Um folhetim de Oswaldo Pullen I – O lugar da desgraceira
Para começar, eu nem sabia o que era deforete. Isso não é
privilégio só meu, como você há de concordar. Só fui saber quando li A Safra de Tatus do Graciliano Ramos. Mas, como vai se ver, deforete é um descanso que a gente faz na hora do trabalho. Pra saber das fofocas, tomar um cafezinho ou até mesmo para pitar um cigarrinho de palha, que é o que está mais ligado à velhicice dessa palavra. Pois veja só. Deu-se lá pelos idos do século passado, lá pelos mil e novecentos e poucos, um ocorrido em São João do Mato Dentro que ficou na história da cidade, e até do estado, que não sei bem se era a Bahia ou o Piauí. Eu explico a minha confusão. É que São João do Mato Dentro ora estava de um lado, ora do outro. É isto mesmo! São João do Mato Dentro, ou São João, para ficar menorzinho, costumava trocar de lugar. Tinha épocas em que estava no Piauí, na região entre Bom Jesus do Gurguéia e a Serra de Tabatinga. Mas havia outras nas quais a cidade, junto com as redondezas, junto com as fazendas mais próximas, com a igreja e os puteiros, escorregava para o outro lado da serra, para os lados da Bahia, e ficava ali entre Campos de Lourdes e o São Francisco. Depois, fizeram a barragem de Sobradinho, e daí o rio engordou, inchou de engolir aquele tantão de terra, de árvore, de bicho. Hoje, São João do Mato Dentro, se desse de escapulir para aqueles fundões da Bahia, coitado, viraria São João dos Afogados, e a gente não ia ouvir mais nem da cidade, nem das suas gentes. Mas como a nossa estória é antes disso, os viajantes tinham que perguntar aos vaqueiros da região o rumo que deveriam tomar: — Pra que lados anda São João? Se o cabra fosse engraçadinho, poderia até responder: — Pra esquerda e pra direita. Pra frente e pra trás... Pior, podia até dizer: — Não anda, pula. Mas era arriscado. Vai que o perguntante fosse alguém mais nervosinho, e o abestado talvez não pudesse repetir a gracinha nunca mais, né? A verdade é que não nos interessa se São João andava muito ou não, se pulava ou saltava, se arrastava dum lado para o outro, fucinhava ou chacoalhava, porque a nossa estória se deu só lá dentro mesmo, e podia ser que até a cidade tivesse andado mil vezes, porque a desdita durou mais tempo que as secas do Piauí. II – O desgraçado faz a desgraceira Aconteceu que num dia desses pacatos, fresquinhos, dia de semana, o Coronel Firmino de Souza Santos, autoridade máxima e xodó do povo de São João, acordou na hora de sempre, conferiu o sol já bem colocado, apesar de saído há pouco, e decidiu que já se fazia hora: — Noemi, vou tirar um deforete! Como sempre fazia, desceu a rua principal de São João, que também era a única que uma charrete podia atravessar de ponta a ponta, e veio tomar um cafezinho na venda do Patrício. O Patrício não era patrício coisa nenhuma. Era um galego dos bons, que veio cair de Portugal bem no meio desta terra andante e que tinha mania de saudar os fregueses com um belo “Patrício!”. Daí para o apelido pegar foi logo, e ele virou o Patrício, já patrimônio imaterial da cidade, tem tanto tempo que ninguém sabia o quanto. Aconteceu também que, no cantinho da venda, ali, bem no cantinho, um vaqueiro de nome Severino Assunção estava limpando a garrucha que recém comprara. Só de eu falar isso já dá até aflição! Completando a obra, derrubou pólvora pelo cano da arma, depois uma bucha de jornal bem socada, e, por cima, uma bola de ferro, comprada a quilo ali mesmo no Patrício. Meteu mais uma bucha e, para finalizar, colocou a espoleta, indispensável para fazer a sua joinha funcionar. Bem, como nenhum de nós é bobo, então já se sabe que Severino estava ali na hora errada — ou então fora o Coronel — e fazia a coisa mais errada do mundo para a ocasião. Conta é que lascou tudo e a pistola disparou virada bem para o costado de Firmino, que, a partir daquele instante, virou o finado Coronel Firmino de Souza Santos. Foi