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DA DEMOCRACIA NO BRASIL∗
Palestra proferida na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, Belo
Horizonte, em 1998.
1
Philippe Schmitter, “The Conceptual Travels of Transitologists and Consolidologists: How Far
to the East should they Attempt to Go?”, com a colaboração de Terry Lynn Karl, manuscrito,
Universidade de Stanford, dezembro de 1993.
passaram a designar pela expressão “globalização”. Em sua volubilidade, a
“transitologia” foi capaz de pegar carona no colapso do socialismo, tratando
os países a ele expostos como também submetidos a “transições”
democráticas, assim ampliando seu foco de observação de maneira a incluir
o Leste ao lado do Sul e ganhando sobrevida. Mas que fazer com a
globalização? Virá ela impregnar de vez com sabor de coisa velha os temas
e perspectivas dos “transitólogos” de Schmitter, ou será possível exercitar
também com relação a ela a plasticidade até aqui observada? Afinal, tudo é
transição – e a globalização, a fortiori, pode ser vista como a exacerbação do
traço de mutabilidade e fluidez que a “transitologia” tende a destacar.
Por certo, não vou tentar empreender aqui a discussão teórica que isso
sugere. Creio, porém, que o tema que me foi proposto (as eleições
presidenciais e a consolidação democrática no Brasil) pode enquadrar-se
analiticamente, com proveito, por meio da referência a certa lógica da
articulação entre mudança política e econômica na época moderna à qual os
fenômenos da globalização dos dias que correm não são alheios, e à qual
talvez possam ajustar-se alguns aspectos salientes da própria derrocada do
socialismo e suas sequelas.
II
2
Barrington Moore, Jr., Social Origins of Dictatorship and Democracy, Boston, Beacon Press,
1966.
3
Charles Tilly, Big Structures, Large Processes, Huge Comparisons, Nova York, Russell Sage
Foundation, 1984, p. 140.
4
Giovanni Arrighi, O Longo Século XX, São Paulo, Editora UNESP, 1996; edição inglesa
original, The Long Twentieth Century, Verso Editions, 1994.
Até os nossos dias, porém, o estado nacional foi – e segue sendo –
parte decisiva dos desenvolvimentos que marcam a história moderna, e a
constituição da nação define o âmbito no qual simultaneamente se afirma o
estado e se têm dado predominantemente os processos econômicos do
capitalismo. Para nossos propósitos, é crucial a maneira pela qual o processo
geral se traduz politicamente no plano interno aos estados nacionais. Aqui,
cabe falar de um “problema constitucional” que teriam de enfrentar os países
que sofrem a modernização econômica e política. O aspecto decisivo
consiste nas consequências socialmente democratizantes que decorrem do
desenvolvimento do capitalismo, com a ruptura da correlação tradicional
entre o aspecto social e o aspecto diretamente político da distribuição de
poder, em que a atividade política achava-se reservada àqueles que
desfrutavam de ascendência social. O capitalismo envolve a afirmação e a
expansão das relações de mercado, e a operação do princípio do mercado,
inerentemente igualitário, tem efeito corrosivo sobre as desigualdades
próprias da estratificação estamental que estrutura a sociedade feudal
tradicional. Naturalmente, o capitalismo tem suas próprias formas de
estratificação e desigualdade, consubstanciadas na estrutura de classes. Não
obstante a característica em princípio “aberta” que esta apresenta, justamente
por decorrer da atuação dos mecanismos de mercado, o elemento de rigidez
que nela se dá é que responde pelo caráter contraditório, e ao menos
potencialmente revolucionário, classicamente associado com o capitalismo:
a promessa de igualdade contida na operação do princípio do mercado se
confronta com a frustração e as desigualdades que fatalmente decorrerão da
operação concreta de qualquer mercado.
