Sei sulla pagina 1di 48

SETE PERGUNTAS A WALTER BENJAMIN

Apresentação de Michael de la Fontaine

POR QUE OS HERDEIROS DE WALTER BENJAMIN FICARAM RICOS COM O


ESPOLIO?
Klaus Garber/Willi Bolle

É PRECISO TEOLOGIA PARA PENSAR O FIM DA HISTÓRIA?


Norbert W. Bolz/Leandro Konder
POR QUE UM MUNDO TODO NOS DETALHES DO COTIDIANO?
Klaus Garber/Jeanne-Marie Gagnebin

É A CIDADE QUE HABITA OS HOMENS OU SÃO ELES QUE MORAM NELA?


Sergio Paulo Rouanet/Nelson Brissac Peixoto

O QUE É MAIS IMPORTANTE: A ESCRITA OU O ESCRITO?


Haroldo de Campos/Bernd Witte

ONDE ENCONTRAR A DIFERENÇA ENTRE UMA OBRA DE ARTE E UMA


MERCADORIA?
Norbert W. Bolz/Michael de la Fontaine

POR QUE O MODERNO ENVELHECE TÃO RÁPIDO?


Bernd Witte/Sergio Paulo Rouanet

SOBRE A LITERATURA DE WALTER BENJAMIN


Max Bense

BIBLIOGRAFIA DAS OBRAS DE WALTER BENJAMIN NO BRASIL


Gunter Karl Pressler

BIBLIOGRAFIA COMENTADA DAS OBRAS SOBRE WALTER BENJAMIN NO


BRASIL
Gunter Karl Pressler

ANTONIO JOSÉ, DE GONÇALVES DE MAGALHÃES


Decio de Almeida Prado

ANTONIL, A CANA E O NEGRO


Antonio Dimas

UMA LÍNGUA-PASSAPORTE: O ÍDICHE


J. Guinsburg

CRENÇA E CONVENÇÃO
Luiz Meyer
RUBEM FONSECA VOLTA AO CONTO
Ariovaldo José Vidal

SOBRE OS LIMITES DO REI-FILÓSOFO


Marcelo Tsuji
http://www.usp.br/revistausp/n15/numero15.html

Marcuse, Adorno, Horkheimer, Benjamin e Habermas - Teóricos de Frankfurt

Num dia qualquer de 1940, no lado espanhol da fronteira entre a França e a


Espanha, um funcionário da alfândega, cumprindo ordens superiores, impediu a entrada de
um grupo de intelectuais alemães que fugia da Gestapo, a temível corporação nazista. Um
dos integrantes do grupo, homem de quarenta e oito anos de idade, que estampava no rosto
sinais de profunda melancolia, mas ao mesmo tempo transmitia a impressão de um intelecto
privilegiado, não resistiu à tensão psicológica e suicidou-se.

O fato poderia ser visto apenas à luz da psicologia individual, mas na verdade
transcende esses limites e adquire dimensão social e cultural mais ampla. O intelectual em
questão era Walter Benjamin, um dos principais representantes da chamada Escola de
Frankfurt.

As idéias dessa corrente de pensamento encontram-se, em grande parte, nas páginas


da Revista de Pesquisa Social, um dos documentos mais importantes para a compreensão
do espírito europeu do século XX. Seus colaboradores estiveram sempre na primeira linha
da reflexão crítica sobre os principais aspectos da economia, da sociedade e da cultura de
seu tempo; em alguns casos chegaram mesmo a participar da militância política. Por tudo
isso, foram alvo de perseguição dos meios conservadores, responsáveis pela ascensão e
apogeu dos regimes totalitários europeus da época.

Fundado em 1924, o Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt, do qual a revista


era porta-voz, foi obrigado, com a ascensão ao poder na Alemanha do nacional-socialismo,
em 1933, a transferir-se para Genebra, depois para Paris, e, finalmente, para Nova York.
Nesta cidade a revista passou a ser publicada com o título de Estudos de filosofia e Ciências
Sociais. Com a vitória dos aliados na Segunda Guerra Mundial, os principais diretores da
revista puderam regressar à Alemanha e reorganizar o Instituto em 1950.

Alfred Schmidt, que se dedicou à investigação da importância e da influência da


Revista de Pesquisa Social, afirma que nela se fundem, de maneira única, a autonomia
intelectual, a análise crítica e o protesto humanístico. Os colaboradores da revista opunham-
se aos periódicos e instituições de caráter acadêmico, desenvolvendo um pensamento
comum nesse sentido, sem que isso, contudo, anulasse interesses e orientações individuais
e, sobretudo, sem que fossem postas de lado as exigências de rigor científico. Gian Enrico
Rusconi, outro estudioso da Escola de Frankfurt, chama a atenção para o fato de que o
pensamento desse grupo não pode ser compreendido sem ser vinculado à tradição da
esquerda alemã. Para Rusconi, o significado histórico e político das reflexões encontradas
na Revista de Pesquisa Social reside em sua continuidade em relação ao marxismo e à
ciência social anticapitalista Essa posição teórica foi desenvolvida tendo como pano de
fundo as experiências terríveis e contraditórias da república de Weimar, do nazismo, do
estalinismo e da guerra fria. Ainda segundo Rusconi, a “teoria crítica” , como costuma ser
chamado o conjunto dos trabalhos da Escola de Frankfurt, é uma expressão da crise teórica
e política do século XX, refletindo sobre os seus problemas com uma radicalidade sem
paralelo. Por isso, os trabalhos de seus pensadores exerceram grande influência, direta em
alguns casos, indireta noutros, sobre os movimentos estudantis, sobretudo na Alemanha e
nos Estados Unidos, nos fins da década de 60.

A história desse grupo de pensadores pode ser iniciada com a fundação do Instituto
de Pesquisa Social de Frankfurt, sob direção de Carl Grünberg, que permaneceu no cargo
até 1927. Grünberg abria o primeiro número do Arquivo de História do Socialismo e do
Movimento Operário (publicação que fundou em 1911), salientando a necessidade de não
se estabelecer privilégio especial para esta ou aquela concepção, orientação científica ou
opinião de partido. Grünberg estava convencido de que qualquer unidade de pontos de vista
entre os colaboradores prejudicaria os fins críticos e intelectuais da própria iniciativa.
Posteriormente, já na direção da Revista de Pesquisa Social, ele próprio se consideraria um
marxista, mas entendendo essa posição não em seu sentido apenas político-partidário, mas
em seu significado científico; o conceito “marxismo” servia-lhe para descrição de um
sistema econômico, de uma determinada cosmovisão e de um método de pesquisa bem
definido. Essa postura inicial de Grünberg – vinculada a uma “escola” de pensamento, mas
ao mesmo tempo entendendo-a em sua dimensão crítica e como perspectiva aberta –
constitui, de modo geral, a tônica do pensamento dos elementos do grupo de Frankfurt.

Entre os colaboradores da Revista, contam-se figuras muito conhecidas de um


público mais amplo, como Herbert Marcuse (1898-1979), autor de Eros e Civilização e O
Homem Unidimensional (ou Ideologia da Sociedade Industrial), e Erich Fromm (1900-
1980), que se dedicou a estudos de psicologia social, nos quais procura vincular a
psicanálise criada por Freud (1856-1939) às idéias marxistas. Outros são menos
conhecidos, como Siegfried Kracauer, autor de um clássico estudo sobre o cinema alemão
(De Caligari a Hitler), ou Leo Löwenthal, que se dedicou a reflexões estéticas e de
sociologia da arte. Ao grupo da Revista pertenceram também Wittfogel, F. Pollock e
Grossmann, autores de importantes estudos de economia política.

Os homens e suas obras

Entre todos os elementos vinculados ao grupo de Frankfurt, salientam Tentam-se,


por razões d diversas, os nomes de Walter Benjamin, Theodor Wiesengrund-Adorno e Max
Horkheimer, aos quais se pode ligar o pensamento de Jürgen Habermas. Esses autores
formaram um grupo mais coeso e em suas obras encontra-se um pensamento dotado de
maior unidade teórica.

Os traços biográficos e o perfil humano de Walter Benjamin são os mais conhecidos


entre esses quatro pensadores de Frankfurt; sua morte, quando era ainda relativamente
moço (48 anos) e em circunstâncias trágicas, deixou marca indelével entre os amigos,
fazendo com que surgissem muitos depoimentos sobre sua vida e sobre sua personalidade.
Para Adorno, Walter Benjamin era a personalidade mais enigmática do grupo, seus
interesses eram freqüentemente contraditórios e sua conduta oscilava entre a intransigência
quase ríspida e a polidez oriental. Essa maneira de ser aparentava mais o temperamento
vibrante de um artista do que a tranqüilidade e a frieza racional, normalmente esperadas de
um filósofo. Seu pensamento parecia nascer de um impulso de natureza artística, que,
transformado em teoria como diz ainda Adorno “liberta-se da aparência e adquire
incomparável dignidade: a promessa de felicidade”.

Outro depoimento que enriquece de significados o perfil intelectual e humano de


Walter Benjamin é o de Gerschom Scholem, seu companheiro desde a juventude: Scholem
o conheceu na primavera de 1915, quase um ano após o começo da Primeira Guerra
Mundial, e relata que nessa época ficou impressionado com a profunda sensação de
melancolia de que o amigo parecia estar permanentemente possuído.

Walter Benjamin nasceu em Berlim, em 1892, de ascendência israelita. Seus estudos


superiores foram iniciados em 1913 e realizados em várias universidades, nas quais sempre
exerceu intensa atividade política e cultural entre os colegas. Em 1917, casou-se e passou a
viver em Berna (Suíça), em cuja universidade apresentou uma dissertação acadêmica
intitulada O Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão. Em 1921, publicou uma
tradução dos Quadros Parisienses de Baudelaire (1821-1867) e no ano seguinte o poeta e
dramaturgo Hugo Von Hofmannsthal (1874-1929) o convidou para publicar na revista que
dirigia (Novas Contribuições Alemãs) seu primeiro grande ensaio: As “Afinidades Eletivas”
de Goethe. Em 1928, Walter Benjamin viu truncadas suas esperanças de uma carreira
universitária, quando a universidade de Frankfurt recusou sua tese: As Origens da Tragédia
Barroca na Alemanha. Para assegurar a sobrevivência, passou então a dedicar-se à crítica
jornalística e a traduções, escrevendo ainda numerosos ensaios. Nessa época, fez uma das
mais perfeitas traduções em língua alemã que se conhece: À Procura do Tempo Perdido, de
Proust (1871-1922). Além disso, projetou uma grande obra de filosofia da história, cujo
título deveria ser Paris, Capital do Século XIX e que ficou incompleta. A década de 1930
trouxe-lhe outros infortúnios: seus pais faleceram, teve de divorciar-se da esposa e viu
ascender o totalitarismo nazista. Sob a ditadura de Hitler, ainda conseguiu publicar alguns
trabalhos menores, recorrendo ao disfarce de pseudônimos. Em 1935, foi obrigado a
refugiar-se em Paris, onde os dirigentes emigrados do Instituto de Pesquisas Sociais de
Frankfurt receberam-no como um dos seus colaboradores e deram-lhe condições para
escrever alguns de seus mais importantes trabalhos: A Obra de Arte na Época de suas
Técnicas de Reprodução, Alguns Temas Baudelairianos, O Narrador, Homens Alemães.
Finalmente veio a falecer na fronteira entre Espanha e França, em circunstâncias
dramáticas.

Theodor Wiesengrund-Adorno nasceu em 1903, em Frankfurt, cidade onde fez seus


primeiros estudos e em cuja universidade se graduou em filosofia. Em Viena, estudou
composição musical com AIban Berg (1885-1935), um dos maiores expoentes da revolução
musical do século XX. Em 1932, escreveu o ensaio A Situação Social da Música, tema de
inúmeros outros estudos: Sobre o Jazz (1936), Sobre o Caráter Fetichista da Música e a
Regressão da Audição (1938), Fragmentos Sobre Wagner (1939) e Sobre Música Popular
(1940-1941). Em 1933, com a tomada do poder pelos nazistas, Adorno foi obrigado a
refugiar-se na Inglaterra, onde passou a lecionar na Universidade Oxford, al i
permanecendo até 193 7. Nesse ano, transferiu-se para os Estados Unidos, onde escreveria,
em colaboração com Horkheimer, a obra Dialética do Iluminismo (1947). Foi também nos
Estados Unidos que Adorno realizou, em colaboração com outros pesquisadores, um estudo
considerado posteriormente como um modelo de sociologia empírica: A Personalidade
Autoritária. Esta obra foi publicada em 1950, ano em que Adorno pôde regressar à terra
natal e reorganizar o Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt. Entre outras obras
publicada ficadas por Adorno, antes de sua morte, ocorrida em 1969, sal Tentam-se ainda
Para a Metacrítica da Teoria do Conhecimento - Estudos Sobre Husserl e as Antinomias
Fenomenológicas (1956), Dissonâncias (1956), Ensaios de Literatura I, II e III (1958 a
1965), Dialética Negativa (1966), Teoria Estética (1968) e Três Estudos Sobre Hegel
(1969).

Max Horkheimer, o principal diretor da Revista de Pesquisa Social desde o


afastamento de Grünberg nos fins da década de 20, nasceu em Stuttgart, a 14 de fevereiro
de 1895 e faleceu em Nuremberg, a 9 de julho de 1973. Em 1930, tornou-se professor em
Frankfurt, onde permaneceu até 1934, quando teve de se refugiar, como os demais
companheiros. Nesse ano transferiu-se; para os Estados Unidos, passando a lecionar na
Universidade de Colúmbia. Nos Estados Unidos, Horkheimer permaneceu até 1949, ano em
que pôde regressar a Frankfurt e reorganizar o Instituto de Pesquisas Sociais, com Adorno.

A maior parte dos escritos de Horkheimer encontra-se nas páginas da Revista de


Pesquisa Social. Entre os mais importantes contam-se: Inícios da Filosofia Burguesa da
História (1930), Um Novo Conceito de Ideologia (1930), Materialismo e Metafísica (1930),
Materialismo e Moral (1933), Sobre a Polêmica _ do Racionalismo na Filosofia Atual
(1934), O Problema da Verdade (1935), O Último Ataque à Metafísica (193 7) e Teoria
Tradicional e Teoria Crítica (1937).

Jürgen Habermas é considerado um herdeiro direto da escola de Frankfurt. Nascido


em 1929, em Gummersbach, Habermas licenciou-se em 1954, com um trabalho sobre
Schelling (1775-1854), intitulado O Absoluto e a História. De 1956 a 1959, colaborou
estreitamente com Adorno no Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt. Em 1968,
transferiu-se para Nova York, passando a lecionar na New Yorker New School for Social
Research. Entre suas obras principais, contam-se Entre a Filosofia e a Ciência - O
Marxismo como Crítica (1960), Reflexões Sobre o Conceito de Participação Pública
(publicado em 1961, juntamente com trabalhos de outros autores, com o título geral de O
Estudante e a Política), Evolução Estrutural da Vida Pública (1962), Teoria e Práxis (1963),
Lógica das Ciências Sociais (1967), Técnica e Ciência como Ideologia (1968), e
Conhecimento e Interesse (1968).

Benjamim: cinema e revolução

Os múltiplos interesses dos pensadores de Frankfurt e o fato de não constituírem


uma escola no sentido tradicional do termo, mas uma postura de análise crítica e uma
perspectiva aberta para todos os problemas da cultura do século XX, torna difícil a
sistematização de seu pensamento. Pode-se, no entanto, salientar alguns de seus temas,
chegando-se a compor um quadro de suas principais idéias. De Walter Benjamin, devem-se
destacar reflexões sobre as técnicas ficas de reprodução da obra de arte, particularmente do
cinema, e as conseqüências sociais e políticas resultantes; de Adorno, o conceito de
“indústria cultural” e a função da obra de arte; de Horkheimer, os fundamentos
epistemológicos da posição filosófica de todo o grupo de Frankfurt, tal como se encontram
formulados em sua “teoria crítica”; e, finalmente, de Habermas, as idéias sobre a ciência e a
técnica como ideologia.

Benjamin tinha seu ensaio A Obra de Arte na Época de suas Técnicas de


Reprodução na conta de primeira grande teoria materialista da arte. O ponto central desse
estudo encontra-se na análise das causas e conseqüências da destruição da “aura” que
envolve as obras de arte, enquanto objetos individualizados e únicos. Com o progresso das
técnicas de reprodução, sobretudo do cinema, a aura, dissolvendo-se nas várias reproduções
do original, destituiria a obra de arte de seu status de raridade. Para Benjamin, a partir do
momento em que a obra fica excluída da atmosfera aristocrática e religiosa, que fazem dela
uma coisa para poucos e um objeto de culto, a dissolução da aura atinge dimensões sociais.
Essas dimensões seriam resultantes da estreita relação existente entre as transformações
técnicas da sociedade e as modificações da percepção estética. A perda da aura e as
conseqüências sociais resultantes desse fato são particularmente sensíveis no cinema, no
qual a reprodução de uma obra de arte carrega consigo a possibilidade de uma radical
mudança qualitativa na relação das massas com a arte. Embora o cinema diz Walter
Benjamin exija o uso de toda a personalidade idade viva do homem, este priva-se de sua
aura. Se, no teatro, a aura de um Macbeth, por exemplo, liga-se indissoluvelmente à aura do
ator que o representa, tal como essa aura é sentida pelo público, fico, o mesmo não
acontece no cinema, no qual a aura dos intérpretes desaparece com a substituição do
público pelo aparelho. Na medida em que o ator se torna acessória da cena, não é raro que
os próprios acessórios desempenhem o papel de atores.