aquele estouro e um fumacê danado, enquanto o Coronel, ainda meio vivo, se virava tentando um gesto frustrado de sacar o seu trinta e oito e o tibum da queda, já mortinho da silva. Ficou um silêncio que durou um tempão. Severino e o Patrício não abriam a boca. Pois o portuga estava pasmo. Estava pra lá de pasmo: estava paralítico de terror. Havia se borrado só com o tamanhão do estouro, com o pinicado dos pedaços de jornal e dos grãos de carvão que estavam misturados com a pólvora e que voaram em sua cara. Porque o Coronel Firmino, no momento do tiro, estava lhe contando da amante bem ao pé do ouvido, e a garrucha que o vaqueiro tinha comprado era a maior de São João, alimentada ainda com uma carga do tamanho de seu entusiasmo juvenil. Assim, o petardo atravessou o Coronel e foi se alojar na parede, onde ficou até a polícia o retirar, e as brasinhas todas que vieram junto se espalharam, salpicando no caminho as fuças do Patrício apavorado. Quando o povo chegou, não dava para ver nada por baixo da fumaça e do cheiro de enxofre. O portuga ainda não dava um pio, no acalanto da derrama quentinha pelas pernas e do cheiro de bosta que começava a disputar espaço no ambiente. Severino, também mudo e paralítico, estava acocorado do mesmo jeitinho e ainda com a pistola na mão. A bicha parecia ter dobrado de tamanho. Sua boca parecia um trombone e o arauto de tempos infernais. Não para o Coronel, que não sabemos quantas contas tinha a contar, e que já não eram por lá, mas para o pobre do rapaz que iria ter que prestar as suas ali mesmo. Ao esmaecer da fumaça, aparece o defunto Coronel. De terno branco, como gostava, mas com uma mancha de um vermelho quase preto e um carnegão no peito, rastros do petardo que não lhe respeitara nem pedira benção para atravessar. Mais um pouco, e dá para ver o Severino. Do mesmo jeito. Todo mundo olha, ainda sem encaixar causa e efeito, sem entender o cenário óbvio à sua frente. O cristal do espanto se parte com o grito da criança: — Cheiro de bosta! Outra criança ri, como uma deixa para a gritaria que se instala. — Traz o Doutor Theóphilo! — Chama o delegado! — Mata o assassino! Existe um momento em que a multidão ou é controlada, ou age com seus impulsos típicos de euforia ou, no nosso caso, de ódio feito água de açude rebentado. Para sorte não só do Severino, mas de todos, já que a história da cidade estava sendo escrita ali, o Padre Eulálio, pequeno e velhinho, maior autoridade espiritual em São João, acabara de chegar e, com um entendimento imediato da situação, comandou: — Ninguém toca no rapaz! Quanto ao Coronel, o rombo é tão grande que não acho que seja caso para o Doutor. Mas, para desencargo ou para atestado de óbito, chamem o homem! E continuou: — Fulano, chama o delegado. E, Beltrano, me traz uma cadeira que eu estou abafado. Ajoelha todo mundo que nós vamos rezar! E, assim, o sábio padre conseguiu transformar uma situação de potencial tumulto em uma rezação tranquilizadora e demonstração da fé religiosa do povo de São João do Mato Dentro, ou mato-dentrense, ou joãosence-do-mato-dentrense, ou seja lá que diabo fosse, até porque havia, dentre os mais inovadores, quem defendesse mudar o nome para São João do Mato Dentro do Norte, pois havia uma do Mato Dentro também em Minas, mas é que o trem do nome se tornava tão grande que ninguém ficou com muito ânimo. O delegado, que curtia uma máquina de retrato daquelas antigonas, de fole e filme de rolo, que nem existem mais, chegou todo espevitado. — A cena do crime! A cena do crime! Fulano se virou para Beltrano: — Esse safardana não está nem se importando com o Coronel. Só quer mesmo é aparecer! Beltrano fez apenas um muxoxo. — É... Cabe informar que este negócio de Fulano e Beltrano não é boniteza minha não. O nome deles era esse mesmo. É que a mãe tinha acabado de parir os gêmeos e o pai, todo apressadinho, queria logo registrar: — Que nome eu boto? Que nome eu boto? — Mathias, você