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ASPECTOS TRANSVERSAIS DA FILOSOFIA NO VESTIBULAR

Gisele Secco*
secco.gisele@gmail.com
Andrei Cerentine**
andreicerentini@gmail.com

Péssimo! Sempre a velha história! Ao terminar


a construção da casa, notamos que sem nos
dar conta aprendemos, ao construí-la, algo que
simplesmente tínhamos de saber, antes de
começar a construir.
(NIETZSCHE, Além do bem e do mal, § 277)

A inclusão da filosofia no processo seletivo de algumas


instituições de ensino superior no Brasil, juntamente com a aprovação
do retorno da mesma disciplina aos currículos escolares do Ensino
Médio pelo Conselho Nacional de Educação, constituem o pano de fundo
de nossa discussão. Trataremos especificamente de alguns aspectos da
inclusão da filosofia no vestibular da Universidade Federal de Santa
Maria, prevista desde o ano de 2003 e levada a cabo nos processos
seletivos 2007.
Pretendemos apontar para algumas características do ensino de
nossa disciplina (seja em escolas da rede pública ou privada, bem como
em cursos pré-vestibular) – a formulação de um currículo básico, a
produção do material didático, o andamento das aulas – e as
transformações que a prática do ensino de filosofia têm sofrido. Além
disso mencionaremos algumas impressões resultantes das discussões
realizadas a este respeito por parte de professores das escolas, da
universidade e dos alunos afetados pelo retorno da filosofia ao cotidiano
da sala de aula. Estas discussões têm acontecido em eventos
promovidos pela Comissão Permanente de Vestibular (COPERVES), mas
também de modo mais pulverizado, seja através da mídia, em
encontros paralelos – acadêmicos ou não – e diálogos em sala de aula.

*
Mestre em filosofia pela UFSM.
**
Graduando em filosofia pela UFSM.
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Entendemos que o caráter processual deste retorno da filosofia,


seja em nossa região (a região de abrangência das escolas vinculadas
ao PEIES e ao Vestibular da UFSM) ou nas escolas de Ensino Médio de
todo o Brasil, faz de nossas reflexões e nossa prática algo
essencialmente aberto a críticas e melhoramentos constantes. Ainda
assim, desejamos assinalar a necessidade de uma mudança de
perspectiva nos procedimentos referentes ao ensino de filosofia nas
escolas e cursos, transformação pautada pela emergência de respostas
consistentes a perguntas do tipo: quais devem ser os fundamentos do
ensino de filosofia para jovens? Como é possível praticar a
transversalidade com as outras disciplinas?

1. O contexto escolar: recepção da proposta de inclusão da


disciplina

A realidade do ensino de filosofia no Ensino Médio está em grande


medida pautada na abordagem de conteúdos filosóficos os mais
diversos através da história da filosofia. A metodologia vigente remete-
se à história da filosofia como base para seu exercício. Quando o
procedimento didático fica restrito ao ensino da história, causa
desinteresse e às vezes protesto dos alunos do Ensino Médio, por
dificultar uma aproximação dos “conteúdos” (independentemente de
quais sejam seus critérios de escolha) com sua compreensão cotidiana
do mundo. As reclamações de outrora, principalmente a de que não
precisavam estudar filosofia porque “não cai no vestibular”, persistem
pouco entre os jovens estudantes de nossa cidade, muito embora o
alarido inicial quando da informação da inclusão tenha sido de um tom
quase dramático.
É preciso observar que não pretendemos de modo algum
desqualificar a formação histórica do professor de filosofia, bem como a
importância da mesma para a metodologia de ensino. Desejamos
enfatizar a necessidade de uma mudança de perspectiva metodológica,
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capaz de conduzir o ensino de filosofia a um contexto mais cotidiano,