Benjamin considera ainda que a natureza vista pelos olhos difere da natureza vista
pela câmara, e esta, ao substituir o espaço onde o homem age conscientemente por outro
onde sua ação é inconsciente, possibilita a experiência do inconsciente visual, do mesmo
modo que a prática psicanalítica possibilita a experiência do inconsciente instintivo.
Exibindo, assim, a reciprocidade de ação entre a matéria e o homem, o cinema seria de
grande valia para um pensamento materialista. Adaptado adequadamente ao proletariado
que se prepararia para tomar o poder, o cinema tornar-se-ia, em conseqüência, portador de
uma extraordinária esperança histórica.

Em suma, a análise de Benjamin mostra que as técnicas de reprodução das obras de


arte, provocando a queda da aura, promovem a liquidação do elemento tradicional da
herança cultural; mas, por outro lado, esse processo contém um germe positivo, na medida
em que possibilita I outro relacionamento das massas com a arte, dotando-as de um
instrumento eficaz de renovação das estruturas sociais. Trata-se de uma postura otimista,
que foi objeto de reflexão crítica por parte de Adorno. Adorno: a indústria cultural

Para Adorno, a postura otimista de Benjamin no que diz respeito à função


possivelmente revolucionária do cinema desconsidera certos elementos fundamentais, que
desviam sua argumentação para conclusões ingênuas. Embora devendo a maior parte de
suas reflexões a Benjamin, Adorno procura mostrar a falta de sustentação de suas teses, na
medida em que elas não trazem à luz o antagonismo que reside no próprio interior do
conceito de “técnica”. Segundo Adorno, passou despercebido a Benjamin que a técnica se
define em dois níveis: primeiro “enquanto qualquer coisa determinada intra-esteticamente”
e, segundo, “enquanto desenvolvimento exterior às obras de arte”. O conceito de técnica
não deve ser pensado de maneira absoluta: ele possui uma origem histórica e pode
desaparecer. Ao visarem à produção em série e à homogeneização, as técnicas de
reprodução sacrificam a distinção entre o caráter da própria obra de arte e do sistema social.
Por conseguinte, se a técnica passa a exercer imenso poder sobre a sociedade, tal ocorre,
segundo Adorno, graças, em grande parte, ao fato de que as circunstâncias que favorecem
tal poder são arquitetadas pelo poder dos economicamente mais fortes sobre a própria
sociedade. Em decorrência, a racionalidade da técnica identifica-se com a racionalidade do
próprio domínio. Essas considerações evidenciariam que, não só o cinema, como também o
rádio, não devem ser tomados como arte. “O fato de não serem mais que negócios – escreve
Adorno – basta-lhes como ideologia”.Enquanto negócios, seus fins comerciais são
realizados por meio de sistemática e programada exploração de bens considerados culturais.
Tal exploração Adorno chama de “indústria cultural”.

O termo foi empregado pela primeira vez em 1947, quando da publicação da


Dialética do Iluminismo, de Horkheimer e Adorno. Este último, numa série de conferências
radiofônicas, pronunciadas em 1962, explicou que a expressão “indústria cultural” visa a
substituir “cultura de massa”, pois esta induz ao engodo que satisfaz os interesses dos
detentores dos veículos de comunicação de massa. Os defensores da expressão “cultura de
massa” querem dar a entender que se trata de algo como uma cultura surgindo
espontaneamente das próprias massas. Para Adorno, que diverge frontalmente dessa
interpretação, a indústria cultural, ao aspirar à integração vertical de seus consumidores,
não apenas adapta seus produtos ao consumo das massas, mas, em larga medida, determina
o próprio consumo. Interessada nos homens apenas enquanto consumidores ou empregados,
a indústria cultural reduz a humanidade, em seu conjunto, assim como cada um de seus
elementos, às condições que representam seus interesses. A indústria cultural traz em seu
bojo todos os elementos característicos do mundo industrial moderno e nele exerce um
papel específico, qual seja, o de portadora da ideologia dominante, a qual outorga sentido a
todo o sistema. AI fada à ideologia capital capitalista, e sua cúmplice ice, a indústria
cultural contribui eficazmente para falsificar as relações entre os homens, bem como dos
homens com a natureza, de tal forma que o resultado final constitui uma espécie de
antiiluminismo. Considerando-se diz Adorno que o iluminismo tem como finalidade
libertar os homens do medo, tornando-os senhores e liberando o mundo da magia e do mito,
e admitindo-se que essa finalidade pode ser atingida por meio da ciência e da tecnologia,
tudo levaria a crer que o iluminismo instauraria o poder do homem sobre a ciência e sobre a
técnica. Mas ao invés disso, liberto do medo mágico, o homem tornou-se vítima de novo
engodo: o progresso da dominação técnica. Esse progresso transformou-se em poderoso
instrumento utilizado pela indústria cultural para conter o desenvolvimento da consciência
das massas. A indústria cultural nas palavras do próprio Adorno “impede a formação
de indivíduos autônomos, independentes, capazes de julgar e de decidir conscientemente”.
O próprio ócio do homem é utilizado pela indústria cultural com o fito de mecanizá-lo, de
tal modo que, sob o capital capitalismo, em suas formas mais avançadas, a diversão e o
lazer tornam-se um prolongamento do trabalho. Para Adorno, a diversão é buscada pelos
que desejam esquivar-se ao processo de trabalho mecanizado para colocar-se, novamente,
em condições de se submeterem a ele. A mecanização conquistou tamanho poder sobre o
homem, durante o tempo livre, e sobre sua felicidade, determinando tão completamente a
fabricação dos produtos para a distração, que o homem não tem acesso senão a cópias e
reproduções do próprio trabalho. O suposto conteúdo não é mais que uma pálida fachada: o
que realmente lhe é dado é a sucessão automática de operações reguladas. Em suma, diz
Adorno, “só se pode escapar ao processo de trabalho na fábrica e na oficina, adequando-se
a ele no ócio”.

Tolhendo a consciência das massas e instaurando o poder da mecanização sobre o


homem, a indústria cultural cria condições cada vez mais favoráveis para a implantação do
seu comércio fraudulento, no qual os consumidores são continuamente enganados em
relação ao que lhes é prometido mas não cumprido. Exemplo disso encontra-se nas
situações eróticas apresentadas pelo cinema. Nelas, o desejo suscitado ou sugerido pelas
imagens, ao invés de encontrar uma satisfação correspondente à promessa nelas envolvida,
acaba sendo satisfeito com o simples elogio da rotina. Não conseguindo, como pretendia,
escapar a esta última, o desejo divorcia-se de sua realização que, sufocada e transformada
em negação, converte o próprio desejo em privação: A indústria cultural não sublima o
instinto sexual, como nas verdadeiras obras de arte, mas o reprime e sufoca. Ao expor
sempre como novo 0 objeto de desejo (o seio sob o suéter ou o dorso nu do herói
desportivo), a indústria cultural não faz mais que excitar o prazer preliminar não sublimado
que, pelo hábito da privação, converte-se em conduta masoquista. Assim, prometer e não
cumprir, ou seja, oferecer e privar, são um único e mesmo ato da indústria cultural. A
situação erótica, conclui Adorno, une “à alusão e à excitação, a advertência precisa de que
não se deve, jamais, chegar a esse ponto”. Tal advertência evidencia como a indústria
cultural administra o mundo social.

Criando “necessidades” ao consumidor (que deve contentar-se com o que lhe é


oferecido), a indústria cultural organiza-se para que ele compreenda sua condição de mero
consumidor, ou seja, ele é apenas e tão-somente um objeto daquela indústria. Desse modo,
instaura-se a dominação natural e ideológica. Tal dominação, como diz Max Jiménez i
Jiménez, comentador de Adorno, tem sua mola motora no desejo de posse constantemente
renovado pelo progresso técnico e científico, e sabiamente controlado pela indústria
cultural. Nesse sentido, o universo social, além de configurar-se como um universo de
“coisas”, constituiria um espaço hermeticamente fechado. Nele, todas as tentativas de
liberação estão condenadas ao fracasso.

Contudo, Adorno não desemboca numa visão inteiramente pessimista, e procura


mostrar que é possível encontrar-se uma via de salvação. Esse tema aparece desenvolvido
em sua última obra, intitulada Teoria Estética.

Dialética do Esclarecimento THEODOR WIESENGRUND ADORNO MAX


HORKHEIMER
A obra de arte e a práxis

Em Teoria Estética nas palavras do comentador Kothe “Adorno oscila entre negar a
possibilidade de produzir arte depois de Auschwitz e buscar nela refúgio ante um mundo
que o chocava, mas que ele não podia deixar de olhar e denominar”. Essa postura foi
extremamente criticada pelos movimentos de contestação radical, que o acusavam de
buscar refúgio na pura teoria ou na criação artística, esquivando-se assim da práxis política.
A seus detratores, Adorno responde que, embora plausível para muitos, o argumento de que
contra a totalidade bárbara não surtem efeito senão os meios bárbaros, na verdade não
releva que, apesar disso, atinge-se um valor limite. A violência que há cinqüenta anos podia
parecer legítima àqueles que nutrissem a esperança abstrata e a ilusão de uma
transformação total está, após a experiência do nazismo e do horror stalinista,
inextricavelmente imbricada naquilo que deveria ser modificado: “ou a humanidade
renuncia à violência da lei de talião, ou a pretendida práxis política radical renova o terror
do passado”.

Criticando a práxis brutal da sobrevivência, a obra de arte, para Adorno, apresenta-


se, socialmente, como antítese da sociedade, cujas antinomias e antagonismos nela
reaparecem como problemas internos de sua forma. Por outro lado, entre autor, obra e
público, a obra adquire prioridade epistemológica, afirmando-se como ente autônomo. Esse
duplo caráter vincula-se à própria natureza desdobrada da arte, que se constitui como
aparência. Ela é aparência por sua diferença em relação à realidade, pelo caráter aparente da
realidade que pretende retratar, pelo caráter aparente do espírito do qual ela é uma
manifestação; a arte é até mesmo aparência de si própria na medida em que pretende ser o
que não pode ser: algo perfeito num mundo imperfeito, por se apresentar como um ente
definitivo, quando na verdade é algo feito e tornado como é.

Horkeimer: ciência e totalitarismo

A expressão “teoria crítica” é empregada para designar o conjunto das concepções


da Escola de Frankfurt. Horkheimer delineia seus traços principais, tomando como ponto de
partida o marxismo e opondo-se àquilo que ele designa pela expressão “teoria tradicional”.
Para Horkheimer, o típico da teoria marxista é, por um lado, não pretender qualquer visão
concludente da totalidade e, por outro, preocupar-se com o desenvolvimento concreto do
pensamento. Desse modo, as categorias marxistas não são entendidas como conceitos
definitivos, mas como indicações para investigações ulteriores, cujos resultados retroajam
sobre elas próprias. Quando se vale, nos mais diversos contextos, da expressão
“materialismo” Horkheimer não repete ou transcreve simplesmente o material codificado
nas obras de Marx e Engels, mas reflete esse materialismo segundo a óptica dos momentos
subjetivos e objetivos que devem entrar na interpretação desses autores.

Por teoria tradicional Horkheimer entende uma certa concepção de ciência


resultante do longo processo de desenvolvimento que remonta ao Discurso do Método de
Descartes (1596-1650). Descartes – diz Horkheimer – fundamentou o ideal de ciência como
sistema dedutivo, no qual todas as proposições referentes a determinado campo deveriam
ser ligadas de tal modo que a maior parte delas pudesse ser derivada de algumas poucas.
Estas formariam os princípios gerais que tornariam mais completa a teoria, quanto menor
fosse seu número. A exigência fundamental dos sistemas teóricos construídos dessa maneira
seria a de que todos os elementos assim ligados o fossem de modo direto e não
contraditório, transformando-se em puro sistema matemático de signos. Por outro lado, a
teoria tradicional encontrou amplas justificativas para um tal tipo de ciência no fato de que
os sistemas assim construído construídos são extremamente aptos à utilização operativa,
isto é, sua aplicabilidade prática é muito vasta.

Horkheimer admite a legitimidade e a validez de tal concepção, reconhecendo o


quanto ela contribuiu para o controle técnico da natureza, transformando-se, como diz
Marx, em “força produtiva imediata”. Mas o reverso da moeda é negativo. Para
Horkheimer, o trabalho do especialista, dentro dos moldes da teoria tradicional, realiza-se
desvinculado dos demais, permanecendo alheio à conexão global dos setores da produção.
Nasce assim a aparência ideológica de uma autonomia dos processos de trabalho, cuja
direção deve ser deduzida da natureza interna de seu objeto. O pensamento cientificista
contenta-se com a organização da experiência, a qual se dá sobre a base de determinadas
atuações sociais, mas o que estas significam para o todo social não entra nas categorias da
“teoria tradicional”. Em outros termos, a teoria tradicional não se ocupa da gênese social
dos problemas, das situações reais nas quais a ciência é usada e dos escopos para os quais é
usada. Chega-se, assim, ao paradoxo de que a ciência tradicional, exatamente porque
pretende o maior rigor para que seus resultados alcancem a maior aplicabilidade
prática, acaba por se tornar mais abstrata, muito mais estranha à realidade (enquanto
conexão mediatizada da práxis global de uma época) do que a teoria crítica. Esta, dando
relevância social à ciência, não conclui que o conhecimento deva ser pragmático; ao
contrário, favorece a reflexão autônoma, segundo a qual a verificação prática de uma idéia
e sua verdade não são coisas idênticas.

A teoria crítica ultrapassa, assim, o subjetivismo e o realismo da concepção


positivista, expressão mais acabada da teoria tradicional. O subjetivismo, segundo
Horkheimer, apresenta-se nitidamente quando os positivistas conferem preponderância
explícita ao método, desprezando os dados em favor de uma estrutura anterior que os
enquadraria. Por outro lado, mesmo quando os positivistas atribuem maior peso aos dados,
esses acabam sendo selecionados pela metodologia utilizada I utilizada. E esta atribui maior
relevo a determinados i nados aspectos dos dados, em detrimento mento de outros.

A teoria crítica, ao contrário, pretende ultrapassar tal subjetivismo, visando a


descobrir o conteúdo cognoscitivo da práxis histórica. Os fatos sensíveis, por exemplo,
vistos pelos positivistas como possuidores de um valor irredutível, são, para Horkheimer,
“pré-formados socialmente de dois modos: pelo caráter histórico de objeto percebido e pelo
caráter histórico do órgão que percebe”.

Outros elementos de crítica ao positivismo, sobretudo os aspectos políticos nele


envolvidos, encontram-se em uma conferência de Horkheimer, em 1951, com o título Sobre
o Conceito de Razão. Nessa conferência, ele afirma que o positivismo caracteriza-se por
conceber um tipo de razão subjetiva, formal e instrumental, cujo único critério de verdade é
seu valor operativo, ou seja, seu papel na dominação do homem e da natureza. Desse ponto
de vista, os conceitos não mais expressam, como tais, qualidades das coisas, mas servem
apenas para a organização de um material do saber para aqueles que podem dispor
habitualmente dele; assim, os conceitos são considerados como meras abreviaturas de
muitas coisas singulares, como ficções destinadas a melhor sujeitá-las; já não são
subjugados mediante um duro trabalho concreto, teórico e político, político, mas
exemplificados ficados abstrata e sumariamente, através daquilo que se poderia chamar um
decreto filosófico. Dentro dessas coordenadas, a razão desembaraça-se da reflexão sobre os
fins e torna-se incapaz de dizer que um sistema político ou econômico é irracional. Por
cruel e despótico que ele possa ser, contanto que funcione, a razão positivista o aceita e não
deixa ao homem outra escolha a não ser a resignação. A teoria justa, ao contrário escreve
Horkheimer, “nasce da consideração dos homens de tempos em tempos, vivendo sob
condições determinadas e que conservam sua própria vida com a ajuda dos instrumentos de
trabalho”. Ao considerar que a existência social age como determinante da consciência, a
teoria crítica não está anunciando sua visão do mundo, mas diagnosticando uma situação
que deveria ser superada.

Em suma, a teoria crítica de Horkheimer pretende que os homens protestem contra a


aceitação resignada da ordem total totalitária. A “razão polêmica” de Horkheimer, ao se
opor à razão instrumental e subjetiva dos positivistas, não evidencia somente uma
divergência de ordem teórica. Ao tentar superar a razão formal positivista, Horkheimer não
visa suprimir a discórdia entre razão subjetiva e objetiva através de um processo puramente
teórico. Essa dissociação somente desaparecerá quando as relações entre os seres humanos,
e destes com a natureza, vierem á configurar-se de maneira diversa da que se instaura na
dominação. A união das duas razões exige o trabalho da totalidade social, ou seja, a práxis
histórica.

