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Saúde e Semiótica

Milton Barbosa de Almeida Filho


Autor

Universidade Federal da Bahia


Instituto de Saúde Coletiva
2002
CAPITULO I

1
Saúde e normatização da vida.

Produzir saberes e práticas no campo da Saúde Coletiva é se enredar na teia de significados e


operações semióticas que expressam o processo de normatização da vida e que realizam operações de
regulação e controle sociais formalmente análogas às que o organismo executa para produzir e
reproduzir sua existência em condições co-adaptativas. Tais operações produzem signos estruturados
em padrões de comportamentos (normas). Por sua vez, estes signos, representam os objetos
permanentes do ambiente e a dinâmica dos objetos ambientais – a dimensão objetiva do mundo do
organismo, ou, o conjunto das relações e constrangimentos entre o organismo e uma parte limitada da
realidade exterior à qual a produção de sua vida está estrutural e funcionalmente conectada. Além
disso, refere-se aos efeitos retroativos sobre o organismo do comportamento que ele adota e das
transformações operadas sobre os objetos do ambiente, que só existem enquanto coisas objetivas e
objetáveis porque são signos de algum tipo para o organismo e, nessa medida, adquirem a
peculiaridade de pertencerem, enquanto objeto significado, ao mundo do agente semiótico que o criou
(von Uexkull, 1938)1.
Seguindo Canguilhem, é necessário afirmar a possibilidade do conhecimento positivo sobre a
saúde pela referência que essa idéia faz a uma determinada disposição biológica em definir normas
[entendidas como padrões finalísticos de comportamentos e ações que regulam a produção e o
funcionamento da vida] vitais e modificá-las, toda vez que alterações ambientais ou orgânicas
provocadas pela atividade do indivíduo, ou por qualquer evento externo a ele, assim o exigirem.
Enquanto na doença o organismo está submetido a condições de risco que não pôde evitar ou sanar, ou
supõe comportamentos que agridem a preferência pelas normas que preservam e prolongam a vida de
forma co-adaptativa, na saúde, se exige que a vida tome posição em beneficio de si mesma, o que pode
ser constatado no conjunto de todos os esforços que são feitos pelo organismo, enquanto totalidade
sistêmica auto-organizada em comunidades de viventes, no sentido de prolongar sua auto-produção.
Essa disposição é inexorável pelo menos por dois argumentos: (a) o modo como a vida existe,
produzindo e reproduzindo a si mesmo, exige o desenvolvimento de mecanismos de auto-referência
(Maturana e Varela, 1997); (b) o processo de produção do ser que vive se faz com base nas qualidades
materiais e energéticas das suas estruturas constituintes, mas sobretudo, operando as relações

1
Uexkull chama o mundo co-criado pelo agente semiótico em interação com a realidade física na qual ele está inserido e
que o alimenta com fluxos permanentes de matéria e energia, de mundo-próprio, para designar os diferentes meio-ambientes
das espécies e o papel construtivo dos organismos na especificação dos componentes e da dinâmica ambiental através da
produção de signos.

2
funcionais que essas estruturas estabelecem entre si através de uma propriedade que emerge desse
complexo relacional/funcional, os signos que coordenam o comportamento do ser vivo (Hut, Goodwin
e Kauffman, 1997). Acoplados ao sistema de percepção/ação, os processos de regulações puramente
mecânicas, mas amplamente funcionais, se desenvolvem, dando origem aos mecanismos cognitivos de
regulação da conduta do ser vivo, que se expressam em fenômenos de crescente complexidade na
escala evolutiva das espécies e na ontogenia dos indivíduos, indo, das operações sensório-motoras que
todas as formas de vida realizam, até as “abstrações empíricas” e “reflexionantes”2 (operações formais)
mais complexas típicas do ser humano (Piaget, 1973; 1995).
Como a vida existe porque é um processo de produção que cuida de produzir a si mesmo, a
saúde da vida pode ser tratada como a perspectiva geral da qual se olha e com a qual se compreende e
regula os processos complexos que envolvem a produção de processos de saúde-doença-cuidados (sdc),
e, derivadamente, como “objeto” que adquire sentido por referência à doença e ao sistema de cuidados
socialmente desenvolvido para curar e preveni-las e promover saúde (Almeida Filho, 2000; Samaja,
2000). A produção da saúde é uma operação circular de cuidados com a vida que se situa no âmago dos
processos vitais bio-sociais. Em função de sua natureza recursiva só se pode falar da saúde do seu
próprio ponto de vista.
Adota-se, preliminarmente, uma definição bastante simples e intuitiva de saúde: saúde é viver
mais e melhor. A partir daí se procura desenhar um ponto de vista da saúde sobre os processos sdc
através de dois exemplos: a saúde nos EUA e o ressurgimento das epidemias infecto-contagiosas em
escala mundial. Os exemplos permitirão estabelecer as pontes entre os diferentes níveis da
sociabilidade humana e a produção da vida, através do suposto de que as relações sociais intermediam
a produção de conhecimento e as práticas sobre a saúde humana e ambiental. Isso nos permitirá
sustentar que se conceba a saúde nos marcos do processo social de reprodução da vida (Samaja, 2000),
desde que se possa explicitar (a) algum conceito de vida, proposto pela biologia cientifica
contemporânea, que lhe dê sustentação e (b) as propriedades e os mecanismos que integram, numa
mesma hierarquia funcional, todas as dimensões da vida de organismos sociais – do biológico ao
político – que estão regulando a produção da saúde-doença.
1.1. Aspectos sociais da produção dos processos saúde-doença-cuidados.
O ano de 2000 deveria ter sido um marco na história da humanidade: com o processo de
globalização caminhando sem entraves, todos os seres humanos, sem distinção de raça, classe social,
2
Segundo Piaget, as abstrações empíricas dependem de uma informação do objeto percebida pelo sujeito (peso, textura ou
cor, por exemplo) ou das “ações do sujeito em suas características materiais, tais como movimentos e impulsos, etc.”
(Piaget, 1995: 286-291). Já as abstrações reflexionantes são principalmente endógenas, pois resultam das coordenações das
ações; são conhecimentos produzidos a partir de conhecimentos anteriores sem a mediação direta dos objetos e suas
propriedades. Ambas, por serem operações formais, são operações semióticas (Piaget, idem).

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gênero, opção política ou credo religioso teriam o direito à saúde. Com os esforços agregados por
governos nacionais e organismos internacionais no sentido de erradicar ou controlar os fatores causais
das doenças e promover as virtudes pessoais e coletivas indutoras da saúde, viver mais e com melhor
qualidade física, social e mental, seria uma conquista permanente da civilização democrática e
científica.
A entrada dos problemas de saúde na agenda dos mais poderosos tomadores de decisão do
planeta foi triunfante. Mas não era propriamente o triunfo da saúde que se comemorava no início da
década de 90. Acreditou-se, desde então, que o fim do socialismo soviético liberaria definitivamente as
forças da democracia e da racionalidade científica para enfrentarem com sucesso os grandes desafios da
humanidade. O ufanismo era plenamente justificado.
As formas, muitas vezes bem sucedidas, com as quais a burguesia desenvolveu a liberdade de
propriedade privada e as liberdades individuais a credenciaram para o posto de classe economicamente
mais poderosa e politicamente dominante. Legitimada no curso do processo histórico pela escolha das
forças seletivas mais genuinamente humanas – a liberdade individual e a racionalidade científica –, a
utopia burguesa do mercado auto-regulado e regulador de todas as relações sociais, prenhe de
vitalidade, demonstrou a superioridade do capitalismo liberal e do conservadorismo político, não só em
relação aos socialismos de todo tipo, mas, também, frente às ilusões da social democracia de que um
Estado regulador do mercado seria fundamental para a estabilidade e reprodução do sistema social
como um todo. O motivo para a euforia conservadora residia na demonstração definitiva de que os
valores que sustentaram o modo de vida capitalista afirmaram-se de uma vez para sempre, marcando o
fim da história. A liberdade de propriedade e de apropriação privada da natureza e dos bens materiais e
imateriais socialmente criados, de um lado, e a racionalidade científica que consolidou e desenvolveu,
pelos caminhos do reducionismo ontológico, uma maneira de ver o mundo e de produzir bens e
serviços tecnologicamente avançados, do outro lado, cunharam uma moeda universalmente válida, um
termo mediador comum a todos os assuntos, um argumento incontestável: a democracia burguesa é a
única que se sustenta racionalmente e, por isso, a única que de fato pode resolver os problemas sociais
de uma forma genuinamente humana, ou seja, respeitando as características essenciais da biologia e da
evolução cultural humana.
O combate que os fundadores do neoliberalismo fizeram, nas décadas de 20 e 30 do século
passado, aos regimes chamados de comunistas, se concentrava em dois argumentos, cujos
desenvolvimentos posteriores levaram ao que hoje se chama de neoliberalismo: ao eliminar a liberdade
de propriedade e assumir deliberadamente o controle sobre a formação dos preços das mercadorias
(Argumento1), o planejamento econômico centralizado tornava-se irracional, isto é, anticientífico e
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antidemocrático (Argumento2). Os críticos do socialismo alegavam na época que a única forma de se
realizar os cálculos econômicos necessários ao planejamento global ou setorial era tomar como unidade
de medida uma entidade discreta do mundo real que expressa as necessidades e as escolhas racionais
dos agentes econômicos, os preços de bens e serviços (Hoff, 1981). Só no mercado capitalista, povoado
por uma multiplicidade de preços concorrentes, e insubmisso a qualquer tipo de intervenção que não
seja a das escolhas racionais dos indivíduos, o conflito e a cooperação gerados pela disparidade dos
interesses em torno do controle da produção, distribuição e consumo dos bens necessário à existência
humana, produzem um estado de bem-estar que satisfaz a todos. Por essa razão, o sistema social tende
a estados globais cada vez mais equilibrados. Livre dos controles sobre a liberdade de propriedade dos
meios de produção e sobre os valores de troca dos bens e serviços, o capitalismo consagra sua vitória
sobre o comunismo como uma demonstração da superioridade da democracia e da racionalidade
científica e técnica, confirmando a ação das características evolutivamente superiores do modo de vida
burguês: capacidades, ilimitada e ilimitável, de apropriação e dominação da natureza e, habilidades,
teoricamente ilimitadas, de escolher racionalmente os fins que motivam os agentes sociais e os meios
que eles podem criar e dispor para concretizar seus objetivos (Von Mises, 1987; Hayek, 1997).
Rechaçadas a utopia comunista e a ineficiência social democrata, o mundo livre pode provar
que a natural e livre competição entre os agentes racionais que participam do jogo social resulta na
produção da satisfação das necessidades físicas, mentais e sociais de todos. É por isso que o problema
da exclusão social crescente não deve ser visto como uma falha no modo de vida capitalista, mas como
a ação de um mecanismo natural e universal de seleção que perpassa todos os níveis da existência
humana. Haveria, então, um aspecto dramático da vida cujos resultados catastróficos para grande parte
da humanidade não poderiam ser atribuídos ao modo de vida dominante, mas à ação das leis mais que
naturais do modo de produção capitalista. Pensar ou agir de outra maneira seria uma tentativa de burlar
leis da seleção natural. O efeito das agressões à liberdade de propriedade e de lucro sobre a
organização, estrutura e desenvolvimento social seria a criação de obstáculos inaceitáveis ao progresso
da parte mais saudável e bem sucedida da espécie humana.
A Nova Ordem Mundial resultante deste desfecho político esforça-se para nos fazer crer que os
graves problemas sociais mundiais serão resolvidos com o desenvolvimento de tecnologias específicas
e o crescimento econômico, com a disponibilização de recursos e insumos e a criação de oportunidades
cada vez mais amplas de acesso a eles. Por exemplo, os problemas de saúde mundiais podem ser
debelados graças aos enormes e vertiginosos avanços na engenharia genética e nas técnicas de
diagnóstico e, ao aumento de rendimentos que todas as classes e grupos sociais obterão com o
desenvolvimento econômico que agora ocorrerá com a retirada completa do Estado da gestão e dos
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negócios privados, e com a desregulamentação da economia; o mercado, plenamente livre, exercerá
mais amplamente suas funções reguladoras sobre todas as dimensões da vida social, inclusive, saúde e
educação. Mas, como veremos a seguir, o planejamento e as ações em saúde ainda são feitos sob a
hegemonia de concepções autoritárias e individualistas sobre a participação democrática das
populações, e dominados por estratégias reducionistas que, ao recusarem a complexidade do objeto
com o qual lidam, nem de longe podem produzir conhecimento e ações positivas duradouras. No
núcleo do pensamento neoliberal dominante reside uma impossibilidade de resolução dos graves
problemas mundiais, sobretudo da saúde, que, longe de ser uma questão facilmente enquadrada no
universo restrito dos problemas sociais, como querem muitos, diz respeito a uma tomada de posição
diante da preservação e desenvolvimento da vida em geral e da qualidade da vida humana em particular
(Paim e Almeida Filho, 2000).
As especulações fantasiosas sobre saúde para todos no ano 2000 foram sendo ultrapassadas pela
constatação de que as metas estabelecidas nos fóruns internacionais não eram cumpridas (UNICEF,
2002; PNUD, 2001). Apesar dos esforços abnegados, e muitas vezes heróicos, de centenas de milhares
de pessoas que na última década se dedicaram a melhorar as condições de vida da espécie humana,
vivemos uma situação dramática. Uma parte crescente da população mundial torna-se estruturalmente
desempregada. O ultraliberalismo econômico e a globalização vigente aumentaram as desigualdades
entre os povos, e dentro de cada nação, entre os diferentes grupos sociais (PNUD, 2001). Além disso, a
concentração de riquezas materiais e imateriais nas mãos de minorias já poderosas e a ampliação do
fosso existente entre eles e os mais pobres, estimulam desigualdades inaceitáveis e tensões sociais
aterrorizantes. Neste contexto, o uso da violência como meio preferido para solucionar os conflitos é
propagandeado e exercitado em profusão, não só pelos marginais – miseráveis ou poderosos – mas
também pelo Estado, através de meios privados e públicos de produção de significados de violência
socialmente valorizados, eticamente admissíveis e circunstancialmente toleráveis. E finalmente, a
amplitude da agressão ao meio ambiente promove a redução da biodiversidade (Wilson, 1997), ameaça
as reservas de água doce, eleva os índices de poluição atmosférica, produz efeitos climáticos
ameaçadores inclusive para a existência humana e altera o comportamento e a distribuição dos micro-
organismos patogênicos e não-patogênicos nas populações (Possas, 2001).
As evidências de que tais acontecimentos produzem efeitos diretos sobre a saúde das pessoas e
das comunidades já foram amplamente demonstradas na literatura. Desemprego prolongado ou
permanente, violência sistemática e cotidiana, acumulação de riquezas materiais e imateriais – e com
elas, das oportunidades de realização pessoal e social –, e a degradação ambiental em nível planetário,
são fenômenos que desafiam ou impedem que se avance em direção à utopia da saúde para todos. A
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questão se torna mais complexa quando entra em foco a ação dos países economicamente mais
poderosos: “A ´nova ordem mundial´ que se instaura na década de 80, inspirada no neoliberalismo,
acarreta uma marcante fragilização dos esforços para o enfrentamento coletivo dos problemas de
saúde” (Paim e Almeida Filho, 2000, p. 13). Um exemplo bastante interessante do que está se falando é
o caso dos EUA.

1.1.1 Saúde nos EUA, um caso exemplar.


Os EUA experimentaram na última década um dos períodos de maior expansão econômica e
tecnológica de sua história. Seria de se esperar, então, que a população norte-americana, em geral,
tivesse melhorado suas condições de vida. Mas isso não aconteceu.
Os Estados Unidos são o único país industrializado no mundo que não estabeleceu uma
cobertura universal de cuidados com a saúde. Ao contrário, estima-se que 42,6 milhões de pessoas não
têm nenhum seguro médico, e entre elas 10 milhões de crianças (U.S. Census Bureau, 1999). A perda
de cobertura de saúde e os atrasos de cuidados e atendimentos resultaram em milhares de mortes
(Himmelstein & Woolhandler, 1994). Há evidências de que os EUA têm enorme dificuldade de
distribuir a riqueza acumulada nos últimos anos de neoliberalismo. Por exemplo, 14% dos americanos
vivem com menos de 11 dólares por dia, o que é menos de 1/8 da renda média do país. Os EUA
ocupam o último lugar no ranking de pobreza humana entre os 17 países mais ricos do mundo: 15,8%
dos norte-americanos sofrem privações graves no que se refere à longevidade e ao conhecimento, 20%
da população adulta são analfabetos funcionais (PNUD, 2001).
O crescimento econômico baseado na liberdade irrestrita de propriedade não leva
inevitavelmente a uma melhor distribuição de renda. Além disso, o desenvolvimento da ciência e das
tecnologias médicas não resulta necessariamente em mais e melhores oportunidades de prevenção das
doenças e promoção da saúde, sobretudo quando o sistema de cuidados médicos é dirigido
fundamentalmente pela busca ao lucro – uma das “necessidades racionais” dos agentes sociais
envolvidos no processo de produção da saúde – e não pelas necessidades físicas, mentais e sociais do
“paciente”. O acesso aos cuidados médicos nos Estados Unidos, por exemplo, não é mais um direito, ao
contrário, é um artigo que deve ser comprado e vendido como qualquer outro: “Se você não puder
dispor de dólares, você não pode ter cuidados com a sua saúde. Pior ainda, se você estiver doente, se
você tiver uma "condição pré-existente”, podem lhe negar cobertura de seguro. Os seguradores não
querem assegurar grupos que são considerados de alto risco. Entre os grupos visados como usuários
indesejáveis estão as pessoas cronicamente doentes e anciãs” (Riffe, 1998, p. 3). Neste contexto, a
assistência social entra em decadência e perde valor social. Muitos foram demitidos à medida que
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hospitais e clínicas fechavam ou se fundiam de acordo com os interesses dos seus proprietários e
dirigentes (Globerman, 1999). A produtividade do assistente social passou a ser medida pelo número de
pacientes contatados e pela rapidez com que o paciente é liberado. (Hammer, & Kerson, 1999).
O programa governamental de assistência para idosos nos EUA [Medicare] financia cuidados
médicos para 38 milhões de pessoas (McFall e Teitelman, 1998/1999). Estatísticas recentes indicam
que 7 milhões de idosos, dos 38 inscritos no Programa, tem cuidados médicos administrados, sem
direito à prescrição de qualquer tipo de medicamento ou à dedução de pagamentos antecipados. Em 1º
de janeiro de 1999, 400.000 beneficiários em 29 Estados foram desligados do Medicare por serem
considerados clientes desinteressantes. (Brenner, 1999). Depois de muitos anos de funcionamento do
programa, sabe-se que ele é um desastre para as pessoas anciãs e com inaptidões (McFall & Teitelman,
1998/1999).
Ainda que as promessas de saúde para todos possam ser compreendidas como simples retórica
ideológica e propagandística, seria muito ingênuo não considerar que, para além das motivações
políticas, o que está em curso são crenças seculares e poderosas em relações sociais historicamente
consolidadas e num certo tipo de racionalidade científica em que a liberdade de propriedade privada da
produção social de bens e de serviços, e a apropriação indiscriminada e egoística da natureza são os
meios mais eficientes para se alcançar o bem-estar. Mas a meta de bem-estar para todos é construída
sob um modo de regular a vida que é excludente e seletivo, que usa a própria exclusão e seletividade
como operações de otimização do processo social vigente. O que propõe a lógica neoliberal em curso é
que aceitemos, que o desejado resultado de uma saúde para todos pode de fato ser alcançado desde que
inventemos formas racionalmente bem construídas, e suficientemente cínicas, para deixar pelo meio do
caminho aqueles que no processo de competição pela produção e acesso aos meios de saúde fizeram
escolhas erradas ou insuficientemente adaptadas às regras, mais que naturais, do jogo social dominante.
A saúde, enquanto tema da agenda dos tomadores de decisão em escala global, e enquanto meta
concreta e universal de desenvolvimento humano para as próximas décadas, na forma como eles
postulam, parece uma figura mítica ultrajada, alguém a quem se diz amar e de quem se desdenha.