está doido? Eu tô aqui me acabando de dor nas minhas coisas e você está querendo saber de nome? — Mas eu estou querendo registrar logo. Os nomes, os nomes! — Sei lá! Qualquer nome, Fulano, Beltrano, Sicrano, qualquer coisa serve! Bem, se tivessem sido trigêmeos a cidade também teria um Ciclano, mas, como eram só gêmeos, só dois tiveram que aguentar a desdita. A mãe se desesperou e o pai ficou de procurar o juiz para consertar o estrago. Mas a vaca pariu, e depois deu aquele besourinho no canavial, e depois veio aquela chuvarada, e teve o batizado, e após vinte e um anos a situação ainda não tinha sido resolvida. Chega de derivação. O fato é que o delegado chegou, muito airoso em sua roupa de montaria e chique que nem só ele. Era o “Seu” Delegado Doutor Francisco, que, em tempos idos, tinha tentado uma banca de advocacia em Terezinha, e quase morrido de fome. Quis a sua sorte que lhe surgisse uma nomeação, e assim ganhou o cargo em São João. O funcionário público depois das dez virava o Chiquinho das Candongas, o que não nos interessa neste momento, mas vai interessar depois. Gastou logo dois rolos, cada um com doze chapas. Só em duas, no final, deu para ver alguma coisa, mas era o essencial. Numa estava o coronel – e que, devidamente retocada, virou até santinho. Na outra, estava o ex-sanfoneiro, ex-boiadeiro, ex-bom- de-cama, o desventurado Severino Oliveira de Assunção. A partir dali, o meliante, o facínora, o elemento, o malsinado Severino, e mais nada. As duas fotos serviram perfeitamente para que o Juiz, apoiado na decisão unânime do Júri, condenasse Severino a vinte anos de prisão. Não deu para ser menos, pois o jovem havia matado o xodozinho da cidade, o Coronel Firmino, aquele homem santo, tão santo que já havia até procissão para visitar o seu túmulo. Só não foi mais porque todo mundo sabia que aquilo tudo tinha sido a droga de um acidente e porque a chorosa mãe estava ali, junto com a carrada de filhos, tudo ainda por criar, pranteando a perda de seu único arrimo, já que o seu marido já há muito a tinha deixado. Foi condenado e preso. O Juiz mandou cumprir a pena na própria cidade, o que deixou o delegado surpreso e feliz. Na pequena e bem cuidada prisão – além de um único funcionário, que se autointitulava subdelegado, mas cuja função principal era manter o chão de cimento queimado muito bem lavado e cheirando a creolina – não havia ainda um só prisioneiro que fosse. Agora, a força policial de São João mostrava a sua necessidade, e, enfim, justificava os gastos da prefeitura com a segurança municipal. Esqueci de falar que o Coronel Firmino era o prefeito da cidade? Pois é, esqueci. O fato é que assumiu logo o José Agripino, o Gripa, como era chamado, e que começou logo a fazer reinação. O povo começou a contar estórias, as fofocas rolaram, o tempo passou, e logo todo mundo se esqueceu de Severino. III – Severino dá um passo na vida A vida na prisão passa devagar e Severino, que era homem dos horizontes largos, da corrida atrás do boi fugido, desesperava-se com a modorra e o tédio dentro daquela cela, que só era quebrado quando o Genivaldo, subdelegado autointitulado, vinha lhe trazer uma das três refeições, nem ruins nem boas, que lhe compunham o cardápio invariável. Aí a conversa rolava, e Severino estendia aqueles momentos até que Genivaldo se enfastiava e ia rolar o mundo. A delegacia ficava entregue às moscas e ao tédio do prisioneiro. A cela ficava nos fundos da Cadeia Municipal, e o Delegado Chico das Candongas ficava lá do outro lado, onde durante o dia funcionava a sua sala de trabalho. Às vezes, já pela madrugada, Severino ouvia barulhos e conversas mostrando que o recinto também era usado para fins mais nobres. — Ai, Chiquinho, ai, que eu morro! — Te aquieta, crioula! Vai que o prisioneiro ouve, olha a desmoralização! E a função continuava, com a crioula das coxas grossas nem aí. — Ai, Chiquinho, vai cavalinho, vai cavalinho! — Cala boca, nega