar historicamente é civil e
dos centros de excelência, na direção do crítica, independente de ideologias, no
grande público. A sociedade brasileira momento em que é possível confrontar
precisa de uma alta dose de história. Há concepções, examinar registros documen-
uma concepção mais ou menos dissemi- tais díspares, buscar a contradição na
nada de que a empresa e a carreira colo- pesquisa árida e minuciosa sobre o pro-
niais empreendidas pelos lusos foram in- cesso com os seus ritmos e sentidos pró-
feriores às dos holandeses, franceses, in- prios.
gleses e até dos espanhóis dos nossos
O pai da her menêutica contemporânea,
vizinhos no Cone-Sul. Alguns parecem
Hans Georg Gadamer, em seu ensaio so-
buscar a metrópole ideal ou a coerção
bre as origens culturais e os fundamen-
mais perfeita. Pior, há um verdadeiro es-
tos antropológicos do continente euro-
quecimento do colonialismo recente em
peu, medita longamente sobre o hiato
África. O olhar sobre a história do pre-
entre a genealogia dos povos europeus e
sente imediato parece ameaçar decisiva-
o futuro que os espreita. Para tanto,
mente a crítica e surge a proposta escon-
Gadamer lembra muitas vezes do papel
dida de um homem ‘não-histórico’. Mais
da Segunda Guerra Mundial como um
uma vez retomando Torga, o escritor por-
momento de reflexão ou “balanço” da ex-
tuguês diz: “uma vida dá para quase
periência humana produzida no passado,
tudo”.
e a manipulação sobre a opinião púbica e
A intolerância com o passado faz parte das
a formação científica estéril nos dias que
especulações neoliberais e pós-modernas
correm. Afinal, e a função do pensamen-
da contemporaneidade. Alguns
to filosófico nisso tudo?16
prepotentes do fim do século correm em
busca de uma notoriedade milenarista A pergunta que muitas vezes tem sacudi-
propondo o fim do pensamento e da ação, do os meios de comunicação, de uma
sinalizando para o pensamento único que maneira geral, parte da convicção de que
não cessa de afirmar que tudo já está dito. realmente existe alguma coisa para se ‘co-
Então para que a pesquisa? Há um esfor- memorar’. Bem, se isso é verdade, faz-se
ço de retirar da história qualquer capaci- necessário estabelecer algumas propos-
dade de compreender ou explicar, num tas preliminares. O acontecimento/pro-
movimento de esmagamento de todo pro- cesso que engloba o mundo lusófono pos-
jeto coletivo. O desafio posto na mesa é sui temporalidades distintas. A reconstru-
o seguinte: não há memória individual ou ção portuguesa de 1974 se deu num mo-
coletiva. O historiador será capaz de cap- mento extremamente desfavorável. A eco-
turar no tempo histórico os registros da nomia sustentou o processo de moderni-
zação e redemocratização nas décadas lamento cultural que mais uma vez faz uma
que se seguiram à Revolução do 25 de sombra entre a Ibéria e o Oriente. 18
abril, movimento militar que foi o res- A definição do que somos em ter mos de
ponsável direto pela liquidação do uma unidade dos povos de língua portu-
salazarismo.17 guesa depende de uma afirmação do en-
culo XX, uma outra experiência históri- moração é diverso, e a capacidade de reu-
ca, marcada por uma imensa dívida so- nião está vinculada diretamente à recupe-
É importante remeter a massa esparra- eles são ou podem vir a ser. Às vezes,
mada de dados, fatos e teorias a uma in- podem se mostrar significativos do pon-
terpretação que insira o espaço ibero- to de vista da análise, mas nem sem-
o que ele nos reserva. Mas a previsão municação entre o passado e o presente
do futuro deve necessariamente base- como um dos focos para uma visão mais
O
Ele não está em busca de lucros, no
do. Tudo isso atualizado pela ilustração está pisando’ nunca foi tão valorizado
setecentista que afinal norteou as potên- pelos meios de comunicação, escolas, in-
cias, os filósofos naturais e os cientistas telectuais oficiais, governo e as universi-
na direção da criação de espaços de soci- dades. E o século XVIII esteve, de certa
abilidade intelectual, e da for mulação de maneira, a sombrear a revolução intelec-
políticas coloniais capazes de tual e científica que funcionou como a
reorientarem a dinâmica da exploração força motriz da continuidade, e do salto
capitalista estruturada no centro da eco- das gerações futuras no que se refere à
nomia mundial. 25 Afinal, sobre esse as- mudança de atitude diante das transfor-
pecto deve-se lembrar o importante e atu- mações verificadas no espaço natural,
alizado estudo do economista alemão como tentarei demonstrar nas páginas
Elmar Altvater, acerca do impacto do de- que se seguem.
