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Maria Odila Leite da Silva Dias QUOTIDIANO e PODER em Sao Paulo no século XIX editora brasiliense ‘Copypigh © by Marin OeitsLeite de Siva Dis, 1984 Werbume pate dest able pode se raed, ‘rmacond om oceania fat, eproisn por mos mecca ext ler en anricade previa da ettora Prmeve ete 1986 2 edie evn, 1605 apa! Mai aon Pasa Prjte afce Mota hae Plea Dales nero de Ctl Pubes on) (Gar Breen Liv, ar, Ds) ‘Gueuiano ¢ pase em So Paso kclo XIX: Mara Oa gs Sta Do pice et 2h Ne 1. Mubees—Tratlto So Palo (SP) — His —Séeto 192 Mueres Sto Flo (SP) — Condes tea Selo 10° Sie Pd (SH) User cones ~ Sel 194 far SSo Fale (SP)-Misia~Stelo 19-1 Bex, Fea IL Tish. oi coo pain Tacs pc cations stem: 1. Sto Paso SP: Moles: Tata “Ste 19s Mara 8.611 ep (hs Mangus de Se este, 71 Fone (01) 861-3366 ~ fax 61-3024 Peds + ABDE Sumario As outras testemunhas ~ Ecléa Bost. Intiadugio Notas : Quotidiano e Poder. Notas. pei aal eee eee : Padeiras © quitandeiras da vila: a resisténcia conta 0 fisco Notas © mito da dona ausente Notas Senhoras © ganhadeiras: clos na caceia dos seres Notas asain Escravas ¢ forras de tabuleiros. NOtAS wnassnnnnn A comunidade da terra Notas A magia da sobrevivéncia: patusis, cuités € sururucas Notas Abreviaturas usaclas Referéncias bibliogrificas ... 11 117 146 155, 169 IS 206 213 245 251 253 AS OUTRAS TESTEMUNHAS Estas paginas nos acolberam com os mais cares objetos de estudo: 0 trabalho, a meméria, 0 trabalbo da mulber, 0 trabalbo da meméria, a evocacdo dos mortos io da mulher que trabatba mnaagdo dle todos os que sobre um mundo adverso, na aventirosa @ hicida extsténcia Blas nos conduzemt a situa ontem, boje?— e, ainda mais, @ des cagadores furtivos do quotidiano. Dos que penetram com bar mais um dia, mais pasos leves na selva soctal para n ‘ima centelba de vida das mdos cerradas da Fortuna Ha obras que nos mastram a sala de visitas de: Historia, com 0s retratos emoldurados na parede, os méveis de estilo ¢ tum belo arranjo para ser visto. Mas ba pesquisas que vdo aos fundos da casa, as cozinbas ¢ oficinas, que esgaravatam os terrenos baldios onde se lancam detritos, aqueles lugares ras menores @ furtivas At nesses telbeiras © pordes, nessas brenbas domésticas, estas sombras se escondem, tapam 0 resto com as mios fogem Nao confiam nos bistoriadores.nem em quem delas se poder Mas samo-nos sentar beira do pogo, erguer do chao wm caco de louca esquecido, esperar... no terreno agrest ss0s que volta, @ roupa quem sabe ouvir uma butha de p 6 MARIA OPILA LEITE DA SILVA DIAS. hatendo na tihua, a cother no tacho, um lamento, toma can- fio talvez. Refazer sua hist6ria no requer uma comperincia abs- trata para lidar com 0 passado, mas uma evocagao seme- Ihanie a evocagao religiosa, ou melhor, uma invocagao. Enquanio se realizavam atos dignos de figurar na lem- branga dos pésteros, esses que n6s invocamos curvaram suas costas para os residuos de outras vidas: ttraram 0 po, varre- ram, lavaram copos, esvaziaram cinzetros, sacudiram miga- as, refizeram as camas, serviram a mesa... Nossa meméria tomou esses residuos € 03 acolhew como objetos de predilegéo. Os pequenos sao os que tiveram o tempo subjacente, do- |minado, que mergulbou ¢ sumiu no tempo da classe domi- nante e na sua Historia. Foram as testemunbas da opressao, seus depoimentos, se as pudéssemos recother, seriam 0 mais veridico tesiemunbo do passado, A medida que a bistéria da civilizagdo se desenvole como um pacto de destruigéio, é preciso esquecer as vittmas. Sea meméria dos mortos é perturbadora, mais ainda é a dessus pequenas testemunhas que nos conam uma bsstorsa en sentido inverso, a bistéria que nos arrepia. Aproxtmemo-ncs, pots, do livre de Maria Odila, sabendo ‘que pisamos terreno consagrado pela tnvocagao, Q.tema gonstanie deste tivro € 0 conyiito para sobreviver de mutberes que vieiam nas fimbrias do sistema, que se instala- tam nas fresias soctats, & margem do trabalho significant Exgueiravam-se com astticia ontre os blocos rigidos ¢ re- pressivos. Essas vendedoras de tabuleiros, lavadeiras de rios @ cha- Jarizes. tim a asticia do camaledo, dos pequonas bicbos que indo pretendem vencer, pots fa foram venctdos, mas apenas defender se da morte. Privadas do saber oficial, da cultura tetrada, resta-ihes a esherieza, a improvisacao, 0 saber da experiéucia do despre zado nos idosos, nas mulheres, E a teia didria que se recome- (a todas as manhas, sem esperanca, para afastar a morte: es 0 trabalho mitido dessas mulheres que se entacam nos becos, Cs s_—xXK_ a | QUOMPIANO E PODER 9 ucnadas pela poltcta, nos pordes, nos quarios abajados, nos terrenos baldios. Terd mudado esse trabatbo nas franjas da sociedade? Maria Odila descreve mulheres que assumiam papéts de homens, guerreiras e provedoras da casa. ‘As hisiérias populares— que o grande mestre do folclore, Xidieh, compreende to bem — lembram mocinbas intrépidas vencendo as obsidculos de uma tarefa sem fim, como a Gata Borralbeira. Foocam também as velhas bravias que tutavam sozinhas contra um mundo tao danado, que parectara fettt- ceiras. Admiravel este trecho do capitulo “A magia da sobrevi- "Sobreviver, nas duras condigdes do dia-a-dia, parecta lareja insana, que se realizava através de contatos mégicos com intervengdes sobrenaturais. Opunhanv-se metiforas da Jome e imagens de luta pela sobrevivéncia nas figuras das telbas senboras mandonas: 0 seu vulio exqualido, pescando no. rio de dguas vazias, como assombracaes, em caminhos ermos, debrucadas sobre os fewwes de lenba, que faziam e desfaztam, num encaniamento compulsivo e fatal; velhinbas que tiravam agua do pogo com uma corda arrebentada’. Evoquet de novo as memérias de Dona Alice durante a “gripe espanbola" em Sao Paulo, memérias que tive a bonra de cother: “ld nao avia dgua de torneira; entre a fébrica e a cerca de arame, na frente, havia um poco no meio do capi. Naquele tempo, uma noite... a corrente do pogo era mutio velba, toda emendada com arames. As familias estendiam suas roupas na cerca, as roupas ficavam duras de geada, pareciam um fartasma. Até hoje me lembro, a dgua da nossa fina estava uma pedra de geto. Como podia lavar a roupa no .selo? Tirar agua naquele frio era dificil também. Fiquet inde- isa mas acabei quebrando 0 gelo da tina € puxando dua do pogo". Muito me comoven a ebigrafe de Rosalia de Castro, no capitulo "Senboras e ganbadeiras: clos na cadcia dos seres": “Voume ficando morena, come uma mourinba moura, filha de gente: morena.. MARIA. ODIEA LEITE DA SILVA DIAS junyas & que este livro abude, filbas de mates desvalidas, também a grande poetisa galega foi uma crianca Targada na Roda, na pripria noite do nascimento em Santia- g0 de Compostela. Rosalia viveu numa época que s6 valoriza- id as mulheres alvas, que ndo mourefavam nem se asseme- thavam as mouras queimadas do poema (“pois seca também ‘me pis, a calentura que crueima”). Tembrei-me de minba avé, Maria da Conceicao Corea, ‘imae de Antonio Frederico, meu pai. Ela viveu a sua juvertu- de nessa ponta de rua que faz canto com a Avenida Rebou- Gas, € que na minha infancia se chamava Dona Hipélita ¢ hoje é Gabriel Monteiro da Silva. Depots de casada foi morar na fazenda do marido ié nos matos de Santo Amaro, onde ficou viiiva muito joven. Essa Maria da Conceicéo Correa deve ter conbectdlo uma existéncta dura, pots ganhou na luta um apelido: “correia de couro crt” (quem ibe det esse cognome fot talvez um preien- dente recusado que ela enxotou com a vassoura quando ele edit sua mao) © apelido passow para a familia como ofensa; quando eu fazta um malfetto em crianca, alguém me dizia lego. “Bom se vé que @ uma correta de couro cru” Lombro-me dessa avd ao ler 0 poema de Rosalia, de seu rasio severo, moreno e ressontido: “put-me ficando erestada como wma rosa que inverna, Jut-me ficando som forges, “fut-me ficando morena, ‘como wma mourtnba monra, Jill de gorse morena Mas 0 quotidtano nao é a pura sobrevivéncia eccndms- a, ¢ creto que exsas mulheres fossem alegres, como ifn que ‘Ser animosos os que vivem numa rede de solidariedade: ‘Entre as quitandetras, algumas havia que por sua alegria, lagarelice e inesgotdvel bilaridade se tornaram populares. Muito belo me pareceu 0 titimo capitulo, 0 mais concre- 10 ¢ também 0 mais visiondrio, povoado que & por mulheres (que 0 atravessam a pé com. cestos de roupa ou tainleiros de QUOTIDIANO & PODER 0 mitbo verde ¢ pinbao quente, ou em carrocas carregadas de wa, de lete, de lenba.. Com sua pesquisa bistorica, que é também uma invoca- $40, Maria Odita Lotte da Silva Dias abriu um caminbo para que elas pudessem chegar aié més Ecléa Bosi INTRODUGAO © pressuposto de uma condicio feminina, idealidade y€ universal, necessariamente a-historica, empurra as de qualquer pasado para espacos miticos sacrali- 5, onde exerceriam misteres apropriados, & margem dos os € ausentes da historia. “A reconstrugio dos paptéis sociais femininos, como me~ ‘que possibilitem a sua integraglo na globalidade do hist6rico de seu tempo, parece um modo promis- yde lutar contra o plano dos mitos, normas € esteredtipos. eaptado por meio da reconstrugio global das relagdes ‘como um todo. “Este trabalho € uma contribuigio para o conhecimento -papéis historicos de mulheres das classes oprimidas, escravas € forras, no processo de urbanizagao incipien- ‘cidade de Sao Paulo, entre fins do século XVIII ¢ as da abolicao; ndo me refiro a papéis sociais normati- “e prescritos, mas a mediagdes sociais continuamente ‘no processo global de tensdes € conflitos, que na organizacio das relagdes de producio, o sistema pinago e de estruturacio do poder. meméria social de suas vidas vai se perdendo antes of um esquecimenta ideoligico do que por efetiva ausén~ documentos. F verdade que as informagdes se es- ARIA ODILA LEITE DA SILVA DIAS condem, ralas e fragmentadas, nas entrelinhas clas documen- tos, onde pairam fora do corpus central do contetido