doida! Severino torcia para que não, pois aquilo era uma alegria no silêncio da madrugada. Com o tempo, o prisioneiro foi virando íntimo. Sabe como é que é, né? A preguiça fica maior do que a noção de perigo, e Genivaldo deu de botar o Severino para trabalhar. O delegado viu e veio assuntar. — Mas, doutor Chiquinho... — Não sou Chiquinho! Ou me chama direito, ou vai perder o emprego! — Desculpa, doutor Francisco. É que não aguento ver o prisioneiro engordando enquanto me esfalfo na limpeza das instalações! Falava “instalações” com a boca cheia. Para ele, instalações quase que transformava a delegacia num quartel, o que não só a valorizava, mas o deixava também tão importante quanto. O delegado meio que torceu o nariz, mas achou que, de certa forma e já que Severino não representava perigo algum, era melhor contar com a disposição do vaqueiro, aquisição valiosa em sua força de trabalho. Aos poucos, Severino passou a fazer mais e mais coisas. Começou a cumprir funções fora e a cidade logo se acostumou com suas andanças para lá e para cá trazendo e levando coisas para o delegado e o subordinado, que se deliciava com o fato de não ser mais o último na hierarquia da “instalação”. A vida continuou. O prefeito e o delegado, aprontando. Os dois, Gripa e Chiquinho, eram homens de boa pinta, elegantes, insidiosos. Promoviam festas formidáveis na fazenda do prefeito, para onde eram levadas as mulheres mais gostosas da cidade, profissionais ou não. Dentre as últimas, várias eram casadas, o que criou uma legião de cornos insatisfeitos que passaram a se reunir e a conspirar pelos cantos da cidade. Um dia, chega um mensageiro na delegacia. — Bilhete para o doutor Francisco! Era de Hermínia, mulata casada de novo, de quem Chiquinho havia tirado os tampos e que agora andava comendo de novo, pouco se importando com o que achasse o marido. A mulata avisava que o marido ia passar o dia vaquejando, e que Chiquinho lá fosse para arreliar. — Genivaldo, toma conta que eu vou tirar um deforete. Mentira, viu logo o funcionário. Deforete a gente vai e volta, e esse marombento está é com cara de quem vai aprontar! — Faz mal não. O Severino também saiu, foi fazer não sei o quê e eu vou mais é tirar uma soneca. Sentou na cadeira do delegado e, numa pose de caubói, com os pés sobre a mesa, jogou o chapéu por cima dos olhos e se preparou para cochilar. Não deu. Logo ouviu uns estouros, e era de tiro. E o delegado não estava lá! — Sobrou! Será que vou ser eu quem vai ter que ir? E se me acertarem? Falava alto, como se tivesse audiência. O problema era sério. Ele sempre tinha tido para consigo mesmo que era o subdelegado, e não sabia o que fazer agora. — Mataram o delegado! Mataram o prefeito e o delegado! Era Severino, esbaforido, que chegava sem ar, de tanto correr. — Você vai ter que ir lá! — Eu? Eu não! Não tenho nem arma para ir lá! – Era Genivaldo encagaçado de ter que ir lá. — Agora você é o delegado! E tem aquela minha garrucha aí em algum lugar! — Está maluco? Aquela antiguidade só serve mesmo é para mostrar quando alguém quer contar a sua desgraça! Severino fez que não ouviu: — O delegado levou o trinta-e-oito? — Não sei, sei lá! Severino, sem cerimônia, abriu as gavetas da mesa e na última achou a arma e uma caixa de munição. — Está aqui, leva! — Eu não! Só se você for comigo! O prisioneiro, já gente da casa e já meio liberto, olhou bem o outro nos olhos e, meio que rindo, aceitou, enquanto pensava: “Além de metido, cagão!”