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A você leitor,
pela honra que me dará
em ler este livro.
Ao meu pai
Rafael Chaparro Sanches,
por tudo que me deu na vida,
inclusive o gosto pela literatura.
DUZINDA
PRIMEIRA PARTE
CAPÍTULO 1
I
Estamos na cidade de São Paulo, no bairro do Tatuapé, no ano de 1933.
A maioria da comunidade era constituída por imigrantes estrangeiros ou
descendentes.
Era uma manhã fria, mas Duzinda a achava morna.
O vento batia calmamente na velha casa construída no início do século.
Na frente o armazém, no qual seu pai fazia um comércio. Não era grande,
entretanto era o maior e mais sortido do “pedaço”. Ele tinha uma situação
financeira melhorzinha que a maioria das pessoas daquela comunidade.
Depois o corredor aberto, que se não fosse pela feiúra, poderia ser
chamado de varanda. Para ali, dava o quarto dos pais, e depois o das filhas.
A seguir uma sala sempre fechada e escura. Quase não se lembrava dela.
Só era aberta raramente. Para ser limpa ou quando alguém rico ou importante
os visitava. Fato este nada comum.
Além havia a cozinha. Esta ela conhecia bem, era onde se vivia. Por
último, o banheiro. Ela estava ali. Depois acabava a varanda e a casa, e vinha
o quintal.
Já tinha arrumado a casa, iniciado o almoço e dado comida às galinhas.
Sua mãe, que se levantara com o pai, já havia trabalhado bem mais.
Porém ela estava feliz. Penteava o cabelo e se olhava no espelho. Um
espelho pequeno e velho, do qual ela se lembrava desde pequena. Ninguém
podia quebrá-lo, pois se não “eram sete anos de azar” como dizia sua mãe.
Duzinda tinha os cabelos pretos e exageradamente lisos, a tez clara e dois
grandes olhos castanhos. O nariz e a boca eram comuns, entretanto tinha os
dentes até bonitos. Não um bonito de se notar.
Seu sorriso, nesta manhã, estava radiante. Ela estava amando. Por isso
iluminaria não só o pequeno banheiro, mas a casa, a rua, o quarteirão, o bairro,
a cidade...
– Duzinda, vou lá para a frente da venda. O café de teu pai está na mesa.
Venha servi-lo!
Ao aparecer na porta, olhou com pose para a mãe.
– Mãe, eu sou bonita?
– Bonita? Que pergunta boba!
– É, mãe, eu sou bonita? Não fala que tem mais o que fazer, responde.
Dona Maria, a portuguesa, queria se livrar daquela “conversaiada”, pois estava
com pressa, e o Manuel devia já estar impaciente.
– É, não és cega nem aleijada, mas anda depressa, que teu pai já está a vir.
Ela não gostou muito, entretanto estava tão enlevada que isso não iria
atrapalhar sua grande felicidade.
Continuou a se pentear com cuidados a mais.
Ninguém dava atenção a ela.
II
Ela se apaixonara por Ernesto. Ele tinha cabelos pretos, lisos, meio ajeitados,
olhos entre o castanho e o verde, um bigodinho, de acordo com a época, e era
muito conversador.
– Ai, que cabelos, que bigode, que olhos... Lindo! Lindo!
Assim pensava nossa donzela, multiplicando em muito seus atrativos.
Era alto mas não atlético, e seu tipo passaria despercebido pela grande
maioria de moças do bairro. Porém na cabeça dela, ele era um galã digno de
trabalhar nos filmes que eram exibidos no cinema São Luís. Imaginava
também que todas as moças dali deveriam estar apaixonadas por ele.
– Com a cabeça do jeito que eu estava, você acha que eu iria pensar em
dinheiro?
– São marido e mulher, não são ? Vão lá. A cama é de solteiro, depois você
compra uma de casal.
(Nunca foi comprada a tal cama maior).
O casal se recolheu ao antigo quartinho de solteiro. Tinha uma cama, um
guarda-roupa e um banco.
Neste dia nem houve a continuação da lua-de-mel.
III
Ela abriu seus olhos, enquanto Ernesto ainda dormia. Estava acostumada a
acordar muito cedo. Não tinha coragem de se levantar, então esperou alguém
acordar.
Ouviu resmungos, era a mãe dele que começava a fazer o café, esquentar o
leite e pôr a mesa, com pão e manteiga.
Chegou mansamente, com medo.
– Mama mia, que horror. Fazer o café todo dia de manhã, lavar louça, fazer
almoço, janta, arrumar a cozinha, a casa, varrer, lavar roupa, passar. Tudo tão
chato! Já acordo cansada, só de pensar. E nestes dias ainda o desaparecimento
de meu bambino, esse casamento e outras coisas.
– Se não sou eu nesta casa, tudo desanda, nada sai. Espera seu marido
acordar, serve meu bambino e depois toma seu café. Não esquece de tirar a
mesa, depois que os outros se servirem. Lava a louça e arruma a cozinha.
O marido saiu para o trabalho e ela começou as lides domésticas. Fazia
quase igual na casa de seu pai.
De acordo com sua cabeça fantasiosa, Ernesto não lhe beijara ao sair, por
vergonha dos familiares. Ela queria a vida dos dois igual aos filmes de
cinema. Sem nenhuma realidade.
A sogra e as cunhadas falavam muito só entre si, porém sem hostilidade.
Desastradamente ela havia entrado naquele núcleo de súbito, entretanto sentia
muita vontade de agradar a família de seu amado.
Estavam iniciando o almoço. O que sobrasse seria o jantar esquentado.
Tudo era o mais simples possível, pois havia muita preguiça e pouco dinheiro.
Verdade é que ninguém ali esteve perto de passar fome.