explici- to. Trata-se de reunit dados muito dispersos de esmiugar o implicito. A historiografia das dltimas décadas favorece uma histé- tia social das mullieres, pois vem se voltando para a meméria de grupos marginalizados do poder. Novas abordagens métodas adequados libertam aos poucos os historiadores de preconceitas atévicas e abrem espago para uma histéria mi- crossocial do quotidiino: 2 percepcio de processos hist6r: cos diferentes, simulineos, a relatividade das dimensoes da hist6ria, do tempo linear, de nogdes como progresso € evo- lucio, dos limites de conhecimento possivel diversificam os focos de atencio dos historiadotes, antes restritos a0 proces- so de sicumulagio de riqueza, do poder ¢ a historia politica institucional. Machado de Assis, num vislumbre de ironia compassiva, observou a marcha do tempo alienado das vidas humanas: *... Que multidao de dependéncias na vida, Leiter! Umas cousas nascem de outras, enroscam-se, desatam-se, confundem-se, perdem-se, eo tempo vai andando sem se perder a 4 limitagao de métodos ¢ de fontes escritas engajadas com o sistema de poder suscita rellexdes sobre 0 aleance de uma historia ~ erudigto que nto abarca o quot diano de meios sociais marginalizados das instituiches do poder. Artesiios irremediavelmente superados ¢ descartados pela Revolucdo Industrial, na Inglaterra, tiveram suas vidas reconstruidas, a duras penas, por um historiador do proces- 30 de formagao da consciéncia social das classes trabalhado- ras. E. P. Thompson escreveu um comentirio arguto de quem trabalhava com fontes eseritas da hisiéria de grupos sociais oprimidos: no existem causas perdidas na historia, (© que parece secundirio, numa dada conjuntura, pode reve- arse decisivo em outras? Sempre relegado a0 terreno das rotinas obscuras, 0 ‘quotidiano tem se revelado na historia. social ‘como drea de | improvisacto de papéis informais, novos e de potencialidade de-conflitos ¢ confrontos, em que se multiplicam formas pe- cullares de resistencia e luta, Trata-se de reavaliar © politico QUOTIDIANO & FoDEK 6 da histéria social do dia-adia. Montaillou € uma de papéis sociais informais, de clos ¢ intermedia- ‘sistema de poder, que revela toda uma organizacio iedade de vizinhanca, de resisténcia, herética, con- silenciosa ¢ pertinaz,* da mesma forma, o estudo @ dos escravos vem desvendando uma exper mulativa de improvisagao, aculturagio e resistencia de grupos idos do poder e, as vezes, do proprio proceso tivo. Mormente na conjuntura de urbanizagio incipien- it cidade de Sao Paulo, vincada pelo cscravismo ¢ pela de exportagio — do acticar, em seguida do café -, lo detramaya senio incidentalmente na cidade seus §, nem favorecia a expansio do abastecimento intemo formacto de um mercado de trabatho livre. Nas eircuns- ielas, a cidade mais inchava do que crescia, multiplicardo sz, uma disponibilidade estrutural de _mao-de-obra; ‘pobres, s¢s, chefes de familia, viviam precariamen- ‘trabalho temporirio, antes como autonomas do cue assalariadas. A sua integracao na sociedade paulista mais o estudo de formas socials provisorias, inter- jas, do que propriamente de panicipagao no processo tivo. _ Aurbanizagao de $20 Pauilo no envolveu, de imediato, o social de uma burguesia europeizada, nem a glo de uma chasse de assilariados livres. Entretanto, a cagio de mulheres pobres, escravas e forras, sobrevi- a do artesanate caseiro e do pequeno comércio ambu- fiz parte da consolidagao da economia escravista de ticls © do processo, concomitant, de concentragio lades ¢ da renda. Cidade, subsistiam nas margens © nuane: atividades de comercializacao incipiente, i estutural de nossa hist6ria, pois ainda hoje economistas € antropélogas do desenvalvimen A produgdo ¢ comercializacdo dos géneros aliments do porto de vista do sistema econémico da MARIA ODILA LATTE DA SILVA Bias ‘grande lavoura, permaneceram estruturalmente desorganiza- dais, cercadas de uma aura de menosprezo social contra o doméstico, o “quitandeits’. © preconceito social conta a or- ganizacio da producio voltada par o consumo e produgio dos géneros de primeira necessidade, arraigado no proprio. sistema colonial, parecia agravar-se no processo incipiente de urbanizacao. Afinal a sociedade escravista no previa én loco a alimentagao € @ reprodugio da forga de trabalho, que era importada da Aftica. esse o espago social das mulheres pobres, limbo € exilio. do que havia de socialmente valorizado na economia Paulista de sua €poca. Viveram preciriamente a sua pobreza, no desdobramento das dimenstes sociais do doméstico, que entlo ocupou, durante algumas déeadas, as ruas mais cen- trai da cidade. A organizacto do seu ganha-pio dependia de lacos muito fortes de solidiriedade e de vizinhanga, que se improvisavam € modificavam continuamente. Parte dos preconceitos que as desclassificavam social- mente provinha de valores machistis, mis6ginos, entranha- dos no sistema escravista e moldados no menosprezo do trabalho ¢ de qualquer offcio de subsistancia, Além destes, também as afetavam os preconceitos advindos da organiza- a0 da familia ¢ do sistema de heringa das classes dominan- tes, que as relegavam como excedentes sociais, maes soltei- fas e concubinas, parte integrante do proprio sistema de dominacao. ‘A sua presenca era ostensiva na cidade, embora institu- Gionalmente informal e socialmente pouco valorizada, O fat0 de nio participarem da historia politica e administrativa nao diminuiu a importincia do papel que desempenharam. © seu espago social era o da ‘desordem)e confusio reinante entre as esferas pablica ¢ particular, necessiria 20 sistema de poder escravista, € que tanta repercussao teve no proceso de construgio do Estado, simultineo ao de urbani- vagao da cidade. © mesmo processo de inchago da pobreza, que as gerou, acabou finalmente por expulsi-las de seu espugo im- provisado, nos bairros centrais da cidade, bem nos limites das virtualidades burguesas, entre a casa de Gpera © as lojas QUOTIDIANO PODER gs. Expulsaram-nas 0 aburguesamento da vila, of imentos urbanos, a ilumina¢do, o alinhamento das © encarecimento dos impostos municipais e, finalmen- ‘A crise final da aboligao levou-as também, de roldio, puta fora do espaco urbano que ecupavam, para emergizem, ite, nos bairros de retaguarda da cidade, onde per- ineciam, nas primeiras décadas do século XX, ainda nas gris do sistema capitalista, compondo as massas de mu- res desempregadas, exército de reserva de mio-de-obra, ftadas, vivendo precariamente dos mesmos expedien- tes de antesanato caseiro € de comercializagio incipient de eros de consumo Ese trabalho de pesquisa, por sua propria natureza livo, € um comeco que, espero, produziri frutos com ppassar do tempo; 2 documentacio & especialmente dificil iy narureza dispersa das fontes ¢ também por estarem, em il, como toda fonte escrita, comprometidas com valores 0S, de dominagao e poder, e muito reticentes com rela- ‘ao quotidiano de mulheres pobres, analfabetas. E uma ria do implicito resgatada das entrelinhas dos documen- beirando © impossivel, de uma historia sem fontes.... Esta pesquisa foi parcialmente financiada pela Fundagao ‘Amparo & Pesquisa do Estado de Sao Paulo, que tornou ‘© estigio na Universidade do Texas, onde comegou | Sua elaboracao. ‘Agradeco 2 Odila e Candinho, meus pais, pelos momen- ‘de convivio € pelo estimulo sempre renovado, Nilo posso deixar de lembrar com gratidio vinte anos le conversas com Sérgio Buarque de Holanda, professor ¢ 9, quem devo muito, Sou grata a Rose Marie E. Schor pela generosidade com -pOs.a minha disposigao sua erudi¢ao iconografica e pela ‘vontade que teve fotografando algumas das ilustragdes. 48 reprodugGes fotogrificas pertencem ao acervo do tituto de Estudos Brasileiros da USP. MARIA ODILA LEITE DA SILVA DLAs Nous @) Ase, Machado de. Bai ¢ Jucd, i Obra Completa, Rio de Janeiro, Aguilar, 1959, v. 1, p. 936. @) Tonrson, EP. The Making of the English Working Class, Nova Torque, Pantheon, 1955, p. 13. G) Lapune, Emmanuel Leroy. Montalion, Pacis, Galimard, 1975. @) Gmnovnse, Eugene D. Rol, Jordan, Roll (be World the Slaves Made), Nowa longue, Pantheon Books, 1974; Guunan, Herbert G. The Black Family in Slavery and Freedom, 1750-1925, Nova torque, Pan- theon Books, 1976. QUOTIDIANO E PODER Sac Bas figuras que tanto antes do sen nascimento ainda nao esiauame relratadas nas Bscripturas (porque abida nao havia Bs eripturas), depois que as ouve, que foi sucessivamente em mui- 0s séculs, com a mesma sucessao s0 foram estampando nelas, ‘que Com sombras escuras e cores pouco vives, porque esta ‘anda mstio Tonge a vida do que baviam de receber @ tuz..” (Amiinio Vieira, Sermbes, v. 9, p. 156) © espaco de sobrevivéncia das mulheres pobres, bran- ‘escravas ¢ forras na cidade de Sao Paulo coincidia com a mi tolerada de relativa autonomia dos desclassificacos j dificil, se no impossivel, de ser devidamente policia- om a urbanizagio, multiplicande oportunidades sacto de papéis informais; na cidade, as mulheres ireulavam pelo espaco social — fontes, lavadouros, pracas ~, onde se alternavam ¢ se sobrepunham o © quotidiano de seu. ganha-pao, precariamente e nas fontes escritas, deparamo-nos com frag- de discursos c realidades dispares, simultineas, que m e eludem um ao outro: de um lado, devassas, s, foda uma legislagao repressiva, que nto podia ser cy MAWIA ODILA LEITE DA SILVA DIAS implementada no dia a dia; de outro, resquicios de uma exis fEncia autOnoma que se insinuava pela cidade, sem oportuni- dades de emprego ¢ tendo que improvisar a propria sobrevi- véncia. E dificil © tortuoso o desvendar do quotidiano das mulheres pobres, que nem sequer correspondia ao tempo dos sinos das igrejas; impOe muita reflexto sobre as | es das fontes escritas para a historiografia social. Useiras de murmurar e reclamar, urdiam pequenss tran sagdes © encomendas, numa variedade de acertos © watos vetbais enredados em lagos de parentesco, relacoes domiciia- res, entre afins, vizinhas, de que poucos resquicios permare- ceram nos documentos, filtrados pela censura de escrivies, aleaides, ordenangas,e oficiais de almotaceis, A improvisagio da subsistencia no seu dis-a-dia envolvia continua troca de informacoes, bate-papos e toda uma rede de conhecimentos € favores pessoais, protegio, compadrio, concubinato, que intercedia por elas € que elas sabiam avivar © por em uso, de tal modo que se tomava impossivel para as autoridades exercer seus mandatos, tamanhas cram as intervengocs - insistentes pedidos pessoais, reclamagdes teimosas, constan- tes, Muito clamor, muita briga, muito alarido, que se perde- ram em grande parte na documentagio oficial. Quando vi= ‘nham pessoalmente 2 Camara fazer suas reclamagdes, eram proibidas de subir & presenca dos oficiais sem serem escolta- das por dois soldados. Ainda no século XVII, jf se coments ya o modo de musmurarem na igreja contra as autoridades, que Ihes tomavam lugares a que estavam acoscumadas.