de análise dos conceitos fundamentais para nossa compreensão do
mundo, sem perder de vista o viés histórico da disciplina. Seria um
contra-senso imaginar que o estudante, ao tomar contato com a
filosofia, não precisasse de uma orientação histórica mínima ao discutir
ou analisar a concepção platônica de conhecimento, ou a kantiana de
liberdade.
Quando os alunos estudam física, biologia ou literatura, não
podem se furtar de saber algo sobre Newton, Darwin ou Drummond.
Temos consciência de que o modo como estas disciplinas tratam de
seus autores principais é diferente do modo como o professor de
filosofia trata dos seus. O que caracteriza nossa aproximação com os
autores da tradição filosófica é o fato de que além de mencioná-los,
podemos estabelecer uma espécie de diálogo com suas obras de uma
maneira que as demais disciplinas dificilmente o fazem. Afinal, esta é
uma característica fundamental da filosofia: o diálogo reflexivo, calcado
em critérios lógicos de argumentação racional. Sendo assim, pensamos
que a maneira como a filosofia vem sendo ensinada nas escolas – seu
viés eminentemente conteudista e histórico – acaba tornando-a uma
pedra no meio do caminho do exercício filosófico.
Os textos da tradição filosófica são, sem sombra de dúvida, os
mais indicados para figurar como objeto de análise numa aula de
filosofia. Depois deles, ou ao mesmo tempo, podemos propor a análise
de textos mais próximos dos alunos, como artigos de jornais, revistas,
internet. O que queremos destacar desde logo é a importância do modo
através do qual isso pode ser feito, ou deve ser feito, tendo em vista
nossa tarefa de desenvolver práticas crítico-reflexivas. Como imaginar
que adolescentes imersos em uma cultura desprovida da prática da
leitura de textos relativamente simples possam interpretar de maneira
esclarecedora os textos da tradição filosófica?
O problema com a prática da maioria dos professores de filosofia
está em que as aulas acabam se tornando ou a reprodução em série da
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mera memorização de nomes, datas e terminologias praticamente


incompreensíveis ao aluno ou discussões de caráter meramente
empírico, simplificadas pelo afã de aproximação dos temas e métodos
filosóficos com o cotidiano do jovem. Esta alternativa – a da
simplificação homicida da atividade filosófica – nos parece tão precária
e fadada ao fracasso quanto a primeira.
Diz-se também que a aula de filosofia é o momento no qual o
aluno vai “aprender a pensar”; “refletir”, “tornar-se crítico”, etc. Não
apenas os alunos, mas os próprios colegas de outras áreas e, o que é
mais preocupante, colegas da própria especialidade afirmam o mesmo.
De nosso ponto de vista, supor que o aluno não pense quando estuda
biologia ou literatura é no mínimo superficial, dado que não ficam claras
as características e implicações desta noção de “pensar”. O que nos
parece é que o sentido da noção desgastada de “reflexão” deveria ser
elucidado, ou seja, distinto do sentido de “pensar” ou “aprender algo”.
Tal esclarecimento é essencial para que possamos diferenciar o
procedimento filosófico de análise conceitual dos procedimentos
próprios das demais áreas do saber.
As justificativas para o atual estado da arte não são difíceis de
imaginar: “precisamos formar cidadãos críticos, capazes de refletir e
pensar por si mesmos sobre temas de ética, política, cidadania”. Com
isso, temas de filosofia prática tornam-se, sem dúvida, as meninas dos
olhos. Olhos com antolhos. Reflitamos um pouco, a partir da
perspectiva histórica: se a caracterização pitagórica da atividade
filosófica como a de “busca/ procura pelo saber” é o ponto de partida
dos arautos da história e da tradição de sua especialidade, não perece
uma contradição o viés escolhido? Se avançarmos até Sócrates,
encontrando atitude muito semelhante, não precisamos entender nossa
atividade como exame das nossas crenças mais comuns e arraigadas?
Como é possível realizar esta atividade tendo como timão unicamente a
história da filosofia? O contato com a tradição filosófica, através de
textos os mais diversos (cuja escolha é feita, no mais das vezes, em
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um balaio de gatos) fornece as ferramentas necessárias para que o