1.1.2. Re-emergência das doenças infecto-contagiosas.


Se o exemplo da saúde nos EUA mostra a enorme dependência dos processos sdc das
hierarquias econômicas e políticas, uma breve avaliação da re-emergência das doenças infecto-
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contagiosas em escala mundial nos ajudará a identificar com mais clareza como os fatores de um
determinado nível se associam a variáveis de outros níveis como parte dos complexos processos sociais
que determinam a produção da saúde.
Nos anos setenta e oitenta era comum tratar as doenças infecciosas como uma área de pesquisa
típica do terceiro mundo. Aparentemente, a infecção estaria em vias de ser liquidada nos países mais
desenvolvidos da Europa e nos EUA. Os problemas de saúde do futuro seriam as doenças
degenerativas, os problemas da velhice e as doenças crônicas. Entretanto, o que se viu foi o retorno da
cólera, da tuberculose e da dengue, o aparecimento de doenças infecciosas assustadoras como a AIDS,
a doença do Legionário, o vírus Ebola, a síndrome da paralisia tóxica, a tuberculose resistente a
múltiplas drogas, a esterilidade, entre outras (Levins, 2000).
As doenças infecciosas declinaram extraordinariamente na Europa e na América do Norte nos
últimos 150 anos (Barrett, et all, 1998). Essa constatação fez com que os pesquisadores e tomadores de
decisão planejassem intervenções baseando-se num dos tipos mais simples de previsão, qual seja: as
coisas continuarão acontecendo do mesmo jeito que aconteceram até o momento. Tamanha pobreza
lógica se sustentou no equívoco de que a “guerra contra os micróbios” seria vencida com o
desenvolvimento científico e tecnológico tradicional e a distribuição da riqueza gerada pela plena
liberação das forças econômicas do mercado.
Com esse raciocínio, pensaram-se cenários que reproduziriam, no futuro, uma condição ótima
da situação presente. Como se sabe, grande parte do sucesso de um planejamento se deve a uma
adequada formulação da cena em que ocorrerão as intervenções. Existem, basicamente duas maneiras
de se construir cenários, ambos são necessariamente especulativos. O primeiro deles supõe que o
cenário futuro (de intervenção) é uma repetição ou extrapolação otimizada das relações que definem o
cenário presente (de planejamento). Esta suposição é uma condição apriorística da racionalidade do
plano. Como a questão das prioridades é tratada de acordo com a necessidade política e epistemológica
de operacionalizar alguma forma de cálculo de eficiência entre custos e benefícios, deve-se fazer um
quadro diagnóstico que permita a maior previsibilidade possível para as suas variáveis.
O segundo método de construção de cenários supõe que os cenários futuros serão,
necessariamente, diferentes dos cenários nos quais ocorre o planejamento. O objetivo do planejamento,
enquanto atividade racionalmente sustentada, é propor ações corretivas de danos em curso, prevendo
seu desenvolvimento ao longo do tempo, e antecipar situações prováveis, analisando o comportamento
tendencial das variáveis, admitindo erro e imprevisibilidade. Nesta perspectiva, se toma, em geral,
como principio epistemológico, a complexidade do objeto saúde (Almeida Filho, 2000) e a
multiplicidade de variáveis interconexas do problema objeto de planificação (Testa, 1995; Matus, 1992;
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Rivera, 1992). Nestes casos, as prioridades seguem de perto o jogo social da determinação das
necessidades, segundo uma dada correlação de forças entre os diversos atores sociais interessados em
decidir sobre a saúde das populações. O jogo (Matus) ou o drama (Testa) social inclui as disputas
científicas sobre quais são os problemas de saúde mais importantes numa determinada época e lugar e
quais os melhores critérios para se definir estas necessidades.
Os erros na definição das necessidades prioritárias de saúde acabaram por revelar fracassos de
planejamento e intervenção em escala mundial e indicam que modelos de promoção à saúde dependem
fortemente de uma concepção anterior sobre a própria saúde, particularmente sua definição ou não, nos
marcos de uma proposição ecologicamente situada.
“Quando nós olhamos para outras doenças, vemos que elas crescem e declinam com as
mudanças históricas e as circunstâncias. Então, ao invés de uma doutrina da transição epidemiológica,
que afirmava que as doenças simplesmente desapareceriam dos paises desenvolvidos, nós necessitamos
substituí-la por uma proposição ecológica, em que, em qualquer mudança significativa na forma de
vida das populações (tais como densidade populacional, padrões de moradia, meios de produção)
haveria também uma mudança em nossas relações com os patogênicos, suas reservas, e com os vetores
das doenças” (Levins, 2000, p. 20).
Alguns exemplos interessantes servem para ilustrar esse ponto de vista. Teixeira (2001) lembra
que o desenvolvimento de cidades gigantes tem criado novos ambientes para a propagação da dengue,
transmitida pelo mesmo mosquito da febre amarela (Aedes Aegypti). Esse mosquito, que é um fraco
competidor contra as outras variedades de mosquitos na floresta, é extremamente hábil em procriar-se
nos ambientes criados com o crescimento das cidades tropicais. Sabe-se que a partir de um determinado
limiar populacional a propagação de uma doença pode ser mantida ciclicamente.
Um outro exemplo, dessa vez citado por Albrecht et all. (1998), envolvendo a encefalite,
também confirma a constatação de que mudanças econômicas e sociais acarretam, necessariamente,
resultados imprevistos, mas logicamente previsíveis nos processos de saúde e adoecimento. Há algum
tempo atrás, diz, a “prática tradicional no norte da Tailândia era arar a plantação de arroz com búfalos
aquáticos e manter os porcos para a alimentação e comércio. Como o culex tritaeniohynchus (o
mosquito que hospedava o vírus) preferia carne de porco, os búfalos aquáticos, desempenhavam o
papel de mata-borrão, limitando a transmissão viral. Atentos ao progresso, os fazendeiros da região
substituíram seus búfalos por tratores. Com o declínio da população dos búfalos, os mosquitos voltaram
sua atenção para os porcos e os homens. Muitos porcos foram infectados; os vírus multiplicaram-se nos
porcos. Mais e mais mosquitos foram infectados; e, por sua vez, mais e mais humanos. Centenas
morreram, e muitas dessas vítimas eram crianças” (idem, p.72).
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Um fator muito comum e raramente avaliado como prioridade nas investigações para
elaboração de planejamento em saúde são as doenças dos animais selvagens ou dos animais e plantas
domésticas. Todos os organismos lidam com parasitas e, para o parasita, invadir um organismo é um
meio de escapar da competição na água e no solo. Com o hábito, crescente em todo o mundo, de criar
animais e plantas em casa, pode-se esperar o surgimento de novas doenças ainda que seja imprevisível
a determinação precisa de quando, qual e onde uma epidemia de uma nova doença eclodirá (Levins,
2000).
A tendência de simplificar o funcionamento de sistemas complexos resulta na exclusão
sistemática de critérios que considerem a integração ecológica das mudanças sociais, econômicas e
culturais operadas ou impostas às populações, implicando em que uma parte considerável de eventos
que acontecem na vida das pessoas é sistematicamente eliminada dos cálculos dos tomadores de
decisão.
É claro que estamos muito longe de conseguir um controle, minimamente sério, do impacto dos
resultados dos modos de desenvolvimento econômico social e cultural atualmente dominantes sobre o
nosso futuro e da gravidade dos seus efeitos sobre o meio ambiente. A persistência das doenças
crônico-degenerativas e o retorno triunfante das doenças infecto-contagiosas em escala mundial,
atingindo países desenvolvidos e em desenvolvimento, pobres e ricos, demonstra que a complexidade
do fenômeno saúde não pode ser recusada: o custo dessa negação tem sido, no longo prazo, a contínua
degradação das condições de existência da vida em nosso planeta.

1.2. Integrando os processos saúde-doença-cuidados na rede social de produção e reprodução da


vida.
Os dois casos apresentados e comentados parecem indicar que o campo de produção dos
cuidados (saberes e práticas) com a saúde dependem da estrutura social na qual eles ocorrem, com
todas as diferenças de classe e poder aí existentes, e das concepções mais gerais que orientam as
relações homem/natureza, sustentadas na liberdade individuais de propriedade e de apropriação e na
crença de que o único e melhor meio de se fazer ciência é eliminar a complexidade dos processos sdc
através da redução ontológica do todo às suas partes, e da imposição de uma prioridade causal para o
antecedente na rede de causação e determinação de um fenômeno, objeto ou evento. De uma
perspectiva que aceite a complexidade dos processos sdc uma epidemia como a da cólera, por exemplo,
poderia ser entendida de uma forma completamente diferente:

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“...a atual epidemia de cólera pode ser descrita como sendo ‘causada’ pelo crescimento das
populações do Vibrio cholerae, na crescente população de plânctons, e propagada através dos navios
que operam no comércio internacional, pelo desmantelamento dos serviços sociais na América Latina e a
relutância dos governos em reconhecer a eclosão da epidemia em função de que isso pode afetar os
negócios do turismo, entre outros. O desenvolvimento dos plânctons pode ser relacionado ao aumento
excessivo de nutrientes nas águas costeiras, especialmente fosfato e nitrato, provocado pela efluência de
dejetos industriais, fertilizantes agrícolas, erosão e aquecimento dos oceanos; e o desmantelamento dos
serviços sociais pode ser relacionado à crise financeira resultante das dívidas externas dos países do
Terceiro Mundo e à insistência do Banco Mundial em promover o ‘progresso’ através do empobrecimento
da maioria. Além disso, a epidemia se distribui de acordo com as desigualdades entre as classes sociais e
com os limites das opções terapêuticas oferecidas pelas indústrias que criam o conhecimento
seletivamente orientado para a sua conversão em mercadorias. Essa distribuição também é sensível à
inconstância dos comportamentos que mudam com as percepções e a prevalência da doença. Por outro
lado, a dinâmica das respostas comportamentais depende de crenças duradouras que pode influenciar o
que as pessoas fazem e como elas conhecem o mundo – crenças que, por sua vez, refletem as realidades
das vidas dos diferentes grupos de pessoas. Ora, a distribuição de uma epidemia ao longo do tempo
também se relaciona com o processo evolutivo dos patogênicos frente aos padrões de mudanças das
intervenções humanas. Finalmente, o conhecimento e as práticas devem ser vistos reflexivamente pelo
uso crítico de outras disciplinas (história, sociologia e filosofia das ciências) e pela autocrítica dos limites
intelectuais e institucionais que tornam os nossos esforços fragmentados, reducionistas, e ao final das
contas, ineficazes” (Levins, 1995 p.2).

A rede de causalidade complexa que Levins propõe para explicar a re-emergência e propagação
da cólera pode ser organizada num modelo da “ordem descritiva da reprodução social” da vida humana,
proposto por Samaja (2000). Neste modelo, é possível integrar desde os problemas da reprodução
biológica até os da reprodução econômica e política que são muito pertinentes quando se quer
desmedicalizar a saúde. Samaja propõe quatro dimensões essenciais da sociabilidade humana,
constituindo, cada uma delas, um nível numa hierarquia funcional; a dimensão historicamente
subseqüente suprime, conserva e supera a dimensão anterior. “Assim como as regras sociais suprimem,
conservam e superam as normas biológicas, também no interior dos sistemas sociais se apresentam
hierarquias estruturais, onde certos níveis de sociabilidade ficam suprimidos, conservados e superados
em certos outros” (Samaja, 2000, p. 54).
Samaja propõe que a sociabilidade humana se organiza em quatro dimensões integradas em
rede: a reprodução no nível bio-comunal, comunal-cultural, societal e ecológico-política.
A reprodução bio-comunal expressa a ação efetiva3 de produzir e reproduzir cotidianamente as
condições conviviais da vida de organismos sociais. Maturana e Varela chamaram a atenção para o fato

3
Ação Efetiva é toda ação que “permita a um ser vivo continuar sua existência em um determinado meio ao fazer surgir o
seu mundo” (Maturana e Varela, 2001, p. 36).

12
de que “Toda vez que há um fenômeno social há um acoplamento estrutural4 entre indivíduos”
(Maturana e Varela, 2001, p. 214). Entendo acoplamento estrutural como uma forma de viabilizar a
ontogenia de indivíduos (organismo multicelular isolado) por meio de uma rede de interações
recíprocas com outros indivíduos. Essa rede de interações pode ser descrita genericamente quando se
observa que há uma coordenação recíproca entre as condutas de cada um dos indivíduos que formam a
rede social. Dito de outra forma, o acoplamento estrutural se expressa em relações funcionais e
coerentes ao longo do tempo, relações essas que viabilizam a existência de unidades e hierarquias
sociais. A Comunicação é, precisamente, o processo em curso nestes casos. Sem a produção
compartilhada de signos não pode haver vida social nem vida individual para todo organismo cuja
ontogenia se encontra diretamente acoplada à vida de outros organismos. O comportamento social e,
portanto, comunicativo, é praticamente universal em todas as espécies cujos indivíduos possuem uma
rede de neurônios para acoplar seus sistemas sensoriais (percepção) e motores (ação) (Maturana e
Varela, 2001).
Na reprodução comunal-cultural se incluem “todos os mecanismos através dos quais se
regeneram cotidianamente as condições de desenvolvimento das condutas exigidas pela vida da cultura
em cada uma das formas de solidariedade” (Samaja, 2001, p. 78-79) e convívio social: os mecanismos
de socialização, mas também os mecanismos de criação dos mecanismos de socialização; as regras
culturais, mas também as condutas comunicacionais que geram e regeneram as normas e as regras do
convívio bio-comunal.
Na reprodução societal da sociabilidade humana se enquadram todas as relações sociais de
produção e reprodução dos meios de vida e o “pathos da associação que os indivíduos estabelecem para
efetuar os atos produtivos e os intercâmbios” (idem p. 79). As atividades econômicas intermediam,
através de atos de apropriação da natureza e de produção e intercambio de bens daí derivados, os
processos de reprodução biológica dos seres humanos e dos demais seres vivos em nosso planeta – o
funcionamento da biosfera é cada vez mais dependente das relações que os homens estabelecem entre
si no processo de se apropriarem coletivamente da natureza – e das condutas que eles compartilham.
A reprodução ecológico-política da sociabilidade humana produz as condições ecológicas – o
“macro-cenário onde, por assim dizer, estão localizados os objetos, os instrumentos e os próprios seres
humanos”– e políticas – a ação dos sujeitos políticos enquanto “órgãos de direção social, sejam estes
mecanismos familiares, tribais, de vizinhança ou institucionais” (idem, p.80-81) – que visam

4
Ocorre acoplamento estrutural quando as interações entre unidades vivas e delas com o meio “adquirem um caráter
recorrente ou muito estável” (...) produzindo como resultado “uma história de mudanças estruturais mútuas e concordantes,
até que a unidade e o meio se desintegrem” (idem, p.87).

13
“restabelecer as relações de interdependência entre as condições ambientais, as relações societais, as
relações comunais-culturais e as relações bio-comunais” (Samaja, 2000, p.82) .
Finalmente, “a sociabilidade política parece ser a esfera de relações sociais fundamentalmente
responsáveis pelos processos de reprodução ecológica” (...), “como reprodução do macroambiente
social. Tal função remonta às grandes obras públicas dos Estados antigos (aquedutos, estradas etc.),
mas o aspecto dominante desta reprodução é, sem dúvida, a área da segurança pública, pelo monopólio
da força coercitiva e de defesa, por meio da qual se preserva não só a ordem social, mas também os
grandes empreendimentos humanos frente à ordem natural, em caso de catástrofes naturais, epidemias,
o que implica a função de política sanitária” (idem, p. 83).

Quadro 1.1. Matriz de Insumo/Produto da reprodução da cólera.

14
INSUMOS PRODUTOS
Reprodução Reprodução bio-comunal
De condições ecológicas: Aumento excessivo de fosfato e A rede de interações cotidianas entre os organismos humanos contribui
nitrato. Evolução dos patogênicos frente aos padrões de para o crescimento das populações do Vibrio cholerae na população de
mudanças das intervenções humanas. plânctons das águas costeiras.
Da autoconsciência e da conduta: Relutância dos governos
em reconhecer a eclosão da epidemia.Crenças duradouras
sobre as opções terapêuticas.
De recursos econômicos: O empobrecimento, a produção
de dejetos industriais, fertilizantes agrícolas, erosão e
aquecimento dos oceanos. As diferenças e desigualdades
sociais. As opções terapêuticas orientadas para a conversão
em mercadorias [e lucro]
De condições biológicas: Crescimento das populações do Reprodução comunal-cultural
Vibrio cholerae. A crença neoliberal de que a saúde é um problema exclusivamente social
De condições ecológicas: Aumento excessivo de fosfato e e de que o desmantelamento dos serviços sociais públicos é a melhor
nitrato. Evolução dos patogênicos frente aos padrões de estratégia de solução de problemas deste tipo justifica a produção e
mudanças das intervenções humanas. reprodução.
De recursos econômicos: O empobrecimento, a produção
de dejetos industriais, fertilizantes agrícolas, erosão e
aquecimento dos oceanos. As diferenças e desigualdades
sociais. As opções terapêuticas orientadas para a conversão
em mercadorias [e lucro]
De condições biológicas: Crescimento das populações do Reprodução econômico-societal
Vibrio cholerae na população de plânctons. O empobrecimento da maioria da população, a produção crescente de
Da autoconsciência e da conduta: Relutância dos governos dejetos industriais, fertilizantes agrícolas, erosão e aquecimento dos
em reconhecer a eclosão da epidemia.Crenças duradouras oceanos. As diferenças e desigualdades entre as classes sociais. As opções
sobre as opções terapêuticas. terapêuticas oferecidas pelas indústrias que criam o conhecimento
De condições ecológicas: Aumento excessivo de fosfato e seletivamente orientado para a sua conversão em mercadorias [e lucro]
nitrato. Evolução dos patogênicos frente aos padrões de (...) desencadeiam um processo de produção e reprodução.
mudanças das intervenções humanas.
De condições biológicas: Crescimento das populações do Reprodução ecológico-política:
Vibrio cholerae na população de plânctons. Uso não critico das disciplinas do campo e outras afins (história,
Da autoconsciência e da conduta: Relutância dos governos sociologia e filosofia das ciências) e dos limites intelectuais e
em reconhecer a eclosão da epidemia.Crenças duradouras institucionais que tornam os cuidados com a saúde fragmentados,
sobre as opções terapêuticas. reducionistas, e ao final das contas, ineficazes. Dependência das
De recursos econômicos: O empobrecimento, a produção estruturas econômicas, dos interesses de classe e da ação coercitiva que o
de dejetos industriais, fertilizantes agrícolas, erosão e Estado exerce em nome destes interesses.
aquecimento dos oceanos. As diferenças e desigualdades
sociais. As opções terapêuticas orientadas para a conversão
em mercadorias [e lucro]

Em cada um dos níveis, o produto – as relações sociais específicas desse nível –, é o resultado
da ação de certos insumos – as relações sociais dos níveis anteriores e posteriores – mas,
simultaneamente, o produto age sobre os insumos, reproduzindo-os enquanto condições de existência e
determinação de si mesmo. Temos pelo menos duas questões a esclarecer neste ponto: de que tipo de
relação causal está se falando e como se pode conceber a relação estrutural e funcional entre os
diferentes níveis ou dimensões da sociabilidade humana no estudo dos problemas de saúde-doença?
É claro que não se trata de uma relação causal linear, onde o antecedente especifica, passo a
passo, o que ocorrerá com o conseqüente. Aqui, antecedente e conseqüente se determinam bi-
direcionalmente: os efeitos bio-comunais – rede de interações entre organismos humanos que os expõe
ao Vibrio Cholerae – gerados pela reprodução de condições ecológicas, de conduta e de recursos

15
econômicos, reproduzem, reflexivamente, essas mesmas condições. Esse é o tipo de causalidade na
qual (a) entidades ou processos distintos estão acoplados de tal forma que (b) criam-se uns aos outros,
ao estabelecerem, cada um deles, as (c) condições e os termos pelos quais um e outro podem existir e
funcionar no interior do sistema do qual fazem parte. Ou seja, entidades distintas podem produzir-se
mutuamente, desde que o processo de mediação entre elas seja a realização de uma ou mais funções
dentro de uma estrutura que as produz e reproduz por esse processo de mediação. Isso implica que a
relação entre essas entidades deva produzir alguma propriedade agregada que não pertencia a nenhuma
das entidades anteriores, mas que regula, retroativamente, a relação funcional entre elas. Um exemplo
desconcertante deste tipo de causalidade foi dado por Marx quando analisou a relação entre produção e
consumo: produzir e consumir um bem são atos e processos claramente diferentes, mas, no interior de
um modo de produção específico, “cada um, ao realizar-se, cria o outro”, num movimento em que
“ambos parecem como meio e existem por mediação do outro” (Marx, 1978, p. 33).
Por exemplo, as finalidades e condições da produção de um medicamento, são determinadas
pelas necessidades orgânicas do consumidor e pelas possibilidades econômicas, sociais e culturais de
consumo desse medicamento, e, simultaneamente, as possibilidades e necessidades de consumo do
medicamento são o resultado de um processo produtivo que selecionou, entre as diferentes alternativas
técnicas e científicas, quais podem efetivamente ser convertidas em mercadorias, ou seja, quais são
suscetíveis de criar o sujeito do consumo daquele medicamento. Temos então a situação real, e
aparentemente paradoxal, em que os modos de vida de indivíduos e populações demandam uma
indústria de terapias e medicamentos cujos valores de uso agregados no processo de sua própria
produção criam os sujeitos da experiência da enfermidade, como condição retroativamente intrínseca
do processo de produção de um determinado sistema de cuidados com a saúde-doença, enquanto
conjunto de objetos e procedimentos para o consumo.
Metodologicamente, é legítimo estudar a dinâmica de um processo ou entidade de um nível,
tomando os outros níveis de determinação como insumos, ou mediadores, que são reproduzidos por
esse processo ou entidade (Samaja, 2000). Como as relações sociais de um nível existem
simultaneamente às relações dos outros níveis, cada nível, ao se reproduzir, normatiza os outros,
estabelecendo os limites de possibilidade e as finalidades das suas relações sociais, localizando-as no
interior de um sistema social global. Ao estudar um subsistema social como a família, por exemplo,
podemos focalizar sua dinâmica interna observando e descrevendo os indivíduos e suas relações sem
que seja necessário recorrer a uma determinação externa dos níveis subseqüentes sobre o sistema
familiar. Coisas como regras e normas culturais são insumos internos ao sistema familiar, e só existem
enquanto dimensão subseqüente numa estrutura hierárquica funcional porque são reproduzidas, na
16
dimensão antecedente, pelas relações interpessoais realizadas cotidianamente no interior dos sistemas
familiares. Simplificadamente, a cultura regula a ação das pessoas porque as pessoas produzem e
reproduzem cotidianamente relações sociais normatizadoras.
No nível subseqüente, a reprodução bio-comunal está dialeticamente subsumida pela
reprodução comunal-cultural, e assim sucessivamente, até a dimensão ecológico-política. Essa
constatação implica em assumir que, além das determinações mediatizadas e reflexivas, existe um
fluxo permanente entre todos os diferentes níveis da sociabilidade humana, do bio-comunal ao político.
Fluxo entre níveis pode ser descrito pelo movimento da informação de um nível para o outro, mas deve
admitir, como pré-requisito, algum mecanismo de transporte e de reprodução da informação entre os
níveis. Como a matéria prima que forma cada nível são as relações comunais, culturais, econômicas e
políticas entre agentes sociais, – ou o que dá no mesmo, as relações sociais entre agentes comunais
culturais, econômicos e políticos – o fluxo de informação entre os níveis se deve ao fato de que todo
ato social é um ato comunicativo e que o produto e o insumo da comunicação são signos. Mais adiante
desenvolveremos a idéia de que qualquer acoplamento estrutural é mais compreendido quando se
ressalta a natureza semiótica da relação social. Por enquanto, procuraremos esclarecer quais são os
mecanismos e propriedades que tornam operacionais as co-determinações entre os níveis com base na
idéia de que o que se produz em cada nível e o que circula entre eles são os signos produzidos no
processo de “acoplamento social”5.