– Descasca isto!
– Não. Eu já piquei tudo aquilo.
– Anda, estrupício.
– Tudo io, tudo io!
No meio deste turbilhão, ela, assustada, sem jeito e sem ambiente
propício, ia fazendo o que as outras fugiam de fazer.
De tardinha, tomou um banho e colocou seu vestido rosado. Dos seus
era o melhor, e, por sorte, ela o colocou em seus pertences. Afinal era o seu
primeiro dia de casada.
Esperou o esposo, para ter seus colóquios amorosos, e continuar o
namoro, até sua lua-de-mel.
O rapaz chegou, tomou um banho demorado, cuidou do tratamento de
suas mãos, como um manicuro, como lhe era peculiar, e jantou.
– Oi, Ernesto.
– Oi, Duzinda, hoje você está com outra cara, bem melhor.
Arrumou-se todo e saiu do quartinho. Ela ficou esperando. Quando se
cansou, saiu, e infelizmente constatou que ele tinha ido para a rua.
Muito decepcionada, voltou para o quartinho e adormeceu, pois estava
exausta.
Duas ou três horas depois, ele voltou, acordou-a e fez sexo.
Em sua cabeça fantasiosa, ela então pensou que ele saiu para espairecer,
e voltou tão cheio de amor que teve de acordá-la.
IV
Ela estava acostumada a acordar cedo, antes desse pessoal da família do
marido. Levantou-se no dia seguinte e começou a preparar o café da manhã.
Queria se integrar entre eles e ser acolhida.
Após o café, sorrateiramente, todas foram arrumar a casa. Serviço mais fácil. Ela
lavou e arrumou a cozinha, ficando com o serviço maior. D. Filomena veio
com grande má vontade fazer o almoço, entretanto a maior parte ficou mesmo
com ela. As filhas imitavam a mãe na preguiça e na má vontade com o
trabalho doméstico.
– É, mama, a portuguesinha parece que tem suas vantagens.
Assim, aos poucos, o serviço da casa ia ficando quase todo com ela.
Na família eram o sogro, Seu Armando, a sogra, Dona Filomena, duas filhas
casadas, Anunciata e Imaculada, os genros respectivos, Renzo e Pepino,
operários, os dois. A primeira, gorda, morava no fundo do terreno num
cômodo e cozinha, e a segunda no segundo quarto da casa.
A outra filha casada, Concheta, a mais bonita delas, não morava nesta
casa, e sim numa casinha de sala, quarto e cozinha numa chácara enorme da
casa dos sogros. Na época era considerada muito longe, pra lá da praça Silvio
Romero, mas a casinha era boa. O marido, Vitório, também era operário.
Como tinha mão-de-obra especializada, ganhava um pouco mais. Naquela
época, ele tinha feito um curso de semanas. Os sogros e os cunhados acharam
bobagem. Ele, não. Nem seus pais. Seu pai, seu Hugo, havia trabalhado na
Itália, numa indústria de lá. Tinha alguma prática naquele ramo, que tinha
muito empenho em passar para o filho. Este, calorosamente, em receber. Dava
certo. Concheta gostava de ver o marido entusiasmado no trabalho. Quando
Seu Hugo chegou aqui, se interessou pela chácara, pois a abundância de terras
no Brasil o tinha fascinado. Quando pôde, comprou uma. Foi só um
entusiasmo, porém ficou a chácara.
A filha solteira, Josefina, era a caçula. Era muito magra, igual a sua
irmã Imaculada. Todos manifestavam muito orgulhoso dela, pois estava noiva
de Júlio, um professor descendente de portugueses, que morava na rua. O pai
dele vendia alfafa no atacado, e ganhava muito dinheiro. Todos da família
estavam encantados com o casamento.
– Além de muito instruído, Júlio é educado e fino.
A jovem caçula estava apaixonada pelo namorado, que parecia ser o
melhor partido dos genros. Todos da família o badalavam muito.
Duzinda seguia sua vida de casada. O marido saía quase todas as noites.
Sua inexperiência era tanta, que ela nem percebia o absurdo. Sua fantasia
mascarava o que não queria ver.
D. Filomena dizia:
– Não sei.
desejo de estar com eles era tão grande, que o deles não podia ser menor. Vez
por outra sonhava.
Nisso começou a imaginar uma forma de retornar a visitar a casa paterna.
Falou com Ernesto, que lhe deu todo ânimo, imaginando tirar vantagem
financeira da situação.
Parece incrível, mas até este dia, ela não tinha saído na rua. Tinha muita
vergonha de ter casado fugida. O marido nunca a convidou, pois gostava
mesmo era de sair sozinho. Seu caráter era de uma pessoa egoísta, e seu grau
de abuso era infinito. A família dele, infelizmente, não coibia.
Apesar de não estar acostumada, bolou um jeito de passar em frente à venda.
Sabia que às três horas da tarde seu pai já havia feito a sesta. Como era
comum não haver nenhum freguês, saía à porta para ver a rua. Ele era muito
metódico.
Houve um dia em que ela achou que o tempo estava tranqüilo.
Acordou, fez o serviço todo, almoçou, terminou o que era para terminar,
tomou seu banho, pôs seu vestido rosado e, pontualmente, às três horas da
tarde, saiu da casa de seus sogros. Desceu a rua em direção à avenida. Seu
coração descompassado batia fortemente.
Neste dia, também, Seu Manoel havia almoçado, feito a sesta, tomado seu
café, e saído à porta da venda para ver a rua.
Havia várias pessoas na rua. Umas indo a algum lugar, outras conversando, e
outras não fazendo nada.
O português estava com a vista para os lados, esfregando a mão no barrigão,
quando, de repente, viu a filha descendo a rua. Deve ter ficado muito nervoso.
