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PAULO BAULER

Capa: Elizabeth Kasper

BEAUTIFUL
MAÍRA
Edição Antropófagos Erótikos
2008
Passo por meus trabalhos tão isento
De sentimento grande nem pequeno,
Que só por a vontade com que peno
Me fica amor devendo mais tormento.
(Luís de Camões)
1

É Outono
Dispo-me de cores e imagens
(como se fosse uma árvore)
Reuno-me apenas em células necessárias.
O inverno virá. De frio e energias contrárias

Apago as peles com que vesti idéias e sensos.


Apenas os ossos indicam um ser vivo (respiro)
E também porque meus olhos permanecem abertos
na maior parte do tempo

No entanto, sei que sou um relógio parado, guardado


em algum canto do passado

Olho para o Nada com auto-complacência


Que estendo aos outros

Bom-dia, Nada
Boa-tarde, Coisa Nenhuma
Boa-noite, Vazio Absoluto

Mas sou pleno do meu pequeno ser


Um ser resumido
Quintessência de mim
Quero ter o modo das pedras. Não dessas
à beira nem Ao MEIO dos caminhos
Mas pedra submersa
ao fundo de algum regato escondido
ao fundo de algum parque esquecido
ao fundo

Não tenho fé. Nem acredito em reencarnação


Sei que sou carne-que-pensa
carne-que-veste-os-instintos.
Sobrevivência. É tudo o que sei.
Afinal, é outono
e preciso descansar os braços
cuspir os traços
os indícios e os vestígios de mim

O céu é castanho escuro.


A terra se amarela, amarronzeia
E há um verde musgo em meu estômago, um verde-veneno
que não posso vomitar
Mister que alquimize um vermelho sangue
veias corredeiras em cores e vidas futuras

Há um único motivo de outono:

Maíra se foi
2

Chego em casa um prisioneiro albergado


Afogado em tristeza
E a noite acentua a escuridão da alma
Embora as estrelas, ex-companheiras
Agora que a minha própria luz é só distância
Estrela morta, teimosa, sorrateira

Há a morte do corpo e a morte da alma


Mas tudo não morre, afinal?

Há o Ser e a Essência, nossas asas


E a eternidade do Nada

Escolho o Nada, se me quero eterno


(Risadas)
Lúcifer da madrugada

Sonho com o corpo frio de Maíra


Sua aura suada, um espectro feito de nada a me fazer companhia (ainda)

Sou, súbito, um autêntico homo erectus


E me tomo na mão
E me vou, e me volto
E me vou, e me volto
E me vou

E me revolto.
Ao acaso, uma outra mão percorre as estantes
Ao acaso me vem As Lágrimas de Eros
E lembro Maíra insistindo, os olhos brilhando
“Coincidências não existem”

Mas não choro, nem sorrio


Meu coração represado
Muralhas

Resta-me uma garrafa de merlot noir


Que abro com meu canivete suiço
Na precariedade do que foi, um dia, um lar

É preciso descer aos infernos da realidade


Esquecer de Deus
Usar mais os membros
Agarrar o inexorável pela gola e sacudir, sacudir
Os extremos enganosos da mente em depuração
É preciso cantar uma canção qualquer
Algo novo, sem referenciais
Que me apague os vestígios, os indícios
De Maíra e de mim

É preciso chafurdar na noite


Virar todas as roupas pelo avesso
Babar no travesseiro
E lamber o chão, como um cão
cata as migalhas
As migalhas deixadas pelo fantasma de Maíra
Nos quartos, no banheiro, no chão da cozinha
Na sala
E deixar que o gosto ruim na língua apague as marcas
indícios, vestígios, dela
E de mim
3

Súbito sou um colecionador de ar, o ar fino de abril


O azul clarinho do céu
O cheiro do mar, o marulhar nos ouvidos

Ao longe um corpo bronzeado brinca com as ondas


E desliza uma prancha em direção à praia, e gargalha
A alma, embora o rosto delicado

Impenetrável alma de Maíra


Flutuando os músculos sob massagens de óleo
Que percorro, mãos soltas da mente
Que vagueia por suas protuberâncias, reentrâncias, reencontrâncias
Profundezas da carne

O sol é companheiro, e não arde


E o mar reflete em gotículas soltas a alegria do encontro
Verde mar, verde, azul, verde, azul, mar

Verdes num átimo os olhos claros de Maíra


Duas esmeraldas marinhas de precioso quilate
Os cabelos caindo louros e cachoeiros
Até o meio das costas
Ou ao começo dos seios
Ela é discreta, e ama ao modo das garças
Leve e pacificada
No se abrir, no balançar, no se lançar ao próprio gozo
Gozo só dela, e o sorriso bondoso
A mostrar que foi bom
Maíra!, Maíra!

Maíra não voltará

As roupas de cama exibem a discórdia em que vivo


Ser em desarmonia, auto-destrutivo
Um homem sem face no espelho
Que arrasta as patas melosas pelos labirintos
A buscar mais
Razões de não ser

A cerveja enrola as idéias e os olhos


não vêem mais qualquer diferença
Entre as coisas que eram e as coisas que já não são:
o pé da cama decidindo se desiste
pratos na pia implorando afogamentos
panelas vomitando vermes brancos
Jornais velhos espalhando desinformações no assoalho
Que não se asseia nem mostra a sua cor
Uma a uma as garrafas explodem no portão
E um som, como se fosse mesmo música
Eleva canções de bêbado

No retrato, rasgado
Uma quase Maíra insiste que ainda é viva
E eu quase acredito em reencarnação

Mas a morte de Maíra não foi uma morte física


Não morreu tísica
Nem aidética, como se morre hoje
A morte de Maíra foi a morte de uma lagarta
A vida, divertindo-se nas asas de uma borboleta
Boba e pretensiosa como todas, as flores
Que se abrem para as patas

Inda se fosse outra


Nem primavera era

E lá ia ela vestida de asas coloridas, morrendo Maíra


Vivendo uma nova Maíra
Trocando a casa, o casulo, pelos jardins do éden
Como se imune a todas as serpentes
Sem ainda o gosto das maçãs, mas
Ao sabor de todas as manhãs
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Arredo os lençóis do meio-dia


O amor é (ainda) a única raison d’être
Mais que as retas técnicas de Pound, a métrica de Horácio
Ou as rimas ricas do nosso Bilac
Amor à la Benjamin Péret
Amor razão de não ser tudo o que se é
Para ser de Maíra, só de Maíra
Ser de todas as suas loucas, fugitivas
De um paraíso que ainda respira
Na sempiterna orquídea, molhada
Os pêlos d’África
As rubras pétalas de mel

O amor é a única razão de não se ser


Olhos fechados no escuro
Deixar que brilhe apenas Maíra
Sem ser mais nada que pano escuro de fundo
Para que brilhe Maíra
Maíra enluarada
Maíra que gargalha sobre as minhas chagas salgadas
Por um nada
que se tenta ser

E, no entanto, Maíra, olhos de gata


Garras
cravadas na alma
E, portanto, Maíra, e a cama vazia
feito um leito de faquir
7

Tal estória da carochinha


Maíra seria minha
E eu já aprendia
a não fumar no quarto, não jogar cinza na pia
Distraía o olhar das coxas, outras
que não as de Maíra
E os segredos de não se ser
mais que o marido de Maíra
Maíra, Maíra
Ah! Maíra! Agora serei de outra para mais me aproximar de ti

Havia uma rítmica


E todas aquelas roupas coloridas
E Maíra ali, remoendo as cadeiras como fada caipira, pronta
A se abrir feito uma abóbora encantada
Ao primeiro príncipe emproado que bem-te-vi
que tivesse uma bmw na garagem particular,
frio feito um filho de chicago a experimentar teorias
neo-liberais na corja do terceiro mundo, e quente
o suficiente para desejar a mulher do próximo
que tivesse todos os dinheiros e que os usasse para comprar
todos os brinquedos, inclusive ela
e todos os silêncios, inclusive o meu
que tivesse um troço extra além da paga
que tivesse um troço grande e o usasse como um javali
pagão
Maíra saía de fininho da festa e de mim, caía
feito folha seca de outono envelhecendo o chão
feita como foi feita a durar apenas a estação
Sombra de Maria, espectro, apenas mais um dos laços d’alma
com que se obstrui a aorta a viver sem paixão

Julgar-me-ias um louco, Maíra


Se te dissesse que ainda muito mais havia
que as curvas da tua bunda oferecida,
que os pêlos perfeitos e o cheiro nos dedos,
que os belos seios, e os mamilos sempre acesos
e eu, um ser fálico sátiro a te invadir
Julgar-me-ias um louco, Maíra
Se te dissesse que eu queria mesmo um filho de ti

Mas sempre há daqueles bares, lugares, onde se pode ir


e alguma joana helena que sempre sonha
com um homem assim;
e tantas kátias, e muitas déboras, e uma infindável fieira
de olhares que vêm nas redes, pescador
de carnes
Enquanto Maíra sorri um sorriso debochado
enquanto aproveita bem o seu bocado
de mulher livre e desembaraçada
a provar da masculinidade, espadas
sem se ferir
Porque Maíra é fêmea liberta e engole os machos da espécie
como uma sapa suga os insetos

Porque Maíra trabalha e pode pagar as próprias sedas e os cheiros


com que estende o corpo em teias
como uma aranha faz quando tem fome

Porque Maíra é ela mesma a própria razão de ser de todas as coisas


e pessoas, e é dona de um discurso filosófico-político-antropológico
que explica e justifica a existência da Deusa
onipotente, onipresente, e impiedosa
com todos os que duvidam da própria fé

Porque Maíra é também lua nova, crescente, cheia e minguante


com toda a noite a lhe servir, a engolir
sóis, como quem come escargots e depois
dulcíssimo champanhe entre os lençóis

Porque Maíra é sempre o que sempre quer, assim


máscaras e risos de nos distrair

Mas sempre há daqueles bares, lugares onde se pode ir


e encontrar aquela, que num breve abrir de pernas
ofereça uma nesga esgarçada de alma, a implorar
por salvação eterna
ciente da proeminência do macho, esta esperta raça
que recolhe a vara enquanto a fêmea acha
de escancarar a fenda sempre mais aberta
a esticar o nervo tal que fosse estaca
recolhe a vara nossa esperta raça, enquanto a fêmea
esta mocha macha
aflige as noites com seus berros d’água
Ecoam por isso os risos de antigas carmens, e os lábios
caminham canais de impunidade, alvos laços
se afrouxam ao primeiro traço, mágicos
corpos
que se transformam ao rubro correr das garras
bebendo o hidromel sagrado que escorre sempre farto

E se alegram porque obtiveram


conceder ao amo um prazer ligeiro
que talvez por isso faça dele escravo
a pagar um preço cada vez mais alto
e depois a gruta será prometida
com remelexos se oferece o rabo
até que dele reste quase um nada
hiena escura dando sua risada

Mas sempre há daqueles bares, lugares onde se pode ir


Talvez a Sorte não é tão madrasta
Talvez até por muito mais carrasca
Te faça face a face uma esmeralda
que se guardou até saber de ti
Desses mistérios que o Universo guarda
entre esses seios feitos de marfim

Talvez então a noite seja calma


e a cama avance pela madrugada
Exploda em cores como as alvoradas
que para sempre quer se repetir
que para sempre quer se repetir
que para sempre quer se repetir
que para sempre quer se repetir
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Há mulheres que estão sempre a dizer adeus


Cada encontro é um lenço de cais, um beijo de aeroporto
São mulheres impalpáveis, não tanto escorregadias
como um sabonete
mas, que sempre se esvaem
como um sabonete
Maíra dizia que nada é para sempre, que para sempre não existe
Uma fêmea feita de talvezes, de quem-sabes, de cada vez menos

Quando da primeira vez, era uma serpente de paraíso, pedindo


exigindo até
Todos os pecados:
Primeiro, deixava que eu fizesse, tocasse, entrasse, lambesse, gozasse
de todas as másculas maneiras
Uma ninfa desmaiada, à mercê do mais guloso dos tarados
Os olhos fechados, semicerrados, ao máximo entreabertos
Assim os lábios, quando não ocupados
pelas exigências de fauno
Assim o dorso, quando lhe virava o corpo
para um outro modo
E gemia baixinho, e tudo nela era um devagarinho
um gozo miudinho
uma obedienciazinha
Assim os seios, que oferecia os bicos rosados
o rosto voltado para o lado
Nem era dela a alma, que se abria em ser sugada
E também embaixo, que eu usava e abusava
e ela, coitada
cinderela anoitecida
suspirozinhos e gemidinhos
até que aliviada
Quando eu pensava, então, a hora das plumagens
Aí era outra que se mostrava
feroz e sanguinária
A cavalgar-me uma valquíria, uma amazona em temporada
A provocar em mim temores e tremores
em ver decepada, a alma
e a prata espada
Arranhando-me os mamilos, cravando-me as garras
mordendo-me as carnes
Até que a desse em tapas, até que a boca fossem lascas
de palavras tortas
Até que me acirrasse, por ofensas graves
até que eu mesmo quase
não fora um homem

Aos intervalos era um champanhe, um vinhozinho


um sorvete de creme
com coca-cola

Era um Debussy na vitrola, uma foto de menina


cadernos de escola
rabiscos e poesia

Era um filme de Welles, no vídeo


entrevistas famosas
Uma fieira de nomes e idéias, e o que eu achava dela
A parte mais gostosa, a mais bonita, o que havia de feiosa
nela
que não gostava muito do umbigo,
os seios, não, sabia que bonitos
que jeito melhor os cabelos, qual lado do rosto
e a bunda, se era a gosto
e o triângulo obscuro, eu que falava
a vê-la sem graça
E eu expunha os motivos, que a sentia apertada
viscosa, qual óleo de fábrica
macia, cheirosa, sedosa
por dentro e por fora

Que era sinal de idade, uma ruga teimosa


e as marcas de praia, e a cicatrizinha na perna
o sinalzinho na outra, se as via roliças
se musculosas
bem proporcionadas

E se voltava, se exibia, mostrava


se esfregava feito uma gata
pedindo comida

Aflito lá ia eu de novo, esculpir novas imagens de arrogância


e mansidão
Das carnes de Maíra, alma de Maíra
Impregnada de suores e energias
Equação geométrica de curvas e retas, sinuosidades
e éramos duas gotas d’água a se desmancharem no mar das tempestades
epopéicas
Vencida toda a masculinidade retida nos confins das entranhas, do cérebro
ao coração
Dos bagos ao olho da escuridão

Exausto, quase vejo, por pouco não toco


em Maíra, sorrindo de satisfação
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Mas o dia, a hora mesma em que Maíra se foi ficou retida nas retinas
assim como uma fotografia antiga
a nos chamar de volta ao fundo dos baús

Os galhos nus das amendoeiras desdentadas


folhagem amarronzada espalhada frente ao portão de entrada
Lá um bem-te-vi sem fala
buscando cobertor
E o pula-pula dos pardais ignorantes da estação das lágrimas
olhinhos malvados voltados para os restos mortais dos ninhos
a cravar os bicos nos ovinhos nem chocados
em vão

Ainda as bananeiras vadias a disfarçar com sorrisos os ventos de outono


Ainda os coqueiros vaidosos a exibir os bagos prolixos
e ainda o cheiro dos jasmins evasivos a mostrar toda a sua ingratidão
e ela resmungando providências prosaicas, desfiando, conta a conta
todo o rosário que se reza nas separações
E era um final de tarde, era uma chuva miudinha dessas
que convida aos abraços, amassos de reconciliação
E era uma valise de mão, um passar de batom
uma distribuição de malas, uma hesitação temporária
quanto ao livro nas mãos, o disco, a fita de vídeo
E era um coração guardado para a nova ocasião
talvez que bem cedo, talvez que mais tarde
E nada mesmo importa uma vez aberta a porta para as fronteiras
da solidão, que apunhala a parte que ainda ama, as garras
cravadas nas carnes
magras
E havia um convite, uma ascenção
sócio- psicológica, outros homens
novos pares
testemunhas oculares de uma nova história
uma nova mulher
E havia uma raiva, um homem apunhalado no abdômem
a parir por cesárias
clones e zumbís

E havia ainda o silêncio, a súbita vontade


de dar mais uma
trepada
Uma ereção atávica, sábios antepassados
que tratavam mulher como mulher
E havia uma lágrima
dependurada na alma
que não podia

C
a
i
r
11

Talvez porque o sol já se ia distanciando, em sua rota mais fria


Que me vinha Maíra com seus ais de família
Os mil motivos de se entregar nada entregando, ou
de não se entregar entregando
Esfregando sempre os olhos cada vez que sorríamos
ou mesmo fazíamos, um amor ligeiro como o dos coelhos

Enquanto me debruçava à boca de um poço sem fundo sabendo


Perigosamente distraído de tudo que não fosse Maíra
seus devaneios de rainha, seus medos
as preocupações mais comezinhas
os caprichos de sinhazinha, os desejos
tudo em nome de não perdê-la
mostrando o macho moderno, liberto
das algemas herdadas dos séculos de submissão da mulher

Enquanto ela vigiava e velava cada conquista feita, cada passo


Em direção ao alto
Enquanto eu me escorregava, escada abaixo
Era preciso que eu fosse um héracles para não sentir a dor
dos músculos que perdiam o rumo, e o prumo
do mundo às costas, um atlas
mil vulcões jorrando lava
vaidade, indiferença e ingratidão
E esse prometeu acorrentado a seus grilhões
a pagar o preço da luz na escuridão
sem contar um torquemada a extorquir segredos e confissões
de um herege querendo vez em quando ser
o macho da relação
E a cada pomba branca que eu soltava, cada rosa
Estratégia ideológica
era o que pensava, e dizia
nas tpms noturnas
com a soturna face voltada para a lua escura
O punhal de prata purpúrea, cravado e fuçando o coração

Eu navegava por águas cada vez mais turvas, sob a batuta


de um caronte que o meu próprio rosto no espelho
mostrava, em cada ruga diária
a direção do vento

Era preciso soltar as amarras, abrir a jaula


e deixar que o primata
bebesse até c
a
i
r
Ao mais fundo dos fundos, sentir
O hálito da morte, o desprezo da sorte
Abandonar todos os modos, encolher-se todo
Deixar crescer as barbas, as garras
Reter o sêmen, a espada
Encorujar os olhos, aprender os óleos
Com que se massageia os bagos
a não buscar sua flor

Era preciso meticulosidade de padre


escolher a cadeira, o gancho no teto
noite após noite, a hora aconselhável
o laço e o sono desperto
ser seu próprio carrasco, e suicidar o amor
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Não fôssem os galhos assim retorcidos, e os vazios


Notaríamos:
todo dia havia uma folhinha
novinha, verdinha
feito um bebê
pedindo colo, e os seios, e também pedindo um tempo
até crescer

Não fôssem os iagos, e os cuidados


de Vênus
E as cunhadas
de Eros
E o movimento dos cinzeiros, e o batom nos espelhos
O sorriso dos tempos, e os velhos
jargões das trevas
Insistindo que o amor
é besteira, é flor
roxa
que-nasce-no-coração-dos-trouxas
Sem que se possa provar que vale mesmo a pena
buscar o arco-íris nas manhãs
Chuvosas, melosas, suadas, afogadas maçãs
desperdiçadas
na alma, karma de caim
e o mel
de abel
a escorrer em vão
Pois afinal não somos todos duas metades desirmãs, escoando?
E se o inferno é mesmo aqui, nem mesmo o demônio nos quer
pecaminosamente amando

E nem todo o azul que há nos céus nos basta


quando o coração quer dizer
eu te amo
eu amo você

Ah! Folhazinha miúda, verdinha, não vá me c


a
i
r

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As pétalas da rosa no meio da sala mostravam


Éramos nós
que não queríamos ver
Pela janela nem tanto aberta a montanha, grande e tola
quanto nós
podíamos ainda ser
Meu corpo, um corpo largado, braços largados, pênis largado
Eu era a corda mais aflita de uma guitarra do Pink Floyd
chacoalhando in the wall

A voz
de um desertor
Maíra era como uma prima, mordida antiga
cheirando a adolescência de interior
Olhando para mim com todo o horror néscio dos tédios e os planos
de fugir dali, subir
aos céus como uma nossa senhora tupiniquim
Aparecendo aos fiéis entre malhas e cetins, bordados dourados, babados
coisas assim, anunciando os mistérios da moda, proferindo as regras
de melhor comprar, de melhor usar, de melhor mostrar, de melhor tudo-o-
que-você-precisa-saber-sobre-tudo, enfim
Desaparecendo sem deixar vestígios, mas haviam os vídeos
A provar a existência da inteligência, da graça, do charme
E tudo se resumia numa questão de fé
Em si
Não olvidando as viagens, e os colares
Boeings para Paris, Nova york, férias na Jamaica
Uma esticada às terras de James Joyce, um romance das arábias
E ela amava as esmeraldas, os diamantes da África
Os elegantes homens sem pátria, os marginais do ócio
cum dignitat
Castelos ingleses, armas, brasões, fantasmas
Talvez uma visita a Marte, organizar um sabá
de feiticeiras
Ficar na História, anita, guerrilheira
Abrir um hospício, inventar um método
Liberar geral, apagar os egos masculinos
Acender um brilho, um pavio
que exploda os mundos paralelos aos femininos modos
e fuzilar todos os que se opõem à nova ordem amazônica imperial,
ou outro nome
qualquer nome, menos nome de homem
Podia ser helena, virgínia, podia até nepomucena
Luciana, podia; valia lucrécia, geórgia, neferasta
Tantas maíras
quanto havia de estrelas
nas galáxias
E seria abolida a gravidez ventríloqua, tudo in vitreo
Ia nascer um mundo sem a tal diferença, e a engenharia genética
cibernética era, aquariana

E as pétalas brochas dessas rosas velhas


é mesmo a hora
de jogá-las fora

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Cambaxirra de outono faz ninho marrom


Bem-te-vi assobia, formiga faz hora-extra
E o canto da cigarra ainda é um eco do verão

Maíra gargareja uma traviata enquanto descasca as batatas


e eu tempero o pernil
Entre beijos estalados, e os lábios
molhados
debaixo do avental
Os pêlos se eriçam, e os braços, e as mãos e os dedos
lambuzados
de tempero com cheiro de queijo ao manjericão
Mais tarde um iago assustado com a minha risada
recolhe suas mãos
Há muito não via Maíra assim tão bonita, feliz
com a nossa união
Nem mesmo a malvada mandrágora azedava
o gosto da couve, o torresmo e o feijão
O pernil tinha vindo de um porco afogado em limão
Maíra um papo de anjo o café e o charuto e o licor
se chamava Beirão
O Mário dizia que o bom dessa língua é ter tantas palavras
findadas em ão

Maíra acabava o domingo e a louça acabava e o domingo acabava e a louça


e Maíra e o domingo e a louça e tudo acabava e acabava o domingo
e vinha Maíra acabava gritando as palavras sem pátria e o bom
dessa língua é ter tantas palavras findadas ou
não, não, não, não, não, não, não, não, não, não
ai!, amorzim
ai!, amorzão
ai, sim
ai, não
ai, sim; ai, não
aí, sim; áááááííííí, ssssssssíííííííímmmmmmm

Nada mais Maíra que os nãos de Maíra


e os seus sins
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Maíra ainda detinha o poder, apesar de tudo


Apesar da lacuna no leito, meu corpo sem jeito
Ia fumar na sala, conferir as estrelas, e abria as janelas
Assobiava aos morcegos, deixava que a alma
Navegava os espaços do Absoluto
Sem nada, e nada mais encontrava
Senão o sorriso de beira, seu olhar de esguelha
Sua centelha
e o meu fogo das cavernas
Fogo sagrado que urgia não deixar acinzentar

Sim, Maíra era sempre palpável como uma boca de fogão


Cozinhava Maíra servia aos pedaços
Retalhos da mais terrível solidão

Eu era um menino, vadio


que não aprendia a lição
Um macho arredio, as batidas na porta
Um amante fisiológico
que não abdicava seu trono
de macaco-rei
Por isso que katchas e débras e veras
Meras trocas de notas por moedas
Do mesmo dinheiro:
solidão
Mesmo ali, o leito, o desejo
O cheiro do corpo, o tesão
Sem poder tocá-la, arrancá-la
dos braços de Morfeu, seus orfeus
A madrugada ainda ardia, fogueira
noites de São João
Pobre d’eu, pobre d’eu
Ficava assim
querendo
Nem tinha o direito
Já tanto que feito
Quatro danças ao leito
E a tal da vontade
não cedia, não ia
Mesmo o nervo mole, querendo
só mesmo doença
talvez era a crença, e o medo
de ficar broxa
ou o medo que outro
se não desse conta
Enquanto ela dormindo, a camisola solta
Enquanto eu fumava, e pensava
que a vida sumia, e toda a existência se resumia
nela
No cheiro da pele com anaís anaís
No cheiro da xota com talco de rosas
No cheiro do beijo com a planta das tontas
No cheiro do queijo grudado na boca
Enquanto ela dormindo, as pernas sempre soltas
Enquanto eu abria outra
garrafa
do vinho existencialista
dessencializado
vivendo única e exclusivamente de suas grutas e cheiros
cheio dos receios de me perder de estar
Um não ser, fluido contínuo ahistórico afinal
Flutuando no éter da alma de Maíra
agarrado às suas tetas espirituais
A beber do leite secreto e amargo
Sendo assim tão claro que as trevas, e só elas
é que são eternas
porque nada são, apenas estão
à disposição do que lhes queira
acender as luzes
da matéria
até que morta, esta
aquela que é
origem de toda guerra, todo poder, toda
escravidão

Pacificado eu era, quando


inteiro nela, dela
Apêndice, cérebro, pulmão

Dela,
terrivelmente dela,
sem a mais ínfima liberdade
Desta falsidade a que chamam

o p ç ã o
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Há um lusco-fusco adentrando as janelas


e um maribondo preso entre as vidraças
Há nuvens plúmbeas baixando sobre a casa
Talvez almas se imiscuam, entre as frestas, quais baratas

Escurece rápido
e uma gota de suor me escorre pelo sovaco
Suor que disfarço, com medo que ela
perceba os tremores e os tambores do coração
Do lado que ainda não lhe pertence de todo, o lodo
que mantenho por baixo

Não consigo olhá-la, apenas manter a órbita


Tudo inalterado
por mais que doa

Escorrego-me feito cobra mal intencionada


em direção ao ponto da picada
Ela é de mármore, estátua
imune às minhas intenções geográficas
Vênus de malha, solto suas alças
Suspendo as caixas
de pandora
Mas adentro a cara disforme em peles castas
Mãe! Mãe! Por quê me abandonaste?
Feminino cheiro, feminino seio
Meio de se chegar
Meio de se sair
Meio de se adentrar, voltar à escuridão dos líquidos
Avesso de si
Mas a máscula ira, que não nos deixa partir
Miséria de todas as filosofias
Matéria-prima de todas as batalhas
De uma grande guerra
que um dia ainda se apocalipsará

Animal peludo e suarento, sem consciência de si


Egoísta, carnal
Substantivo
Limpo da razão adjetiva
Presas, garras, gosmas
Roncos, gritos, roucos
Gozos
Que entregam de volta a alma
Carne que se basta
Despicienda alma
desse, que agora se esvai
cheio e vazio de si

Dela a alma flutua


Do outro lado da lua
Foi bom? Foi menos?
A ela só importa a alma
Solta
Flutuando além de todos os umbigos, rainha
dos inaccessíveis mundos sem chão
Impassível mãe terra
cumprindo seus rituais
enquanto o sorriso nos lábios
espera, apenas
que tudo se acabe
de volta à calma
dos lodaçais
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Duas folhas pesadas como os séculos caem


aos meus pés agitados
Já sabendo que é quase a hora dela partir
Enquanto lá dentro, ainda a chave na porta, ela se debate
a mente quase a conseguir
Seu íntimo mundo, feito de quâsares e pêsames e adeuses
também os próprios prazeres

Um corpo em quase levitação, a carne ao toque das próprias mãos


Seria um rei, um tzar, que impérios prometerá?
Que falsas carícias? Que falsas palavras?
Acariciará seus pêlos com mãos de jacarandá?
Ou guardará receios, por isso que só almas a sonhar?