1.3. Propriedades e mecanismos de produção da hierarquia funcional dos processos de


reprodução da vida social
O processo de produção da saúde-doença ocorre numa estrutura social determinada, através de
um intricado sistema de cuidados, isto é, intermediada por um complexo processo de relações sociais
cujos produtos são: crenças leigas e científicas, comportamentos de risco ou de proteção à saúde,
grupos, organizações e instituições, leis, regulamentos e contratos, planos, avaliações e programas de
saúde, etc. Os agentes6 produtores dessas “coisas”, “objetos” e “processos” que constituem o sistema
de cuidados, são os seres humanos agindo ativa e coletivamente. Qualquer uma dessas ‘entidades’
podem ser entendidas como propriedades emergentes de um determinado tipo de agregado de agentes
humanos. Assim, uma agregação de agentes humanos ao longo do tempo, marcada pela busca das
causas das doenças e dos meios para a cura, resultou na medicina; a medicina e seu corpo institucional

5
Acoplamento social é um acoplamento estrutural ocorrendo no domínio convivial da ontogenia dos indivíduos (Maturana e
Varela, 2001, p.215).
6
Por agente se entende qualquer entidade que realize ações efetivas. Por agente social se entende todo agente cuja
ontogenia se realiza através de acoplamentos sociais.

17
constitui-se em meta-agentes para o agregado de origem e em novos agentes que podem se agregar para
formar, por exemplo, uma organização hospitalar ou uma escola de medicina; organizações hospitalares
– propriedade emergente do nível anterior e agente para um novo agregado – podem se agregar para
formar um sistema de atendimento para doenças coronárias, por exemplo, ou uma hipotética Fundação
para o Atendimento de Urgências da Cidade de Salvador (FAUCS).
Agregado de Agentes Propriedade Emergente

Cuidadores

Cuidador 1 Medicina
Cuidador 2
Cuidador 3

Profissionais

Médico 1
Médico 2 Hospital/Escola
Médico 3

Hospitais

Hospital 1
Hospital 2 FAUCS
Hospital 3

Figura 1.1. Agregados de agentes sociais no campo da saúde e algumas de suas possíveis instituições emergentes.

As relações entre os agentes podem ser descritas com base nas propriedades dos agregados que
eles formam. Por exemplo, para compreender a relação social entre médicos deve se recorrer ao
conjunto de dogmas e procedimentos da medicina, com o qual foram formados, e que re-produzem
quando exercem suas funções classificatórias e diagnósticas como aprendizes ou como profissionais.
Os agregados e suas propriedades emergentes formam uma hierarquia funcional na estrutura interior do
sistema mais geral de cuidados com a saúde que uma determinada comunidade de agentes sociais
produziu. A agregação é, portanto, uma das propriedades que pode ser identificada em cada um e em
todos os níveis da sociabilidade humana e que muda a paisagem dessas dimensões introduzindo nelas
um conjunto de estruturas, organizações, instituições, normas e contratos de comportamento. O fluxo
entre os níveis ocorre através de formas espontâneas, obedecendo à dinâmica das trocas semióticas das
relações cotidianas e devido à liberdade de movimentos entre as diferentes dimensões que cada agente
social (pessoa ou grupo) adquire, mas, desde que passamos a pensar em termos de agregados de

18
agentes, somos obrigados a reconhecer que a produção e o fluxo de informação na estrutura social é
intensamente intermediado por formas mais ordenadas e padronizadas de interação.
As características mais gerais dos agentes e dos agregados que eles podem formar, em casos que
envolvem agentes que evoluem por aprendizagem, ou seja, agentes cujo mecanismo evolutivo é
inteligente, tem sido estudado sob a rubrica dos Sistemas Adaptativos Complexos (SAC) ou Sistemas
Auto-Organizados (SAO). A classificação de uma parte dos sistemas complexos na categoria de
sistemas que se transformam aprendendo com seu próprio comportamento – SACs – e que se auto-
produzem e auto-mantém – SAO – é parte da tentativa de identificar as propriedades e mecanismos
mais gerais de todos os sistemas vivos (Holand, 1997; Casti, 1998; Gell-Mann, 1996). Essas
investigações continuam, em certo sentido, a explorar a hipótese piagetiana de que o critério que
demarca a vida da não-vida é a cognição (Piaget, 1973).
Todos os seres vivos evoluem aprendendo a alterar as regras que regulam seus comportamentos
à medida que transcorre sua experiência ontogenética – como é o caso dos primatas – ou filogenética –
como é o caso das bactérias, por exemplo. Segundo esse enfoque, agregados de agentes humanos
podem apresentar comportamentos cujas raízes e origens são semelhantes aos dos agentes
individualmente, desde que o foco de análise se volte para a organização, isto é, para as propriedades e
mecanismos que geram e mantém as relações entre os componentes de um SAC ou de um SAO.
Supõe-se que os mesmos padrões de organização por aprendizagem podem ser encontrados nos
mais variados sistemas, desde a biologia à economia. O mesmo não se pode dizer dos padrões de auto-
organização presentes na biologia, pois os agregados sociais não possuem fronteiras claramente
definidas e não podem, por isso mesmo, quando desencadeiam seu processo de reprodução, fazê-lo de
forma rigorosamente autônoma, já que a autonomia de uma unidade viva é auto-reprodução de uma
entidade material e energeticamente aberta, mas fisicamente separada do seu meio ambiente e
organizacionalmente fechada e, o mesmo não ocorre com as unidades agregadas que constituem a vida
social, onde as fronteiras estão mais diluídas e as diferenças interno/externo são derivadas e não
fundadoras (Varela, 1997). Enquanto na unidade viva – que é um agregado de unidades celulares ou de
componentes celulares – a relação social é um tipo de acoplamento que decorre de suas propriedades e
necessidades biológicas e só retroativamente participa de sua formação e desenvolvimento, para essa
mesma unidade, na experiência concreta de sua história ontogenética, a relação social (quando ela
existe) é fundadora da sua condição de convivente. Mas os acoplamentos entre os indivíduos não são
feitos sem nenhum critério. E pode haver critérios de associação que apresentem características gerais e
universais comuns a todos os SACs e SAOs.

19
Holland (1997) propõe que aprimoremos a nossa compreensão da universalidade dos processos
que explicam o desenvolvimento do comportamento dos agentes e dos agregados sociais ou de
qualquer outro SAC levando em conta os seguintes mecanismos e propriedades:

• Mecanismo de marcação:
Da mesma forma que a agregação é uma propriedade universal de todos os sistemas vivos, e sem
ela não haveria a emergência de comportamentos mais complexos a partir da interação de
comportamentos mais simples, com a idéia de marcação se pode pensar no mecanismo mais simples e
universal subjacente ao processo de agregação e esclarecer como é que da agregação surgiram entes
mais complexos que exercem funções reguladoras sobre os inter-agentes que lhes deram origem.
A marcação “é um mecanismo universal de agregação e delimitação de fronteiras nos SACs (...)
que as usam para manipular simetrias (...) facilitar a interação seletiva, permitir aos agentes escolher
entre agentes ou entre objetos que de outro modo seriam indistinguíveis (...) e constituir uma base
sólida de filtragem, especialização e cooperação, o que, por sua vez, conduz à emergência de meta-
agentes e de organizações que persistem para além de suas componentes, as quais estão sempre
mudando” (Holand, 1997, p 36-38). Exemplos de marcação são os pontos ativos que ligam anticorpos
e antígenos, os padrões visuais e olfativos que aproximam animais para o acasalamento, as crenças
humanitárias que aglutinam ativistas políticos, ou o logotipo da Coca-Cola, ou um ícone que facilita a
operação dos comandos de um micro-computador, etc. Qualquer coisa que o agente interprete como
útil, neutro ou ameaçador. A marcação é o mecanismo que permite ao agente se orientar por entre as
diferenciações e oposições fundadoras do mundo percebido. O princípio da diferenciação está na
origem dos processos perceptivos e na interpretação das diferenças e oposições se encontra a base da
cognição 7(Piaget, 1979; Valsiner, 1998; Noth, 1999; Maturana e Varela, 2001). Da mais simples
bactéria até o mais complexo dos primatas, interpretar as diferenças e decidir o que fazer com elas é
parte do mecanismo de regulação e produção da vida. Uma bactéria precisa buscar alimentos e evitar
ambientes adversos; o sistema imunológico deve reconhecer células estrangeiras para operar a
integridade e identidade do organismo. Em ambos os casos, trata-se de um processo interpretativo
exclusivamente mecânico que envolve percepção/ação, no primeiro, e identificação/reação, no
segundo.

7
Especialmente nas doutrinas semióticas a oposição é encarada como fundadora do processo de produção dos signos e da
estrutura do universo pré-semiótico (Noth, 1999). Na sociologia de Bourdieu a diferenciação e a oposição resultante são,
também, operações fundadoras, neste caso, do espaço social e das diferentes posições e disposições dos agentes e agregados
sociais (Bourdieu, 1997).

20
O mecanismo de marcação evolui para mecanismos que permitem aos agentes, isoladamente ou
agregados, anteciparem acontecimentos, eventos e situações, ou simplesmente a existência de um
objeto, como o alimento, por exemplo. Bactérias se movem adequadamente na direção de um gradiente
químico cujos componentes contenham substâncias nutritivas, da mesma forma que certos animais
mimetizam para evitar seus predadores. Em nenhum desses casos existe uma dependência direta da
experiência sensorial do agente. Já nos mamíferos, a previsão depende da elaboração de um “modelo
interno” que permite a realização de um ou mais comportamentos entre vários possíveis. Esses modelos
ou esquemas de ação, como os definiu Piaget (1973), são iniciados pelos “tijolos da cognição”, com os
quais se pode construir, por assimilação e acomodação sucessivas (Weiss, 1978, von Foerster, 1978) e
dialéticas (Piaget, Sakellaropoulo & Christophides, 1996; Piaget, 1996) os esquemas de ação para as
circunstâncias e situações mais variadas e guardá-los na memória, e ainda remontá-los se necessário.
Cada agente ou agregado social pode, dessa forma, aprender e evoluir construindo padrões (normas,
leis, contratos, etc) e modificando-os (Holland, 1997). O mecanismo de marcação e modelagem
favorece a ordem e a eficiência do comportamento dos agentes e dos agregados dentro dos limites das
possibilidades bio-comunais de cada espécie e dota os seres humanos, por exemplo, de flexibilidade e
versatilidade orientadas pela experiência ontogenética compartilhada numa comunidade de
conviventes.
Se as relações sociais são capazes de gerar ordem e mudança em cada um dos diferentes níveis
hierárquicos da sociabilidade humana, graças aos mecanismos de marcação que lhes permitem agregar
de forma a gerar mais complexidade e diversidade e acumular experiência e conhecimento no processo
de intercâmbio entre as “entidades” de cada um dos níveis, como explicar as relações de determinação
entre os níveis? Como entender os efeitos dos fluxos de informação que os agregados e os agentes
sociais produzem? Holland (1997) propõe dois mecanismos universais para explicar o papel dos fluxos
de signos no interior de uma hierarquia funcional: efeito multiplicativo e efeito de reciclagem.

• Propriedades de amplificação e reciclagem dos fluxos intra e inter níveis.


Num sistema complexo, formado por níveis ou dimensões que se articulam numa estrutura
funcional, o fluxo de signos atravessa horizontal e verticalmente o conjunto, a partir de e por meio das
organizações, instituições, normas e contratos sociais que formam cada um dos níveis. Agentes sociais
se agregam usando operações de identificação/diferenciação (marcação) e produzem os signos que
coordenam suas ações e o fluxo desses signos através da rede de determinações dos processos sdc.
Mais adiante veremos que os agentes sociais, tratados como agentes semióticos, produzem, distribuem,

21
trocam e consomem signos através da rede. Por enquanto interessa destacar que, independente de qual
seja o modo específico de produção dos signos, a informação circula no sistema, amplificando seus
efeitos ao longo da trajetória que percorre, podendo ser constantemente reciclada durante o percurso.
Nenhum dos elementos que constitui a rede social – os agentes e os agregados – são estáticos. Ao
produzir fluxos de informações e utilizar esse processo para aprender a modificar o meio-ambiente e a
otimizar seu comportamento frente à dinâmica ambiental, os agentes e os agregados se modificam.
Holland (1997) propõe que se conceba a amplificação como uma propriedade geral dos sistemas
funcionalmente articulados, como o efeito multiplicador de um comportamento agregado localizado em
um ponto qualquer da rede de determinações. Por exemplo, uma escolha tecnológica – a produção de
antibióticos – pode ser determinada pela viabilidade comercial do produto, uma escolha econômica, o
que por sua vez, pode levar ao uso intensivo e às vezes abusivo dessa tecnologia, uma escolha ética,
gerando efeitos diversos nos corpos dos pacientes e sobre as bactérias: um desses efeitos pode ser a
mutação genética nas bactérias, tornando-as mais resistentes, e nos pacientes, tornando-os mais
vulneráveis. Em sistemas funcionais integrados, como os que determinam a saúde-doença, certos
eventos têm o efeito de cascata. Neste caso, temos efeitos que se propagam desde a dimensão política
até a biológica. Cada um dos níveis trabalha com a informação que veio de outro nível e o resultado
global amplifica os efeitos inicialmente locais. De um nível para outro há um claro rompimento da
linearidade: a decisão política de usar intensivamente medicamentos para curar, e também produzir
lucros, resultam em modificações na estrutura biológica das bactérias e no funcionamento orgânico dos
seres humanos. São fenômenos muito distintos uns dos outros, mas que foram determinados numa
mesma cadeia de acontecimentos, à medida que a informação produzida num nível desencadeia um
processo semiótico que atravessa os outros níveis.
Uma forma de explicar o que está acontecendo é supor que cada nível recicla a informação do outro
em seus próprios termos, ou os interpreta, segundo as propriedades materiais e relacionais dos agentes
que os constituem. A capacidade de reciclagem é a propriedade que agentes biosociais possuem de usar
um material produzido e utilizado por outro agente ou agregado para seus próprios fins e necessidades
ou, compulsoriamente, para responder a uma perturbação, uma informação disruptiva que exige uma
resposta adaptativa, como é o caso das mutações bacterianas. “De uma perspectiva ecossistêmica, os
padrões variáveis de exposição, favorecendo novas conexões entre as diversas cadeias de determinação
[da saúde-doença], sejam esses determinantes causais ou não-causais, favorecem os múltiplos
condicionamentos da vulnerabilidade dos patógenos, afetando sua biologia, em ecossistemas
crescentemente transformados pela atividade humana”. (Possas, 2001, p. 33).

22
Os mecanismos e propriedades descritas anteriormente permitem, agora, compreender como é que
cada um dos níveis da seqüência (bio/comunal, comunal/cultural, econômico/societal,
político/ecológico) pode subsumir o anterior, mantendo a existência funcionalmente adequada de todos
e as articulações de determinação entre eles. Entretanto, haveria alguma concepção científica de vida
que permitisse supor a possibilidade de integração de todos esses níveis numa mesma cadeia de
determinação e submetida ao mesmo fluxo de informação? Algum conceito que explicitasse a idéia de
que as dimensões da sociabilidade de organismos humanos regulam e normatizam-se umas às outras? É
o que veremos a seguir.

1.4. Vida e interpretação: A Biologia se abre para a semiose.


Canguilhem, pioneiro na concepção de que a saúde é uma forma de normatização da vida e de
que o sistema socialmente construído de cuidados com a vida é uma espécie de extrapolação de uma
lógica de regulações inerente a tudo o que é vivo, enfrentou essa questão articulando conceitos
inovadores, cujos conteúdos permanecem atuais.
Canguilhem chamou de Polaridade Dinâmica Vital ao “Efeito espontâneo, próprio da vida, que
consiste em lutar contra aquilo que constitui um obstáculo à sua manutenção e a seu desenvolvimento”
(...) “a vida não é indiferente às condições nas quais ela é possível e, por isso mesmo, apresenta uma
posição inconsciente de valor” (Canguilhem, 1995, p. 96). Afirmou que essa polaridade expressa uma
propriedade biológica de normatização (Normatividade Biológica) que “institui o conjunto de normas
no interior das quais a vida é possível” (autoconservação, auto-produção, auto-regulação). “É a vida,
em si mesmo, e não a apreciação médica, que faz do normal biológico um conceito de valor e não um
conceito de realidade estatística” (Idem p. 99-100).
Para Canguilhem os pólos saúde-doença são mediados pela norma. Uma Doença existe “Desde
que a etiologia e a patogenia de uma anomalia são reconhecidas” (idem, p. 108). A doença não é
ausência de normas: “o ser vivo doente está normalizado em condições bem definidas e perdeu a
capacidade normativa, a capacidade de instituir normas diferentes em condições diferentes” (idem, p.
146). Já a Saúde é um tipo ideal de normatização que permite a “adaptação possível e voluntária a
todas as condições imagináveis”. “Ser sadio significa não apenas ser normal numa situação
determinada, mas ser, também, normativo, nessa situação e em outras situações eventuais. O que
caracteriza a saúde é a possibilidade de ultrapassar a norma que define o normal momentâneo, a
possibilidade de tolerar infrações à norma habitual e de instituir novas normas em situações novas”
(Canguilhem, 1995, p. 158).

23
Consciente de que estava trilhando um caminho nebuloso e na época ainda pouco demonstrável
por alguma(s) teoria da vida, Canguilhem chama a atenção para a “multiplicação dos termos formados
com o prefixo auto -, que atualmente são utilizados pelos biólogos para descrever as funções e o
comportamento dos sistemas organizados: auto-organização, auto-reprodução, auto-regulação, auto-
imunização, etc .” (...) “A obrigação epistemológica de designar por meio de termos com o prefixo
auto as propriedades desses sistemas é a expressão do seu modo de relação para com o meio ambiente”
(Canguilhem, 1977, p. 120). Argumenta também, que até mesmo a teoria da seleção natural, que
procura excluir qualquer finalidade de progresso a partir de um comando central, submetendo a
evolução aos ditames do acaso, está recheada de termos referentes à normatização, como: “seleção,
vantagem, adaptação, favor e desfavor”(...) “Trairá a linguagem de Darwin o pensamento de Darwin,
ou traduzirá essa linguagem o fato de que, mesmo para Darwin, uma explicação causal da adaptação
não pode abolir o sentido vital da adaptação, sentido determinado pela referência do ser vivo à morte?”,
diz Canguilhem (idem, p. 116).
A definição de vida dominante na biologia científica8 atual continua precisamente a trilha aberta
por Darwin e pode ser apresentada como um “processo de seleção natural de replicadores” (Dawkins,
1979). Replicadores são estruturas químicas ou “entidades” que reproduzem cópias de si mesmo.
Segundo Dawkins, essas entidades são capazes de produzir, sem qualquer plano anterior, uma
infinidade de “máquinas de sobrevivência” – células e organismos – para garantirem a perpetuação das
seqüências de informação inscritas no DNA, os “genes egoístas”. Replicadores são basicamente
padrões de informação que se propagam por auto-reprodução adaptativa. A ênfase nos aspectos
informacionais dos replicadores implica em que se possa considerar uma simulação computacional
como um organismo vivo, por exemplo, desde que tal programa tenha as mesmas propriedades
universais da vida, quais sejam: auto-reprodução, herança informacional, variações aleatórias na
estrutura informacional e sucesso das variações de acordo com as circunstâncias ambientais em que
vivem9.
O processo de seleção natural funciona como um algoritmo universal capaz de criar e manter a
diversidade da vida de forma crescentemente adaptativa (Dennett, 1998). Apesar de não ter sido criado
por ninguém e de não obedecer a nenhum plano ou planejador, o algoritmo da seleção natural é sempre
eficiente, graças à natureza lógica de suas operações, o que lhe permite produzir infalivelmente sempre
os mesmos resultados (idem). E o que faz esse algoritmo? Através de procedimentos de tentativa e erro

8
Os critérios para considerar as definições de vida que são apresentadas, como científicas, foram propostos por Emecche e
El-Hani (2000).
9
O programa de pesquisa dedicado a estabelecer as leis e mecanismos universais da vida independente de seu substrato
químico, é chamado de Vida Artificial (Levy, 1993).