* Restam fragmento, ecos surdios cas suas tensOes € con fromos com o sistema de dominagio, peneiradas pela cons- cigncia hegemdnica das fontes escritas, que evocam nova- mente © bradar de vendedoras pobres? A palavra falada era instrumento essencial do seu tralo de sobreviver de mulheres analfabetas, ¢ por isso, quando transeritas, de modo indireto, suas palayras ficaram necessi- riamente desvirtuadas, de maneira que apenas resvalam pe- los documentos. Quase nada restou dos bate-papos intermi- nayggma soleira das portas, dos conchavos junto aos tabulei- ros IMS ruas, pontes, condicdo precipua de suas agéncias de sobrevivéncia: QUOTIDIANO E FODER quando 2e ajunta dda vide aleis, ‘fa minguante, , VORES, pregdes, gestos, cantigas, grande parte € trejeitos do quotidiano de quitandeiras “em esteiras, de pito na boca ou percorrendo cami- Fizem parte dos discursos de sobrevivéncia que se ‘para sempre... Até 1765, quando foi extinto o car- “iuiza das brabas, em lisboa, a Cimara pagava uma para castigar com acoites pablicos as regateiras € que usassem de bradar e gritar impropérios nas de Lisboa.* Nos processos.policiais da ci uulo passado, nao faltam indicios de de mulheres bravas, revoltadas, que gritavam em gem de baixo calao. O juiz de paz de Santa ligénia ficio de 20 de setemiro de 1834, julgava bem merecidas adas © maus-tratos. sofridos por Anna Francisca da ©. fh que taza vizinhanes incomodida por sua péssima con- #8 porque é inivigante © turbulenta, originando-se disto is has, que eu tenho procurade acomodse com 3s par es, por ter da Suplicante verdadeira comiseragio, atendendo “ estado, miseravel a quo se acha seduaida, talver por sew “esplrito turbulento © amigo de diseédias...? Sho nunierosos os processos.¢ régistros de ocorréncias ntivados. por impropérios contra autoridades, gente de so- ) contra. o nome do Imperador; palavrdes obscenos nas lis, em procissdes, na igreja.’ Virios processos de difama- moral ¢ prises de mulheres acusacias de serem turbu- iS € arruaceiras, como Anna Benedita do Espirito Santo, , conhecicla como a Cascafina; Quitéria Caetana, , lavadeira, no sul da Sé; Vicéncia, engomadeira, de etc? “Fora 0s rumores de mulheres bravas e a fama de turbu- Pouco chegou até nos da forca dos palavroes e de magico de encantagdo com relagio as tarefas ¢ 3 do dia-a-dia. Ficaram na histéria & imagem das 2 ANIA ODILA LEITE DA SILVA DIAS yelhas reamungonas de Gil Vicente ou de Rojas; aqui ¢ ali, as Branca Anes, Inés Pereira, Celestinas, ou como nas Atas da Inquisiglo, a blasfémia de mulheres exasperadas de tre! nar negras da terra, afligidas por contratempos imprevi s Pouco ficou da faina do quotidiano nos documentos eseritos, que sio por sua prépria natureza avessos 4 légica do dia-a-dia de mulheres analfabetas Testemunhos esparsos da presenga de mulheres pobres no processo de urbanizacio da cidade de Sto Paulo se insinuaram da tradi¢io oral pari os registros da Camara Mu- nnicipal, onde assinalaram menos a sua presenca do que pinceladas pitoreseas de uma passagem fugez pela vida, pels hist6ria, como se fossem imobilizadas pela mem@ria em can- tos € desviios: 0 valo da crioula Josefa, o beco de Inés Vieira, a ponte de Catarina Dias, a rua das fiandeiras, a choca de palha de Quitéria Maria de Jesus, junto a0 tanque do Zunega, préximo & igrejinha de igénia... Nos depoimentos dos viajantes, fora 0 burbutinho © o movimento das ruas mais centrais, alguns esterestipos pito= rescos trazem a forea dos precenceitos, a Enfase na cor local € a conseqlente idealidade abstrata de imagens desvinculs- das de seu contexto hisi6rico, Zaluar coment a tensio litente na populagio entre 2 bo€mia dos estudantes europeizados e 2 gente furiva di terra, que nao pareciam feitos um para o outro, nem Ihe parecia que pudessem concitiar-se.! Esse Viajante, como outros que 0 antecederam, transmi- tem tim vulto de criaglo indiferentemente deles, dos estu- dates ou dos sobracioes de bakio de ferro: o das beatas de manto de bacta ou de mantilhss negras, a percorrer as ruas com © rosirio na mio, rezando um terpo no oratorio da esquina, onde as beatss Nas rvas mal calgadas se abaircam, De rosdrio na mio..."5 Os observadores contemporineos também descreveram negras de tabuleito sentadas nas calgadas da Rua da Quitan- ‘QUOMIDIANO F PODER 2 etha, durante o dia ou a noite, sob a iluminagio furna- ios rolos de cera escura, pregados nos tabuleiros ou nos turbantes, quando caminhavam Jentamente, jo- “Mtestam, constantemente, a presenga de mulheres po- mas ruas, onde quase no aparecem senhoras das clas- dominantes, ou nas igrejas, sentadas no chio em esteiras. rem imagens de yultos escuros envoltos em panos jos e quase nada mais acrescentam a respeito de suas de vica. Os preconceitos impéem siléncio ¢ omis- sobre onde moravam ¢ como sobreviviam. Entretanto, nas entrelinhas da documentagio oficial da ‘ou dos oficios divetsos dos governadores, abundam ges casuais, muito esparsas ¢ também muito freqien- “Brancas pobres, escravas e forras faziam o comércio mais ‘pobre € menos considerado que era o dos generos alimenti- ‘Glos, hortaligas, toucinho e fumo, nas ruas delimitadas pela nas casinhas da Rua da Quitanda Velha, na Ladeira Carmo, local chamado “o Buracio", na Rua do Gotoyelo 90)...4 Entre a Igreja da Miscricérdia e a do Rosirio, as {quitandelras espalhavam pelo chao seus trastes, vendendo um 30 comércio de vinténs para escravos. O comércio am- te fol 108 poucds tomando becos ¢ travessas entre a Rua Rosirio e 2 do Comércio: Beco do Inferno, da Cachaga... ‘ponio de se queixarem dele os comerciantes da Rua Dircita, ‘estadelecidos em suas lojas, reckamando principalmente da “sujeira, dos mosquitos € dos maus cheiros."* Nas lojas nao se admitiam mulheres como balconistas,"* “© apenas uma ou outra mais remediada tinha © seu comércio “ estabelecido, armazém ou loja de molhados.” ‘Avultava na cidade a disponibilidade de uma mao-de- feminina cue os comerciantes nto queriam e ‘manufaturas aproveitavam mal. Uma ou outra fabrica de teci- ‘dos disiribuia encomendas a costureiras ¢ fiandeiras, que se yayam por dia ¢ trabalhavam em geral nas proprias casas. | cidade, comestava Velloso, em 1822, esta sobrecarregada. “mulheres pobres,* morando em casas ¢ quartos de alu ‘construgdes pequenas de taipa, muito baixas, de telhado bado, chao de terra socada, nos trechos mais pobres de ” [ARIA ODILA LEITE DA SILVA DIAS huss Camo S20 Benio, Ladeita de So Francisco, do Rosirio, da Boa Vista. Nesta tiltima rua, paralela 2 do Rosirlo, as casas estavam construfdas to abaixo do nivel da rua que por cima delas se avistavam, de uma rua para a outra, as imagens ‘conduzidas em charolas, quando passava 4 procissao de cinzas.? ‘Anna Francisca, costureira, parda, mae solteira, morava a0 sul da Sé, com dois netinhos e suas filhas, também costu- reiras ¢ mies solteiras Joaquina Maria, de 27 anos, ¢ Rosa Maria, de 31); D. Matia Amilia, soltcira, branca de 30 anos, morava também ao sul da Sé € tinha cinco escravas costurei- ras trabalhando em sua casa. Num pequeno quarto de alu- guel da Ladeira do Carmo, morava, em 1853, Anna Benedita do Espirito Santo, costureira, parda, que foi presa na rua com um canivete na mao... Em Migénia, junio 20 Convento da Luz, seis fiandeiras pardas, todas jovens, residiam na mesma casa com filhos pequenos..” Fstavam presentes por toda pare, deniro e fora das pontes da cidade, Nao eram muito vistas nas ruas mais no- bres, como a do Garmo e Santa Tereza, porém nao viviam segregadas. Muitas eram vizinhas pobres de sobradoes gran- des como o das irmas solteironas Toledo, na esquina da Rua do Rosirio com a Travessa do Colégio, ou do Senador Ver- gueiro, na Rua Direita ‘Nas primeiras décadas do século passado, 0 espaco urba- nto pontes a dentro limitava-se & rea que ia do Convento de Si0 Bento ao Campo da Forca (Libertiade) ¢ a Capela dos Aflitos, préxima ao cemitério do mesmo nome, 3 Tabatingiie- ra, que era ainda um precipicio, € a chécara das ingleses. Para além deste ndcleo central de ruas escuras € esburacacas, alter- navamese casebres multo pobres com matagais ermos, refigio de escravos fugidos, ou com muros fechadlos, que delimica- vam as chicaras mais ricas de pomares trancados. Estas ponti- Ihavam a cidade a0 sul da Sé, em Ifigénia, no Bris® e, para fora das pontes, nas prineipais vias de acesso a cidade. ‘As mulheres pobres da cidade concentravam-se, no seu vaivém, em locais mais movimentados, onde podiam ofere cer 03 estudantes € forasteisos os seus servicos de lavadei- as, cozinheiras ¢ melhor podiam tratar pequenas operagoes QUOTIDIANO & PODER 25 Jcomruio midde ou expedientes de ucasize (vender cent, as ruas para uma procissto, fazer sabiio.... Em 1822, Saint-Hilaire admiriva de uma das janelis do @ do Governo o caminho: para a Penha e descrevia na do Carmo o movimento de um grupo de lavadeiras. A do Ferrio, etapa seguinte no caminho para a Penha, ‘euitro ponto de encontro de vendedeiris e lavadeiras. qui, as mulheres roceiras que traziam pequenos excedentes vender na cidade recusavam-se a pagar o fisco, alegan ‘tratursse de géneros de subsisténcia.”