Corredor estreito, corredor da morte


e a cela da carne que encerra
mais, muito mais que um homem
prestes a morrer

O sangue lateja de volta às cavernas


Os outonos têm gelos que a gente não vê
E todo homem que ama receia a primeira
folha que cede com a marca
dos cheiros, dos lábios, dos pêlos
que não pode reconhecer
Ela ainda é fora de si, embora a hora
Senhora das persianas, das roupas na corda
Dos cozidos de domingo
Dos sorrisos, dos gemidos
Dos que constroem um mundo sem infinitos

Lá dentro súbito ela é uma pausa


Respiração alada
Vaga
Onda
Maré
Quase a se encher, molhada
Um único cheiro
Seus próprios jasmins

A pata na porta trancada


E há um primata na jaula
Ferros feitos de alma
Olhos que flecham o peito, animal
Exposto à cidade
alguns, piedade
todos motivo de rir
E agora, para onde ir?

Muro, muralha, que se abre, escancara


Sem que haja nada (ou quase nada) a confirmar a causa
pela qual ia morrer
E ele um menino, a mão espalmada
A linha partida, a pandorga lá longe a
c
a
i
r
18

Outono, sol poente, nuvens outossolentes


Galhos suplicam abrigo, deuses e abraços
Mero olhar caído sob as pálpebras
Um milhão de átomos perdem as asas
Maíra, iluminada
Acende meus pés, queima os meus passos
Ah! Quem me dera ser um tal narciso, e ela
apenas eco
Uma réstia, às vezes, desprende do passado
e traz um bafo de verão
Mas os lábios selados, os laços
frouxos, outossolentes
Ah! Quem me dera ser um tal sultão
Ou alexandre, o magno

Ou o portal dos séculos a bico de pena


Ou as cavernas
Ou outra Maíra, não essa
tricô nas tardes

Ou, que fosse só mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa
E ela as águas virgens castas
em que se banham as nove musas
Ou fossemos errantes Bonita e Lampião
Tanto que fomos samba e canção vinho e bênção hóstia e pão
Que fôssemos algo para além desses outossolentes
modos, de chuva prestes a cair
19

Essas árvores, lá fora, que avançam, pele e osso


É em vão que açoitam os ventos, pensamentos
Nesses galhos secos, tais que espelhos
A estender nos móveis a largura dos silêncios

O leito ainda é um jeito, a dragar águas profundas


Narcisos se debruçam ao poço dos desejos
Ah! Águas impuras, e esse lodo lá do fundo
Que venham, antes que o mergulho

E é talvez um modo, de súbito


Um suspiro dessintônico
Um tal que virar-se em bruços
Um martelo, uma bigorna
Cadenciados e mudos
A dar aos pensamentos
Concentrar-se o único
Corpo que se estende
a conceder miúdos

E é talvez um porte atlético


Ou óculos de inteligência
Tatuagem nos bíceps
Todos guardados aos retalhos da memória

Talvez algum antigo amigo


Ao qual se negou um dia o seio direito
Talvez remendos de filmes, personas de ficção
Talvez criados por ela, ao roçar da própria mão
Cada vez se aproximando, esses fantasmas de cama
A arder mais os desejos
Tal priápicos deuses
Que tudo fazem e concedem
Afinal, quantos somos? E ela:
Não sei
Talvez, contando comigo
da minha parte são seis
Mas nem mesmo sei, se sou
ou se é ela, não sei
Galhos, pobres galhos
Abraços que dóem

20

Aos ouvidos assustam já os ventos dos invernos


Mas umas tantas luas ainda sorrirão
Para as saúvas perderem as asas
Em definitiva queda
Ela sorri, pelos cantos, suas teias de aranha, enquanto
aos meus camaleões, me socorro
Mas se sou fresta, nunca sou porta fechada
Aberta para as janelas, ela
vaga distante
dos meus braços nus
Onda que enche, mas não rola, embora o gozo, eu sou
A cada minuto da madrugada
Na eternidade das senzalas

Ontem mesmo, um homem pálido contava estrelas


Enquanto ela abandonada ao leito era
outras aritméticas, gramáticas estrangeiras

Ao longe, um cogumelo mostra os chifres


Eu que me volto, os lábios secos, os olhos vermelhos
A cobrar deveres
de quem não mais me pertence

Abro o esquife, espanto os vermes famintos


que adentram as carnes íntimas
O beijo beija o aço frio das fechaduras
Em vão as mãos percorrem labirintos
E um cão uivando para a solidão cava com as patas machucadas
a terra ingrata
Nem há lua no céu, nem nada
Que a fizesse apenas dizer dos ascos ancestrais
Mas, não!
E o que há com ela, que pedra, não sei
21

Como o último desejo que o carrasco


Como os suspiros de um doente terminal
Como os olhos brilhantes, animal
No exato instante do fatal
Ela me concede o último pedaço
Das antigas festas de natal

E passeamos as mãos dadas pelas paisagens retorcidas


Derretidos nas retinas que não enxergam mais
Que o cinzel dos finais

A praia é cinza, embora o sol sorria ainda


para os mortais
E as gaivotas que mergulham simples traços
Sublinhando a longitude dos sinais
de um mundo que avisa: nunca mais
Obrigam sugar a seiva e aliviar uma súbita sede urgência de nós

Somos um sossego, e não queremos mais


que essa paz
A cumprir as últimas cláusulas sinalagmáticas, lá de trás:
promessas de para sempre amar, aceitar
rebus sic stantibus, que não dá mais
Metamorfosear
s
qual b t e f i
u t r f l e

Ó tristeza do casulo que se parte!


Ó, tristeza das lagartas!
E esse medo de voar
22

Outossolentes, nos deixamos ficar


O inverno virá
E a solidão é fria como os olhos de um jaguar
A espreitar os pêlos acesos do medo e os suores
Olhos que se águam ao menor pestanejar
Melhor ficar
Lamber os ossos
Garantir o minimorum quase a se soltar
Melhor deixar a pele descascar por si
Nem apressar o couro, novo
que prestes virá
Talvez mesmo haja ainda, duas ou três coisas
Há um hábito, é certo
Das coisas já se sabe o lugar

Sou um mero morcego flagrado à luz do dia


Quando ela me encara, fêmina mãe
d’água

Banana da terra, nanico, faço ainda ser áspero


Nem tanto que me jogue fora
casca e tudo
Em tudo quero declamá-la
Mas a voz soa como os sinos das tardes sacras

Ela sonha com festas de muito além


Na estúpida busca de ser alguém
Há um ritmo, porém
Que me envolve e me comove às tripas
Mesmo o pó das entrelinhas, e o queijo comido
sobre a geladeira
Mesmo o choro preso na faringe
Mesmo o café, o jornal, o leite de todos os dias

Há um ritmo, e a quietude dos lençóis


Sem que nos cobremos passagens para Artêmis

Mesmo há um batuque, um certo compasso


O coração, dono de todos os ais, os sins
e de tantas coisas mais

Há um ritmo
O coração compreende
com quantos paus
23

Ao lento palpitar de sinos inaudíveis


Cada palavra é uma janela
para o infinito dos horizontes
O sorriso, às vezes, ensaia adoçar
Meu chifre de rinoceronte
Cada palavra é uma panela
a aferventar o leite
Às vezes passos para pasárgada, usada e velha
Cerdas
de uma harpa sempre à espera
Dos sons que são esferas, bolhas
que arrebentam ao menor descaso do ar

Cada palavra é uma dialética


dos sexos, onde
tudo é seixo
na paisagem sem flor:
Maíra amalgamada ao sofá da sala
Aos pés um livro
sem pressa de ser lido
Feita de gestos outonais
muchochos
colostros de seios murchos
zumbidos
Abelha a moldar um reino
Exército de vespas prontas a ferir
Maíra e seus passeios sexta à tarde
Alma a despencar
como as pétalas das giraldas usadas
Maíra dos olhos abertos
Pernas que se desencontram
Leito pequeno para dois
Maíra e suas cólicas menstruais
suas dores de cabeça
suas vontades de gritar ao meio das noites
Maíra e seu olhar em chamas
lendo os jornais
querendo mais, quando
já desço a serra, a artéria pedindo paz
Maíra e sua concha fechada, alta madrugada
Súbito um cio acorda um fauno assassino
Seus lábios finos e frios, sorrindo
em seu lado mais escuro
Maíra e suas razões de lua embriagada
Tanta plebe a contemplá-la, cabeças fálicas
Inclusive eu
Maíra e suas malas, seus sutiãs, suas calcinhas
Na beira dos invernos infernais
Gelo
Ferro
e
Sal
24

Quanto mais a gente pensa que envelhece, a alma


ainda uma criança, chora
rola o berço de terra, estende os braços e pede:
mamãe!
E toda essa grisalha barba na cara, as rugas, a papa sob os olhos
escuros
Os nervos gastos, o álcool e o fumo, o cérebro moldado aos inimigos
moldes, todos os sapos, e os lagartos da fala, os sonhos largados com as
amantes antigas, as velhas meninas de adolescências vazias, vadias
a oferecer a racha em troca de ex
periência e, naturalmente, gotículas de boa vida
Toda essa indagação, essas rusgas, as ordens vindas de cima e a sola
dos sapatos sobre os de baixo, como se fosse tudo, tudo, absolutamente
necessário, e nem doesse
Quanto mais a gente pensa que envelhece, a alma
filha de pais separados, pede
reclama, mendiga, às vezes grita
pai!, mãe!
tenham piedade de nós
Mas a risada e a mão espalmada, Maíra dos Tempos
assassina o pai e agora cobra as palmadas na bunda
a porta trancada ao prazer dos dinheiros, do poder de ser vestal
do capital, vociferar
mentir, matar, roubar, cobiçar, mesmo implorar
um lugar ao sol, ser o próprio sol, esticar
engrossar
forjar um grelo, aço e fogo
devassar os mistérios, cortar
pela raiz as
árvores do conhecimento, o bem e o mal
expulsar adão de todos os paraísos, que o feminino
manda pegar todas as suas costelas e enfiá-las
no
mais recôndito do seu
cúpido sentido

Maíra dos Tempos ouve minha cara vermelha, aponta lá fora


mostra uma estrela que mudou de cor
Ela está pálida, e seus lábios roxos mostram
que um ódio, superior
apaga a luz

Guerreiro das trevas, alio-me aos morcegos


aprendo
a voar às cegas
Nem há por que temer os ratos, coleciono corujas
e cobras famintas se enroscam em meus pulsos
um tanto confusas nas trocas de par
Uma lilith vaidosa aceita dançar aos sons que brotam
Do roçar raivoso dos corpos, ao avesso dos verbos
Afiando o aço frio dos cutelos
25

Nuvens negras baixam sobre a cidade e dançamos boleros


em nossas novas núpcias, tangos bandaleônicos
Ao sabor dos instintos
Como se chegada a hora dos juízos
Passos firmes para os niilismos, narcisos
Todos os ritmos, éramos
Ouvidos insinceros
E loucos chapéus napoleônicos, somos

bumbas-meu-boi, bergmans/niztches, batmans, beatniks, novos


hippies, meninos de hitler, vampiros, o cio dos bandidos, barqueiros dos
infernos, punhos metaleiros, soft dreams, heavy trips, noites do sem fim,
peste de camus, primos de caim, ferros de ferir, copos de botequim, mulas
sem cabeça, sacis, morganas e merlins, símios em festim, fuzis, e uma
inocência imensa imersa em destruir o que resta dessa besta-fera
apelidada amor

Sem que ousemos, olhos nos olhos, por uma única vez
contemplar o sol se pôr
Sabemos, no entanto, a hora dos embora
Semente que não germinou
26

Maíra me olha uma rosa, as pétalas cerradas


de um caule que não se aguou
Sedento cio dos desesperados, agarro-me a ela
e imploro
um cão que implora ao dono que não se vá embora, e choro
até que, fausto
cobro de mefistófeles o cumprimento das promessas vagas
Ela me olha, apenas, nem mesmo desprezo
A vã inquietação da masculinidade rejeitada
A alma esvaziada desse corpo-cálice
Bebido, gota a gota, até a última garrafa

Há uma calma sem cheiros, sem palavras


Nos lábios que os dentes lhes servem de guarda
E afloram os ossos que eu nem sabia
E os pulmões regam as veias
como um cotidiano gesto, apenas
A cabeça, nem os pêlos
se mexem
Coxas, pernas, tornozelos, e os dedos
dos pés
E ao centro, porta renegada
é apenas um desenho clássico, de um livro já gasto
de quando se deixa a despicienda adolescência
para nunca mais

Nem pensar
outra porta lá por trás
Mesmo assim um sátiro, desenjaulado
Assoma e assume o cetro do carrasco
Frio como a lâmina ao fio do machado
Cumprindo sina por mal predestinado
Ao lapso dessas horas que afinal são dele
Imune aos sofrimentos, aqueles revoltados
Atento que apenas à claque da gentalha
Que tem na vida sua mesmo sendo chula
Frente a toda morte assim tão impudica
Mesmo grande ainda em vida fora a vítima
Ele inda maior, agora que as risadas

Mas o riso é a medida das hienas


Nem sei quem sou, quando saio
Um nada na espinha, a inutilidade
de todo esforço
Quando caio para o lado, contrário ao dela
Que se apressa a lavar o visgo
Como quem cuida da louça e da panela
27

Cada palavra é uma serpente


língua oblíqua de fora
A confundir os ódios
com o amor de outrora
Cada palavra é uma dentada, e ela
espera que doa
Cada palavra é um veneno, que mata
quando se está à toa
Cada palavra é redondilha, suave carícia
quando se alegra

Ao tempo do adeus marcado o amor corre mais célere


Apenas a carne pela carne e um mar de prazeres
Naufragamos sem tábua, nem ilha qualquer à vista
mas as delícias

Ela gosta que aponte, antes, que aproxime, antes


que acaricie com a ponta, antes
Que novamente aponte, e outra
até que manda: “-come!”
sem que saiba a obediência instantânea
ou a tortura chinesa
deste ser que sou na cama, mutante
E pode ser que dure, eternamente
e pode ser se acabe
ao mesmo instante
Cada viagem dessas, tais delícias
é mais uma pétala da rosa que já se vai ao caule
E os espinhos, machucam
Por isso mesmo as almas se debatem
Mais próximas do fim
Há o medo de perder-se do corpo
Trocar seu invólucro pelo outro
E não voltarmos mais
Quanto mais longe vamos somos uma viagem astral
A reencontrar encarnações, vidas passadas - ela diz
A diluir no corpo do outro o que somos - ela garante
E somos de cada qual apenas encarnação fugaz

E o que resta lá fora, agora que os corpos sem força


para outras ambições?
Senão deixar que a vida prossiga, sem nossa parte
a cumprir da cidade os seus rituais
Mas, a cidade resiste
Em nós os nós nos prendem aos cais
familiares, laborais
convidamentos a ficar
Afinal, se para cá viemos e somos
choro e divertimento
O ódio imanente dos contrários
A superar, vencer no outro a diferença
Para isso viemos, afinal, para ver qual
razão que vence
E por mérito e método se subirá aos céus
Ao inferno os vencidos, inda mais terrível
Se a arma escolhida terá sido o Amor

Cada palavra é poderosa


trombeta de Jericó
A destruir as muralhas alheias, a construir seu mundo
à imagem e semelhança do vencedor
Lá fora as estrelas brilham e não sabemos quais
são apenas luz
E as que ainda são incandescências
resistindo às trevas
Filhos e sinais, partículas da Vida Infinita
Verbos de Deus

Mas somos apenas alegres átomos em trevas, e elas


nos tratam com mimos maternais

Somos também um medo


do que virá depois

28

C
a
i
outra folha de outono
aos nossos pés cansados
Uma brisa convida a filosofias:
como é dura a vida de casado!

Mas os lábios ainda possuem o modo


dos primeiros beijos
As línguas sabem o caminho para os céus
Da boca ainda se debruçam palavras doces como o mel
da primeira vez
Maíra se faz uma calma e passeamos de mãos dadas
Ainda que ontem uma fera pronta brilhasse a jugular, e o sangue
latejasse prestes a matar
Mas as mãos de Maíra tecem ao contrário de Penélope
Desfazem de dia o que tecem à noite
Para um ulisses que nunca partiu, e as circes, que rondam
são a serviço seu

O sol é frágil, uma aragem fina e perfumada entre seus cabelos


acaricia-me o rosto
Quando ela se vira e sorri para mim uma intimidade sobrevivente
Os olhos não mentem, quando me diz do amor

Mas isso era ontem, agora


Que importam contos de fadas?
No contacto das peles calmas e ao peito
a alegria de um órgão de Bach
Respirando a vida que ela me dá, tudo o que só importa
Enquanto os sabiás ainda cortejam as fêmeas
e as frutas maduras
E se os olhos se me enchem de lágrimas, elas não mancham
a paz da manhã

O parque, e há árvores que nem se dão conta


Tropicália, que gargalha verdejantes ondas
Os pássaros, e há casos que ela me conta
Reminiscências de quando criança
Ao som de uma música que vem de dentro
Amoitada aos meus braços
Como uma leoa que sabe do cetro e da juba
Garras e carne

Ah! As mãos de Maíra a me acariciar os majestosos pêlos


29

Tenho o sono tranqüilo dos muito cansados


Os sonhos apagados da memória se calam
E durmo como dormem os fetos
a ruminar as trevas que breve deixam para trás

Talvez por isso não há sobressalto quando


o cheiro mais íntimo toma a forma sinuosa e marisca
Maíra, toda ela ali, a mergulhar-me em seus líquidos
pintura cerimonial para o sacrifício a Kãli

Me besunta o corpo em óleo profano e solta sua língua mais


pornográfica
O veneno se espalha, combustível
à fogueira ao centro dos infernos

Vultos dançam à volta, bruxos e bruxas reunidos


para o batismo de um nascido cristão
Arde-me o corpo, a febre pagã
de todos os delírios
e adentro a porta estreita dos sentidos esticados ao máximo
O cheiro perfumado de Maíra
e só o cheiro perfumado de Maíra, nada mais
Que o cheiro perfumado de Maíra
Me estica o arco aos máximos
Servo de Diana
Contemplo um algo desconhecido, e um grito
se vai esvaindo das entranhas da terra
Nem sei se é ela, ou se ela me grita
Sei do cheiro que se alarga, e das garras que me abraçam
E que é bom, tão bom
que bailo no éter perfumado de Maíra
como se fora essa a única salvação

Nem reconheço os espasmos, se é mesmo um orgasmo


Sei apenas do cheiro, uma espécie desconhecida de fogo
Sou inteiro um pulmão, respirando aos poros da pele
A sugar todo o perfume, e há apenas um nome
Maíra!
A me dizer quem sou
Alma que vaga para além dos destinos, sem outro instinto
que não ser estrangeiro nesse mundo de cheiro
O cheiro mais íntimo, o cheiro de Maíra
Que outro possível paraíso?
Ao manto de uma deusa que me anuncia e promete
a transmutação da alma, apenas escravizada
Ao cheiro da paixão

Ah! Maíra, aqueles nossos gritos


E sabias do fim dos nossos rubros dias
Também te perdôo, Maíra
Também negarei teu cheiro, um dia
Senhor de todas as mentiras
Na ressurreição da carne
Decerto a alma um tanto aflita
(Se não nos encontrarmos em Marte, lá pelos 2222)
30

As palavras são facas


quando os olhos brilham
sorrisos e os lábios e o corpo todo, sorrisos
do avesso demônio
oculto nos meandros imperceptíveis do seu rosto
vestido de anjo

As palavras são farpas, fincadas


na alma, a endurecer o coração pela dor das ardências
que não curam

Ela atravessa as paredes ao ponteiro dos segundos


Escorregadia como o sabonete dos antigos banhos juntos
A água escorrendo pelos ombros, formando
gotículas aos bicos dos seios e a boca
bêbada, tenta beber a seiva
Natura cachoeira, descendo ao sabor das grutas
às curvas da bunda, perfeita
mais que perfeita, a bunda de Maíra
e eu um menino
lambendo o fundo do prato de sobremesa

Ela é uma gata amuada esgueirando


pela casa, enquanto
sou um cão inútil tentando tê-la a um canto
a trocar ganidos por ronronos, como se possível ainda
a antiga amizade
O coração dói, e a raiva de ontem
dilui-se como as marcas do amor nos lençóis
que a máquina lava e gargalha
a enxaguar o ontem
Vai lavando o passado, ela
detergente silêncio
Como se não fôssemos feitos de falas

Com a calma dos riachos que se calam, quando


as águas fazem as malas e buscam outros ombros
Ela se prepara para o desencanto, enquanto
sinto esvair a carótida da alma
que tento cerzir com os fios dos cabelos soltos pelos travesseiros

As palavras são gelos, e um vento outonal assobia


Beatiful Maíra of My Soul
31

Impossível desapaixonar pernilongos, quando


a noite é mais escura e chora um choro de criança nua
Há um relógio quebrado no meio da sala e
a mente derrete o tempo do mundo
como num quadro de Salvador Dalí

In vino veritas
e quero mentiras
Ela, que importa a hora que chega, se chega
e com vontade?
Talvez ainda na boca o gosto de outro, mas
guardada a última etapa para nós
Uma inocência se faz com quantos nãos culpados?
Talvez só avançou demais, talvez
só separou a alma do corpo
e outra Maíra flutua em braços clones
Talvez
não haja
ninguém mais
que uma noite apenas, um modo de me ferir, e daí?
Talvez
me pense na hora
Quem sabe é outra a escolha
e nem basta uma noite para ser feliz?
Talvez o corpo não valha a fuga da alma, e eu
consiga dormir
In dubio veritas
só quero mentir
32

Outonos há, iluminados pelos anjos


Aceitamos o fluxo contínuo de um mundo que vive por si
Somos, todos os corpos, os fios nervosos da terra
elétrons que tentam sair para os céus
mensageiros da matéria
E a alma acompanha, cúmplice de todas as aventuras

Outonos há, iluminados pelos anjos


aceitamos os galhos nus, e o abandono
caminhamos sobre as folhas gastas
como se fossem as nuvens de ontem
porque o ar é fino, o céu é pálido
e a terra é imune a qualquer espanto

Abrimos janelas como quem abre os braços quando nos chega a nau
do amor amigo
Uma aragem fresca lava o pó das serpentes
e as artérias latejam ao som dos passarinhos
que havíamos esquecido
esses pequeninos, feitos de cantos e vôos e ninhos
As notícias da cidade são átimos, apenas
frações, que Maíra salta com sorrisos de eternidade
Nos encontraremos em Marte?
Ah! Quem sabe Júpiter, ou um quasar
será mais quente?
Voltamos pisando exatas marcas deixadas quando fomos
os nossos pés na praia
beijados pelas ondas mansas
espumas brancas de um mar agora calmo
Nossas almas se abraçam e
juram que se amam
que sempre se amaram
E há amor também no som que vem dos carros no asfalto, nos tiros
dos bandidos que naufragam
nos mendigos, esses meninos que estendem as mãos vazias
para o Nada, nas passeatas operárias
nas risadas dos exus de encruzilhada,
nas contas bancárias dos sem cara
que governam as mágoas e as
tábuas herdadas de Moisés
Que há o amor, e
as agruras da raça
Esses acidentes da alma não são mais que pernas e braços infantís
vestindo um corpo recém saído das fraldas
Maíra me deixa brincar em sua face escura
a me proteger do sol que tudo mostra
nenhuma culpa em ser pequeno, imperfeito
ser de muito barro
e pouco sopro
Despedimos os corpos sem mágoa, sem choro
Como um mero até logo, um beijo de portão
Despidos no leito, como se nada mais acontecendo
conosco, senão o amplexo carnal mais cotidiano,
como um casal feito de sábados
Amanhã partiremos, mas
hoje, e para sempre, os registros do tempo acolhem nossos ais-
gêmeos de paz

Hoje é sempre, amanhã


é depois
33

Qual a cor do sonho?


Vênus esconde sua face sob um véu escuro
impermeável às lágrimas que me escorrem pelo rosto
Maíra dorme a sono solto
de mim
Inda mais escurecido contemplo seu corpo de luz
e eu queria tanto que ela fosse mesmo minha para todo o sempre

Quase não vejo seus traços de mulher


é toda um brilho
como se a alma resplandecesse apenas
um halo de luz desprovido de matéria
e eu me debato, como um morcego
a namorar a lua lá em cima, tão lá em cima
inatingível Maíra, essa que brilha

Cúmplice ainda da sua face escura


tenho medo da luz, e me apago
Mas, no escuro os meus olhos
resplandecem enormes

Um sol que nasce na escuridão do quarto, enquanto


lá fora me esperam os pássaros
a rever antigos vôos

Já me vejo deslizando ao longo dos espaços iluminados


cantando as canções que nem precisei aprender
E os alegres cuidados
de não se deixar pegar
Pregar o fim de todas as gaiolas, voar, voar, voar
E os amigos, os assobios de perigo
E as tímidas sabiás a me convidar, as bem-te-vis
a gritar que sim
Cambaxirras, querendo casa e comida
Acasalar, prosseguir a raça, voltar a voar
Voar, voar, voar
Ah! Maíra, que fizeste de mim?
Este meu corpo rouco por tão pouco
Ah! Rever os amigos que um dia
deixei a chorar de alegria
me acompanha o meu violão
Os botequins, as esquinas, o futebol
e as raparigas em flor
As discussões de política, os jogos de porrinha
as piadas malvadas
sem preconceito nenhum

Dorme, Maíra!
Deixa eu sonhar
Deixa eu pensar
na vênus primeva
que busquei em você
E você que me deixa
um adolescente que tenta
espiar

Dorme, Maíra!
Ainda há muito que pensar
34

Como um espasmo atrasado de verão


Uma tarde abafada invade o outono
E há flores que se abrem fora de estação
Maíra arde, as faces coradas
E as ancas balançam como na primeira vez que a vi
Ancas brasileiras, convidando mesmo que não queira
Apenas brincadeira, a mostrar quem é
O jeito no olhar, um quase,que todo macho sabe, um talvez
Provocando mostrar o homem que é
Faca de dois gumes, faca afiada
A cortar entranhas daquele que compra, e não pode levar

Na panela o feijão demora a ferver


Ela passeia os seios e o vestido solto no corpo
Mostra por quê
Quer que a pegue no cio
Sem dizer do amor que sentimos, será?
Quer que a tome primeiro, aventureiro
Pergunte depois (nome, telefone, endereço)
Jamais, se ela gostou

Quer um filme pornô


sem sentimentos
(talvez dinheiro
ou algum favor)
Quer que lhe abra as pernas e beba
Quer indecências
Que lhe goze a boca
Quer que lhe vire e desvire
sem que saiba qual é
agora o que quer
Quer um orgasmo longo, múltiplo, saboroso
multifacetado
Que lhe descubra um certo ponto g
Quer um urro animalesco, um jorro profundo
Tapas nas nádegas, para aprender
Quer que deixe marcas
que doa um pouquinho, quando anoitecer
Quer um pontapé na alma
que a expulse de casa
que lhe veja um voyeur
Quer que a chame dos nomes
que áspero reclame
do seu pouco mexer
Que a trepe, que foda
como o noivo que soube
de um outro homem
Que a tome
como alguém que teve
e nunca mais vai ter
Nunca mais vai ver

Maíra na cama, amolecida


Por dentro uma chuva
ameaça cair
35

Ainda que na jarra da sala uma rosa se abra


e na vitrola uma guitarra espanhola
acompanhe os passos de Maíra
Há um algo em suas faces fogueadas que lembra dias ruins

O dinheiro é um último motivo, e a vida


que deseja, é um carnaval de metáforas
alinhavadas com escadas de subir
Ser, mais que existir
E eu, pedra de impedir
Mais um vício que deve largar, antes que

É preciso que eu queira o que ela quer


Que ela me permitirá todos os quereres
Cerveja, cigarros, livros e vinhos, escrever as palavras
de tentar tapar o sol com peneiras
Que ela, a vida cheia, me fará nem lembrar dos amigos de outrora
É preciso que eu queira, que ela
E aceite a vida como ela é
O dinheiro é um último motivo, a vida
é um quarto sem janelas, e ela
cobra pela luz
36

Precário equilíbrio, ser noite e dia


Cappulletos na rua, Monttechios nas esquinas
A vida é luta, luta renhida
Escurecer o dia, ou brilhar a lua?
Quando há amor um novo reino se anuncia?
Somos novos hereges
a mexer o caldeirão das utopias?
Há uma era de aquário, e ela
sorriso de esguelha
inimiga ou parceira?

