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A morte civil dos doentes acaba de ser confirmada por uma decisão
da mais alta instância judicialÉ grande a minha perplexidade perante
a abordagem que acaba de ser feita pelo Supremo Tribunal de Justiça
a um dos flagelos actuais: a discriminação de doentes portadores de
HIV/sida.
Parece que recuámos no tempo e já não vivemos nem na era dos
Direitos Humanos, nem num país em que a Constituição da República
começa por dizer (art. 1.º) sermos uma república soberana, "baseada
na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada
na construção de uma sociedade livre, justa e solidária...".
Com efeito, a ideia de escorraçar da sociedade os doentes é própria
de outros tempos e de outras epidemias. Procedia-se à abertura da
herança dos bens dos contaminados, que passavam a viver de
esmolas. Em algumas terras, até lhes era cantado um requiem.
Tirando o pormenor da música - cujo tremendo valor simbólico era
convencer o doente da sua morte social - pouco falta já para
regredirmos à longínqua Idade Média...
Vejamos: a partir do momento em que se despede um trabalhador
por ser portador do HIV - e apesar de estar cientificamente
comprovado não haver no seu caso riscos de transmissão da doença
-, este fica impossibilitado de auferir um rendimento que lhe permita
honestamente viver das suas destrezas profissionais. Admitindo que o
mesmo queira pedir um empréstimo para habitação e exercer uma
actividade económica alternativa (liberal), pode ver-se confrontado
com dificuldades levantadas pela banca, caso assuma que é portador
do vírus. Se a mesma pessoa quiser efectuar um seguro de saúde,
ver-se-á confrontada ainda com a necessidade de rastreio prévio e
pode ser-lhe denegado o seguro ou agravado consideravelmente o
prémio. Prémio que, de resto, só poderá pagar se tiver - e enquanto
tiver - fortuna pessoal, dado ser-lhe vedado o exercício profissional.
Recordo, de novo, o art. 1.º da Constituição da República Portuguesa:
"dignidade da pessoa humana", "sociedade livre, justa e solidária".
Pergunta-se: respeitamos a dignidade da pessoa humana obrigando
portadores de HIV/sida a viver da caridade, dado que não lhes
permitimos exercer a sua profissão livremente e auferir
honestamente a remuneração pelo produto do seu trabalho?
Somos uma sociedade livre, justa e solidária, não facultando o crédito
para habitação a quem seja portador de um vírus e não permitindo
que seja cidadão de corpo inteiro e possa realizar seguros de saúde?
Note-se, a propósito, que elaborar uma lista de profissões de risco
seria abrir a porta à discriminação generalizada, acentuando
arbitrariamente o que é secundário, e esquecendo o que é decisivo e
essencial: o modo de transmissão do vírus, analisado caso a caso.
Os juristas sabem bem o que é a interpretação actualista das leis. É
pena que a visão actualista da regra que determinava, no passado, a
morte civil dos doentes tenha acabado de ser confirmada por uma
decisão da mais alta instância judicial.