Habermas: tecnicismo e ideologia

Jürgen Habermas desenvolve sua teoria no mesmo sentido de Horkheimer. Para ele,
a teoria deve ser crítica, engajada nas lutas políticas do presente, e construir-se em nome do
futuro revolucionário para o qual trabalha; é exame teórico e crítico da ideologia, mas
também crítica revolucionária do presente.

O projeto filosófico de Habermas pode ser sintetizado em termos de uma crítica do


positivismo e, sobretudo, da ideologia dele resultante, ou seja, o tecnicismo. Para
Habermas, o tecnicismo é a ideologia que consiste na tentativa de fazer funcionar na
prática, e a qualquer custo, o saber científico e a técnica que dele possa resultar. Nesse
sentido, pode-se falar de um imbricamento entre ciência e técnica, pois esta, embora
dependa da primeira, retroage sobre ela, determinando seus rumos. Essa vinculação, mostra
Habermas, é particularmente sensível nos Estados Unidos (na URSS, por suposição
ocorreria algo análogo), onde a Secretaria de Defesa e a NASA são os mais importantes
comanditários em matéria de pesquisa científica. Na medida em que se considera o
complexo militar industrial, particularmente observável nos Estados Unidos, e na medida
em que se releva aquela comandita, tem-se como conseqüência um novo complexo que
poderia ser referido como complexo ciência-técnica-indústria-exércitoadministração. Nesse
complexo, o processo de mútua vinculação entre ciência e técnica amplia-se tornando-se
um processo generalizado de realimentação recíproca que Habermas compara a um sistema
de vasos comunicantes. Desse modo, ciência e técnica tornam-se a primeira fora produtiva,
subordinando todas as demais: Para Habermas, “são os cientistas e os técnicos que, graças a
seu saber daquilo que ocorre num mundo não vivido de abstrações e de deduções,
adquiriram imensa e crescente potência (...), dirigindo e modificando 0 mundo no qual os
homens possuem, simultaneamente, o privilégio e a obrigação de viverem”. Assim, esse
contexto, não apenas técnico-científico, mas também econômico-político , passa a ser a
conotação da técnica. Nesse sentido, o autor ataca a ilusão objetivista das ciências. Contra a
ilusão da teoria pura, Habermas procura trazer à tona as raízes antropológicas da prática
teórico-científica e evidenciar os interesses, que estão no princípio do conhecimento,
particularmente do conhecimento científico.

No plano da filosofia social, Habermas critica o objetivismo ontológico e


contemplativo da filosofia teórica tradicional. Para ele, em nenhum caso a filosofia poderia
ser propriamente uma ciência exata, e as pretensões que ela pode (e poderá) manifestar
nesse sentido não fazem senão testemunhar sua contaminação pelo objetivismo positivista
das ciências; nesse contexto ela não é mais que uma especial idade entre outras, no seio da
instituição universitária, colocando-se “junto às ciências” e afastada das preocupações de
um público leigo, devido a seus refinamentos teóricos.

A crítica do positivismo científico e filosófico, empreendida por Habermas, é


inseparável de sua luta contra o objetivismo tecnocrático. O positivismo e o tecnicismo não
passam, para ele, de duas faces da mesma e ilusória moeda ideológica: tanto um, como
outro, não seriam mais que “manchas turvas no horizonte da racionalidade”.

Herbert Marcuse

Herbert Marcuse nasceu em Berlim em agosto de 1898, sendo de origem judaica,


De sua juventude sabemos que participou em 1918 do movimento revolucionário
spartakista; em 1925, já reconciliado na vida acadêmica (formou-se em filosofia por Berlim
e Friburgo), publicou seu primeiro trabalho, um levantamento bibliográfico sobre Schiller.
Estudos com Martin Heidegger levaram-no ao doutorado em filosofia em 1927, com uma
tese sobre Hegel, a grande influência filosófica em seu pensamento. Esta tese, ampliada,
transformar-se-ia em 1932 num erudito livro sobre Hegel e a história: A ontologia de Hegel
e o fundamento de uma teoria da historicidade, o que lhe valeu ser feito assistente de
Heidegger. Com a ascensão do nazismo, foge Marcuse em 1933 para Genebra, e em 1934
se instala nos Estados Unidos, ao lado dos sociólogos, também neo-hegelianos, Max
Horkheimer e Theodor Wiesengrund Adorno. Começa então um longo período de pesquisas
com estes dois, e com a equipe que constituía o centro da intelligentzia alemã exilada nos
Estados Unidos por causa de Hitler: o “Institut Für SozialForschung”, o “Instituto de
Pesquisas Sociais”. Desta época deixou-nos Marcuse enorme quantidade de ensaios que
apresentam os germens das teses a serem desenvolvidas nos livros de sua maturidade: a
preocupação com o desenvolvimento incontrolado da tecnologia, o racionalismo dominante
nas sociedades modernas, os movimentos repressivos das liberdades individuais, o
aniquilamento da Razão – e por Razão entende Marcuse o sentido hegeliano deste conceito,
a possibilidade do homem desenvolver inteira e livremente suas potencialidades. Quais são
essas potencialidades? É esta pergunta objeto também das pesquisas dos pensadores no
"Instituto de Pesquisas Sociais". Também desta época são as concepções com as quais estes
pensadores (mais tarde Adorno e Horkheimer serão conhecidos como líderes do “grupo de
Frankfurt”, por ser esta cidade aquela onde, cessada a guerra, eles voltam a ensinar na
Europa) abalam uma das teses fundamentais do marxismo: a revolução como
responsabilidade histórica do proletariado. Para os membros do grupo de Frankfurt, o
proletariado se perdeu ao permitir o surgimento de sistemas totalitário como o nazismo e o
stalinismo por um lado, e a "indústria cultural" dos países capitalistas pelo outro lado. A
"indústria cultural", termo criado por Adorno e Horkheimer em seu livro de 1947, a
Dialética do Iluminismo, e o fenômeno que melhor conhecemos como "cultura de massa".
Quem substitui os proletários? Aqueles cuja ascensão a sociedade moderna de modo algum
permite, os miseráveis que o bem-estar geral não conseguiu incorporar, as minorias raciais,
os outsiders.

Durante a segunda grande guerra ocupa Marcuse uma posição no Departamento de


Estado americano (mais precisamente, foi de 1942 a 1950 chefe de seção nesta secretaria de
governo dos Estados Unidos). Quando em 1950 Theodor Adorno e Max Horkheimer
voltam para a Alemanha, Marcuse prefere não acompanhá-los, ficando como professor de
Ciência Política na Universidade Brandeis. Serão publicados na década de 50 dois de seus
mais importantes livros, o Eros e Civilização e o Marxismo Soviético. No primeiro tenta
Marcuse mostrar que o homem pode ser feliz; no segundo, o pensador desmascara o
sistema soviético, mostrando de que manei ra está o totalitarismo russo afastado das
concepções humanísticas de Marx. Estas obras trazem uma certa fama para Marcuse, fama
que se incentiva quando da publicação, em 1964, de Homem Unidimensional (o título
português deste livro é Ideologia da Sociedade Industrial,) Em Homem Unidimensional
Marcuse ataca violentamente todas as características repressivas e irracionais do estado
pós-industrial moderno, o “Welfare State”, o Estado do Bem-Estar Social considerado por
ele como o “Warfare State” – o Estado Beligerante. Em 1967 volta Marcuse á Europa, para
um curso na Universidade Livre de Berlim. Nesta conhece Rudi Dutschke, líder estudantil
alemão que muito se chega ao velho professor. Dutschke, formado em sociologia,
fundamentará suas lutas sobre as idéias de Marcuse. O caos provocado na Alemanha pelo
movimento de Dutschke é tão grande que em inícios de 1968 este sofre um atentado a bala,
deixando-o moribundo por várias semanas (o atentado foi precedido por uma violenta
campanha da imprensa dirigida pelo truste alemão dos jornais, as emprêsas Springer, que
acusavam Dutschke de "baderneiro" e "irresponsável") . Devido a esta ligação de Dutschke
com Marcuse, o nome do professor ganha rapidamente projeção internacional, projeção
acentuada pela revolta francesa do mês de maio. Em junho de 1968 Marcuse volta à
Alemanha para um debate com os estudantes que estavam amotinando Berlim. Não e um
encontro fácil, e o velho filósofo sai do anfiteatro da Universidade Livre de Berlim debaixo
de aplausos e vaias violentos. Nos Estados Unidos, Marcuse passa agora a lecionar na
Universidade da Califórnia, sempre na cadeira de Filosofia e Ciência Política.

Tornando-se uma figura carismática malgré lui, desenrolam-se em torno de seu


nome os mais estranhos incidentes. A Ku Klux-Klan ameaça-o de morte, chamando-o
"asqueroso cão comunista". Mas a imagem que mais freqüentemente dele aparece na
imprensa é a de um velho tranqüilo de roupa informal conversando amigavelmente com
seus alunos. Os testemunhos que temos não desmentem essa imagem, nem sua filosofia.
As Idéias de Marcuse
Herbert Marcuse é um legítimo pensador alemão. O centro de sua filosofia é Hegel.
Georg Wilhelm Friedrich Hegel nasceu em Stuttgart em 1770. Aos vinte anos, estudante em
Tübingen, pôde Hegel entusiasmar-se, como toda a intelectualidade alemã se estava então
entusiasmando, com a Revolução Francesa. A vida de Hegel é bastante tumultuada, mas
apesar disso, veio o filósofo morrer em 1831 em posição de reconhecimento oficial (de
1829 a 1830 tinha sido Hegel reitor da Universidade de Berlim), Grandes dificuldades
bloqueiam nosso acesso ao pensamento hegeliano. Diz-se que o filósofo escrevia seus
livros duas vezes: da primeira todas as coisas eram ditas, esclarecendo o assunto. Da
segunda vez o supérfluo era cortado do texto, ficando este denso, e pouco acessível.
Verdade ou não, o fato é que de Hegel descendem correntes filosóficas as mais conflitantes.
Marcuse toma em Hegel duas noções capitais, a idéia de “Razão” e a idéia de
“Negatividade”. A Razão, como dissemos, é a faculdade humana que se manifesta no uso
completo feito pelo homem de suas possibilidades. Não se pode compreender a
“possibilidade” longe do conceito de “necessidade”. O que necessitamos? A necessidade
nos dirige a certos objetos cuja falta sentimos. A possibilidade mede o raio de nosso alcance
face a tais objetos. Se quero um apartamento mas não tenho dinheiro para comprá-lo, o
objeto de minha necessidade é o apartamento, e a medida de minha possibilidade é o
dinheiro que me falta. É muito fácil compreender como a falta de dinheiro representa um
bloqueio falso, fictício, á satisfação de meu desejo. Na realidade posso ter o apartamento,
mas certas convenções sociais, que respeito de modo mais ou menos acrítico, me impedem
de possuí-lo. Ao mesmo tempo, se me interrogo a respeito da minha necessidade face ao
apartamento, essa também se dissolve. O apartamento é um símbolo de status social, ou
resultado de certas convenções visando ao gosto que seriam, em outras condições, muito
discutíveis, e que nem sempre me possibilitam morar satisfatoriamente. A minha
necessidade se revela, portanto, como uma falsa necessidade, assim como o bloqueio pela
falta de dinheiro das minhas possibilidades era um bloqueio falso. Onde se encontram,
então, minhas necessidades e minhas possibilidades? Como compreenderemos o que e
Razão? Marcuse muito se preocupa com este problema ao longo de toda a sua obra, sempre
polêmica.

Como pensador, Marcuse é, acima de tudo, hegeliano, ou seja, radicalmente


dialético e crítico: a crítica ao modo de vida atual significa a manifestação de um dos lados
daquela negatividade que Marcuse identificará como sendo o núcleo da dialética em Hegel
(para Marcuse, a dialética sob forma triádica: tese, antitese e síntese é uma máscara sobre o
que este conceito representava mesmo para Hegel). Como vê Marcuse a vida nas
sociedades industriais modernas? Um fantasma atravessa estas sociedades: o nacionalismo.
Para Marcuse, como antes dele para Adorno e Horkheimer, para Georg Lukács e mesmo
para Marx, particularmente num de seus textos menos lidos e ainda menos compreendidos,
particularmente nos últimos tempos: os “Fundamentos da Crítica à Economia Política”, o
nacionalismo, a tendência das sociedades modernas à administração total, à tecnocracia
burra, à planificação de todos os setores da vida tem sua origem no mercantilismo burguês.
Para haver comércio e preciso haver dinheiro, e preciso que todas as coisas sejam reduzidas
a uma medida comum, o dinheiro, a moeda. Essa quantificação manifestando-se nas
relações interpessoais do homem atingirá, pouco a pouco, todas as regiões da vida humana.
A apologia que hoje em dia se faz do “rigor” das ciências, da "precisão" de resultados que
as modernas técnicas nos oferecem é compreendida por todos os pensadores acima citados
como resultando em última análise da extensão do comércio a todos os setores da vida
humana. A crítica ao nacionalismo, Marcuse a encontra em Marx, portanto.

E o Marcuse freudiano? Em Freud Marcuse encontra a possibilidade do homem ser


feliz. Eros e Civilização tenta provar essa tese. O que faz o homem infeliz é que o mundo
bloqueia a realização de seus desejos. Esta oposição do mundo a nós foi chamada por Freud
“princípio da realidade”. Será este princípio superável? Como superá-lo? Para Marcuse, o
princípio da realidade resulta de condições históricas específicas, isto é, a infelicidade é um
fenômeno in- separável de determinadas situações sociais. Assim sendo, quando atingirmos
a situação social correta, o homem poderia ser feliz. Quando será? No “Império da Razão”.
Em Eros e Civilização Marcuse nos mostrará que o homem guarda lembranças profundas
de uma possibilidade da felicidade, lembrança presente nos mitos de Orfeu e Narciso.

Mas Eros e Civilização ainda se encontra numa região mais ou menos metafísica do
pensamento. A descida para o concreto se faz na Ideologia da Sociedade Industrial. Neste
livro Marcuse repete a crítica ao racionalismo (irracional, pois não fundado na verdadeira
Razão) da sociedade moderna, e tenta ao mesmo tempo esboçar o caminho que poderá nos
afastar dele. O caminho será, por um aspecto, a contestação da sociedade pelos marginais
que a sociedade desprezou ou não conseguiu beneficiar. Será por outro aspecto o
desenvolvimento extremo da tecnologia, que deverá ter, segundo Marx e Marcuse, efeitos
revolucionários. Quais são estes efeitos? O problema da sociedade moderna é a invasão da
mentalidade mercantilista e quantificadora a todos os domínios do pensamento. Essa
mentalidade se representa economicamente pelo valor de troca, ligado de modo íntimo aos
processos de alienação do homem. E, segundo Marx na sua obra referida, os Fundamentos,
com o desenvolvimento extremo da tecnologia “a forma de produção assente no valor de
troca sucumbirá”. A sociedade moderna, sentindo, que sua base a tecnologia - contém seu
rompimento, age repressivamente para evitar este avanço extremo. Será este reprimido?
Marcuse espera que não, e também esperamos nós.

Escola de Frankfurt: Luzes e Sombras do Iluminismo OLGARIA C.F. MATOS

Bibliografia:

Marcuse, Vida e Obra – Francisco Antônio Doria – José Álvaro Editor S.A. /
Paz e Terra – Rio de Janeiro, Guanabara, 1974

Os Pensadores - Benjamin, Habermas, Horkheimer, Adorno - Consultoria


Paulo Eduardo Arantes - Ed. Abril Cultural
CRONOLOGIA

1892 – Em Berlim, nasce Walter Benjamin.

1914 – Tem início a Primeira Guerra Mundial.

1918 – Benjamin gradua-se na Universidade de Berna com a dissertação sobre a Noção


de Crítica de Arte no Primeiro Romantismo.

1921 - Adorno conhece Max Horkheimer, ao qual se liga por profunda amizade.

1924 – Fundação do Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt.

1928 – Benjamin vê rejeitada sua tese sobre As Origens da Tragédia Barroca na


Alemanha.

1929 – Nasce Jürgen Habermas.

1933 – O Instituto de Pesquisas Sociais transfere-se para Genebra.

1936 – Benjamin publica em francês A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade


Técnica.

1938 – Adorno viaja para os Estados Unidos.

1939 – Publica Fragmentos sobre Wagner. Eclode a Segunda Guerra Mundial.

1940 – Benjamin suicida-se. No mesmo ano, são publicadas suas Teses sobre a
Filosofia da História.

1947 – Adorno e Horkheimer empregam pela primeira vez o termo indústria cultural.

1950 – Reorganização do Instituto de Pesquisas Sociais, na Alemanha. Adorno


publica seu estudo sobre a Personalidade Autoritária.

1951 – Horkheimer pronuncia conferências Sobre o Conceito de Razão.

1954 – Habermas I licencia-se com uma tese sobre Schelling: O Absoluto I e a História.

1955 – Publicação do original alemão de A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade


Técnica, de Benjamin.

1956 – Adorno publica Para a Metacrítica da Teoria do Conhecimento – Estudos sobre


Husserl e as Antinomias Fenomenológicas.
1959 – Habermas colabora com Adorno.