senvolvimento econômico e do processo
O jogo de busca e conquista dos objetos
decisório dos países de acumulação mais
foi um palco privilegiado para o observa-
complexa sobre o meio ambiente. Altvater
dor da história da cultura científica oci-
medita densamente sobre a natureza do
dental. Os viajantes dos descobrimentos
processo de crescimento econômico das
farejaram incessantemente significações
nações mais desenvolvidas do globo, e
e vestígios do elo perdido, numa espécie
sustenta de uma for ma contundente,
de pesquisa quase arqueológica, em ter-
apoiado numa farta demonstração
mos do conhecimento produzido e retido
empírica, que o desenvolvimento é con-
a partir da experiência novomundista.
trário ao meio ambiente. 26
O esforço despendido pelos navegadores,
Mas devemos ter um certo cuidado ao jul- missionários-religiosos e aventureiros
gar que o movimento de pilhagem encontra eco na permanente conquista do
ambiental foi algo que eclodiu quase ex- espaço natural das ex-colônias, que se
clusivamente numa fase posterior ao se- pode observar contemporaneamente nas
gundo pós-guerra. Suponho que o movi- conferências sobre a biodiversidade, exa-
mento exploratório tenha sido bem ante- mes detalhados acerca das novas frontei-
rior, e foi estrutural, enraizado, pensado, ras ecológicas no norte do Brasil, assim
calculado por menorizadamente até mes- como em toda mobilização urbana, em
mo em suas conseqüências mais imedia- grande medida associada aos setores in-
tas. Sendo assim o processo de arqueo- termediários da pirâmide social, em tor-
logia, expansão e exploração, iniciado no da valorização da qualidade de vida
com os descobrimentos, reveste-se de dos grandes centros, como Rio de Janei-
uma certa familiaridade com as inflexões ro ou São Paulo.
da macropolítica contemporânea.
Há uma evidente revitalização dos ambi-
O reconhecimento do território ‘aonde se entes silvestres no interior das residênci-
as, e uma percepção aguda de que na in- tido, o projeto inicial da empresa metro-
fância é possível educar visando a preser- politana, para além da exploração dos tão
vação do meio ambiente nas grandes ci- sonhados metais preciosos, estava
dades. A aclimatação de parcelas da po- alicerçado numa certa contemplação do
pulação à vida ‘natural’ não representa um vazio do território, do reconhecimento
segredo para os estudiosos da gênese da dos meios fluviais, do entendimento do
adequação dos modernos ou dos homens relevo, das potencialidades da natureza e
seculares 27 ao mundo natural recriado nas das propriedades que dela se pode extrair.
grandes metrópoles.
Falarei agora um pouco sobre a odisséia,
Esse movimento global de integração de em torno da conquista dos elementos
grandes contingentes de homens e de naturais, pelas terras americanas ao lon-
produtos exóticos à rede de trocas de go dos tempos modernos, mais especifi-
mercadorias foi identificado por Russell- camente na abertura da modernidade.
Wood. Após extensa pesquisa documen- Este estudo pretende contribuir para uma
tal, o historiador norte-americano anali- compreensão mais apurada das origens
sou diversas variáveis simultaneamente, do desvelamento do meio ambiente ame-
conferindo uma única intenção à carreira ricano numa época de profunda reflexão
colonial, e vários sentidos ao fluxo huma- sobre as razões que impulsionam os es-
no, ao fluxo de especiarias tados nacionais na direção de uma explo-
comercializáveis por todo o Ocidente, as- ração cada vez mais vigorosa dos
sim como à difusão dos elementos per- ecossistemas planetários.30 As conseqüên-
tencentes à flora e à fauna dos ambien- cias da macropolítica dos estados também
tes rústicos transplantados para o conti- têm sido cuidadosamente estudadas por
nente europeu. 28
meio de importantes mensurações quan-
titativas. 31 Para os efeitos desta investi-
Os descobrimentos peninsulares investi-
gação, cabe-me aqui provocar algumas
ram numa acumulação de forças na dire-
discussões sobre um ponto de viragem
ção de um profundo e contínuo movimen-
em que se deu uma reorientação política
to investigativo acerca do mundo natural
e intelectual, visando uma maior explo-
das colônias ultramarinas do Novo Mun-
ração combinada com uma retórica
do. Podemos então procurar detectar as
preservacionista de tudo o que hipoteti-
principais tarefas dos investigadores da
camente representasse o mundo das cri-
natureza que saltavam das suas naus,
aturas brutas.