* Outros pontos de presenca mais ostensiva das lavadei- ram as pontes do Lorena, no Piques, do Bexiga, préxi- @ a0 rancho do mesmo nome, do Acu © Sio Carlos, em Wa. Na bei dos rios, com os filhos as costas, desman- Im as WoUXas, lavavam centro d'igua € As veres esten- m as roupas para secar nas guardas das pontes. Estas pontos de encontro concortidos, onde se cobrava pe- 0 @ se reuniam comerciantes e caixeiros para bater papo as lavadeiras. Em 1848, foi proibido estender roupas J guarda das pontes e enxaguar nos chafarizes pablicos.* Em 1854, Ferreira de Rezende observava em frente a sua ‘p0 caminho do ©, o movimento das roceiras que passa- yendendo ovos, hortalicas © peixes frescos “por tuta- , Kidder, em 1839, descreveu as vendedoras de garapa, Ie liaziam potes a cabeca cheios de caninha do 0." Esse vaivém marcava a dura luta de sobrevivéncia de maioria de mulheres s6s chefes de familia, Algumas no recenseamento de 1836: Joaquina Maria de de, natural de Santo Amaro, tinha um pequeno sitio Migenia, onde morava com seis filhos pequenos. “Nao meios decentes de subsisténck", € observac30 da recen- "Fort da cidade, a margem dos caminhos de acesso, seus bres miseraveis atraim o interesse do fisco, se io 0s tes dos transeuntes. Florinda Maria, natural do Rio, jo- Yitiva, de 22 anos, morava num casebre no caminho da , com dois filhos bem pequenos, a cltima com seis de idade; Anna Joaquina linha um mandiocal muito 0 em Ifigénia, onde morava com um filho Gnico. “E MARIA ODILA LEFTE DA SILVA DIAS muito pobre" e, dizem oy vieiuhus, de seu filho.."* ‘A documentagio da Camara Municipal acompanha com escrutinio minucioso os pequenos botecos ¢ vendinkas mi- serdyeis de beira de estrada: mesmo paupésrimas, deverim pagar avengas, imposio sobre aguardente. Em 1819, ordena- ‘yam um levantamento minucioso de pequenas vendas clan- destinas.” Saint-Hilaire, de passagem pela Penha, imptessio- nou-se com uma dessis vendinhas, onde o balcio ea uma janelinha estreita: *.. A ninguém € permitido entrar na de- pendéncia em que se acham os comestiveis a cachaga’.™ Quase meio século depois, € sugestivo que pouco mudara, quer no estilo de descrever ou no fato em si da pobreza das vendas de beira de estrada. A caminho de Porto Feliz, Zaluar pemoitou “numa espelunca sebentx e repugnante (e uma yelha criatura humana que, pelos trajes, indicava pertencer ao sexo feminino...".8 Foi servido de broa e pinga. Roceiras e vendedoras perambulavam continuamente sob as vistas das autoridades locais, que viam com descon- fianca a sua presenca assidua nos pousos © nits ponies de acesso dos géneros alimenticios a cidade, No pouso do Ju- (queri e do Barro Branco, na estrada de Atibaia, no Piques, no canto do Bexiga, nas margens do Anhangabai, no ciminko da Luz, vendendo, 2 mitido, franges, ovos, farinha, queijos.”° ‘Algumas chegavam nos seus cartos de boi, 2 pretexto de trazerem pequenos excedentes de suas rogas, na verdade, atravessando géneros para fazer comércio clandestino ¢ ilu- dir 0 fisco, conforme sucessivas deniincias registradas na Camara, Outras traziam em seu ‘chio” pedras pata obras na cidade ou lenha para consumo dos moradores: as que vinham da Freguesia do © chegavam pelos lados dz Santa Ifigenia e, de 1a, através das pontes do Acu € da Constitui- Go, ditigiam-se em seus earros para o Largo de Sto Bento! ‘Todo um caleidescépio de pequenas seferéncias espar- sas, pingando em profusio das mais disparatadas Fontes, atesta a sua presenga ostensiva, porém de modo fragmenti- io, pouco deixando entrever sobre os seus modos d= inser ‘go na sociedade da época ‘Um de seus pontos preferidos de encontro era 0 aterro da virzea do Carmo, por onde entravam na cidade os gene- iu cuida da edacagio QUOTIDIANO F ODER, que vinham de Guarulhos, Nazaré, Moji das ‘Num documento de 1821, cuidava-se de preparar ‘part a passagem do Principe prestes a chegar do tir dessa data, os documentos esto comprometi- 10 proceso da Independéncia, que € a hist6ria da io do Fstado em nivel local: potentados © factdes ‘poder, pelas reformas constitucionais, que rees- instituigdes, a organizagio € controle do comér A partir de 1828, criada a nova municipalidade, na mandos e desmandos, continuam acirradas as ten- adeptos da antiga Camara ea esfera provincial ou , que € nomeada pelo poder central. Na rede de patriarcas e estadis politica sabem por ouvir dizer dos vizinhos ‘envoltas nas relagdes de parentela € vizinhang aise niio se véem afctadas, A verdade é que suas vidas se tornando gradativamente mais arduas, cada vez mais € da moral pablica documentos dessa época sobrepdem-se realidacles mder-se com as autoridades da Cimaca para impecir a spriagao das casinhas de aluguel, contiguas 10 sobredao moravam. Este foi o pretexto de muita discussio limites do direito de propriedade, e as autoridades mostravam-se simpiticas 20 seu requerimento; to, motivados pels rivalidades locais, Martim Fran- @Jordio, membros da Junta Provisoria, assinaram pare- possciras defendiam ¢ reclamavam suas rogas, ‘nico o de sua pobreza, ameagadas pela concessio de novas ‘ou pela demareaczo de terrenos aforados pela a [MARIA ODILA LEITE Da SILVA DIAS Camara. No atenu do Tamanduates, que usievann cunmy terres de uso comum, uma extensio grande fora fechada para servir de pasto pura animais de tropas: no Parl, em Santo Amuro, estayam ameagadas de despejo pelo cercamento de terras redistribuidas como sesmarias Nao sio 05 eventos politicos nem os marcos de refor mas institucionais que definem a sua hist6ria. © seu dis-a-cia lestava mais enredado nas continuas crises de abastecimento, que provocavam carestia ¢ falta de géneros alimenticios ma cidade. Estava viva em sua meméria a lembranca da fome de 1818, ¢ ja se ameacava repetir a. mesma crise em 1823, que voliou a ocorrer em 1826 © novamente em 1828* Nesses momentos de crise aguda, quando “o povo ameagava amoti- como dizem os documentos municipais, € que ti- nham alguma entrada na hist6ria escrita, mesmo assim, com referencias veladas, pois eram, do ponto de vista das autori- dades, discutiveis as suas praticas de comércio clandestine & de pequeno contrabando ambulante. Murmuravam contra os poderosos, reclamavam contra o fisco; pareciam-Ihes muito distantes os conflitos locais, que enchem as fontes da época envolvendo intrigas dos lideres politicos © comerciantes ti- os, uns contra 0s outros. Pela Constituiclo de 1824, as mulheres no eram eleitoras nem sequer no primeiro eseruti- nio, €, mesmo que o fossem, uma minoria apenas dentre elas teria a.renda minima de 1008, que er requisito essen- ial para ser eleitor. Outros ritmos marcavam seu tempo, Em janeiro de 1823, Anna Gertrudes de Jesus, moradora em Santa ligénia, queria receber 8$ da Camara por ter retirado do seu quintal um formigueito. Em marco desse mesmo ano, Oyenhausen tomava medidas para exilar Martim Francisco e Jondio.* Em marco de 1822, eram tomadas providéncias para restringir a espago das quitandeiras, que deviam concentrar-se apenas na travessa do beco do Alferes José Fernandes indo até o portio do Brigadeiro...” Em 1826, Gertrudes Rodrigues do Espirito Santo, Perpé- tua Gertrudes, a viva Ana Joaquina, Maria Antonia do Rosi- rio, vendedoras em Santo Amaro, testemunhayam contra um escrivao da CAmara, que cobrava avengas indevidas® QUOTIDIANO F PODER » ignoradas, 2 margem das obras de historiadsees, -do quotidiano, que mal deram por sua existéncia. ‘numa sociedade aparentemente européia, esci sito Freyze, os homens foram tao s6s no seu esforco ;nossos no tempo do Império.”” sunals andnimas no processo de sobrevivencia dos pri- Bx tempos clo Império, aparcciam incidental ¢ esparsa~ F nos documentos da época. Em 1824, 0 aterro de Festava alagado © os transeuntes tisham de passar {8 até os joelhos: ‘er especialmente embaragoso para as mulheres, por Ihes fusios6 ¢ vergonhoso arregacar os fatos em pUblico, sobre- [Porge muitos homens se demoravam ali por curiosilade, indo. por divertimento as falias € © pejo das mulheres..”.* Alndependéncia nio mudara em nada as febres, sexes, jus cheiros do Tamanduatei que Ihes sacrificavam fas. Sdo raros os momentos em que afloram nos aconte- da ordem do dia, © que geralmente ocorre nos Bhtos de crise; quando das epidemias de cdlera-morbo: Variola, que sc fizeram sentir em 1823, em 1828 € Ses fist. parca com bose sntacnat re A di Amari um pequeno estipendio para tratar em Glisas de escravos ou forros doentes; também participa- os preparativos para a vinda da imagem de Nossa wet da Pena. fim 1831, quando se acirraram 06 dnimos contra comer fe funcionirios publicos portugueses ~ como lis em 1824 -, cresciam tensdes entre mulheres do ficlo ambulante c 0s caixciros de lojas de methor pa @, Anénimas, pois a maioria nao declarava sobrenomes familia, passaram a aprescntarse nos recenseamentos ‘brasilciras A presenga macica de mulheres na populacao da cidade ss de matidos ausentes ~ era parte integrante da o da vila desde o século XVII, ¢ somente passou a fit a atenglo das autoridades, em seus oficios ou relatérios ‘© Reino, nas iiltimas cécadas do século XVII, sob, fo da moda ilustrada e do. reformismo europeizante, Momou conta das classes dominantes. MARIA ODILA LEITE DA SILVA DIAS © povoamento dos arraiais da min rais (1698-1730), em Golés a partir de 1726 e Mato Grosso em 1730, fixara ainda mais na cidade os costumes itinerantes dos homens, mineradores, comerciantes, tropeitos... Fieava Jonge o tempo em que Maria Castanbo era a dnica mulher portuguesa em $20 Paulo, Durante todo 0 século XVIII, tive- ram pre predominante na vida urbana, destacando-se mais pela pobreza de sua sobrevivéncia precdiria que pelo prestfgio social, que assinalava antes homens. peregrinos do que mulheres, que permaneciam na vila de retaguarda do povoamento. Rogas © pequeno comércio, atividades de con- sumo @ subsisténcia jamais competiriam na colona com aura de ayenturas arriscadas, que tomavam as empresas co- merciais dos paulistes, a ganhar a vida pelos caminhos como wropeiros.