1956 – Adorno publica Para a Metacrítica da Teoria do Conhecimento - Estudos sobre


Husserl e as Antinomias Fenomenológicas.

1958 – 1965 – Publica os Ensaios de Literatura I, II e III. 1961 - Inicia a Teoria Estética.

1962 - Publicação de Evolução Estrutural da Vida Pública, tese de doutoramento de


Habermas.

1963 - Habermas publica Teoria e Práxis.

1966 - Adorno publica a Dialética Negativa.

1968 - Conclui a primeira versão da Teoria Estética. Habermas publica Técnica e Ciência
como “Ideologia”, e transfere-se para Nova York.

1969 - A 6 de agosto, com 66 anos, falece Theodor Wiesengrund-Adorno.

1973 - A 9 de julho, com 78 anos de idade, morre Max Horkheimer.

Links Úteis:

Herbert Marcuse - Theorists and Critics - Vários trabalhos em inglês, com ênfase a
"One-Dimensional Man", publicado em português sob o título "Ideologia da Sociedade
Industrial"

The Herbert Marcuse Internet Archive - Com vasto acervo sobre o Autor, sempre
em inglês.

Herbert Marcuse, by Douglas Kellner - Uma biografia interessantíssima, em inglês.

Introdution to The Frankfurt School - Como diz, uma introdução aos teóricos e ao
pensamento da Escola de Frankfurt. Em inglês.

O Que é a Escola de Frankfurt - Fundamentos da Teoria Crítica e breves biografias


dos principais epígonos. Em português.

Teoria Crítica e Educação - Em elaboração, mas com um projeto sólido e coerente!

Discurso Sobre a Origem da Desigualdade

Jean-Jacques Rousseau
DISCURSO

SOBRE ESTA QUESTÃO PROPOSTA PELA ACADEMIA DE DIJON:

QUAL É A ORIGEM DA DESIGUALDADE ENTRE OS HOMENS, E SE É AUTORIZADA


PELA LEI NATURAL

ÍNDICE

APRESENTAÇÃO

BIOGRAFIA DO AUTOR

DEDICATÓRIA À Repúlica de Genebra

PREFÁCIO

DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE

PRIMEIRA PARTE

SEGUNDA PARTE

ADVERTÊNCIA SOBRE AS NOTAS

NOTAS

APRESENTAÇÃO

Nélson Jahr Garcia, (in memoriam)

Rousseau, com os seus companheiros enciclopedistas e da maçonaria, nos ensinou a respeitar o


ser humano, amar a natureza e a sentir paixão pela liberdade. Foi devido a essa influência, pelo
menos em parte, que lutamos contra o jugo português, proclamamos a República, enfrentamos a
ditadura do Estado Novo e o regime militar. Aprendemos também a defender as florestas, os animais,
a vida enfim.
Em "Sobre a origem da desigualdade", Rousseau mostra o caminho histórico percorrido pelo ser
humano, passando do estado de natureza para o estado civilizado. Discute as contradições e
antagonismos que permearam esse processo e defende a volta ao estado natural, sob novas formas.
Suas concepções sobre o Direito Natural, no Prefácio, são brilhantes.
Por uma Arte Revolucionaria Independente

Um libelo pela mais plena e absoluta liberdade de expressão, sem qualquer tipo de
amarras.

Leon Trotski e André Breton, tiveram em 1938, na Cidade do México, um encontro


histórico de que resultou, após muitos debates entre eles e outros agentes culturais, este
documento, cuja versão final foi elaborada por Breton e Diego Rivera, com a aquiescência
de Trotski. Naquele momento nascia a F.I.A.R.I. – Federação Internacional da Arte
Revolucionária e Independente – de vida efêmera mas importância histórica crucial.

Dentre os propósitos estabelecidos, ressaltamos:

_ Uma aliança em prol da civilização, da vida, do ser humano em sua plenitude de


manifestações.

_ Nenhuma barreira, nenhum tipo de controle, nenhum limite aos sonhos, à cultura ou à
arte, que todos nascem no mesmo lugar.

_ Um libelo pela mais plena e absoluta liberdade de expressão, sem qualquer tipo de
amarras.

_ O mais vigoroso repúdio a toda e qualquer forma de autoritarismo ou dirigismo.

_ Os meios materiais devem ser postos sem limite ou controle de qualquer espécie a serviço
do ser humano e da arte.

_ A arte jamais deve ser reduzida a serviçal do capital.

_ O capitalismo é liberticida por definição.

_ O socialismo não pode ser autoritário.

_ Se destruir uma obra de arte é considerado por todas as pessoas sensíveis um gesto
hediondo, como classificar o gesto de impedi-la de sequer existir?

_ Repúdio à barbárie das guerras e do autoritarismo.

Ao texto final, assinado por Leon Trotski e André Breton na cidade do México dia
25 de julho de 1938.
POR UMA ARTE REVOLUCIONARIA INDEPENDENTE

André Breton e Leon Trotski

1) Pode-se pretender sem exagero que nunca a civilização humana esteve ameaçada por
tantos perigos quanto hoje. Os vândalos, com o auxílio de seus meios bárbaros, isto é,
deveras precários, destruíram a civilização antiga num canto limitado da Europa.
Atualmente, é toda a civilização mundial, na unidade de seu destino histórico, que vacila
sob a ameaça das forças reacionárias armadas com toda a técnica moderna. Não temos
somente em vista a guerra que se aproxima. Mesmo agora, em tempo de paz, a situação da
ciência e da arte se tornou absolutamente intolerável.

2) Naquilo que ela conserva de individualidade em sua gênese, naquilo que aciona
qualidades subjetivas para extrair um certo fato que leva a um enriquecimento objetivo,
uma descoberta filosófica, sociológica, científica ou artística aparece como o fruto de um
acaso precioso, quer dizer, como uma manifestação mais ou menos espontânea da
necessidade. Não se poderia desprezar uma tal contribuição, tanto do ponto de vista do
conhecimento geral (que tende a que a interpretação do mundo continue), quanto do ponto
de vista revolucionário (que, para chegar à transformação do mundo, exige que tenhamos
uma idéia exata das leis que regem seu movimento). Mais particularmente, não seria
possível desinteressar-se das condições mentais nas quais essa contribuição continua a
produzir-se e, para isso, zelar para que seja garantido o respeito às leis específicas a que
está sujeita a criação intelectual.

3) Ora, o mundo atual nos obriga a constatar a violação cada vez mais geral dessas leis,
violação à qual corresponde necessariamente um aviltamento cada vez mais patente, não
somente da obra de arte, mas também da personalidade “artística”. O fascismo hitlerista,
depois de ter eliminado da Alemanha todos os artistas que expressaram em alguma medida
o amor pela liberdade, fosse ela apenas formal, obrigou aqueles que ainda podiam consentir
em manejar uma pena ou um pincel a se tornarem os lacaios do regime e a celebrá-lo de
encomenda, nos limites exteriores do pior convencionalismo. Exceto quanto à propaganda,
a mesma coisa aconteceu na URSS durante o período de furiosa reação que agora atingiu
seu apogeu.

4) É evidente que não nos solidarizamos por um instante sequer, seja qual for seu sucesso
atual, com a palavra de ordem: “Nem fascismo nem comunismo”, que corresponde à
natureza do filisteu conservador e atemorizado, que se aferra aos vestígios do passado
“democrático”. A arte verdadeira, a que não se contenta com variações sobre modelos
prontos, mas se esforça por dar uma expressão às necessidades interiores do homem e da
humanidade de hoje, tem que ser revolucionária, tem que aspirar a uma reconstrução
completa e radical da sociedade, mesmo que fosse apenas para libertar a. criação intelectual
das cadeias que a bloqueiam e permitir a toda a humanidade elevar-se a alturas que só os
gênios isolados atingiram no passado. Ao mesmo tempo, reconhecemos que só a revolução
social pode abrir a via para uma nova cultura. Se, no entanto, rejeitamos qualquer
solidariedade com a casta atualmente dirigente na URSS, é precisamente porque no nosso
entender ela não representa o comunismo, mas é o seu inimigo mais pérfido e mais
perigoso.

5) Sob a influência do regime totalitário da URSS e por intermédio dos organismos ditos
“culturais” que ela controla nos outros países, baixou no mundo todo um profundo
crepúsculo hostil à emergência de qualquer espécie de valor espiritual. Crepúsculo de
abjeção e de sangue no qual, disfarçados de intelectuais e de artistas, chafurdam homens
que fizeram do servilismo um trampolim, da apostasia um jogo perverso, do falso
testemunho venal um hábito e da apologia do crime um prazer. A arte oficial da época
estalinista reflete com uma crueldade sem exemplo na história os esforços irrisórios desses
homens para enganar e mascarar seu verdadeiro papel mercenário.

6) A surda reprovação suscitada no mundo artístico por essa negação desavergonhada dos
princípios aos quais a arte sempre obedeceu, e que até Estados instituídos sobre a
escravidão não tiveram a audácia de contestar tão totalmente, deve dar lugar a uma
condenação implacável. A oposição artística é hoje uma das forças que podem com eficácia
contribuir para o descrédito e ruína dos regimes que destroem, ao mesmo tempo, o direito
da classe explorada de aspirar a um mundo melhor e todo sentimento da grandeza e mesmo
da dignidade humana.

7) A revolução comunista não teme a arte. Ela sabe que ao cabo das pesquisas que se
podem fazer sobre a formação da vocação artística na sociedade capitalista que desmorona,
a determinação dessa vocação não pode ocorrer senão como o resultado de uma colisão
entre o homem e um certo número de formas sociais que lhe são adversas. Essa única
conjuntura, a não ser pelo grau de consciência que resta adquirir, converte o artista em seu
aliado potencial. O mecanismo de sublimação, que intervém em tal caso, e que a
psicanálise pôs em evidência, tem por objeto restabelecer o equilíbrio rompido entre o
“ego” coerente e os elementos recalcados. Esse restabelecimento se opera em proveito do
”ideal do ego” que ergue contra a realidade presente, insuportável, os poderes do mundo
interior, do “id”, comuns a todos os homens e constantemente em via de desenvolvimento
no futuro. A necessidade de emancipação do espírito só tem que seguir seu curso natural
para ser levada a fundir-se e a revigorar-se nessa necessidade primordial: a necessidade de
emancipação do homem.

8) Segue-se que a arte não pode consentir sem degradação em curvar-se a qualquer diretiva
estrangeira e a vir docilmente preencher as funções que alguns julgam poder atribuir-lhe,
para fins pragmáticos, extremamente estreitos. Melhor será confiar no dom de prefiguração
que é o apanágio de todo artista autêntico, que implica um começo de resolução (virtual)
das contradições mais graves de sua época e orienta o pensamento de seus contemporâneos
para a urgência do estabelecimento de uma nova ordem.

9) A idéia que o jovem Marx tinha do papel do escritor exige, em nossos dias, uma
retomada vigorosa. É claro que essa idéia deve abranger também, no plano artístico e
científico, as diversas categorias de produtores e pesquisadores. "O escritor, diz ele, deve
naturalmente ganhar dinheiro para poder viver e escrever, mas não deve em nenhum caso
viver e escrever para ganhar dinheiro... O escritor não considera de forma alguma seus
trabalhos como um meio. Eles são objetivos em si, são tão pouco um meio para si mesmo e
para os outros que sacrifica, se necessário, sua própria existência à existência de seus
trabalhos... A primeira condição da liberdade de imprensa consiste em não ser um ofício.
Mais que nunca é oportuno agora brandir essa declaração contra aqueles que pretendem
sujeitar a atividade intelectual a fins exteriores a si mesma e, desprezando todas as
determinações históricas que lhe são próprias, dirigir, em função de pretensas razões de
Estado, os temas da arte. A livre escolha desses temas e a não-restrição absoluta no que se
refere ao campo de sua exploração constituem para o artista um bem que ele tem o direito
de reivindicar como inalienável. Em matéria de criação artística, importa essencialmente
que a imaginação escape a qualquer coação, não se deixe sob nenhum pretexto impor
qualquer figurino. Àqueles que nos pressionarem, hoje ou amanhã, para consentir que a arte
seja submetida a uma disciplina que consideramos radicalmente incompatível com seus
meios, opomos uma recusa inapelável e nossa vontade deliberada de nos apegarmos à
fórmula: toda licença em arte.

10) Reconhecemos, é claro, ao Estado revolucionário o direito de defender-se contra a


reação burguesa agressiva, mesmo quando se cobre com a bandeira da ciência ou da arte.
Mas entre essas medidas impostas e temporárias de autodefesa revolucionária e a pretensão
de exercer um comando sobre a criação intelectual da sociedade, há um abismo. Se, para o
desenvolvimento das forças produtivas materiais, cabe à revolução erigir um regime
socialista de plano centralizado, para a criação intelectual ela deve, já desde o começo,
estabelecer e assegurar um regime anarquista de liberdade individual. Nenhuma autoridade,
nenhuma coação, nem o menor traço de comando! As diversas associações de cientistas e
os grupos coletivos de artistas que trabalharão para resolver tarefas nunca antes tão
grandiosas unicamente podem surgir e desenvolver um trabalho fecundo na base de uma
livre amizade criadora, sem a menor coação externa.

11) Do que ficou dito decorre claramente que ao defender a liberdade de criação, não
pretendemos absolutamente justificar o indiferentismo político e longe está de nosso
pensamento querer ressuscitar uma arte dita “pura” que de ordinário serve aos objetivos
mais do que impuros da reação. Não, nós temos um conceito muito elevado da função da
arte para negar sua influência sobre o destino da sociedade. Consideramos que a tarefa
suprema da arte em nossa época é participar consciente e ativamente da preparação da
revolução. No entanto, o artista só pode servir à luta emancipadora quando está
compenetrado subjetivamente de seu conteúdo social e individual, quando faz passar por
seus nervos o sentido e o drama dessa luta e quando procura livremente dar uma
encarnação artística a seu mundo interior.

12) Na época atual, caracterizada pela agonia do capitalismo, tanto democrático quanto
fascista, o artista, sem ter sequer necessidade de dar a sua dissidência social uma forma
manifesta, vê-se ameaçado da privação do direito de viver e de continuar sua obra pelo
bloqueio de todos os seus meios de difusão. É natural que se volte então para as
organizações estalinistas que lhe oferecem a possibilidade de escapar a seu isolamento. Mas
sua renúncia a tudo que pode constituir sua mensagem própria e as complacência
degradantes que essas organizações exigem dele em troca de certas possibilidades materiais
lhe proíbem manter-se nelas, por menos que a desmoralização seja impotente para vencer
seu caráter. É necessário, desde este instante, que ele compreenda que seu lugar está além,
não entre aqueles que traem a causa da revolução e ao mesmo tempo, necessariamente, a
causa do homem, mas entre aqueles que dão provas de sua fidelidade inabalável aos
princípios dessa revolução, entre aqueles que, por isso, permanecem como os únicos
qualificados para ajudá-Ia a realizar-se e para assegurar por ela a livre expressão ulterior de
todas as manifestações do gênio humano.

13) O objetivo do presente apelo é encontrar um terreno para reunir todos os defensores
revolucionários da arte, para servir a revolução pelos métodos da arte e defender a própria
liberdade da arte contra os usurpadores da revolução. Estamos profundamente convencidos
de que o encontro nesse terreno é possível para os representantes de tendências estéticas,
filosóficas e políticas razoavelmente divergentes. Os marxistas podem caminhar aqui de
mãos dadas com os anarquistas, com a condição que uns e outros rompam implacavelmente
com o espírito policial reacionário, quer seja representado por Josef Stálin ou por seu
vassalo Garcia Oliver.

14) Milhares e milhares de pensadores e de artistas isolados, cuja voz é coberta pelo
tumulto odioso dos falsificadores arregimentados, estão atualmente dispersos no mundo.
Numerosas pequenas revistas locais tentam agrupar a sua volta forças jovens, que procuram
vias novas e não subvenções. Toda tendência progressiva na arte é difamada pelo fascismo
como uma degenerescência. Toda criação livre é declarada fascista pelos estalinistas. A arte
revolucionária independente deve unir-se para a luta contra as perseguições reacionárias e
proclamar bem alto seu direito à existência. Uma tal união é o objetivo da Federação
Internacional da Arte Revolucionária Independente (FIARI) que julgamos necessário criar.

15) Não temos absolutamente a intenção de impor cada uma das idéias contidas neste
apelo, que nós mesmos consideramos apenas um primeiro passo na nova via. A todos os
representantes da arte, a todos seus amigos e defensores que não podem deixar de
compreender a necessidade do presente apelo, pedimos que ergam a voz imediatamente.
Endereçamos o mesmo apelo a todas as publicações independentes de esquerda que estão
prontas a tomar parte na criação da Federação Internacional e no exame de suas tarefas e
métodos de ação.

16) Quando um primeiro contato internacional tiver sido estabelecido pela imprensa e pela
correspondência, procederemos à organização de modestos congressos locais e nacionais.
Na etapa seguinte deverá reunir-se um congresso mundial que consagrará oficialmente a
fundação da Federação Internacional.