aluno desenvolva o imperioso senso crítico? O ensino de filosofia deve
ser pensado e executado tendo em vista a formação de cidadania? Esta
questão deveria receber um tratamento cuidadoso, o que não é possível
aqui.
A falta de familiarização com conteúdos de lógica, filosofia da
linguagem e teoria do conhecimento para fins de análise dos
procedimentos de raciocínio, argumentação e aprendizagem de teorias
parece ser, e esta é nossa hipótese principal, uma das causas da
dificuldade inerente à leitura, interpretação e discussão dos textos
(sejam eles propriamente filosóficos ou não). A proposta de
metodologia que defendemos, que não está desvinculada da defesa do
programa proposto pela UFSM para a filosofia no PEIES e no Vestibular
desta instituição, preocupa-se em fornecer instrumentos para a reflexão
voltada para o exercício filosófico. A proposta metodológica de reflexão
filosófica baseada em opções calcadas na instrumentalização
(aprendizado de procedimentos de análise lógico-conceitual) do
pensamento do aluno tem como vantagem o exercício de pensar sobre
o próprio pensamento. Nesse sentido, a abordagem meramente
conteudista ou histórica da filosofia como primados no exercício de
“reflexão filosófica” é bastante restrita.
É claro que as críticas que o vestibular recebe, a respeito do
aspecto conteudista de todas as disciplinas, não atingem a proposta
que queremos defender, ou seja, a proposta da filosofia no vestibular
da UFSM, bem como as questões deste primeiro ano de provas. Isto
porque ela consegue dar conta de uma perspectiva reflexiva no sentido
de fornecer critérios para o pensar filosófico. Devemos explicitar
também, que não se trata de uma defesa irrestrita do referido
programa. Afirmamos apenas que, em comparação com os programas e
provas das demais instituições brasileiras que incluem a filosofia em
seus processos seletivos, a UFSM parece contemplar, de modo menos
problemático que as demais instituições, as orientações curriculares
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oficiais naquilo que elas têm de relevante para a preparação do jovem


ao exercício filosófico, a saber: “capacidade de análise, de
interpretação, de reconstrução racional e de crítica”, “fazer o estudante
aceder a uma competência discursivo-filosófica”(OCNEM, p. 30-31).
Outro aspecto das orientações é a menção ao exercício didático da
interdisciplinaridade, noção que tencionamos criticar apresentando uma
parte do programa e exemplos de questões da UFSM que ilustram um
experimento de transversalidade.

2. A proposta de inclusão da disciplina

O programa da disciplina de filosofia proposto pela UFSM em 2004


parece antecipar as OCNEM da disciplina, do ano de 2006. Ele está
dividido em três grandes tópicos, dos quais o primeiro – que
pretendemos ilustrar – é direcionado a temas de filosofia teórica e os
outros dois a temas de filosofia prática (Ética, Política & Cidadania). A
denominação do primeiro tópico: “a filosofia no contexto dos saberes”
indica a necessidade de uma introdução à filosofia que possa
contemplar a apresentação da especificidade deste saber em relação
com os demais. Nesse sentido, afirma-se a importância do que
denominamos “instrumentalização” do pensamento do aluno para a
reflexão propriamente filosófica, dada a aquisição de critérios lógicos e
epistemológicos para a leitura, análise e interpretação de textos e
argumentos em geral:
o conceito de reflexão, em geral, abarca duas dimensões
distintas que freqüentemente se confundem. Primeira: a
reconstrução racional, quando o exame analítico se volta
para as condições de possibilidade de competências
cognitivas, lingüísticas e de ação. É nesse sentido que
podem ser entendidas as lógicas, as teorias do
conhecimento, as epistemologias e todas as elaborações
filosóficas que se esforçam para explicar teoreticamente
um saber pré-teórico que adquirimos à medida que nos
exercitamos num dado sistema de regras. (OCNEM,
2006, p. 23-4)
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A noção de reflexão como reconstrução racional de competências