Parceira será sempre aceitá-la


que exerça a liberdade constitucional de ir e vir
quando bem (ou mal) queira?
Há os dias da alegria tão intensa, mesmo sabendo do que está
por vir, que
Sou parceiro dos sins

É mister amar que seja feliz, deixá-la partir, deixá-la voltar


Deixá-la ficar, como um pássaro de Jacques Prévert:
Para escrever um poema de Maíra, primeiro
dizer de uma casa
com a porta aberta
Escrever depois algo de lindo
algo de simples
algo de belo
algo de útil
para Maíra
Depois, colocar a casa ao pé de uma árvore
num jardim
num bosque
ou numa floresta
Esconder-se atrás da árvore
sem nada dizer
sem se mexer...
Pode ser que Maíra venha logo
pode ser também que leve muitos anos
para se decidir
Não perder a esperança
esperar
esperar se preciso durante anos
a pressa ou a lentidão da chegada de Maíra
nada tendo a ver
com o êxito do poema
Quando Maíra chegar
se chegar
guardar o mais profundo silêncio
esperar que Maíra entre na casa
e quando ela entrar
fechar lentamente a porta com palavras belas
em seguida
apagar do poema todas as trancas
deixar livre
portas e janelas
tendo o cuidado de não deixar que Maíra perceba
Dizer então do quarto da casa
escolhendo a mais bela cama
para Maíra
Dizer do que se vê da janela
a folhagem verde
o frescor da brisa que adentra
o sorriso do sol
a festa das cambaxirras ao início dos tempos
e depois esperar que Maíra queira ficar
Se Maíra não quiser ficar
mau sinal
sinal de que o poema é ruim
mas, se ela quiser
sinal de que posso assiná-lo
Então pego suavemente
com o amor dos olhos cheios d’água
um fio dos seus cabelos,e
escrevo nossos nomes
no portal de entrada

37

Há um sol lá fora e ela tem seus afazeres


Que distanciam a grande estrela e chama um frio
Assim seus olhos dos meus lábios nem ouvidos
Relutam atender rubros desejos
Ó, silêncio! Antecâmara dos espectros que seremos

Socorro-me de Gilkas e Florbelas


A compreender o inaccessível mundo que Molière
tentou em vão seus desatinos
Estranho ser que se alegra quanto doa
A solitária sina

Cada qual dos seus gestos não são corriqueiras providências


São um véu feito de incertezas
do que realmente quer
As mãos, mecânicas, tecem esconderijos d’alma
Essas tarefas tão domésticas quanto universais
E ela reclama que não quer enquanto o amor escoa aos ralos
entre roupas e talheres
Essas manhas de mulher
Como fazê-la parar?
de andar para lá e para cá, vassoura
varrendo os nossos vestígios
para ser só dela, o lar
essa caverna
Como dizer que a louça pode esperar?
Que a poeira dos móveis só ela vê?
Que a saia rodada e aquela blusa recortada convidam a outro fazer?

A cerveja guarda os meus segredos


e fala por si
Sou um homem igual a qualquer outro, prestes
a buscar nos botequins o avesso das flores, e as botas
pisotearão impunes todas as promessas
Machos cúmplices, carcaças lúgubres, as vísceras frias
quando um nome qualquer
de mulher
Mas, ali me deixo ficar, à sombra dessa sua alma tão
fugidia quanto uma nuvem branca que se dissipa ao olhar da manhã

Em contraste com a carne, ela assobia um Debussy


E ajeita um seio indiferente a mim
Fria como o mármore da pia
em que debruça a esponja ensaboada
A torneira aberta espirra e acompanha as lágrimas
que vêm por aí

A porta emoldura as ancas de Maíra


que remexem ao ritmo dos braços esticados
O balanço dos seios mostra o quanto somos sensíveis
aos umbigos femininos colados às pias de cozinha
E assim como nem pedem licença os cães em cio
o súbito desejo me concede um direito
que ela por fêmea decerto conhecerá
desde quando, e desde todo o sempre
fêmea, nem haveria porque assim cheirar

Mas ela é uma estátua


Ao se deixar apalpar, sua alma passeia
Enquanto o dorso adormecido se deixa, os olhos se fecham
E a minha mão lhe toca o mais macio veludo que a lua pode me brilhar

Mas ela é feita de repentes e, repentinamente


o dorso corcoveia e a alma doma a carne
Tento ainda, algo mais suave
mas ela é uníssona com o ralo da pia
que suga a água suja e barulha
em choro convulsivo se entrega e lava
a carne e a alma como se lavasse
uma travessa, um garfo, uma faca
Sou mesmo um cão vadio, um vira-latas
Faminto, já não enxergo nada
E enfio o focinho, que mesmo carne gelada
é comida, e o cheiro que transverso aos humanismos
alucina, e arranco-lhe enfim as finas calcinhas
e penetro uma carne que se finda
É por isso mesmo que se deixa, eu sei
Mas que importa agora que sou rei
e amanhã mesmo não serei?

Saio de casa e sei das lágrimas


que Maíra lava como se nojo
Meu choro
escorrendo pelas pernas
38

Tããññññññññññññññññññ
Lightnin’ Hopkins geme a guitarra
O blues adentra a alma
Vasculha
quase dói
E nós, trás as pálpebras
semi-cerradas
nos olhamos
curiosos do momento
Bruxas voejam
Asas abraçam lâmpadas

Apagamos as luzes
Bruxos nós somos
Nesse mágico momento
em que nos debruçamos, curiosos
sobre as próprias almas
E ali estamos nós, mais outra vez
ela me olha dentro de si
assim também eu olho

O beijo roça os lábios, acaricia


como uma brisa fresca e verdejante beija
lábios impossíveis
Dançamos no escuro
A única percepção é
somos nós
e o mundo
Brilhamos no escuro
Dois pontos que se juntam
A paixão de estarmos juntos
sem outros brilhos
a ofuscar os espelhos

Impossível mundo
múltiplo
divisível
E o destino das almas, pálidas

O mundo é em volta, tudo escuro


Somos nós
Cegos de amor profundo
Olhos semi-cerrados, cegos
Das próprias luzes

39

O sofá da sala é frio, e ríspido


Mosquitos sugam os sonhos
Zumbichos

Do outro lado da Terra, ela


a porta fechada
Minha ereção aponta na direção errada
Sei que não há mágoa, só urgência
De pensar em si sem mim

Um sorriso antigo me acena, convida


a passear, um jantar
mudar de ares e companhia

Nossa vida restou linear, sem as necessárias esquinas


a surpreender os gestos e as rugas
Ela me castiga, machuca-me a pele
na ausência do seu corpo à noite
Me nega O Cheiro
das madrugadas
Os Pêlos, mesmo os cotovelos
Maneja bem os seus açoites

Blindada é a alma, do mais puro aço


Intransponível, insondável
O lado escuro da Lua sempre voltado para o outro lado
Terra feita de trevas, e frio

Chorará, talvez?
Fará planos de nunca mais?
Quem sabe só deseje mudar de ares, e companhia?
Talvez hoje mesmo se decida
e ontem foi a última vez
Acordará cantando aquelas melodias?
Talvez sorria de canto
Uma valsa no olhar brincando, vingativa
A sussurrar o nome de um outro par
Ao menor motivo corriqueiro de me lembrar
Que sempre há quem a queira
Que é só me deixar
E eu mesmo, sempre na prateleira
Para quando quiser
De quantas gavetas é feita a alma de uma mulher?
Amanhecerá pálida?
Terei que tirar coelhos da cartola?
Servir-lhe o café na cama?
Qual das apologizes, atenderá suas medidas?
Talvez nem mesmo diga
bon-jour tristesse!

Talvez que abra as janelas convidando meu sol entrar


Talvez grite meu nome sem mesmo deixar a cama
Me abrace, me beije, se chegue
Seja feita de pernas
que se abrem, e me apertem
Até que eu seja a lesma, lhe prometa
Nunca mais deixá-la sozinha naquela cama larga e fria

Até que eu seja a lesma, e ela


Se vista a mais bonita
Se encharque da colônia que dei pensando em mim
E saia para as ruas tão cedo que
nem eu possa dizer um ‘té-logo-meu-bem
Dizer que a amo, eternamente amarei

Talvez amanhã doa muito mais ainda


Que já doeu um dia

Talvez seja amanhã o tal eclipse que anuncia o fim


E o quarto sem porta
E a cama vazia seja larga e ria
De mim
40

Há um tom de claro-escuro às seis


Seis, exatamente às seis da tarde vivo meus dias
entre o céu e a terra
Horizonte ao fundo, só as montanhas me escutam os braços mudos
Tudo convida ao portal dos bruxos que agem nos outonos
Dentro em pouco será a noite fria e ainda os blues me afinam
Vivo os séculos, segundo por segundo
O mundo me arrasta ao pó das galáxias
Necessário ser surdo, vegetal que despenca aos risos do passado
Antigos atritos, outras estações
Abismos se abrem, recolhem as asas podres
e os pobres frutos que se foram
Ela alheia o aleatório ser que sou, desatenta
que ainda me resta a dor
Com poeira o vento arranha a alma, a folha que ela não regou
Dependurado ao galho áspero do que é solidão reclamo ainda o amor
Árvore mater
que me rejeitou
Somos sombras fugidias, agora, brincando à luz opaca dos motéis
Buscamos descolar os corpos ainda acostumados, devagar
A não doer demais, evitando rasgar tudo de uma só vez
Suamos as peles
Quem sabe desgrudam mais fácil?
Os corações molhados, um amor antártico, gelo e distância
Estalactites
p
i
n
g
a
n
d
o
41

...mas um solzinho infantilmente brinca de subir aos pés de Maíra


um sol de faces rosadas, e ela se deixa ficar chinela dependurada
o sorriso quase, o jeito de Iracema a virgem
dos lábios de mel
Sobre a cama ainda a bandeja lembra breakfasts de outrora, embora
a manteiga fechada, os utensílios reunidos mostrem
correção demasiada
O momento lembra o apartamento da rua Vinícius, o começo
dos nossos vícios
Um tempo de vinho e patê
queijo e salaminho
política e música, e ela a única musa
reinando absoluta sobre um mundo que ia ser

Eu me postava muralha e espada, aço e fogo, guardião


E lhe preparava a galinhazinha, a rica farofinha
Ela ria e comia, depois do amor
Um tempo de amor que se imaginava mais carnal
Sem mistério maior que os próprios corpos ainda tão inocentes
das ciladas e perigos
da curiosidade desenfreada, das intelectualizações
De que haviam pecados sem absolvição possível

O pensamento se transmite, afinal?


O amor faz a ponte, telepatias do coração?
Então, por quê marulha repentina e os olhos me olham
pedindo perdão por nós?
Se achega, me abraça, me beija uma beata, murmura e eu ouço na alma
Que Deus, que todos os deuses tenham piedade de nós
Cuidadoso eu a deito no leito, aproximo primeiro o desejo
e ela se abre uma rosa
ao sol da manhã
Há um cheiro de incenso e ao modo dos anjos amamos
A mesma moçoila e o mesmo rapaz que ainda somos
E um solzinho de outono
Que nos colore de luz

Não há fúria, nem calma nenhuma, apenas os beijos dizem que fazemos
amor
Atento sou apenas à textura da pele, ao perfume dos pêlos
os seios pequenos, meu peito de remador
A faca e o queijo, apenas, derretendo ao próprio calor
Fornalha ocupada apenas ao aço da espada
Nada mais que o ofício de macho e a fêmina arte de abrir e fechar
pedir e negar, harmonizar, igualar
No gozo somos anjos sem corpos

A tarde avança, deitados ainda estamos


brincando de pombos, arrulhos e balanços
brancos da paz dos paraísos, nem sacros nem profanos
de volta ao Tao

Quero ser Humphrey Bogart, passeando com Ingrid Bergman


num conversível vermelho
pelas praias do nordeste brasileiro
rindo e fazendo, fazendo, fazendo
amor nas terras do sem fim
Quero ir a Key West conversar com Hemingway
passear de barco em Angra dos Reis
Queremos ser americans stars
que sabem viver
e não essas cabeças cortadas
miséria da raça
cristos sem jaça para o prazer
Queremos ser apenas un homme et une femme
Jean-Louis Trintignant/Anouk Aimée
naturellement bons

A noite inda é uma cama larga e mágica, tapete voador


mil e uma noites
Dormimos no aconchego dos braços e pernas
polvos e centopéias
Ainda sou dentro dela, e ela em seus sonhos murmura:
Play it again, Sam!

42

Em sonhos somos filhos da lua


Sabemos que o tempo é brinquedo terreno
Ilusão, que o sol imprime aos afoitos
Afirmação da majestosa estrela
E a terna Terra sabe que não se move sem ele
Não há porque temermos estações, separações, amanhãs
Se as almas voejam para além dos fusos, juntas quanto queiram
Sempre juntos quanto nos distanciemos
Quando os demais encontros não afligem, somam
Elos do grande gozo
Portanto, dorme, amor, sonha e cumpre seus desejos
Que eu, o corpo engatado ao seu, também vôo com os meus
De manhã voltamos os corpos etéreos, recolhemos os cordões de prata
E talvez voltemos filhos do sol, e nos oremos outras orações

43

Os so nhos mais liin dos


Sonhei!
A voz de Maíra cantando fascinação por mim
Que a organização da matéria faz de nós apenas turistas do etéreo
Breves instantes desse amor eterno
Escrito a pena d’alma nos anais akáshicos
Com versos de Shakespeare

Deixarei que vás, portanto


Há outros carnavais, portanto
Nos encontramos depois

Que há tempo sobrando


Nesse cofre secreto
Mistérios desse amor completo
E os corpos quietos, sem choro, sem dor
Alegria d’alma saber quanto somos
Que sempre estaremos em todo lugar

Ontem hoje amanhã são uma coisa só


44

Os dias passam, e um Camões me dói na alma:


passando por meus trabalhos tão isento
de sentimento grande nem pequeno
que só pela vontade com que peno
me fica amor devendo mais tormento

Maíra já faz planos, enquanto antecipo dias cinzas


Sofro como porco escolhido para a ceia de natal

Tento mostrar-me gênio de lâmpada


Crio alternativas, sorrateiro que me inclua o antigo jeito imprescindível
Ela sorri de lado, navalha na carne tenra do coração
Torno-me um vício único, todas as manias são maíras:

vai-me amor matando tanto a tento


temperando a tríaga com veneno
que do penar a ordem desordeno
porque não mo consente o sofrimento

Porém se esta fineza o Amor sente


E pagar-me meu mal com mal pretende
Torna-me com prazer como ao sol neve

Mas
se me vê com os males tão contente
faz-se avaro da pena, por que entende
que quanto mais me paga, mais me deve

(Coitado do Ezra, que sabia tantas línguas


e não tinha a sílaba para saber Camões)
45

Os pássaros, letárgicos, têm preguiça de cantar


saltitar galho em galho, e as garças
alvas graças, não vêm mais nos visitar
Emprestamos ao outono os traços fortes da melancolia
A natureza sempre sábia se cala
Ao silêncio dos aflitos
Maíra separa a roupa suja e leva a lavar na rua
com a família
Tenho o temor do sacerdote que contrariou a deusa
Vênus implacável
Uso e abuso do álcool, da erva que libera
passaporte, passagem para o éter
da imensidão angelical
Anjos de brinco e batom

Mas vejo que ainda há vida no mundo que habito


Cães deitados, gatos ao largo
pardais ciscando no pátio, indiferentes
ao cinza pálido das tardes
O vento queima as folhas dos coqueiros
as bananeiras sorriem, desdentadas
Nuvens plúmbeas ameaçam um sol envergonhado
que chora raios azulados
aos cantos e frestas
parceiro dos ratos
que espreitam
Formigas trabalham rápidas, algumas escorregam
Moscas e mosquitos se abrigam, aguardam
e as baratas, e os morcegos dormem ainda
A essas horas, os mendigos buscam pontes, viadutos
os bandidos afiam
suas lâminas

Há um povo faminto, meninos


de rua
Há doenças incuráveis, suicidas
mortos de súbito
Alguns gritam, há os surdos
de alma
Os loucos nos hospícios, os estorvos das famílias
Há alugueres vencidos, duplicatas
Impostos sem sentido, muito circo
de lona gasta
Há possibilidades
jamais contempladas
Mulheres grávidas
crianças sem nome, sem cara
Há machos na alma
de um corpo fêmeo
(E seu contrário)
Há os que partem
sem destino
Os que se humilham
pelo vil salário
Os que perdem a gravata
antes do sapato
Há os que amam
e não são amados
Há sonhos sufocados
inda nos berçários
Garrafas vazias
e últimos tragos
Há vida ainda
no mundo que habito, e

a b l a d
c m a e n o

me largo à deriva, sabendo, por uma violeta parra


que tengo tantos hermanos que no los puedo contar
y una hermana mujer moça
que se lhama

L I B E R T A D

46

Libertar-se do corpo amado é, talvez


tarefa de um outro mundo, e o jugo
gigante da alma nos escapa, quando
julgamo-nos maiores que
o aço desses pêlos
o visgo desses cheiros
No entanto parece fácil
nadar nesse oceano
De carnes salgadas, de sereias
que abundam os quatro cantos
Parece fácil dizer: -eu te amo, e daí?
outras tantas me encantam
Há tantas flores nesses jardins
Há tantas conchas, e a espuma das ondas
lava as areias
em que deitei teu corpo nu
Logo marcarei com outra a terra úmida e branca
ao mesmo calor

Mas mesmo o maior riso carrega dentro a antiga dor


Basta um pálido prateado, ao olhar do acaso
Dedilhando o azul escuro do mar
Que a escuridão da noite é na alma escuridão maior
E a lua, traiçoeiramente linda, lembra o quanto com ela era melhor

Maíra me mata aos trâmites chineses


Tecendo com paciência os dias e as noites
Com que me fere a memória, para sempre
Enquanto livra para si os anos melhores, frutos do próprio destino
De ser maior, muito maior que ser de mim, ser por mim
Ser por ela, que ser de si é ser da deusa, ser a própria deusa
Encarnação e afirmação dos fêminos músculos, glúteos
a mastigar os sóis

Cotidianamente assim ela me vem, tão fina e pontiaguda


quanto uma bachiana do Villa
E a voz número cinco me enche os ouvidos
dos meus próprios lamentos
os que estão por vir
E os dias passam, e as noites
Como se o outono fosse lá fora, apenas
Contudo, nunca a natura forma esteve tão dentro ao nosso peito
Nunca notamos tanto a estação das peles
que se trocam
Somos parceiros de um jogo que um manto frio acoberta
E as pernas dessa quimera
Haverá ainda amor nestes silêncios?
Em qual parte da alma se esconde a praga que desbasta
nossas verdes plantações?
E a verdade que nunca se manifesta (nossas mútuas promessas)
nem em nossos pensamentos, nem em nossas palavras
nem em nossas ações?

Se as doces palavras ferem mais que o sal grosso das samouras


Se o sorriso acende os olhos de lúcifer
Se os abraços são laços lassos quanto gatos deitados
nas tardes de calor
Se o gozo de néon não aquece as noites frias
Mesmo o gozo colorido é sempre um medo
Gozo do sem fim, gozo ansioso
Gozo dos que tentam kama-sutras em leitos de pardais

Uma lilith orgulhosa, ela, de todo o aço que é capaz


Enquanto sigo a via escura com pés sacerdotais
Ah, amor! Não te amei o mais rubro dos mortais?
My red Juliet!
Não adentrei contigo as grutas obscuras dos desejos mais travessos?
Não esganei, por ti, todas as culpas?
Não fui o manto mais escuro com que exibiste a tua avessa luz?
Y tu, mujer caliente
now is cold como a queimadura sem cura, y
anuncia as chagas da minha alma impura
para quem quiser ouvir
Agora sei, mujer, o quanto quero partir
Quero partir, largar da casca seca desta árvore gasta
Abandonar-me nessas folhas soltas ao cair das tardes
E no entanto Maíra, Maíra e seus visgos
Que ela deve cumprir o ritual para o qual afiou a lâmina sacrificial
com inabalável devoção
E tome tarefas, dessas, bem comezinhas
sem as quais não há vida, nem separações
E tome deveres de casa, óculos na testa franzida, ela ensina-me a viver
Senhora do talvez, diz que nem é um fim
Talvez um rissorgimento do que prometemos, cumprir o andamento
Improvisar os espaços, criar os compassos da canção possível

Carniça à vista, hienas me assaltam, chegaram


Os urubus
Ela tem asas nos pés, e os gestos
alargam o universo dos meus ais
Um barco parado, um leme ao contrário
É o cais que se v a i

Murcham as rosas, vozes clamam lá fora


E há um medo a cada instante, talvez ponto final
Antigas amigas amiudam os dias
Mesmo as noites não escapam da fúria assassina das horas poucas
Tão poucas as gotas de orvalho em nossos lençóis
E as chaves não abrem
portas que outrora
nem lembradas
A régua e compasso são feitos os horários, agora
Que a casa arrumada sempre espera
alguém
Que espreitará palavras, investigará as marcas
Futuros vestígios de mim
Tudo se torna assim impecável
Um hotel de primeira
recebe as malas

Há um cheiro na sala
incensos da Ìndia
Uma cozinha arrumada
e a pia sempre limpa
Discos e livros em fila
educados em Harvard
Há um palco iluminado
lupicínios e gardéis aguardam
apenas, que a platéia dessa temporada
ordene se abra
a jaula dos leões

Um primeiro espinho corta o ar uma flecha para São Sebastião


Em coro todo um povo delira:
Criisstããããããããããããããããooooooooo!!!!!
47

Uma hidra de lerna, sou múltiplos desejos


Quero ficar, tenho cócegas de ir
Ora me agarro a ela, aos pêlos dela
Sanguessuga embriagada, presa à árvore larga e soberana
Que estende os braços longos para o céu na direção do sol outonal
Ao calor dos anjos piedosos da transmutação

Ora trago as mãos pálidas


habitante de um poema de Drummond
sisudo, contido
largo na intenção
de transpor
na trilha dos imortais
os umbrais
para além do humano amor

É preciso que o universo pare, aguarde


meu coração de menino

s
Consulto alquimistas, leio poesias, tento
transmutar ouro em gozo
sem o fogo de Maíra
Inspeciono as bundas
que enfeitam as avenidas
Vasculho seios
por frestas e esquinas
Avalio as pernas que erguem
sempiternas odes femininas
Meço os lábios, as bocas
o tamanho e o peso dos beijos
Às vezes, ouso
adentro belos olhos, percebo
imagens invertidas
A registrar possíveis
fotografias kirlians

Enquanto, um Chico Buarque canta na memória acesa:

Têm dias que a gente se sente


como quem partiu ou morreu
O tempo estancou de repente
ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter a iniciativa
no nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda viva
e carrega o destino pr’a lá

Cantar, sem a voz dos pássaros


Completar a letra
com o som das esferas
Sem a garganta desses bardos e profetas
que ajudam as almas com seus copos d’água
que fazem leve a carga mais pesada
É preciso que o universo pare, aguarde
meu coração de menino

r
e

r
c

48

É preciso que o universo pare, aguarde


meu coração de menino

r
e
c
s
e
r
c
49

Para isso é preciso que se volte no tempo


A galopar o ginete pelos pampas infinitos da imaginação
Sonhos de criança, benditos sonhos de criança
E uma chica linda, bondosa
Sempre a compreender, esperar
Pelo dia em que hei de descansar
Ser seu par, descansar minha cabeça de menino vadio ainda e sempre
Sabendo apenas que o mundo
gira por ela
Chica bondosa, rosa cheirosa
Sempre a me abrir seus braços, suas pernas
Sempre a me prender os traços nos seus laços carmesins
E os nossos laços d’alma, laços rosas a nos religare

É preciso que se retorne aos primeiros cantos


Quando nos perdemos, querendo apressar a infância
as adolescências verdes e maduras
Tantos caminhos e eram todos no mesmo sentido
É preciso que abracemos as fadas primeiras do nosso amor

Aahh, minha Maíra!