Num gesto transloucado, entrou, abaixou as portas de aço, quando Duzinda
estava a poucos metros.
Todos olharam. Houve um espanto geral.
– Ohh! ahh!
As pernas da moça tremiam tanto que quase não conseguiam andar.
Ninguém fez nada.
Ela foi até a avenida e deu a volta no quarteirão. Entrou na rua por
detrás, se escondendo.
O pai manteve a venda fechada o resto do dia, em protesto pela
passagem dela pela frente de sua porta. Nunca, antes, ele tinha descido as
portas de seu estabelecimento num dia de semana à tarde. Naquela época, os
filmes, as novelas e os folhetins devam enfoque muito grande a atitudes desse
tipo. Era moda.
No quartinho do Vítor ela chorou muito. Muito mesmo.
Ninguém veio.
– Deixa chorar, chorar faz bem.
Quando o marido chegou, já sabia da história, que correu aos quatro ventos.
Ele não disse uma palavra, não lhe fez um afago. Somente se aprontou e saiu,
como era seu costume.
CAPÍTULO 5
I
O irmão de Iolanda chegou em casa esbaforido e cansado. Tinha vindo
de nadar no rio Tietê.
Pouco após, ela estava grávida. Os dois ficaram numa grande alegria.
Num dia claro, nasceu uma menina. Foi-lhe dado o nome de Cleide. Era muito
parecida com a mãe. Do pai, tinha os cabelos loiros e a cor dos olhos, azuis. A
combinação deu certo, e a bebê era linda.
Tudo parecia estar bem. A única coisa que perturbava era essa tosse do
Candinho. Voltou e piorava a cada dia.
CAPÍTULO 6
I
Duzinda continuou sua vida. Gostou muito do desfecho de vida da vizinha.
Pensou “serão felizes para sempre”, e suspirou.
Ela havia ficado grávida.
Imaginou que pelo menos sua mãe viria, quando soubesse. Isso não
aconteceu. Na época, a honra da mulher (a virgindade e a fidelidade) era um
motivo imperdoável, para a maioria. O pai alardeava não querer nem ouvir o
nome dela, de tão ofendido. A mãe, quando se falava no assunto, chorava,
chorava muito. Não se sabe se estava magoada com a filha, ou se tinha
remorsos por não a procurar, ou se tinha saudades e muito amor. Ninguém
nunca soube.
Mesmo grávida, era ela que fazia quase todo os afazeres da casa.
O barrigão grande, e mesmo assim era ela que, ao cair da tarde,
costurava e arrumava o enxoval do bebê. Esse, ela conseguia de roupas
usadas. As cunhadas lhe deram alguma coisa que sobrara de seus filhos. Novo
mesmo, só o pouco que ganhara das cunhadas Concheta e Josefina. Ninguém
mais lhe dera nada. Nem os sogros, que já tinham muitos netos. Nem o marido
comprou nada.
Ernesto não ficou chateado com a chegada de filho, mas longe estava de
ter ficado alegre e satisfeito.
– Eu não dou conta nem da minha vida, quanto mais a de outra pessoa.
Por fim, nasceu uma menina. Tinha um pouco da mãe e um pouco do
pai. Nasceu fraquinha, mas vingou.
– Que nome damos?
– Se quiser pôr o meu, será uma honra. Afinal, eu sou a avó paterna.
– Boa idéia. A mama é tão boa!
– O nome da mama é uma homenagem à melhor mulher do mundo.
Será Filomena.
Ninguém perguntou para Duzinda qual sua opinião, ou que nome ela pretendia
para a filha.
Ela estava tão cansada que nem sequer percebeu o acontecido. Ou não quis
perceber.
chegava, D. Filomena ficava muito alegre. Queria saber tudo da vida da filha.
Que orgulho!
Da família de Duzinda não veio ninguém. Desta vez, ela já nem
esperou.
III
No dia do casamento de Josefina, todos da casa estavam alegres e
eufóricos.
Ernesto comprou roupa nova para si. Estava todo entusiasmado.
Arrumou-se com muito cuidado.
A mãe completou:
Laurinda, porém como ela não gostava, queria que a chamassem de Laura. E
todos a chamavam de D. Laura.
Iolanda fazia todo o serviço da casa, incluindo comida (para elas e
especial para o enfermo). Cuidava da doença do marido e arrumava
impecavelmente a filha.
A tia só olhava a menina. Por insistência, dava-lhe uma refeição.
– Eu tenho de fazer comida, de qualquer jeito. Que custa dar um prato
pra ela, este mimo?
Mesmo assim, a nossa jovem operária explicava à filha que devia dar o
mínimo de trabalho e não reclamar de nada. O que não gostasse, era para
contar somente à mãe. Cleide, apesar da pouca idade, entendia tudo. Parecia
incrível.
O melhor é que ela estava sempre de bom humor. O cansaço era enorme, e
lazer parecia não existir, mas ela procurava até cantar e rir.
– Quem canta seus males espanta!
Numa manhã, ela escutando atentamente, a boa tia Laura lhe disse:
– Todos nesta vida engolem sapo peludo, o que se deve fazer é saber engolir o
sapo.
IV
A tia era viúva de um marido que não tinha tido bons bofes. Parecia que
já tinha esquecido.
Ela tinha uma birra com uma nora, a Zulmira. Essa estava sempre de
mau humor e mandava no marido abertamente. Humilhava até. O grande
problema é que ele era apaixonado pela esposa.
– Não admito que se fale nada da Zulmira, e quero que ela seja muito
bem tratada.
As “patadas” vinham. Laura “engolia” os desaforos a todos e as
humilhações ao filho, sem poder fazer nada.
Foi aí que entrou Iolanda. Havia uma ansiedade dela em agradar a tia.