O que queremos:

a independência da arte -- para a revolução

a revolução -- para a liberação definitiva da arte.

Manifesto do Surrealismo
(André Breton - 1924)

Se preferir, faça o download do manifesto do surrealismo para o seu computador


através deste link

Tamanha é a crença na vida, no que a vida tem de mais precário, bem entendido, a
vida real, que afinal esta crença se perde. O homem, esse sonhador definitivo, cada dia
mais desgostoso com seu destino, a custo repara nos objetos de seu uso habitual, e que lhe
vieram por sua displicência, ou quase sempre por seu esforço, pois ele aceitou trabalhar, ou
pelo menos, não lhe repugnou tomar sua decisão ( o que ele chama decisão! ) . Bem
modesto é agora o seu quinhão: sabe as mulheres que possuiu, as ridículas aventuras em
que se meteu; sua riqueza ou sua pobreza para ele não valem nada, quanto a isso, continua
recém-nascido, e quanto à aprovação de sua consciência moral, admito que lhe é
indiferente. SE conservar alguma lucidez, não poderá senão recordar-se de sua infância, que
lhe parecerá repleta de encantos, por mais massacrada que tenha sido com o desvelo dos
ensinantes. Aí, a ausência de qualquer rigorismo conhecido lhe dá a perspectiva de levar
diversas vidas ao mesmo tempo; ele se agarra a essa ilusão; só quer conhecer a facilidade
momentânea, extrema, de todas as coisas. Todas as manhãs, crianças saem de casa sem
inquietação. Está tudo perto, as piores condições materiais são excelentes. Os bosques são
claros ou escuros, nunca se vai dormir.

Mas é verdade que não se pode ir tão longe, não é uma questão de distância apenas.
Acumulam-se as ameaças, desiste-se, abandona-se uma parte da posição a conquistar. Esta
imaginação que não admitia limites, agora só se lhe permite atuar segundo as leis de uma
utilidade arbitrária; ela é incapaz de assumir por muito tempo esse papel inferior, e quando
chega ao vigésimo ano prefere, em geral, abandonar o homem ao seu destino sem luz.

Procure ele mais tarde, daqui e dali, refazer-se por sentir que pouco a pouco lhe
faltam razões para viver, incapaz como ficou de enfrentar uma situação excepcional, como
seja o amor, ele muito dificilmente o conseguirá. É que ele doravante pertence, de corpo e
alma, a uma necessidade prática imperativa, que não permite ser desconsiderada. Faltará
amplidão a seus gostos, envergadura a suas idéias. De tudo que lhe acontece e pode lhe
acontecer, ele só vai reter o que for ligação deste evento com uma porção de eventos
parecidos, nos quais não toma parte, eventos perdidos. Que digo, ele fará sua avaliação em
relação a um desses acontecimentos, menos aflitivo que os outros, em suas conseqüências.
Ele não descobrirá aí, sob pretexto algum, sua salvação.

Imaginação querida, o que sobretudo amo em ti é não perdoares.

Só o que me exalta ainda é a única palavra, liberdade. Eu a considero apropriada


para manter, indefinidamente, o velho fanatismo humano. Atende, sem dúvida, à minha
única aspiração legítima. Entre tantos infortúnios por nós herdados, deve-se admitir que a
maior liberdade de espírito nos foi concedida. Devemos cuidar de não fazer mau uso dela.
Reduzir a imaginação à servidão, fosse mesmo o caso de ganhar o que vulgarmente se
chama a felicidade, é rejeitar o que haja, no fundo de si, de suprema justiça. Só a
imaginação me dá contas do que pode ser, e é bastante para suspender por um instante a
interdição terrível; é bastante também para que eu me entregue a ela, sem receio de me
enganar ( como se fosse possível enganar-se mais ainda ). Onde começa ela a ficar nociva,
e onde se detém a confiança do espírito? Para o espírito, a possibilidade de errar não é,
antes, a contingência do bem?

Fica a loucura. “a loucura que é encarcerada”, como já se disse bem. Essa ou a


outra.. Todos sabem, com efeito, que os loucos não devem sua internação senão a um
reduzido número de atos legalmente repreensíveis, e que, não houvesse estes atos, sua
liberdade ( o que se vê de sua liberdade ) não poderia ser ameaçada. Que eles sejam, numa
certa medida, vítimas de sua imaginação, concordo com isso, no sentido de que ela os
impele à inobservância de certas regras, fora das quais o gênero se sente visado, o que cada
um é pago para saber. Mas a profunda indiferença de que dão provas em relação às críticas
que lhe fazemos, até mesmo quanto aos castigos que lhes são impostos, permite supor que
eles colhem grande reconforto em sua imaginação e apreciam seu delírio o bastante para
suportar que só para eles seja válido. E, de fato, alucinações, ilusões, etc. são fonte de gozo
nada desprezível. A mais bem ordenada sensualidade encontra aí sua parte, e eu sei que
passaria muitas noites a amansar essa mão bonita nas últimas páginas do livro. A
Inteligência de Taine, se dedica a singulares malefícios. As confidências dos loucos,
passaria minha vida a provoca-las. São pessoas de escrupulosa honestidade, cuja inocência
só tem a minha como igual. Foi preciso Colombo partir com loucos para descobrir a
América. E vejam como essa loucura cresceu, e durou.

Não é o medo da loucura que nos vai obrigar a hastear a meio-pau a bandeira da
imaginação.

O processo da atitude realista deve ser instruído, após o processo da atitude


materialista. Esta, aliás, mais poética que a precedente, implica da parte do homem um
orgulho sem dúvida monstruoso, mas não uma nova e mais completa deposição. Convém
nela ver, antes de tudo, uma feliz reação contra algumas tendências derrisórias do
espiritualismo. Enfim, ela não é incompatível com uma certa elevação de pensamento.

Ao contrário, a atitude realista, inspirada no positivismo, de São Tomás a Anatole


France, parece-me hostil a todo impulso de liberação intelectual e moral. Tenho-lhe horror,
por ser feita de mediocridade, ódio e insípida presunção. É ela a geradora hoje em dia
desses livros ridículos, dessas peças insultuosas. Fortifica-se incessantemente nos jornais , e
põe em xeque a ciência, a arte, ao aplicar-se em bajular a opinião nos seus critérios mais
baixos; a clareza vizinha da tolice, a vida dos cães. Ressente-se com isso a atividade dos
melhores espíritos; a lei do menor esforço afinal se impõe a eles como aos outros.
Conseqüência divertida deste estado de coisas, em literatura, é a abundância dos romances.
Cada um contribui com sua pequena “observação”. Por necessidade de depuração o sr. Paul
Valéry propunha recentemente fazer antologia do maior número possível de começos de
romances cuja insensatez ele muito esperava. Os mais famosos autores seriam chamados a
participar. Tal idéia dignificava também Paul Valéry, que, não há muito, a propósito dos
romances, me garantia que, ele, sempre se recusaria a escrever: “A marquesa saiu às cinco
horas.” Mas cumpriu ele a sua palavra?

Se o escrito de informação pura e simples de que a frase precipitada é exemplo, tem


emprego corrente nos romances certamente é por não ir longe a ambição dos autores. O
caráter circunstancial, inutilmente particular, de cada notação sua, me faz pensar que estão
se divertindo, eles, à minha custa. Não me poupam nenhuma hesitação do personagem: será
louro, como se chama, vamos sair juntos no verão? Outras tantas perguntas resolvidas
decisivamente, ao acaso; só me restou o poder discricionário de fechar o livro, o que não
deixo de fazer, ainda perto da primeira página. E as descrições! Nada se compara ao seu
vazio; são superposições de imagens de catálogo, o autor as toma cada vez mais sem
cerimônia, aproveita para me empurrar seus cartões postais, procura fazer-me concordar
com os lugares-comuns:

A salinha onde foi introduzido o moço era forrada de papel amarelo: havia
gerânios e cortinas de musselina nas janelas; o sol poente jogava sobre tudo isso uma luz
clara... O quarto não continha nada de particular. Os móveis, de madeira amarela, eram
todos velhos. Um sofá com grande encosto inclinado, uma mesa oval diante do sofá, um
toucador, com espelho, entre as janelas, cadeiras encostadas às paredes, duas ou três
gravuras sem valor, representando moças alemãs com pássaros nas mãos – eis a que se
reduzia a mobília. ( Dostoievski, Crime e Castigo )

Que o espírito se proponha, mesmo por pouco tempo, tais motivos, não tenho
disposição para admiti-lo. Podem sustentar que este desenho clássico está no lugar certo e
que neste passo do livro o autor tem seus motivos para me esmagar. Perde seu tempo, pois
não entro no seu quarto. A preguiça, a fadiga dos outros não me prendem. Tenho da
continuidade da vida uma noção instável demais para igualar aos melhores os meus
momentos de depressão, de fraqueza. Quero que se calem, quando param de ressentir. E
entendam bem que não incrimino a falta de originalidade pela falta de originalidade. Digo
apenas que não faço caso dos momentos nulos de minha vida, que da parte de qualquer
homem pode ser indigno de cristalizar aqueles que lhe parecem tais. Esta descrição de
quarto, e muitas outras, permitam-me, digo: passo.

Ora, cheguei à psicologia, e com este assunto nem penso em brincar.

O autor pega-se com um personagem, e escolhido este, faz seu herói peregrinar pelo
mundo. Haja o que houver, este herói, cujas ações são admiravelmente previstas, tem a
incumbência de não desmanchar, parecendo porém sempre desmanchar, os cálculos de que
é objeto. As vagas da vida podem parecer arrebata-lo, roda-lo, afunda-lo, ele sempre
dependerá deste tipo humano formado. Simples partida de xadrez, da qual me desinteresso
mesmo, sendo o homem, qualquer um, um medíocre adversário para mim. Não posso é
suportar estas reles discussões de tal ou qual lance, desde que não se trata nem de ganhar
nem de perder. E se o jogo não vale um caracol, se a razão objetiva prejudica terrivelmente,
como é o caso, quem nela confia, não convirá fazer abstração destas categorias? “É tão
ampla a diversidade, que todos os tons de voz, todos os passos, tosses assôos, espirros...” Se
um cacho de uvas não tem duas sementes iguais, como querem que lhes descreva este bago
pelo outro, por todos os outros, que dele faça um bago bom para comer? Esta intratável
mania de reduzir o desconhecido ao conhecido, ao classificável, embala os cérebros. O
desejo de análise prevalece sobre os sentimentos. Disso resultam dilatadas exposições cuja
força persuasiva reside na sua própria singularidade, e que iludem o leitor pelo recurso a
um vocabulário abstrato, bastante mal definido, aliás. Se as idéias gerais que a filosofia se
propõe até aqui debater, marcassem por aí sua incursão definitiva num domínio mais
extenso, seria eu o primeiro a me alegrar. Mas por enquanto é só afetação; até aqui os ditos
espirituosos e outras boas maneiras nos encobrem à porfia o verdadeiro pensamento que se
busca ele próprio, em vez de se ocupar em obter sucessos. Parece-me que todo ato traz em
si mesmo sua justificação, ao menos para quem foi capaz de comete-lo, que ele é dotado de
um poder radiante que a mínima glosa, por natureza, enfraquece. Devido a esta última ele
deixa mesmo, de certo modo, de se produzir. Não ganha nada com esta distinção. Os heróis
de Stendhal caem aos golpes deste autor, apreciações mais ou menos felizes, que nada
acrescentam à sua glória. Onde os encontraremos de fato, é onde Stendhal os perdeu.

Ainda vivemos sob o império da lógica, eis aí, bem entendido, onde eu queria
chegar. Mas os procedimentos lógicos, em nossos dias, só se aplicam à resolução de
problemas secundários. O racionalismo absoluto que continua em moda não permite
considerar senão fatos dependendo estreitamente de nossa experiência. Os fins lógicos, ao
contrário, nos escapam. Inútil acrescentar que à própria experiência foram impostos limites.
Ela circula num gradeado de onde é cada vez mais difícil faze-la sair. Ela se apóia, também
ela, na utilidade imediata, e é guardada pelo bom senso. A pretexto de civilização e de
progresso conseguiu-se banir do espírito tudo que se pode tachar, com ou sem razão, de
superstição, de quimera; a proscrever todo modo de busca da verdade, não conforme ao uso
comum. Ao que parece, foi um puro acaso que recentemente trouxe à luz uma parte do
mundo intelectual, a meu ver, a mais importante, e da qual se afetava não querer saber.
Agradeça-se a isso às descobertas de Freud. Com a fé nestas descobertas desenha-se afinal
uma corrente de opinião, graças à qual o explorador humano poderá levar mais longe suas
investigações, pois que autorizado a não ter só em conta as realidades sumárias. Talvez
esteja a imaginação a ponto de retomar seus direitos. Se as profundezas de nosso espírito
escondem estranhas forças capazes de aumentar as da superfície, ou contra elas lutar
vitoriosamente, há todo interesse em captá-las, capta-las primeiro, para submete-las depois,
se for o caso, ao controle de nossa razão. Os próprios analistas só têm a ganhar com isso.
Mas é importante observar que nenhum meio está a priori designado para conduzir este
empreendimento, que até segunda ordem pode ser também considerado como sendo da
alçada dos poetas, tanto como dos sábios, e o seu sucesso não depende das vias mais ou
menos caprichosas a serem seguidas.

Com justa razão Freud dirigiu sua crítica para o sonho. É inadmissível, com efeito,
que esta parte considerável da atividade psíquica ( pois que, ao menos do nascimento à
morte do homem, o pensamento não tem solução de continuidade, a soma dos momentos de
sonho, do ponto de vista do tempo a considerar só o sonho puro, o do sono, não é inferior à
soma dos momentos de realidade, digamos apenas: dos momentos de vigília ) não tenha
recebido a atenção devida. A extrema diferença de atenção, de gravidade, que o observador
comum confere aos acontecimentos da vigília e aos do sono, é caso que sempre me
espantou. É que o homem, quando cessa de dormir, é logo o joguete de sua memória, a
qual, no estado normal, deleita-se em lhe retraçar fracamente as circunstâncias do sonho,
em privar este de toda conseqüência atual, e em despedir o único determinante do ponto
onde ele julga tê-lo deixado, poucas horas antes: esta esperança firme, este desassossego.
Ele tem a ilusão de continuar algo que vale a pena. O sonho fica assim reduzido a um
parêntese, como a noite. E como a noite, geralmente também não traz bom conselho. Este
singular estado de coisas parece-me conduzir a algumas reflexões:
1.º nos limites onde exerce sua ação ( supõe-se que a exerce ) o sonho, ao que tudo
indica, é contínuo, e possui traços de organização. A memória arroga-se o direito de nele
fazer cortes, de não levar em conta as transições, e de nos apresentar antes uma série de
sonhos do o sonho. Assim também, a cada instante só temos das realidades uma figuração
distinta, cuja coordenação é questão de vontade. Importa notar que nada nos permite
induzir a uma maior dissipação dos elementos constitutivos do sonho. Lamento falar disso
segundo uma fórmula que exclui o sonho, em princípio. Quando virão os lógicos, os
filósofos adormecidos? Eu gostaria de dormir, para poder me entregar aos dormidores,
como me entrego aos que lêem, olhos bem abertos; para cessar de fazer prevalecer nesta
matéria o ritmo consciente de meu pensamento. Meu sonho desta última noite talvez
prossiga o da noite precedente, e seja prosseguido na próxima noite, com louvável rigor. É
bem possível, como se diz. E como não está de modo nenhum provado que, fazendo isso, a
“realidade” que me ocupa subsista no estado de sonho, que Lea não afunde no imemorial,
porque não haveria eu de conceder ao sonho o que recuso por vezes à realidade, seja este
valor de certeza em si mesma, que, em seu tempo, não está exposta a meu desmentido? Por
que não haveria eu de esperar do indício do sonho mais do que espero de um grau de
consciência cada dia mais elevado? Não se poderia aplicar o sonho, ele também, resolução
de questões fundamentais da vida? Serão estas perguntas as mesmas num caso como no
outro, e no sonho elas já estão? O sonho terá menos peso de sanções que o resto?
Envelheço, e mais que esta realidade à qual penso me adstringir, é talvez o sonho, a
indiferença que lhe dedico, que me faz envelhecer;

2.º. retomo o estado de vigília. Sou obrigado a considera-lo um fenômeno de interferência.