Perdoa e acolha em teu regaço puro, e o cheiro
Do nosso amor primeiro, o fogo aquecendo
Sem qualquer pecado em se querer
O teu sorriso brando, branco e rubro
das pétalas da tua flor ao se abrir
Enquanto penso e choro e rio sempre sorrindo por dentro
Pingos de sol atravessam as vidraças com que protegi a alma
Das coisas todas
Há um tempo indígena, um tempo das cavernas e modernas opções
Átomos reorganizando os espaços da existência em ação
Mas o que há mesmo e sempre é a sempiterna e mesma equação:
Há o Cheio
e o Vazio

50

Maíra me alcança a mão, diz coisas do seu coração de mulher, e é


silencioso o mundo, salvo pelo om primevo das galáxias
Que banha a casa de sacra atmosfera

Saímos para o éter das ruas as mãos dadas


Como um são francisco, uma santa clara zefirellis
Enquanto recolho pássaros ao ombro ela cura meninos de rua
leprosos e ódios do dia a dia
Dispenso trabalhos, rendas e salários, para só contemplá-la
Para saber os porquês insidiosos de nos fazer esquecer do amor
Com que nos brindamos os corpos e a fagulha dos olhos
E a bênção das mãos e os lábios vermelhos da paixão

Descemos do paraíso para a fornalha da carne com exatidão trimegista


Meu corpo se encaixa, ela me abraça braços, pernas, alma
Tudo se encaixa, afinal
Um planeta feito de tomadas
a iluminar as trevas siderais de kundalínicas energias
A soltar os nós, a fazer de nós as tochas vivas de Deus

Lágrimas escorrem-lhe ao rosto quando o gozo


E eu bebo da sagrada fonte da eterna
juventude das almas que crêem na imortalidade do tao
Nós nos amamos, só por isso confiamos na Salvação
Anjos nos cercam, protegem nosso humano jeito de ser feliz

51

Mas vivemos ainda o tempo do jamais crer, dizer, jamais fazer


o que o próprio coração manda
E essas sinuosidades em que se perde o grande amor
Em cada esquina os múltiplos perigos, os convites coloridos e as vitrines
expõem outras modos de ser mulher
Mutações de formas, de cheiros e de pêlos, sempre uma new wave
uma new age, um new way of life
Estão todos usando, dizem as vendedoras de sapatos
Estão todos comprando, garantem os cartazes, e sorriem
Indiferente às lágrimas que virão dessas luas sempre novas
na busca atônita do amarelo óvulo
nesse fêmino compasso que urge atender
Mil perigos, morcegos rondam qualquer réstia de sorriso
E a aura luminosa, e antenam as antenas da noite escura
E os arautos das trevas a tentar quem ela é
Mil estrelas invejam seu brilho no medo de se apagarem
Mil perigos, e os filhos do sol no afã de queimar faces pudendas
que não podem tocar
Mil perigos, mil perigos rondam a mulher amada
Sem que se possa prever ou guardar
Reter o momento, a interseção, o ponto de exclamação
Na marcha infinita das coisas que o tempo faz e desfaz

É preciso voltar ao sonho primevo das fadas imemoriais

52

E no entanto, é outono, irrevogável outono


Das coisas que emagrecem de vida
Retendo ao peito as lágrimas que não podem ainda cair
Nem há como, por mais que filosofem arquitetos e casais
Inverter as estações da natureza lá fora, exata a mesma
latejando lentas em nossas veias
Em nossos braços lassos, por mais que apertemos os nós
Carnes fracas para almas de asas largas
Por isso ela é cada vez mais rarefeita
Mulher feita de suspiros, fogem-lhes os gritos
Com que se alçava o próprio corpo ao prazer da alma junto aos deuses

Na incerteza desses raros gritos somos agora um amor possível


Sem o fogo da paixão que consome, lambe o coração e arde
Conhecendo o medo dessas corredeiras, das cinzas que sobram
ao fogo das paixões
Tal como nos ensinam os que as viveram antes de nós
E os manuais, e os pais, e as leis sociais corroboram
entre grades e orações
Guardamos calor, economizamos. Diz um João Bosco na vitrola que
Não estamos alegres, é verdade, mas
porque razão haveremos de estar
tristes?
Apenas é que somos de volta à precária espécie
Capazes de momentos, apenas
Em meio a tanto que o tempo faz e desfaz

Talvez Maíra possa transmutar em glória o fracasso


Talvez eu enfim atenda aos silenciosos apelos do seu coração calmo
quando o meu é um corcel em brasas
Talvez agora possamos deixar que o tempo passe simplesmente
Quem sabe envelhecer juntos
Na resistência dos casais que fincam bandeiras
No esconderijo disso que chamamos lar
Atravessando as dúvidas como quem aprecia um punhado de ar
E no entanto, lá fora, os mambo kings cantam canções de amor

Maíra, a luz apagada, estirada ao sofá da sala


E eu acompanho com a alma o girar da vitrola com Tom Jobim
Os sons que ferem implacáveis um coração bem-te-via:
Passarim me conta/então/me diz/ porque que eu também não fui
feliz/
me diz o que eu faço da paixão/que me devora o coração/
que me maltrata o coração

53

Ao longe um trovão toca a sua tuba, anuncia


lágrimas aos olhos de Maíra
Vidente, antevejo a Grande Bomba que mais dia menos dia
destruirá meu mundo
no eterno retorno ao tempo dos desertos
Um vento furioso esmurra portas e janelas
Assobia à flauta das frestas cantorias fúnebres
Não sei por onde gemem violinos
E ao toque dessa fria orquestra sou
platéia em silêncio profundo
Uma alcatéia enfurecida, faminta
fareja os nervos de Maíra
revolve-lhe as tripas
atiça sua alma
Que saltita diante meus poros, corta pelos lados
os lábios apontados para baixo
um coração afogado em ódio difuso
e angustiado
Mesmo um diabo teria pena dela assim
um soluço que não consegue sair
Mas a paixão frustrada é avessa a toda solidariedade
E em sentido inverso integro a manada em disparada
Que escoceia e mata sem contemplação
Sou um ser desprovido de sentimentos
Que requer o alimento dos vampiros seja lá como for

Um som repetido rola da mente aos braços


Rolling stones gritam
I can get no
Satisfaction
Minhas veias são as cordas eletrizadas das guitarras
Que me povoam de instintos básicos e urgentes
Premência da alma em não se deixar esmagar
Aliando-se à carne, brusca e incondicional
I can get no
Satisfaction
Minha mão espalmada marca o refrão
Na bunda arrebitada, solto a súbita raiva e um tapa estala
Uma ponta de unha me atinge o nariz
I can get no
Satisfaction
E deito-lhe o corpo retezado ao chão
Prendo-lhe as mãos, forço-lhe as pernas
Quero um beijo roubado em assalto
Quero mais
Quero que saiba da máscula ira
Quero tomá-la sem rendição
I can get no
Satisfaction
Mas ela prefere outra guerra
Se abre me aperta me grita: vem!
Desafia o macho ancestral que força viver em mim
Erguendo o ventre, retorcendo a boca
Na mímica obscena dos seios
No palavreado das putas
Na língua rija e serpentínea
I can get no
Satisfaction
Por um triz não recuo o dardo pronto
Não esbofeteio a cara desavergonhada
Não lhe grito umas verdades, mas
I can get no
Satisfaction
E me enterro todo, imprenso seu corpo
Mordo o bico estendido, o pescoço
Marco-lhe minha marca roxa
Sugo-lhe os poros da pele
E percorro todas as aberturas
E enfio a língua às grutas
Da rósea à mais escura

I can get no
Satisfaction
E novamente o arco aponta a seta ao alvo
Atinge em cheio o mais vermelho
E cravo em cima, perfuro embaixo
Aproveito cada centavo dessa paga vil
I can get no
Satisfaction

Ao longe um trovão toca sua tuba


Flautas frestas fúnebres
Violinos em fúria, agora
Nova carmina burana
E ela geme e grita e chora e morde
E me crava garras rubras, machuca
Aperta-se toda, e goza e morde
E novamente goza
E grita e goza e chora e morde
E goza e goza e goza
I can get no
Satisfaction
Também eu vou junto e gozo
Grunhindo feito um porco, quase um medo
De parti-la ao meio
De arrancar-lhe um seio
De fazê-la em pedaços

Anoitece
Uma chuva outonal barulha na vidraça
Maíra dorme
Ao longe ecoa uma risada
Ou será sua alma que ri, vitoriosa?

Afundo a cabeça em seus braços e seios meu sono fugidio


Voltam as guitarras, os tambores, e o coro de vozes
I can get no
Satisfaction
54

Sabemos todos que o mundo todo é em tudo maravilha quando se ama


Então por que nos franzimos e da janela não vemos o céu se colorir?
Mas não sabemos se merecemos desfrutar o todo ousar o amor maior
Ou se mesmo nos basta primatas engatinhar como bebês
Se touro de Vesta, cascos firmes, arado da terra
Se búfalo branco, Manitú, os olhos cheios de sol

O certo é que por ela eu desceria aos mais dantescos infernos


Por ela eu partilharia os demônios e mexerias as caldeiras
Por ela riria de um braço esticado em súplicas num rito macabro
Mas, o que estou mesmo a dizer?
Se as coisas nos reduzem simplesmente a nada, canta o jogral
Do nada simplesmente temos que partir
Produzir vibrações, rotações, girassóis...

Outossolentes preparos preparam um nada dentro em nós


Estação que prefere a paz sem calor, sem temporais
O amor feito de esperas, de amadurecimentos
De sempre deixar para amanhã
Para depois de amanhã, para possíveis reencarnações
Bobagens que adiam o amor para uma pasárgada qualquer
Enquanto nos fazemos seres dessintônicos tolos profanos
Quando ameaçamos com um simples amor entre os humanos
Como se deuses fôssemos e não tivéssemos que morder maçãs

Na verdade sempre se sabe que o mundo foi um dia maravilha


Quando o amor à frente já ficou lá atrás

Maíra fecha, cuidadosa, a gaveta da cômoda


De onde estou, encaro seu rosto no espelho
Nossos olhos se encontram
Nessas frações de segundo em que o mundo, maravilhoso mundo
Volta a girar
55

Meus pés estalam as folhas secas das amendoeiras


Esse manto dourado que se estica enquanto as nudistas outonais
Na alma um soul new age eleva a mente a outras dimensões
Como se um cotidiano sem Maíra fosse um cotidiano atemporal
Uma bolha de ar vagando pelos espaços, talvez
Uma alma que aguarda a hora de nascer, descer
Ao corpo carne carma

Não sou alegre ou triste, nem melancólico


Meus dias são os dias claros de um sol sem sombras
Em que os traços delicados de Maíra são meros vestígios
Embora um lobo estique o focinho em busca de um cheiro
Baldado intento, que os ventos confundem

Cenas tantas vezes repetidas, minhas saídas


agora diferem em peso e medida
Seus olhos são secos, os lábios são pálidos
de curvas e movimentos
Os ombros buscam a nau dos cotovelos
todos desapontados
Suas mãos quase não se movem
frias como um freezer de hospital
Nem tecem as linhas nem sublinham as malhas da separação
Sabemos que os sinos do silêncio pesam mais que mil trovões
Ainda quer, definitivamente quer, livrar-se de ser verdadeiramente livre
Que só há liberdade no gozo do amor cúmplice, desbragado
Assim ao menos lhe digo dessa imunidade ao comezinho mundo
Que a todos atiça e a tudo mata
Esse mundo dos sentidos ilusórios
Dos cinco pontos cardeais
Mas a liberdade nela é delírio fêmino
Livrar-se disso, livrar-se daquilo, mundo dos relativos modos
Sempre um soltar-se, agarrar-se, de um trapézio a outro
Sempiterna busca de um seguro jeito de ser
De estar num mundo que assusta e nega a mulher que ela é
Assim ao menos lhe digo
Livrar-se do amor por mim é sentir-se segura do que deseja só para si
Sem confundir-se aos alheios projetos e nem importa quais sejam
Nessa nossa união que ela et pour cause chama de relação
Assim ao menos continuo a lhe tentar com mil razões
Enquanto ela escreve um novo leviatã
Em que o homem é o lobo da mulher

Para que fui desatar os seus pés de cama e mesa!


Uma bola avermelhada d
e
s
c
e
o sol de outono que um dia fui
Agora me chega a noite mais escura, e eu
m
e
r
g
u
l
h
o

fundo nas trevas, à espera que se acenda alguma estrela


Que alguma lua cheia me venha
Uma lâmpada qualquer me serve
Qualquer réstia de luz a fazer crer que o amor se salve
Dessas nossas novas feras
Um som de festa e uma catcha me observa
Talvez minha alma lhe sirva de quarto escuro
A revelar-lhe fotos de corpo inteiro

Aproximamo-nos as perplexidades
Como se nos vangloriássemos da falta de respostas
Nem há mais perguntas, nem respostas interessam mais
Que o momento fugaz próprio das coisas em mutação
Let it be, que assim driblamos sinais de dividir
Enforcamos esse nosso tempo sem platéias ou razões legais
Apenas desconsideramos o passado porque já passou
E o futuro porque ainda não veio
Simples, não? Assim ao menos persisto em lhe dizer

Nem presente somos, momento esgarçado


No tecido apodrecido desses tempos nihil obstat
Somos apenas carne contra a parede, uma fenda e um cacete
Que em si se bastam, sem que o pensamento possa resvalar
E revelar Maíra nessa outra ou a ela qualquer outro
Guardado ao raso ou ao fundo dos seus baús

Emudecemos, contudo, os corpos mochos


No logo após esse hiato aos modos solitários
Em que cada qual busca o seu lado
O lado incerto que se tenta ser/se, ser/se, ser/se
Sim, ó nós aqui!, as asas meladas de suor e álcool
As garras pintadas das cores mais assustadoramente neutras
Portas abertas para as coberturas e os porões
Como queiram, senhoras e senhores, como queiram
Desde que solitárias almas deixem lá fora vocês que entram
Toda esperança de ser mais que poro
Nós que aspiramos as almas uns dos outros
As asas meladas de suor e álcool
Assim ao menos nos comprazemos em dizer
Ainda as risadas da catcha alegram a noitada
Avançam pela madrugada
Num repente o sol já nasceu
Vampiros de fábula, não tememos o sol
De uma praia de águas salgadas que nos salgam corpos e almas
Depois somos apenas um espelho no teto
Marcado a batom

Já é noite outra vez, volto outra vez, quem sabe desta vez Maíra?
Súbito sei de uma única questão transcendental
Que me assalta e repete, verruma na tábua lisa do meu coração linchado
Arregala-se o cérebro, um mundo murado e lá dentro, caído coitado
Treme um minotauro ateu

Sabendo da chave da porta torta da aorta nas mãos de Maíra


Súbito uma só questão, transcendental:
Com qual ela dormiu?

56

A verdade é que dela fiz meu santo graal, terra fêmea


inda mais longe que os céus
Alma nublada brumas felinas
A ocultar nas garras a essência
da verdadeira vida
A ocultar nos seios mesmo que rosados
A ocultar nos bicos duros e inchados
A boca de uma alma ávida
de verdadeira vida

Ao longo do seu corpo mesmo distraído


Todos os caminhos espaço do possível
E mesmo quando o dorso um corpo armado
Das curvas que alongam um monte inda sagrado
Distante dos meus passos treinados de andarilho
Sem metro que mostrando o quanto da chegada
Carnes altas alvas portal estreito e mágico
Umbral
De uma outra etapa

Oculta aos pêlos crespos ásperos desenhada


A direção exata a chave de um triângulo
Soubesse dela antes tanto o quanto assim o quando
Soubesse nem seria ao espelho um corpo santo
Águas depuradas diluindo ao fogo brando

Chegar mais perto dela trêfego trôpego sorrateiro


Túnel dos inícios ao preço sem dinheiro
Caverna dos segredos escuros que revelam
As possibilidades dos másculos sucessos

Adentrá-la tudo o quanto só importa


Deixar correr a ira solta ao nervo ímpio
Cavar escavar aflorar suas respostas
Aos espasmos e gemidos de uma alma presa ao gozo

Sugar lamber guardar na mente o cheiro


Que aos escuros dos desertos um cão farejador
Buscar no ar os ventos certos para o elo
Que decerto quebrará a custo de muita dor
As noites insones o corpo rubro e as luzes
De um cérebro cérbero da paixão e as cruzes
A mostrar quantos de mim jazem sob a terra dela
Eu que a contemplo das janelas de uma cela

A boca o beijo os lábios que primeiro


Cedem a entrada da alma ao corpo inteiro
O gosto algo inocente do amor que se anuncia
Amor que só na carne ganha carta de alforria

Emoldurada aos fios macios dos cabelos


A face de um anjo avesso aos bons motivos
Que nem me ligue a ela pelo corpo submisso
Mas sorrindo radiante se por ela há sofrimento

E restará nos olhos quando finalmente


Voltar a ver de frente ela que sem dó
Aniquilou meu corpo e fez escrava a alma
A me negar mais longe o pomo proibido
Em mim arde esse fogo único motivo
De conquistar do corpo todos os presentes
Mesmo que a alma abandonada e só
Inda que lhe entregue a última das lágrimas
Mesmo que ao final não seja mais que um tolo
Macho que na fêmea busca o sacro fogo
Para além das aparências que dela a carne mostra
Macho que na fêmea busca a própria essência
A preencher por prêmio dela o cálice sedento

Guardar então nos olhos a terra prometida


Antes de fechá-los para nunca mais abri-los
57

Ao longe, uma guitarra geme como os sinos das horas póstumas


Anunciando que jazem já sobre a terra as últimas folhas
de um outono tardio
E o frio, que ao corpo arrepia, logo congelará nossas almas
Cegando os olhos fugidios de Maíra
Ah! Maíra, maíra...
Beatiful Maíra of my soul

Urge que escavemos trincheiras


Demarquemos nossas fronteiras
E as barricadas
Erga-se a ponte levadiça de nossa fortaleza!
Fechem-se os portões!

Guarneço eu mesmo os aposentos reais, espada escura


Tranco-me com a minha rainha
Encho a dispensa do coração com todo o necessário
Mas o inimigo já é dentro das muralhas
Esgueira-se ainda, é verdade
Oculta-se nas sombrias feridas, as mais recentes
Aquelas antigas cicatrizes
Rasteja aos nossos pés feito serpente, apronta o bote
Trama ainda, a morte, de um amor que é forte, ainda
Elocubra mensagens envenenadas, escolhe as setas certas
As veias abertas dos nossos corações
Hidra medonha, quantas dessas cabeças ainda terei de cortar?
E Maíra, quanto ainda suportará estar ao meu lado ou
Do lado de lá?
Ó dias infames, noites insones
Tuas vidraças e couraças um dia inda hei de quebrar
Engasgamos os pensamentos
Nossos passos nada ficam devendo
Ao rotineiro caminhar de planetas em um resto de sol que se apaga
Na traiçoeira preguiça dos dias
Ela repete uma coreografia sem sentido
Que mesmo eu, flácido, sigo com a devoção dos micos amestrados
De um circo fadado à extinção
São tantas as razões, considerações sobre o amor de ontem
Pré-históricas razões
Ao escuro das cavernas que engolem as multidões modernas
Para as quais o amor ainda é pura ficção

Ainda amamos como dinossauros


Amor mastodôntico, amor sobre palafitas corroídas pelo mar
Amor em cadeias aos elos de ar
Amando com pena e o medo das contradições necessárias

Quanto à cidade, essa se impõe


Amor demarcado a vaias e cochichos
E todo o lixo dos antigos desabando sobre nós
Quanto à cidade, ela é atenta aos desvios em que mordemos maçãs
E, no entanto, atentos ao grito inaudível das galáxias
Ao enlouquecido murmurar das matas
Nosso amor viaja
Crê na alma, aceita possíveis reencarnações
Não importa se navegamos como salmões
Na contramão das encostas
A desovar as nossas contradições
Não importa se obedecemos por fora
Obedecemos, temos história
Mas sabemos de memória outra dos preços do amor

Ao menos assim eu lhe digo, ainda


Maíra ouve sem notar as mãos que se afastam, os sorrisos murchando
Ajoelhada à razão última que a cidade imprime nos jornais
Ah! Maíra, maíra!
Outono é quase saudade
Ouça toda a verdade retida ainda nos galhos dessas folhas que não caem

58

Tais são os casais à brisa fresca das noitinhas


Que anunciam a quebra das rotinas ao som dos jograis
Nos bares longínquos das esquinas de um tempo que se esvai
Mentem os olhares, oblíquos e normais
A obter comer da carne as peles superficiais

Talvez lá um ou outro brinque com fogo


Da aura em torno o corpo nas danças do salão
Maíra, não, quer olhadelas ligeiras, de esguelha
A saber-se ainda bela aos olhos rubros do Dragão
Dançamos um blues ritmado, sabemos os passos do coração
Rosto colado, palpitação, seus seios arfam, e eu
Me acredito capaz de mudar o mundo, tudo
Tem sentido único:
manter maíra assim
mão na mão
meu amor enrijecido
a beijar-lhe o ventre
seus lábios molhados
entreabertos, cálidos
da ternura que às vezes
alonga no tempo as asas da paixão
O blues ritmado, os passos do coração, e ela a alma à flor da saia
Tanto que volto a crer na ressurreição
Na remissão dos pecados
Na vida eterna, amém, e também
Na religião dos bárbaros crucificando cristos
Rindo que não sabem o que fazem

Um diabo reabilitado grita que a carne é seu único pecado


Sou senhor de todos os conflitos, superação, síntese, dialética, e
Comunhão
Super-homem eu sou, afinal divino, só porque tenho o dom
De amar
Tudo porque amo, simplesmente amo, terrivelmente amo, inocente
Ou sacrílego, amo
A terra e o cosmos
E esse som das esferas, esses gemidos, esses suspiros
Só porque pêndulo, e ela
Minha sina
59

Mas Maíra não quer que eu seja propriamente


O que ela quer é que eu esteja
Na exata direção da sua estrela-beatriz
Embora as flores do meu maracujá apontem
Direção contrária
Até que ensaio os passos, tanto que a quero
Me embaralho as pernas, caio aos seus pés
Até quero apagar-me inteiro, deixar que ela
Ser só o ferro escurecido do seu ímã
Dói, quando ela grita, enfurecida
Que não sei as cores certas para o arco-íris
Mas sou só um cão, vendo tudo cinza

Há pontos luminosos na mente escura, é verdade


Mas me fogem à toda compreensão
Tento braços e pés de curupira, torço o pescoço
Até que a noite mais escura sussurra ordens suas
Mil açoites lanhando-me o lombo de escravo fugido
Ao peito arde uma alvorada ensangüentada forçando subir
Ela me afoga o cérebro em lágrimas
Nascente que não jorra
Essas águas cavernosas, talvez
Guardem mais que um monstro do Lago Ness
Cerca-me os flancos, porém
Doma um potro selvagem
Minha casa minha baia
Meus cascos minhas costas
Sem sela
Levanta a saia aos joelhos, mostra
Torrões de recompensa
Oferece-se em cio
Suga-me o sêmem mais másculo e depois
Cuida o castigo
Se exibe perfumosa pós o sexo
O vestido mais bonito, os seios à mostra, para ir às compras
Nuvens plúmbeas ameaçam debandar os pássaros
Um amor bem feito pousado nos galhos nus
Seu andar de requebros, seus sorrisos
Toda rosa dos ventos
Que olhos masculinos multiplicam com a atenção dos cios

Ah! Maíra, teus lábios vermelhos inda acabam comigo

60

O sol sorri seus dentes amarelos na manhã inusitada


De um outono cheio de bem-te-vis
Filhotes de cambaxirra disputam o bico da mãe, reclamam mais
Lá fora o macho canta, satisfeito, ao cumprimento dos instintos
Tudo é um ritual orgíaco e o outono tinge fios de cabelos brancos
Há vigor nos músculos, e ela me atira pernas por cima
Também nós brincamos de viver um dia de cada vez
Com a alegria dos que não têm o que temer
Sexo com bacon, pão e ovo mexido
Café com leite bem papai/mamãe
Sem desprezar os jornais
O leito conhece a paz dos cheiros em arreglo matrimonial
Queremos mais outra vez
Salada de frutas adocicada ao mel das abelhas
As risadas são frívolas, é verdade
Mas o que temos nós contra as superficialidades
De um sol primaveril que se esquece outonal
E clama caminhar pela praia asas de gaivotas?

O desejo se levanta com as ondas, longe


Cumprimenta o corpo de areia e espumas brancas
Brinca aos nossos pés com a alegria das antigas águas limpas
O sal cura nossas mazelas mais íntimas
Quando o coração se deixa navegar por um mar que não existe

E lá vamos nós, chapéu de palha, água de coco, fieira de flores no pescoço


Drinks exóticos, e a cara de um yankee bobo dissecando ostras e caracóis
Como nas love stories dos filmes que víamos quando éramos felizes

E somos Fernão e Maria, capelos gaivotas


Treinando as asas para os dias melhores
Que o ar é fino e bom

Ah! Maíra! Como é bom quando sonhamos de mãos dadas


Quando cai o crepúsculo e temos a porta da noite aberta para nós
E as asas da escura liberdade não assustam mais
Nem os gritos dos morcegos são dentes de fúria
Apenas risos diferentes, risos numa outra língua
Igual quando contávamos quantas estrelas
Sem medo que nascessem verrugas nos dedos
Quando você lua cheia
E eu teu lobisomem uivando para as varandas do céu
Tuas tranças, rapunzel!
Quando rememorávamos as horas de frente para trás
Brincando de nos reconhecer num passado mágico
De uma outra vida em que já éramos namorados
Quando eu rezava um pai-nosso-que-estás-no-céu
Sabendo das tuas aves-maria, nítida advocacia em causa própria
Quando afinal adormecíamos feito anjos marotos
Teus cotovelos contra os meus roncos
Quando meus gritos, os pesadelos pesando
Teus olhos no escuro, teus sussurros que apenas um sonho
Quando teu sono, meu sono profundo
Falando dormindo: “amor, eu te amo...”
Rindo-nos do amor, críticos profanos...

(Ah! Quem já passou por essa vida e não viveu...)

61

It’s a long, long, long, longo, longo, longo, it’s a long way
It’s a hard, it’s a hard, hard, long way
Caetano canta os sons da minha alma
Concha acústica fechada
Em que ensimesmo as palavras que devia gritar para ela
Um modo de mostrar toda a minha solidão
De fingir que não me importo se ela se for
Uma chuvinha miudinha um dia já foi nossa amiga abrasando os lençóis
Também o vinho, veritas antiqua, e tantas coisas mais
Que agora me apontam a porta sem volta para a implosão do coração
Nem cabe falar dos motivos
Sabe-se lá quais são os tais motivos que nunca se encaixam
Seja de frente, seja em contrário, seja dos lados
Pois só o amor se engata
Não importa quantas farpas, nem qual direção
A lã encharca no corpo, meus pés são heavy trips
Dois cubos de gelo, nem mesmo meus eles são
A alma desgruda do corpo sem no entanto liberá-lo a sossegar-se
Também a mente não tem aonde ir
Não há qualquer significado nos pares de enamorados que passam
Nem mesmo os invejo, sábio dos infernos
Então, Maíra! Tudo tem mesmo um fim
Nem há como parar os braços dos relógios, seus abraços de thanatos
A marcar apenas o necrológio dos corpos
Nos mesmos números usados para medir cotidianas coisas
A iludir que a vida mais longa
Mantendo a foice à distância da alma ingênua
Que a carne aponta aos espelhos
Como se a sua existência fosse tal qual vê
Talvez seja sempre melhor despedir os lábios
Os lábios já roxos desses beijos antropofágicos
Antes que a dança das línguas seja mais, seja a troca das almas
Ah! Maíra, devo erguer a fronte acima do teu colo de mulher!
Fomos tão longe dos nossos nós primordiais
Cordão áureo esticado ao máximo varando a escuridão
E o medo, que afinal venceu
Ah! Maíra, devo recolher as âncoras que me prendem a teu cais!
Zarpar mar aberto, naufragar
No oceano das lágrimas que o céu verteu por nós
Deixar-me estar sob a imensidão azul-clara que o sol
Dormir sob as estrelas que apontam outras direções
Sob esses olhos de Deus que tanto nos viram nus
Ocultar a alma sob as garras, deixá-las crescer, afiá-las
No dorso frágil dos que nunca morreram
Esvaziar o sexo
Ser só um rubro furador do gelo das donzelas de espírito
Nublar esses olhos para que não seja espelho d’alma
Mas as frias geleiras de Aldebarã
Aceitar em mim enfim o caminhante que não há caminho
Que se faz o caminho ao caminhar

Devo esquecer, Maíra, que eras o caminho, a verdade, e a luz


Voltar ao bando, que uma alcatéia de lobos me espera
E as presas me dóem

62

Em vão, mulheres batem à tua porta


Não abrirás!
Deixarás teu coração mergulhado em fel e chumbo de tal modo
Que ele não pese mais que a mão de uma criança
Esquecerás todos os romances
Não guardarás lembrança dos filmes de amor
Esquivar-te-ás de todos os poetas
Que a poesia lava a alma de todo o mal
E infiltra de energia divina as fibras frias do coração
Lodo ou rocha ela brota, com nome de flor do amor
A poesia arreda os demônios, alegra os anjos
E Deus sempre sabe dos poetas as intenções
Buscarás uma razão, uma só missão de vida
Que rebobine a alma em torno um eixo pelo qual viver
Trabalharás sol a sol para ter nada o que dizer
Lutarás sem medo, mesmo ao mais fútil dos motivos
E seja tua essa mentira que por verdade te anima
Mesmo ao sítio do impossível quando
Vedam o sol as flechas do inimigo
Seja maior o teu sorriso, pois
Combaterás à sombra.