24
(técnica de otimização), ele “considera como dados de entrada um conjunto de competidores e garante
terminar identificando um vencedor” (idem, p. 55). O vencedor, por sua vez, tem memória, pode ser
bem sucedido nas circunstâncias para as quais foi escolhido toda vez que elas se apresentarem. Essa
habilidade é dada pela estrutura genética que se reproduz. Neste sentido, “o nível algorítmico é o nível
que melhor explica a velocidade do antílope, a asa da águia, a forma da orquídea, a diversidade das
espécies e tudo o mais que nos intriga na natureza” (idem, p. 61).
As tentativas de encontrar uma definição universal de vida com base nos princípios da seleção
natural levaram a que se colocasse no centro da explicação científica um mecanismo lógico como o
produtor da dinâmica da vida ao invés de se enfatizar as propriedades materiais e energéticas do
substrato físico-químico nas quais a vida se sustenta. A lógica algorítmica das relações entre os
componentes que formam a vida, desde o nível biológico até o social, seria a propriedade
organizacional mais importante e a principal forma de explicar o que é a vida e descrever como ela
funciona e evolui. Mas essa lógica existe de fato ou ela é apenas uma forma de descrição? Se ela atua
na concretude material dos organismos, eles não podem fazer nada para interferir na sua própria
evolução, pois se submetem a ela inexoravelmente mesmo quando a conhecem. Mas, será que os
organismos, acoplados estruturalmente uns aos outros, interpretam a sua relação como um conjunto de
procedimentos irracionais que resultará, ao final, na escolha de alguns entre eles e na morte dos outros?
Será que podemos transformar uma forma útil de descrever certos fenômenos evolutivos numa entidade
transcendental, uma grande e poderosa mente inconsciente da sua própria existência? Dawkins e
Dennett introduzem a dimensão semiótica na essência do mecanismo que opera a evolução da vida,
mas é uma semiose sem agente semiótico, é uma semiose transcendental.
Uma definição de vida mais interessante é apresentada por Maturana e Varela (1994). Segundo
eles uma unidade viva é uma maquina autopoiética, um mecanismo de geração dos elementos
constituintes da máquina e das relações entre os elementos que produzem, por agregação, as
propriedades emergentes que identificam a máquina (sua organização e estrutura) e dos limites e
condições nas quais a unidade viva pode ser criada, modificada e por fim, degenerada. Um sistema
vivo é concebido como uma rede aberta em termos energéticos e fechada em termos organizacionais.
Isso significa que o organismo é uma entidade auto-referente já que ele próprio define a si mesmo.
Neste sentido, o organismo não se submete a nenhuma de suas partes por mais decisivas que elas sejam
para a sua constituição. Qualquer elemento, como os genes, por exemplo, são produtos gerados pela
rede e só funcionam adequadamente por meio das relações constituintes da rede. O DNA é parte
importante de uma rede recursiva de relações, mas fora dela ele não possui as mesmas propriedades
que adquiriu como função de uma máquina autopoiética. Maturana e Varela rejeitam a idéia de um
25
programa genético especificando passo a passo o que o organismo será e como ele se comportará. A
natureza recursiva e auto-referencial da vida implica em dizer que as interações do ser vivo são feitas
tendo como referência sua identidade auto-produzida. Ora, um ponto de referência numa interação
indica que uma nova propriedade surgiu quando apareceram na natureza máquinas autopoiéticas: a
constituição de signos. Os sistemas autopoiéticos só podem produzir a si mesmo se diferenciarem o si
do outro, se interpretarem o que podem e o que não podem fazer para manter sua integridade e
identidade somática. Isso quer dizer que o “significado surge em referência a uma identidade bem
definida [e, neste caso, autodefinida], e não se explica por uma captação de informação do mundo
exterior” (Varela, 1997, p. 48). Temos então a produção de signos e a realização da interpretação e,
portanto, comunicação, no âmago da vida, mas parece que de uma forma solipsista. Atento a essa
critica, Varela propõe que a teoria da autopoiese seja complementada por uma fenomenologia da
experiência que explique a produção do significado como uma propriedade que emerge no espaço da
interação entre os organismos e o mundo, ou seja, no espaço dos acoplamentos sociais (agente-agente)
ou funcionais (agente-ambiente). Os signos não existem num mundo exterior – como os algoritmos da
seleção natural – nem interior ao organismo.
Uma terceira concepção de vida é apresentada por um novo paradigma na biologia: a
biossemiótica. Segundo Emmeche (1998) a vida é uma propriedade de sistemas materiais auto-
organizados capazes de utilizar informação de maneira a realizar funções que favoreçam sua adaptação
e sobrevivência. Os biossemioticistas consideram que a informação já existe no nível físico, antes
mesmo que qualquer interpretação possa ser feita por uma entidade dotada de sensibilidade. Cabe a eles
o ônus da prova da existência de um significado original na ausência de agentes semióticos. Em geral,
pode se conceber as moléculas ou agregados moleculares como o veículo do signo, as células como o
objeto do signo e o interpretante como o significado que os sinais moleculares têm para o
funcionamento das células. Isso é muito evidente no sistema imunológico, mas pode ser pensado
também para outras relações funcionais: grande parte da atividade biológica é funcional devido ao fato
de que são operações desencadeadas por sinais químicos e mediadas por “interpretações” que definem
o que é e o que não é próprio fazer. Eliminando-se os excessos do pansemioticismo da biossemiótica,
pudemos aceitá-la nos marcos de uma concepção autopoiética da vida, conforme defendida por Varela,
com a vantagem de que ela requer explicitamente uma aceitação da influência do objeto como um dos
termos que determina a interpretação das unidades autopoiéticas, através do acoplamento estrutural
entre sistema perceptivo e comportamental, implicando em que se recorra a teorias que defendam a
natureza triádica dos signos.

26
Saúde-doença são processos que ocorrem em agentes ou populações de agentes no nível
bio/comunal. O agregado típico desse nível é a família. Vimos que os processos sdc são regulados e
normatizados pelos níveis da sociabilidade humana que se sobrepõem numa rede concêntrica de
determinações. Na rede, todos os níveis existem e funcionam simultaneamente e, à medida que nos
afastamos do centro para a periferia – percorrendo sua temporalidade histórico-genética – os níveis
subseqüentes vão subsumindo os antecedentes. Isso indica que podemos estudar qualquer agregado em
qualquer um dos níveis tomando as determinações que “chegam” dos outros níveis como elementos
mediadores da agregação e da dinâmica dos agregados no interior de cada nível. Os níveis são
constituídos de agentes e agregados inteligentes que evoluem co-adaptativamente, ou seja, aprendem a
agir em ambientes que se modificam e são modificados pelo comportamento dos agentes e agregados.
Agentes e agregados sociais se desenvolvem e aprendem, com sua própria experiência, a lidar com a
produção e reprodução das condições de existência da vida. As regulações e normatizações que as
dimensões estabelecem (do centro para a periferia ou da periferia para o centro) são possíveis graças às
propriedades de amplificação e reciclagem dos fluxos de signos que percorrem a rede. Em cada nível
da rede os agentes se agregam por marcação, identificando identidades/diferenças e possibilidades
funcionais de interação. O processo de agregação, ocorrendo ao nível dos agentes, seja entre eles
mesmos ou deles com o ambiente, é um processo de comunicação por meio de signos produzidos por
uma comunidade de conviventes. A possibilidade de produção compartilhada de signos é derivada da
produção individual dos agentes. Seres vivos são agentes semióticos em função do fechamento
organizacional, a auto-referencialidade que os constitui (autopoiesi), do processo normativo e
finalístico da seleção natural (neo-darwinismo) e dos mecanismos de mediação que viabilizam as
relações funcionais intra e inter orgânicas (biossemiótica).
A natureza semiótica dos insumos e produtos com os quais cada nível opera e o fluxo de signos
que agentes e agregados implementam na rede de relações sociais explicam os efeitos de amplificação
por toda a rede das ações localizadas num nível ou num agregado, através da capacidade que eles têm
de reciclar a informação que chega. Isso nos permite propor que se conceba a saúde como um
“processo social de produção das valorizações e regulações que, perpassando as diferentes
dimensões da sociabilidade humana, controlam os processos de reprodução da vida” (Samaja, 2001)
no sentido de torná-la mais duradoura e feliz. O destaque dado ao aspecto semiótico dos
acoplamentos estruturais e sociais dos seres vivos exigiu que se explicitasse mais claramente a
concepção de vida que sustenta essa tese. No próximo capítulo apontaremos como é possível, em meio
a tantas determinações, ressaltar o papel dos agentes semióticos na produção do processo social que

27
produz as valorizações e regulações – do tipo viver mais e melhor – que controlam a reprodução da
vida.

CAPITULO II

O papel dos agentes semióticos na produção social das


valorizações e regulações que controlam a vida.

Como vimos no Capítulo I, tornou-se politicamente conveniente e cientificamente interessante


incorporar elementos semióticos e culturais na compreensão do fenômeno saúde-doença. Deslocar o
núcleo central das investigações da doença para a saúde e dos modelos de intervenção e prevenção-cura
para promoção e, conseqüentemente, propor modelos explicativos ou compreensivos mais próximos da
complexidade dos processos saúde-doença-cuidados, pode se tornar um movimento com forte
influência orientadora na investigação na área.
O foco na saúde demanda uma abordagem que vá além do reconhecimento dos
constrangimentos irrecusáveis dos processos sdc às regras, normas, valores e hábitos de uma "cultura"
e, portanto, às intervenções e políticas cultura1mente sensíveis, procurando formular políticas e acionar
intervenções que considerem a sensibilidade que devem ter as "culturas" que essas políticas expressam
frente à dinâmica das relações sociais que, no final das contas, elas pretendem influenciar.

2.1. O enfoque antropológico: as determinações culturais.


A natureza semiótica dos fenômenos ligados ao sistema de cuidados com saúde-doença impôs
respostas teóricas e metodológicas dadas pela Epidemiologia e pela Antropologia Médica,
particularmente aquelas vertentes que produziram reflexões epistemológicas sistemáticas, fazendo
avançar enormemente a compreensão dos processos sdc. Consolidou-se, definitivamente, a tese de que
os fenômenos do adoecimento e da enfermidade dependem das crenças que socialmente são atribuídas
às mudanças físicas ou comportamentais que se sucedem na trajetória de vida dos indivíduos e grupos
sociais (Kleinman, 1988). Demonstrou-se também, a rica diversidade espacial de padrões de
adoecimento conforme variam as identidades comunitárias, os sistemas de significados compartilhados
e as culturas nacionais ou locais (idem.). Hoje, essas conquistas são quase que um senso comum no
campo da saúde coletiva.
A ênfase na dimensão semântica dos processos sdc permitiu que se explicitasse o lugar da

28
imprevisibilidade na rede de determinações da enfermidade (Good, 1994). As redes semânticas são
uma espécie de ponte que conecta a experiência pessoal da enfermidade ao universo cultural ao qual
pertence o doente (Good e Good, 1980). Entretanto, o conceito de “redes semânticas", como Good
propôs, não focaliza devidamente as disputas existentes na produção e distribuição social dos signos e
significados no interior das estruturas de poder, onde os agentes sociais compartilham politicamente
crenças e práticas de cuidados com a saúde (Young, 1982). Além disso, as redes de significados que
operam na produção dos processos de saúde-doença são delimitadas por condições sociais e culturais
muito concretas e circunscritas à comunidade onde os signos e significados são criados (Bibeau, 1992).
Para Bibeau, é necessário restaurar a “responsabilidade” e a “autonomia” do sujeito na “modelagem da
sua história e dos fatos sociais”, situando-o dentro da ordem coletiva da qual faz parte. “É da interação
entre os processos coletivos e as trajetórias individuais que deveria surgir uma compreensão adequada
das condições em que se desenrolam os principais problemas de um grupo, assim como as estratégias
que se elaboram para enfrentá-los” (Bibeau, 1992, p.16). Os distintos elementos do contexto ecológico,
político, econômico, social e cultural se articulam para formar os “dispositivos patogênicos estruturais”
(...) “a partir dos quais as enfermidades e os problemas se desenvolvem” (id., ib., p. 18).
Assim, o sistema de signos, significados e práticas de saúde produzido pelos indivíduos a partir
da sua experiência com a doença – que ocorre, invariavelmente, no interior de dinâmicas sociais mais
amplas e em meio aos valores culturais do grupo – expressaria a definição e o reconhecimento dos
casos epidemiológicos, devendo ser tomado como "categorizações fragmentadas, contraditórias,
parcialmente compartilhadas e construídas localmente, organizadas em múltiplos sistemas semânticos
(populares e científicos) e praxiológicos (estruturados em práticas), historicamente contextualizados e
acessíveis somente através de situações concretas – eventos, narrativas e comportamentos” (Almeida
Filho, 1999, mimeografado). Com essa afirmação, a clarividência clínica é posta em suspensão e o
reconhecimento do caso torna-se obscuro, apenas para ser imediatamente elucidado quando o caso é re-
localizado numa rede ou “cadeias de causalidade ou relações de produção de risco” (Almeida Filho,
2000, p. 296) A trilha aberta pelo enfoque semiótico de alguns estudiosos da Antropologia pode armar a
Epidemiologia para o confronto com aquilo que é o “ponto cego” do campo dos estudos e práticas com
a saúde coletiva, o conceito de saúde (id., ib.).
O reconhecimento da complexidade dos fenômenos sdc provoca os pesquisadores/teóricos a
formular modelos sintéticos que tornem funcionalmente compatíveis os diferentes níveis de
determinação da saúde-doença, incentiva os planejadores a formularem políticas mais ativas e
participativas e se espera que as pessoas comuns compreendam e ajam sobre a multiplicidade de fatores
e de decisões que influenciam seu estado de saúde. Politicamente, como já vimos, a saúde para todos
29
foi posta na agenda dos governantes em escala mundial como uma forma de expressão eufórica da
suposta supremacia da técnica e da democracia capitalistas, e mais pragmaticamente, como uma
manobra visando mobilizar intensamente setores não governamentais para o empenho nos cuidados
com a doença com vistas a obter alguma eficiência frente à redução acentuada dos gastos públicos com
saúde. Outro fator fundamental que levou a saúde a ocupar a cena da política mundial foi a propagação
de doenças cuja prevenção ou cura são altamente dependentes das respostas das populações, dos seus
modos de vida, da possibilidade de se mudar crenças e hábitos, da adesão a programas educativos, o
que favorece os intercâmbios teóricos e metodológicos entre as disciplinas tradicionais do campo da
saúde coletiva, além de explicitar as barreiras ainda existentes (Menéndez, 1998). De qualquer forma,
apela-se para a iniciativa das pessoas, para suas responsabilidades pessoais ou comunais, para algum
tipo de “poder popular”, enfim, para que focalizem ou promovam mudanças.
Entretanto, ao identificar que a complexidade dos processos sdc deve-se, parcialmente, às suas
determinações semióticas, alguns dos principais estudos transculturais conduzidos pela Antropologia
Médica acentuaram a natureza relativamente estável da cultura e os constrangimentos inapeláveis que
ela impõe à formação do ser humano (função ontológica) e às suas possibilidades de conhecimento
(função epistemológica). Neste sentido, se afirma que a cultura "modula a vida, define a visão de
mundo, fornece os significados às experiências pessoais e coletivas, estrutura a forma pela qual as
pessoas localizam-se dentro do mundo, percebem o mundo e comportam-se nele" (Corin, 1995, p. 273,
grifos meus). "Cada comunidade constrói sua própria individualidade em torno de algumas
experiências comunais fundadoras, ou experiência organizadora, que modela a arquitetura e a
morfologia da sociocultura. A experiência organizadora tem uma função mediadora, manifestando a
influência das condições sócio-históricas e a persistência de significados e valores, enquanto mantém a
individualidade sociocultural do grupo" (id., ib., p. 298).
Bibeau (1992) acentua que os dispositivos patogênicos estruturais operam através das restrições
‘impostas” pelas dimensões da sociabilidade humana aos agentes e agregados, cujos efeitos são o de
“modelar sua cultura a partir do exterior” na forma de “condições estruturantes”. Além disso, cada
grupo ou comunidade possui um “projeto fundador” e um universo sócio-simbólico dos quais se
destacam os “elementos maiores” para formarem, conjuntamente, a “experiência organizadora
coletiva” responsável pela manutenção da “identidade do grupo” ou comunidade, bem como de seu
“sistema de valores e sua organização social” ao longo do tempo” (Bibeau, p. 18). Esse modelo explica,
por exemplo, porque certos comportamentos de risco são tão enraizados numa comunidade ou porque
numa situação de mudança social onde há perda de identidade cultural, como a que vivem os
imigrantes, se produzem altos índices de suicídio entre jovens de sexo masculino e de violência intra-
30
familiar (Corin, 1995). Hipoteticamente, no primeiro caso, um médico criado numa família de
fumantes fuma diariamente uma carteira de cigarros apesar de saber dos riscos que corre, porque
compartilha signos, significados e práticas de uma comunidade de fumantes da qual fazem parte sua
família e, virtualmente, todos os amantes do tabaco, como ele. No segundo, a perda da identidade
grupal é que vai ser a fonte causal de comportamentos de risco de adoecer ou de morrer. A perda de
identidade cultural é sintomática e produz, ela mesma, quadros depressivos e agressivos. Portanto,
focalizar a estabilidade da cultura é fundamental para a heurística do modelo, cuja meta é explicar a
doença.
Numa versão mais radical, Hahn (1995) afirma que “os efeitos socioculturais (sobre a doença e
a saúde) são causais no mesmo sentido em que as toxinas, os vírus e bactérias patogênicas o são”
(idem, p. 76). Aceitando a existência de explicações menos enfáticas quanto à causalidade da cultura
sobre os quadros clínicos de adoecimento, Hahn expressa uma posição que, de uma forma ou de outra,
está presente nos estudos que atribuem à cultura um papel destacado na determinação do adoecimento.
A inclusão da cultura como fator causal de doenças é facilitada pela tese da prioridade causal
para a cultura na determinação do comportamento humano, de um lado, e pela tese de que a doença é
determinada por unidades causais objetivas e precisas, de outro. Quanto mais discretas forem essas
unidades, melhor para a teoria e para o pesquisador. Ao combater o biologicismo das explicações
tradicionais sobre a causalidade das doenças, as teorias que incluem os fatores sociais e culturais não
mudaram suficientemente o enfoque epistemológico: os aspectos prescritivos do campo predominam
sobre as necessidades explicativas. Doenças devem ser entendidas para serem curadas; a cura exige
determinação precisa das causas deletérias a serem removidas.
A inclusão da cultura, para ser legitimada, precisa estar a serviço dos processos normativos da
cura, cujo ideal de causalidade sobre o adoecimento deve ser o mais preciso possível. Daí ser comum
ver a face estável da cultura como uma necessidade para a saúde das pessoas e desejar que essa
estabilidade explique a estabilidade dos comportamentos dos agentes e seus agregados. Aquilo que é
mais importante passa a ser quase que exclusivo. Pode se pensar na cultura como um programa que
especifica comportamentos e que as idéias de uma dada comunidade ou grupo social funcionam como
causadores/curadores de processos de adoecimento desta comunidade. Tomando a fonte causal cultural
como efeito de um Programa, lança-se mão de uma metáfora suficientemente poderosa a ponto de
fornecer ao fator causal toda a estabilidade e claridade que ele deve ter. Socialmente determinada pelas
necessidades prescritivas da cura, a causalidade cultural não pode ser um fator obscuro, fonte de
confusão e ineficiência. A sua inclusão visa a aumentar a eficiência das intervenções, dos programas de
saúde, dos processos curativos em geral. Se em determinadas comunidades as pessoas adoecem de
31
AIDS, os comportamentos e crenças que podem se tornar fonte de risco ou de cura podem ser
escrutinados e especificados num determinado ponto do tempo como parte de uma estrutura estável e
duradoura. Os fatores culturais devem ter um modo de ação mais ou menos semelhante aos dos fatores
biológicos: os efeitos podem ser especificados e previstos em unidades de tempo posteriores ou devem
ser logicamente explicáveis em unidades de tempo anteriores. Assim, se existe, numa comunidade
qualquer, um conjunto de crenças que levam as pessoas a fumarem, aumentando o risco de contraírem
câncer do pulmão, cabe à pesquisa encontrar esse conjunto de crenças e demonstrar que elas são
suficientemente estáveis, que elas constituem a unidade cultural dessa comunidade, o que permitirá
prever que, enquanto predominar este “programa”, as pessoas continuarão a fumar. As intervenções
curativas deveriam, logicamente, se dirigir ao programa, tentando modificá-lo.
Para Kleinman, nossas idéias sobre como entender ou tratar uma enfermidade são organizadas
por formas padronizadas de “aprender a pensar sobre e agir em nossos mundos”, formas essas, “que
replicam a estrutura social destes mundos” (Kleinman, 1988, p.5). Quando o “idioma” de uma
enfermidade se cristaliza, após um processo complexo de negociação entre os diferentes idiomas
trazidos pelos envolvidos num processo de enfermidade (pacientes, famílias e profissionais de saúde,
por exemplo), espera-se que o idioma determine como as pessoas irão pensar e agir frente àquela
enfermidade. Por exemplo, em algumas comunidades indianas a enfermidade é expressada em termos
de “pureza” e “poluição”, dois princípios opositivos que estruturam a hierarquia social daquelas
comunidades (idem, p. 14). Na China, os princípios opositivos yin/yang constituem tanto a díade
opositiva corpo/self quanto as díades indivíduo/sociedade e sociedade/natureza, integrando
dialeticamente as emoções com os elementos corporais, “que por sua vez, se correlacionam com o
clima, o tempo e o ambiente físico e a ordem sócio-política” (idem, p. 12).
As crenças e comportamentos em saúde que as pessoas e os grupos manifestam, em todos os
exemplos anteriores, são determinados por entidades ou processos que agem sobre eles. O poder de
causação destas entidades ou processos varia de acordo com as metáforas adotadas pelas diferentes
perspectivas teóricas – com a metáfora da “construção” a “realidade construída socialmente produz o
sentido da experiência” com a saúde e a doença; com a metáfora da “mediação” a cultura determina os
processos sdc “guiando o comportamento dos membros da sociedade, distribuindo-os no tempo, espaço
e atividades”; e com a metáfora da “produção” as “relações e crenças culturais podem ser patogênicas
ou terapêuticas independentemente do fato de que elas comandem o que os membros de uma sociedade
fazem” (Hahn, 1995 p. 78-80).
Este tipo de concepção sobre a relação entre cultura e comportamento implica em estratégias de
pesquisa que tomam a cultura como uma complexa entidade externa aos agentes humanos, um macro
32
fenômeno que expressa a qualidade da totalidade das características do meio-ambiente social. Implica,
também, em se posicionar em "cima" (a partir de ideologias, paradigmas científicos, etc.) ou de "fora"
(a partir das identidades grupais e comunais), para dar sentido ao que se focaliza "em baixo" - no nível
micro social (indivíduos e famílias) - ou "dentro", no nível dos comportamentos pessoais ou grupais.
As funções ontológicas e epistemológicas da cultura são realçadas na formação dos comportamentos e
crenças pessoais e relativamente pouca atenção é dada ao movimento de (re) construção pessoal e
micro-social, ao surgimento de inovações sobre cuidados com a saúde nas trajetórias de vida de grupos
e pessoas.