Não apenas o espírito manifesta, nestas condições, uma estranha tendência à desorientação
(é a história dos lapsos e enganos de toda espécie cujo segredo começa a nos ser entregue)
mas ainda não parece que, em seu funcionamento normal, ele obedeça a outra coisa senão a
sugestões que lhe vêm desta noite profunda das quais eu recomendo. Por mais bem
condicionado que ele esteja, seu equilíbrio é relativo. Mal ousa expressar-se, e se o faz, é
para limitar à constatação de que tal idéia, tal mulher, lhe faz impressão. Que impressão,
seria incapaz de dize-lo, dando assim a medida de seu subjetivismo, e nada mais. Esta idéia,
esta mulher, o perturba, predispõe-no a menos severidade. Ela tem a ação de isola-lo um
segundo de seu solvente e de deposita-lo no céu, como belo precipitado que ele pode ser,
que ele é. Em desespero de causa, invoca ele o acaso, divindade mais obscura que as outras,
à qual atribui todos os seus desvarios. Que me diz que o ângulo sob o qual se apresenta esta
idéia que o afeta, o que ele ama no olho desta mulher não é precisamente o que o liga a seu
sonho, o prende a dados que ele perdeu por sua culpa? E se isso fosse de outro modo, do
que não seria ele capaz, talvez? Eu gostaria de dar-lhe a chave deste corredor;

3.º. o espírito do homem que sonha se satisfaz plenamente com o que lhe acontece. A
angustiante questão da possibilidade não mais está presente. Mata, vi mais depressa, ama
tanto quanto quiseres. E se morres, não tens certeza de despertares entre os mortos? Deixa-
te levar, os acontecimentos não permitem que os retardes. Não tens nome. É inapreciável a
facilidade de tudo.
Que razão, eu te pergunto, razão tão maior que outra, confere ao sonho este
comportamento natural, me faz acolher sem reserva uma porção de episódios cuja
singularidade, quando escrevo, me fulminaria? E no entanto, posso crer nos meus olhos,
nos meus ouvidos: chegou o belo dia, esse bicho falou.

Se o despertar do homem é mais duro, se ele quebra muito bem o encanto, é que o
levaram a ter uma raça idéia da expiação;

4.º. do momento em que seja submetido a um exame metódico, quando, por meios a serem
determinados, se chegar a nos dar conta do sonho em sua integridade (isto supõe um
disciplina da memória que atinge gerações; mesmo assim comecemos a registrar os fatos
salientes), quando sua curva se desenvolve com regularidade e amplidão sem iguais, então
se pode esperar que os seus mistérios, não mais o sendo, dêem lugar ao grande Mistério.
Acredito na resolução futura destes dois estados, tão contraditórios na aparência, o sonho e
a realidade, numa espécie de realidade absoluta, de surrealidade, se assim se pode dizer.

Parto à sua conquista, certo de não consegui-la, mas bem despreocupado com minha
morte, vou suputar um pouco os prazeres de tal posse.

Conta-se que todo o dia, à hora de dormir, Saint-Roux mandava colocar à porta de
seu solar em Camaret um cartaz onde se lia: O POETA TRABALHA. Muito haveria ainda
a dizer, mas de passagem, só quis aflorar um assunto que, por si só, necessitaria um
alongado discurso e um maior rigor; voltarei a esse ponto. Desta vez, minha intenção era
dizer a verdade sobre o ódio ao maravilhoso que grassa em certos homens, deste ridículo
no qual o querem fazer cair. Falando claro: o maravilhoso é sempre belo, qualquer
maravilhoso é belo, só mesmo o maravilhoso é belo.

No domínio literário, só o maravilhoso é capaz de fecundar obras dependentes de


um gênero inferior, como o romance, e de modo geral, de tudo que participa da anedota.
Uma prova admirável é O Monge, de Lewis. O sopro do maravilhoso o anima por inteiro.
Bem antes de o autor ter libertado seus principais personagens de qualquer coerção
temporal, já se percebe que estão prontos para agir com altivez sem precedente. Esta paixão
da eternidade, que os exalta sem cessar, confere inesquecíveis acentos a seu tormento e ao
meu. Entendo que este livro só exalta, do começo ao fim, e da forma mais pura do mundo,
aquilo que do espírito aspira a deixar o chão, e que, despojado de uma parte insignificante
de sua afabulação romanesca, à moda do tempo, constitui um modelo de justeza, de
inocente grandiosidade. parece-me que não se fez melhor, e a personagem de Matilde, em
particular, é a criação mais comovente que se possa pôr ao ativo deste modo figurado em
literatura. É menos um personagem que uma contínua tentação. E se um personagem não é
uma tentação, o que é? Tentação extrema aquela. O “nada é impossível a quem sabe ousar”
dá em O Monge toda a sua convincente medida. As aparições aí têm um papel lógico, pois
que o espírito crítico não se apodera delas para contesta-las. Também o castigo de
Ambrósio é tratado de maneira legítima, pois é finalmente aceito pelo espírito crítico como
desenlace natural.

Pode parecer arbitrário que eu proponha este modelo, quando se trata do


maravilhoso, do qual as literaturas no Norte e as literaturas orientais tiraram subsídios e
mais subsídios, sem falar das literaturas propriamente religiosas de toda a parte. É que a
maior parte dos exemplos que estas literaturas poderiam me fornecer estão eivadas de
puerilidade, pela boa razão de serem dirigidas às crianças. Cedo elas são cortadas do
maravilhoso, e mais tarde, não guardaram suficiente virgindade de espírito para sentirem
extremo prazer com Pele de Asno. Por mais encantadores que sejam, o homem julgaria
decair ao se nutrir de contos de fadas, e concordo que estes não são todos de sua idade. O
tecido de adoráveis inverossimilhanças requer mais finura, à medida que se avança, e ainda
se está à espera destas espécies de aranhas... Mas as faculdades não mudam radicalmente. O
medo, a atração do insólito, as chances, o gosto do luxo são molas às quais não se apela em
vão. Há contos a escrever para adultos, contos de fadas, quase.

O maravilhoso não é o mesmo em todas as épocas; participa obscuramente de uma


classe de revelação geral, de que só nos chega o detalhe: são as ruínas românticas, o
manequim moderno ou qualquer outro símbolo próprio a comover a sensibilidade humana
por algum tempo. Nestes quadros que nos fazem sorrir, no entanto sempre se pinta a
inquietação humana, e é por isso que os levo a sério, que os julgo inseparáveis de algumas
produções geniais, as quais, mais que as outras, estão dolorosamente impregnadas dessa
inquietação. São os patíbulos de Villon, as gregas de Racine, os divãs de Baudelaire.
Coincidem com um eclipse do gosto que sou feito para suportar, eu que tenho do gosto a
idéia de um grande defeito. No mau gosto de minha época, procuro ir mais longe que os
outros. Para mim, se eu tivesse vivido em 1820, para mim “a freira sangrenta”, a mim, não
poupar este sorrateiro e banal dissimulons de que fala o periódico Cuisin, a mim, a mim,
percorrer em metáforas, como ele diz, todas as fases do “disco prateado”. Por hoje, penso
num castelo, cuja metade não está obrigatoriamente em ruína; este cabelo me pertence, eu o
vejo num sítio agreste, não longe de Paris. Suas dependências não acabam mais e, quanto
ao interior, foi terrivelmente restaurado, de modo a nada deixar a desejar, em matéria de
conforto. Junto à porta, encoberta pela sombra das árvores, estão os automóveis,
estacionados. Alguns de meus amigos aí estão, em permanência: eis o Louis Aragon que
parte – ele só tem tempo para cumprimentar-nos; Philippe Soupault se levanta com as
estrelas Paul Eluard, nosso grande Eluard, ainda não voltou. Eis Robert Desnos e Roger
Vitrac, que decifram no parque um velho edital sobre o duelo; Georges Auric, Jean
Paulhan, Max Morise, que rema tão bem, Benjamin Péret, em suas equações de pássaros; e
Joseph Delteil; e Jean Carrive; e Georges Limbour (há uma fileira de Georges Limbour); e
Marcel Noll; eis T. Traenkel que nos acena de seu balão cativo, Georges Malkine, Antonin
Artaud, Francis Gerard, Pierre Naville, J. A . Boiffard, depois Jacques Baron e seu irmão,
belos e cordiais, tantos outros ainda, e mulheres deslumbrantes, palavra. Estes jovens não
podem se recusar nada, seus desejos são, para a riqueza, ordens. Francis Picabia vem nos
visitar e, na semana passada, recebeu-se na galeria dos espelhos um tal Marcel Duchamp
que ainda não se conhecia. Picasso caça aí por perto. O espírito de desmoralização ergueu
domicílio no castelo, e é com ele que tratamos sempre que há problema de relação com
nossos semelhantes, mas as portas estão sempre abertas, e sabeis, não se começa
“agradecendo” às pessoas. De mais a mais, a solidão é vasta, não nos encontramos muito.
Pois o essencial não é sermos senhores de nós mesmos, das mulheres, do amor também?

Vão atribuir-me uma mentira poética; cada um vai dizer que moro na Rua Fontaine,
e que não vai beber desta água. Na verdade! mas este castelo cujas honras lhe faço, tem ele
certeza que seja uma viagem? E se, não obstante, o palácio existisse? Meus hóspedes estão
aí para responderem por isso; seu capricho é a estrada luminosa que aí conduz. Vivemos de
fato à nossa fantasia, quando estamos lá. E como o que um faz poderia incomodar o outro,
ali, ao abrigo da procura sentimental e dos encontros ocasionais?

O homem põe e dispõe. Depende dele só pertencer-se por inteiro, isto é,


manter em estado anárquico o bando cada vez mais medonho de seus desejos. A poesia
ensina-lhe isso. Traz nela a perfeita compensação das misérias que padecemos. Ela pode ser
também uma ordenadora, bastando que ao golpe de uma decepção menos íntima se tenha a
idéia de tomá-la ao trágico. Venha o tempo quando ela decrete o fim do dinheiro e parta,
única, o pão do céu para a terra! Haverá ainda assembléias nas praças públicas, e
movimentos dos quais não pensaste participar. Adeus seleções absurdas, sonhos de abismo,
rivalidades, longas paciências, a evasão das estações, a ordem artificial das idéias, a rampa
do perigo, tempo para tudo! Basta se Ter o trabalho de praticar a poesia. Não é a nós que
compete, que já vivemos dela, o esforço de fazer prevalecer o que guardamos para nossa
mais ampla inquietação?

Não importa se há desproporção entre esta defesa e a ilustração que vai segui-la.
Tratava-se de remontar às fontes de imaginação poética, e mais ainda, ficar aí. Não tenho a
pretensão de ter feito isso. É preciso muito domínio sobre si, para querer se estabelecer
nestas recuadas regiões onde tudo parece andar tão mal, e com maior razão, para querer aí
conduzir alguém. E nunca se tem certeza de aí estar em absoluto. Como não se vai gostar,
fica-se disposto a se deter em outra parte. A verdade é que agora uma flecha indica a
direção destes lugares e que alcançar a meta verdadeira só depende de resistência do
viajante.

Conhece-se, pouco mais ou menos, o caminho percorrido. Tive o cuidado de contar,


no decurso de um estudo sobre o caso de Robert Desnos, intitulado: ENTRADA DOS
MÉDIUNS, que eu tinha sido levado a “fixar minhas atenções sobre frases mais ou menos
parciais, que em plena solidão, quase pegando no sono, ficam perceptíveis para o espírito,
sem ser possível descobrir-lhes uma determinação prévia”. Eu mal acabara de tentar uma
aventura poética, com o mínimo de chances, isto é, minhas aspirações eram as mesmas de
hoje, mas eu tinha fé na lentidão de elaboração para fugir a contatos inúteis, contatos que eu
reprovava intensamente. Era o pudor do pensamento, de que me sobra ainda alguma coisa.
No fim de minha vida, com dificuldade chegarei a falar como falam todos, culpa de minha
voz e de meus gestos escassos. A virtude da palavra (da escrita: bem maior) me parecia
ligada à faculdade de encurtar de modo marcante a exposição (pois era uma exposição) de
alguns poucos fatos, poéticos ou outros, substanciais para mim. Em minha idéia, não era
outro o processo usado por Rimbaud. Eu compunha, e o meu empenho de variedade
merecia melhor sorte, os últimos poemas do Mont de Pieté, isto é, conseguia tirar das linhas
em branco desse livro um partido incrível. Essas linhas eram o olho fechado sobre
operações de pensamento, que, julgava eu, deviam ser ocultadas do leitor. Não era trapaça,
mas sim, gosto de precipitar as coisas. Eu obtinha a ilusão de uma cumplicidade possível,
cada vez menos dispensável para mim. Eu pegara o vezo de afagar imoderadamente as
palavras pelo espaço admitido em torno delas, por suas tangências com outras inumeráveis
palavras não pronunciadas por mim. O poema FLORESTA-NEGRA marca exatamente este
estado de espírito. Passei seis meses a escrevê-lo e, podem acreditar, não descansei um só
dia. Mas tratava-se da estima que eu então me dedicava, não é bastante, compreendam.
Adoro estas confissões estúpidas. Naquele tempo, a pseudopoesia cubista procurava se
implantar, mas saíra desarmada do cérebro de Picasso, e quanto a mim, eu era tido como
tão enfadonho quanto a chuva (ainda sou). Eu desconfiava, aliás, que do ponto de vista
poético, eu estava no caminho errado, mas eu me safava como podia, desafiando o lirismo,
a golpes de definição e de receitas (os fenômenos Dada não tardariam a se manifestar), e
fingindo encontrar uma aplicação da poesia na publicidade (eu sustentava que o mundo
acabaria, não por um belo livro, mas por uma bela propaganda do inferno e do céu).

Na mesma época, um homem, tão ou mais enfadonho que eu, Pierre Reverdy,
escrevia:

A imagem é uma criação pura do espírito.

Ela não pode nascer da comparação, mas da aproximação de duas realidade mais
ou menos remotas.

Quanto mais longínquas e justas forem as afinidades de duas realidades próximas,


tanto mais forte será a imagem – mais poder emotivo e realidade poética ela
possuirá... etc.

Estas palavras, se bem que sibilinas para os profanos eram indicadores muito fortes,
e sobre elas meditei longamente. Mas a imagem era fugidia. A estética de Reverdy, estética
toda a posteriori, fazia-me tomar os efeitos pelas causas. Entrementes, fui obrigado a
renunciar definitivamente a meu ponto de vista.

Certa noite então, antes de adormecer, percebi, nitidamente articulada a ponto de ser
impossível mudar-lhe uma palavra, mas bem separada do ruído de qualquer voz, uma frase
bem bizarra que me alcançava sem trazer indício dos acontecimentos aos quais, segundo o
testemunho de minha consciência, eu estava preso, nessa ocasião, frase que me pareceu
insistente, frase, se posso ousar, que batia na vidraça. Rapidamente tive a sua noção, e já
me dispunha a passar adiante quando o seu caráter orgânico me reteve. Na verdade, esta
frase me espantava; infelizmente não a guardei até hoje, era algo como: “Há um homem
cortado em dois pela janela”, mas não poderia haver ambigüidade, acompanhada como
estava pela fraca representação visual de um homem andando, e seccionado a meia altura
por uma janela perpendicular ao eixo de seu corpo. Fora de dúvida era a simples aprumação
no espaço de um homem debruçado à janela. Mas esta janela tendo seguido o deslocamento
do homem vi que se tratava de uma imagem de tipo bastante raro e logo pensei em
incorporá-la a meu material de construção poética. Assim que lhe concedi este crédito ela
deu lugar a uma sucessão quase ininterrupta de frases que não me surpreenderam menos e
me deixaram sob a impressão de uma tal gratuidade que me pareceu ilusório o império que
até então eu mantinha sobre mim mesmo, e só pensei então em liquidar a interminável
disputa travada em mim (Knut Hamsun põe na dependência da fome este tipo de
revelação que me assaltou, e talvez não esteja ele errado (o fato é que nessa época eu
não comia todos os dias). Com toda certeza são de fato as mesmas manifestações que
ele relata nestes termos:
“No dia seguinte acordei cedo. Estava ainda escuro. Meus olhos estavam abertos fazia
tempo, quando ouvi o relógio do apartamento inferior bater cinco horas. Quis novamente
dormir mas não consegui, eu estava completamente desperto e mil coisas baralhavam na
minha cabeça. De repente me vieram uns bons trechos, próprios para utilização num
esboço, num folhetim; subitamente, por acaso, achei frases muito bonitas, frases como
jamais escreverei. Eu as repetia lentamente, palavra por palavra, eram excelentes. E vinham
mais outras. Levantei-me, peguei lápis e papel na mesa atrás de minha cama. É como se eu
tivesse rompido uma veia, uma palavra seguia outra, colocava-se em seu lugar, surgiam as
réplicas, em meu cérebro, eu gozava profundamente. Os pensamentos me vinham tão
rapidamente e fluíam tão abundantemente que eu perdia uma porção de detalhes delicados,
porque meu lápis não podia andar tão depressa, e entretanto eu me apressava, a mão sempre
em movimento, eu não perdia um minuto. As frases continuavam a brotar em mim, eu
estava prenhe de meu assunto”.

Apollinaire afirmava que os primeiros quadros de Chirico haviam sido


pintados sob a influência de distúrbios cenestésicos (enxaquecas, cólicas).

Tão ocupado estava eu com Freud nessa época, e familiarizado com os seus
métodos de exame que eu tivera alguma ocasião de praticar em doentes durante a guerra,
que decidi obter de mim o que se procura obter deles, a saber, um monólogo de fluência tão
rápida quanto possível sobre o qual o espírito crítico do sujeito não emita nenhum
julgamento, que não seja, portanto, embaraçado com nenhuma reticência, e que seja tão
exatamente quanto possível o pensamento falado. Parecia-me, ainda me parece – a maneira
como me chegara a frase do homem seccionado o comprovava – que a velocidade do
pensamento não é superior à da palavra e que ele não desafia forçadamente a língua, nem
mesmo a caneta que corre. Foi com estas disposições que Philippe Soupault, a quem eu
comunicara estas primeiras conclusões, e eu começamos a escrevinhar, pouco nos
importando com o que pudesse suceder literariamente. A facilidade de realização fez o
resto.