caravelas e caravelões. As marcas deixa-
das pelos primeiros colonizadores na de- O caminho aparentemente errático dos
marcação do território relacionam-se di- portugueses na rota da América, para al-
retamente à forma como os lusos enten- guns investigadores e muitos curiosos,
diam o que estavam vendo. 29
Nesse sen- deve ser percebido como uma aventura
até certo ponto inconclusa, ou até mes- les e aqueles propriamente peninsulares
mo equivocada e acidental, fruto de um numa possível aliança com Castela. Cór-
povo à procura da sua história perdida no doba vivia a iminente condição de reino
tempo, e esfacelada em razão de um con- esfacelado pela sobrevivência das Taifas.
junto plural de identidades que viriam a Navarra constituiu-se como região de in-
for mar os povos peninsulares – árabes, teresse dos Habsburgos espanhóis, mas
europeus herdeiros da tradição visigótica também dos absolutistas franceses, e ain-
e homens de vocação atlântica que circu- da tinha que, ao mesmo tempo, se ver li-
lavam no alto-mar e traziam costumes vre da obediência maometana. 33
exóticos de diversas proveniências.
Quero crer que a força que sobressai de
Quando Portugal confirmava por intermé- toda essa rede de trocas mercantis e po-
dio de Tordesilhas a sua chamada ‘auto- líticas pode ser caracterizada como uma
nomia’ atlântica (longo processo que tem forma de consciência ultramarina que irá
no período de 1475 até 1494 anos deci- deter minar uma vocação despótica, nos
sivos para os monarcas portugueses32 ), os dois séculos que se seguem aos
demais reinos ibéricos batiam-se em tor- primórdios da colonização portuguesa nos
no da unificação e da reconquista cristã trópicos, fundada na convicção de que o
em sua fase terminal. No centro dos con- futuro está na origem. É como se a salva-
flitos protonacionais estavam envolvidos ção dos exploradores da natureza estives-
diversas cidades-estados e estados se imobilizada na descoberta dos objetos
recentíssimos, ainda em busca de legiti- encontrados pelos primeiros viajantes.
midade interna e capacidade bélica para
O fato de sermos de uma maneira ou de
que se protegessem do inimigo potencial
outra ultramarinos pode se ver refletido
externo.
nas constantes tensões, freqüentemente
Em meio a teia hobbesiana que se tecia – capturadas pela historiografia contempo-
reinos poderosos lutando entre si como rânea, entre a preservação da tradição e
a Inglaterra e a França, outros em forma- os caminhos que sinalizam novas formas
ção como Florença e Veneza e finalmente de conhecimento baseadas no aconteci-
os reinos que integravam o grande comér- mento. Os conflitos do continente foram
cio mediterrânico e atlântico – faz-se ne- deixados provisoriamente de lado para
cessário lembrar que o Ulisses ibérico ti- que a empresa de constituir um vasto
nha uma tarefa no continente e outra no império não esbarrasse na “ignorância
além-mar. O reino de Granada buscava no ecológica”, afinal era fundamental enten-
final do século XV e princípios do XVI a der taxonomicamente o que se estava
identidade religiosa, os aragoneses divi- vendo. 34 Os europeus possuíam as ferra-
diam-se entre os interesses mentas para europeizar a África, a Amé-
mediterrânicos com os aliados de Nápo- rica e a Índia, entretanto muitos impre-
A
tegra um conhecimento que resultou do
encontro dos navegadores-viajantes com busca do fio para o entendi-
os costumes nativos e as novas especia- mento do labirinto ultramari-
rias, for mando o que o historiador portu- no exige do investigador da
guês Luís Filipe Barreto denominou de expansão um conhecimento adensado
complexo sociocultural dos descobrimen- sobre o mundo atlântico, expressão cu-
tos. Ao lado disso, a natureza funciona nhada pelo próprio Godinho a fim de de-
como estrutura do sistema colonial, signar a inserção do Novo Mundo no con-
flexibilizando-o diante das novas motiva- texto da economia mundo européia. A his-
tória da expansão é trilhada de uma ma- trole de Cádiz, Sevilha, La Coruña, Lis-
neira que, muitas vezes, nos conduz para boa, O Porto e Viana do Castelo. O tráfico
a hipótese do estabelecimento dos mar- do açúcar é feito pelas rotas do Brasil a
cos conceituais de uma historiografia dos São Tomé. Godinho propõe um verdadei-
povos de língua portuguesa. Como se ro mapa dos descobrimentos, examinan-
pode verificar imediatamente, a obra de do o atlântico e os eixos comerciais mais
Magalhães Godinho possui diversas lati- remotos do continente europeu.