. - Está bem, eu vou. Mas só se você deixar o revólver comigo. — Ficou foi doido! Mas o olhar decidido de Severino não deixou dúvidas, e o subdelegado, sentindo a súbita perda de poder, deixou-o com a arma, e se foram. Num instante tinham chegado ao local do atentado. Os defuntos estavam quase que abraçados no meio da rua. O velho padre, ainda vigoroso, já tinha chegado e comandava novamente, tal como um maestro, a plateia que lhe atendia, enquanto olhava abestada para o duplo homicídio. — Foi cilada! — Foi armação! Severino foi se aprochegando e viu que tinha sido coisa de tocaia, de tiro nas costas mesmo. Nenhum dos dois não tinha nem ameaçado reação, até porque não estavam armados. Alguém da audiência comentou: — Quem mandou fazer tanto corno assim! Severino retrucou. — Por quê? Você é um deles? A pergunta fez o engraçadinho se escafeder e gerou algumas risadas na audiência, que começava a aumentar. Como ninguém gostava mesmo dos dois, o respeito não era muito e foi a custo que o padre Eulálio conteve a esculhambação que a coisa estava virando. Severino propôs logo providências: — Prepara o velório! Arruma a Câmara Municipal! Vai ser lá! — Mas, e a cena do crime? Genivaldo já queria mostrar serviço. Quem sabe botavam ele de delegado, né? — Não adianta cena do crime se não tem nem culpado. Além do mais, tem tanto corno que ninguém vai descobrir nunca quem foi o responsável... Padre Eulálio estava escutando a conversa entre o subdelegado e o prisioneiro, enquanto cofiava o queixo com a barba de três dias. O Patrício, notando o ar pensativo do religioso, chegou pertinho: — O que é que o padre está a assuntar? — Nada não, Patrício. Só vou ter é que dar uns telefonemas para resolver o caso do futuro delegado. No caso do prefeito, assume o presidente da Assembleia, e assunto resolvido. Mas, no caso da delegacia, sei não…
IV – Genivaldo vira autoridade
Em uma semana já tinham sido os defuntos devidamente saudados e enterrados, os herdeiros iniciado a briga pelo espólio, e a cidade começava a se acalmar. O presidente da Assembleia tinha assumido como prefeito numa cerimônia chocha, mas faltava resolver o problema da delegacia. O Genivaldo era, na opinião do padre, um parvo. Mas quem nomear? Numa noite de insônia veio a solução. No dia seguinte, bem cedinho, o governador já estava sendo acordado. — Governador, é o Padre Eulálio. — Bença, Padre! Mas o que é que o está obrigando a me acordar numa hora desgraçada desta? — Governador, preciso de um indulto para o Severino! — Mas que estória é essa? — É a delegacia. Precisamos resolver logo este assunto. — O Padre embirutou? Quer fazer o Severino de delegado? Um preso cumprindo pena? — Não. O delegado vai ter de ser mesmo o mequetrefe do Genivaldo. Só que quem resolve ali é o Severino, e não dá para um preso ficar dando uma de conselheiro do delegado, né? — E daí? — Daí, Governador, o senhor anistia o preso; nomeia o Genivaldo, e bota o Severino de subdelegado! — Mas, Padre, logo o Severino! E a lembrança do Coronel Firmino, como é que fica? — Governador, ninguém se lembra mais. Vai por mim e faz isto, porque a cidade só tem lerdo das ideias mesmo! O Governador fez. E se houve algum espanto, foi mesmo da nomeação do Genivaldo como delegado. Pois, com o Severino, o povo achou até justo, já que ele trabalhava por todo mundo na delegacia. V – É o sexo, estúpido! O tempo tem a característica de envolver o passado em névoas. As coisas vão passando e tudo o que parece estranho torna-se esmaecido e perde a agudeza e importância no meio do tanto de coisa que aconteceu também. Com novo prefeito, delegado e subdelegado, com novo presidente da Assembleia, a cidade se acostumava com tempos mais fáceis, apesar do Delegado Genivaldo. Porque o novo delegado não era bom das ideias: Mandou comprar um espelho de corpo inteiro e o dependurou bem de frente a sua mesa. Comprou, com seus novos proventos, roupa e bota de montaria, rebenque de prata e cinturão com fivela prateada, na qual vivia dando brilho. Usava uma Colt 45 niquelada e com cabo de madrepérola. Em frente ao espelho ensaiava voz de prisão, declaração a donzelas apaixonadas e discursos políticos às suas imaginárias multidões. Adorava humilhar. Não se metia com Severino porque todos os problemas eram resolvidos por ele, e, se pintasse alguma confusão que fosse arriscosa para sua pele, botava o ex-prisioneiro como boi de piranha e