Figura 2.1. Funções essenciais da cultura

Meio ambiente natural

Função Nível Macro (Ideologias, Paradigmas, Identidades)


Determinante
(ontológica) Nível Micro (Comportamentos e Crenças Grupais)

Nível Individual (Comportamentos e Crenças Individuais)


(epistemológica)
Função Mediadora

Figura 2.1.Vista de cima para baixo ou de fora para dentro, a cultura primeiro determina o ser e depois suas
possibilidades de conhecimento sobre o mundo social e natural.

Por outro lado, é comum se tomar o tempo como um fenômeno secundário quando se estudam
os processos sdc (Almeida Filho, 1997) Em geral ele é útil apenas para localizar historicamente o
ambiente humano num painel espacial ou temporal de acontecimentos socialmente relevantes, que
fundam e formam o espírito de uma época ou a identidade de uma comunidade10 (Fig 2). Espera-se que
transformações em crenças e comportamentos sobre saúde dependam de mudanças culturais no interior
da comunidade ou instituição que as sustentam que, por sua vez, só ocorrem quando conectadas a
mudanças sociais mais amplas. Uma forma de olhar para a dinâmica dos processos sdc considerando a
continuidade e irreversibilidade do tempo, inclui, nas análises dos grupos e comunidades, as trajetórias
ou percursos/histórias individuais; uma outra focaliza o processo de produção dos signos e significados
na regulação dos agentes e agregados e o processo de produção dos agregados pelas ações semióticas
compartilhadas, típicas dos agentes humanos. A inclusão das histórias pessoais é explicitamente
defendida por Bibeau. Apesar de acentuar que essas histórias individuais são “totalmente indissociáveis

10
Para urna compreensão mais ampla sobre o uso do tempo na Antropologia em geral ver Fabian (1983)

33
das condições coletivas de vida”, elas podem “emancipar-se deste contexto”. Ele cita como exemplo os
resultados das pesquisas que realizou junto a imigrantes e refugiados políticos no Canadá onde
identificou indivíduos com “excelente saúde psicológica” apesar da condição de fragilidade e forte
estresse resultante da perda da identidade cultural anterior (Bibeau, 1992, p. 19-20).
Para grande parte das ciências sociais os homens são artefatos culturais. Geertz demonstrou que
a “Antropologia clássica constrói uma imagem do homem como um modelo, um arquétipo, uma idéia
platônica, ou uma forma aristotélica, em relação à qual os homens reais não são mais do que reflexos,
distorções, aproximações” (Geertz, 1989, p. 63). Costumes, usos, tradições, hábitos, o conjunto
concreto dos comportamentos e crenças humanas, expressariam a determinação de estruturas situadas
para além da vida mundana, no mundo da lógica binária das formas lingüísticas, na estrutura
inconsciente do espírito humano (Levy-Strauss, 1976) ou na realidade profunda da biogênese, na forma
de equivalentes psíquicos das operações vitais, que povoam o mundo subjetivo com entidades
arquetípicas (Jung, 1984). Em ambos os casos, a cultura é a manifestação de forças lógicas ou míticas
que nos constrangem a partir de dentro. Mas desde que esteja lá fora, manifestada, a cultura nos realiza,
nos torna singularmente humanos. Antes disso, existe apenas a lógica das combinações das estruturas
da linguagem, um mundo virtual e algorítmico de possibilidades ilimitadas; ou um mundo virtual de
entidades psico-energéticas, que reproduzem, invariavelmente, os mesmos conteúdos sob as mais
variadas formas.
Mais interessante é a visão da cultura como um texto produzido e compartilhado por uma
comunidade, e que deve ser lido e interpretado continuadamente para que tenha legitimidade e
continuidade na regulação do comportamento do conjunto dos participantes do drama social.
Entretanto, essa concepção, que apela para a semiótica tanto quanto Lévi-Strauss, e que está no centro
da Antropologia Interpretativa, não foi muito desenvolvida neste aspecto (Azzan Junior, 1993).
Primeiro, porque advoga uma visão de que a cultura é essencialmente prescritiva, já que ela é definida
por funções que expressam as necessidades “desesperadas” que os homens têm de aceitar “mecanismos
de controle extra-genéticos, fora da pele, para ordenar seu comportamento” (Geertz, 1989, p. 56).
Supõe que a cultura é um mecanismo criado pela seleção natural para apartar o ser humano do mundo
selvagem e estirpar sua condição animal, garantindo sua sobrevivência de forma sui generis. Mas a
cultura não veio nos salvar nem nos torna especiais e por isso mesmo não lhe devemos nenhuma
obrigação de obediência.
Segundo, porque se amarrou demasiadamente o processo de produção dos signos às funções de
controle e governo do comportamento, o que é uma concepção muita estreita da semiose, além de
obscurecer a ação dos agentes criadores dos controles. Dizer que a “cultura é um conjunto de
34
mecanismos de controle – planos, receitas, regras, instruções (o que os engenheiros de computação
chamam de programas) – para governar o comportamento” (idem, p. 56) é atribuir à cultura uma
estabilidade e precisão que ela não possui e um poder de determinação sobre o comportamento que é
completamente inconveniente para explicar a mudança cultural, a não ser supondo que o programa já
contém as instruções necessárias para alterar seus procedimentos, o que, mais uma vez, neutraliza o
papel da comunidade de agentes semióticos na criação das normas culturais e a luta permanente que
eles travam entre si para controlar o processo de produção dos signos. Dizer que a cultura é uma rede
de significados e que os padrões culturais são construídos como textos, e como tais, devem ser lidos e
interpretados, é uma inovação que, lamentavelmente, re-adquire um sentido tradicional quando
localizada na moldura adaptacionista e prescritiva que Geertz propõe11. Prevalece aqui a tradição de
olhar principalmente para a estabilidade, um critério normativo que induz a se pensar e definir a cultura
por suas funções – destacando apenas as de controle, modulação, governo, formatação, etc, – ou pela
ênfase nos mecanismos de estabilização, tais como, acumulação e transmissão intra e intergeracional12.
E terceiro, porque as análises das formas simbólicas ou dos sistemas culturais que Geertz
realiza, omitem o processo de criação da teia de significados na qual os indivíduos estariam presos e
focaliza principalmente os efeitos funcionais e as dependências estruturais que esses significados
demonstram possuir, e que ele promete não enfatizar em suas interpretações etnográficas. No texto
clássico sobre a briga de galos em Bali, por exemplo, afora o relato minucioso e denso da briga e suas
circunstâncias, as análises se prendem essencialmente a explicitar como a ação efetiva de produzir o
“texto” em praça pública depende e reforça a continuidade de estruturas inconscientes e realiza a
função normativa de mostrar aos balineses o que eles são, permitindo, então, que conservem sua
tradição através da repetição de uma dramatização social (Shankman, 1984). Os galos são “ampliações
da personalidade do seu proprietário, o ego masculino narcisista” e representam a “inversão da

11
Aliás, a proposição da cultura como um programa produzido pela seleção natural para governar o comportamento,
defendida por Geertz (1989, p. 45-100) se aproxima da concepção algorítmica da vida, defendida por Dawkins e Dennett.
Estes últimos afirmam que a cultura é formada de unidades discretas e “egoístas” como os genes, os memes, que criariam
diferentes tipos de mentes e de pessoas para se reproduzirem e ampliarem sua distribuição no tempo e no espaço. Nossos
comportamentos seriam controlados por essas entidades informacionais que existem tanto nos espaços públicos e
institucionais da vida mundana quanto nos espaços virtuais da informação (Dennet, 1998, p. 349-447). Aqui, também se
pode observar a proximidade entre as “instruções” de Geertz e a lógica binária das “estruturas” em Levy-Strauss. Ambas
são de natureza semiótica, a primeira está “lá fora, no pátio, no mercado, na praça da cidade” expressando a semântica e a
pragmática do texto no contexto de suas funções modeladoras e supondo uma estrutura algorítmica, que ele não investiga
nem revela, mas na qual se apóia, para afirmar que a cultura nos cria, nos afastando da condição animal, e a segunda está na
“estrutura inconsciente do espírito humano”, um lugar que não é dentro da pele nem fora dela, situando-se, provavelmente,
no mundo das formas ideais e explicitamente algorítmicas ou sintáticas, se quiserem (Azzan Junior, 1993).
12
Uma revisão do conceito de cultura na Antropologia foge ao escopo desse trabalho. Tradicionalmente, acentuam-se os
aspectos normativos e a estabilidade como sendo altamente funcionais e adaptativos para a vida humana. Recentemente essa
tradição vem sendo contestada e novos modelos são sugeridos. Para uma atualização dessa polêmica ver Keesing (1994), Jo
Watson (1995), Shalins (1997) e Lewis (1999).

35
condição humana: a animalidade”. Estas duas forças, a animalidade e a masculinidade, assim como o
“ego e o id”(...) “fundem-se num drama sangrento de ódio, violência, crueldade e morte”, que é a briga
de galos, agora uma metáfora, um código, que remete a situações comuns de vitória e derrota na vida
cotidiana: “ao identificar-se com seu galo, o homem balinês está se identificando não apenas com seu
eu ideal, ou mesmo com seu pênis, mas também, e ao mesmo tempo, com aquilo que ele mais teme,
odeia e, sendo a ambivalência que é, o que mais o fascina – ‘Os poderes das Trevas” (Geertz, 1989, p.
285-286). Qualquer freudiano concordaria com os termos com os quais Geertz explicita a dimensão
psicológica que subjaz ao jogo social.
Quando vai discutir a lógica das apostas na briga de galos, Geertz expõe, sem maiores
compromissos, a natureza algorítmica do drama social que elas representam, ou seja, a dramatização
social obedece a uma série de procedimentos cuja lógica determina a expressão das intenções dos
atores em cena no jogo. Geertz expõe o conjunto de regras que orientam o comportamento dos
jogadores e a lógica opositiva que gera essas regras (idem, p. 291-299). A lógica das apostas é que
permite o envolvimento dos jogadores e viabiliza a função do jogo de levar os balineses para além do
próprio jogo, “para o reino das preocupações formais, reino amplamente sociológico e sócio-
psicológico” (idem, p. 299). As brigas têm, portanto, funções bem definidas: uma função simbólica,
que é a de expor publicamente o modo de vida e a hierarquia social para a interpretação dos próprios
balineses, tornando-a “compreensível a experiência comum, apresentado-a em termos de objetos e atos
dos quais foram removidas e reduzidas as conseqüências práticas ao nível da simples aparência, onde
seu significado pode ser articulado de forma mais poderosa e percebido com mais exatidão” (idem,
p.310-311); graças a essa transparência, a briga pode desempenhar outra função que é a de revelar os
sentimentos sobre os quais repousa a hierarquia social ao “fornecer um comentário metassocial sobre
todo o tema de distribuir seres humanos em categorias hierárquicas fixas e depois organizar a maior
parte da existência coletiva em torno dessa distribuição” (idem, p. 315-316). A briga de galos é um
texto. A emoção com a qual esse texto é escrito e os sentimentos que ele desperta tem finalidades
cognitivas explícitas: para os balineses sua escritura é uma espécie de educação sentimental sobre o
“ethos de sua cultura”, aprendida num “acontecimento humano paradigmático” (idem, p. 318). Assim,
Geertz lê e interpreta o programa balinês de como ser um balinês “por sobre os ombros daqueles a
quem ele pertence” (idem, p. 321).
A Antropologia Interpretativa, nos termos propostos por Geertz, não conseguiu superar os
limites de uma visão neo-darwinista da cultura, onde a função normativa e a suposta estabilidade que
ela requer predominam, em detrimento de uma compreensão sobre como os seres humanos são capazes
de criar ordem através da desordem e desordenar o que está estabelecido como meio de viabilizar
36
duradouramente interesses individuais e coletivos. Geertz ainda se refere à cultura nos mesmos termos
que seus antecessores, destacando as funções de comando e controle e os mecanismos de
armazenamento, transmissão e perpetuação (Geertz, 1992, p. 101-142). A diferença, importante, é que
ele reconhecerá que culturas são padrões de significados. Entretanto, os produtores e a produção
conflituosa desses padrões ficam na obscuridade. Em Geertz, um agregado social como a religião, por
exemplo, é um sistema de símbolos que atua sobre pessoas para nelas estabelecer disposições e
motivações profundas e duradouras (idem, p. 104-105). Ao invés disso, é mais razoável propor que
num agregado social as pessoas agem com outras para produzir, reproduzir, conservar e modificar suas
próprias relações, segundo um complexo jogo de interesses, regulado por correlações de forças
resultantes das alianças e hegemonias que se formaram no interior desses agregados. Todas essas
operações dependem, em última instância, do fato de que agentes humanos regulam as ações uns dos
outros através da produção de signos para a convivência.

2.2. Enfoque sócio-semiótico: a natureza semiótica das relações cotidianas determinantes.


Como está se enfatizando ao longo dessa dissertação, viver mais e com melhor qualidade
depende da operação conjunta de uma intricada hierarquia de níveis sociais que se co-determinam e se
regulam mutuamente, não cabendo nenhuma prioridade causal para qualquer um dos níveis, quando se
trata de compreender a saúde-doença. Todos os níveis são instituídos e mantidos pela agregação de
agentes semióticos, isto é, pelas ações semióticas que esses agentes compartilham e pelos produtos
semióticos que eles fazem circular – suas crenças e comportamentos. Por outro lado, todos os níveis
são co-existentes no tempo e no espaço. Atualmente, não há uma só comunidade de humanos que não
esteja envolvida, direta ou indiretamente, pela rede da sociabilidade desenvolvida pelas relações sociais
capitalistas, isto é, que não participe de alguma forma das relações que realizam as necessidades
humanas através do trabalho assalariado e da produção de mercadorias. As interações entre os diversos
determinantes dos processos sdc indicam uma prioridade causal para as relações sociais - e não para os
mecanismos de regulação e normatização que essas relações produzem - com ênfase na natureza
semiótica dessas relações, enquanto produtos dos agentes e insumos para a sua ação.
A idéia de que os processos sdc estão enredados numa teia de relações sociais e semióticas não
é estranha ao campo da saúde coletiva. Para Bibeau e Corin, por exemplo, os sistemas de signos,
significados e práticas e as formas de organização social “se expressam como efeito de ligações e
conexões que formam mapas, redes e diagramas” (Corin e Bibeau, apud Bibeau.1992, p. 29), assim
como para Samaja (2000). Porém, diferentemente de Samaja, eles estabelecem uma hierarquia mais
rígida e menos dialética entre os níveis e nós da rede: “os valores culturais e os sistemas de pensamento
37
que caracterizam uma região ou uma sociedade são de qualquer maneira prisioneiros da ordem social
no interior da qual eles se constituíram historicamente” (Bibeau, 1992, p. 21). As condições
estruturantes definem os marcos nos quais se realiza a experiência organizadora coletiva que, por sua
vez, determina a dinâmica social e cultural e o sistema de signos, significados e práticas (que também é
determinado pela dinâmica sócio-cultural). Assim articulados, eles põem em ação dispositivos que
produzirão situações de risco e adoecimento duradouras ao longo do tempo de vida de uma
comunidade. Na América Latina, por exemplo, existe um dispositivo patogênico deste tipo atuando
desde o período colonial: a violência e a desigualdade13.
Se a idéia de rede ganha contornos mais refinados e complexos (Almeida Filho, 2000), a de
prevalência causal para as relações sociais cotidianas é mais problemática. A tendência é subsumir estas
relações no interior dos agregados ou dos níveis e reificar as instituições e fenômenos globais,
eliminando os efeitos causais que essas relações tem sobre tais entidades e processos. A tentação de
reificação da cultura como uma coisa, uma entidade complexa que nos define ontologicamente e
estabelece os limites de nossa compreensão do mundo é reforçada pelo antinaturalismo hermenêutico
que imagina a realidade social como essencialmente conceitualizada e lingüística, dotada, portanto, de
um caráter especialmente distinto da natureza. Vimos, no capítulo I, que o fenômeno semiótico e
interpretativo está longe de ser um atributo exclusivamente humano situando-se no âmago da vida,
segundo qualquer uma das definições científicas de vida propostas pela biologia atual.14 A insistência
na validade de abordagens compreensivas e interpretativas para os fenômenos sociais é consistente em
função de que os modelos matemáticos são completamente insuficientes para apreender como ocorrem
as mudanças nos processos sociais. A ênfase que defendemos para entender a natureza
desenvolvimental dos fenômenos humanos implica em colocar e aprimorar o foco na produção de
significados realizada por agentes semióticos em interação convivial.

13
Em certo sentido o conceito de dispositivo estrutural é semelhante ao de atrator social proposto por Albrecht, Freeman e
Higginbotham (1998). Para eles, os processos sociais comportam a ação de macro tendências que fornecem ao sistema
social uma ordem emergente em diferentes momentos históricos do seu desenvolvimento. Essas tendências são descritas em
termos de comportamentos e crenças e constituem uma espécie de visão de mundo (experiência organizadora coletiva?) que
uma comunidade compartilha. Essa visão de mundo compartilhada recebe a influencia de fatores externos (condições
estruturantes?). Entretanto, correlacionado às influencias externas, pode haver – e sempre haverá – muitas visões de mundo
num mesmo grupo ou comunidade, já que cada comunidade está dividida em uma enorme quantidade de agregados sociais
que foram formados por processos de marcação distintos. Há diferenças entre os gêneros, classes, idades, profissões,
instrução, dinâmica familiar, experiência pessoal, vida afetiva... etc. Não há espaço para dispositivos tão rígidos quanto os
propostos por Bibeau. O atrator social é relativamente duradouro, mas depende simultaneamente do passado, das
contingências do presente e das expectativas quanto ao futuro.
14
Os estudos sobre cognição animal avançaram enormemente nos últimos anos. Particularmente, a inteligência dos primatas
não humanos vem sendo pacientemente escrutinada, sobretudo o conteúdo informacional e funcional das suas vocalizações
e gestos (Hauser, 2000). Segundo Tomasello (1998), o que fundamentalmente distingue a cognição humana da de outros
primatas é o fato de que todos os nossos artefatos materiais e simbólicos, dos computadores à linguagem, são produtos do
trabalho coletivo de muitas pessoas combinando e acumulando instrumentos e conhecimento.

38
Contudo, as tendências hermenêuticas não se afastam completamente do positivismo que
pretendem combater, na medida em que a suposição de uma distinção clara e irreconciliável entre
“explicação causal e entendimento interpretativo”, fundamentada no contraste entre o “mundo
fenomenal da natureza e o mundo inteligível da liberdade” (Bhaskar, 1986, p.120), não se realiza
necessariamente. Weber, por exemplo, reconhece que estamos presos a uma teia de significados que
nós mesmos produzimos, mas sua inclinação positivista levou a tentar solucionar o aparente paradoxo
acima supondo que as ações dos agentes humanos teriam que ser entendidas como essencialmente
racionais Agentes sociais compreendem as regras que produzem e podem obter o máximo de
informação sobre elas para orientar suas escolhas cotidianas para diferentes fins e valores (Weber,
1982). O comportamento de agentes racionais pode ser escrutinado e detalhado, sobretudo quando
predomina socialmente uma racionalidade formal e técnica que objetiva a calculabilidade máxima da
vida social (idem).
Enquanto o modelo weberiano enfatiza o papel do agente social racional na determinação da
sociedade, sua cultura e instituições, destacando que a realidade social é governada por regras, o
modelo durkheimiano, francamente positivista, reifica a sociedade como uma totalidade orgânica, cujas
propriedades, ou fatos sociais – que devem ser submetidos aos mesmos tipos de procedimentos
escrutinadores das ciências naturais – produzem, invariavelmente, indivíduos agrupados numa mesma
classe, com os mesmos hábitos e disposições para agir (Durkheim, 1982). Segundo Bhaskar (1996),
“na tradição weberiana, os produtos sociais são vistos como resultados do (ou constituídos pelo)
comportamento intencional ou significativo” (...) enquanto que “na tradição durkheimiana os produtos
sociais são considerados detentores de vida própria, externos em relação ao individuo e coercivos para
este” (idem, p. 516).
Neste aspecto, a tese central no nosso trabalho representa outra alternativa e está, originalmente,
referenciada em Marx, particularmente no conceito de “metabolismo social”. Marx concebe a relação
homem/mundo inevitavelmente mediada pelas relações sociais entre os homens e chama esse processo
de “metabolismo social” (Foster, 1999). Por metabolismo social se deve entender os processos causais
bidirecionais entre as transformações que a sociedade humana realiza sobre a natureza (através do
trabalho) e as modificações nas formas das relações sociais que sustentam sua atividade no mundo.
“Acima de tudo, o trabalho é um processo entre o Homem e a Natureza, um processo em que o homem,
por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a Natureza (...) Ao atuar, por meio
desse movimento, sobre a Natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua
própria natureza” (Marx, 1985, p. 149).