E para as noites rubras


Aquelas que a simples mão não cura
Tomarás as mais feias de espírito, as frias
Que te aluguem o corpo, nunca
(Nem que prostitutas) deixarás
Que te entreguem mais que da matéria o uivo

Sejas tu o descendente direto dos mercenários guerreiros


Sem outro motivo que o ouro mais imune a qualquer dor

Sejas teu próprio clone


E te enterres a ti, tesouro valioso
No recôndito mais íntimo de belzebu

Que só assim ou
Talvez assim
Te livrarás do amor
63

Quando a alma faz-se velha


como são tristes esses dias!
Nem é morte, nem é vida Maíra!
amputada aos lábios meus
Ah! não posso, não, não posso
dizer-te, meu bem, adeus

Marília e Dirceu, mais uma vez


Tentamos ainda mais outra vez
Cumprir o que falam nossas mãos entrelaçadas
Que se calçam perfeitas
Sábias mãos que nunca mentem, obviam
A parceria do corpo
O parentesco da alma

Un paso adiante i outro atrás, Maíra,


i a tea dos teus sonos non se move.
A espranza nos teus ollos se esperguiza.
Aran os bois e chove.

Un bruar de navíos moi lonxanos


che estrolla o sono mól coma unha uva.
Pro tí envólveste en sabas de mil anos,
I en sonos volves a escoitar a chuva.

Traguerán os camiños algún dia


a xente que levaron. Deus é o mesmo.
Suco vai, suco vên, Xesús Maíra!,
e toda a cousa ha de pagar seu desmo.
Desorballando os prados coma sono,
o Tempo vai de Parga a Pastoriza.
Vaise enterrando, suco a suco, o Outono.
Un paso adiante i outro atrás, Maíra!

Valho-me de poetas galegos, como esse Xosé María Díaz Castro


E é outono - as folhas caem
Mas não os galhos, braços nus por minha Maíra
Sou jacarandá, duro e muito escuro
Ah! Maíra! Será que meu destino é ser sozinho
Passarinho, para melhor cantar?
(Ao menos é assim que lhe recito e digo)

A tarde verga ao peso do sol que se horizonta.


O concreto das ruas se amacia aos pés de Maíra.
O livro me escapa das màos, missão cumprida
A casa volta a ser um lar, há
Discursos no silêncio

O calor do corpo ameaça dissipar-se


Mas a alma se achega, primeiro
Navega pelos cômodos
Me abraça, me beija, me fala em pensamento
Que já me vem vindo, já, já
Já ela me chega
A tarde verga ao peso do sol que se horizonta
São as cores do meu corpo quando assim a sinto achegar
64

(E a vocês, monstros que nos cercam (de todos os sextís)


Não direi que os desprezo, bem sabem vocês
Ao que servem
Ao que vergam
A alma limpa que vos deram
Quando nasceram
A todos vocês, desassistidos do amor primevo
Lépidos algozes dos fora da ordem
Esquecidos de si mesmos, seus rabos presos
Nem vos digo que os odeio
Também não vos direi que por iguais os amo
A todos quantos necessitam de manuais, regulamentos
A tornar rendosa toda inveja e vilania
Em verdade vos digo tudo quanto quero
No claro brilho dessas minhas lágrimas, essas águas cristalinas
A jorrar naturas da fonte em que me inspiro
A esses que conspiram sem pudor contra os sorrisos de cupido
Em verdade vos digo, apressai-vos - víboras!
Que ela é novamente minha, que estamos novamente juntos)
65

Bilhete sobre a cômoda:


De que vale tanto que te exibo, Maíra
Se meus raios bons não te atingem
E só me vês naquilo igual contigo
Quando opacos meus olhos tão escuros
Quando zonzo tonto os teus caminhos
As patas feridas nessas armadilhas
Berro feroz e os inimigos tremem
Atacam-me e partem a acoitar contigo
E agradam-te sorrindo os teus sorrisos
Tais que fossem parte mesma tribo
E te alegras com os louros mais mesquinhos
Pelo ouro que prometem e eu renuncio

(Ah, Maíra!, bem que podias


Por um pouco, um pedacinho
Ver-te com meus olhos verdes
Esses espelhos de um louco amor guerreiro

66

Dir-se-ia no entanto haver nada de errado entre nós, salvo


Por esse réquiem de Mozart que ela ouve todo final de noite
Enquanto mexo e remexo penso em fazer amor
Ela se esquiva arremata coisas do cotidiano
Súbito se abre feito abóbora, se transforma
Em lasciva cinderela até a meia-noite, esotérica
Não há nada de errado entre nós, mas
Fumo um cigarro trás o outro, após o sacerdócio de eros
Estamos sós, ensimesmados, é verdade, mas
Não é assim com todos os casais?
Não conversamos mais que os familiares conversam
Ou colegas de trabalho, e
O corpo enjoa um pouco desde que exilamos os fogos infernais
Mas nos amamos, e sabemos que é impossível ser feliz sozinho
Corpos, almas, mãos entrelaçadas, tudo o que nos importa
Âncora, asilo e cais
Naufragamos nos perdemos nos salvamos, para que mais?
Acaso as estrelas se entediam em ter o mesmo escuro firmamento?
A natureza inteira não é só repetição comezinha?

Mas somos humanos, aventureira espécie


E buscamos no mínimo os máximos que sempre nos faltam
Olhamos o infinito, assim dentro como fora de nós
E sorrateiros esticamos os braços da mente, as mãos da alma
Desistimos pelo medo, que afinal somos finitos, e
Frágeis
Recuamos quando Deus pesa em nosso peito
E os gritos abismais lembram seus direitos

Ela dorme agora


Quanto a mim, meus olhos são faróis de pálida luz
Sem que a nau da mia Maíra se anime à noite escura
67

Tentar adentrar o sonho de Maria buscá-la no mais íntimo dos chãos


Onde todas as possibilidades se afirmam
Decifrar as pegadas, qual direção?
Mergulhar em sua alma quando a concha faminta se contenta só provar, e A
Fome grita que já é pronta, e ainda não

Acercar-me do corpo em absoluto repouso


Prestando toda atenção ao ritmo da respiração
Qualquer variação é sinal de que me ouve e vê intra-muros
Pode fugir então virar de bruços
Talvez eu aproveite essa bruta ereção, mas não
O que eu quero é decifrar a alma que vaga em busca dos céus

Da janela faróis acesos são mil outras razões


E ela dorme o sono solto dos tigres saciados
Das borboletas que esvoaçam as asas, bailam
Como se essas rosas fossem toda a vida a sugar
Acreditar na vida e as rosas que cresçam
Essas rosas. brotos de anteontem agora abertas a sono solto
Essas rosas que cresçam

Achegar-me pé ante pé como um marido bêbado


Encolher-me ao fiapo de leito como se fosse sempre
Decifrar monossílabos de um corpo ausente
Absolutamente, nem que ela confesse algo ao dente
Nem que ela murmure um nome mais recente
Absolutamente, como um marido bêbado
Que se encolhe todo, e dorme
Ela entreabre um olho talvez ainda dorme
Talvez, ainda dorme, talvez, quem confia num só olho entreaberto?
E eu só o medo de jogar-me fora antes que o sol se levante
Ou que ela estranhe estrague a bruta ereção
Que me trasforma no homem mais poderoso do planeta
Mas a pata autóctone atônita autônoma quer porque quer tocá-la
Aproxima as garras e há um cheiro que sente pelos dedos e há os pêlos
É bom! Ah! É muito bom!
Ela se move se encolhe mostra as polpas e tudo o mais
Talvez ainda dorme, talvez
Palpito rijo o cajado de cetim
Que súbito escorrega abrupto um bruto independente
Que jeito?, se o portal estreito abre-lhe assim as trancas do Bonfim
Não me conheço nem me vou inteiro
Fico ali, meeiro
Adormeço, um marido bêbado afogado em cheiros
Ela se move, dorme, talvez
Talvez ainda dorme
Nunca saberei

68

Dessa cumplicidade que se achega de mansinho


Começa com um olhar um sorrisinho mesmo um resmunguinho
Dessas palavras que segredam alma a alma o que o coração afaga
Igual cuidado quando se arruma rosas dentro um vaso de porcelânea
Dádiva, nós assim nos amávamos
Agora somos rolinhas na mira das espingardas
Pássaros assustados
Trocando os passos
Caçador e caça
Temos medo em beber das taças trocadas mesmo só amor
Talvez amargue amanhã
Mas, e daí? Morrer de amor... Sempre se morre
O coração pára de bater
Mais cedo ou mais tarde
Sempre mais cedo... seja lá com que idade

Com o passar do tempo vemos


Que os antigos erros não passavam de uma outra maneira
Vazar uma fronteira que nem sonhávamos
Mister estar preparado para esses modos que ainda dóem
Mesmo que eu... mesmo que ela
Dói mais quando eu... dói mais quando ela
Sabemos das muralhas
Ah! Sabemos que o amor sempre vence...
Mas que não é para agora
Nossas migalhas de um pão que ainda é semente do trigo bom
Não é para agora que tudo quanto certo ainda ameaça duvidar
Quem sabe o mundo real seja já um passado remoto
E todos estejamos a arremedar os mortos?

Well, well, well


Não se chega impunemente ao último portal da paixão carnal
Carnaval de células, idéias e os átomos
Que se completam, endereçam antropolatrias
Oh! My Juliet!
(Oh! Ro-meu!)
E ai de quem na Terra ousar amar, ultrapassar os Céus de Zeus
Ou seja lá
Que o amor concedido é feito dos sons que não têm fome
Nem vísceras, é uma outra lida
Impossível aos homens e fêmeas que habitam o planeta
E o que temos é castigo, nunca bênção ou dádiva

É por isso que me olhas assim, Maíra


e assim eu também te olho
Conspirarás com tuas fêmeas-gêmeas, e eu
também transpiro
Mas, façamos um trato:
Cada qual acertará um chute em cheio no traseiro da síntese
(poupemos o meio, todos os meios)
Sejamos a contradictio, a contradança
O vive la diference!
Continuemos lutando! Lutando garantimos o gozo nosso de cada dia
Carta de alforria para a guerra dos sexos!
Eu te como, tu me comes
E ficamos combinadíssimos assim!
(Ao menos é assim que lhe digo enquanto rodo a cabeça em seu colo)

Ela sorri e gesticula que eu deliro


Cerra os olhos, corta-me a língua com dedos e jasmins
Um norte no nariz empinado mostra que medita
(me amará ainda?)

Quanto a mim, todo em focinhos


penso que a terra é uma úmida razão
69

Os laços se afrouxam e as montanhas não se movem mais


Os pássaros apenas assoviam, nada mais
Apenas cumprem seus minúsculos destinos, passarinhos tais
que as formigas, aracnídeos e outros mínimos
Não somos tão diferentes, pensamos os instintos
Inventamos pés e asas superlativos
Mas engatinhamos nossos sentimentos como bebês
E só os aceitamos pela sobrevivência da espécie que há em nós
Nossos sentimentos são a expressão possível da matéria sob o Espírito
Mas que pensamentos se lhes comparam em furiosa sensação de Vida?
Os raciocínios são sempre a seu serviço, e ainda bem!
Motor solar a imputar inteligência aos escassos sentidos
Rasgando a escuridão da carne
Como uma lâmpada que se acende no porão dos instintos
Que necessitam de compasso e direção
Senão voltamos a comer com a mão
Eis o que é o homem naturalmente bom!
Amar é resolver as dificuldades, domar os cavalos selvagens
Prontos a disparar pelos prados da imaginação inconsciente
Sempre a um passo do apocalipse now
Amar é mediar instinto e inteligência
Por isso todo amor é perigoso
Poder terreno e sobrenatural
Unidade de carne e alma, terra e céu, criatura e criação
Amar é freqüentar os olimpos, brilhar junto às estrelas
São semideuses os que amam, enquanto amam, o que ainda é para poucos
(Ao menos é assim que lhe digo e Maíra finge que ouve)
Crescemos em direção ao sol
Nossas penas de cera e mel
Vencendo gnomos e sílfides em cada morte prometéica
Cada vez mais ateus
Como um pêndulo preso a um lado do grande sino
Que assim não pode tocar
Somos a razão, dizem uns, a construir o admirável mundo novo
Somos feitos de emoção, replicam, o humano habita em nós
E há o instinto versus espírito
Água versus fogo
Macho versus fêmea
Versus, versus, versus assim Deus nos soprou os barros
Portanto amar é anti-higiênico. A saúde social depende da assepsia
Esses germes comprometem as teias das penélopes que tecem
Enquanto O Príncipe, esse ulisses trimegisto, não vem
Ora, que esses ulisses se lixem, também as circes
Há muito mais em jogo, meu amor!

(Ah! Maíra, se este gole de vinho diz que já estou bêbado


É porque é vinho bom
Mas cerveja me deixaria louco, meu bem)

Mas tanto as razões, as emoções, as sílfides ou o espírito


Os cavalos selvagens, as penélopes ou os ulisses trimegistos
Nada a faz ficar mais que uma ou duas noites
O suficiente para provar a superioridade fêmina
Sobre um macho que o ocaso quando ela
Se liberta dos frágeis elos da corrente que prendeu suas avós
Imprescindíveis seres essas mulheres libertas
Enquanto ela diz que está muito feliz
E com dinheiro
70

Um perfume invade a tarde e eu tenho um corpo que arde em desejo


A esperar por ela
Aprendo coisas, coisinhas mesquinhas que agora se agigantam
Varrer a casa. Lavar a louça. Trocar a roupa de cama.
Deixar o banheiro com asseio de hotel.
Arrumar a balbúrdia da sala, os livros e os discos
As roupas de ontem

Como fazê-la ficar? Não deixar que se vá após o amor?


Talvez hoje ela me veja com olhos de Julieta
Talvez perceba finalmente que nunca haverá outro tão ardente

Asseio o corpo, perfumoso sabonete e a água o mais quente


Que me amacie o rijo caule para a flor que o sustentará
Escolho as roupas que combinem com sua cor
Atento sou aos mínimos detalhes
(por Deus! Que nada me escape!)

O vinho branco é do mais doce


Os que a minha terra produziu, os que vieram da Germânia longe
E que seus lábios do próprio doce provem!
O queijo, nem tão forte nem tão fraco, mas
Que ela sinta o raro que há em meus cuidados!
O coração arde mais que o corpo que carrega
E a mente é mera escrava dos caprichos que ela ordene
Sou de Vênus sacerdote, Marte escondo a outra hora
Se, guerreiro, tiver sorte!
A tarde conspira a favor
E uma brisa alegra o navegar
Mesmo a chuva que inicia em si bemol
Convida ao calor do cobertor
Há um só perigo: Saturno, e eu vos digo
Que os ponteiros de um relógio cortam mais que o aço fino

Como ela virá? Mesmo virá?


E se... tudo quanto a antiga musa canta não cessar?
E se as veias inda abertas deixem correr o veneno que ainda há?
Yesterday, all my troubles seems so far away...

Raios claros de sol abrem espaço entre as nuvens cinzas


Toca a campanhia
O coração dispara, a têmpora lateja
Abro-lhe a porta com uma camisa nova
The sunshine in
É a era de aquário, enfim

71

Temos agora sorrisos sábios


Sabemos todos os truques, nossas brigas perderam todo sentido
Agora que nos juntamos apenas para os sorrisos
E ela me fala em amálgama, cimento de tutâncamon
Coisas de alma
Ah, Maíra! Que magia nos desdobra?
Que deus nos socorre na hora do embora?
Eros não é, está longe, lá fora, se ocupa de auroras
Talvez lilith e seu modo escuro de amar

No entanto, ainda jogo maçãs aos seus pés


Como um noviço camponês da Grécia de outrora
Noivo renitente

No entanto, quero fingir que é bom assim


Que me valem suas coxas, seus lábios, seu trote e seu rebolado
Sua gruta cada vez mais escura e profunda
Ah! E seu cheiro bom bem ali

No entanto, não, nem é tão bom assim


Sua carne se dissolve a cada vez
Secam-se as antigas águas corredeiras
E há nas mentes mais gente em nossa cama

Ah, Maíra! Venha da próxima vez


Com a verdadeira Maíra
(Ah! Ia esquecendo de falar dos coqueiros a cochichar com os ventos)

72

Repassando passadas opções de liberdade desistida


Sabemos que somos apenas os restos deixados pelas hienas
Regorjutados pelos urubus ameaçados da nossa extinção
Nós, antes animais raros entregues apenas ao manjar dos deuses
Nós, que um dia lutamos em obscuros idiomas
Nas noites profundas
Aos sóis de quarenta graus
Por um amor que enterraria para sempre os antigos casamentos
Ou que morrêssemos sacerdotais
Nós, que amamos mais que os desastrados amantes dos romances
Que venceríamos os mil braços da cidade dentro e em tornos de nós
Que jamais os braços da cidade em torno e dentro de nós
A ordenar os modos dos lábios e os horários das pernas abertas
A marcar os hectares do corpo, fronteiras
A rosnar os possíveis e os impossíveis gozos
A exibir seios e testículos decepados no altar dos casais exemplares
Nós queríamos mais, muito mais, o amor mais livre e prazeroso
Um mundo nascido do sexo mais livre
A cada um conforme sua vontade, de cada um conforme seu gosto
Nós, que até ousamos dois casais
Nossos tatames genitais
Dois em um e o seu contrário
Tentamos mais, o imaginário e os manuais de magias sexuais
E agora que dois seres até que bem iluminados
Tanta escuridão ou tanta luz, não nos encontramos jamais
Somos um feitiço de áquila sem que o filme tenha o seu final feliz
Ainda mais amarrados ao rugir das calçadas
A espreitar o roçar do luar em cada novo olhar

Silencioso pranto, silencioso riso


Sem saber se somos ou existimos, sem nada mais ter com isso
E num esgueirar de olhos nos sabemos em verdade
Que somos corpos feitos de centelhas sem que o incêndio da alma
Alma que ainda geme feito um bebê com fome
Sem que as tetas cheguem dos céus ao berço
Sábios e perplexos somos agora almas maduras
Não nos culpamos. Ultrapassamos os graus
E ao peito trazemos algumas medalhas do graal
Sem que o nosso santo cálice seja por isso mais perto ou mais longe
Ah! E essa via tão estreita que imune aos casais
Um de cada vez, quem vai na frente? Quem segue atrás?
Tanto faz, que agora a solidão é galardão
Estranho riso de sal e mel
Tanto faz que o primeiro, ou o depois
Que a solidão não culpa ninguém
Pois não há mesmo ninguém
E nem se importam os deuses citadinos
Nem é próprio de culpar-se a mãe natura
Por que razão então nos apontaríamos os antigos esboços?
Se somos agora meras sombras do que fomos
Quando a folia da carne e as dentadas na alma
Uma espada de dâmocles jaz aos nossos pés
E isso é tudo quanto basta
A sabermos que estamos verdadeiramente sós

73

Maíra estende os braços despidos de ornamentos


E eram ricos os braços de Maria, esses enfeites
Com que as fêmeas se embelezam de certezas
Apenas um anel de prata ao saturnino dedo talvez explique
Tanta indiferença nesses últimos dias

Quero mais que um cálice de vinho por dia


Às minhas coronárias de atenas
Quero o champanhe que ria orelha/orelha
Quero navegar à revelia dessa séria sina
Que sonegou as carnes ao incomum dos dias
Ela se esquiva, suficientemente esguia
A impedir minhas patas mochas da preguiça
Das tantas tentativas
O tabuleiro propõe um jogo sem que rima
Versos livres com carta de alforria
Nessa linguagem com que os deuses se divertem ainda
Ah! Nossas antigas rimas, podiam ser que sim
Podiam nem dizer, podiam ser ou não ser
Essas outras rimas, Maíra, rimas que não se vê!
Essas arrimas, Maíra, significam o quê?

Ela assovia uma canção tenorina


Nem tão longe uma coruja cinza pia
Uma gata resvala a telhas soltas com as patas presas na lua
A mesma lua que prateia o champanhe na taça vazia
Minhas lágrimas pesam como chumbo sob as estrelas
Ameaçam desobedecer e cair
O véu da noite mais escura desamarra os cordões do coração

Ela me estende os braços despidos


Me convida a lhe servir
A taça borbulha as pratas espumas da lua. Uma coruja cinza pia.
Uma gata grita uma canção tenorina
Lágrimas escorrem ao ritmo das sábias e tristes ancas de Maíra
Quero mais que um cálice de vinho por dia
74

O girassol que colhi à beira dos caminhos


Tu só dizias - lindo! - às pétalas claras, ao amarelo-ôvo
Um sol esponjoso ao centro de tudo do mundo
Abraçando teus seios

O girassol que pousei preso aos teus cabelos lisos e macios


Iluminados por mim
Os fios negros e sedosos combinando
Com teus lábios de cetim - ái de mim!
Esses beijos mil beijos com gosto de primeira vez

O girassol que plantei ao fundo dos teus olhos


A traduzir o tempo os erros os ventos
As terras do sem fim
As cores que - rainha - um reino em que eu poderia
Servir

O girassol que guardei para sempre


Preso ao teu ventre
Campo aberto a todas minhas sementes

O girassol, Maíra!
Mais que tu, ou mesmo eu
É que nos dá adeus
75

Era improrrogável aquele amarelo-ovo


em plena lua
batendo a porta para os nuncas
que vagasse lobisomem
bêbado pelas ruas
A mão peluda
escorrendo dinheiro pelos ralos
as patas firmes de um centauro
o sexo aflito, tábua corrida
em night-bares, estreitos lares
muitas lareiras, pouca fornalhas
Uma garganta a rosnar para o infinito

Um uivo longo, um breve


alguns ganidos

Era imponderável aquele amarelo-claro


já era o sol
desvendando os mistérios mais ocultos
Apenas um menino
imberbe e pouco siso
- menos ainda, um berço vazio -
a correr trôpego pelas dunas

A mão tão pequena


76

Ah, Maíra! Aceitar que sejas apenas mais uma entre tantas
Não a encarnação da Deusa, deusa entre tantas
De um Olimpo que não sonega o assédio aos mortais terráqueos
Esta a maior dor: não ter revelado a Uma
Condenado a não ser o Um
Amamos para a plenitude de nós mesmos
Eis o castigo:
quando fracassamos, voltamos ao plural dos vencidos

Tanto que investimos calcinha e paletó, tanto


que aprendemos kamas-sutras de cor, carlos zéfiros
tanto que tentamos do bom e do melhor
tentativas e eros

Agora um beco de histórias de terror assusta os gatos


Vitória aos mortos-vivos
Aos vingativos roedores das vísceras expostas do nosso amor
Vitória aos vermes
Em que também nós nos tornamos, agora com os outros
clones e zumbís

Pessoas feridas são perigosas, sabem que sobrevivem


E que não viverão jamais a plenitude sonhada
Chegamos aos limites, às fronteiras possíveis
Não podemos dizer que fomos cercados, que fomos vencidos
Não somos as vítimas
Somos, enfim, tais quais os que iguais nos antecederam:
Escolhemos sobreviver
Sem a coragem de encarar o espelho, tememos
qualquer sombra que adentre os instintos
Falhamos, e do medo fez-se o músculo

Será, no entanto, que nenhuma alegria hasteará sua bandeira?


Claro que esta é uma questão de somenos, salvo
quando rimos

Não te preocupes, Maíra, se hoje também não queres

77

Pois não querias ver crescidas as minhas espigas


As que plantei para as fogueiras de junho/julho
Quando o frio das noites nos fazia mais próximos
E um fogo com sabor de eterno queimava as partes cavernosas
De todos, moças e velhos

Não querias ver bonitas as minhas flores


Com que costumávamos saudar as primaveras
Quando receávamos magoar as borboletas, amarelas
E uma brisa fresca e sempiterna insistia, insistia
Que fizéssemos amor, e brincadeiras
Não querias ver límpidas as minhas águas marinhas
As que represei para o verão de brasas e suores
Quando o calor das noites te fazia despudoradamente nua
E um hálito quente percorria nossas espinhas
Em kundalínicas poesias

Mas mantiveste abertos os ouvidos


Para o triste som das folhas que caíam
No outono dos dias, na friagem emudecida
Nas amendoeiras despidas
Sem o canto dos bem-te-vis que só eu inda ouvia
Bem distante, é verdade
Porém mais próximo que o teu sorriso
Perdido na dura eternidade

Agora, és toda outono, querida - não reclames!


Se me faço um vento frio em teus finais de tarde

78

A montanha em frente geme suas encostas


Nem é o vento que sacode, busca a saída
Nem capricórnio algum ensaia sua subida
cascos sobre pedras
É Maíra quem se socorre das rochas
como se fôssem vivas
Pétrea alma, a contemplar o lago mais embaixo
Narcisíaco espelho
A refletir um novo jeito
Sem que a vasta imensidão onde as estrelas

Enfeitiçada de si
As pedras cobrindo os pés, e
embora os veios das incertezas
Orgulhosa da opção mais fria
Até que bem combine com toda a sua beleza
Da mulher que é
Da alma que se aceita, plena
Oh! Via estreita
Que maíra vou?

Aquela que aciona meus alarmes pelas madrugadas?


Que toca as fibras mais íntimas de quem não sou?

Devo ser a presa fácil entre suas presas e garras


Ou partir seu ventre ao meio
Provar que a mulher é a parte detrás?