tudes intelectuais, e todas convergem
para uma compreensão das fontes do
A POLÍTICA DO MONOPÓLIO COLONIAL
E OS FUNDAMENTOS DA CRISE
O
mundo contemporâneo. 3 6 A história do
presente ronda o tempo todo a tese da tempo longo do colonialismo é
expansão como um movimento global, contemplado pelo historiador
sem que o autor abandone o foco: a cir- do império ultramarino tanto
culação de homens e moedas pelo impé- num olhar dirigido para as motivações
rio marítimo. Galeões e frotas navegam mentais coletivas, quanto numa ação de
pelas rotas primárias na captura do con- Estado baseada na racionalidade da soci-
legia efetivamente os elementos que in- gam que o ouro rende mais do que o
A
sistema mundial por intermédio das co-
definição clara do objeto, a
lônias. A flutuação do papel do Estado
busca da objetividade do co-
português no cenário internacional é uma
nhecimento e a erudição no
das chaves metodológicas para a compre-
tratamento das fontes e dos clássicos do
ensão desse estudo. Portugal é descrito
pensamento contemporâneo articularam
por Godinho numa luta incessante diante
o conjunto das preocupações do histori-
das demais potências frente às alterações
ador português Vitorino Magalhães
de demanda por novos produtos exóticos,
Godinho, em sua obra vasta e complexa.
confrontos pressionados pelo
É um escritor de Portugal e do Brasil. Um
patrulhamento das rotas promovido por
pensador do sentido imperial da coloni-
ar madas de diversas bandeiras, e no ho-
zação portuguesa pelo mundo. É capaz de
rizonte os vários papéis exercidos pelo
a um só tempo contar a história de Portu-
Brasil:
gal apoiado numa pesquisa erudita, pen-
Ao mesmo tempo, o ouro do Brasil tor- sar sobre o significado da totalidade ibé-
na-se, cada vez mais, uma tentação. Em rica, e impor uma trama da rede atlântica
contrapartida, a cultura açucareira vai a partir dos domínios e da política imposta
diminuir no Brasil, porque a mão-de- pelas metrópoles. O debate que existe nos
obra é desviada para as minas e por- dias de hoje acerca da natureza do pro-
que o ouro é mais rendoso – o que, de cesso colonial, entre os pesquisadores da
resto, não passa de uma miragem, de expansão lusa, deveria atingir também os
N O T A S
1. Consultar esse processo de for mação da consciência cortesã no Ocidente em: Norbert Elias,
“Curialização e romantismo aristocrático”, em A sociedade de corte , Lisboa, Estampa, 1987,
pp. 183-233.
2. Conferir a esse respeito: Giacomo Marramao, Poder e secularização : as categorias do tempo,
São Paulo, Unesp, 1995.
3. Ver para maiores detalhes: Edmundo O’ Gor man, A invenção da América: reflexão a respeito da
estrutura histórica do Novo Mundo e do sentido do seu devir, São Paulo, Unesp, 1992.
4. Consultar a este respeito: Vitorino Magalhães Godinho, O papel de Portugal nos séculos XV e
XVI. Que significa descobrir? Os novos mundos e um mundo novo, Lisboa, GTMECDP, 1994.
5. Lucien Febvre, O Reno : história, mitos e realidades, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000,
p. 209.
6. Consultar a esse respeito: A. J. R. Russel-Wood, Um mundo em movimento: os portugueses na
África, Ásia e América (1415-1808), Lisboa, Difel, 1998.
7. Os documentos fundadores de uma idéia em torno da comunidade lusófona podem ser locali-
zados na seguinte biografia: José Alberto Braga (coord.), José Aparecido – o homem que cra-
vou uma lança na lua , Lisboa, Trinova Editorial, 1999.