Ficar sem seu auxílio, seria uma complicação muito difícil de resolver. Então
se pôs a agredir a outra com frases sinceras, porém apimentadas demais,
como:
Às vezes nem erro havia, era só vontade de pôr seus maus instintos para fora.
Ela não revidava. Conforme passava o tempo, falava cada vez menos.
As cunhadas eram as que menos perturbavam, com exceção de Anunciata. Ela
e o marido, Renzo, lhe soltavam todos os recalques.
Imaculada ficava cada dia mais magra. E também mais preguiçosa.
Os sogros riam muito das grosserias. Principalmente o varão. Como
eram os donos da casa, davam margem a outros abusos.
Houve até atitudes de defesa de Josefina e Concheta, porém muito
leves. Vitório estava sempre muito preocupado só com sua vida.
No começo não falavam nada de maldade na frente de Ernesto. Este,
com sua omissão, contribuiu ainda mais para os exageros.
No quarto, a sós com ela, nas primeiras vezes, apesar do risinho irônico,
ainda dizia:
– Você não devia ficar calada. Chama o Renzo de carcamano, de
“porco”, de italiano sujo. E a Anunciata de gorda, “baleia”.
E ela meigamente:
– Eu não tenho jeito de ficar xingando os outros, de humilhar as
pessoas.
– Eu acho que você gosta disso.
Evidentemente que ela não gostava. Com a mínima sensibilidade se
veria que aquela situação era vexatória e degradante.
II
– Não quero ninguém grosseiro com ele, uma homem tão fino e
elegante.
Ao contrário, Júlio não fazia nenhum esforço para ser agradável.
Achava todos ignorantes e atrasados.
Rindo muito, gostava de se fazer engraçado:
“– Ô, Pepino, já comeu a salada de pepino?
– Ô, Renzo carcamano, banho só no sábado. Também não tem
importância, pois a Anunciata também.
– E o senhor, “Seu” Armando, armando muito?
– Dona Filomena, já consertou o filó?
III
– Você tem uma sorte! Tem sogros tão bons que deram o dinheiro pra
aliviar seus erros.
Júlio interrompeu, gritando lá de dentro :
– Manda essa gorda imbecil não mexer no que não deve ser mexido!
– Anunciata, cala esta boca! A mama pede a todos que não mexam mais
neste assunto.
Apesar de ser domingo (dia forte do footing), Ernesto chegou meia hora
antes, e sentou-se ao lado dela. Sabia que o cunhado já tinha ido embora. Não
conversou nem fez sexo.
Ninguém fez uma recriminação a ele, nem se desculparam com ela.
Duzinda não falou nada ao marido sobre a calúnia de que ele a havia
acusado. Imaginava que dessa forma evitaria problemas e chateações. O certo
é que, com sua omissão, criaria outros maiores.
Às vezes tinha vontade de fazer sexo. Eram todos os hormônios de sua
juventude, misturados com suas fantasias. Apesar destas estarem cada vez
menores, ainda habitavam sua alma.
VI
Ela achava que, se não reclamasse, não revindicasse e aceitasse tudo,
não teria problemas e contrariedades.
Triste engodo. Quanto mais uma pessoa se deixa abusar, mais abusada
será.
Um dia, Ernesto ganhou no jogo do bicho uma quantia grande.
Chegou em casa exultante. Todos ficaram radiantes.
A sogra, então, chamou o filho para a sala, e os dois começaram a fazer
planos para o dinheiro.
Remendando umas roupas dos filhos, Duzinda chegou à sala para
escutar a conversa, ficar perto das pessoas. Nem imaginava interferir no
destino do numerário, muito menos que fosse para si ou para os seus filhos. Só
queria ficar ali, mesmo sem falar.
– O que quer?
– Nada.
– Então nos dê licença. Não vê que estamos tratando de assunto sério, e
que não lhe diz respeito?
Ela saiu de cabeça baixa, muito sem graça. Como sempre, sem falar
nada.
– Que absurdo, querer se meter em coisas nossas! Ainda se fossem as
suas irmãs... Mesmo assim, não tinham que colocar sua “colher”.
– Ah, sabe de uma coisa? Ele casou comigo, nós nos amamos. Com ele, eu
soube como é sexo com respeito. Tivemos uma filha, e muitos momentos de
felicidade. Que importa isto ou aquilo?
Foi ao espelho e fez sua pinta, no capricho.
CAPÍTULO 10
I
Duzinda deixava-se abusar cada vez mais.
Infelizmente sua cunhada Imaculada ficou tuberculosa. Na época a
doença era fatal e apavorante. O pior é que era contagiosa.
Mesmo com os conhecimentos atuais e os avanços tecnológicos, ainda
hoje há preconceito e resistência em se cuidar de doença transmissível. Na
época era uma calamidade. A grande maioria das pessoas fugia dos
tuberculosos, acintosamente. Quando o doente ficava em estágio avançado,
era internado em um sanatório, permanecendo em isolamento.
Não foi difícil imaginar quem foi designada pela sogra para o
tratamento da infectada.
– Bambina, o médico nos deu uma notícia trágica e triste. Minha filha
Imaculada esta tuberculosa. Que tristeza!
Chorava, esbravejava e gesticulava.
– Eu fiquei muito triste, D. Filomena, quando soube.
– Imagino. A Imaculada gosta tanto de você! Sabe quem ela escolheu
pra cuidar dela?
– Nem imagino, D. Filomena.
– A cunhada querida, a Duzinda.
Na verdade, Imaculada, se pudesse escolher, ia preferir ela mesmo. As
outras eram preguiçosas e não tinham boa vontade.
– Preciso falar com Ernesto.
– Não precisa, eu já falei.