39
Quando insistimos na natureza semiótica da vida social, estamos concordando com a posição
weberiana/hermenêutica de que a atividade social é regulada por regras e que essas regras são o
produto de atividades significativas, mas fazemos imediatamente a ressalva de que essas regulações são
apenas uma das formas da relação de comunicação entre os agentes semióticos. A semiose (como
veremos em seguida) não produz apenas e tão somente regras e regulações, mas igualmente
transformações e desordem.
Quando insistimos que a cultura e outros estados estruturados de significados são propriedades
emergentes de agregados sociais e que esses agregados se articulam numa estrutura funcional, que
denominamos de rede da sociabilidade humana, estamos concordando com os durkheimianos e
funcionalistas quanto às suas proposições de que a sociedade determina o comportamento e as crenças
das pessoas, mas ressaltamos uma oposição frontal ao afirmar que as estruturas sociais ou as
propriedades estruturais da sociedade, como a cultura, por exemplo, têm efeitos causais sobre as ações
humanas “simplesmente porque são produzidas e reproduzidas nas ações cotidianas”. “Todas as
coações sociais só são coações em função dos motivos ou interesses que possam ter os atores”
(Giddens, 2000, p. 66-67). Ainda de acordo com Giddens, a produção de signos, não é determinada,
simplesmente, pelo uso de outros signos, como acreditam muitos, mas pelo “processo de usar palavras
e frases nos contextos de conduta social. A significação não é construída pelo jogo dos significantes,
mas pela intersecção da produção de significantes com objetos e eventos do mundo, enfocados e
organizados pelo agente” (Giddens, 1999, p.300). Para Giddens, os padrões e as propriedades
apresentadas pelos agregados sociais não são realidades transcendentais ou situadas acima ou fora das
ações dos agentes, ao contrário, elas existem apenas enquanto práticas rotinizadas.
Independentemente de Giddens, Roy Bhaskar (1986) propõe uma concepção da relação
cultura/indivíduo ou, mais amplamente, do indivíduo/sociedade, sintetizada no que ele denomina de
Modelo Transformativo da Atividade Social (TMSA). Para ele, “a sociedade é a condição e o resultado
da mediação humana, e a mediação humana produz, reproduz e transforma a sociedade” (Bhaskar,
1996, p. 516), configurando uma dualidade estrutural, ou uma causalidade bidirecional. Seguindo
Marx, defendemos que a mediação humana se viabiliza através dos diferentes tipos e modos de relação
social, e seguindo Piaget, Maturana e Varela, defendemos que a relação social é definida por uma
propriedade básica e universal dos seres humanos: agentes produtores de signos comunicam-se em
função da dependência estrutural que cada ser humano tem do convívio com outros. Comunicar-se é
acoplar-se estruturalmente a outros.
O modelo de Bhaskar contrasta com a perspectiva hermenêutica quando admite que “as
explicações dos atores são corrigíveis e limitadas pela existência de condições irreconhecidas,
40
conseqüências não-premeditadas, habilidades tácitas e motivações inconscientes” (idem p. 516). Isso
significa que num certo nível da sociabilidade humana, o bio-comunal, por exemplo, os agentes em
convívio familiar nem sempre podem discriminar claramente os insumos originários dos outros níveis.
Os agentes não agem apenas com base na racionalidade substantiva ou técnica, como diria Weber, ou
computacional, como diria Dennett. O processo de produção de signos envolve um conjunto de
operações sensoriais e afetivas embebidas no corpo como um todo, cujos resultados muitas vezes são
significações brutas, icônicas, que se comunicam através de sentimentos e expressões textuais
imprecisas, mas profundamente enraizadas na corporeidade socialmente compartilhada através do
acoplamento entre os agentes semióticos (Valsiner, 1998).
Confrontando-se com o positivismo, Bhaskar afirma que o “indispensável ponto de partida da
investigação social são as exposições dos atores” no contexto mais amplo da sócio-cultura. Aqui, mais
do que uma regra metodológica se afirma as possibilidades e os limites da autonomia dos indivíduos.
Outra vez, seguindo Maturana e Varela, reafirmamos que os seres vivos são unidades material e
energeticamente abertas ao ambiente – eventos ambientais podem causar mudanças nos organismos –
e organizacionalmente fechadas – eventos ambientais podem apenas desencadear processos autônoma
e recursivamente definidos pelo próprio organismo. Do ponto de vista energético e material o mundo é
uma extensão do corpo humano, uma espécie de corpo inorgânico do homem. Mas, do ponto de vista
organizacional, o mundo é uma construção semiótica do organismo humano acoplado a seu ambiente e
a outros seres humanos, em sua ação efetiva, material e energeticamente aberta: o mundo é socialmente
metabolizado. Os agentes humanos aparecem numa cena social já dada, mas que eles precisam
continuamente reproduzir para ser conservada ou que podem (e muitas vezes devem) persistentemente
contestar para que possam modificá-la.
“A caracterização da estrutura ontológica da atividade humana como essencialmente
transformativa ou poiética”, consiste em afirmar que “a transformação de causas materiais (naturais e
sociais) pré-estabelecidas”, se faz “pela atividade intencional eficiente” do agente. “É válido propor
eficiência causal para os eventos sociais, pois o social existe e persiste apenas em virtude da atividade
humana” (Bhaskar, 1986, p. 122). O modelo transformativo, portanto, acentua o “caráter recursivo da
vida social” “uma vez que os agentes reproduzem e transformam as próprias estruturas que utilizam (e
pelas quais são coagidos) em suas atividades substantivas”. Ora, o processo em que, reprodução e
transformação se processam pela intermediação das estruturas que estão sendo reproduzidas e
transformadas, é exatamente o processo geral de produção da vida social. Neste sentido, a produção da
vida social é antes de tudo um modo de produzir a poiesis dinâmica das relações conviviais que
agregam os agentes humanos. A atividade humana é um processo de produção da vida que reproduz
41
suas condições de produção, incluindo entre elas, regras, normas, contratos, leis, hábitos, costumes,
enfim, todo tipo de crenças e comportamentos necessários para a continuidade da produção da vida e
das condições de sua continuidade autoprodutiva.
Resumidamente, pode se dizer que as propriedades estruturais dos agregados sociais dependem
das atividades que eles determinam ou constrangem, das crenças que justificam as ações dos agentes
participantes das atividades, da distribuição no tempo e no espaço da atividade social na qual o agente
toma parte, e das relações sociais propriamente ditas, enquanto posições e práticas efetivamente
ocupadas e realizadas pelos agentes (Bhaskar, 1986, p. 130-131). É interessante notar que as
atividades, as crenças, a distribuição espaço-temporal das atividades e as relações sociais são aspectos
distintos e co-determinantes das propriedades dos agregados. As propriedades dos agregados,
entretanto, não são nada mais do que relações sociais emergentes, organizadas de tal forma, que podem
funcionar como agentes para um novo agregado mais complexo e hierarquicamente acoplado ao
anterior. A afirmação de que qualquer evento social, visto como estrutura ou como processo, é um
efeito das relações sociais (comunicacionais) entre agentes intencionais (semióticos), tem algumas
implicações teóricas e metodológicas. A primeira delas é reconhecer a recursividade da vida social. A
segunda é entender que os quatro aspectos apontados acima são co-dependentes entre si, ou seja, o
processo social como um todo é autoprodutivo.
Como os agentes são organizacionalmente fechados, eles especificam um mundo no mundo do
qual fazem parte. Os eventos do mundo não são coisas em si mesmas, e sim coisas para um sistema
integrado de percepção/ação. São coisas convertidas em propriedades, formas, estruturas, leis e outros
signos. São essas coisas, fruto das nossas relações com o mundo, que constituem a especificação de
uma realidade humanamente objetiva dentro de um mundo de possibilidades abertas para todas as
sensibilidades viventes. Por outro lado, os agentes estão acoplados estruturalmente a outros agentes. Os
agentes humanos, e outros agentes sociais, não têm como especificar um mundo, sozinhos: eles são
dependentes da relação social. Além disso, a relação social só é possível graças às suas propriedades
comunicacionais; agentes só podem se comunicar se produzirem e interpretarem signos. A dependência
de atividade, de conceito e de relação (idem) implica que agregados de agentes semióticos
organizacionalmente fechados sejam intrinsecamente abertos. Os agentes são sistemas
organizacionalmente fechados, enquanto que os agregados são sistemas abertos em todos os aspectos
decisivos.
Sendo assim, temos dois imperativos metodológicos a seguir:
A) Definir de forma operacional as condições limite para a existência e a dinâmica
transformativa de um agregado social qualquer. Sem a definição clara dessas
42
condições, um agregado familiar, por exemplo, não pode ser estudado nem como
uma organização, nem como uma estrutura e nem mesmo como um sistema;
B) Aceitar, em principio, que não se podem produzir, com os agregados sociais,
situações de teste decisivas, “requerendo confiança em critérios exclusivamente
explicativos para a avaliação racional da teoria” (Bhaskar, 1996, p. 516).
Como os agregados são formados pelas ações dos agentes15 e os agentes são orientados pelas
regulações dos agregados que eles reproduzem/transformam ao agirem cotidianamente, a explicação de
um fenômeno socialmente determinado, exige:
C) Descrever a organização e a estrutura dos agregados e das trajetórias de
desenvolvimento dos agentes.
D) Descrever quais os insumos que os agentes disponibilizam para a produção
cotidiana do agregado e quais os produtos ou propriedades agregadas que eles
criam coletivamente.
Para o caso especifico da produção dos processos sdc, devem ser formuladas as seguintes
complementações. Processos de saúde e doença ocorrem em indivíduos (agentes). O fato de que eles
possam ser agrupados por condição de risco ou por sintomatologia não elimina a condição anterior. Os
processos sdc estão situados numa rede complexa de causação que entrelaça todas as dimensões da
sociabilidade humana. Para este caso, pudemos conceber a rede como uma estrutura concêntrica, na
qual um nível vai subsumindo os outros à medida que a rede é tecida do centro para a periferia. Já
vimos que isso implica em conceber a saúde-doença como o processo de produção do sistema de
cuidados que regula a produção da vida e que acontece no espaço da rede. Como na rede todos os
agregados são sistemas abertos e como todos eles operam com material semiótico, o fluxo de
determinação entre os níveis da rede e entre os agregados é limitado apenas pelas propriedades e
mecanismos dos agentes e dos agregados, de um lado, e pelos mecanismos de circulação das crenças e
dos comportamentos que eles produzem, de outro. Aplicando as essas observações os imperativos
metodológicos anteriores temos o seguinte:
E) Agregados de qualquer nível podem ser estudados tomando as determinações dos
outros níveis ou agregados como insumos do próprio nível, usados na produção de
sua organização e estrutura. Isso implica que,
F) Eventos externos podem causar mudanças, inclusive estruturais, no agregado. Mas,
na qualidade de insumos, eles participam da estruturação do agregado como mais um

15
A titulo de síntese, reafirmamos que as ações dos agentes podem ser genericamente descritas de um ponto de vista
semiótico como marcadoras ou significativas, amplificadoras ou comunicativas e recicladoras ou interpretativas.

43
elemento ou informação que foi assimilada e acomodada a uma estrutura já existente.
Os eventos externos podem participar das mudanças ou conservações internas desde
que eles desencadeiem efeitos sobre o comportamento e as crenças dos agentes.
Como os agentes são organizacionalmente fechados, os efeitos sobre eles dependem
das construções semióticas que realizam e que mediam sua percepção/ação, não
sendo, portanto, claramente previsíveis. Os resultados das suas interações se tornam,
obviamente, dependentes dessa imprevisibilidade16. Por isso, modelos explicativos
para os processos sdc devem adotar os procedimentos A, C e D como uma forma de
reduzir a imprevisibilidade em princípio explicitada em B e reforçada em F.

Além dos imperativos metodológicos explicitados acima, existem algumas demandas teóricas
para serem esclarecidas. Elas se referem a como se deve conceber as relações semióticas que regulam
os processos de saúde-doença. Este tema será desenvolvido no próximo capítulo, mas algumas
delimitações epistemológicas são necessárias:
G) A produção de crenças – atributo dos agentes socialmente acoplados – ocorre através
de atividades compartilhadas, distribuídas no espaço e no tempo, nas quais os agentes
ocupam posições diferentes e se envolvem em práticas específicas. Signos não se
produzem, são produzidos e, enquanto produtos, são distribuídos, trocados e
consumidos segundo o valor que eles adquirem no curso do processo social do qual
fazem parte como uma de suas determinações ontológicas. Conceitos, pensamentos,
idéias, crenças e comportamentos sobre saúde e doença são coisas que existem
previamente, mas foram criadas nas práticas de produção de significado e ações de
uma comunidade particular, e nelas, ou em outra qualquer que circulem, devem ser,
pelo mesmo mecanismo, reproduzidas continuadamente.
H) O processo de produção de signos é um processo que coordena ações entre agentes.
Toda vez que há ações coordenadas entre agentes, dizemos que eles se comunicam.
I) Metodologicamente, o que foi dito nos itens G e H, implica que devemos centrar o
foco da análise na semiose e não na lógica interna à dinâmica dos signos, nas regras
ou procedimentos indutivos, dedutivos ou abdutivos que os agentes usam para

16
Apesar dos processos neuropsicológicos e outros processos corporais participarem diretamente da produção social dos
signos, eles não causam essa produção, e por isso não é possível uma redução explicativa dos últimos aos primeiros
(Bhaskar, 1979). Mas eles estão na base da relativa imprevisibilidade dos processos sociais, que nesta visão, dependem
tanto da multicausalidade e dos efeitos amplificadores, não lineares, dos eventos sociais, quanto da natureza autoreferencial
da produção semiótica dos agentes. A autoreferencialidade é uma propriedade co-extensiva às dimensões social e biológica
(Varela, 1992, p. 5-14).

44
produzí-los. Nos interessa saber, principalmente, como crenças coordenam
comportamentos, quais padrões de interação entre os agentes estão determinando a
produção de uma certa classe de crenças e não outras, de que modo as atividades
compartilhadas são coordenadas, e se existem estruturas e mecanismos coletivos
operando essa coordenação.
J) A validade do argumento semiótico no entendimento dos processos sdc depende,
portanto, de se demonstrar que (a) o processo social de produção da vida pode ser
descrito e explicado como um processo de produção de signos e (b) o processo
semiótico de acoplamento estrutural dos seres humanos a seu meio natural e social
pode ser explicado a partir de uma fenomenologia da percepção.

CAPITULO III

45
A semiose do agente e dos agregados sociais: O lugar do
cuidado na produção da saúde-doença.

Nos capítulos anteriores apresentamos a idéia de que o acoplamento estrutural entre indivíduos
ocorre em função da natureza semiótica da relação social. Agentes semióticos produzem, distribuem,
trocam e “consomem” signos, construindo a rede da sociabilidade humana. Este processo cria as
regulações – sejam elas conservacionistas ou transformativas – necessárias à produção e reprodução da
vida, e entre elas está a produção do sistema de cuidados com a saúde-doença. Ou seja, o sistema de
cuidados com a saúde-doença se distribui em todos os níveis da rede e nela exerce a função de mediar
as intervenções dos agentes direcionadas para garantir a continuidade da autoprodução da vida. Pode se
propor que as condições de saúde-doença de qualquer população sejam definidas pelo sistema de
cuidados que ela mobiliza, o que indicará uma relação semiótica.
Para demonstrar que pode ser epistemologicamente interessante e heuristicamente produtivo
estudar os processos sociais de um ponto de vista semiótico toma-se emprestado de Humberto Eco uma
estratégia argumentativa simples: se for possível explicar os fenômenos básicos, “formadores de toda a
cultura”, de um ponto de vista semiótico, então os fenômenos sociais em geral poderiam ser estudados
dessa mesma perspectiva. Para ele são três os fenômenos elementares da cultura cujo estudo definiria o
que ele chamou de umbral superior, referindo-se às fronteiras da semiótica enquanto disciplina
científica: a produção e uso de instrumentos, a troca de bens e as relações familiares17. Entretanto, o
signo, que se realiza enquanto tal, no diálogo e no convívio social, está enraizado na atividade
biológica dos agentes humanos. Um percurso breve por esses temas enfatizará os conceitos
fundamentais com os quais se irá focalizar, no próximo capítulo, as relações familiares. Ficará claro,
então, que a legitimidade da semiótica para o estudo dos fenômenos sociais é extensiva ao estudo da
produção dos processos sdc.

3.1. A semiose do agente: percepção – ação – comunicação para viver.


A tese inicial da qual partimos é a de que os agentes humanos (e qualquer unidade viva) são
agentes semióticos num sentido ontológico. Sua inserção no mundo se dá por intermédio de suas
relações sociais. Essas relações são comunicativas, ou seja, são ações (cooperativas ou competitivas)
coordenadas entre os agentes. Por sua vez, ações comunicativas dependem da produção, distribuição,
troca e uso dos signos. Mas, então como se explica a produção de signos pelos seres humanos? Por que
17
O lugar da produção dos bens materiais e imateriais na construção da rede da sociabilidade humana é central. Samaja o
chama de “plano primordial de reprodução dos processos sociais” se referindo à reprodução das relações de produção como
o meio pelo qual se reproduz a própria sociedade (Samaja, 2000, p. 72).

46
eles só podem se relacionar com o mundo por meio de instrumentos de mediação, sejam eles
lingüísticos (verbais e não verbais) ou materiais? Porque são sistemas organizacionalmente fechados.
Um sistema organizacionalmente fechado obedece à dinâmica de sua estrutura. As relações
estruturais do sistema é que delimitam as conservações e mudanças possíveis no “corpo” e no
comportamento do sistema. Num sistema desse tipo, as mudanças ambientais perturbam,
desequilibram, desencadeiam, mas não causam diretamente no organismo as conseqüências dessa
interação. Fechado em torno de sua própria organização, o organismo “responde” ao meio dentro das
suas possibilidades estruturais iniciais ou nos limites de sua história de mudanças estruturais. Se não
fosse assim, um ser vivo não poderia existir como uma “máquina” que produz a si mesmo. Faltaria,
para a operação coerente do maquinismo autopoiético, os critérios de identidade (organização, estrutura
e fronteira física com o ambiente) que permitem ao ser vivo acoplar-se dinamicamente ao meio
dinâmico e estruturado em que vive, mantendo sua integridade física e funcional. Seres vivos são
entidades adaptativas porque podem “traduzir” o mundo nos termos da sua organização e estrutura. Isso
implica que temos de rever profundamente a maneira como descrevemos e explicamos as nossas
relações com o ambiente. Por exemplo: quando olhamos ao nosso redor não temos diante de nós apenas
um espaço cuja existência independe da nossa estrutura sensorial, “não vemos o ‘espaço’ do mundo,
vivemos nosso campo visual”; quando sentimos prazer com o colorido das flores “não vemos as ‘cores’
do mundo, vivemos nosso espaço cromático” (Marurana e Varela, 2000, p. 28).
Os objetos do mundo só entram para nós na classe de objetos do nosso ambiente quando
realizamos com ele ou sobre ele alguma ação. Não temos acesso direto ao mundo, mas temos acesso ao
que fazemos com ele e nele. O conhecer, como afirmam Maturana e Varela, é “o fazer daquele que
conhece” (2000, p. 40). O processo semiótico de acoplamento dos seres humanos ao mundo permite a
criação do seu meio natural e social a partir da integração estrutural entre os mecanismos de percepção
e ação. Essa integração existe em todos os organismos, e se expressa, num nível mais universal, nas
coordenações sensório-motoras com as quais eles agem no ambiente e se comunicam com outros seres
vivos.
O mundo, segundo a visão que estamos expondo, pode ser descrito como uma realidade
constituída de duas classes de objetos: os objetos dinâmicos e os objetos imediatos. Os objetos,
entendidos como dinâmicos, revelam a independência do mundo frente aos agentes semióticos. Eles
formam a realidade que existe independentemente da nossa existência, com sua materialidade dada e
irrefutável, e na qual, nas fronteiras do caos de suas interações moleculares surgimos nós e tudo que é
vivo como sistemas capazes de produzirem e manterem a si mesmos. Os objetos, vistos de um ponto de
vista imediato, são aqueles com os quais os agentes semióticos estabeleceram uma relação sensorial e
47
motora (Santaella, 1998). Essa relação sensório-motora é significativa, e esse acréscimo de significação
é que faz a diferença entre o mundo em geral e o ambiente específico do organismo (Varela, 1992;
Uexkull, 1938)18.
Representamos, com os nossos signos, as operações de transformação que buscam tornar o
mundo funcionalmente acoplado a nós mesmos e vice-versa, num movimento intenso e inesgotável de
equilibração (Piaget, 1995). Neste sentido é que se diz que os signos não podem se referir a nenhuma
essência do mundo, mas, igualmente, não são arbitrários em relação a ele. A sua produção diz respeito à
possibilidade de agir no mundo da única forma possível para agentes inteligentes, transformando-o, e
dessa forma, transformando a si mesmo. Precisamos, “desesperadamente”, não da cultura, com suas
regras e programas, mas dos signos com suas potencialidades de coordenar ações, sem a qual não
designamos um ambiente humano enquanto agimos no mundo e não construímos as ordens e as
desordens de nossa realidade social.
Os agentes semióticos criam um mundo de objetos imediatos por meio da produção de signos,
isto é, da apreensão dos objetos por intermédio de substitutos adequados desses objetos. Segundo
Peirce, um signo “está no lugar de algo, seu objeto. Está no lugar desse objeto, porém, não em todos os
seus aspectos, mas apenas com referência a uma espécie de idéia” (Nöth, 1998, p. 53-54). Numa outra
citação, apresentada por Santaella (1998, p. 38) “um signo intenta representar, em parte pelo menos,
um objeto que é, num certo sentido, a causa ou determinante desse signo”. Ora, temos aqui um aparente
paradoxo: o objeto determina o signo, mas o signo representa o objeto. Há aqui uma circularidade
causal que incomoda, já que representar também é determinar a existência de algo como parte de um
mundo de representações, pelo menos. Mas é necessário enfrentar o problema da equivalência entre
causa e efeito se quisermos entender o funcionamento de entidades complexas.
A co-determinação signo-objeto é possível porque ambos fornecem, um para o outro, suas
condições da existência. Signo e objeto são entidades que se criam mutuamente. Aliás, essa é uma
propriedade universal dos signos: toda vez que tivermos díades opositivas co-criadas temos um signo
em ação. O mecanismo que pode produzir uma relação desse tipo consiste no seguinte: a relação entre
“certos aspectos do objeto” (denominado de fundamento do signo) e a totalidade das propriedades do

18
Jacob von Uexkull, precursor da etologia e da biossemiotica, foi o primeiro biólogo a propor uma teoria sistemática da
vida com base em uma doutrina do significado. Para ele, a atividade essencial de um ser vivo é assinalar, ou marcar no
mundo, segundo os parâmetros de suas propriedades sensoriais, os objetos e eventos que são úteis para ele (seu mundo-de-
percepção) e, simultaneamente, atuar sobre esse mundo percebido (seu mundo-de-ação) formando o “mundo-próprio” do
ser vivo (Uexkull, 1938, p. 21). Em seu mundo-próprio o ser vivo é um sujeito, pois ele só trabalha com aquilo que é
notado, aquilo que seu aparato biológico pode perceber, e é essa percepção, e não as propriedades diretas do objeto, que
participa do circuito operacional do qual resultará uma ação do organismo. Como a própria ação pode ser percebida (na
coordenação dos procedimentos que a compõe e nos efeitos que ela provoca) fecha-se um circuito organizacional que
Uexkull chamou de ciclo de função.