No fim do primeiro dia podíamos ler umas cinqüenta páginas obtidas por este meio,
e começar a comparação de nossos resultados. No conjunto, os de Soupault e os meus
mostravam notável analogia: mesmo vício de construção, falhas similares, mas também, de
cada lado, a ilusão de um estro maravilhoso, muita emoção, escolha considerável de
imagens de uma tal qualidade que não teríamos sido capazes de preparar uma só delas,
mesmo com muito empenho, um pitoresco muito especial, e de um lado e de outro, alguma
proposição de pungente burlesco. As únicas diferenças entre nossos dois textos me
pareceram corresponder essencialmente a nossos temperamentos recíprocos, o de Soupault
menos estático que o meu, e se ele me permite esta leve crítica, ao fato de Ter ele cometido
o erro de distribuir, ao alto de certas páginas, e sem dúvida por espírito de mistificação,
algumas palavras à guisa de títulos. Em compensação, devo-lhe a justiça de dizer que ele se
opôs sempre, com toda energia, a qualquer retoque, à mínima correção ao curso de toda
passagem desse gênero que me parecia até descabida. Tinha ele toda razão nisso. É com
efeito muito difícil apreciar em seu justo valor os diversos elementos presentes, diga-se
mesmo, é impossível apreciá-los numa primeira leitura. A vós que escreveis, estes
elementos, na aparência, vos são tão estranhos quanto a outro qualquer, e naturalmente
desconfiais. Falando poeticamente, eles se reconhecem sobretudo por um alto grau de
absurdidade imediata, sendo o próprio desta absurdidade, num exame mais aprofundado,
dar lugar a tudo que há de admissível, de legítimo no mundo: a divulgação de certo número
de propriedades e de fatos não menos objetivos, em suma, que os outros.

Em homenagem a Guillaume Apollinaire, que morrera há pouco, e que por diversas


vezes nos parecia ter obedecido a um arrebatamento desse gênero, sem entretanto ter aí
sacrificado medíocres meios literários, Soupault e eu designamos com o nome de
SURREALISMO o novo modo de expressão pura, agora à nossa disposição, e com o qual
estávamos impacientes para beneficiar nossos amigos. Creio não ser mais necessário, hoje,
repisar esta palavra, e que a acepção em que a tomamos acabou por prevalecer sobre a
acepção apollinairiana. Ainda com maior razão poderíamos ter-nos apossado da palavra
SUPERNATURALISMO, empregada por Gerard de Nerval na dedicatória de Filles de Feu.
Com efeito, parece que Nerval possuiu às mil maravilhas o espírito ao qual recorremos,
enquanto Apollinaire não possuía senão a letra, ainda imperfeita, do surrealismo, tendo
sido incapaz de lhe traçar um esboço teórico que valha a pena. Eis duas frases de Nerval
que acerca disso me parecem bem significativas:

Vou explicar-lhe, meu caro Dumas, o fenômeno que você citou acima. Como você
sabe, há certos contistas que não podem inventar sem se identificarem aos personagens de
sua imaginação. Você sabe com que convicção nosso velho amigo Nodier narrava como
ele tivera a desgraça de ser guilhotinado na época da Revolução; ficava-se de tal modo
persuadido que se ficava querendo saber como ele conseguira recolocar sua cabeça.

... E já que você teve a imprudência de citar um soneto composto neste estado de
devaneio onírico SUPERNATURALISTA, como diriam os alemães, vai ouvi-los todos. Não
são nada mais obscuros do que a metafísica de Hegel ou as MEMORÁVEIS de
Swedenborg, e perderiam encanto se fossem explicados, se a coisa fosse possível, conceda-
me ao menos o mérito da expressão...

Só com muita fé poderiam nos contestar o direito de empregar a palavra


SURREALISMO no sentido muito particular em que o entendemos, pois está claro que
antes de nós esta palavra não obteve êxito. Defino-a pois uma vez por todas.

SURREALISMO, s.m. Automatismo psíquico puro pelo qual se propõe exprimir,


seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer outra maneira, o funcionamento real do
pensamento. Ditado do pensamento, na ausência de todo controle exercido pela razão, fora
de toda preocupação estética ou moral.

ENCICL. Filos. O Surrealismo repousa sobre a crença na realidade superior de


certas formas de associações desprezadas antes dele, na onipotência do sonho, no
desempenho desinteressado do pensamento. Tende a demolir definitivamente todos os
outros mecanismos psíquicos, e a se substituir a eles na resolução dos principais problemas
da vida. Deram testemunho de SURREALISMO ABSOLUTO os srs. Aragon, Baron,
Boiffard, Breton, Carrive, Crevel, Delteil, Desnos, Eluard, Gerard, Limbour, Malkine,
Morise, Naville, Noll, Péret, Picon, Soupault, Vitrac.
Parece que são, até agora, os únicos, e não haveria engano, não fosse o caso
apaixonante de Isidore Ducasse, sobre o qual me faltam elementos. E certamente, não
considerando senão superficialmente seus resultados, bom número de poetas poderiam
passar por surrealistas, a começar por Dante, e, em seus melhores dias, Shakespeare. No
curso das diferentes tentativas de redução, em que empenhei, do que se chama, por abuso
de confiança, o gênio, nada encontrei que se possa finalmente atribuir a outro processo
que não seja este.

As NOITES de Young são surrealistas do começo ao fim; infelizmente é um padre


que fala, mau padre, sem dúvida, mas padre.

Swift é surrealista na maldade.

Sade é surrealista no sadismo.

Chateaubriand é surrealista no exotismo.

Constant é surrealista em política.

Hugo é surrealista quando não é tolo.

Desbordes-Valmore é surrealista em amor.

Bertrand é surrealista no passado.

Rabbe é surrealista na morte.

Poe é surrealista na aventura.

Baudelaire é surrealista na moral.

Rimbaud é surrealista na prática da vida e alhures.

Mallarmé é surrealista na confidência.

Jarry é surrealista no absinto.

Nouveau é surrealista no beijo.

Saint-Pol-Roux é surrealista no símbolo.

Fargue é surrealista na atmosfera.

Vaché é surrealista em mim.

Reverdy é surrealista em sua casa.


Saint-John Perse é surrealista a distância.

Roussel é surrealista na anedota.

Etc.

Insisto, eles nem sempre são surrealistas, neste sentido que descubro neles um certo
número de idéias preconcebidas, às quais, bem ingenuamente, eles se apegavam. Apegavam
porque ainda não tinham ouvido a voz surrealista, a que continua a pregar à véspera da
morte e acima das tempestades, porque não queriam servir somente para orquestrar a
maravilhosa partitura. Eram instrumentos soberbos demais, e por isso nem sempre
produziram som harmonioso.

Nós, porém, que não nos dedicamos a nenhum trabalho de filtração, que nos
fizemos em nossas obras os surdos receptáculos de tantos ecos, modestos aparelhos
registradores que não se hipnotizam com o desenho traçado, talvez sirvamos uma causa
mais nobre. Assim devolvemos com probidade o “talento” que nos atribuem. Falem-me do
talento deste metro de platina, deste espelho, desta porta, e do céu, se quiserem.

Não temos talento, perguntem a Philippe Soupault:

“As manufaturas anatômicas e as habitações baratas destruindo as mais importantes


cidades”.

A Roger Vitrac:

“Recém-invocara eu o mármore-almirante (A Mesa de Mármore era um Tribunal


instalado no Palácio de Justiça em Paris, realizando suas sessões numa imensa mesa de
mármore, que lhe deu o nome; era de sua alçada o julgamento de militares, e sua
jurisdição tinha três divisões: o almirantado, as florestas e águas, e a área do condestável)
quando este virou nos calcanhares como um cavalo que se empina diante da estrela polar e
me indicou no plano de seu chapéu bicorne uma região onde eu devia passar a minha vida”.

A Paul Eluard:

“Conto uma história bem conhecida, releio um poema célebre: estou apoiado a um muro,
orelhas verdejantes, lábios calcinados”.

A Max Morise:

“O urso das cavernas e sua companhia que mia, o volante e seu valete no vento, o
grão-chanceler com sua mulher, o espantalho e seu amigo alho, a fagulha com agulha, o
carniceiro e seu irmão carnaval, o varredor com o seu tapa-olho, o Mississipi e seu sapo, o
coral e o colar, o Milagre e seu santo por favor desapareçam da superfície do mar”.

A Joseph Delteil:
“Ai de mim! Creio na virtude das aves. E basta uma pena para me matar de rir!”.

A Louis Aragon:

“Durante uma interrupção da partida, quando os jogadores, reunidos, rodeavam a


poncheira escaldante, perguntei à árvore se ainda tinha sua fita vermelha”.

A mim mesmo, que não pude me impedir de escrever as linhas serpentinas,


alucinantes, deste prefácio.

Perguntem a Robert Desnos que, dentre nós, foi talvez quem mais se aproximou da
verdade surrealista, aquele que, em obras ainda inéditas e ao longo de múltiplas
experiências às quais prestou, justificou plenamente a esperança que eu depositava no
surrealismo e me intima a esperar muito dele ainda. Hoje em dia Desnos fala surrealista à
discrição. A prodigiosa agilidade de que ele dispõe para seguir oralmente seu pensamento
nos vale, quanto nos apraz, discursos esplêndidos, e que se perdem, Desnos tendo mais que
fazer do que fixa-los. Ele lê em si como em livro aberto, e nada faz para reter as folhas que
se desvanecem no vento de sua vida.

SEGREDOS DA ARTE MÁGICA SURREALISTA

Composição surrealista escrita, ou primeiro e último jato

Mande trazer com que escrever, quando já estiver colocado no lugar mais
confortável possível para concentração do seu espírito sobre si mesmo. Ponha-se no estado
mais passivo ou receptivo, dos talentos de todos os outros. Pense que a literatura é um dos
mais tristes caminhos que levam a tudo. Escreva depressa, sem assunto preconcebido,
bastante depressa para não reprimir, e para fugir à tentação de se reler. A primeira frase vem
por si, tanto é verdade que a cada segundo há uma frase estranha ao nosso pensamento
consciente pedindo para ser exteriorizada. É bastante difícil decidir sobre a frase seguinte:
ela participa, sem dúvida, a um só tempo, de nossa atividade consciente e da outra,
admitindo-se que o fato de haver escrito a primeira supõe um mínimo de percepção. Isto
não lhe importa, aliás; é aí que reside, em maior parte, o interesse do jogo surrealista. A
verdade é que a pontuação se opõe, sem dúvida, à continuidade absoluta do vazamento que
nos interessa, se bem que ela pareça tão necessária quanto a distribuição dos nós numa
corda vibrante. Continue enquanto lhe apraz. Confie no caráter inesgotável do murmúrio.
Se o silêncio ameaça cair, por uma falta da inatenção, digamos, que o leve a cometer um
pequeno erro, não hesite em cortar uma linha muito clara. Após uma palavra cuja origem
lhe pareça suspeita, ponha uma letra qualquer, a letra “l”, por exemplo, sempre a letra “l”,
restabeleça o arbitrário, impondo esta letra como inicial à palavra que vem a seguir.

Para não mais se aborrecer acompanhado

É difícil. Não receba ninguém, e às vezes, quando ninguém, e às vezes, quando


ninguém tiver forçado sua porta para interrompe-lo em plena atividade surrealista e cruzar
seus braços, pense: “É igual, certamente há coisa melhor para fazer, ou para não fazer. O
interesse da vida não se mantém. Simplicidade, o que se passa em mim ainda me aborrece!”
ou qualquer banalidade revoltante.

Para fazer discursos

Fazer-se inscrever, na véspera da eleição, na lista de candidatos do primeiro lugar


que ache bom proceder a esse gênero de consulta. Cada um tem em si o material de orador:
tangas multicores, vidrilhos das palavras. Pelo surrealismo ele vai surpreender o desespero
em sua pobreza. Uma tarde, numa estrada, ele sozinho cortará em pedaços o céu eterno,
esta Pele do Urso. Vai prometer tanto, que se cumprir mesmo uma insignificância será uma
consternação. Dará às reivindicações do povo todo uma entonação parcial e derrisória.
Obterá a comunhão dos mais irredutíveis adversários num desejo secreto que acabará com
as pátrias. E conseguirá isso com apenas se deixando exaltar com a palavra imensa que
derrete em piedade e rola em ódio. Incapaz de um desalento, brincará sobre o veludo de
todo sos desalentos. Será mesmo eleito, e as mais suaves mulheres o amarão com violência.

Para escrever falsos romances

Você, seja quem for, se é de seu agrado, faça queimar algumas folhas de louro, e
sem atiçar este fogo fraco, e comece a escrever um romance. Você tem a permissão do
surrealismo: basta você mudar a agulha de “Tempo bom e estável” para “Ação” e a mágica
está feita. Eis aqui personagens com atitudes disparatadas: os nomes deles em sua escritura
são uma questão de maiúsculas e estarão tão a vontade com os verbos ativos como na
conjugação impessoal, os pronomes estão subentendidos, em expressões tais como: chove,
há, é preciso, etc. Eles vão comanda-los, por assim dizer, e quando a observação, a
reflexão, e as faculdades de generalização não lhe tenham ajudado nada, esteja certo de que
eles vão lhe retribuir mil intenções que você não teve. Assim dotados de poucas
características físicas e morais, estes seres, que em verdade lhe devem tão pouco, não se
desviarão de uma certa linha de conduta, com a qual você não precisa se incomodar. Daí
resultará uma intriga mais ou menos hábil na aparência, justificando ponto por ponto esse
desfecho comovente ou tranqüilo, ao qual você não dá nenhuma atenção. O seu falso
romance imitará admiravelmente um romance verdadeiro; você ficará rico, e todos
concordam em dizer que você tem “algo na barriga”, pois é aí mesmo que este algo está.

Bem entendido, por um processo análogo, e à condição de ignorar o que você vai
comentar, você poderá se aplicar com sucesso à falsa crítica.

Contra a morte

O surrealismo vai introduzir você na morte que é uma sociedade secreta. Ele vai
enluvar sua mão, sepultando aí o “M” profundo por onde começa a palavra Memória. Não
deixe de tomar felizes disposições testamentárias; por minha parte, peço que eu seja
conduzido ao cemitério num carro de mudança. Que meus amigos destruam até o último
exemplar, a edição do Discurso sobre o Pouco da Realidade.

A linguagem foi concedida ao homem para fazer dela um uso surrealista. Na medida
em que lhe é insdispensável fazer-se compreender, ele consegue, bem ou mal, exprimir-se e
assim assegurar o desempenho de algumas funções, das mais banais. Falar, escrever carta
não lhe oferecem nenhuma dificuldade real, desde que, fazendo-o, ele não se proponha um
objetivo acima da média, isto é, desde que se limite a entreter-se (pelo prazer de entreter-se)
com alguém. Ele não fica aflito com as palavras que virão, nem com a frase que virá,
terminada a sua. Ele será capaz de responder à queima-roupa a uma pergunta bem simples.
À falta de tiques contraídos no convívio com os outros, ele pode opinar espontaneamente
sobre alguns poucos assuntos: para isso não lhe é preciso antes “contar até dez” nem ter
fórmulas preparadas. Quem poderá tê-lo convencido de que esta faculdade de “falar logo à
primeira” só serve para desserví-lo, quando ele se propõe estabelecer ligações mais
delicadas? Ele não deve se recusar a falar ou escrever de improviso sobre nada. Ouvir-se,
ler-se, não tem outro efeito senão o de suspender o oculto, o admirável auxílio. Não conto
para me compreender (chega! sempre me compreenderei). Se esta ou aquela de minhas
frases me traz na hora uma leve decepção, confio na frase seguinte para redimi-la, cuido
para não recomeçá-la ou aperfeiçoa-la. A mínima perda de ímpeto ser-me-ia fatal. As
palavras, os grupos de palavras que se sucedem exercem entre si a maior solidariedade. Não
me compete favorecer estas em detrimento daquelas. Quem deve intervir é uma miraculosa
compensação: e ela intervém.

Não só esta linguagem sem reservas que procuro tornar sempre válida, que me
parece adaptar-se a todas as circunstâncias da vida, não só esta linguagem não me desfalca
nenhum de meus recursos, mas ainda me confere uma extraordinária lucidez justo no
domínio onde eu menos esperava dela. Posso até sustentar que ela me instrui, e com efeito
já me aconteceu utilizar surrealmente palavras cujo sentido eu esquecera. Pude verificar
depois que o uso feito por mim correspondia exatamente a sua definição. Isto poderia fazer
crer que não se “aprende”, que sempre se “reaprende”. Há expressões felizes com as quais
assim me familiarizei. E não me referi à consciência poética dos objetos que só pude
adquirir pelo seu contato espiritual mil vezes repetido.