– Ele concordou ?
– Concordou. Ele sabe que você é muito boa, adora trabalhar, e não ia
se importar. Além do mais, você é que a poverella escolheu.
– Ele falou que eu sou muito boa?
Ela enganava-se com uma frase que todos sabiam que o marido não
havia dito. Isto porque ela não queria tomar nenhuma atitude e ia se
acomodando, se anulando.
– “Arnesto” ama muito você. Aliás, aqui todos nós gostamos. No
começo, não vou mentir, eu imaginava uma esposa melhor pro meu bambino.
Mas aos poucos, passei a querer bem a você.
Absurdamente, ela agradeceu.
Assim ela começou a cuidar da doença da cunhada. Deveria ter exigido não
fazer mais o serviço da casa. Entretanto isso não aconteceu. Como se não
bastasse, nem em relação a seus filhos, ninguém colaborava para cuidar.
O marido se omitiu totalmente. Estava bom para todos. Ela não reclamava de
nada. Achou que nada mais deveria ser feito.
Trabalhava mais que de sol a sol. Só ficava sem fazer nada quando ia dormir.
Antes de deitar, tinha que tomar banho, pois seu par, quando a procurava para
fazer sexo, queria bom cheiro. Caso contrário, ela, acordada no meio do sono,
levantava e tinha de ir se lavar, pois ele queria assim.
Suas fantasias diminuíam a cada dia que se passava.
Era comum sua comida ficar para segundo plano. Muitas vezes, as
complicações da doente ou o exagero de tarefas a deixavam até sem
alimentação.
II
Seus pais continuavam impassíveis.
Seu Manoel ainda defendia a tese de que a filha havia desonrado a
moral dele. Como se isso fosse possível. Não queria nem ouvir falar em seu
nome.
Ainda para agravar, acontecia que as pessoas que queriam machucá-lo,
perguntavam-lhe por ela, pois sabiam que iriam fundo na sua ferida. Muitas
vezes usavam isso até para mudar um assunto de cobrança, e assim o
comerciante intransigente ficava com um ponto a menos. O fato não seria bem
assim, mas sua mente retrógrada tornava.
Era egoísta. Só se importava com dinheiro e poupança para o futuro
dele. Desta forma, ele odiava cada vez mais a pobre e infeliz filha. Nunca se
preocupou com seu destino. Muito menos com sua felicidade. Ou infelicidade.
Numa tarde, em que a venda estava vazia, D. Laura, depois de comprar
e pagar algo, contou-lhe todos os infortúnios e sofrimentos de Duzinda. Ele já
devia saber, porém ninguém havia tomado uma atitude tão direta. Esperava-se
então que ele tivesse uma decisão. Apesar dela ser uma pessoa modesta, pelo
seu conceito na comunidade, ele respondeu:
– Agradeço a senhora pelos bons propósitos. Aquela criatura escolheu
sujar nossa honra. Para a minha pessoa, ela e sua descendência não existem.
– Seu Manoel, se ela errou, já pagou tão caro! Caro demais. Dá a mão
para ela. Perdoa!
docilidade e carinho, como sempre havia sido seu jeito, e caminhou até o fim
da rua.
Escutou quando chamavam seu nome, mas não quis atender.
Andou pelos matos, perto da linha do trem, brincando com os filhos,
como se fosse uma criança também. Ali, arrependeu-se de nunca ter feito isso
antes.
Quando anoiteceu, voltou.
Imaculada havia falecido. Ela não chorou nem ficou triste. Também não
ficou alegre por não ter mais que cuidar da cunhada.
Por que Duzinda e Iolanda cuidaram de pessoas tuberculosas, com alto
índice de contágio, e uma contraiu a doença e a outra não?
Seria herança genética? Vontade de viver? Alimentação correta? Força
de luta? ou o quê?
V
Como já era previsto, ninguém cuidou da nova infectada.
Ela mesma é que era sua enfermeira. Se é que assim se podia definir.
Com morbidez se diria, que a única vantagem seria que já tinha prática. Porém
isso não lhe adiantava quase nada.
A comida já não fazia.
– Não quero uma tuberculosa cozinhando para nós, vai nos contagiar.
O serviço da casa, a cada dia que passava, ela fazia menos, pois suas
forças iam sumindo. A doença aumentava vertiginosamente.
Os filhos, ainda era ela que cuidava. O marido continuava sua vida de antes,
sem se importar nem com ela, nem com as crianças. Como queria continuar
psicologicamente solteiro, seus descendentes não lhe diziam nada, não faziam-
no sentir nada. Também ninguém lhe fazia nenhuma cobrança de sua
paternidade.
Ele ficou sozinho no seu quartinho.
netos, que não eram tão retraídos como os dela. Ela sempre os colocou perto
de si, fazendo o possível para que eles não incomodassem nada, nem ninguém.
Para não darem trabalho e não ter quem reclamasse deles.
Depois da morte de Anunciata, seu marido, Pepino, havia voltado para a casa
dos pais dele, então a nossa doente e os filhos foram para esse quarto. Era o
medo do contágio e o desejo de isolamento.
D. Filomena blasfemava muito.
O que acontecera de trágico para elas, é que as mulheres da casa tiveram que
voltar a fazer as lides domésticas.
Apesar da matriarca reclamar, gritar, gesticular aos céus, não havia como
mudar a situação ou voltar ao que estava.
Não demorou muito, como era previsível, e Duzinda piorou verticalmente.
Não houve dúvida, internaram a infeliz num sanatório em Campos de
Jordão. Gratuito. Lá ela ficou isolada.
CAPÍTULO 11
I
Depois de viúva, Iolanda foi refazendo sua vida aos poucos.
Continuava a trabalhar fora.