Respiração boca/boca, novo sopro da deusa


Gosto a gosto
Ela garante que toda eternidade é em troca
Desses momentos, que nem por fugaz se tenha
Moto-contínuo que afasta todo medo
De não me ter nunca mais

Ela quer uma planta rasteira sob a sombra dos seus galhos
Seguir-me uma eva é trair-se, lilith que é
Preservar-nos como manguezais de praia, insignificantes
Grandes apenas no que temos de secreto e amargo
- sob as patas dos que constróem as cidades, aço e fôrma
sem contar com os nós - não, isso seria como abdicar ao trono inglês
No entanto me deseja mais que as pernas e os abre/fecha da flor
que nasce desses matagais
Que não há terreno propício ao amor sem que a alma goze também
Que o amor ignora quaisquer outras razões, tem suas próprias asas
E por si se morre
Por si se muove, e nós
Corsários de tantas esferas
Secretamente teimamos
Que as regras giram em torno aos lençóis
Que jamais haverá amor sem as peles imantadas de êxtase
Mesmo que as idades, mesmo que as algemas da cidade
Em troca do respeito assexuado, essa moeda vil
Por mais que se cubram de vergonha as partes pudendas
Do que as almas desejam, e - por isso! - o corpo reclama
Por mais que se aceite, apenas, as diferenças formais
Ah! Jesus! Tão iguais em essência e conteúdo
Que amar o próximo como a si mesmo é mesmo amar demais
Que mal há que nos beijemos nesses pontos obscuros do ser?
A alma vibra ao desvendar a carne amiga
Que lhe concede harmonia e prazer
E a uníssona maneira, única maneira
De completar as lacunas entre o Existir e o Ser
Fora, fora!, com esses que anunciam a alma sem crer
senão em energia, em estados mentais
ou em concessão divina, provação
a ocupar a carne um território inimigo
carente de superação
Que pai, por menor, quereria seu filho de volta ao úter-paraíso?
Somos um espaço múltiplo
A exercer com a carne cada qual dos seus milímetros

Há alma no cheiro que desprende dela


e na língua que brinca e navega
Há alma na alva pele das nádegas
e na vermelhidão da palma de um prazer transverso
Há alma nos gritos
e no rugir dos tigres soltos dessas grades
Há alma nos olhos, gratos, lacrimosos
e no gozar mais íntimo, logo quando a tempestade acaba

Não, Maíra, não há amor possível sem que as almas


Ocupem da carne cada qual dos seus milímetros
Ocupem da carne cada qual dos seus milímetros

79

Por isso, e mais um quilo, alevanto âncoras


Para não perdê-la
No dia-a-dia das tristezas
Das marés que esvaziam
Sem que voltem a irrigar os desertos
De uma praia chamada solidão a dois
Melhor tê-la ao coração ainda morno
Como um momento retido em inútil fotografia
Um momento verdadeiro
Mesmo que sonso, mesmo que matreiro
Só verdadeiro nos olhos que brilham ao pequeno nervo

Por isso, parto; abandono minha terra


A buscar lejos mis proprios supuestos
Para que a comprehenda, quién sabe?
Sus motivos de geléra
Alargar velas ao máximo
Ventos que me sopram cada vez mais
Quién sabe?, lejos, más lejos
Puedo saber un póco más
Aportar outras terras, quién sabe
Saberé un póco más?

Velas ao vento, marinheiro!


São apenas sereias, nadie más
Velas ao vento, mariñero!
Que lengua hablarás, tanto faz!
Velas ao vento, mariñero
Que esperas da mujer?, quanto ainda esperarás?

Lobo das marés, me avanço


Empino a proa contra as águas fêminas
Largas e impalpáveis, e essas ondas
Que avançam, ferozes, e se desmancham
Alternam ritmos, aguardam
Queda e naufrágio

Velas ao vento, mariñero!


Velas ao viento!
Que la tierra misma es sempre más allá

Ah! Vuelver a la casa


Ah! Vuelver a ver sus ojos felinos
mismo mornos, mismo fríos
A namorar-me as tripas

Ah! Maíra
Aportar-me en sus brazos
Atracar-me en su cuerpo, y
lançar fuera todo lo que sonhé
en mar más alto
Mas o vento amplia a alma, enfuna os sonhos
Que nos levam ainda mais para lá
Onde as quimeras que verdadeiramente assustam
ganham existência e ser

Navego, e essa cósmica poeira


Atinge os olhos, terrenos olhos
de ver para crer

Velas ao vento, marinheiro


velas ao vento
Hás de esquecer corpo e olhos
Que te fizeram crescer
Velas ao vento, marinheiro
Ver para crer
Olhos que escurecem
Existência e Ser
Buscai, marinheiro!
Razões de não crer
Razões de não querer
Velas ao vento!
Que depois desta noite, amanhã
Serás sol a amanhecer

Velejai!
Através dessas janelas que a alma escancara
Ao lado que será
O lado de allá

Mais outra vez, Maíra


Mais outra vez para sempre
Canto canções de adeus
80

Adentro a porta estreita do seu quarto e o leito


Aguarda um corpo quente e redimido

Lençóis a um só tempo branco e vermelho


Exibem casais em eros aos trabalhos de um templo
Erguido a Vênus

Ela é lânguida, e os rubros lábios desmentem


A inocência e o acaso de um quadro de Goya, por exemplo

É o tufo exagerado dos pêlos que vejo, em seguida


E o cheiro
Que incendeia os cinco sentidos
Mostra que a alma
Adentra os segredos
Da carne cúmplice

Por um pouco, receio


Como um místico
Macular o que vejo
Ah! O que vejo!
Ao presto nervo
quanto desafio!
Passos gigantescos
para uns músculos de menino
E o sorriso mais felino
a mostrar que sabe disso

Tão bela visão, tão terrível!


Que veneno alquímico
faz disso possível?

Trêmulo, ainda
Aproximo
Os braços em brasas
Ao cruel destino
De lançar-me aos seus pés, beijar-lhe o umbigo
Curvar-me ao centro do mundo feminino
Deixar que as lágrimas
Escorram sossegadas
De tanto siso

Ao encontro das línguas, pororoca dos conflitos


A levantar as águas
A um sol castiço

Única maneira: - não pensar mais nisso!


Adentrar a porta estreita desse leito
Mais que merecido

Ó Maíra Beatrix
Suba ao patíbulo!
Que a carne me abre
Bem mais doce paraíso
81

E porque esta me abre o paraíso


É com esta que eu fico
Feita da matéria mesmo, imperfeita
A evoluir comigo
Não, Maíra!
Nem que te cubram o corpo de jóias
te perfumem aos sândalos das Índias
Nem que sejam diamantes tua tiara de rainha
de uma eternidade mesquinha
Te ofereço mais, carne mui amada
Uma alma que não se deixa estátua
Nunca separa ou se acaba

Que tua pele clara não carregue a morte dos mármores


Ó, Brancas Almas! Máscaras deste mundo de gósmicas risadas
E essas sementes ainda nem plantadas
Mundo de portas fechadas
Em que as espadas são ainda arado e chave

O Um não ama, o Um não se basta


Se salva se Uma
se impõe a mesma marca
Nem importa se a água
ou o lábaro das brasas

Ó Maíra! Estás tão grávida


Das estrelas que jorrei em tua alma
Ó, impávida guerreira!
Que decisão arriscarás?
Quedarás mui tranqüila
a envelhecer os ais?
Ou é que as asas te coçam, nada mais?

Há um sorriso giocondo, e eu
o brilho de uma lâmina de dois fios
Atento e presto tenho a alma de um tigre
no corpo envelhecido

Como se um velho cisne, também navego só


em águas poluídas por dúvidas obscuras
Mas é só mexer um pouco as asas que nossas penas se lavam
No lago dos que amam nadar a sós com seu par

Ah, Maíra
Recusa a tiara dos diamantes eternos
Há vida ainda por detrás dessas carnes de sal
Há vida ainda por detrás desses olhos de gesso
A olhar que não vê

Misterioso Kubainacã, me torno agora


Que o frio dessas águas me fez crescer
82

O outono afina os roucos grunhidos, e os gritos


ancestrais dos machos goliríacos
Alivia o ranger das presas
Faz com que seja
De todo rancor um hábito que despe suas insígnias
Ó, Bendita estação que despe todos os motivos
da pele antiga

Talvez o medo de perder os ódios conhecidos pelo amor inda noviço


Forma sem matéria, espinho escondido
Maíra navega perplexa
Pelo tanto que ainda havia
Nem idéia fazia das próprias profundas, dos meus braços de moinho
Tantas valkírias
em selvagem correria
Mil éguas e as patas já doloridas
Cavando sulcos de arado no barro da própria alma

Então não era o macho, apenas!


Não, Maíra, há muito mais em jogo, meu amor!
As barreiras são lisas pedras sem beira
E as sombras e as circunferências é de ti que agora riem
Nem seriam companhias dessa que peca e reza
Ao sabor das armadilhas
Maracujás, camomilas
Outras tantas químicas, nada pacifica
E as teias tecidas com esmero cerebelo são labiríntico destino
Sem volta, sem início, perdido lá atrás
Embora persista o apito desse trem que nem partiu
Ela é atenta a cada gesto dos objetos peregrinos a cumprir desígnios
Que mãos invisíveis fazem, por comezinhos, um ser tão aflito?
Qual motivo o pouso de um passarinho magoa ouvidos tão finos?
E meus zelos companheiros, em quê?, são ritos demoníacos

83

Partogênese de uma outra mulher, assisto


assustado, as acrobacias de Maíra nas linhas da própria vida
A libertar-se da sina ensaiada com tanta disciplina
a alçar seu cetro de rainha

Os atos por trás os panos


O palco emudecido
As poltronas vazias
Mostram um teatro antigo
que um novo tempo fechou

Não há culpas, nem


portanto, compreensão
Ela apenas é
Embora sem exatamente ser

Quanto a mim, sou feito de gestos que não tocam os mesmos pontos
Que nem acariciam nem dóem
Como a sombra bruxuleante de uma vela
soprada sem nenhum desígnio
Muito mais dos que dela ainda se acercam, e cercam
Mais do que ela mesma
Sei
Que está a trocar as penas velhas
pelas asas e garras, fênix
de uma era que se aproxima (acredita)
Nova estrela de salém

Sei que também eu mudarei os panos


Que defenderei tronos sem lei
Sei que embora atenção e zelos à toda prova
Nunca a alcançarei
Sei que trocarei as pernas, sei das botas que eu calçarei
Sei que - então, tudo bem!
O mundo que um dia será também eu serei

Enquanto isso, entretanto - ó maíra!


Abre-te parêntesis!
Dessa boa e glútea gruta sombria

84

Mas, não!, ela garante, nem se trata de não me querer mais


(um velho baio ao qual ainda não arrancaram os testículos)
Nem é que um garanhão qualquer a faça arder enlouquecida
Nenhuma carmina miranda tropical
É preciso apenas que brilhe, destino estático
Ser inatingível, brilho que a si se baste
Mais os admiros
da raça

Abandona-la a seguir seu rumo curvilínio, espiralado


ou
Deitá-la ao colo rude dos nervos retesados, e
cobrir de rosa suas belas nádegas
ou
Acomodar-me aos seios ainda inteiros, e
sugar dos seus mamilos o universo inteiro

É preciso aceitar a mininitude do corpo


(escapar da cidadela dos mártires
de Cléo e Daniel
a Julieta e Romeu
Aceitar que o grande amor é estória episódica
e se manterá acesa tanta chama
a passos cada vez mais fracos
nas calçadas e nas camas, que
afinal, reclamarão seus fins de dormir

É preciso acordar dos sonhos


Antes que esses sinos nos façam ajoelhar
perante um altar qualquer

Então, o que se há de fazer agora que ela se maqueia para sair só?
Deixar cantar na vitrola um just fuck you
E calar na garganta o rugir desses cães que nunca ladram
Ah, Maíra!
Querias assim, assim será!
Querias assim desde antes que eu nasci
E no entanto entendo que também tu tentaste
Que este mundo não girasse assim, impávido às dores
Do eixo que agüenta o peso dos ventos, o calor dos jeitos
De se amar mesmo assim

Agüenta, mundo! E eu
Rego e espreito

85

E assim se vai dissolvendo a menina


que enxerguei primeiro, em meio
às próprias curvas de mulher pronta, e o cheiro
das roseiras, antes que da noite as damas
a perfumassem por inteiro
O primeiro beijo e antes
O encontro das mãos, as peles
em êxtase, pelo que mais viria
sem ter vindo nunca d’antes
O toque perigoso dos pêlos e os seios
Com todo receio
de apressar as sementes

Desvanecem-se leves os suspiros


Os diálogos interrompidos a meio, os folguedos e brinquedos
dos olhos, e os passos feitos de pseudos
desencontros, até que os lábios vermelhos
Se agrisalha a alma, no entanto
Lobo lambendo as feridas escuras da carne
A um passo de um amor ao próximo

Hiatos há na incompreensão dos sisos


Arrancados à boca sã
Nem há que voltar, forjar sorrisos
Nem o choro dos aflitos condiz com a solenidade dos livros
abertos à meia luz

Como esse em que um ghesa poeta diz:

Das árvores os braços desnudos debruçam-se sobre a casa


Os gatos dormem. Os cães dormem
Da janela dos fundos uma suéter sem mangas, no varal
Uma cadeira de balanço. Para frente e para trás
O telefone dorme

Anoitece lá fora, no céu


Ela se movimenta a passos e gestos. Velhos passos. Velhos gestos
É hora de soprarmos as cicatrizes

Outono, ó outono frio de maio

Certamente amanhã de manhã haverá um jogo


De velhas cartas na mesa
86

Ouça, maíra
Por acaso deixei de ser o mesmo rockin’boy?
E quanto aos meus boleros, não te agradam mais?
Ou tudo é desde sempre adrede preparado para o final infeliz?
Funcionários de Caim, tínhamos de nos trair?
Veja estas árvores, desnudam-se sem pejo algum
E, por quê nós, também nós, não nos despimos das folhas secas
herdadas dos nossos avós?
Espera, Maíra, ouça, maíra
Pára, por favor, de lavar essa louça
De ruminar por dentro a demência do nosso tempo
Pára com esse barulho ensurdecedor, please
Arranca do peito essa flor
de Baudelaire

O amor não pode ser um simples meio de vencer batalhas outras


Essas guerras eunucas de sexos assexuados
A separar os machos das fêmeas
Espécies sempre a se livrarem do apêndice que perdeu seu molar
Não aceitemos um tempo de regressões
Um tempo feito de estáticos status
Como crescermos e multiplicarmos fosse uma ordem genética
E Deus dissesse coisas tão óbvias quanto despiciendas
(Aliás, existirão vidas passadas anteriores a Jeová?)

Ah, maíra
Nada fará que o nada seja o contrário do nada
Pára com essa louça, Maíra, pára!
87

Vivemos em constante interseção


Uma conversa em meio ao trânsito, como naquela canção:

olá, como vai?/eu vou indo, e você?/ o sinal/ vai abrir/ adeus

Somos bilhões de seres humanos, mas


só alguns de nós olhamos para as estrelas, gritando
a importância de cada qual
O amor é muito mais que um meio de organizar a carne em alas e filas
Ou de melhor servir à sina coletiva em direção às estúpidas utopias

Há sempre dois caminhos na mesma linha


Paremos os carros, tomemos um chope ali na esquina
Enquanto isso o mundo gira
Quem sabe o tira-gosto desminta esses constantes adeus,
amor da minha vida
Mesmo que beijos feitos de cerveja

88

Acordo um sono em sobressalto


quando ela mexe um braço machucado pelas sombras
No escuro do quarto, seco sua fronte suada
É preciso cuidado, ao acordá-la
Por isso que a beijo, leve como um lapso
de tempo, que o passado
soterrou sem deixar mácula
Seu gemido é carne fraca
Para tanta alma
Trago-a com calma
Ao peito largo como a madrugada
Que o pesadelo ainda mais alarga
Movo-lhe o outro braço, certo do que faço
Mais que um modo físico, pois
há mais de um mundo, mais
muito mais que um só mundo
Confundo assim os lados, aguardo que o resultado
deixe meu pulmão respirar
Embora a lágrima pendurada, dois segundos me olham
até esboçam sorrir
Se vira para o lado leste

Salvei-lhe, talvez, uma das vidas


Agora posso voltar a dormir

89

Um som medieval convida a meditarmos passados imemoriais, arquétipos


Ela esboça rascunhos, meras possibilidades
Com fé sacerdotal
De fora, um súbito calor dos trópicos anuncia
(como uma febre in extremis)
Que o tempo da colheita de energias é feito pelas formigas
Não para ela, cigarra a soltar a voz na casa
Imune ao meus galhos nus

Psicologias são, por hoje


Mestras de uma aluna pronta
a caminhar nas trevas sem que as sombras
nada mais que servas
de sua lua, tontas
do seu esplendor
Ah! Que maíra vou?
Se sou um soldado chinês do século dezesseis
E também fui pajé
de amazônicos cipós e arrasta-pés
Ela é uma donzela afegã que nunca foi beijada
Uma donzela morta quase à hora das entregas
Ressucitada na época das belas cortesãs
em pele de cinderela
Decerto já nos encontramos antes, diz ela
Sabe-se lá quando
Até possível tenha sido uma irmã
Ah! Que maíra vou?
Acompanhar-lhe a trama, talvez também cante
essas canções a cronus
E lhe decepe os bagos
tal que uranus

Os dias alternam mantras hindus e cantos gregorianos

Ah! Deus!
Prova de amor maior não há
90

Os ventos uivam lá fora, enquanto


Tremem todas as fibras do meu coração terreno
Tudo quanto ouço dessas intempéries prenhes de sabedoria
Pequenos somos, pouco importa quantos de nós sabemos
A raça sobrevive justo pelos defeitos
Quantos aprendemos a ouvir os ventos?
Quanto medo tivemos que suportar, nós pequenos
seres bípedes dotados do sopro sobre o barro
Chegamos ao final dos séculos contados até vinte
Tivemos as bombas de átomos e de nêutrons
E tudo quanto pudemos fazer de mal a nós mesmos
O pensamento avançou em direção ao firmamento
Aprofundamos ao máximo nossos terráqueos tormentos
Afora nós e as máquinas, tudo veio e se foi
As idéias são roupas
Nossas mentes, manequins
Apenas o gozo sobrevive incólume, percorre nossa espinha dorsal
Verdadeiro eixo da vida soprada pelo coração
Esse caule sagrado que nos curva, nos totemiza
Faz com que olhemos de cima os demais animais
E em verdade vos digo, amada minha
Duma só costela vos fiz rainha
Jamais se esqueça, querida
Das tantas costelas que ainda me sobram servir
Somente palavras, garanto
Brain storm, nada mais que palavras, mas
palavras são janelas
paulofreirianas de libertação
Ela se volta sobre a maciez das penas cinzas
Em arrulhos de colombina apaga a luz das lamparinas
E me impõe velejar em sua noite escura

91

Para enxergar à noite é preciso, primeiro: ter medo


Muito medo e respeito
Que a noite é perigosa, poderosa, e sempre cobra
Daqueles que violam seus segredos
Tem que ser dela amigo muito sincero
Amar em suas sombras, descobrir o que há de belo
No mais avesso dos brilhos
Saber das fases da lua
E tanto quanto ela o permita da sua face obscura
Acreditar num são jorge e num dragão
Escolhendo de pronto o seu lado, a sua missão
E arredar logo de si qualquer esperança
De ser um homem inteiramente bom
A fé deve ser absoluta
Em si e nalguma crença oculta
E sua própria luz à distância se ofereça
Tanto que o confundam com o caminhar de uma estrela
Para enxergar à noite é preciso levar a alma sempre escurecida
Tanto quanto ela mesma, e se possível
Nunca desatar dela o umbigo
Conhecer de toda a verdade toda a mentira
E, fundamental: que a noite é clara, que escuro é o dia
92

Hoje o mar é tranqüilo como uma missa de domingo


Molhamos os pés na beira e lavamos a alma inteira
Quase abraçamos os coqueiros sorridentes
Esses irmãos que sentem, ela garante, nossas auras luminárias
Ela está bem. Eu estou bem.
Quero cobri-la de eu-te-amos
É pouco, muito pouco
Mas com que outras letras, outras sílabas dir-se-á mais?
Que o eu-te-amo de todos os jograis
Eu-te-amo soa como um café com leite matinal
Tão usual e confortável quanto um chinelo velho
(e quem consegue jogar fora o seu chinelo velho?)
Tão providencial como a fresta num vestido de festa o seio flagrado
(qual não deixa escapar o olhar?)
Ao repentino encanto de um trejeito, de um pensamento fortuito
Essas palavras que os sátiros desperdiçam
E as ninfas pesam exato o que querem dizer
Qualquer saltimbanco das esquinas, sejam desses que príncipes
desses que mendigam
As podem dizer sem compromisso
Talvez por isso meus lábios se calam após o beijo
Tremendo ao coração tais mágicas palavras
Talvez a alma ( also sprach maíra) as fale à alma
Abraço-lhe os ombros e a maresia embriaga e espalha meus pudores
Tão tolo quanto se lhe desse dessas flores nos bares da noite
esses eu-te-amos
O sol se esconde, ainda os seus rubores
É hora de voltar à casa, ela, sempre pragmática
Só as mãos se encontram
Ao peito um escândalo, três palavras lutam por sobreviver
Finalmente as sussurro, entre seus cabelos, sou de volta um menino
Maíra me sorri como quem diz: - e daí?

Outono, ó outono!
O que ainda mais vai ser?

93

Vivemos um tempo de paz, nós


Que tanto nos espinhamos por pequenas coisas
Divergências apenas quanto às velocidades e graus de inclinação
Com que a Terra deve girar
E qual eixo
Nossa geração esgota sua força renovadora
Aprofundamos as sondas
No vasto mar do que lutamos
Não somos imunes ao que geramos
Abdicamos, é verdade, como todas as que nos precederam
Mas não desistimos de pensar e amar como seria se
Afiamos o gume dos punhais e espadas da raça
Escolhemos cada qual as setas e o alvo de cada qual
Cada qual um só e seu combate, nosso bom combate
Sulcamos a terra com as nossas unhas
Adubamos com amor e dor
Espalhamos nossas sementes de liberdade desbragadamente
Agora essas árvores
Cada qual se pense à sombra da que lhe pertence
E cuide seus frutos
Maíra ainda anda em círculos
Teoriza ser próprio da mulher realizar múltiplas tarefas a um tempo só
Desde as remotas cavernas
Que um só dedo é pouco
e os seus nervos, que
acabam por arrebentar, débeis cordas
da lira que toca
sempre a mesma ópera

Por isso que se lança e rodopia


danças de ventre, musicalidades, literaturas, negócios, modas,
artesanatos, perfumes, ervas, informáticas, cartas para os jornais,
dietas vegetarianas, etc., etc., etc.,

Nada escapa à sanha da santa alternativa, sempre divergente


ou sorridente
Essa tempestade de meteoritos em queda
sobre as mentes do nosso tempo

Seu corpo é um templo místico e íntimo


Aos outros, permite-se lampejos
pequenos brilhos
Somente eu, garante, somente eu
A nudez total de Afrodite
Talvez um dia eu saiba exatamente o que é isso
e o que é aquilo

E se nos vem, como agora, uma aragem mais fria


fica tão triste, mas tão triste
Que me viro mico de circo
a provocá-la rir, a fazê-la ver
viver que a vida é a via dos dias

Ora, direis, alternativas


94

A casa está quieta, quase às escuras


Meus braços cansados não alcançam as luzes
Desses dias que se sabe há sempre um dia

Ela chega emudecida, calada


Mesmo as mãos, inda mais caladas
Calado me fico
Rola um Villa, baixinho

Ela se senta frente a frente


Mexe os cabelos

Se escorrega de volta para a porta


De lá me olha, mais calada ainda
Calado, eu, sem respirar
As cordas da viola arranhando o coração

Quando se vai parece que se vai para sempre


E eu reparo que uma meia de seda tem o fio escuro pelo avesso
95

São de mais os perigos desta vi---da Pra


quem tem paixão principalmen-----te
Quando uma lu-----a chega de repen-----te
E se dei-----xa no céu, como esqueci-----da

Canto em dueto com Vinícius, aumentando ainda mais a saudade


A voz amiga celebra a dialética de toda poesia
Única forma perfeita de vida

Debruçado à janela busco lá fora o motivo que me apodreça o casulo


E me erga as asas ao vento dos aflitos
Desde que os braços de Maíra sou um homem sozinho
Num mundo coberto de rostos sem sorrisos
Nem as mulheres todas, nem o saldo dos amigos
(que porventura)
Adoçarão este amargo vinho
Até que eu mesmo encontre o fio final
Ao desenrolar dos novelos que me embaraçam em Maíra

O telefone toca, se grita


Me vingo (que também grite sozinha)
Quero odiá-la, mil princípios
Abortados aos inícios
Seu rosto bonito, seus gemidos
Nem Mozart, nem Rodin
Chegaram perto disso
A perfeição na paixão é algo assim como o Cântico dos cânticos
(mas só Salomão em sua glória)

Um morcego esvoeja, chega-me quase ao rosto úmido


Me viro e me crispo, quase o persigo
(mas vingança é prato que se come frio)
Lá vem ele de volta, até que pequenino
Súbito sei que está sorrindo, brincando
(mas logo com quem, comigo!)

Uma grande nuvem cinza apaga a lua iluminada e burra


Me visto, deslizo às ruas
(inda aos ouvidos o telefone trina, soluça)

Sozinha

96

Esta katcha bonita que Deus soprou em meu caminho


A vizinha casada (aos até quando) que rebola, gulosa, querendo trair
As nádegas navegando impávidas às areias brancas da praia
As atrizes que mostram tudo e tonteiam mãos solitárias
Essa beleza ligeira que passa, às vezes um seio em meio ao tráfego
Esse perfume de avalon a serviço de modernas morganas
As curvas e bicos apontando o norte magnético da terra
Os lábios vermelhos dos cartazes vendendo sex-machines
Adolescências inquietas sem nem desconfiar das causas
O cio dos passarinhos que faz do mundo um grande ninho de amor
O êxtase solitário dos que desistem de caçar
Os cheiros guardados ao raso da memória vã
O gosto dos beijos que as chaves dos portais primeiros
Lua cheia de sedas vestindo a escuridão de trás
Esta katcha bonita que Deus despiu e deitou sob meu cetro de rei
Este fogo que se espalha de quatro e o gemidos que me fazem mais
Este fogo, esta katcha, esta lua, esta gruta obscura e o gozo que já vem
Vindo
Tudo isto, Maíra, é só porque preciso manter viva a chama
Do meu amor por você

E estas carnes que as minhas mãos puxam e levantam elevando


a terra aos céus
Estas peles alvas e as róseas marcas e a divisão dos sulcos feitos
ao natural arado de Deus
Estes gomos projetados contra o alto, os bicos aços afiados
à minha boca ávida de línguas e lábios
Estes pêlos do triângulo basto e perfumado enrodilhando aos dedos
meus elétrons
Estes olhos que se arregalam e rebolam e se fecham se apertam
com sabor de dor e medo
Estas rédeas feitas aos fios de seda destes cabelos
que me imploram domar
Esta fonte molhada de brasas em que forjo a espada ao botar e tirar
tão rápido quanto devagar
Estas trombetas que a princípio se gemem e logo são gritos
novas muralhas de Jericó
Esta carne que se espreguiça tonta e prazeirosa e todas as outras
Tua alma se adona, Maíra
Só faço te amar
97

Por vezes Maíra me volta e a natureza abraça a casa


Sorrindo aos nossos próprios lábios contentes
Os braços e as pernas e os pequenos gestos dizem
que nosso amor vence todos os motivos
Uma esperança pousa em meu rosto e ela para de respirar
Que é preciso deixar que a esperança brinque pelo tempo que bem quiser
A atender o pedido da alma, que a esperança guarda e recarrega
e leva para um tempo encantado, um lugar encantado
que a vida um dia distraída vai visitar
Portanto, é mister esperar que a esperança ela mesmo voe e enquanto isso
Deixar-se sonhar com o sol sustenido
Que deseja a vida seja nesse ritmo

Toda a minha carne vibra os misteriosos sons das esferas


Meus rasos ouvidos
Guardo para quando se for seu sorriso lindo
Quando a hora da goela e o vinho
Do homem que estarei sozinho
Buscando nem pensar que o amor é mesmo a serviço
Da mulher
Mas, que importa? Por ora Maíra aqui, a afiar as lâminas
Neste meu coração de pedra lascada

Triscamos as armas de meras faíscas


Nos arredamos, suspensos em corda bamba
De tudo que se inflama ao só atrito dos cios com a paz dos armistícios
Muito embora os olhos brilhem
Os nervos se aguçem
Aos silêncios mais escuros
Apenas sugamos o prazer dos corpos
Que se fazem inéditos
Imunes ao vicioso círculo
Dos meros casais casados

Nem mesmo casuais nós somos


Há um eterno fluir, a cada vez mais etéreos
No que há de infinito nos tempos
Que vieram - dizer passado é pouco
Dizer presente - e dizer que sempre serão
Dizer futuro é ainda muito pouco, embora
Ao abraçarmos as almas,
O kosmos e suas risadas

Oculto ao canto bendito dos bem-te-vis que namoram


Todo o tempo se encolhe como uma folha de papel em chamas

São três horas da manhã, agora


Mas há quanto tempo ela se foi mesmo?
Só sei que se foi ao modo como esta lua cheia desce por trás as montanhas
Ao modo de um sol se pôr
98

Pinkfloyds me mostram quão longe chega a vibração das almas


No etéreo espaço dos sonhos abertos por cada qual

Solto-me a alma aos amplos espaços da noite buscando por ela


Seu cordão de prata, meu cordão de prata
Serão suficientemente longos nossos fios magnetizados pelo carma
Do tudo de bom que nos embaraça?