® Na época da Independéncia, sabla-se que quase 40% dos moradores da cidade eram mulheres s6s, chefes de fart lia, muitas delas concubinas e mies solteiras, Aos poucos, di forma preconceituosi e canhestra, os contemporinees foram tomando consciéncia da sua presenga. Nos anos que se seguiram a 1822, tanto se devassava os carbonirios, como os costumes sexuais de mulheres pobres. Em agosto de 1822 exageriva-se a moda europeizante e reformista, pois 2s auto~ ridades municipais pediam providéncias contra casamentos de uso costumeiro, que eram largamente disseminados na populacao; nese mesmo ano, decidiram Fandar a roda de enjeitados e assumir um plano de assisténcia 2s criancas nadas... % 0 fendmeno de mulheres solteisas, chefes de familia, é vasto e intrincadamente enredado na estrutura da sociedade colonial. Parece fendmeno peculiar 2 urbanizag20 como um todo nas colbnias do Brasil, e vem sendo estudado em Vila Rica, nos demals armaiais de mineragie, em Salvador, no Rio ciro. Méltiplas causas e fatores contribufam para 0 em Sio Paulo, nas primeiras décadas do sécu- Torna-se impossivel fixar causalidades precisas num proceso amplo e abarcante de todo um meio social comple- xo em mudanga, Basicamente, prendia-se a0 sistema de do- minaguo social das classes dominantes e 2 perpetuacio dos QUOTIDIANO © YODER a Privilégios adquiridos, de que a estrutura familiar era um instrumento estritégico. Estipulava papéis sociais dificeis de serem manti¢os po: is de classes desfa- Yorecidas, cmbora alguns de seus valores permeassem por texkt a sociedade como tragos machistas dos papéis. sociais masculinos | Entretunto, normas e valores ideologicos relati- Yos ao casamento © 2 omganizago da familia nos meios Senhoriais nfo se estendiam aos meios mais pobres de ho- mens livres sem propriedsdes a transmitir,, Mocas pobres sem dotes permaneciam solteiras ou tendiam a constitu unides consensu: Quarenta © trinta © seis por cento dos fogos urbanos, J08 macos de 1804 ¢ 1836, cram constituidos por mulheres Je familia. Nestes magas de populagio de 1804 e $65, chefes 1836, proc Ietiva de fogos de mulheres sds, em dife cidade; concentramos o leva mos a0 levantamento de uma amostragem se- ates baitros. ent NO porte € sul e em Ifigénia, bairros mais centrais, ¢, em seguida, em dois baitros periféricos, esteategicamente colocades como entra- Jas de caminhos come lo Rio de Janeiro, ¢ a Freguesia de Nossa § pela qual eatravam na cidade os trop 6, eiros vindos de Goids, serem embocaduras de acesso. dos généros alimenticios 3 cidade. A partir dessa amostragem seletiv de fogos ‘chefiados curamos desdobrar 9 maior nimero de informagdes sobre condigoes de vida, de trabalt nizacio domiciliar da popt por siulheres. s6s, 20 feminina na cidade. 1804 ‘egos na oaino | ae N. Sra. do Total MARIA ODILA LEITE DA SILVA DIAS Vinee Total de chiles do og0s_|_fososno baie a7 a 173 570 135 a2 a 193 8 58 we Apesar das nuingas préprias dos bairros mais comerctalt- zados, como a Sé, 0 fendmeno ert comum a cic: um todo; caracteriziva-se pelo predominio de mult velhas, chefes de femilia, vitivas e sobremdo solteira Nesses fogos de populacto concentradamente feminina, permaneciam solteiras 649% das filhas dependentes, 779% das agregadas © 82% das e: * © indice de ilegitimos na cidade abarcava 40% dos nascimentos,° de que boa p estava compreendida nas casas de mulheres 56s mbora solteins, muitas tinham fillhos: 259% das chefes de familia eram mies solteiras, cifra que se mulsiplicava, levando-se em conta as filhas dependentes, que eram mies solteiras em 60% dos domicilios de mulheres 56s Entre as mies solteiras predominavam as brancas, em bora a populacto mestica aumentasse continuamente ap6s 1830, principalmente entre as dependentes agregadés ex- escravas €, secundariamente, como chefes de fogo mulatas.™ Nao admira, sendo este o dominio do informal e do uso costumeiro, que os contemporineos no tivesscm tido uma cooseléncia mais objetiva do fendmeno como um todo, que em Sio Paulo abarcava sobretudo mulheres brancas, empo- brecidas, excedentes das classes dominantes entre 0s coloni- zadores. J nos arraiais mineiros havia predominio de mulhe- res mulatas forras, ex-escravas, pois inicialmente havia fala I de mulheres brancas nas frentes pioneiras de Esse exceclente de mulheres s6s na populaglo nao se prendia a nenhum faror isokido, mas a uma globalidade de aspectos proprios uo sistema social e econOmico da socieda- QUOTIDIANO F PODER 0 de colonial como uni todo. Tratava-se antes de tudo de uti Proceso avassalador de multiplicagio da pobreza, que acompanhavs, principaimente nas cidades, 6 crescimento ve~ Retativo da populacdo, tendo como pano de funcio « estage faclo econdmics. Em Sao Paulo, mais especificamente, re- dundava numa multiplicagzio de brancas sem dotes, que viviam em casamentos de uso costumeiro ou sucessivos con- cubinatos, muitas delas como maes solteiras; Fogos de mulheres sés roertagem Brarces 5 51.20% Pvc siaae vegas Indias Teta! A partir de 1830, aumentava na cidade 2 populagio mestica € forra, sendo particularmente acentuado no meio de homens pardes 0 fendmeno da auséncia temporaria da cida- de (conforme a tabela a pagina seguinte) Entretanto, continuava como tendéncia global o predo- minio de brancas soltciras num processo que somente em parte se explicava pela auséncia do homem. A populacio jd festava, por volta de 1830, mais on menos equilibrada: a Pfesenca masculina, porém, era intermitente, agravada por ostlimes que acentuavam a instabilidade dos casamentos ou @oncubinatos, que se sucediam em unides efémeras. Em 1768, o Morgado de Matheus preocupaya-se com a politica de casamentos, atribuindo © excess de mulheres foltciras em Sio Paulo, em parte, a carestia do. processo burocritico de casamento religioso e a cobranca das provi- sées por parte dos vigirios; apontava ainda como causa 0 Fecrutamento ce homens em idade casadoura para servir no exército, lembrando também a presenga intem 195 condenava 0 trato mercantil* a MARIA ODILA LEITE DA SILVA DIAS indo ado} Sto Paulo 1029 ulbcio da populago mescuina ¢ jeminina segur ] - ‘Povcentagern tadreres | Homens Tete! ree en ame * tho wos | zen s.r Reger | 18 tse 2 ‘core TOTAL atat 2s | 8067 sor Xa época do primeiro Reinado, persistia o costume da fuinerincia, agravado por continuos recrucamentos militares para 2s gue‘ras no Prata,* 0 que deslocava parte da popula Pho masculina, ameacando 0 quotidiano das mulheres. po- bres. Sob este aspecto, a Independéncia veio soment: agra- var males, de que elas sofriam desde 0 tempo dos capities generals, vigirios € pérocos as vezes intereediam por elas € fencaminhavam suas petigdes 2s autoridades.* Pntretanto, ado era apenas a deslocamento ou a aresen: ga intermitente dos homens que explicariam o fendmeno de mulheres s6s chefes de familia: fator crucial seria também a rigida divisao de esferas de atividades de um sexo © outro, Gue se poderia allds tomar como fator © causa ao mesmo tempo. e que se acentuava com 9 costume de casimentos Gn idades muito desiguais. homens em geral dez a. vinte anos mais velhos do que suas mulheres, ou concubinas fomentavam a multiplicagio de vitivas ou mulheres sés. * Fundamentalmente, a roforcar a instabilidade de unibes su- ‘acostumados a viver errances, cessivas, a pobreza de homer ae que no tisham com que manter suas familias © se afssta fem busca de ganha-po nas areas pioneiras da provincia, ‘acabando por ali a compor novas ligagoes. Vou fazer minha barquinha Vou fazer minha barquinb a folhinha do guapé, dda case do jata, pira levar o meu benzinho pia leva mew amorrinho de Santos p'ra Taubat I pro lado de Mogi Na cidade a populagio de mulheres 363 era basicamen- te sedentiria, pois em 1804 cerca de 27% vinham de fora € fem 1836 nao mais de 7%..." No entanto, dentro da cidade, havia um movimento intenso de mudanga para os bairros ‘QUOTIDIANO F PODER mals centials, onde moravam costuretras © quilandetras cidas em Santo André, Penba, Juqueri, Cotta.” Tinham o costume sugestivo de abandonar os nomes de familia e de adotar nomes proprios, a que © recenseador acrescentava as vezes um respeitoso “Dona”. Cerca de um terco conservava nomes de familia, por vezes ilustres, dos mandoes da terra. Entretanto, a grande maioria assumia no mes como Ana Gertrudes de Jesus, Maria da Cruz, Madalena de Jesus, Gertrudes do Espirito Santo, Joaquina Josefa da Anunciacio... Talvez porque tivessem nascido bastardas, ou porque vivessem em concubinato, mais provavelmente por- {que nao tinbam os meios decentes de sobrevivencia, impos- tos pelos padres da terra Uma porcentagem pequera possuia mais de dex escr- vos: em 1804, apenas 19 cm 557, ow seja 361% em 1836, apenas 18 em 589, ou seja, 3,05%6.