No começo, ficar sem fazer quase nada no domingo, já era ótimo.
Porém ela era muito ativa e tinha uma energia muito grande.
Passou, então, a começar a se divertir um pouco.
Ia passear com sua menina e levava sempre alguma amiga ou parente.
Nova, velha ou criança, todos gostavam de acompanhá-la.
Ela chegou a ir ao Jardim da Luz, entretanto ela achava lá muito chique,
pois iam pessoas dos bairros cujos moradores eram ricos e elegantes. Por este
motivo, ia esporadicamente.
Um domingo, levantou bem cedo para ir ver o mar em Santos.
Foi de trem descendo a serra. Ela, a filha, uma vizinha solteirona e um
primo, moleque de onze anos.
Chegando lá, foram direto para a praia. Haviam levado maiô, trajes de
banho, embaixo da roupa.
Inicialmente se deliciaram vendo aquela deslumbrante paisagem.
Depois deixaram as roupas e seus pertences num canto da praia.
Corriam sem preocupações.
O melhor mesmo foi quando entraram no mar. Pulavam onda e
brincavam, divertindo-se muito. Muito mesmo.
A água já tinha sido toda consumida, mas ela arrumou mais com pessoas que
estavam na praia.
Sem tomar banho de água doce, puseram suas roupas e voltaram para São
Paulo.
No trem de volta, todos riam como crianças. Alegres e felizes.
Chegando em casa, tomaram banho, e foram dormir. Cansados e
maravilhados.
No dia seguinte continuava sua rotina: trabalhando na tecelagem de dia, e,
quando voltava, em casa, nas lides domésticas. Sempre com a pinta no rosto.
II
Iolanda gostava também de ir a festas por ali, na casa de parentes ou vizinhos.
Sempre com a filha. Eram eventos simples com doces e salgados feitos pela
dona da casa, que eram colocados numa mesa com a melhor toalha.
Quando era simples aniversário de criança, tinha só groselha e leite com
chocolate. Quando era festa maior, tinha refrigerante guaraná, cerveja e vinho.
Além disso, em casamento tinha sempre pernil assado fatiado e chope.
Todos se divertiam, alegres e felizes.
Também ela adorava ir à quermesse. Ia no bairro da Penha, do Brás, da
Moóca, ali pelas redondezas.
Entretanto, a de que ela mais gostava era a da Igreja Cristo Rei, no final
de outubro. Como agora o Tatuapé já tinha sua paróquia, fundada havia
poucos anos, ela achava melhor esta, perto de casa. Ali ela conhecia todas as
pessoas, era bem mais divertido. Além de se sentir mais à vontade.
Outro lugar que também lhe parecia agradável, era ir ao Clube do
“Corinthians”, lá no fim da rua São Jorge. Lá, ela passeava, e via o rio.
Também conversava muito, pois quase todos ali se conheciam, pelo menos de
vista.
III
Tudo estava calmo e sossegado em sua vida, quando Iolanda conheceu Gildo.
Alto, forte, cabelo preto, tez não clara e olhos azuis. Descendente de italianos.
Trabalhava no Mercado Central e morava no Brás.
– Não resisto àqueles olhos azuis.
– Ele não é mais novo que você?
– É. Este é o ponto que está me deixando apreensiva.
Eles haviam se conhecido numa das tardes em que ela foi na Igreja da Penha,
e aproveitou para passear pelo bairro. Começou um interesse recíproco (na
época chamavam flerte), ele se aproximou, e começaram a conversar.
No início, ela não queria nenhum namoro, porém ele se pôs a freqüentar a
saída de seu trabalho, voltando no bonde com ela. Conversando e
conversando.
Aconteceu que um dia, ou, melhor, uma noite, os dois acabaram dormindo
juntos num hotel de rodízio de casais.
– Assim não pode ficar. Eu sou uma mulher de moral, tenho uma filha para
dar exemplo, vamos é ter que casar.
Gildo concordou facilmente, apesar de ser solteiro.
Como já tinha tido experiência anterior, ela não quis largar o emprego.
– Minha filha já está uma menininha, e eu percebi que consigo muito bem
conciliar as tarefas do lar com o trabalho na tecelagem.
Assim resolveu e se casou. Sem muitos rodeios. Ele veio morar em sua casa.
Com ela e com a filha.
A boa tia Laura continuava a cuidar da filha.
Por sorte, ela não largou o emprego, pois aos poucos foi percebendo que
o seu galã não era um modelo de trabalhador. Ficava a desejar. Ia para a banca
do Mercado quando “lhe dava na telha”.
Quando namoravam, ela não o via pela manhã, assim não pôde fazer uma
avaliação correta. Se soubesse, não se sabe qual teria sido sua reação. Ou teve
ela condições de saber?
O certo é que, apesar disso a incomodar muito, ela continuou a fazer a
pinta no rosto.
CAPÍTULO 12
I
Duzinda foi internada no Sanatório. Lá era tudo muito triste. Os doentes
isolados, sem esperança de cura, fatalmente entravam em depressão. Com
isso, tudo piorava muito. A doença tomava conta devastadoramente.
Quando ela foi, pediu só para levarem seus filhos, para ela vê-los.
A boa tia Laura foi comunicar o acontecido para a família dela e avisar o dia
da visita.
Duas semanas depois, o marido e sua família resolveram ir visitá-la. Foram
todos, inclusive o viúvo Pepino. Gratidão, remorso, curiosidade ou morbidez?
Levaram os meninos dela. Infelizmente muito mal cuidados.
Seu pai e sua mãe também foram.
Sua irmãzinha, não.
D. Laura arrumou um jeito de todos se encontrarem na estação de trem. Só
havia aquela viagem pela manhã, no domingo.