Aproveito que o sol se recolhe e abrem asas os anjos da noite


Misteriosas vias marijuânicas esticam os corpos, alargam os espaços
Caem os véus e os laços
Mas não consigo alcançá-la senão em minha própria mente
Bobagem! Quero carne!
A alma não basta
Aos meus rijos braços

Assovio alto
O infinito se cala, mostra os degraus de uma escada de lágrimas
E nem é dor, é saber dos acordes perfeitos, sempre maiores
E a cada passo o outro mais alto
A mostrar como fomos tolos
E quantos ainda faltam à estrada que some ao horizonte dos céus
Deus, ó Deus das alturas! Quero apenas a mulher que amo
Seus pêlos, seus cheiros, seus olhos brilhando, seus beijos dizendo
Eu te amo

Agora o som dessas guitarras, que me esticam ao máximo


os mistérios da carne, as obviedades da alma
O som dessas guitarras é o som desses degraus
Vozes amigas cantam em retaguarda
Protegem-me os flancos e a régua
Que mede as distâncias todas que me separam
Da minha maíra amada

Agudos e graves, delírios


De guitarras feito enxadas
A sulcar a terra sem que as sementes
Queiram ainda vir à tona

Maíra, maíra, queres que eu sumo da tua vida?


Uvas se derramam ao largo do cálice
Recolho as lágrimas de um cristo que prometeu

Pinkfloyds mostram quão longe chegam as vibrações da alma


E tudo é apenas porque hoje ela não veio
Colher as pitangas e as mangas que chegam fora de época
Tudo que plantei para ela

Mas ainda resta uma garrafa de vinho nessa missa


Em que imolo um cordeiro feito de carnes impuras
E a alma se recolhe à sua mesquita, enquanto
Um sol arde às costas da noite

Maíra e seus fios de penélope aracnídea


Com que tece as redes dessas circes
99

Amor e Liberdade me sinto


Como um peixe que escapou do anzol e nem por isso
carece ver a cara da Sorte que puxou a linha em vão

Mergulho nas águas, que bom ser nada!


Ó iaras, mães das minhas lágrimas
O que dizem vocês dessas águas salgadas?

As ondas me forçam a carne em suas vontades


Me faço uma palha
Leve como essa réstia de sol que me entreolha
Quando os braços e pernas nadadeiras
Mergulho de encontro à força dos pais netunos
Que soltam suas gargalhadas

Na praia sereias aguardam, apenas


Que me salve

Sentada sobre uma toalha de seda amarela, lá está ela


essa ninfa que me basta
Conversa amenidades, apenas
como se fossem mesmo amenidades, apenas

Sabe quanto ainda me espera de cerveja e vinho


só de pensar em voltar ao colo de maíra
E quanto à hora dos sacrifícios também sabe
Quem sofre mais nas despedidas
Tudo prometo, a mim e a esta nova musa
Seus olhos desconfiam, estes olhos claros
Mas nela cresce o desejo, e percebo
Que ainda sou dono do meu grande nervo

O mar nos acolhe a nudez dos amplexos


E adentro carnes e águas a um só tempo
Netuno se recolhe aos seus aposentos
Homem, sou senhor de um vasto reino
Gozando ao sabor das ondas minhas próprias espumas brancas

De volta às areias, ainda nas beiras, sei o que há nesse marulhar


Maírááááá... maírááááá... maírááááá...
100

Tudo que precisamos é Vida, nada mais que Vida


Chamemo-la Deus, se assim nos agrada ateus
Chamemo-la Amor
Se lançamos fora o pudor ao flagrar a marca da rosa em nossos corações

Mas, libertas quae sera tamen


Totem erigido a meu próprio favor, agora eu sou
Máscula força, músculo duro e implacável, bárbaro
Sem nada polpar às cidadelas conquistadas
Adentrar implacável esses reinos de carnes flácidas
Libertar-me, vencer essas fêminas algemas
Antes que a raça pereça ao mudo som desses badalos
Totêmico sou, e afirmo a força do meu corpo em brasas

De tudo careço. Desde o avançar das marés cheias


Aos ventos nas encostas, mesmo um fogo fortuito lambendo as matas
O zumbir dos insetos, mesmo suas mordidas
O desafio dos equinócios sem porta
Os pombos que nos atingem a testa e dizem que é sorte
Mesmo as armas que detonam desgraças
Esse dia-a-dia das feiras e das risadas que movem toda fala
O olhar que de súbito nos assanha e cala
O ruir das idéias, verdadeiras ou falsas
Que nos importa viver uma vida que não libertas quae sera tamen?

Liberto-me de ti, maíra


Já te faço um fantasma, miasma em evaporação
Tuas aparições, maíra, somente me falam à alma
Nada mais reclamam
Porém (e há sempre um porém)
Se afinal me vieres com tua grinalda perfumada de jasmins
Ah, Maíra! Só um último pedido
Enquanto me algemas, reza a Deus e ao Outro por mim

Libertas quae sera tamen, bah!


A boa e velha forca me aguarda

(E eu vou comendo amendoim)

101

O outono se vai indo de mansinho, como resvala uma onça tocaiada


Quando menos se espera, os espelhos dos olhos revelam
As definitivas cicatrizes que se exibem vaidosas
Ninguém se acredita nessas vis imagens das idades
As que nos mostra a física dos detalhes
Quem sou? Essas rugas na carne, esses grisalhos?
Ou o menino escondido ao fundo do porão desse navio, clandestino?
É outono, Maíra! Só isso!
Essas marcas que nos chegam de tanto nos ferirmos
São apenas as cascas das árvores que nos plantamos
Essas cascas ásperas que nos protegem a alma
Apagar as marcas não podemos
Mas outros verões virão, primaveras
Após o frio dos infernos
Afastemos as moscas que pousam, buscam fazer ninho
E tanto quanto os teus duendes, transformemos as rugas em linhas da vida
É outono, apenas outono
Juntemo-nos as peles nuas
Que a fria estação já espreita a próxima esquina

Mas ela cultiva suas próprias plantas de liberdade e independência


Não quer flores de estufa, ganhar o mundo é o que ela quer
Enfrentar as selvas desse mundo que fere e premia
Realiza todos os sonhos, mesmo os pesadelos de queda

A verdade é que soprei minha própria liberdade aos seus ouvidos atentos
E agora, que sabe o gosto das frutas silvestres
Ela é corpo e alma entregues à sua própria causa de alargar o ego
E encerra o amor em torre medieval
Faz de mim um máscara de ferro, algo assim
Diz que um dia serei o rei, um dia, o fêmino reino consolidado

Uma águia alça vôo para o longínquo


Eu apenas assisto, passarinho campesino
Que suas asas se façam um traço no céu mais alto
Assisti-la fazer as malas da raça dói menos, é verdade
Anestesia os nervos das reações
No entanto, sei que precisa cumprir a própria lenda pessoal
Esse novo ópio de um povo nascido castrado, desnatura mater
Liberto à força das másculas máquinas assexuadas
Antes que os anos aquarianos iniciem o novo périplo das constâncias

Vai, Maíra!
Ó, fêminas pasárgadas!
Acolhei minha menina!
Que a espécie avança seus próprios sacerdócios
102

A vida torna-se estéril quando nos arrancamos as raízes da terra


Quando fazemos da matéria mero alimento das fornalhas da alma
Que a carne é sagrada e se agita partícipe das refregas do vasto universo
Quando nos tornamos tão imunes quanto as sombras, meros reflexos
Da vida que arde solta à volta
Sem que sequer ao tato seja possível
Mas vida não é nada sem que os sentidos

A força das indiferenças todas é a maior fraqueza


Pobre ser inatingível, o coração fechado às amarguras
Sem que o sofrimento, sem que as alegrias
Nem os instintos, amortecidos, e são eles a maior vida
Se os banquetes são sem graça sem os talheres de prata, os cristais
e o frisson da festa
Que se dirá sem que haja carne?
Deitar-se com as mais belas mulheres, qual vantagem?
Se em nenhuma delas se goza as divergências dos sexos na carne, na alma
Mesmo o vinho da melhor safra, sem Baco
É desprovido dos bons motivos a se esvaziar a garrafa

Caminho pelo frio das pedras sempre ao meio das vontades


Soterradas como antigas cidades cobertas de cinza e lava
Sem que as gargalhadas das tavernas
O cobertor-de-orelhas que se tem em casa
As disputas comezinhas, as brigas por dá cá uma palha
Vida cortada ao meio, vida pela metade
Tenho as mãos pálidas
E o frio das brasas que um dia
Ela soprou-me aos lábios
Terra iluminada aos meus fogos de artifícios
Acesos por braços e pernas e mãos cálidas
A fazer da carne adentrando a carne o jubileu das almas
E congelo ao mero sopro das brisas outonais
Já é inverno em minha alma
Embora ao peito, mesmo sem causa
Uma estrela germina e apenas aguarda
A voz que as estradas de um coração distante

Menestréis da Carne, nossas almas se perderam, assustadas


(Se as peles nos davam tudo o que bastava!)
Ao conhecer os corpos os suores todas as vontades

Almas sequiosas por matéria amniótica, agora


Que os laços desabam, desfazem-se os nós mais górdios dos modos
Agora, talvez
No etéreo espaço cósmico em que tudo se reencontra
Em meio às nebulosas dos sonhos e pensamentos vivos
Talvez agora
Nossas almas dialoguem
E se busquem as mãos na escuridão dos desejos mais secretos
Numa união to-tao
103

O tempo passa não passa. Também eu apenas um corpo


Caminho sem o canto dos pássaros ou o encanto dos sábios
Os livros, os discos, os quadros - tudo se cala
Os amigos minguaram
Pairo no éter dos relapsos
Automáticos hábitos me bastam
Sem que os ponteiros dos relógio me alertem para nada
Somente as noites - que a noite acende ocultas falas
Que me faço um mago
Capaz de ver nos sonhos esotéricas trucagens
Que me suga de volta aos raios
Daquela que encontro nas vastas pastagens da imaginação

Ela é tão pálida!


Não me inquieto, também eu sou transparente
Nossos modos vagos, desprovidos de átomos, até me agradam
Somos velhos amigos trocando impressões de alma, confidências
Aquietando os instintos básicos

Compreendemos e aceitamos o essencial que afasta


Fêmeas e machos
Condenados ao exílio dos adversários, ambos vencidos
Derrotados pelas fronteiras impalpáveis
Dos estados mentais mais fortes que metais
Essa impossibilidade das metades
De fincar sua bandeira à outra parte
Conhecemos nossos limites, não há culpa nem lágrimas
Nada atiça prosseguir na liça
Inexorável empate

Azeite e água ao blefe das androginias arquetípicas, fusões de alma, argh!


Nunca fomos uma só carne, uma só alma
Amputados aos inícios por deuses da crueldade
Talvez os séculos futuros, quem sabe, nos construam os unos
E a Espécie costure os pares
Carne com carne, alma com alma
Até lá
Macho e Fêmea Deus nos criou
A tarefa é nossa

Almas gêmeas, bah!


Esses narcisos idiotas a retocar a própria imagem nos espelhos dos egos

Os ventos sopram forte nesta madrugada cinza


Arredam nossos tolos e presunçosos miasmas

Ó outono! Ó sábia natura!


Ó força infinita das alturas!
Ó mistério das profundas!

Qual maria é a maíra do meu amor futuro?


104

Sei dela pelos sussurros à boca pequena


Pelos olhares oblíquos, pelos sorrisos das hienas
Os urubus que traçam círculos à minha janela
Sei dela que seu tempo corre em linhas transversas
Uma estrela sobe
Arreda para o alto o corpo das carícias
Meu próprio corpo se esvazia entre os lençóis
Das fronhas se apaga o cheiro dos cabelos
Mas resiste ainda em segredo o amor soterrado ao fundo dos riachos
Ainda represados ao peito
Sei dela que a alma se agita, que o corpo congela
Mente que sublima, aproveita a energia divina
Capricornianas serras que se cega em subir
Sei que ouve sons de outros paraísos
Que homens mais bonitos, por isso, por aquilo
Só eu sei, porém, que aguarda ao fundo do peito o dia
De me contar tudo com espantosa alegria
(Um dia ainda vamos rir disso tudo, meu bem!)
Jurando ter mantido limpa a saliva
Prometida ao dia de envelhecermos juntos

Sei, inda mais que ela mesma, das vezes que duvida
Sei dela que as árvores agitam os galhos, se esticam aos ventos
A abreviar os vazios
Sei dos seus poréns, sei dos seus depois
E ainda sei do seu talvez
Mas ninguém segura uma estrela que sobe
Tentar prendê-la é queimar-sd ao rastro da luz que deixa
Ao fogo das energias em combustão
É tentar agarrar-se à cauda de um cometa
É preciso (e é tudo o que ela realmente quer)
Que a veja por inteiro, primeiro, brilhando na imensidão dos escuros
Conhecer qual sua grandeza, quem é ela afinal entre tantas
Saber seu nome de ambição

É em vão que ainda tento apertar minhas próprias cravelhas


Que desafino enquanto não me voltam os sons
Ainda busco seu brilho na noite escura, essas certas noites
Em que a alma vôa pelos firmamentos da antiga paixão
Mas vago sem o exato timão, a vasculhar luz à vista
Nesses oceanos de saudades que a noite desperta
E que os dias logo adormecem

E é assim que acontece nessa exata noite em que a lágrima acorda o sono
Sobe, amada minha, sobe, seja esse meu último adeus
Caminha tua estrela aos olhos dos que ainda precisam saber do amor
E qual seu preço em dor
105

Esses casais de enamorados que buscam os vãos das praças


Esses obreiros iletrados, essas moçoilas já com as mãos em calo
Sonhando com algo mais que vai nos beijos, além dos instintos

Nessa valsa inaudível aos que simplesmente passam


E acham que o amor é feito de brasas
Os que em si mesmo atiçam ao fogo das vontades
Ah! Esses que simplesmente passam e quando um olho flagra
um gesto mais ousado
Esses que pensam que devassam a intimidade das almas
Esses, descuidados das rosas e dos pássaros que enfeitam
os jardins dos que se amam
Se ao menos se perguntassem quando o último laço mais que a carne
Talvez pudéssemos, Maíra, ousar tentar de novo ser feliz

Melhor deixar assim, esperar o momento das almas prometéicas


Que tal contrária sina não apaga, ainda mais revela, a parceria
Saber que tudo o que se passou, passou para a essência plena da vida
Como Penélope ao desmanchar os dias só apagava as formas vazias
E o templo que pela fé erguia era o sopro das eternas liças
Também eu penelópo-me a esvaziar o cálice amargo das lembranças
Mesmo as licorosas noites, mesmo o graal dos dissabores
Dia a dia bebo dessas dores, e essa saudade que não me deixa
Abdicar das garrafas carregadas de mensagens ao éter

Talvez pudesse despejá-las ao vasto mar dessas mulheres


Que ao corpo apetecem, esses lábios que pedem
Os beijos que guardo trancados, esses, os beijos da alma
Como se fôsse isto possível
Também ela, eu sei, tanto que eu também
Nos damos à carne solta e prazerosa aos inversos da alma
Dessa fome que não se sacia
Dessa sede que não se basta

106

Mas o paraíso que me abriu Maíra é carne e alma


Todas as possibilidades estranhas que a carne clama
Sem que a alma se macule com pecados
Nem mesmo os delírios mais dionisíacos avançariam tanto
Nessas delícias que muitas vidas sonhadas e vividas
As carnes entrelaçadas, as almas alongadas em tantos seres plenos
Tantas possibilidades de felicidade
Que o fim de cada taça era o início das garrafas
E que Deus guarde essa morada em sua casa!
Mesmo agora, ao sózinho dos meus vinhos
Quando os frios se convidam entre as frestas
Minha alma se aquece e a carne se toma de súbita fornalha
Em que forjo aos futuros minha espada
Espalhando dessas brasas campo infértil
Aos domingos, deliro, como quando hoje, pela manhã, soube do arco-íris
Tinha toda a cor dos outonos, eu e os mil sóis do portal norte
Ela era ao sul uma dádiva, e banhava-se a nudez do corpo e da alma
E era meu seu portal de entrada
Quando nos juntamos e as lágrimas de Íris
Adentramos o templo ao paraíso
Mas o Amor não foi feito para pensarmos nele, não é Pessoa?
( - Mas para sentirmos e estarmos de acordo...
(Pensar é estar doente do coração
(Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
(Se falo de maíra não é porque saiba exato quem ela é,
(Mas porque a amo, e amo-a por isso,
(Porque quem ama nunca sabe o que ama
(Nem sabe por que ama, nem o que é amar...)

Outono, ó outono que nos ensina a jogar fora as peles estéries!


E reter na medula a descoberta da própria essência
Abrir mão dessas armadilhas que nos desviam da verdadeira vida
Para só manter acesa a chama interior que move a Terra

107

O outono chega ao ápice dos meus frágeis sóis


Movimento-me ao tempo de Jó e mais os Reis
Tiro o pó da alma que resta às estantes de livros
Assobio os sons que os discos
Paro de sofrer, sem que isso seja ainda mais que o sofrimento
Dou-me a comprar gravatas, freqüentar pessoas
E às mulheres sou ainda as antigas cantigas de bem-dizer
Com novos repertórios
Estico-me em gulas à direita e à esquerda
Sem que seja tanto o pasto ou a sobremesa
A vida me ensina, sou de frágil sabedoria
Mesmo as comezinhas
Tenho as minhas verdades, mas
Se querem mentiras também as dato
Saber com quantos paus se faz uma jangada é pouco ou nada
Saber lançar-se ao mar corpo e alma nessa balsa...
Sou tal aquele poema que fala do espelho olhando na cara
Nem santo nem canalha, humano
Rosto de quem erra e falha, mas que tem lá os seus dias de glória
Vejo alegria fingindo que finge que finge que é
Vejo tristeza fingindo que finge que finge que é

Mas nenhum espelho verá minha face sem que o cheiro de maíra
Sem que os olhos de Maíra
Mesmo que a distância alargue em oceanos
Mesmo que as galáxias, os escuros e as cores
E esta noite, particularmente esta noite
Em que sinto tanta falta dela
E a voz de uma Lavelle canta
Forget the few

108

Ela bebe o whisky dos bem-sucedidos tal o hidromel dos olimpos


Solta suas vozes íntimas aos ouvidos mais comuns
Se enche dos sóis da ribalta
Se espalha entre as próprias cifras e jorra feito uma fontana de Trevi
Depura-se, reduz-se ao melhor dos sucos de frutas
Oh! Maíra! Quanto de bagaço restará para mim?
Nem dizem as fotos, nem os sorrisos, nem As Novas Cartas
Portuguesas
Apenas espero as esferas que ouço sem que o roçar dos sinos
Entre os morcegos e os bichos das noites em que ainda me escondo
Mas, em permanente estado de poesia eu vivo
Caminho feito um cristo, em seu melhor momento
Quando não havia ainda milagre nem cruz
A mim me basta essa maíra das cavernas do meu coração
Que me queima as veias e me isola das tentações da alma escura
Que me guarda castiço de tanto que só a ela eu amo
Em permanente estado de poesia eu sigo
Soubessem, ousassem saber do tanto que nesse pouco digo

Na batuta das orquestras de cordas se faz o outono dos anos


A compreender com todos os sentidos o esticar dos focinhos
O cérebro, este argonauta, aponta a direção do sol
Mas a alma prefere aconchegar-se à escuridão

Seu rosto se multiplica em fotos


E conheço a pouca verdade das imagens
Olhos que tanto vêem, olhos que tanto escondem dos demais sentidos
Fotos sem tato, sem cheiro
Só por isso sou ligeiro em atracar-me aos sonhos verdadeiros
As fotos não datam tatos, e eu ainda agarro-me ao seu velho travesseiro

Outossolente, sou senhor do entendimento da própria fragilidade


Inda mais frágil quando me forço forte
Somos mesmo todos frágeis, fêmeas e machos
Corpos de cargas ao peso das raças
Raças em permanente estado de extinção
Raças sobrevivendo de superação e aglutinação
Alimentando-se da carne e da alma dos que se vão
Somos novos peixes e exploramos os oceanos
Somos novos pássaros, voamos
Somos leões, micos e lagartos
Somos boi no pasto, somos gatos
E cães, farejando
Tudo que fazemos é apropriarmo-nos uns dos outros, antropofágicos
Exatamente como os canibais faziam aos guerreiros vencidos
Sempre forja de uma nova espécie, tentáculos da criação
Enfim, na fragilidade das esperas, espero
Ao menos sei, outossolente, que a alma nunca espera em vão

109

Ah! Esta voz amada ao telefone como guizos


Ao pescoço de uma gata entre almofadas
A ronronar carinhos e cios
New York, new york, ela canta, uma Liza Minelli
A reclamar o périplo dos sentidos
Voar, voar até o umbigo do mundo
Onde a felicidade de todos os contos de fadas
Nova Roma! Nova Constantinopla!
E alçaremos o vôo largo das águias através do Atlântico
Tapetes mágicos a fazer do mundo a nossa casa

E If...és capaz de dar segundo por segundo


ao minuto fatal todo valor e brilho
Decidir, com o coração frio
Se há Deusa por baixo dessas cinzas
Que o amor, acostumado aos noturnos delírios
Possa vir à tona das luzes feéricas dos avisos e das telas da mente eufórica
Assim como uma rosa púrpura do cairo
Para ser o lúdico eterno do resto das nossas vidas
Com a certeza do goleiro que se coloca para o pênalty
E é ela quem bota a bola na marca
Quem treme? Quem tem A Fortuna sob as traves?

Com a certeza que move os atos impensados das adolescências


Um gigante de aço e asas desliza novos sonhos para Maíra
Guardar que ela volta, ou
Deixar que fique bailando em sonhos sua alma na memória vasta
Eternamente amando o amor das esperas
Numa felicidade que se conquista ao contrário das físicas
Desses brilhos feitos ao solitário Espírito, embora a carne
Mesmo a alma ainda implore navegar por essas peles

Lá fora tudo é céu e um sol feito noviço


Brinca uma lua tardia de masculina sina
Espalhando rubores dessas cores com que os anjos e seus arco-íris
No espelho os pêlos grisalhos apontam na direção dos fracassos
Embora o corpo se aprume rijo, a confidenciar que me desembaraço
Mas entre a mulher que se tem em sonhos, e
A mulher com quem se arrisca a vida, inda mais Maíra
Vai uma distância que não se mede aos gritos
Aceitar, enfim, ser sua mera sombra
Ainda mais Maíra?

Que sorriria irônica a cada vez que a coleira me apertasse o colarinho


E toda aquela vida social e coisas que mais
E todas aquelas walkírias
Ainda mais Maíra?

Ora (direis) ouvir estrelas! Certo


Perdeste o senso! E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...
110

Aos outonos flagramos a ira dos frutos abortados por tardios


Lançando-se coléricos contra o piso
À mais leve brisa dos motivos que os cérebros abertos às energias

Algo impulsiona, no entanto, levar adiante essa pedra ao peito


Atravessar becos boêmios ao escuro dos próprios olhos animalescos
Enquanto
Carrega a carne um São Sebastião vestido de flechas e o sangue
palpita e escorre, escorrega por entre as névoas
de um coração sacralizado pelos espinhos
da humana incompreensão quanto ao do the right thing

A verdade é que ainda nos ensinam antigas lições


Apontam o nó górdio, os ossos ao fundo dos abismos
O precário equilíbrio e o sempre
Sempre o do the right thing por trás de tudo isso, inclusive the left thing
Fadados a ser, macho e fêmea
Inimigos íntimos

Mas volta e meia o gargalhar das bestas sacode as consciências


As nossas próprias bestas
Cavalgadas pelos anjos a serviço de Deus
Continuamos antigos
Giramos ao máximo os botões da antiguidade
Sugamos ao máximo a seiva da renascença
Perplexos ao máximo com Rousseau, Marx e Freud, agora
Somos antigos com velocidade total
Trocando os trajes cerimoniais
Cocares por roupas espaciais
Tacapes e espadas por mais
Sorrateiro, o amor prossegue a escalada da carne
Sempre tão carne
A bulir com a alma o êxtase dos seus deuses imortais
Isso! Isso! Cada qual escolha seu lado
Nos encontraremos todos na reta final, portal
dos antigos quanto nós, esses mortos que governam
Talvez a nossa rebeldia cada vez mais jovem, velozes
contra o Senhor Tempo, talvez vençamos
Se vencermos, ah!, se vencermos
Afinal, talvez possamos nos amar em paz
Abraçarmo-nos com ambos os braços
Acarinhar-nos com ambas as mãos
Beijarmo-nos com ambos os lábios
Atracar sem pejo veleiro e cais
Maíras tremem de medo quando expostas aos sóis das razões
Íntimas dos tempos escorreitos
Íntimas dos sonhos mais tolos
Guardiãs das difusas coisas
Rainhas das noites
Sabendo dos dias apenas as raras confidências
Que os sóis segredaram em seus lençóis
Enquanto eu, cá de onde estou
Ao início de todos os horizontes
Onde uma nova luz ainda esconde seu verdadeiro nome
Eu nado náufrago ao sabor da escuridão
Sem saber por quanto tempo
Sem saber por quanto preço
Ah! Mas se Maíra...
ao colocar um travesseiro ou
ao largar sua bolsa às pressas
E, ao voltar em direção à janela, dissesse:
“Não é absolutamente isso,
Não é isso que quis dizer, em absoluto.”