* Mais de oitenta por centc declaravam viver do seu pri prio trabalho ¢ muitas, sem escravos, diziam nio ter meios decentes de sobrevivéncia. O scu modo efetivo de’ sobrevi- ver na cidade ficou precariamente documentado cm fontes oficiais como os recenseamentos, registros de licengas da Camara Municipal ou os intimeros processos ¢ devassas ein que se viram envolvidas, Escrevia-se mais sobre maus costu- mes do que propriamente sobre a organizagio de sobrevi- veneia de mulheres pobres, Os magos de populacio tinham, € verdade, uma finalidade expressa de dominacio social, ram levados a cfeito *.. para melhor civilizar e comer na obedigncia os moradores...." As mulheres paulistas figura yarn ainda nas devassas de costumes da Igreja, nas listas de desobriga da Pascoa © nas visitas dos bispos, onde eram acusadas de viver em concubinato, ou denuneiadas como iticeiras e alcoviteiris. Os processos judiciais, em que apa- em vez de dados concretos como nomes, ocupacao, le, esto sobrecarregados de jutzos de valor e de referén- genéricas: “mulher vigabunda*, “desordeica”, “turbulen: 3, “depravada’, “de m4 fama", “cometeu ruindades’, “foi a", “prendeu-se por acusicao de andar amancebads" Quer se trate de Fontes. administrativas, judiciais ou da policia, 2 documentacao escritz em geral resvala, no que diz % MARIA ODILA LEITE DA SILVA DIAS respeito a0 Sexo feminino, pelo dominio simbolko € 1 dos grandes arquétipos culturais e desfilim em poucas Ii Giversos dos paradigmas da tradicio judaica e crisi@: anjos, tlemOnios, santas matronas de vida honrada, mulheres perdi- das, sem eira nem beira... F um vasto dominio que enreda a Todos, no somente fontes oficiats, pois o mundo dos mitos é um dado universal inerente 3 linguagem ¢ 4 cultura. Enire roceiras caipiras ¢ mulheres fortas, nas ruas de Sto Paulo no século pasado, personagens recis. tomavam antes uma coloraglo mitiea do que aura de personalidades politicas; D. Leopoldina, mulher fiel ¢ mac devotada, se Fevestia do carisma das fabulas dos contos populares mais presentes-no imaginério feminino: 2s santas mulneres injustt das, as Genovevas de Brabante, inés de Casiro, Porcinas be Bocaccio, Grisélidas dos ‘contos do Trancoz..A Marque fa de Santos, figura local, mais tangivel, por ser senhora € grande dana poderosa, do seu sobradio da Rua Alegria Fiamero dez, tomava feigbes miticas de Madalena arrcpendi da: eleita do amor de Jesus, podia servit de intermediiria na causa das softedoras ¢ necessitadas do bom caminho.* O ares de Joao de Calais, ou de Rober- Principe afoito tomay: to, 0 diabo. ‘i na documentaglo escrita, menos fluida € inovadora do que 2 palavra oral, pairam esteredtipas de. todos os tem- pos, adaptiveis a toda ¢ qualquer conjuntura histérica. M foras e imagens que vém de autor em autor se repetindo pelos tempos afora ‘A figura da senhora bondosa, dedicada & propria fami lia, que € também hospitaleira, generosa € sempre acessivel 08 pobres necessitados, existe simultaneamente no imaging fio popular € nos depoimentos dos eronistas ¢ genealogistas Gas classes dominantes, como um elo que une 2s diferentes lasses sociais no sistema escravocrata, E 0 cuko de Santa Isabel, rainha € senhora caridosa, festejada na hagiologia ceudita: nos sermdes de Vieira, de Montalverne® € nos con- tos populares, em que se festcja a quitandei pobre mas hospitaleira, pronta 2 partilhar de sua pobreza com os que the batem a porta. ‘A Titeratura erudita transborda de referencias 2 papéls femininos nermativos, proprios para serem pregidos nos QUSTIDIANO F ODER a pilpitos ¢ lidos como exempla, para transmitir © certo, © convencional, 0 desejével. +. No direi que ela foi uma virgem eélebre por sua inocen~ cia € por a santidads que glorificow os seus dove anos de solieits, no recordarci os dezoito anos, em que foi esposa e mic; cu esquecerel toda esta série de acontecimentos me sie que sleet. one Migoaons, pesto» © mesmo se depreende das palavras de Frei Gaspar da Madre de Deus, quando desereve D. Maria I He mulher, ev confesso, porem mulher forte; be mulher, porem vatonil © cscahida pot Dews, como Deborah, para deniora de Portugal..." - Quase todas as mulheres que estudamos neste trabalho cram analfabetas, © que reforca bastante nas fontes eseritas © papel de esteredtipos € convencoes. Elas proprias nunca se manifestaram de forma direta e objetiva. Seus depaimentos foram colhidos por terceiros ¢ distorcidos por forga dos valores normativos das fontes institucionais. Nos documentos € registros da CAmari Municipal, terceiros assinaram por elas a rogo", € quando dirigiam uma peticlo as autoridades faziam-no em geral por intermédio de um procurador. Alcin- {art Machado lembra que entre os 450 inventarios censulta- dos, em seu livro, apenas duas mulheres sabjam ler... E o que reforga nos documentos oficiais a aura conve clonal € mitica que os toma reposit6rios de situagdes arque- tipicas: estupros, incestos, adultérios, crimes passionais.... Em So Paulo, O Publicador Paulisiano, de 5 de agosto de 1854 transerevia uma noticia de uma escrava em Sio Pedro do Sul, distrito de Angussu, que reproduzia o drama de Medéia ., mun thomento de loucuts uma excrava de Duarte Medina Martins degolou ura companheira, seus dois filhos, 0 proprio filho, enforcando-se em seguida.."" Abafadas as vontades sob a fiiria dos instintos, parece que 05 valores inerentes as fontes escritas tendiam a seforcar esterectipos relatives a papéis femininos em geral. AKém dis- 0, havia preconceitos limitando 0 acesso de mulheres a0 mundo da cultura: MAHA ODILA LEITE DA SILVA DIAS SMenina que sabe auito B mulher atrapalhaca, Para ser mic de familia, Salba pouco ou saiba nada... Preconcelios arraigados entre os ibéricos em geral, tam- bém presentes entre eruditos franceses do século XVII na famosa polémica a respeito das “femmes savantes" ... Em $0 Paulo, em 16 de margo de 1835, uma visita de inspegio 20 Seminirio de menings 6rfas resultou num relatorio a0 Pres dente de Provincia, denunciando 0 abuso da professora, que ensinava literatura, em livros dificeis, em vez de ensinar a coser e bordar.* Em 1814, em carta para a ima, Marrocos, pequeno funcionirio da corte-de D. Joao VI, orgullsava-se das limita- ‘goes de sua noiva: sta minha sinkazinha nto he rigorista de modas: nao sabe dancar nem tocar; nde serve de ornate 3 fancla com o leque © com © lengo, no sabe tomar visitas na sala, nem que pertence ao governa da casa, meu e seu amtanjo, por ser este © Seu genio © a sta erlacto; pols apezar de em casa de sua May haver hua inmensidade de eacravas pa. o scrvigo, erdo as fithas obrigadas por Semanas a regerem este mmo, servigo; e a trtaruga (sfo) vetha o fazia executar sem a me- nor fatha 40 som do chicote © palmatéria, que sempre th servirio 30 seu ido de Camatisias....? i Na sua resisténcia contra a penetragéo de costumes eu ropeizados na vida da Corte, incorporavam-se quase quatro- centos anos de ABCs femininos, Em fins do século XVI, nos contos de Trancozo, disseminavam-se os seguintes conselhos para uma senhora casada desistir de aprender a let e conten- tar-se com trabalhos de agulha *o A quer dizer que seja amiga de sus ea © 9 B Bem quista da Viainhanca © 0 C Caridosi com os pobres © D Devota da Viagem © E Entendida em seu offcio © F Fire na Fé © G Guardadeira de sua Fazenda oH Humilde a seu marido QUOTIDIANO F PODER 6 1 Iatoniga dem 0 L Leal 0M Mansa © 0 N Not © 6 O Onesta © 0 P Prudence © 0. Qnieta © oR Regrada © 05 Sezuda 0 T Trabalhadeica € 0 V Virtosa © X Cristi 0 7 Zeloss da Honea E quando tiver tudo Isto anexa a st, que the fique préprio, creia que sate mais letras que todos 03 Filésofos.. Num conto popular do século XVIII, muito divulgade er tte paulistas, uma escrava enfrenta um circulo de sibios © os derrora com uma sabedoria peculiar, misto de adivinhas e de exercicios de memoria, mais no género dos cultos dificos dos mistétios de Eleusis, do que propriamente de conheci mentos eruditos. Escrava Teodora ¢ Santa Catarina, de raizes prientais, reelaboradoras na tradi¢ao ibérica, sto dois mitos afins da inferioridade da mulher, que se transforma em forca nesperada, peculiar, complementar, diferente da forga dos sibios de Alexandria, ou da cultura propriamente masculina No caso da hist6ria de Teodora, todo o seu poder de >nhecimentos ~ “Eu sei de cor o livro sublime © posso lé-lo de sete maneiras diferentes...",” — se destina a salvar os bens do seu jovem senhor. Sie os predicados femininos mais divulgados nos contos populares, 2 dedicacio e devocio das mulheres ¢ sua capacidade de sustentar seus senhores ou ‘companheiros, Existe uma tradi¢io mis6gina, fortemente en tranhada, tanto na literatura erudita quanto nos contos popu Jares portugueses, « partir de um manancial comum fo lo XVI; por intermédio dos autos jesuiticos teria penetra col6nia € se perpetado nas festas tradicionais, cantos e costumes. C. R. Boxer em seu livro sobre as mulheres na expansio maritima dos ibéricos™ estudou o tom misogino dos livros de etiqueta ¢ dos guias de consciéncia, mormente no que dizem respeito 2 ética machista com que discriminam addlteras © pecadoras, desde 0 Fypelho de Casados, de Joi0 © MARIA ODILA UHITE DA SILVA DIAS de Barros em 1540, a “Maneira pera conversar com ho oun do pera evitar escandalos" (1552) até os “libertinos” do. sécu- Jo XVII? © assunto no se esgota ao nivel das fontes € testemu- nhas literdrios, Varios historiadores revelam a mesma incapa cidade de tratar da participagio de mulheres no proceso de formagao da sociedade brasileira, Perdem-se em juizes de valor e no conseguem desfizer-se de idealidades ¢ estered- tipos, que os impedem de ver com mais clareza 0 contexto historico de que tatam. Paulo Prado, em Retrato do Brasil, refere-se as indias como as simples maquinas de go1o ¢ trabalho no agreste gineceu colonial € 2 passividade infantil das negras africanas.” © proprio Gilberto Freyre, estudioso dos costumes e do quotidiano, vé a mulher branca como uma ‘serva do homem e boneca de care do marido” Entre 05 proprios cientisias sociais, existe a tendéncia a definir, em termos funcionalistas, 0 dominio do feminino como 6 reverso ou a alteridade ideal, © outro de uma cultura propriamente masculina.”” Nos documentos ¢ fontes oficiais, simbolos metiforas escondem informacdes mais objetiva imagens genéricas, depreciativas, recobrem referencias as mulheres escravas, forras, brancas pobres, critérios proprios do maniqueismo da Contra-reforma a que se somam nuancas clissicas, que se referem ao corpo feminino como a um objeto de conquista ¢ de prazer sexual. As mulheres rara- mente apresentam a indiviciualidade de personagens histéri- cas. Sto forcas outras, misteriosas, desconhecidas, as vezes perigosas, ‘So escassos 0s processos judiciais ou devassas policiais ‘em que as informagoes vém soltas, diretas. Fm 15 de setem- bro de 1834, foi