cognitivas, proposta no documento, está inscrita nos níveis de
exigência: clarificar conceitos, elaborar argumentos, usos da linguagem
e argumentação, determinar a validade das inferências, avaliar a
coerência e a força explanatória das teorias (Currículo básico do PEIES,
2004, p. 23) e constituem critérios imprescindíveis para o ensino da
disciplina de filosofia no Ensino Médio. Mais do que isso: as
competências gerais da fala e da escrita são aprimoradas com o
exercício filosófico de análise conceitual, porque começam a transitar
entre as operações discursivas cotidianas e um universo regrado por
aspectos lógicos de análise e raciocínio.
Um tópico como a distinção entre juízos de fatos e juízos de valor,
que muitas vezes se confundem no uso comum da linguagem gerando
problemas insolúveis nas discussões em sala de aula, não pode deixar
de ser um dos primeiros esclarecimentos nas introduções à filosofia. A
questão inaugural da filosofia no PEIES da UFSM aborda, juntamente
com aspectos de interpretação de texto, este tópico de introdução à
filosofia da linguagem:

71. O filósofo australiano Peter Singer, um ativo defensor


do vegetarianismo, concedeu uma entrevista (Revista
Época, n.421), da qual o seguinte trecho é extraído:

“Época: O homem não é onívoro por natureza?


Peter Singer: Não sei o que isso quer dizer. Se quer
dizer que não podemos fazer outra coisa, com certeza
isso não é verdade. Há muitos milhões de pessoas que
não comem animais. Se quer dizer que essa é a forma
como sempre fizemos, é verdade. Mas é irrelevante para
determinarmos o que fazer agora”.

Considerando o texto, é possível afirmar:

I. A expressão “onívoro por natureza” pode ter dois


significados distintos.
II. A expressão “onívoro por natureza” pode significar
que sempre fomos, somos e seremos onívoros.
III. Singer afirma que sempre seremos onívoros.
IV. Singer admite a importância de afirmações sobre
fatos para a avaliação de afirmações sobre valores.
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Estão corretas as afirmativas

a) I e II apenas. b) II e III apenas. c) I e IV


apenas. d) III e IV apenas. e) I, II, III e IV.

(Prova de Acompanhamento III, PEIES, 2006)1

Nesta questão o aluno é solicitado a discernir os usos da


linguagem a partir de um texto cujo tema é uma discussão ética. É uma
conexão “interna” de conteúdos filosóficos que possibilita uma
vinculação posterior com temas de filosofia prática. A partir do
esclarecimento a respeito dos diferentes usos da linguagem o aluno
está preparado para compreender, com um tipo de esclarecimento
lógico, o problema da fundamentação das normas (morais, sociais ou
jurídicas). Esclarecimentos de cunho lógico tendem a desmanchar
algumas confusões conceituais típicas de diálogos ambíguos nos quais
imperam, como bem nota John Wilson, dificuldades temperamentais
que impedem o exercício coerente de análise de conceitos. O mesmo
autor dá a entender que aprender o procedimento analítico – concebido
como convite “a tomar consciência dos significados das nossas
palavras” (Wilson, 2005, p.14) – funciona como aprender um jogo. Isso
pode querer indicar que a tarefa inicial do professor de filosofia consiste
na orientação para, de acordo com regras de procedimento analítico, a
apresentação de algumas circunstâncias de prática argumentativa, um
treino discursivo.2
O mapeamento dos impedimentos lógicos e psicológicos (como a
“ansiedade subjacente” à formulação de perguntas sobre conceitos) à
discussão criteriosa é sempre importante, o que não configura garantia
de previsão completa de todas as situações de jogo. Ou seja, o aluno
pode estar muito bem orientado no sentido de algumas regras para
analisar conceitos e argumentar com eles, adquirir conhecimentos

1
A reposta é a alternativa “a”.
2
No sentido de exercício, certamente limitado por uma carga horária minúscula. Não
podemos esperar que a reflexão filosófica seja efetiva com a disponibilidade de tempo
que nos é concedida.
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proposicionais mínimos a respeito do que é válido ou não, mas


aprender a jogar é um saber-fazer vinculado, portanto, à prática, ao
exercício.
Entendemos que as regras do “jogo argumentativo”
instrumentalizam o aluno para uma emancipação discursiva, na qual a
reflexão crítica de conceitos melhor se fundamenta. Podemos recorrer a
um exemplo, com o conceito de participação política, a respeito do qual
lemos em Rousseau:

A soberania não pode ser representada pela mesma razão


por que não pode ser alienada; consiste essencialmente
na vontade geral e a vontade absolutamente não se
representa. É ela mesma ou é outra, não há meio termo.
Os deputados do povo não são nem podem ser seus
representantes; não passam de comissários seus, nada
podendo concluir definitivamente. É nula toda a lei que o
povo diretamente não retificar. O povo inglês pensa ser
livre e muito se engana, pois só o é durante a eleição dos
membros do parlamento; uma vez estes eleitos, ele é
escravo, não é nada. Durante os breves momentos de sua
liberdade, o uso que dela faz, mostra que merece perdê-
la. (Rousseau, O contrato social)

Este trecho, retirado de uma questão do vestibular UFSM/ 2007,


pode servir de mote para um exercício de análise da noção de
soberania popular a partir da concepção de representação política em
Rousseau, ou mesmo o modo como o autor constrói um juízo de valor a
partir desta noção. Mas, além disso: o tema da democracia
representativa e suas implicações éticas no contexto político brasileiro é
algo que pode perfeitamente se desenvolver a partir dele, ou mesmo
ser complementado por ele. Este tipo de discussão – a respeito da
legitimidade do exercício do poder político por parte dos representantes
– tem um caráter cotidiano que, ultrapassados os preconceitos e as
dificuldades mais comuns à análise, através do treino argumentativo,
pode levar o aluno a sofisticar seus procedimentos de raciocínio.
Note-se que não estamos falando de algo abstrato: nossos alunos
têm desenvolvido sua capacidade de construir falas mais articuladas,
quando se sentem à vontade para falar na sala de aula, e até mesmo
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melhorado significativamente o teor argumentativo de suas redações. É


evidente que a observação destes fatos só é possível dado um certo
grau de entrega à leitura de inúmeras redações, conversas constantes
com colegas de outras disciplinas – que começam a se interessar cada
vez mais pelos pontos de contato entre nossas “matérias” – e
possibilidade de espaços alternativos para o diálogo.
No registro da relação da filosofia com as demais disciplinas
ressaltamos dois aspectos. Por um lado, o modo vago como esta
relação é concebida nos documentos oficiais, sob o nome de
interdisciplinaridade, suas pretensas implicações. Por outro, que um
refinamento no modo como são pensadas as afinidades entre as
disciplinas, como efetivado no vestibular da UFSM, resulta em questões
de caráter transversal. Os conceitos referentes à relação das disciplinas
entre si são, no mais das vezes, usados de modo indiscriminado para
expressar um desejo de associação entre diferentes áreas do saber
humano. Desejo acompanhado pari passu pelas conhecidas críticas à
fragmentação dos saberes.
No.Art. 10, Inciso 3, parágrafo 2 dos PCN’s, lemos: “As propostas
pedagógicas das escolas deverão assegurar tratamento interdisciplinar
e contextualizado para (...) conhecimentos de Filosofia e Sociologia
necessários ao exercício da cidadania” (PCN’s, 1996). Já nas
orientações curriculares da disciplina, observa-se apenas uma menção
aos aspectos transversais da filosofia, de modo que permanecem
ambíguas a compreensão e a relevância deste tipo de abordagem.
Podemos esclarecer a diferença entre as abordagens inter e
transdisciplinares, conforme Feitosa:
Interdisciplinar: interação entre duas ou mais disciplinas,
transferências de métodos de uma por outra (exemplo:
associação da física com a medicina, geografia com a
sociologia, arte e informática). Tendência a ansiar pela
totalidade. Muitas vezes essas associações acabam por
resultar em uma nova disciplina, que sintetiza as
características de áreas distintas, como por exemplo, a
medicina nuclear ou a geografia cultural. A prática
interdisciplinar tende a reafirmar o poder da disciplina.
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Transdisciplinar: entre, através e além de qualquer


disciplina, a prática transdisciplinar supõe não a
totalidade, mas a complexidade, a diversidade e a
pluralidade intrínseca a realidade... Trata-se muito mais
de uma atitude do que uma disciplina específica. (In:
Kohan, 2004, p. 96)