deixava o pau quebrar. Este homem de fala mansa, mas corajoso e destemido, resolvia tudo e já era respeitado por toda a cidade. O Vigário é que se perguntava se não tinha feito as coisas ao contrário, mas, como Genivaldo tinha ao menos a sabedoria de deixar os assuntos de importância nas mãos de Severino, e este não reclamava, deixou as coisas correrem. Severino já tinha mais ou menos descoberto os autores do duplo assassinato, e teve uma conversa com eles lá no baixio, lá pros limites do município. O pau comeu. O relho queimou o costado dos culpados que, quietos, aguentaram o castigo brabo. A coisa ficou só nisso porque Severino cismou que o caso era de legítima defesa do patrimônio, e deu a conversa como encerrada. Se alguém mais soube, quieto resolveu ficar. Afinal, para que mexer com assunto desagradável desses, ainda mais envolvendo pai de família, gente pacata, que tinha por uma vez perdido as estribeiras? A coisa só não estava boa mesmo porque Genivaldo tinha aquela mania de atazanar os mais humildes, obrigando-os a tratá-lo como se fosse um grande coronel. Sendo pobre, qualquer um corria o risco de ser parado pelo delegado e atazanado por questões bestas, inexistentes. Às vezes, dava para notar que o interesse era outro, malvado, e tinha a ver com a irmã ou a filha do desinfeliz que estava sendo maltratado. Pois é. Uma vez dessas, Genivaldo viu chegando no lombo de uma mula o Ananias, pai de duas meninas lá pelos dezessete, dezoito anos, e tesouro aos olhos do pai. “Nossa! É o Ananias! Só de pensar na Marieta e na Santinha fico todo arreliado!”. Estava na porta da delegacia, enquanto Severino se ocupava com papéis, arrumando e ordenando o arquivo da delegacia, coisa contábil, coisa de prestação de contas para o Prefeito. Satisfeito de si, e se preparando para atazanar o coitado do roceiro, o delegado falou para o subordinado: — Vou tomar um deforete... — Tudo bem, delegado. Deixa que eu tomo conta do xilindró. Isso dito, Severino voltou-se novamente para os papéis e se esqueceu de Genivaldo. O delegado atravessou a rua de chão batido e, já adonado, com sua pose de senhor do destino de todos os humildes da cidade, espetou o rebenque no peito do lavrador, que tinha acabado de saltar da montaria. — Documentos! — Hem? — Pedi seus documentos! — Pra quê? — Identidade! — Mas o senhor me conhece desde menino, seu Genivaldo! — Doutor Genivaldo! — Desculpe, doutor Genivaldo... — Está desculpado. Mas se não mostrar os seus documentos, vou ser obrigado a prendê-lo. O lavrador ficou olhando para o delegado. Um homem simples, mas observador da terra e dos homens, Ananias viu crescer lá no fundo de seu bestunto uma suspeita vaga, uma nuvenzinha preta no meio daquele céu todo azul que estava sendo o seu dia. — Se o senhor me prender, não vou conseguir voltar para minha roça, não vou poder trabalhar! Genivaldo já estava vendo as coisas se encaminhando para o lado daqueles corpinhos ainda com cheiro de banho de rio e começou até a ficar sorridente. — Tem um jeito... O lavrador não falou nadinha. A nuvem começou a crescer, já querendo tomar quase que o céu todo. O delegado viu o olhar de medo de Ananias e deu o paraíso como certo. Só não sabia qual das duas. — Mande uma das meninas me servir o jantar hoje à noite. Vou avisar ao Severino que quem dá o plantão sou eu, e ninguém vai ficar sabendo de nada! Não sei o nome que você dá a esta faca, se é peixeira, facão ou, se for mais pontudo, punhal. Mas o fato é que, no Nordeste, é comum andar com uma destas facas, que tem uns cinquenta a sessenta centímetros. Ela é usada para todo o fim, de um jeito até casual. E foi deste jeito que Ananias torou o gasganete do delegado, que, se soube que estava morrendo, soube só um pouquinho, e já tombou como defunto pronto e terminado. Não teve treco nem baba. Só o baque e um tiquinho de poeira levantada. O barulho, mesmo que pouco, fez Severino olhar, e, ainda sem entender, se perguntar: — O