presa no juizado do Bris Domitildes de Trindade, mulher parda que vagava pelas ruas sem passa porte, sem licenga para esmolar, com um filho nos bracos: Foi interrogada; manifestou tais contradicdes que parecem continuo delirio; ‘por isso a mandei expulsar para fora do distrito..."" Os processos judiciais e devassas policiais eons- tituem, apesar de tudo, um terreno rico € fascinante pant a critica do historiador. Documentos casuais, esparsos, frzem verdudeiro manancial de dados preciosos. B 0 caso de uma A. Formonas sem date p é : i E ; i 8 ; & j i : i i i (quarca aguas ef -3. QUOTIDIANO F PODER devassa sobre 6 corpo de uma negra, Catarina Lopes, que fot encontrada morta no Tamanduatei, em janeiro de 1821." Ou am simples atestado de Obito, que diz muito sobre lagos de vizinhanga entre mulheres pobres da cidade de Sio Paulo: +... Aos 25 de Fevereiro de 1844, faleceo Kosa Maria das Do rea, forusteira, que senao sabe de onde € natural e nem se he casida ou solteiea,." Nos cronistas € genealogistas do. século XVII, 2 inten- cio reformadora € a preocupagio em constrair uma raciona. ‘dade mais sistematica os impedem de descrever costumes do dia-a-dia sem toda uma celoragio nonmativa ¢ juizos de noral contra pa instintives prOprias de certo. primitivis- mo feminino. Na literatura burguesa dos romances urbanos do século XIX, esti sempre presentes as tenses entre 0 mundo feminino de forgas vitelistas, do coragio, do instinto, da continuidade biolégica, do encadear das geragoes, contra 1 razio, a hist6ria, dominio propriamente dos homens, Para Machado de Assis, em Jaid Garcia, « oposicio entre nature: za biolégica (esfera das mulheres) e social (dos homens) ¢ a maior capacidade destes de superar a propria espécie.” Sem- pre é mais forte o ideal feminino abstrato do que a individ lidade dos personagens. Fidélia vive em si as tenses do individuo e da espécie... Nas mulheres, antes de tudo, 9 forga dos instintos, 0 ciclo biol vitalista do eterno renascer, como a wroborus de culto da Grande Mae. A mu. ,. uma cous fora do tempo e do espaco, Iher © a mfisiea uma idealidade pura. Para José de Alencar, que aborda o tema da revolta das mutheres € de sua luta pelo diteito & propria individuatidade, muitas vezes, os personagens femininos ndo passam de “imagem didfana de um soaho que tomara vulto gracioso de mulher...” Personalidades fortes de mulher como Auré lia ou Diva acabam se rencendo e se entregando como posses” aos companheiros escolhidos."* Por outro lado, mesmo nos trabalhos que procuram analisar ¢ estudar 0 dominio do feminino, persiste o interes. se pelo simbdlico © pelas alegorias da “condicio feminina ‘ou o-estudo dos mitos femininos, que pertencem ao campo ODILA LEITE DA SILVA DUS da enudigao, das wadigoes, do literate © se alimentam uns aos outros num circulo vicioso que nao se sompe. Pulut a yinculagio a um contexto histGrico espectfico, passo impor- tante para catarse do contetido ideoldgico e condicio. sie qua non para mostrar as mulheres como seres socials, que integram sistemas de poder, redes de dominazlo e lacos de viinhanga © processo propriamente hist6rico de suas vidas em sociedade revela papéis informais, a mudanga, © vir a ser, € s¢ opde 20 dominio dos mitos ¢ das normas culturais. Eo desvendar dos espagos femininos conquistades ¢ no pres qritos, por isso em grande parte calados ou omitidos nos documentos escritos. Os papéis propriamente histéricos das mulheres podem ser captados nas tensées, mediagdes, nas relagdes propriamente sociais que integram mulheres, hist6- ria, processo social, e podem ser resgatados das entrelinhas, das fissuras ¢ do implicito. nos documentos escritos. Isso requer uma leitura paciente, um desvendar csterioso de in- formagdes omissas ou muito esparsas, casuais, esquecidas do contexto ou da intencionalidace formal do documento. £ 0 caso, 2 margem dos testamentos, de referéncks a pequenas lembrangas deixadas as primas ou sobrinhas pobres, as agre gadlas ou escravas, companheiras do convivic doméstico de todo dia, pequenos quinhoes, quantias irisOrias, carregadas de sentido simbélico ¢ de alusio as relagdes especificas proprias da organizacio do trabalho doméstico.” (© mesmo acontece nos processos de divércio, em que, escondidas no rol das testemurhas, desfilam inesperadamen: te as mulheres pobres dos arredores da cidade de Sto Paulo Em 1834, Francisca Maria, parda, costureira, 25 anos, morava na Freguesta de Nossa Senhora da Boa Viagem, embora tivesse nascido na Sé: vivia de suas lavoutas € costiras € vinha depor o que sabia “de ouvir dizer" das elagbes de sua vizinha, também costureira, com 0 maride que a absandona~ ra.” Do mesmo modo, num processo de 1836 vinham depor costureiras de Abbaia: Maria Gertrudes; prema forra, casads, cos tureira, de 21 anos, ¢ Manoeki do Espirito Santo, vitva, de 23 anos, também costureira...”. Sao visumbres ce uma imensi- dao, retalhos de uma colcha por fazer — relances de uma QvoTIDIANO F PODER insergio posstvel num vasto sisiema de visturn bres de situagdes de vida num sistema amplo de relagoes de poder a ser reconstrufdo, envolvendo informagdes esparsas, cor, Ocupaclo, sexo, idade, numa conjuntura historica espe. cifica mais ampla, por desbravar.. As mulheres pobres no proceso ineipiente de urbaniza «Go de Si Paulo, socialmente desqualificadas, pertencem a0 dominio dos espacos ¢ papéis informais, improvisados, sin tomas de necessidades novas ¢ cle mudangas estruturais. Nio admira que tivessem ficado esquecicas nas fontes oficiais, que registravam de preferéncia papéis prescritos valores normativos, préprios do sistema de controle € menutengao da ordem social estabelecida Se os papéis informais sto dificilmente captades por antropdlogos menos avisados, em suas pesquisas de cam- po. quanto mais nao © serie para historiadores limitados as Fontes escritas! E preciso estar alerta para o conteido smplici to mas entrelinhas dos documentos; saber onde buscar e como olhar. © descortinar as estruturas do quotidiano ao nivel da organizacao domicilizr, familiar e das parentelas e vizinhan- as constitui terreno dificil, onde a historiografia penetra es: poradicamente com resultados brilhantes, porém sempre com enormes dificuldades de documentacio.® Nao sao ciminhos trihayeis por historiadores preocuy dos com métodos que pressupdem equilibrio, funcienalida- de, estabilidade, consewacio © status quo; estes, voluntaria- mente ou nao, se vem enredados nos contetidos formais normativos das fontes ~ leis, valores, ensinamenitos, dados que veiculam o deve ser, sistemas ideolégicos, de moral, que servem como instrumentos de controle © de manutengio da ‘ordem social estabelecida, A partir desses parimenos, tendem fatalmente alguns historiadores a interprear papéis informais no como neces sirios, mas como atipicos ou patolégicos € nlio como sinto- mas de mudanca da ordem social prescrita. Seria, por exem- plo, 0 easo do predominio, nas cidades, de foy a por mulheres s6s, que alguns historiadores veriam menos como uma organizagio de sobrevivencia ditada por circuas: se MARIA ODILA LEITE DA SILVA DIAS tincis novas do que como sintomas de anomia'¢ de desor- smiliar.™* Fssas mulheres no estavam integradas nas instituicoes, do poder: nao eram assalariadas, nao tinkam propriedades nio gozavam de direitos civis nem tinham acesso 2 cidadania politica, Nem por isso deixaram de ter a sua organizagio Familiar e de sobrevivéncia ¢ relacdes propries, de convivio comunitirio. Judith Allen, num estudo sobre papéis informais das mulheres Igbo, da Nigéria, fez um trabalho interessante so- bre a cegueira ideologica dos funcioniios biitinicos ¢ suas reformas administrativas? Formados nos mors da Inglaterra vitoriana, estudaram as organizacoes politicas locais, tendo cm vista a sua integracao na nova adminisiragao colonial, ‘que vinham instaurar. Reconheceram logo as papéis de lide- ranga hierdrquicos dos homens, ¢ de imeditto procuraram aproveitilos nos quadros da nova administtacio local. Pas sourlhes inteiramente despercebida 2 organizagio paralela ¢ complementar das mulheres Igbo, que Unham uma lideranca politica propria: costumavam reunir-se periodicamente na praca piblica de suas aldeias, onde tomavam decisdes & Controlavam o comércio local, que era a sua esfera de ata a0 na comunidade. Ocasionalmente, investiam contra os homens em rituals de represilia wradicionais, accitos pelos costumes locais, que os funciondrios britinicos procuraram ‘ptimir com violencia policial, como explosdes intempesti vas de desordem, turbulencia e bebedeira! Papéis informais, por sua propria natureza, nao sto ofi- ccialmente reconhecidos nem socialmente muito yalorizados, embora sejam importantes no processo cencreto. da vida quotidiana No sistema colonial brasileiro, muttos papéis informais estio ligados a0 consumo e 2 distribuigao dos géneros all- menticios. Esta era uma esfera de atividades de pouca impor- tancia do ponto de vista do funcionamento do sistema colo- nial ¢, normalmente, relegadas para ‘escravos, como cargos aviltantes. Roceiros, quitandeiros, vendilhdes exam atribui- 5s com conotagdes pejorativas, de menosprezo social. So- rente prestigiados na colénia eram os senhores de enge- QUOTIDIANO E PODER hho, lavradores de produtos de exportaglo, capitalisias, ban queiros, mercadores, burocratas e funciondrios administra vos ou eclestisticos. Em Recife, durante a Guerra dos Mascates, a5 principais vitimas dos tiroteios eram negras mariscadeiras, mardadas praia par a coleta de mariscos, fonte bisica embora minima do sustento de cad familia . abastecimento da cidade: Jo de sitio cortara 0 jotidiano este exerci cio, € em muitos dias duas vezes repetide, poucas vezes se recolheram a seu salvo, sem que de fora Ihes apaahassem aigumas negras* — pobres vitimas andnimas de uma luta que Na sociedade escravista do Brasil colénia, 0 offcio de provedor™ de familia era desairoso para homens que nto queriam rebaixar-se, quando nao tinkam escravos, a exercer oficios aviltantes, como © cuidar das rogas, das animais do: mésticos, ou vender pequenos excedentes. Na tradilo oral 10 dia-a-dfa, eram as mulheres pobres que assumiam esses Hficios necessirios para o sustento dos seus familiares,” E no entanto com enorme dificuldade que sc destrincnam do: documentos referencias 20 seu tabalho quotidiano de pro~ vyedoras da propria subsisténcia. ses papéis informais, improvisadas, tm um sentido importante na desmistificagin do tao discutido sistema patria cal brasileiro. Por tradi¢io € costume, a divisio de fungbes € de tarefas entre os sexos mente 3 parte ¢ bem demarcada, estabelecendo-se esferas de atuago complemen: tares e nitidamente separadas, De fato, a auséncia do homem ou sua presenca iotermpitente impunha com freqiiéacia no tanto a divisto como a alterndncia ou troca de tasefas: assw mir papéis masculinos no era muito excepcional. prdprios recenseamentos indicam que cercs de 35% a 40% das mulheres assumiam o papel de provedoras do sustenta de suas familias; como chefes de fogo, declaravam viver do seu proprio trabalho.