8. Conferir o seguinte estudo: A. J. R. Russel-Wood, Portugal e o mar : um mundo entrelaçado,
Lisboa, Assírio & Alvim, 1997.
9. Sobre esse aspecto o ensaísta Eduardo Lourenço oferece uma persperctiva decisiva: “Portugal
é precisamente o primeiro reino da península a libertar-se da presença do Islão e a ocupar
desde os fins do século XIII até hoje a mesma tira estreita à beira do Atlântico, a outra fronteira
sem fim que mais tarde fará parte do seu espaço real e mítico de povo descobridor”. Cf. Eduar-
do Lourenço, “Portugal como destino: dramaturgia cultural portuguesa”, em Mitologia da sau-
dade, São Paulo, Companhia das Letras, 1999, p. 90.
10. Ver a esse respeito: José Saramago, Viagem a Portugal , Lisboa, Editorial Caminho, 1985.
11. Ver: K. David Jackson, Os construtores dos oceanos, Lisboa, Assírio & Alvim, 1997.
12. João Lúcio de Azevedo, A evolução do sebastianismo , Lisboa, Presença, 1984, p. 7.
13. Ernest Jünger, O passo da floresta , Lisboa, Edições Cotovia, 1995, p. 9.
14. Sobre essa discussão consultar: Kenneth Maxwell, A construção da democracia em Portugal ,
Lisboa, Presença, 1999.
15. Ver a coletânea de artigos de Jaime Reis, O atraso econômico português, 1850-1930 , Lisboa,
Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1993.
16. Ver: Hans Georg Gadamer, L’ eredità dell’ Europa , Torino, Giulio Einaudi Editore, 1991.
17. Consultar dados de Juan J. Linz e Alfred Stepan, A transição e consolidação da democracia : a
experiência do sul da Europa e da América do Sul, São Paulo, Paz e Terra, 1999. Especialmente
as páginas 115-187.
18. Para uma clarificação das tensões Ocidente/Oriente conferir: Salman Rushdie, Oriente, Ociden-
te , São Paulo, Companhia das Letras, 1995.
19. Para um aprofundamento dos marcos qualitativos desta discussão ver: Boaventura de Sousa
Santos, Pela mão de Alice : o social e o político na pós-modernidade, São Paulo, Cortez, 1997.
20. Eric J. Hobsbawn, O novo século , São Paulo, Companhia das Letras, 1999.
21. O conjunto da obra e do projeto intelectual de Norbert Elias, acerca de uma teoria da civiliza-
ção, é fundamental para as nossas reflexões nesta parte do estudo sobre V. M. Godinho.
22. Consultar sobre essa perspectiva mais global: Michel Mollat, A Europa e o mar , Lisboa, Presen-
ça, 1995.
23. Vitorino Magalhães Godinho, “Portugal, as frotas do açúcar e as frotas do ouro (1670-1770)”,
em Ensaios II : sobre a história de Portugal, Lisboa, 2 a ed., Livraria Sá da Costa Editora, 1978,
p. 427.
24. Conferir: Miguel Batista Pereira, Modernidade e secularização, Coimbra, Almedina, 1990.
25. Assinalo aqui a importância de um exame das idéias do seguinte artigo: Carlos Eduardo Martins,
“Los desafios del sistema mundial para el siglo XXI: perspectivas para la América Latina”, em
Aportes (revista de la Facultad de Economía de la benemérita Universidad Autónoma de Puebla),
Puebla, enero-abril 2000, pp. 55-69.
26. Ver essa discussão em Elmar Altvater, O preço da riqueza : pilhagem ambiental e a nova
(des)ordem mundial, São Paulo, Unesp, 1995. Especialmente as páginas 21-43. Consultar tam-
bém sobre o conceito de desenvolvimento: Elmar Altvater, “Obstaculos en la trayectoria del
desarrollo”, em Francisco López Segrera, Los retos de la globalización , Caracas, Unesco, 2
volumes, pp. 609-625. Ver também os estudos recentes do sociólogo e economista italiano
Giovanni Arrighi sobre a noção de desenvolvimento sustentável no mundo contemporâneo a
partir de uma perspectiva que admite níveis diferenciados de somas acumuladas de capital
entre os conjuntos de nações, gerando uma espécie de desigualdade macrorregional que daria
novos contornos às disparidades locais, regionais e até mesmo numa escala mundial. Cf.