Até um Mr. J. Alfred Prufrock me daria razão

111

Sete anos de pastor Jacob servia


Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
Que a ela só por prêmio pretendia

Porém o pai, usando de cautela,


Em lugar de Maíra Raquel, me deu Maíra Lia

Que os tijolos vermelhos dessas muralhas da China


Mais os azuis botões dessa camisa
De que a Terra gira, gira e não se livra
Na escuridão das noites em que me exila
Onde lágrimas são estrelas, luz divina

Marcam-se no pasto os bois de cada estância


Assim os homens se marcam a cada canga
Salomés inda lhes servem nas bandejas
Cabeças de Eros, os braços, as asas e os pés
Aparam pontas de estrelas fossem garras
Que não feitas de luz
E os arco-íris que cedo se desmancham
Se desmancham porque nós nunca aprendemos
Que a alma não tem cor
Mas, se amar no escuro o escuro amor preciso for
E um sol que a noite esconde e a lua estúpida
Nem por isso a alma deixa de crescer
Decerto, envelheço - perco definitivamente o senso!
Para estar assim a dizer coisas tais que estas

Começo a servir outros sete anos, Maíra


Dizendo: - Mais serviria, se não fora
Pera tão longo amor tão curta a vida!

112

Espeto espécies marinhas de bom paladar


O garçom serve um liebfraumilch
Flagro um novo olhar
Busco os lábios, primeiro - o colo, os seios
Distinguir as curvas da carne e as da alma
Impregnada dos pequenos gestos de mulher faminta
Uma súbita energia me incha o músculo
Um querer sem pensar
Do que mais importa
Há uma elegância no achegar-se
O cardápio surge à meia altura
O sorriso discreto e confiante não é para mim
É para o mundo, que lhe louva os pedidos
É preciso ter as cartas certas para estas ocasiões
De preferência um baralho novo
E apostar
O licor é néctar do tempo
Também o café
Há mais que o mínimo necessário
De mistério
A ponta de mapa surge ao portal das últimas horas
Os tesouros de ali-babá
A carta tem nome de infância
Junta as pontas em ímã
Ela sabe o que quer, também quero
Um querer sem pensar
Do que mais importa
Para além e acima dos trópicos Maíra sorri
Sabendo de mim
Um querer sem pensar
Do que mais importa
Essa é do tipo que usa meias de seda certas
Cinta-liga
Carnes muito brancas, perfume, maciez
Sedas de Salomão
É lento o balançar do cais de atracação
Suave é a tarde, azul é o mar
Há uma alegria incontida em chegar
Uma penélope larga agulhas e linhas no sofá
Dá a ulisses seus direitos
Sábia quanto o tempo
Um querer sem pensar
Do que mais importa
113

Ao telefone a voz de Maíra soa como aquela melodia:


-Vem! Me-u me-ni-no va-di-o! Vem! Sem men-tir pra vo-cê

A hora se inclina e toca meus cucos um claro bater metálico


Os sentidos me tremem. Sinto que posso...
E colho o dia plástico
Nada estava acabado antes de eu ver:
todo o devir aguardando em quietude.
Maduros meus olhares: a cada um ,
como uma noiva , chega a coisa ansiada.
Nada é pequeno para mim: gosto de tudo
e tudo eu pinto sobre ouro com grandeza
e bem alto o levanto - sem saber de quem
vai a alma libertar.

Explico o súbito parentesco com Rilke:


Lá, onde Maíra espera, luz ao fim do túnel
Lá é já primavera
Meus passos de outono

Descanso meu próprio livro de horas


Também sou peregrino das calmarias
Meus heróis morreram cedo, mitos, arquétipos
Restou São Eros
E a virgem maíra, é claro!
Tudo que penso sinto vivo leio um único motivo
Uma única direção tem o sol
E essas luas que vão e voltam, trocando a posição do mundo
Há mais os reis e os tiranos mais comezinhos
Esses dinheiros...
Também em nós os gatos se espreguiçam
E os lobos sonsos

Afora as madrugadas, ainda muito largas


Talvez quando os orvalhos chegarem às flores pálidas...
Ainda há mais: os morcegos, esses amigos
Cujo único atributo é esvoejar comigo em círculos
E as corujas que no escuro beijo aos repentes da alma

Não! Ainda não! Lá é já primavera, ainda


Talvez quando se outonar o olhar das milhas
Mas terá que ser antes das damas todas cheirarem
Essas palomas das noites invernais
Quem sabe, quem sabe mesmo, este não faz a hora
Espera que dela a hora de lhe pertencer

Ainda restam discussões com Deus


Manchas d’alma e as marcas como um mapa
Das barbas diárias ao espelho, sem narcisos
Nunca mais que o necessário ao balé dos caranguejos

Era uma fonte tão límpida e clara, no entanto


As águas que banhavam a minha Maíra
Não sei de onde, se ouviam
Sons de uma lira antiga e clássica
Para que eu ficasse assim
ao sabor de uma brisa
114

Ah! E tem este meu tugúrio, meu casulo


Que me alimenta em tudo, ou quase tudo
A permanecer contemporâneamente vivo
É verdade, sim, é verdade que a tal morte me espreita, os olhos frios
Piscando lentos como os carros que sinalizam dobrar as esquinas e
seguem em frente
Como em All that jazz, ela é maravilhosamente feminina
De tanto, que às vezes quero alcançá-la
Especialmente nas manhãzinhas chuvosas
Tudo nela é leve e doce afrodisíaco
Olhos de jade entre ametistas
Lábios raros rubis de rainha
A pele envolta em véus tão finos
Que palpitam os segredos mais recônditos
Num convite insano
Bye-bye, love; bye-bye happyy...ness, bye-bye tender...ness
La-lá, lari-lalá la-ri!

A morte e a morte de Quincas Berro D’água


A morte da Rosa do Gabriel Garcia Márquez
A morte do tupi do nosso Gonçalves
Esse I-juca-pirama que não é mais aqui

Morrerei preso a este casulo escuro?


Não! Voar é preciso, romper estas paredes de aço
Forçar as grades da solidão bizarra, forçar soltar as garras
Segurança é ausência de vida
Liberdade para as borboletas
Além-mar está Maíra
Maria e suas chávenas de chá, suas pequenas manias
Suas ambições de Rainha de Sabá, seus truques, suas mentiras
Sempiternas verdades femininas
E a velha perplexidade que ainda mais me faz amar
E este bom vinho, feito à própria mão de pater liber
Boa noite, Bizet
Bom dia, Ravel

Laaa...
Lari-lari...lari-la-lá!...
Larilá...

115

Minha abadia, minhas iluminuras


Em cada homem seu próprio tempo desliza pelas encostas
Escorre à revelia das cidades
Há horários, naturalmente
Corpos obedientes trafegam nos metrôs e outros meios de se fazer
presente
Todos os circos, e os pães de cristo
Os bolsos vazios dos piões de menino
E se nas aquarelas esgotam-se as tintas
A cada qual a sua cor
Crescem em mim asas de condor
A alma é um arqueiro zen
O alvo é a própria carne
Arco e seta, agulha e linha a costurar aflito semente e trigo e ainda
Soprar o joio
Transcender tudo que as pedras do caminho
Deixar fluir o sangue mastigado
Dar as costas a vontades submersas
Afinal, a vida é mesmo muito curta para tanto retrato
Não se pode comer o bolo e guardar o bolo
(Voltar as antenas para o spacecake de onde uma marilyn maíra nua)
Não se pode o melhor dos dois mundos
(Deixar que qualquer face da moeda)
Minha cara, ou
(Sua Coroa, seu Cetro, suas Tiaras...)
Outovalências, aceitar o grisalho que transita em cada volta
Mas pintar os cabelos da vida sem tanta força
Aprender a olhar para o outro lado, distrair-se das comezinhas liças
Rir dessas batalhas, divertir-se
Sobretudo, fingir que se acredita
O sol é poente, e até os vermelhos se disfarçam
Misturar rosáceos com crustáceos
Muquecas de siri mole (sempre à capixaba)
Do cabernet ao merlot, um savignon às vêzes
Tudo o que ela sempre quis
Que um dia foi

Sobretudo, jamais estremecer (nem o mais leve...)


A longa lança cravada ao peito dos dragões a cada noite
Talvez, quem poderá dizer?, talvez
Nossas cadeiras de balanço se curvem para trás
Ao mesmo jeito das vêzes que caminharmos à frente

Outocientes, nós
E essa moeda que não cai
116

...ou, não...
Abrir mão dessas peles quais cerdas de um violão do Tom
Da maciez dos lençóis ao forno das pernas dessas centopéias de verão
Abrir mão do mundo, vasto mundo, talvez chamar-se raimundo
Passar a contar as horas do lado de fora das portas
Usar coleira e cabresto, carregar papéis em pastas de couro
Acomodar os fundilhos no sofá, ligar a televisão da sala
...ou, não...
Talvez mandar tudo às favas

É verdade que sou um homem sensível ao seu anaís-anaís

Um Henry Miller sobe ao telhado


Um Hemingway limpa a espingarda
O beco dos machos se chama solidão
...ou, não...
As deliciosas flores do mal até que as pétalas

Ser ou não ser já é questão de somenos, quem se importa?


EXISTÊNCIA é o verdadeiro dilema deste fin de siècle
Das batatas fritas às viagens na primeira classe

Marilyn maíra nua e seus spacecakes


Sou um homem feito de talvezes
E o tempo escoa pelas torneiras abertas o sangue das baratas tontas
...ou, não...

Em nada adianta abrir as janelas para os dias cinzas


E este sol que nem ilumina

Amanhã serão os mesmos pássaros


Os mesmos ratos os mesmos gatos
Os mesmíssimos cães que ladram
A mesma gente andará em círculos
A TV quebrará, talvez compremos outra
Talvez consertemos
A mesma máquina de lavar terá outros botões
As mesmas roupas serão mais longas, ou mais curtas
As mangueiras darão mangas; as pitangueiras, pitangas
Tanto abacateiros quanto cajueiros minguarão em terrenos alagados

Talvez Maíra nunca mais mude o corte de cabelo


Talvez nunca mais pendure máscaras trás as portas

Talvez troque travessas por laços e guizos

...ou, não...
117

Guardar o coração de aço e navegar


Aceitar que as águas mais leves que o ar
Submergir e voltar, ím par
Submergir e voltar, ím par
Submergir e voltar, ím par
(We all live in a yellow submarine...glub, glub, glub)
Qualquer nau é mais leve que a célula mater
Alargar a alma da carne, ím par
Cantar e acreditar

Aquáá ri ús...!
Aquáá ri ús...!

Quan-do vo cê foi em bo ra
Fêz-se noi te’m meu vi ver

When the night! has come!


And the land is dark
And the moon
is the ónly light we’ll see

No I won’t! be afraid!
No I won’t be afraid
Just as long as you stand
Stand by me
Stand by me

Benditos sejam vós, jograis, trovadores


Que não nos deixam mentir aos prórprios piões
Caminho pela noite e as estrelas companheiras
Dessas luzes que não queimam
Sempre acendem o desejo de buscar no mais longínquo
As explicações do que somos, de onde viemos, para onde vamos
Com elas me faço um Gauguin interestelar
A pintar e amar as taitianas de al-di-lá
Noutros primitivos paraísos
Les hommes naturellement bons
Muitas luas cheias a sorrir e garantir que basta amar
Sim! Irei buscar maíras onde houver, no mais mínimo dos átomos
Na plenitude do espaço azul escuro desses portículos de luz
Satisfazer-lhes as mil vontades
Ser feliz

Ah! Mas o que estou mesmo a dizer?!


Caminho pela noite e as estrelas são meras alegorias
E o vasto vestido de noiva de Maíra
E esta lua cheia, alma de Maíra a brilhar de alegria
Só porque eu, cavaleiro
Prometo que sim, serei inteiro
118

Na mesma calçada a catcha me pára, convida-me às ilhas


Que nenhum mapa explica
E a voz de sereia, hidromel, maresia, e uma leve brisa
Sorrindo que as filhas da noite amiga
São parte do tudo que vai com o Uno

Caminha junto, desliza


E as luzes agora coloridas
A mostrar que a terra em que ela habita
Abre as promessas mais profícuas
Tem de tudo o que se precisa
Lâmpadas brancas, movimento
Metais, velocidade, belezas gregas
Músicas para meus ouvidos, melodias
Sacras e profanas, sagradas famílias
As que se formam por ousadia
Eletronic games, tantas realidades
How to make more money
Ela desliza, rainha
Das coisas comezinhas, exibe-se mais nua
Que a serpente quando mostra a língua
Serpenteia os quadris, me toca as peles
Dona das macias ancas de madame
Butterfly
Junta-se uma outra, inda mais amiga
É tudo um grande e belo jogo, afirma-se
Mãe de todos os paganismos, tão novinha ainda
Não é por dinheiro, precisa
O brilho aceso nas retinas
Ah! Se todos buscassem apenas ser feliz
Quanto eu lhe daria, de zero a dez
E na próxima esquina
Há mais

Uma terceira onda de flautins, harpas doces


Nem de longe o rufar dos tambores
Apenas os motores, os sinais verdes
E as vitrines
Paus d’água libertam jasmins, damas da noite
Mariposas travessas pelos botequins
Há calma e uma friagem arde
Aos poucos se aquecem olhos, avermelham
Já são brasas, e o corpo
Segue um rito rotineiro, e esses traseiros
Realmente sabem tudo sobre ser mortal

Arfam os seios, apontam contra o peito estreito


Já fui remador, hoje sou veleiro
Esta gazela, tem pescoço e veia
Minhas garras, a cava do vestido, e nada mais
Por baixo, só a pele em seda
Gritando: - me crava, se é pouco
Tenho mais, muito mais
Que precisa um lobo
Para ser feliz

Na arena um touro sangra e expira a alma pelo nariz


Pela boca escancarada, pelos furos no couro, tremulam flâmulas e
espadins
Caminho pela noite e uma estrela companheira
E uma lua branca ainda sorri pra mim

No horizonte o sol se ensaia e sangra


Meu corpo se deita entre as folhas secas
De um outono que já se vai ao fim

119

A mosca presa à vidraça zumbe agoniada


No rádio velhas canções já não dizem nada
Um súbito calor, raios como flechas
O cérebro cheio de frestas
O coração é chumbo, assim o mundo
Os olhos não abrem, não fecham
Tudo é mudo de sentido
Nenhuma roupa combina, não há cor
Que assim me queira
Os músculos são mornos, dentes que não mordem
Nem sorriem
Há um vago vácuo na garganta
E a boca, fronteiriça, não encontra a língua
Assim os braços, assim as pernas
Assim as mãos se viram as caras
Mesmo a tarde nem é dia
Ou noite ainda
Sei que ninguém tocará a campanhia
Não há portas, só janela e nuvenzinhas
Nada me tocará os nervos, tirim-tirins, telefonias
Na geladeira as prateleiras são carentes de alegrias
Resta o vinho
E uma taça comprada logo ali naquela esquina
Restam as sombras
Que se esgueiram em fotos cinzas
Mesmo os livros, esses amigos mais antigos
Trancam suas páginas, e as palavras
Nem assombram nem convidam
Deus se cala
E a natura mãe cuida da própria casa
Quererão, talvez, dizer
Há um tempo de plantar, um tempo de colher
E esse tempo de esperar sem mais porquês

120

Duas colheres - o pó de café - e meio litro de leite


A louça lavada, antes de sair
O paletó, a gravata
Um tanto mal passada, a camisa
E a máquina rosna uma roupa suja
Papéis seguem seu rito mesquinho
Sempre a mesma paga em dinheiro
Lá se foram os sonhos de guerreiro, meninos acabam por desistir
Capulletos sorriem, e Montechios
Agora dividem o reino
Foram-se os Guevaras, os Bolívares, os Rondons
O amor troca de nome, relação
Essa insustentável leveza do ser
Há um novo Shopping
Multiplicam-se os canais de TV
Somos todos magos, magros de fé
Alguns esperam milagres lotéricos
Outros aguardam Ets
Satélites traçam estradas e a voz viaja
Pelos quatro confins
Sempre panes et circenses
Nada mais há que pensar
Somos átomos, moléculas, DNAs
Qualquer problema chama-se o técnico (ou seja você o técnico)
Vivem aos farenheits, os que decoram livros
Admirável mundo novo, admirável gado novo
Ingressos para a Era de Aquário a trinta centavos
Há cada vez mais Servos do Senhor Jesus Cristo É Nosso Rei
Sabemos todos nosso lugar na fila
To do the right thing, ...ou não!
Tanto faz trocar de mão
Mudam as moscas, mas as marcas das patas ainda causam confusão
Esvazia-se a taça amarga do século
Ao doce das últimas gotas de sucaril
A dois mil chegarás, de três mil não passarás
Esotéricos profetas já começam a anunciar
A velhice inicia aos noventa
Tem nervos de aço o pênis plástico
E muito ouro sob as faces da mulher
Fecho o pensamento e adentro o lar estreito
É Maíra quem me faz só
Duas colheres, o pó de café
E meio litro de leite
121

Um cara se despe de discos e livros e filmes


Reduz roupas ao mínimo
As noites são feitas de sonos
E lá um ou outro programa de TV
Antes de deitar, toma um copo de vinho
Reza, antes de dormir

As manhãs são sempre horas certas


O trabalho é algo como um hábito
Nenhuma preocupação com as guerras
Quando almoça, não janta; quando janta, não almoça
Barbeia-se regularmente, mantem o corte do cabelo
E as comezinhas contas são pagas em dia

Tal que lhe queriam, carrega uma pastinha


Mero accessório, todavia
O terno é sempre cinza; branca, a camisa
Vez ou outra vai todo azul marinho
Nunca se queixa, nem alguém lhe sopra confidências
Lá uma ou outra fêmea lhe espreita, logo desiste
Sem que o cérebro seja mais que um fio frio

Guarda uma fotografia na gaveta de cima


Que nem lhe umedece a retina

Esse cara, Maíra, anda a me rondar a alma


E me estende em gestos falsos os seus braços de assassino

(Mas acho que já te falei sobre isso em minha última carta)


122

Esta me jorra luzes amarelas ao solar de entrada


Mil fogueiras se acendem nesta noite
Dançam os ciganos. Atacam em fúria os violinos
E uma lua veste igual maíra fosse minha
O vinho roça as línguas e os beijos têm gosto de pouco
A noite avança e a brisa brinca de bolinar as velas
De um candelabro guardado para essas épocas
Em que a mulher quer au grand complête
Beijamo-nos mais e mais e mais
Lambuzamo-nos ao azeite dos camarões
Deslizamo-nos as mãos, aveludamo-nos os pés
Os olhos são faíscas das primeiras pedras
Almas doces nós somos, o coração em mel
Licorosos fluidos escorrem em nossos corpos
Somos imortais, somos eternos
Sem que junos ou iagos se apercebam
Engrenamos nossas carnes como um carro zero
Tudo se encaixa, cada palavra é arauto de uma nova risada
Da alma, que se banha em fonte rara
Da carne
E como é bom o marulhar de logo após o amor!
As nossas mãos entrelaçadas respiram iguais
A intimidade dos corpos nus é quase nada
A intimidade da alma aconchegada
E esse espelho em que vejo aos olhos dela que sou mais
E pensar que tudo em volta segue sua rotineira sina
Que amanhã, mesmo nós, voltamos a girar nossos ponteiros
Em círculos de um mesmo eixo
Mas enfim tudo tem lá o seu sentido
Por ora, a noite avança e nós
Somos o sal da terra
A não deixar perder de vista
Que há paraíso sob as cinzas das almas grisalhas

Novamente o sol da manhã encontra a cama desfeita


Novamente não sei se sonhei
Ou se essas hienas que agora mostram os dentes têm mesmo razão

123

O que dizem essas pessoas que sussurram sem que as mãos


acompanhem os sentidos?
E esses sorrisos que desdenham o que é divino?
Que alívio exibem aos repentes dos amores que se findam
ao arder das paixões mais impossíveis
E, no entanto, eu vos afirmo:
Mais fácil um camelo passar o fundo de uma agulha
que qualquer deles saber do paraíso

Arrumo as malas e parto em direção ao norte magnético da terra


Onde aponta a ponta da bússola do meu coração
Asas metálicas, eu vou
Sei o que me espera
Rasgar as leis que nos impedem ser feliz
É dever maior que obedecê-las
Sigo as estrelas, elas não mentem
Deixo que brilhem na escuridão da alma essas três maíras

E solto um sol preso na garganta de um bem-te-vi que ama


Nesse amanhecer com Vinícius e Ary

Bem te ví!
Bem te ví!

Lá vem raiando a madrugada, acorda!, que lindo!

Bem te ví!
Bem te ví!

O véu da nuvens que esvoaçam, e passam


Parecem nos dizer que não existe beleza maior
Do que o amanhecer

Bem te ví!
Bem te ví!

E no entanto maior que a do céu, maior que a do mar


Maior que toda a natureza é a beleza que tem a mulher namorada

Bem te ví!
Bem te ví!

São tantos os seus encantos


Que para os comparar
Nem mesmo a beleza que têm as auroras do mar

Bem te ví!
Bem te ví!
E a alma de maíra em meio à passarinhada em algazarra
Responde:
Ví!... Ví!... Ví!...

Vem! Vem!
Vem............meu-me-ni-no-vadi...ô...

124

Live in New York city is like a film


Adentrar as telas de Scarlets e Pato Donalds
Ela é minha rosa púrpura do Cairo
A realidade não é o avesso do sonho
A realidade é sonho servido em gotas, segundo as bulas todas
Das nossas almas tontas
Liberty Statue - por um espirro te prendem, mas
Lêem teus direitos
Com a mão esquerda limpa-se o traseiro
Walk!, don’t walk!, o resto é de somenos, but
Cem anos de império - disse o cowboy presidente
Versus os Cem Anos de Solidão dos Souths
And bright for all
O mundo que vale
O resto vive de resto nos restos, pindamonhagabas, periferias
Ok! Kiss my ass, focking you, sheet for all
Que lá vou eu, like a rolling stone
Conversar em som original
Adeus, dublagens!
Oh! Beatiful Maíra of my soul
Conversar em som digital
Adeus, amada língua!, deixo-te a lamber tuas feridas
Ah! Lúcifer bright in the sky, and God coça a cabeça
Oh! Beatiful Maíra of my soul
Pacem in terra, guerra nas estrêlas
God save the Queen, and the Brooklin
All the rhythms
In english, please

(Eu-vou-para-Nova York... eu vou!


Eu-vou-procurar-Maíra... eu vou!
Oh! Oh! Oh! Beatiful Maíra
... of my soul!)

The sun is ashamed, guy


The sun is ashamed
Wake up, guy - please
It’s just a dreaminess - but
Come together - please...please...me

125

Ela é uma gata, áspera


Por sobre os telhados, os seus domínios
Afirmando em tudo os seus motivos, e
Embora os pêlos muito lisos, o dorso macio, e
A vontade de apalpar aquelas carnes
Tenho as mãos crispadas, e
A expressão de um cão contendo o seu focinho
Só porque é inequívoco
Que ela se encontra nos cios, e eu
Alma danada
Hei de trair a minha raça
126

É fim de outono e já me preparo para morrer


(Qualquer dia é um bom dia para se morrer)
Ser a síntese dos sonhos, a lágrima na beirada, pronta para cair
Ao colo da mulher amada
Antes fadada a ser sempre apenas mulher, carne ingrata
Por mais que floresçessem girassóis nessas grinaldas
Mas, agora
(Ah! Deixa pra lá, nem se pode comer omelete sem quebrar os ovos)

Vou em marcha apressada, terra magnética


Atravesso atmosferas, quase sem ar
Vou em marcha alegre, como para Aída foi Verdi
Sem o trenzinho do Villa, o caipira
Tonto como o grande Gomes, sem as vozes do Brasil
Vou em direção a Vésper
Sem que por isso Deus
me reserve um alighieri

Ora, direis - é pouco!


Lograr do mundo a sua bela
Aquela, que o amor da carne e a alma cármina
Driblar Afrodite e sorrir o sorriso esperto de Eros
Ora, direis - é pouco!
Mas soubessem de Marte e seus berros
Soubessem de uma Vênus nua ao leito
Soubessem de Thorn e seu martelo
E das idas e vindas desse arco
Soubessem desse amor tudo quanto sei!
E no entanto ainda nos resta esse paraíso que Dante criou:
Com peras douradas pende
E cheia de rosas bravas
A terra por sobre o lago.
E nós, qual amados cisnes
Ébrios de beijos
Mergulhamos as nossas cabeças
Na água santa e casta

127

Chove uma chuva cinza


E a janela é um retângulo pequeno para um mundo assim tão largo
Vejo estreito
Mas o estreito que eu vejo é tão mais largo
Que o tolo pensamento em que me espalho

Alargar esses quadrados, esticar os compassos


Dessa régua carpinteira em tudo quanto faço
Arquiteto que em maíra se resume a geometria
Pouco importa se me perco no que falo
Nessa gruta tudo busca o mais sagrado
Dos humanos é o maior desiderato, e Deus (que é pai)
Sempre cuida muito bem do filho amado
Mesmo que me atirem as tais pedras
Me esmaguem as pérolas com seus escuros cascos
Invistam contra mim os cornos e os galhos
Que a vida de um guerreiro mais se mede em tais verdades
Mesmo que ela disso pouco saiba, ou nada
128

Maíra in the sky with diamonds


Maíra, beatiful maíra of my soul
Oh! Maíra! Quer sejam os rouxinóis, quer sejam as cotovias
Apagaremos as fronteiras das noites com os dias
Oh! Maíra, se queres, esse céu também me serve
Sem que eu peça, me irás mostrando
O que anseio saber, por tê-lo já visto
Na luz em que confluem o ubi e o quando
Maíra, ó maíra, o outono se finda e a alma
Arde e tem pressa de adentrar o paraíso

(Joga a chave, meu amor!)


Maíra, ó maíra, beatiful maíra
I’m going, I’m going to do todas essas rimas em you, fool, moon
Juro que largarei, por tí, todas as minhas rimas em v-ão

(Só permita uma única observação:


Como são largas as asas deste avião!)
129

Saber que essas guerras dos contrários que nos repudia


São as mesmas guerras dos contrários que nos une
No eterno devir da síntese do amor e da vida
E não é assim com todos os que passam da guerra aos sacerdócios?
Ainda penso, por vêzes, que os céus me abandonaram, mas
No escuro brilha a face sem face de Deus
E os Seus lábios sem lábios me sorriem:
Ó homem de pouca fé...
Amanhã o sol também se levanta
130

It’s autumn
The naked trees escape their arms
to the infinite nothing

Almost winter
We wait for the snow as we waited our souls
And we never, never, never saw
the snow, our souls

We open the bottle to celebrate it


The endless of all
And the red wine brings a kind of fire
We are happy, and warm souls we are

Suddenly, it begins to snow


In Central Park

( É outono/ As árvores nuas escapam seus braços/ para o infinito nada/


Quase inverno/ Nós esperamos pela neve como esperamos pelas nossas
almas/ E nós nunca, nunca, nunca vimos/ a neve, nossas almas/.Nós
abrimos a garrafa para celebrar/ o sem fim de tudo/ E o rubro vinho traz
uma espécie de fogo/ Nós somos felizes, e almas quentes nós
somos./Súbito, começa a nevar/ No Central Park)

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