É ainda ao diálogo que as formas da linguagem se adaptam melhor. Aí, dois


pensamentos se confrontam; enquanto um ser revela, o outro se ocupa com ele, mas como?
Supor que o incorpore a si seria admitir que certo tempo lhe é possível viver inteiramente
deste outro pensamento, coisa muito improvável. De fato, a atenção que lhe é dada é toda
exterior; só tem ensejo de aprovar ou de desaprovar, geralmente desaprovar, com toda a
deferência de que o homem é capaz. Este modo de linguagem não permite, aliás, chegar ao
fundo de um assunto. Minha atenção, vítima de uma solicitação que não pode decentemente
repelir, trata o pensamento alheio como inimigo; na conversação usual ela o “censura”
quase sempre pelas palavras, pelas figuras de que se serve; ela me põe em condições de
tirar partido delas, desnaturando-as. Isto é tão verdade que em certos estados mentais
patológicos, onde os distúrbios sensoriais afetam toda a atenção do doente, limita-se este,
que continua a responder às perguntas, a pegar a última palavra pronunciada junto dele, ou
o último membro de frase surrealista que deixou vestígio em seu espírito:

“Que idade você tem? “ – Tem (Ecolalia)

“Como você se chama?” – Quarenta e cinco casas (Sintoma de Ganser, ou das


respostas absurdas)
Não há conversa onde não entre algo dessa desordem.. O esforço de sociabilidade aí
reinante e a nossa grande prática é que nos disfarçam esse fato, por pouco tempo. Também
é a grande fraqueza do livro entrar sempre em conflito com seus melhores leitores, quero
dizer, com os mais exigentes. No pequeníssimo diálogo que acima improvisei, entre o
médico e o alienado, é este, aliás, quem leva vantagem: pois suas respostas o impõem à
atenção do médico examinador – e não é o mais forte? Talvez. Ele tem liberdade de não se
importar com seu nome nem com sua idade.

O surrealismo poético, ao qual consagro este estado, dedicou-se até agora a


restabelecer o diálogo em sua verdade absoluta, isentando os dois interlocutores das
obrigações de cortesia. Cada um deles simplesmente prossegue em seu solilóquio, sem
procurar tirar daí um prazer dialético particular nem se impor a seu vizinho, de forma
alguma. Os conceitos emitidos na conversa não visam, como geralmente, o
desenvolvimento de uma tese, tão insignificante quanto se queira, eles são tão desafetados
quanto possível. Quanto à resposta que reclamam, ela é, em princípio, totalmente
indiferente ao amor-próprio de quem falou. As palavras, as imagens não se oferecem senão
como trampolim ao espírito de quem escuta. É dessa maneira que devem se apresentar em
Les Champs Magnétiques, primeira obra puramente surrealista, as páginas reunidas sob o
título de Barrières nas quais Soupault e eu nos mostramos como estes interlocutores
imparciais.

O Surrealismo não permite àqueles que se entregam a ele que o abandonem a seu
bel-prazer. Tudo leva a crer que ele atue no espírito como os estupefacientes: como eles,
cria um certo estado de dependência e pode impelir o homem a revoltas terríveis.Também
é, se quiserem, um paraíso artificial, e o prazer que nele se tem depende da crítica de
Baudelaire ao mesmo título que os outros. Assim também a análise dos misteriosos efeitos
e dos gozos particulares que ele pode produzir – em muitos aspectos o surrealismo aparece
como um vício novo, que não deve ser apanágio de alguns homens apenas; como o haxixe,
ele pode satisfazer todos os delicados – e uma tal análise não pode faltar neste estudo.

1.º Passa-se com as imagens surrealistas como as imagens do ópio, não mais
evocadas pelo homem, mas que “se lhe oferecem, espontaneamente, despoticamente. Não
pode manda-las embora, porque a vontade não tem mais força e não mais governas
faculdades” (Ch.B.) Resta saber se alguma vez se “evocou” as imagens. Se a pessoa se
apóia, como eu faço, na definição de Reverdy, não parece possível aproximar
voluntariamente o que ele chama “duas realidades distintas”. A aproximação se faz ou não
se faz, eis tudo. Nego, por minha parte, de maneira mais formal, que em Reverdy imagens
tais como:

No regato corre uma canção

ou

O dia se desdobrou como uma toalha branca

ou
O mundo esconde-se num saco

ofereçam o mínimo grau de premeditação. Considero falso pretender que “o espírito


discerniu as relações” das duas realidades em presença. Para começar, nada é discernido
conscientemente. É da aproximação, por assim dizer, fortuita dos dois termos que fulgiu
uma luz especial, a luz da imagem, à qual somos infinitamente sensíveis. O valor da
imagem depende da beleza da centelha obtida; é, por conseguinte, função da diferença de
potencial entre os dois condutores. Se esta diferença mal existe, como na comparação, a
centelha não se produz. Ora, não está, a meu ver em poder do homem combinar a
aproximação de duas realidades tão distantes. O princípio da associação de idéias, tal como
o concebemos, opõe-se a isso. Ou então seria preciso voltar a uma arte elíptica, condenada
por Reverdy, como também por mim. É forçoso, portanto, admitir que os dois termos da
imagem não são deduzidos um do outro pelo espírito em vista da centelha a produzir, que
eles são os produtos simultâneos da atividade que denomino surrealista, limitando-se a
razão a constatar e a apreciar o fenômeno luminoso.

E assim como a centelha aumenta quando produzida através de gazes rarefeitos, a


atmosfera surrealista criada pela escrita mecânica, que fiz questão de colocar ao alcance de
todos, presta-se especialmente à produção das mais belas imagens. Pode-se dizer até que as
imagens aparecem nesta corrida vertiginosa como os guiões únicos do espírito. Aos poucos
o espírito se convence da suprema realidade das imagens. Limitando-se no começo a lhes
prestar sugestão, logo ele percebe que lisonjeiam sua razão, aumentam, outrossim, seu
conhecimento. Ele toma conhecimento dos espaços ilimitados onde se manifestam seus
desejos, onde se reduzem sem cessar o pró e o contra, onde sua obscuridade não o atraiçoa.
Ele vai, conduzido por estas imagens que o seduzem, que apenas lhe dão tempo para soprar
os dedos queimados. É a mais bela das noites, a noite dos fulgores; perto dela, o dia é a
noite.

Os tipos inumeráveis de imagens surrealistas reclamariam uma classificação, que


por hora não me disponho a tentar. Agrupá-los conforme suas afinidades particulares me
levaria longe; pretendo levar em consideração, e essencialmente, sua virtude comum. Não
escondo que, para mim, a mais forte é a que tem o mais elevado grau de arbitrário; a que
exige mais tempo para ser traduzida em linguagem prática, seja por conter uma enorme
dose de contradição aparente, seja por ficar um de seus termos curiosamente disfarçado,
seja por se apresentar como sensacional e pareça se desenlaçar pouco (fechando
bruscamente o ângulo de seu compasso), seja porque retira dela mesma uma justificação
formal derrisória, seja por ser de ordem alucinatória, seja por ser de ordem alucinatória,
seja por atribuir com naturalidade ao abstrato a máscara do concreto, ou inversamente, seja
por implicar a negação de alguma propriedade física elementar, seja por provocar o riso.
Eis, por ordem, alguns exemplos:

O rubi do champanhe . Lautréamont

Belo como a lei da parada do desenvolvimento do peito nos adultos cuja propensão ao
crescimento do peito nos adultos cuja propensão ao crescimento não tem relação com a
quantidade de moléculas assimiladas pelo seu organismo. Lautréamont
Uma igreja erguia-se, estrepitosa como um sino. Philippe Soupault

No sono de Rose Sélavy um anão surgido de um poço com ar soturno vem comer seu pão
com um moço no horário noturno. Robert Desnos

Sobre a ponte o orvalho com cara de gata se embalava. André Breton

Um pouco à esquerda, em meu firmamento imaginado, vislumbro – será apenas uma névoa
de sangue e morte – o brilhante fosco das perturbações da liberdade. Louis Aragon

Na floresta abrasada. Roger Vitrac

A cor das meias de uma mulher não está obrigatoriamente à imagem de seus olhos, o que
fez um filósofo (inútil nomeá-lo) dizer: “Os cefalópodes têm mais razão que os
quadrúpedes para odiar o progresso:. Max Morise

1.º Que se queira ou não, há aqui matéria para satisfazer a várias exigências do
espírito. Todas estas imagens parecem comprovar que o espírito está maduro para outra
coisa, diferente das benignas alegrias que ele geralmente se concede. É a única maneira que
ele tem de fazer virar a seu favor a quantidade ideal de acontecimentos de que está
carregado. Estas imagens lhe dão a medida de sua dissipação ordinária e dos movimentos
resultantes. Não é mau que elas o desconcertar o espírito é coloca-lo no seu erro. As frases
que citei providenciam bastante para isso. Saboreando-as, o espírito tira dessas frases a
certeza de estar no caminho certo; para ele próprio, ele não poderia condenar-se por
argúcia; nada tem a temer, pois, além de tudo, ele se sente capaz de alcançar tudo.

2.º O espírito que mergulha no surrealismo revive com exaltação a melhor parte de
sua infância. Para ele é um pouco como a certeza de quem, a ponto de morrer afogado,
repassa em menos de um minuto todo o insuperável de sua vida. Dirão que é muito
animador. Mas não faço questão de animar quem me diz isso. Das recordações de infância e
de algumas outras, vem um sentimento de não abarcado, e pois, de desencaminhado, que
considero o mais fecundo que existe. Talvez seja a infância que mais se aproxima da “vida
verdadeira”; a infância além da qual o homem só dispõe, além de seu salvo-conduto, de
alguns bilhetes de favor; a infância onde tudo concorria entretanto para a posse eficaz, e
sem acasos, de se si mesmo. Graças o surrealismo, parece que estas chances voltam. É
como se a pessoa ainda corresse para sua salvação, ou sua perda. Revive-se, na sombra, um
terror precioso, Graças a Deus, por enquanto é só o purgatório. Atravessa-se em
sobressalto, o que os ocultistas chamam de paisagens perigosas. Meus passos suscitam
monstros que espreitam; eles não estão ainda muito mal-intencionados a meu respeito, e
não estou perdido, pois os temo. Eis “os elefantes com cabeça de mulher e os leões
voadores” que Soupault e eu ainda há pouco tremíamos de medo de encontrar, eis o “peixe
solúvel” que ainda me assusta um pouco. PEIXE SOLÚVEL, não serei eu o peixe solúvel,
nasci sob o signo de Peixes e o homem é solúvel em seu pensamento! A fauna e a flora do
surrealismo são inconfessáveis.

3.º Não creio que esteja próximo de se estabelecer um decalque surrealista. Os


caracteres comuns a todos os textos do gênero entre os quais aqueles que acabo de assinalar
e muitos outros que só poderíamos entender com análise gramatical e análise lógica
cerradas, não se opõem a uma certa evolução da prosa surrealista no tempo. Vindo depois
de inúmeros ensaios aos quais nesse sentido me dedico há cinco anos, e de que tenho a
fraqueza de julgar extremamente desordenados pela maior parte, as historietas que formam
a seqüência deste volume trazem-me uma prova-flagrante disso. Nem por isso as considero
mais dignas de figurar aos olhos do leitor os benefícios que o subsídio surrealista é
susceptível de fazer sua consciência realizar.

Os meios surrealistas reclamariam, aliás, uma ampliação. Tudo é bom para obter de
certas associações a desejável subitaneidade. Os papéis colados de Picasse e de Braque têm
o mesmo valor que a introdução de um lugar-comum num desenvolvimento literário do
estilo mais castiço. É até mesmo permitido intitular POEMA o que se obtém pela agregação
tão gratuita quanto possível (observemos, faz favor, a sintaxe) de títulos e fragmentos de
títulos recortados dos jornais:

POEMA

Uma risada

de safira na ilha de Ceilão

As mais belas palhas

Têm a cor esmaecida

Na prisão

Numa fazenda isolada

NO DIA-A-DIA
agrava-se

O agradável

Um caminho carroçável

vos conduz ao desconhecido

O Café

roga por si mesmo

O ARTESÃO QUOTIDIANO DE VOSSA BELEZA

Senhora,

um par

de meias de seda

não é

Um salto no vazio
UM CERVO

Antes de tudo o amor

Tudo poderia acabar tão bem

Paris é uma grande aldeia

Vigial

o fogo incubado

a oração

Sabei que

os raios ultravioleta

terminaram seu trabalho

bom e rápido

O PRIMEIRO JORNAL BRANCO

DO ACASO
Vermelho será

O cantor errante

ONDE ESTARÁ?

na memória

em sua casa

NO BAILE DOS ARDENTES

Faço

dançando

O que se fez, o que se fará

E os exemplos poderiam ser multiplicados. O teatro, a filosofia, a ciência, a crítica


ainda conseguiriam encontrar-se aí. Quero logo dizer que as futuras técnicas surrealistas
não me interessam.

Bem mais graves me parecem ser, já suficientemente o dei a entender, as aplicações


do surrealismo à ação. Claro, não creio na virtude profética da palavra surrealista. “O que
digo é oráculo”: Sim, enquanto eu quiser, mas o que é este mesmo oráculo? A devolução
dos homens não me engana. A voz surrealista que sacudia Cumes, Dodona e Delfos não é
senão a que me dita os meus discursos menos irados. Meu tempo não deve ser o seu, porque
iria ela ajudar-me a resolver o problema infantil de meu destino? Finjo, por desgraça, agir
em um mundo em que, para chegar a ter em considerações suas sugestões, seria obrigado a
passar dois tipos de intérpretes, uns para me traduzirem suas proposições, outros,
impossíveis de encontrar, para impor a meus semelhantes a compreensão que eu dele teria.
Este mundo no qual eu suporto o que suporto (e não queiram saber)m este mundo moderno,
afinal, diabo, que querem que eu faça nele? A voz surrealista se calará talvez, perdi a conta
dos desaparecimentos. Não entrarei mais, nem um pouco, na discriminação maravilhosa de
meus anos e de meus dias. Serei como Nijinski, conduzido no ano passado ao Balet Russo,
que não compreendeu a que espetáculo assistia. Estarei só, bem só em mim, indiferente
todos os balés do mundo. O que eu fiz, dou tudo para vocês.

Desde logo, me dá uma grande vontade de considerar com indulgência o devaneio


científico, afinal de contas, e a tantos respeitos, tão inconvenientes. Os sem-fio? Não vejo
malo nisso. Cinema? Bravo! para as salas escuras. Guerra? Bem que nos ríamos. Telefone?
Alô, sim. Mocidade? Encantadores cabelos brancos. Procurem me fazer dizer “obrigado”.
“Obrigado” Obrigado... Se o vulgo dá valor ao que é, propriamente falando, pesquisa de
laboratório, é que isto levou ao lançamento de uma máquina, à descoberta de um soro, com
os quais o vulgo se acha diretamente interessado. Ele não duvida, quiseram melhorar sua
sorte. Não sei quanto entra exatamente no ideal dos sábios de votos humanitários, mas não
me parece que isto constitua grande ato de bondade. Falo, bem entendido, dos verdadeiros
sábios e não dos vulgarizadores de toda ordem que se fazem entregar um certificado. Creio
que neste domínio como num outro, na pura alegria surrealista do homem que, advertido
pelo fracasso sucessivo de todos os outros, não se dá por vencido, parte de onde quer, e, por
um caminho qualquer que não é razoável, chega onde pode. Tal ou tal imagem, com que ele
julgará oportuno balizar sua marcha, e que talvez lhe valerá o reconhecimento público,
posso confessar que me é indiferente em si. O material com o qual ele precisa se atravancar
tão pouco me impressiona: seus tubos de vidro, minhas penas metálicas... Quando a seu
método, para mim, troco pelo que vale o meu. Vi em ação o inventor do reflexo cutâneo
plantar: manipulava sem descanso seus pacientes, o que praticava era bem outra coisa que
não um “exame”. era claro que ele não confiava mais em plano nenhum. Daqui e dali, ele
formulava uma observação de modo distante, sem pôr de lado sua agulha, enquanto seu
martelo corria sempre. O tratamento dos doentes, deixava ele ao cuidado dos outros esta
tarefa fútil. Esava possuído dessa febre sagrada.

O surrealismo, tal como o encaro, declara bastante o nosso não-conformismo


absoluto para que possa ser discutido trazê-lo, no processo do mundo real., como
testemunho de defesa. Ao contrário, ele só pode justificar o estado completo de distração da
mulher em Kant, a distração das “uvas” em Pasteur, a distração dos veículos em Curie são a
esse respeito profundamente sintomáticos. Este mundo só relativamente está à altura do
pensamento, e os incidentes deste gênero são apenas os episódios até aqui mais marcantes
de uma guerra de independência, da qual tenho o orgulho de participar. O surrealismo é o
“raio invisível” que um dia nos fará vencer os nossos adversários. “Não tremes mais,
carcaça.” Neste verão as rosas são azuis, a madeira é de vidro. A terra envolta em seu
verdor me faz tão pouco afeito quanto um fantasma. VIVER E DEIXAR DE VIVER É
QUE SÃO SOLUÇÕES IMAGINÁRIAS. A EXISTÊNCIA ESTÁ EM OUTRO LUGAR.

Potrebbero piacerti anche