Com esta distinção é possível pontuar que a filosofia, não


obstante seu lugar especial no currículo escolar, não pode pretender
abarcar em seu programa a totalidade de saberes, ou mesmo um
método fixo de articulação entre eles. Acreditamos que não devemos
representar, enquanto professores de filosofia, um papel unificador dos
saberes produzidos nas diversas ciências, como às vezes se afirma.
Dado seu caráter fundamentalmente ambíguo, de totalizador de partes
incomunicáveis, descartamos a proposta de uma metodologia
interdisciplinar para a didática de filosofia. Pretendemos ilustrar como
uma metodologia transdisciplinar pode dar conta dos diferentes
aspectos que a atividade filosófica exige, com os exemplos de questões
do vestibular da UFSM.

3. A abordagem transversal

Questão 14
Na questão anterior, o trecho citado (do Sermão da
Sexagésima, do Pe. Antonio Vieira) representa uma
dicotomia entre “entendimento” e “vontade”. A respeito
dessa dicotomia, pode-se afirmar.

I. Ela filia-se à distinção clássica entre teoria e prática.


II. Ela filia-se à distinção entre os campos semânticos de
“ser” e “dever-ser”.
III. Ela estabelece uma distinção entre compreender a
realidade e transformá-la.
IV. No plano lingüístico, ela equivale à distinção entre
juízos sobre fatos e juízos sobre valores.

Estão corretas
a) apenas I, II e III. b) apenas I, II e IV. c) apenas I,
III e IV. d) apenas II, III e IV e) I, II, III e IV.
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No segundo dia de prova, no qual se respondiam questões de


Geografia, História e Literatura Brasileira esta questão de filosofia
solicitou do aluno o conhecimento básico da distinção entre as duas
grandes divisões da filosofia – teoria e prática3 – apresentando aspectos
transversais através da referência a diferentes campos semânticos e ao
âmbito da lingüística. Estas noções, básicas para a compreensão dos
conteúdos de Língua Portuguesa, figuram aqui como pontes entre as
duas disciplinas, podendo ser exploradas também no desenvolvimento
de diálogos entre a História e a Geografia: disciplinas nas quais a ação
humana é, em última instância, o objeto de estudo. Sob este aspecto, a
distinção entre compreender a realidade e transformá-la é fundamental.
Já na terceira etapa do vestibular, que apresentava questões de
Língua Portuguesa, Estrangeira e Matemática, logo em seguida de uma
questão desta disciplina, encontramos:

Questão 04
Analise as afirmações
a seguir.

I. A regra que associa cada candidato à condição de eleito


ou à condição de não-eleito é uma função.
II. No quadro da questão anterior, utiliza-se “milhões de
eleitores” como UNIDADE de medida.
III. A função y = 6x + 53, referente à questão anterior
expressa uma TEORIA sobre o número de milhões de
eleitores do sexo feminino em eleições.

Está(ão) correta(s)

a) apenas I. b) apenas II. c)apenas III. d)


apenas I e II. e) apenas II e III

Aqui, os conceitos de regra, função, unidade, teoria, que


perpassam não apenas a Matemática, senão também a Física, a
Biologia, ou mesmo as disciplinas das áreas da linguagem (teoria da