que é que o delegado está fazendo? E o Ananias, está olhando o quê? Saiu, até devagar, e foi para perto da cena desconjuntada. O que encaixou peça com peça foi o facão ainda na mão de Ananias, casado com o jeitão largado do delegado, com a bunda meio para cima e fuçando a terra dura. Viu a sangueira, e entendeu. — Ananias, que desgraça! — Ele queria comer as minhas meninas, Delegado! O vocativo transtornou Severino — Delegado? — Ele queria se espojar nas minhas crianças! Se Genivaldo tinha morrido, pelo menos até nomearem outro delegado, ele teria que assumir suas funções. Já fazia tudo informalmente, mas o nome era pesado. — Fica calmo, Ananias. Vem comigo. Na cabeça do novo delegado a vítima era o roceiro, e não o basbaque enruçado no chão. Conhecia-o desde menino e sabia que o lavrador era homem bom e que vivia para a sua família. De certa forma já sabia que nalgum dia o louco do Genival iria responder pelo que aprontava, mas era doloroso ver o Ananias pagar por ter livrado a cidade do biltre ali estatelado. VI – A hora e a vez de Severino Assunção O julgamento aconteceu logo e foi a coisa mais triste da cidade. Ninguém sabia o que fazer com Ananias que, ao longo de sua vida, só tinha feito amigos e era querido do padre, do médico, do prefeito e também pelos lavradores mais desfavorecidos do que ele mesmo, que lhe tinham como o camarada de todas as horas. O juiz não sabia o que fazer. Não seria fácil penalizar quem tinha resolvido o maior problema da cidade! Sabiamente evitou o júri, porque iriam absolver o réu e isto daria início a uma praga de assassinatos justos e injustos, transformando a cidade numa bagunça. Durou dez minutos. E a sentença foi curta: — Dois anos de prisão, a ser cumprida aqui mesmo em São João. Tinha sido branda a pena, mas mesmo assim Ananias ficou arrasado: — Como é que vou cuidar da minha plantação, e minhas cabras, e minhas filhas? Ai,ai, meu Deus! Em seu lamento, quase que perde o restante da sentença: — O regime será de prisão semi-aberta, estando o preso livre durante o dia, mas devendo, no entanto, vir dormir na prisão. Melhor não podia ser, Ananias viu logo. Não tinha jeito. Pensando do que tinha livrado as meninas, mas também nas medidas que tinham que ser tomadas, pediu: — Seu Juiz? — Fale o réu! — O senhor me dá dois dias para arrumar minhas coisas e ver onde é que eu vou deixar as meninas? O juiz o olhou, com um misto de piedade e desconforto, e encerrou a sentença: — Assim sendo, deve o réu se apresentar em quarenta e oito horas, para o cumprimento da sentença! A saída do tribunal, que em verdade era a escola das crianças, mas que, em não havendo outro lugar, funciona nas necessidades como tal, parecia saída de missa de sétimo dia. Todos os habitantes da pequena São João abraçaram o lavrador, que seguiu para arrumar a sua vida. Para Severino, a mudança foi quase um alívio. Ser delegado não estava sendo tão diferente, a não ser pelo salário maior, pelo auxiliar que tinha arranjado e pelo final das confusões que Genivaldo sempre criava. Só lhe tinha sobrado um problema: — Lembra daqueles caras em quem Severino tinha dado uma surra pelo assassinato do delegado Chiquinho das Candongas? Pois é, dois deles não tinham ficado satisfeitos e haviam escondido os seus ressentimentos para serem aliviados em algum momento melhor. Aquilo vinha fervendo que nem leite em panela de pressão entupida, e só não dava pra ver quem não quisesse ver mesmo... Pois não é que Severino não queria? — Doutor, chegaram uns três caras esquisitos que eu nunca vi aqui na cidade! Era Beltrano, que tinha assumido como subdelegado. E continuou: — E parece que não vieram para coisa boa não. Eles estavam com aqueles dois caras que eu soube que o senhor deu um couro e receberam um dinheiro, que coisa pouca não era! Está com cara de que é coisa ruim para os lados do senhor! — Besteira, Beltrano! Toma conta do estabelecimento, que eu vou ali tomar um deforete...