Giovanni Arrighi, A ilusão do desenvolvimento , Petrópolis, Vozes, 1997.
27. Consultar a seguinte obra: Antônio Edmilson Martins Rodrigues e Francisco José Calazans Falcon,
Tempos modernos : ensaios de história cultural, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000.
28. Ver: A. J. R. Russell-Wood, Um mundo em movimento: os portugueses na África, Ásia e América
(1415-1808), op. cit.
29.Conferir sobre esse aspecto o criativo trabalho de Kenneth David Jackson, Os construtores dos
oceanos, Lisboa, Assírio & Alvim, 1997.
30. Conferir: Vitorino Magalhães Godinho, O socialismo e o futuro da península , Lisboa, Livros
Horizonte, 1969.
31. Consultar: Immanuel Wallerstein, O capitalismo histórico, São Paulo, Brasiliense, 1985.
32. Sobre esse aspecto, deve-se consultar um artigo que oferece uma visão abrangente e atualiza-
da deste intrincado problema que envolve questões de ordem diplomática e querelas oriundas
da gestão da política interna lusa: Luís Felipe de Alencastro, “A economia política dos descobri-
mentos”, em Adauto Novais (org.), A descoberta do homem e do mundo , São Paulo, Funarte,
1998, pp. 193-209.
33. Para uma perspectiva acerca das origens desses conflitos étnico-nacionais ver o tratado de
Robert Lopez, O nascimento da Europa , Lisboa, Cosmos, 1965.
34. Consultar: Alfred W. Crosby, Imperialismo ecológico : a expansão biológica da Europa, 900-
1900, São Paulo, Companhia das Letras, 1993.
35. Ver para maiores detalhes: Sydney Mintz, “A antropologia da produção de plantation ”, em
Bernardo Sorj, Fernando Henrique Cardoso e Maurício Font, Economia e movimentos sociais
na América Latina , São Paulo, Brasiliense, 1985.
36. Para uma visão ampla da obra e da vida de Magalhães Godinho consultar: Joaquim Romero
Magalhães, “De Victorini Magalhães Godinho vita, scriptis et in adversis animi fortitudine”, em
Estudos e ensaios em homenagem a Vitorino Magalhães Godinho , Lisboa, Livraria Sá da Costa
Editora, 1988, pp. 1-41. Romero Magalhães abre diversas portas e per mite que o leitor tenha a
liberdade de percorrer as possibilidades vislumbradas pela imensa obra produzida pelo histo-
riador português.
37. Conferir sobre esse aspecto: José Jobson de Andrade Arruda, “Frotas de 1749: um balanço”,
em Varia História , Belo Horizonte, UFMG/Fapemig/Fundação João Pinheiro, no 21, jul. 1999, pp.
190-209.
38.Cf. Vitorino Magalhães Godinho, “Portugal, as frotas do açúcar e as frotas do ouro (1670-1770)”,
op. cit., p. 438.
39. Idem, “Os nossos problemas: para a história de Portugal e Brasil”, em Maria Adelaide Godinho
Arala Chaves, Formas de pensamento em Portugal no século XV : esboço de análise a partir de
representações de paisagens nas fontes literárias, Lisboa, Livros Horizonte, 1969, p. 9.
A B S T R A C T
This text analyses the interpretation of the historian Vitorino Magalhães Godinho about the
relationship between the Portuguese America and the process of organization of the economy of
the European world since the fifteenth and sixteenth centuries.
The principal ideas announced in this study, according to the history of the fleet and the circulation
of the spices related by Godinho, are the following: the conception of the global space discovered
since the ‘opening of the world’; the contemporaneous crisis of the human science; the history of
Brazil and Potugal in a ‘unique writing’; and, finally, the concept of Maritime Empire.
R É S U M É
Ce text analyse l'interprétation du historien Vitorino Magalhães Godinho sur la relation entre
l’Amérique portugaise et le procès d’organisation de l’économie du monde européen, depuis les
quinzième et seizième siècles.
Les idées principaux annoncées dans cet étude, selon l’histoire des flottes et de la circulation des
épiceries racontées par Godinho sont les suivantes: la conception du space global découvert depuis
l’ ‘ouverture du monde’; la crise contemporaine de la science de l’humanité; l’histoire du Brésil et
du Portugal dans une ‘écriture unique’, et finalement, le concept d’Empire Maritime.