48
objeto (inacessíveis à representação) são mediadas pelos efeitos (interpretante ou significado) que os
fundamentos do signo e o objeto produzem numa mente. Mas essa formulação se afastará
completamente do realismo e do naturalismo que caracteriza a perspectiva semiótica que estamos
defendendo se ela não se apoiar numa fenomenologia da percepção do organismo.
Os fundamentos perceptivos do signo estão, estrutural e funcionalmente, conectados aos
sistemas de ação dos organismos. Por isso, os signos das qualidades imediatas dos objetos são
imediatamente subsumidos por signos das transformações que se podem operar no espaço e no “corpo”
desses objetos. O processo semiótico se completa com a intervenção construtiva do organismo,
imprimindo no mundo dinâmico infinito as marcas de sua percepção e ação, e com isso, especificando
o mundo no qual pode existir, até que todas as possibilidades de acoplamento sejam esgotadas. Se o
objeto que determina o signo é o objeto dinâmico (Santaella, 1998, p. 48), autônomo, ele existe e se
desenvolve independentemente da atividade semiótica do agente. Mas, o objeto que está representado
no signo, o objeto imediato, é interno ao signo e só nele e através dele adquire substancialidade. Por
isso, mesmo sendo um primeiro o objeto aparece nas coordenações semióticas do agente como um
segundo, uma entidade real ou imaginária produzida pela mediação da condição que o interpretante
impõe ao sistema de percepção/ação e da condição que esse sistema impõe às possibilidades de
interpretação do agente. Podemos representar essas relações da seguinte maneira:

Figura 3.1. Produção do signo a partir do sistema de percepção/ação


Mundo Dinâmico

OD OD
FS OI

Figura 3. 1. O signo é uma entidade ontologicamente triádica, não podendo ser reduzida a nenhuma combinação de díades. O processo
composto pelo Fundamento do Signo (FS) pelo Objeto Imediato (OI) e pelo Interpretante (I) é o modo pelo qual o agente semiótico cria, através
do seu sistema de percepção/ação (organizacionalmente fechado), a equilibração das suas atividades num mundo dinâmico, co-construindo um
mundo de objetos imediatos, sobre os quais realiza operações conservativas e transformativas. Nesta figura focaliza-se apenas o ato de produção
do signo como se ele fosse uma atividade solitária do agente semiótico.

49
Entre animais sociais, entretanto, a semiose é uma atividade compartilhada. A rigor, não pode
haver semiose, sem que objetos e eventos produzidos no mundo dinâmico ou por agentes semióticos
sejam interpretados por outros agentes. Neste sentido, produzir signos é desencadear interpretações, é
fazer com que algo tenha um sentido vivencial para alguém (Eco, 1991). Como agentes humanos
desenvolvem suas trajetórias de vida pessoais acoplados a outros agentes, os objetos dinâmicos vão se
tornando objetos imediatos, segundo critérios de valor de uso, isto é, à medida em que são concreta ou
virtualmente usados. Como qualquer outro mediador, o signo satisfaz necessidades, neste caso, as
necessidades de coordenação das ações dos e entre os agentes semióticos.

Figura 3.2. Signo e Comunicação.

Mundo Imediato

Mundo Dinâmico Mundo Dinâmico


I I’

Figura 3.2. No Mundo Imediato dos agentes humanos o processo semiótico se realiza através de ações coordenadas que
produzem uma comunidade de conviventes.

3.2. A semiose dos agregados sociais: interações coordenadas mediadas por objetos.
Nas formas atuais de sociabilidade capitalista e mercantil, as relações sociais entre os agentes e
as ações conservativas ou transformativas com o mundo imediato, são, cada vez mais, mediadas por
objetos, que passam, então, a desempenhar uma função sígnica. Esses objetos, além de manifestarem
um valor de uso referente a suas propriedades, sendo objetos para o consumo e, portanto, para o
metabolismo com o corpo e o espírito humanos, adquiriram, no processo histórico-social, a capacidade
de ser universalmente equivalentes uns aos outros. Dessa forma, eles satisfazem duas necessidades
humanas fundamentais simultaneamente, as de consumo e transformação e as de representação.
O primeiro autor a propor explicitamente que o processo de produção e consumo dos objetos
que circulam na economia capitalista se viabiliza socialmente através de funções simbólicas análogas
às da linguagem foi Marx.19. “Pelo fato de que a forma relativa do valor de uma mercadoria, por
exemplo, da tela, exprima o seu ser-valor como algo inteiramente diferente do seu corpo e das suas

19
Uma analise detalhada do uso da metáfora lingüística na explicação marxiana da dinâmica social capitalista pode ser
encontrada na obra de Rui Fausto: “Ao tratar a forma do valor, do dinheiro e do fetichismo, Marx se serve de analogias que
concernem às funções simbólicas da linguagem. Esse modelo lingüístico é constante, e de modo algum acidental”. (Fausto,
1997, p. 137).

50
propriedades, por exemplo, como igual à roupa, indica que ela oculta uma relação social” (Marx, 1985,
p. 106). O valor de uma mercadoria é socialmente construído para ser representação do valor de
qualquer outra, realizando a função básica do signo, segundo Peirce. Mas, as disputas simbólicas que
envolvem sua produção e circulação não são explícitas: “O valor não tem escrito na fronte o que ele é.
O valor antes transforma cada produto do trabalho em hieróglifo social. Mais tarde, os homens tentam
decifrar o sentido dos hieróglifos, penetrar no enigma do seu próprio produto social, pois a
determinação dos valores de uso como valores [mercadorias] é seu produto social, tanto quanto é a
linguagem” (Marx apud Fausto, 1997, p. 79).
Humberto Eco (1991), apoiando-se em Marx, desenvolve o seguinte argumento: “Sem dúvida é
possível considerar a troca de bens como um processo semiótico, mas não porque essa troca implique
troca física, mas porque na troca o VALOR DE USO dos bens é transformado em VALOR DE
TROCA. Tem-se um processo de simbolização definitivamente aperfeiçoado quando surge o dinheiro,
que ‘está justamente em lugar de outra coisa” (Eco, p. 19). Entre os marxistas que teorizaram sobre a
cultura é comum encontrar afirmações sobre as semelhanças entre os signos e as mercadorias, mas seus
estudos em geral defendem uma dicotomia entre produtos culturais e mercadorias em geral, afirmando
que os bens culturais não são produzidos por trabalho produtivo, e, portanto, não podem ser analisados
pela teoria do valor-trabalho (Negt e Kluge, 1983; Garnham, 1990). Outros afirmam o caráter
simbólico da mercadoria, mas não aceitam que ela seja um signo real. Afirmam que o valor de uso é
fundado apenas nas propriedades materiais do produto e que o significado social ou o aspecto
semiótico da mercadoria é uma “falsa consciência”, uma alienação (Williamson, 1991)20.
Podemos considerar a produção e a troca de mercadorias como um processo semiótico porque
eles compartilham propriedades essenciais. Em primeiro lugar, relações semióticas e relações mercantis
são produtos das ações dos agentes humanos numa comunidade de conviventes. Em segundo lugar, são
produtos que se concretizam no uso social, na interpretação que os destinatários, do signo ou da
mercadoria, realizam. Em terceiro lugar, da mesma forma que o signo, cuja relação entre o veículo (o
aspecto material do signo) e o significado é determinado socialmente, a mercadoria é uma combinação
de propriedades materiais e simbólicas, determinadas pelas necessidades humanas social e
historicamente construídas. Em quarto lugar, a mercadoria, da mesma forma que o signo, é uma

20
Baudrillard (1981, p. 114-128) diferentemente dos autores citados, sustenta que os aspectos materiais e simbólicos da
mercadoria são igualmente componentes do valor: os signos possuem valor tanto quanto as mercadorias e, como elas,
podem ser mercantilizadas. Mas ele concebe a troca de mercadorias como essencialmente distinta das trocas simbólicas e o
valor do signo como radicalmente diferente do valor da mercadoria. Não há, em Baudrillard, uma teoria que explique como
a dimensão simbólica da mercadoria é produzida.

51
entidade triádica. E finalmente, mercadorias e signos têm como condição necessária a comunicação
humana, são insumos e produtos da interação comunicativa de agentes sociais.
Do ponto de vista semiótico, o processo de produção das condições que controlam a vida
humana passa, necessariamente, pela produção dos bens e serviços que cuidam da saúde-doença, o que
significa dizer, que as relações entre saúde e doença são mediadas por um complexo sistema de
cuidados que é semioticamente produzido na forma de bens e serviços mercantis21. Do ponto de vista
econômico, sabe-se que não é objeto imediato e prioritário do modo de produção de mercadorias cuidar
da vida e sim da continuidade da própria produção, que pode se confrontar e se confronta (ver Cap. I)
com as necessidades de reprodução e de busca de felicidade dos seres humanos. O sistema de cuidados
é fundamentalmente voltado para curar, para reparar danos e não para promover saúde. É dessa forma
que ele regula a produção da vida das pessoas; não só porque delimita as condições materiais com as
quais se pode adoecer e prevenir doenças, curar e promover saúde, mas, sobretudo, porque ao se
constituir num dos modos de cuidar da vida, a produção e o consumo de bens e serviços para saúde-
doença, estabelece valorizações e regulações que incluem ou excluem seres humanos e, portanto,
classifica-os entre os que podem, de fato, almejar viver mais e melhor e os outros... que Deus ajude!
É claro que essa situação gera sempre intensas disputas para controlar o processo de produção,
distribuição, troca e consumo dos bens e serviços, e de signos. Estas disputas ocorrem no interior de um
campo de forças produzido pelas ações dos agentes humanos. Os resultados dessas disputas se
cristalizam, de forma mais ou menos estável, numa correlação entre forças hegemônicas e subalternas
que direcionam a produção de cuidados com a saúde-doença. A determinação social dos processos sdc,
além de ser complexa e complicada, continuará politicamente conservadora e eticamente desumana
enquanto prevalecer o controle simbólico que dificulta a transição de um paradigma centrado na doença
para um paradigma guiado pela utopia da saúde para todos22. Na figura abaixo representamos
semioticamente a relação entre o sistema de cuidados numa perspectiva regulada pela saúde e numa
perspectiva regulada pela cura das doenças, que se tornou, historicamente, a perspectiva da produção e
reprodução das mercadorias e das relações mercantis que priorizam a produção de práticas e saberes

21
Os bens e serviços que constituem qualquer sistema de cuidados devem ser entendidos de um ponto de vista semiótico,
como produção de signos por uma comunidade de conviventes, o que inclui, além dos aspectos materiais, as suas
propriedades simbólicas e as qualidades da ação dos agentes humanos. O que se comercializa num sistema de cuidados é o
conjunto de propriedades dos bens e serviços que os profissionais produzem ou executam.
22
Neste ponto retomamos uma referencia à cultura, dessa vez destacando o jogo de valores e regulações que ela representa,
onde “todos os sistemas de equivalência e troca servem de mediação às diferentes esferas da atividade econômica e
simbólica” (Connor, 1994, p. 236). Neste sentido, se pode dizer que a cultura é um estado do processo semiótico em que os
signos, ao mediarem (no sentido marxiano apontado no cap. I, no sentido bhaskaniano apontado no cap. II e no sentido
semiótico defendido aqui) os processos econômicos e simbólicos, elevam, ao grau legislativo, suas capacidades valorativas
e reguladoras.

52
voltados para o lucro: uma necessidade vital dos agentes humanos que controla o processo de cuidar da
vida no capitalismo.
Figura 3.3. Hegemonia da saúde e da cura

C C

VIDA
S D D S
Mundo Imediato Mundo Imediato

Mundo Dinâmico

Figura 3.3. A produção da saúde-doença em sistemas de cuidados definidos pela hegemonia prevalecente.

No contexto semiótico da utopia da saúde para todos, a Saúde (S) é o fundamento do objeto
Doença (D) especificando, em relação ao objeto dinâmico Vida (V), por intermédio de C, quais as
propriedades deletérias do viver que serão aceitáveis como modo de vida feliz. No contexto da cura, D
é o fundamento do objeto S, ao especificar, do objeto dinâmico V, por intermédio de C, quais as
propriedades saudáveis que são permitidas num modo de vida excludente. Em ambos os casos, o que
define o privilégio para S ou para D é a mediação do sistema de cuidados C, o interpretante do signo
sdc. No estado de hegemonia semiótica da cura o complexo sistema de cuidados deve ser visto como
um processo de produção de mercadorias. Neste caso, os processos de saúde-doença são determinados
pelo controle do processo mercantil de produção dos cuidados em todos os seus aspectos (saberes e
práticas de agentes sociais). No estado de hegemonia semiótica da saúde recupera-se a referência
fundamental à satisfação das necessidades humanas que, no estado anterior, está subsumida no
processo semiótico que transforma um meio de realização, a produção dos cuidados através de bens e
serviços mercantis, num fim em si mesmo.
Neste sentido, os estudos que se interessem pela promoção da saúde devem se posicionar
claramente sobre o lugar do sistema de cuidados na produção de saúde e doença, porque eles controlam
por meio de uma mediação substantivamente semiótica (valorizações e regulações) as condições de
produção da vida. A necessidade de mudar o sistema de cuidados prevalecentes, de transformar o modo

53
como a saúde é produzida atualmente, pela ótica da cura e da doença, implica também em se posicionar
sobre o reducionismo ontológico do biologicismo que domina o campo. Como já vimos, no capítulo I,
esse tipo de reducionismo é um fracasso enquanto critério de formulação de estratégias de cuidados
com a saúde-doença (independentemente dos seus méritos cognitivos e tecnológicos).
Os agentes semióticos têm interesses e necessidades diferentes, e produzem sua satisfação
cooperando e competindo uns com os outros. Cooperação e competição definem o conteúdo geral das
condições contingentes para toda ação humana. Como elas se repetem a todo o momento, criam uma
história cooperativa e competitiva entre os agentes. Nessa trajetória, vão se formando alianças e
oposições entre os agentes e entre os agregados. No curso de sua própria história, os agentes se tornam
então, dependentes do passado e das expectativas em relação ao futuro, à medida que vão fazendo
inferências e aprendendo com seu próprio comportamento. De qualquer forma, a semiose é uma
maneira de ordenar o mundo dinâmico, inacessível sem uma especificação sígnica. Nesse processo,
ordem e estabilidade semiótica vão surgindo, mas, como os agentes semióticos são unidades ativas
organizacionalmente fechadas, a ordem no interior dos agregados ou do sistema social como um todo é
sempre precária. O resultado é que desordem e instabilidade são co-existentes à ordem e à estabilidade
no funcionamento de qualquer agregado social. Uma das formas de descrever uma configuração em
forças opostas convivendo funcionalmente é propor que entre elas há uma relação de poder
caracterizado pela supremacia de um pólo e a subalternização do outro. Essa situação é classicamente
chamada de hegemonia. Como ela se expressa por meios das ações semióticas dos agentes semióticos,
pode-se denominá-la de hegemonia semiótica, para distingui-la da hegemonia política, que é um tipo
especifico de hegemonia simbólica. A hegemonia semiótica é, antes de qualquer coisa, um estado
(diferente de estágio) do processo semiótico, que é infinito, enquanto existirem agentes semióticos. O
estado semiótico que está se propondo designar como hegemônico é constituído de oposições
funcionais de duas classes: códigos dominantes e códigos subalternos, regulando e sendo regulados por
comportamentos concordantes e comportamentos divergentes.

3.3. Códigos e sistemas de cuidados com a saúde-doença.


Códigos diferentes são necessariamente divergentes, ainda que uns possam dominar ou
subsumir outros. Comportamentos diferentes podem ser convergentes ou divergentes. Códigos
definem o que é pertinente a uma relação social e aquilo que está fora da relação, ou para ser rejeitado,
ou para ser incluído condicionalmente. Códigos são instrumentos para criar valorizações, produzir
marcações que agregam ou separam, operar reciclagens que interrompem ou dão continuidade a um
54
processo comunicativo numa rede social ampla ou no interior de um agregado. Códigos são sociais, são
estruturas semióticas compartilhadas por uma comunidade de conviventes; não devem ser confundidos
com os esquemas cognitivos dos agentes, mas devem ser logicamente compatíveis com eles. Códigos
também são relações sociais recorrentes, ou seja, os códigos só existem e funcionam como tais se
forem produzidos e reproduzidos cotidianamente. Os sistemas cognitivos dos agentes operam com eles,
conservando-os e transformando-os, segundo as exigências cotidianas e os imperativos da satisfação
dos seus desejos, submetendo-os, portanto, à semiose. Finalmente códigos são padrões propositivos que
justificam comportamentos; códigos são crenças estruturadas.
Denomina-se crenças a toda e qualquer proposição que justifica um comportamento. Associado
aos comportamentos, as crenças formam uma unidade que é denominada de ação semiótica (Valsiner,
1989), no sentido restrito de que todo comportamento está associado a um processo semiótico que o
justifica, e todo processo semiótico, para ser social, deve incluir como signo a ser submetido à semiose
os comportamentos dos agentes. Crenças podem justificar uma ação, descrevendo suas características
ou efeitos, explicando suas causas ou razões de existência, prevendo suas conseqüências, prescrevendo
ações que modifiquem ou conservem um objeto ou evento. Justificar é uma forma específica de
coordenar ações entre agentes23. Como a ação semiótica do agente só pode coordenar suas próprias
ações e interações, denomino essas coordenações reflexivas de coordenações orientadas, ou
simplesmente de justificativas.
Esse processo de justificação é o que chamaremos daqui por diante de conteúdo do signo,
implícito em toda e qualquer crença. Diferentemente do conteúdo, o valor de um signo muda de acordo
com o código do qual ele faz parte, mantendo o mesmo conteúdo, mas alterando seu significado. É
trivial perguntar se crenças são verdadeiras ou falsas quando se trata de definir um código. O que é
relevante é saber se elas realizam uma ou mais das funções identificadas, pelas quais elas serão
23
As proposições que justificam comportamentos são organizadas no tempo e distribuídas no espaço como valores de uso,
como signos que satisfazem os interesses humanos de toda espécie. As propriedades mais gerais do uso produtivo dos
signos são: dependência do passado – A semiose do ícone mais simples ao texto mais complexo, depende de um processo
de acomodação, realizado pelo agente semiótico, de um processo de reciclagem, realizado nas trocas semióticas entre os
agentes, e de mecanismos de estocagem que tornam o passado disponível e influente; dependência das circunstâncias – O
contexto imediato desafia o agente a produzir signos eficientes para a ação e para sua interação; dependência do futuro –
A ação é orientada por metas que projetam o presente e antecipam as expectativas pessoais e sociais. As decisões e ações
nas quais o agente se empenha exigem, o tempo todo, o máximo de conhecimento disponível para, frente a demandas
concretas (criadas pelo agente ou oriundas do ambiente), equilibrar-se e dar continuidade à sua história. A dependência
relativa ao tempo, quando associada ao processo de distribuição espacial do signo, produzem inclusão, exclusão ou
neutralização.