As famílias foram sem se comunicar. Nem mesmo com as crianças.
II
Os doentes recebiam suas visitas num parque, que tinha até bancos.
Dentro do quadro, era até um lugar bonito.
Chegando lá, seus filhos não puderam passar de um salão.
O marido acrescentou :
– É, Duzinda, pode pegar com o José o que quiser, que eu também pago.
– Agora é que vocês lembraram de me fazer um agrado. Agora que eu estou
morrendo. Por que não fizeram enquanto eu era saudável e cheia de vida?
Agora não preciso mais!
Levantou-se, tossindo muito, e quase sem poder se equilibrar em cima do
corpo, foi embora.
Todos ficaram em silêncio. Mesmo sem querer admitir, todos lamentavam as
ações destrutivas ou omissas que haviam praticado.
Nenhum daqueles presentes nunca mais esqueceu a cena. E, ao lembrar, se
arrepiavam.
Ela morreu pouco tempo depois. Ninguém se lembrou de colocar na morta o
vestido rosado.
E todas as pessoas daquela comunidade, que conviveram com ela, ou ficaram
sabendo dos acontecimentos, contaram a sua triste história durante décadas.
FINAL DA PRIMEIRA PARTE
SEGUNDA PARTE
CAPÍTULO 13
I
Iolanda continuou a levar sua vida, trabalhando fora.
Logo ficou grávida, e imaginou que o casamento teria de ficar consolidado.
Nasceu então Sônia. Esta herdou do pai as feições bem delineadas, e da mãe a
cor mais clara. Os olhos eram verdes e o cabelo castanho escuro. Havia um
contraste. Também era bonita.
Cleide se tornava uma meninota. A filha mais velha era miúda e a mais nova
era mais grandona. Ambas, belas.
– São lindas!
– Lindas, não sei se são. Eu as considero, mas os outros podem não
concordar.
– Todos acham, sim.
– Pra mim isto não é importante. Eu vou lhe falar uma coisa: a beleza
demais atrapalha mais do que ajuda. A não ser para artista de cinema.
– Nossa, Iolanda, que maneira de falar...
– É verdade. Tem inveja por todo o lado. Além do mais, o “lindo” ou a
“linda” se acostumam a serem reverenciado pelo sexo oposto, sem conquista.
Principalmente na adolescência e na juventude. Aí se esquecem de que na vida
terão de lutar muito para vencerem. Eles não se preparam para isso.
Tia Laura, que vinha entrando e escutou a conversa, disse:
– Nisso você tem razão. Temos que estar sempre lutando. Eu concordo
com você. Além do mais, a beleza demais dá um orgulho e uma empáfia. A
pessoa fica insuportável de se aturar.
– E a inveja, então ? Acaba com uma pessoa.
– Bom mesmo é que nem eu sou. Não sou linda, mas também não sou
feia. Dou um bom “caldo”! E ainda tenho a pinta.
Todos riram muito, e o grupo se dispersou.
Apesar de não haver motivo, ela se lembrou de Candinho. Ele ficou
doente, entretanto era muito trabalhador.
O segundo marido, apesar de bem saudável, já não era.
Ela até tentou argumentar, conversar. Não adiantou. Fez forrobodó, xingou e
esbravejou. Também não adiantou.
A boa tia Laura andou conversando com ele. Também não deu em nada.
A única coisa em que ele era bom, era em sexo. Conseguia levá-la aonde
dantes ela não havia cogitado. E ela, com ele, se soltava totalmente. Agora era
mais experiente, e não tinha as culpas e os temores de moça.
Por isso e mais aquilo – ou não se sabe o porquê – ela foi se conformando com
a preguiça dele.
Mesmo sendo raros os casos, na época a mulher podia trabalhar para seu
sustento, e seu companheiro ficar folgado. Ninguém achava esta situação nada
digna. Entretanto, todos achavam normal o homem não ajudá-la nos afazeres
domésticos.
Lá por vez e outra, quando se chateava com alguma coisa, Iolanda fazia um
escândalo.
II
Os filhos de Duzinda foram para um orfanato.
Todos – o pai, os avós paternos e maternos, e os parentes – se omitiram.
Desviavam o assunto e ninguém deu explicação nenhuma.
Quando alguém, por algum interesse próprio, queria azucrinar algum
deles, puxava o assunto. E, com cara-de-pau, mudavam o rumo da conversa.
Todos haviam se acostumado a não ter que dar nada a ela. Seus filhos
foram a continuação.
– O orfanato é bom. É uma maravilha.
Evidentemente que isto não era certo. Havia falta de amor e de família.
Nas datas importantes, o pai ia visitá-los. No começo. Depois começou a
rarear. Entretanto nunca deixou de ir definitivamente.
Vez por outra, ia algum parente. Raramente, bem raramente.
III
A única vantagem é que parecia que ele não usaria de violência. Queria
seduzi-la com o consentimento da própria.
A discrição inicial deu lugar a que todos percebessem o que estava para
acontecer.
Só Iolanda não podia perceber. A boa tia Laura teve dó da sobrinha.
– Já sofreu tanto, não merece sofrer mais.
Ninguém tinha coragem de contar a ela. Uns por não querer confusão para o
seu lado. Outros, como sua tia, tinham piedade dela, por tudo que ela já
passara, e pela tragédia que estava por vir.
Porém tudo ficou tão óbvio, que até a filha dele percebeu.
Um dia, o pai havia saído e a mãe chegara do trabalho. Cansada, deitara
por uns minutos na cama. Então Sônia, em sua meninice, chegou perto dela e
disse :
– Mãe, o papai está tentando namorar a Cleide.
– Como está tentando namorar?