* Autoridades judiciais parecem dar como norma a ind pendéncia das mulheres € seu papel da provedom ou de arrimo de familia, chegando muitas vezes a recusar-lhes os requerimentos em que apelam para papéis hormativos e soli- ” MARIA ODILA LEITE DA SILVA DIAS citam socorro como érfis desvalidas ou vidvas desampara: das, Em 1810, Francisca das Chagas reclamava do recruta- ‘mento de seu filho alfaiate, que, segundo ela, era *0 nico arrimo de sua pobreza". O juiz indeferiu seu pedido: Vive a suplicante de suas agéncias ¢ nto dos servigus de seu fitho Goncalo Silva, pois na verdade ¢ a suplieante iraba. Ihadora ¢ ativa ¢ com uma escrava que tem de nome Joana, faz continuamente quitandas em que ginha para viver com fanura competente a seu estado... Nos processos de divércio sucediam-se reclamagoes contra maridos que negavam © sustenio a suas mulheres, que se viam “... na dura necessidade de compor 0 preciso vestuxirio 3s proprias expensas, empregando-se para este fim fo trahalho de objetos préprios de seu sexo. A documentacio mantém a divisto tradicional de tarefas que vem desde 0 infcio da colonizacao. Ja os eronistas como Gabriel Soares projetavam-na sobre os selvagens; “As femeas ensinam as maes a enfeitur-se como fazem as Por twguesas © a fiar algodio ¢ a fazer @ mais servigo de suas casas, conforme 0 costume...” Fm Sio Paulo, em fins do século XVI1, alem das proptie- dades rurais propriamente ditas, desenvolviam-se atividades de anesanato caseito, com base na mao-de-obra indigena; panos de algodio, redes, chapéus de feltro, marmeladas exi- giam lideranga ativa das mulheres, pois os homens se ocupa~ vam mais das operacoes finais de transporte ¢ comercializa- A prosperidade siibita da mineragao acarretou 2 deca~ déncia desse comércio no século XVIII, uma vez que os paulistas comecaram a importar manufaturas inglesas, que competiam com o artesanato local. Entretanto, no comege do século XIX, persistiam alguns tragos especificos das tarefas alternativas exercidas pelas mulheres paulistas: uu Diz Luzia Angélica de Sé, da vila de Faxina, que, achan- do-se sett marido na Corte do Rio de Janeiro, na disporigio de uma tropa de animais cavalares © gados vacum por ¢spo- siglo € determinagio do dito seu marido, vindo a Suplicamte Quompiano £ roneR % de Taubate para farer condunie uma nova bolada que se acka ‘em Itapetininga, trazendo em sua companhia para o efeito um capataz de nome José Manoel de Siqueita, fol este na mesma reerutado © se acha com Praga asia cidade, de que tem re sultado flear @ Suplicante sem capataz para a condugio da dita botada em toral desaranjo..°." Vestir-se de mulher era ritual proprio de mascaradas enurudo, sendo mesmo casigado por lei. Frei Vicente de Salvador conta como, no Rio de Janeiro, alguns individuos fugiram dos piratas ingleses, “vestinde manto mulhetil": "0 bispo para castigi-los para exemplo dos outros pos um a vergonha em pelourinho, metido com o cesto, com uma roca na cinta..”.!% Nao eram raras as referencias as mulheres vestidas de homem, menos na sua aura mitica do que coro recurso de defesa, no quotidiano; fosse para viajar incégniia a salvo da violencia das estradas ou para melhor exercer oficios masculinos, como o de carapina. Gonzaga refere-se A mulata sensual, vestida de homem, como & melhor a real- gar a beleza do corpo, cantando o vil lund... Em Sao Paulo, onde as ocupacdes levayam os homens a ausentar-se em expedigdes pelo sertio, os papéis Femininos tomaram coloragio peculiar, que se acentuaram no. século XIX, com a persistence austncia de homens, que levavan vida andeja como intermediitios de firmas comerciais entee Rio de Janeiro, sul de Minas, Mato Grosso © Goiis. © proprio processo colonizador — a marcha do povos- mento, desequilibrio dos sexos, a tendéncia de formar fre tes pioneiras, onde faltavam mulheres brancas, ¢ de eresc nas retaguartas e vilas de homens ausentes, uma populacio majoritariamente feminina, as vezes de mesticas, as vezes de brancas empobrecidas ~ so conjunturas especificas da colo- nia, que modificavam costumes e tradicdes ibéricas, danco coloragio improvisada € peculiar as relacoes ‘sociais. como. um todo e, mais especificamente, is relacdes entre homens & mulheres. Formalmente, nas convencdes dos documentos, mais do que na realidade quotidisna, persistia a énfase na separacio tradicional de funcoes de cada sexo: nos inventi- rios previa-se que os Orfios meninos aprenderiam a ler © a escrever € as meninas a coser © bordar... Persistiriam talvez 56 MARIA ODIEA LITE DA SILVA DIAS ainda alguns tacos ibéricos, mediterrineos ou mouriscos, porém como tintura superficial de um processo social novo dliferenciado. ‘A separacdo de esferas de atuagao de homens e mulhe- res no corresponderia apenas as normas e convencoes her- dadas de Portugal, mas a uma realidade concreta de rediscri- buigdo de necessidades, com 0 proceso de poyoamento; as tarcfas especificas de cada sexo, nas diferentes classes sictais do proceso de colonizagio, ndo exam complementares © sim altemativas: procedia-se & substituicaio e @ improvisacao de atvibuigdes de homens ausentes. As mulheres eram for das a desempenbar, na sua auséncia temporiria ou definiti- va, muitos papéis “masculinos’, entre os quais, os que diziam respeito & administragio dos bens, incluindo rocas © proprie- dades de criagio de gado: te. As mulheres lo formosas € varonis ¢ he costume alli deixarem seus maridas’a sua disposicto 0 governo das casas e das fazendas, para que sam industriosas..": Muitis eram obrigadas por circunstincias a improvisar papéis masculinos. Era 0 caso de mulheres tropeiras, que viviam pelas estradas a conduair bofadas ou a vender e comerciar. Sem diivida como excecio a uma regra antiga, potém quebra frequentemente mais usual do que realmente estranha. Nos “livros de barreira’, que repistram o pagsmen- to de impostos de circulagio, nas prineipais estradas, apare- cem aqui ¢ ali registros de mulheres tropeiras. Em abril de 1847, Joaquina Ferreira de Alvarenga passava pela passagem de Caraguatatuba, com 19 bestas, tendo de pagar 38800 réis; Beralda Iselinga Pereira, com 15 animais, pagov 7$400, Qui- téria Lopes Moreira com 18 bestas pagou a quanta de 38600..." Em 1795, em Goids, proximo a Vila Bela, tem-se noticia de algumas tropeiras assiduas: Ana Lopes vendia came-seca, ‘Ana Felipe, de Sao Romio, vendia sal em pequenas quanti- dades."” Nos arredores da cidade de Sto Paulo, algumas muthe- res viviam de seus cartos de boi, fazendo transportes, trazen- do lenha ou pedras para 0 centro, outras negociando com QUOTIDIANG F PODER 7 madeira, Em 1825, @ Gamera pagevya a Maria Joaquina da Silva nove carradas de pedra a 640 réis cada uma (55760), Em 1830, na Perha, uma mulher pagava imposto sobre 0 seu carro de transporte." Em 17 de dezembro de 1830, cobra- vam-se multas de algumas mulheres, que mio pagavam im- posto sobre 0 tansporte de carros de pedra para calgamento das ruas: .. Ontem, tate com Rita de oria de uma pedseira que se acha no sfio da mesa, no baltro do Pary € The falel da parse desta Camata, se ela podia coder que ali se tirtsse algumas carmdas de pedea para © caheen Gas calgadas dis ‘nase para mais algumas obras que a Cimara necesstasse beneficio da piblico. Ela duvidow fs2é-lo sem que a Clmara The desse sguma gratiicagio e-entrando: em ajuste sobre a mesina, feos tratado que a Gimara the daria 80 res para cada wind citrada de pedra que se tirasse de sua pedreira..” (9 de marge de 1884)." Em Sao Paulo, havia falta crénica de homens para traba- Ihar como jornaleitos, nas construcées pablicas € no conser: to das estradas, onde costumavam servir, lado a lado, escra vos ¢ homens livres. Nos documentos da CAmara, de 1825, ‘sti registradas uma maioria de mulheres jornaleiras."* Ka- tia Queiroz Mattoso, referindo-se ao mesmo problema de falta de homens jomaleiros em Salvador, comenta como eram comuns mulheres serventes de construgao.* Luzta Ho- ‘mem, no romance de Damingos Olympia, trabalhava como pedreira na corstructo da penitenciaria de Sobral, no Cea- 14." O Diario Fopular, dle Sa0 Paulo, em 23 de dezem>ro de 1884, noticiava algumas mulheres que viviam de fazer em- preitadas para derrubar matos, vestidas de homem., "eo fazem tio bem como os melhores trabalhadores...*.!% Na cidade de Sio Paulo, 0 espaco de sobrevivencia das mullictes foi acs poucos sendo absorvide pelo proceso de urhanizago, mum longo confronto de reclamagoes ¢ resis téncia, Lavavara roupas nos chafarizes publicos, criavam por- cos soltos, deixavam seus animais de eriacio invadi terrenos de vizinhos; ro tendo escravos para levar 0 lixo, dispu- nham dele nos locais piblicos...! Era essencial para a sua sobrevivéncia ce mulheres pobres ter acesso as matas de

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