III
Até o colapso do socialismo e a instensificação recente dos processos
ligados à globalização, a cena brasileira se ajustava, sem dúvida, a esse
quadro de instabilidade pretoriana e de carência de solução institucional e
constitucional do convívio sociopolítico cotidiano. Como costuma ocorrer na
condição pretoriana, o caráter “constitucional” dos conflitos (no sentido da
tensa coexistência de projetos alternativos ou antagônicos relativamente à
própria organização da coletividade e à acomodação conseqüente no
convívio dos grupos envolvidos) nem sempre era imediatamente
transparente: eles tendiam antes a tomar a forma do jogo populista e
“fisiológico” de rent-seeking ou busca de ganhos privados por parte da
multiplicidade de agentes que se mobilizam na arena pretoriana marcada por
instituições e regras precárias. Não obstante, é bem clara a
“constitucionalização” gradual do processo político, que se revela sobretudo
na radicalização crescente das disputas político-eleitorais no período que vai
de 1945 a 1964. Especialmente no nível da presidência da República, as
disputas eleitorais e seus desdobramentos aparecem aí cada vez mais como
episódios do enfrentamento internacional entre capitalismo e socialismo.
Quaisquer que tenham sido os erros de avaliação de parte a parte, o processo
culmina, em 1964, na percepção de iminente e séria ameaça revolucionária e
na reação que implantou no país o regime ditatorial destinado a estender-se
por mais de duas décadas.
5
Veja-se o volume organizado por Roberto Pompeu de Toledo com base em entrevistas com o
presidente Fernando Henrique Cardoso e publicado sob o título O Presidente segundo o
Sociólogo, São Paulo, Companhia das Letras, 1998. O “atraso” é aí assimilado (página 37, por
exemplo) a “conservadorismo”, mas em termos que não se superpõem à distinção entre esquerda
e direita (“perpassa todos”) e que parece desqualificar tal distinção, propondo implicitamente a
modernidade como valor comum. Mas adiante (já na página 41, por exemplo) deparamos certa
visão idealizada (e reiterada) dos partidos, percebidos como devendo agregar “valores” ou
“conceitos”, em contraste com os meros interesses – e o fato de os valores serem eventualmente
“os mesmos para todos” surge como resultando na situação claramente negativa em que os
partidos se “dissolvem”, a direita não se assume como tal e a esquerda se perde na oposição
pessoal ao presidente...
de um lado, e ao socialismo propriamente dito, de outro. Mas a proposta de
Blair supõe um espaço bem mais restrito, em que a terceira via vem
espremer-se entre o liberalismo econômico e a própria social-democracia.
Assim, se representava anteriormente não apenas uma opção legítima, mas o
meritório ponto de equilíbrio entre tendências extremadas e como tal
problemáticas, a social-democracia surge agora como problemática e
ilegítima ela própria. E, diante da força com que o ethos liberal se tem
difundido (não obstante as revisões que o quadro de recorrentes crises
financeiras já impõe), a apertada busca de uma terceira via ao estilo de Blair
já seria em si mesma o resultado de um esforço de flexibilidade, e assim
tende a ser apresentada e apreciada.
IV
VI
Em apreciação geral, os temas das transições à democracia e da
consolidação democrática se vêem atropelados por eventos que colocam os
problemas num quadro radicalmente alterado e tornam ultrapassada a forma
usual de discuti-los, cumprindo-se mais uma vez a sina da “transitologia”.
Dois aspectos, em particular, merecem destaque em conexão com as
perplexidades produzidas pelas novas condições mundiais. O primeiro é que
se confunde a questão dos fundamentos sociais do compromisso
democrático: com as novas condições que se criam, onde estará assentada a
democracia? O segundo é o fato de que se torna inequivocamente possível
falar da emergência de um “problema constitucional” no próprio plano
internacional: a escala transnacional (e virtualmente planetária) em que
passam a operar os mecanismos de mercado e a falta de correspondência
dessa escala com aquela em que atuam os estados nacionais deixa
crescentemente clara a necessidade de construção institucional no plano
internacional. E não apenas no interesse da coordenação econômica e do
objetivo de atenuar as consequências deletérias para todos do jogo
econômico-financeiro sem fronteiras: a própria preservação da democracia
internamente aos países se vê comprometida com a ruptura do pacto social
estimulada ou produzida pelo caráter hobbesiano do jogo transnacional de
mercado. No caso brasileiro, as perplexidades não são senão agravadas
quando nos damos conta de que o cenário em que passa a dar-se a afirmação
do valor da competitividade – e portanto o acirramento da competição em
que uns ganham e outros estão fadados a perder – é o nosso velho e triste
fosso social. Como esperar superar esse fosso no futuro visível, seja quem
for que vença as próximas eleições?