– Quando você sai para trabalhar, ele fica o tempo inteiro atrás dela. Até no
quarto dela ele quer entrar pra namorar. Ela é que não deixa. Quando ele
consegue entrar, ela foge. Até pela janela já aconteceu. Muitas vezes ela me
pega e vai pra casa da tia Laura.
Iolanda estava atônita.
– Sabe, mãe, antes eu não ligava muito. Só não gostava por causa da minha
irmã, que ficava nervosa e se aborrecia. Também, tinha meu pai que ficava
daquele jeito.
– Agora o papai quer pegar a Cleide de qualquer jeito. Quer beijar a boca,
abrir a blusa. Como ela não quer, ele pega com força e machuca. Ela me disse
que ele ainda vai machucá-la muito e “de verdade”.
Sua vida teve outros problemas, até tragédias. Também choros e risos.
Ela sempre lutando. Entendia que a vida é resolver problemas. Quando acaba
um, surgem outros. Isso é o normal. Por isso, sempre foi uma vencedora.
Iolanda viveu décadas e décadas. Sempre com muito vigor e muita
saúde. Sempre fazendo sua pinta no rosto.
II
Vitório havia montado negócio próprio. No começo foi duro. Só não
passaram fome porque o pai dele ajudava, e Concheta era muito econômica.
Como o local da casa paterna era muito longe, na época, ele resolveu vir
para perto da Avenida Celso Garcia. Aí tinha ainda que pagar aluguel.
Roupa, lazer, nem pensar. Iam à casa da mãe dela e passeavam na
avenida. Quando tinha quermesse, iam só andar e conversar com as pessoas.
Gastar, nada. Dona Filomena e Seu Armando não se conformavam com o que
consideravam um grande erro.
Ele continuava com seu objetivo. Era muito trabalho, muita
determinação e muito entusiasmo.
No início, não dava muito. Muito arroz, ovo e banana. Entretanto aos
poucos começou a melhorar. Ele se agarrava a todo negócio e a toda
encomenda com uma dedicação enorme.
Foi melhorando, melhorando, até que ele teve de arrumar um ajudante.
Desse empregado tiveram de vir outros.
Em dez anos, já havia uma pequena indústria. Sempre com muita
economia. Não se passava mais necessidade na comida, a mulher comprava
roupas, porém ainda moravam na mesma chácara do pai. Só fizeram um
quarto a mais, para os filhos.
Os sogros dele faleceram.
Na década de 1960, já tinha casa boa. Um sobrado perto da Biblioteca
do Tatuapé. Ao lado da sua, comprou outra para seus pais. Na chácara do pai,
construiu uma fábrica grande. Já era um industrial.
Aos poucos foram se afastando dos parentes.
– Só sabem pedir dinheiro e não adianta querer ajudar.
Infelizmente isso era verdade. Se era ou não esnobismo, as diferenças
sociais e financeiras iam fazendo um abismo entre eles.
Até Júlio não foi longe. Não tinha do pai o tino para crescer em
dinheiro. Quando esse morreu, herdou seus bens. Fazia muito em não ir para
trás. Seu patrimônio já não dava para comparar com o cunhado rico, que
estava bem à frente.
Na década de 80, os filhos de Vitório não se conformavam mais em
morar ali. Estavam ricos. Queriam ir para outro bairro. Ele e a esposa, não.
– Laura, por que você acha que uma se abateu, se anulou, e a outra, a
nossa, continuou a lutar ? Eram da mesma idade, da mesma comunidade.
Mesmo nível social. Aliás o pai da falecida tinha até mais dinheiro do que eu.
– Para nenhuma delas isso foi importante.
– Concordo. Entretanto a nossa sempre fez questão de ser independente
financeiramente. Mas fala, Laura, por que a diferença de final?
– Difícil saber. Problemas psicológicos? Exemplos familiares? Pais que
incentivaram a luta de vida? Inteligência e sensibilidade para perceber ao seu
redor? Saúde hereditária que lhe dava mais forças? Religião?
– Na vida a gente vê pessoas que são felizes, mesmo com
acontecimentos desagradáveis no cotidiano. Continuam com a alegria da vida.
Outros têm muitos motivos para agradecerem a Deus, entretanto só lamentam.
Parecem que sentem um prazer neurótico de ser infeliz.
– O dia tem vinte e quatro horas. Há exceção: em épocas em que há
uma grave enfermidade ou tragédias acontecendo. Fora isso, a gente tem oito
horas para dormir. Duas horas de alegrias que acontecem, meia hora de cenas
desagradáveis, e o resto de rotina. Parece incrível, porém existem pessoas que
ficam o dia inteiro pensando no “ruim”, que fazem questão de lhe encher a
vida
– Onde você achou esta divisão de horas ?
– Vendo a vida de todo o mundo. Às vezes varia. Mas preste atenção:
sempre existem mais momentos agradáveis. É raro o dia em que isso não
acontece. Sempre existem muito mais horas boas do que ruins.
– E a rotina também pode ser boa e realizadora.
– Até prazerosa.
Os dois riram.
– Na verdade as pessoas não sabem apreciar a beleza e a felicidade em
pequenas coisas. Simples, cotidianas e sem brilho. Sem fantasia de nenhuma
história de filme ou de novela. Tem gente que procura loucamente emoções
fortes, mesmo que estas lhe façam sofrer muito.
Os dois continuaram a caminhar bem devagar, pois já estavam muito
velhos. Iam cumprimentando todos que encontravam, e riam entre si. Eram
alegres e felizes.
IV
As duas personagens principais femininas desta história viveram
realmente. Nesse mesmo lugar, mais ou menos na mesma época.
Os fatos mais importantes –
Duzinda: casamento antecedido de fuga, o pai a baixar as portas da
venda, e a cena final do sanatório, e
FIM