3
Filosofia da linguagem, lógica e teoria do conhecimento são, como se sabe,
classificadas na filosofia teórica, dado que dizem respeito a analise de conceitos sobre
nossa compreensão do mundo. Ética e filosofia política na filosofia prática, pois se
referem aos conceitos que condicionam a ação humana.
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literatura, regras gramaticais), precisam ser pensados pelo aluno de


uma maneira que dificilmente seriam levados a fazê-lo no interior
destas disciplinas. Um dos papéis mais importantes da filosofia está
destacado com este tipo de abordagem, a saber, o esclarecimento de
conceitos sem os quais não é possível compreender o mundo e agir
sobre ele.
O que desejamos acentuar como perspectiva privilegiada de uma
abordagem transversal da filosofia, mais próxima do que se entende
por transdisciplinaridade, é a possibilidade de engendrar reflexões
criteriosas sobre conceitos fundamentais às outras disciplinas e ao
modo de compreender o mundo. “Engendrar” no sentido de seu
sinônimo, bastante familiar: “dar a luz”, entendendo por isso a efetiva
movimentação dos conceitos ou idéias com as quais os alunos operam
ao estudar Física, Biologia ou Língua Portuguesa: como verdade,
causalidade, justificação. No contexto dos saberes, e apesar de tantas
filosofias, a transversalidade imanente à atividade filosófica precisa ser
aproveitada didaticamente, numa metodologia moderada por temas de
filosofia teórica como lógica, filosofia da linguagem e teoria do
conhecimento.
Na medida em que o aluno do Ensino Médio não é estimulado a
aproximar os conteúdos da disciplina com as próprias idéias e ações
cotidianas, a prática didática vigente acaba sem sucesso seja com
relação às OCNEM, ou com relação a qualquer aprendizado filosófico
frutífero em termos argumentativos e reflexivos. Conseqüentemente,
no que diz respeito ao exercício crítico da cidadania e demais
pretensões que se possa conferir ao ensino de filosofia, o
empreendimento como um todo pode fadar-se ao fracasso caso não
estabeleçamos criteriosamente uma maneira de livrar-se das “certezas
de poltrona” (Blackburn, 2000, p.114).
O procedimento de análise conceitual e argumentativa fornece ao
estudante uma gama de instrumentos que vão ao encontro de
competências essenciais para sua formação tais como a leitura, a
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argumentação e a escrita. Através destas ferramentas – cuja aquisição


e manejo são fundamentais na metodologia do exercício filosófico – a
articulação de conteúdos das diferentes disciplinas pode tornar-se
efetivamente transversal, entendendo por isso a atividade, o
movimento que parece ser constitutivo da melhor herança filosófica:
“herança anarquista de ser um pensamento não paralisado” (Habermas,
2004, p. 320)4.
Cabe, por fim, ressaltar a necessidade imediata de que discussões
a respeito de metodologias e formulações curriculares para o ensino de
filosofia em nível médio sejam aprofundadas através de pesquisas e
diálogos constantes da academia com a sala de aula. Os caminhos para
a abordagem transversal da filosofia estão abertos, precisamos explorá-
los.

Bibliografia
BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n° 9.394, de 20
de dezembro de 1996.
BLACKBURN, S. Pense: Uma introdução à filosofia. Tradução de António
Infante
Lisboa: Gradiva, 2000.
Ciências humanas e suas tecnologias – Secretaria de Educação
Básica. – Brasília:
Ministério da Educação, Secretaria da Educação Básica, 2006. 133
p. (Orientações
curriculares nacionais para o ensino médio; volume 3).
FEITOSA, C. O ensino da filosofia como uma estratégia contra a tarefa
da
interdisciplinaridade. In: KOHAN, W. (Org). Filosofia: caminhos para
seu ensino.
Rio de Janeiro: DP&A, 2004, p. 87 – 99.
HABERMAS. J. Verdade e justificação – Ensaios filosóficos. Tradução
Milton
Camargo Mota. São Paulo: Edições Loyola, 2004.
WILSON, J. Pensar com conceitos, Tradução Waldéa Barcelos. 2
Edição. São Paulo:

4
“A filosofia não pode se reduzir a nenhum de seus papéis; ela só pode preencher
determinado papel ao transcendê-lo. Uma filosofia que correspondesse totalmente à
imagem precisa de uma operação definida pela divisão do trabalho seria privada de
sua melhor herança, a herança anarquista de ser um pensamento não paralisado.”
(Habermas, 2004, p. 320)
15

Martins Fontes, 2005.

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