55
denominadas de: descritivas, explicativas, preditivas e prescritivas. Quando elas estão articuladas para
a coordenação das ações dos agentes semióticos e quando essa articulação é recorrentemente
reproduzida, então temos nas mãos um instrumento semiótico mais estável. Um código, portanto, tem
conteúdo e significados, ambos determinados pelo modo como os agentes sociais o utilizam. Neste
sentido, o próprio código tem uma estrutura triádica do seguinte tipo: o valor V especifica as formas
como se articulam os conteúdos de C pela mediação da utilidade (U) do código para o agente. O código
também é um signo, um signo que legisla sobre outros signos.
A diferença básica entre um código e qualquer outro signo é que no código os tipos de modelos
heurísticos básicos do agente (descrever, explicar, prever e prescrever) estão articulados numa estrutura
publicamente compartilhada na forma de normas, hábitos e valores sociais ou de leis, princípios,
teorias, e coisas do tipo. Em relação a outros signos, o código é um instrumento para interpretação, ou
seja, os códigos permitem ao agente “consumir” outros signos e, neste sentido, participam da produção
geral dos signos, da semiose social. A antiga divisão de trabalho entre mulheres que cuidam e médicos
que diagnosticam e prescrevem é um código, pois ela expressa uma articulação entre crenças
explicativas, descritivas, preditivas e prescritivas usadas pelos agentes, que formam o sistema de
cuidados com a saúde-doença para coordenar suas interações, e neste caso, para manter estável um
mesmo padrão relacional que se repete em muitos outros agregados sociais.
Os códigos podem atuar exclusivamente no mundo imediato, definindo o que pertence e o que
não pertence a um agregado social em sua cotidianidade, e podem atuar referindo-se aos objetos do
mundo dinâmico, como é o caso das leis e teorias científicas e dogmas religiosos, por exemplo. Nestes
casos, eles servem para organizar a cotidianidade desses sistemas simbólicos e regular as ações dos
agentes em seu interior. Teorias científicas, dogmas religiosos ou crenças cotidianas são igualmente
constituídas de dimensões descritivas, explicativas, preditivas e prescritivas.
Os códigos leigos tendem a naturalizar o mundo social onde operam, definindo como natural
aquilo que é incluído no mundo imediato dos agentes sociais e como anti-natural o que é rejeitado ou
suspeitado. Códigos científicos tendem a reduzir o mundo natural ao mundo imediato dos agentes para
os quais estabelecem critérios rígidos de inclusão e de exclusão dos objetos: só é relevante aquilo que
pode ser cientificamente compreendido. Dessa forma, se marca e constitui um mundo pela ciência,
separado dos outros mundos, e com autoridade legislativa sobre eles.
Crenças explicativas, descritivas e preditivas são primárias, crenças prescritivas são derivadas.
Por qualquer um dos métodos de inferências usualmente usados, os agentes humanos podem derivar
proposições que estipulam o que deve ser feito para se atingir um determinado objetivo, desde que se
produzam descrições e/ou explicações consistentes a respeito daquilo sobre o qual se quer intervir.
56
Proposições explicativas e descritivas consistentes são necessárias e suficientes para se inferir
prescrições, proposições preditivas são fundamentais para tornar as prescrições convincentes 24. Crenças
prescritivas correspondem à dimensão tecnológica de um sistema de crenças qualquer. Apesar de
derivadas, elas podem retroagir sobre o sistema de crenças do qual se originou e dominá-lo, ou seja, os
objetivos normativos de um sistema simbólico podem atrofiar suas funções explicativas, descritivas e
preditivas. Num código, portanto, as relações entre os diferentes tipos de crenças que o constitui, não é
estática. O código não deve ser concebido como uma entidade acima ou fora das relações sociais entre
os agentes, pelo contrário, só no jogo de interesses do processo comunicativo é que o código funciona.
O código é o produto de uma determinada hegemonia semiótica. A hegemonia que certos
agentes conseguem estabelecer dentro de um agregado fornece ao código utilidades distintas sem que
seja necessário mudar o conteúdo do código. Por exemplo, a prevalência de modelos heurísticos de
base prescritiva no interior do marxismo muda a correlação de forças entre os agentes/crenças que lhe
dão sustentação. Os aspectos explicativos, descritivos e preditivos da teoria são desenvolvidos segundo
os interesses prescritivos da ação política e, ao invés de iluminá-la, eles passam a ser um corpo
estranho em determinados contextos nos quais se realiza a política marxista, gerando a cisão entre
aqueles que se preocupam em desenvolver seus aspectos conceituais e se afastam da atividade política
e aqueles que se concentram na prática de mudar as relações sociais sem o necessário esforço para
compreender as conseqüências do que estão fazendo.
No caso da Saúde Coletiva, enquanto campo que produz saberes e práticas de cuidados com a
saúde-doença contra a hegemonia dos modelos excludentes atuais, essas questões são de fundamental
importância.
É por intermédio do sistema de cuidados, que se produz saúde e doença numa comunidade de
conviventes. O sistema de cuidados, especificamente voltado para promover saúde, prevenir e curar
doenças, é parte de uma rede mais ampla de cuidados com a vida, ou de controles que se exercem para
produzir e reproduzir certas condições e modos de viver. Fazendo um corte entre a dimensão biológica
e a social como um todo, vemos que ambas operam produzindo valorizações e regulações que incidem
sobre o tempo e a qualidade da vida. No nível biológico as normatizações operam segundo princípios
autopoiéticos; o agente semiótico é organizacionalmente fechado, e a atividade semiótica que
desenvolve está fundada em oposições auto-referenciais que exigem o signo triádico para serem
instrumentos úteis na coordenação das suas ações. Nas dimensões sociais, os agentes dependem
ontologicamente de outros agentes, sem os quais não podem agir e aprender a agir no mundo, e os
24
Por exemplo, a teoria da evolução é rica em proposições descritivas e prescritivas, e com elas foi e é possível inferir
modelos prescritivos sobre o comportamento humano que povoam todas as ciências sociais. Seus modelos heurísticos de
base, entretanto, não servem para prever coisa alguma.

57
agregados, por sua vez, são abertos às influências mútuas e amplificam as propriedades normatizadoras
que os agentes apresentam. O processo de produção dos cuidados com a saúde-doença é
essencialmente normativo. Se antes vimos que isso implica em certos posicionamentos ético-politicos,
agora devemos voltar nossa atenção para os códigos que aí se constroem.
A dinâmica dos códigos pode ser observada e descrita pela relação entre as crenças com as quais
eles são formados. Essa relação é determinada genericamente por dois fatores: a semiose idiossincrática
do agente – relativamente imprevisível – e o uso compartilhado de crenças para coordenar suas
interações – relativamente previsível. Para simplificar, vejamos como isso funciona num código
imaginário isolado do seu contexto semiótico, isto é, sem considerar a relação de hegemonia com
outros códigos no interior de um agregado. Chamaremos as crenças prescritivas de CP, as explicativas
de CE, as descritivas de CD e as preditivas de CPr.

Figura 3.4. Estrutura geral dos códigos

Mundo Dinâmico
Vida Vida

CPr
CP

CP
CPr

CE CD CE CD

Código do Sistema de Cuidados A Código do Sistema de Cuidados B

Figura 3.4. Estrutura geral dos códigos simplificados dos sistemas de cuidados A e B

As crenças que formam os códigos têm, a princípio, os mesmos conteúdos, mas os agentes
sociais que formam os sistemas de cuidados estabelecem formas de relacionar as proposições de acordo
com seus interesses e concepções dos processos sdc. No sistema de cuidados A, as crenças prescritivas
determinam a produção e o uso das crenças explicativas e descritivas, produzindo um enclausuramento
desses modelos heurísticos. O enclausuramento pode se expressar tanto na forma de dogmatização,
num extremo, quanto no abandono de qualquer referência explicativa razoável. No sistema A também
se produz um contínuo enfraquecimento da capacidade preditiva do modelo, ao privar as previsões, de
explicações e descrições substantivas e atualizadas. Em B o sistema funciona idealmente, indicando um

58
equilíbrio de forças perfeito entre os agentes cuidadores. O paradigma da saúde busca se aproximar de
B, o paradigma da doença/cura resiste em se afastar de A.
Numa situação real, os códigos não têm uma estrutura assim tão simples. Os códigos de um
campo científico como a saúde coletiva, são bem mais complexos do que os das disciplinas que
formam o campo, que são ainda mais complexos do que os das teorias que disputam a hegemonia no
interior das disciplinas. No caso destas últimas, os códigos podem ser descritos especificando-se os
modelos heurísticos que dão sustentação à teoria e situando esses modelos dentro da moldura ativa dos
agentes sociais que produzem e divulgam a teoria.
Numa situação concreta, códigos hegemônicos lidam com códigos subalternos de forma tensa e
às vezes conflituosa. Os agentes que compartilham esses códigos se esforçam para fazê-los prevalecer,
aprimorando-os enquanto instrumento para a interpretação ou maximizando suas habilidades no uso
interessado que eles possibilitam.
Quando famílias se defrontam com situações de risco ou de promoção de bem-estar usam seus
signos mais desenvolvidos, seja na forma de crenças ou de estruturas interpretativas mais complexas
como o código, para fazerem escolhas e justificarem o que fazem diante de si mesmo e dos agentes
com os quais compartilha crenças e comportamentos.
No próximo capítulo, veremos como se pode usar um modelo semiótico para entender a relação
entre eventos disruptivos e os mecanismos internos da estrutura familiar que viabilizam mudanças de
crenças e comportamentos compartilhados. Essa questão me parece fundamental para continuarmos no
caminho da saúde para todos, enquanto se tece a teia que regula a saúde-doença das pessoas.

CAPITULO IV

Modos de partilhar e códigos: A estrutura e a estruturação dos


agregados familiares.

Por que se deve estudar o comportamento de agregados do tipo família para melhorar nossa
compreensão dos processos sdc? Porque famílias são a unidade básica do processo de desenvolvimento
humano no nível bio-comunal. As relações comunais têm sua origem “na trama das alianças familiares
(regidas pela regra da exogamia) e de suas ulteriores ressignificações pela inclusão nas totalidades

59
estatais – territorialmente como vizinhança, socialmente como clientelismos partidários – e nas várias
redes de amizades ou vínculos informais” (Samaja, 2000, p. 55).

4.1. O lugar da família no sistema de cuidados com a saúde-doença.

O prolongamento da maturação do corpo humano, especialmente do sistema sensório-motor,


para o período pós-nascimento, impõe necessidades óbvias de cuidado e acentua a dependência que
temos da interação social para a nossa formação biológica – a estrutura dos neurônios e a arquitetura
neuronal só se completam por processos desencadeados pela interação com o mundo. A construção do
aparato produtor da atividade semiótica se dá através da interação com o mundo. O “outro”, portanto,
desencadeia o refinamento do sistema sensório-motor, cujo fechamento organizacional inicial
especificava o “um” de forma quase indiferenciada com o “outro” (Wallon, 1995). Dependemos das
relações sociais pertinentes ao grupo familiar ou dos cuidadores que os substituem. A dimensão do
cuidado está dada desde o início de nossas vidas como parte do processo de regulação social da nossa
existência bio-comunal. Cuidar da Vida ou do Ser antecede a organização e a institucionalização de um
sistema de cuidados com a saúde-doença.

Se a família desempenha uma função bio-comunal essencial é legítimo que possamos tomá-la
como um dos agregados sociais que participam ativamente dos processos de produção do sistema social
de cuidados com a vida, em particular em sua dimensão saúde-doença. Vimos, entretanto, que estudar a
família, enquanto um sistema adaptativo complexo, acoplado a uma rede de determinações sociais que
normatizam a produção e reprodução da vida, exige que se cumpram alguns requisitos.

4.2. Definição das fronteiras que constituem a família como um agregado social.

Os diversos aspectos que compõem a complexidade da família têm sido focalizados por estudos
de ênfase evolutiva ou social. Bastos e Almeida Filho (1999) destacam alguns dos principais tópicos de
interesse desses estudos: “as múltiplas interações e a constituição de sistemas de relações diádicos e
poliádicos (Schaffer, 1984; Bronfenbrenner, 1996); as relações de interdependência com agrupamentos
sociais que são fonte e forma de suporte social; a interação entre trajetórias e transições dentro do curso
de vida individual e do mundo mais amplo das mudanças sócio-históricas (Elder Jr, 1993); a família
entendida como unidade de produção social da vida cotidiana, enquanto vínculo entre os planos
individual e social, atuando como tradutor simultâneo de uma a outra esfera (Montero,1991); e as
60
estratégias de socialização utilizadas pela família, incluindo tarefas domésticas, envolvendo áreas como
a preparação para o trabalho (Goodnow 1988-b)” (idem, p.61).
De um ponto de vista mais global a família é um sistema aberto; não possui fechamento
organizacional, suas condições de fronteira são instáveis. As pessoas que compõem uma unidade
familiar circulam por muitos contextos e o próprio contexto familiar é invadido em sua intimidade
pelas mensagens oriundas de outros contextos através dos meios de comunicação de massa, reforçando
o caráter mercantil do processo de produção da satisfação das necessidades humanas que impera
atualmente. A melhor forma de conceber a casualidade entre os agregados sociais é através de uma
perspectiva funcional: a relativa autonomia dos agregados é o resultado da sua integração numa rede
social. Por isso, insiste-se em falar de agentes e de agregados, e não de sistemas autopoiéticos, quando
nos referimos às organizações e instituições da vida social. Se o agente é, de fato, uma unidade
autopoiética, o mesmo não acontece com famílias (ver Capítulo II). As propriedades gerais que definem
a organização do sistema familiar são comuns aos SACs, uma forma de categorizar os sistemas que é
mais universal e transdisciplinar (ver Capítulo I).
O agregado familiar pode tomar as influências decorrentes de uma dada hegemonia semiótica
como insumos que serão usados na produção da família e na reprodução/transformação da ordem social
vigente, com propõe Samaja. Uma das razões mais fortes para supor que isso esteja realmente
ocorrendo é o fato de que as relações sociais são de natureza semiótica, sendo, em principio,
intercambiáveis entre agentes, agregados e dimensões da rede social. Como os signos são produzidos
dialogicamente no processo comunicativo, quando as ações dos agentes estão coordenadas entre si, o
fluxo dos signos pela rede só tem como obstáculo a dinâmica social da própria produção semiótica e o
uso idiossincrático que os agentes fazem da reciclagem (interpretação/consumo) dos signos. As ações
dos agentes e agregados sociais envolvidos neste processo produtivo acabam produzindo uma
correlação de forças que chamamos de hegemonia semiótica, e que constitui uma das dimensões que
definem as fronteiras dos agregados familiares.
Na família, as interações ou os acoplamentos entre os agentes sociais ocorrem num processo
de participação orientada por outros e por metas que essas relações procuram explicitar. Os
mecanismos implícitos nas transações sociais nas quais os indivíduos constroem suas trajetórias de vida
podem ser definidos, focalizando-se processos de construção compartilhada de significados,
assumindo-se que toda ação humana é ação simbólica (Bastos, 1994). Neste estudo, seguindo Bastos,
nos interessamos pelas atividades compartilhadas que caracterizam o cotidiano da família. Quando
atividades desenvolvidas individualmente ou em grupo são coordenadas por um sistema de significados
socialmente compartilhados, persistente ao longo do tempo, a atividade se torna significativa para o
61
coletivo como um todo – amplificando seus efeitos no interior do grupo – e, a partir daí, pode ser
padronizada e rotinizada – mesmo sendo continuamente reciclada, isto é, ressignificada no interior das
ações cotidianas. Rotinizar é reciclar uma ação semiótica, é torná-la reutilizável para o sistema, o que
só é possível quando a ação tem efeitos duradouros.
Os processos de rotinização operam em dois níveis. No nível individual as rotinas oferecem a
segurança e a previsibilidade necessárias para a ação ontogenética do agente, e no nível coletivo ela é
fundamental para a estabilidade dos agregados que só existem em função da continua reprodução das
rotinas que as caracterizam.
Os processos de rotinização dependem do estado em que se encontra o processo semiótico no
interior da família. Esse estado, por sua vez, depende do modo como os agentes compartilham
comportamentos e suas justificativas (crenças). Um estado semiótico é resultado da configuração
formada pelas posições de poder que cada agente ocupa no agregado. As configurações em geral
seguem algumas tendências funcionais do agregado familiar, tais como: transferência de poder do pólo
parental para os filhos ao longo do tempo, socialização dirigida por metas e a formação de alianças
internas visando concretizar a transferência de poder e a socialização (ou o desenvolvimento dos
aliados em detrimento dos outros componentes da família) (Bronfenbrenner, 1996). Num agregado
configurado por uma correlação de forças prevalecem algumas crenças e comportamentos e excluem-se
ou submetem-se outros. O estado semiótico tem a forma dinâmica e relacional de um estado de
hegemonia, que denominamos anteriormente de hegemonia semiótica.

Vimos que uma configuração do tipo hegemônico implica numa relação entre códigos
concorrentes, de um lado, e de diferenciações comportamentais, de outro. De acordo com as tendências
configurativas funcionais da família, os códigos desenvolvidos com fins de socialização tendem a
submeter outros códigos, mas os códigos com esses fins – fundados sobre princípios diferenciadores
que circulam por entre a rede da sociabilidade, como por exemplo, socializar para o trabalho – servem
ou não aos códigos que regulam o processo de construção da autonomia dos filhos e aos códigos que
orientam o interesses das díades, tríades e outras formas de parceria entre os agentes do agregado
familiar. Temos então, pelo menos três tipos de códigos distintos em interação: 1) Códigos para a
socialização (Cs); 2) Códigos para a autonomia25 (Ca); 3) Códigos para as parcerias (Cps). Os Cs
estão imediatamente conectados aos fluxos semióticos da rede social mais ampla e são, tipicamente, os
insumos com os quais a família se produz e, ao fazê-lo, reproduz ou transforma relações sociais

25
A autonomia no interior de um agregado familiar (num sentido restrito) é entendida como o processo pelo qual os agentes
cuidadores e os que são objeto de cuidados constroem conjuntamente, relações capazes de ir alterando, durante o processo
de socialização, as relações de poder inicialmente concentrado nos cuidadores.

62
amplificadas na rede. Ca e Cps são códigos mais internos aos processos de formação das díades ou
tríades.

A hegemonia semiótica expressa uma relação entre esses códigos que, por sua vez, é resultante
de uma correlação de forças entre os agentes. Ora, se a correlação de forças é justificada em Ca e Cps,
então os insumos semióticos originários diretamente da rede sob a forma de códigos de socialização,
Cs, são submetidos ao crivo interpretativo dos agentes nas ações que Ca e Cps coordenam ou
justificam. Do ponto de vista do conteúdo dos códigos, Cs é um objeto para Ca e Cps. Cs fornece o
material semiótico com o qual os agentes organizados por Ca e Cps vão produzir as fronteiras
semióticas da família. Mas isso ainda não define claramente os contornos que separam a família de seu
entorno social.

Códigos, além de conteúdo estruturado em crenças explicativas, descritivas, preditivas e


prescritivas, possuem valor, e é o valor a eles atribuído que define como os conteúdos Ca, Cps e Cs se
articulam em posicionamentos hegemônicos e subalternos. Em princípio, Ca-Cps-Cs formam um signo
rotacional, onde cada um dos termos da tríade pode ocupar o lugar de fundamento, objeto e
interpretante do signo. A cristalização, mesmo que transitória, de um dos códigos em uma das posições
do signo só pode ocorrer pela intervenção dos agentes semióticos.

Para cada código em particular o conteúdo das crenças define o conteúdo do código, conforme
vimos no capítulo anterior. Mas, numa configuração hegemônica entre códigos, cada um deles constitui
o conteúdo da configuração. Para o estudo de famílias, estamos propondo esses três códigos básicos
que se relacionam semioticamente. Como vemos na figura 4.1, não há, em princípio, uma prioridade
causal para nenhum dos códigos na determinação da estrutura do código geral. Qualquer um deles pode
ocupar uma posição estruturante (a posição do interpretante na cadeia triádica do signo). Na realidade,
eles se alternam nessa posição. Veremos mais adiante três casos de famílias onde os três códigos
ocupam posições estruturantes, sendo que, em um deles, há uma rotação na posição do interpretante.
Devemos responder como os interpretantes são produzidos, ou seja, como cada um dos códigos pode
Csde propor uma tipologia dos códigos
ser levado alternadamente à posição de interpretante, antes
familiares.
Cs
Figura 4. 1. Códigos hegemônicos básicos de um agregado familiar
CaCps Ca

Cs Cps
Ca Cps
Cps

63

Cs Ca
Figura 4.1. A localização do código na posição do interpretante muda o código geral. Na figura, vemos algumas das
combinações possíveis para a formação dos códigos básicos de um agregado familiar.

O conteúdo interno de um código é dinâmico por duas razões: primeiro, novas proposições ou
modificações das proposições antigas podem ser feitas em qualquer um dos domínios conceituais do
código – neste caso o código evolui ocupando espaços significativos lógica e potencialmente possíveis,
através de aquisições inferenciais ou transformações metafóricas; mas um código pode ter seu conteúdo
alterado pelo valor de uso que lhe é atribuído nas ações dos agentes: vimos o exemplo de teorias que
têm seu conteúdo atingido em cheio quando mudam as relações de poder entre os agentes e,
conseqüentemente a posição que uma certa classe de proposições ocupa dentro do código. O mesmo
acontece com os códigos familiares. Cada um deles de per si pode mudar da mesma maneira que
mudam os outros códigos. Assim, Cs, Ca e Cps podem se desenvolver ou se atrofiar. Ca, por exemplo,
perde sua funcionalidade quando a família completa seu ciclo vital e se esvazia. Por outro lado, as
mudanças de valor de um código, dentro de um código mais geral, dependem dos modos pelos quais
esses códigos são partilhados nas atividades concretas dos agentes e nas relações com as quais eles
organizam essas atividades.
Em situações cotidianas, onde as relações sociais se desenvolvem concretamente, os modos de
partilhar se referem às atividades e sua distribuição no tempo e no espaço social da família (hierarquia
de atividades e rotinas26 ), às práticas sociais concretas (qualidade da interação entre os agentes) e sua
distribuição entre os agentes (posição do agente na relação), e às crenças que justificam a relação social
como objeto concreto (enquanto ocorre) ou como objeto ideal (que já ocorreu ou voltará a ocorrer). A
categoria Modos de Partilhar foi proposta inicialmente por Bastos como “descrições da experiência
coletiva cotidiana do grupo familiar, conduzidas de forma a incluir, no mesmo olhar analítico, uma

26
Rotinas são ações semióticas compartilhadas pelo grupo, cuja persistência ao longo do tempo pode ser evidenciada. Uma
rotina tem objetivos claros e bem definidos e se apresenta sob a forma de múltiplos e variados procedimentos. Rotinas são
reguladas diretamente por crenças prescritivas.

64
dimensão comportamental (as práticas relatadas ou observadas durante o trabalho de campo), uma
dimensão cognitiva (as justificativas para a inserção da criança nessas práticas, do ponto de vista do
adulto), e o contexto interativo imediato à sua inserção” (Bastos, 1994, p. 167-169). Com a
continuidade das análises e o retorno ao campo27, Bastos e Almeida Filho (1999) verificaram que os
modos de partilhar poderiam ser concebidos como estruturas do cotidiano familiar que especificavam a
dinâmica do sistema e as mudanças qualitativas nas trajetórias de seus componentes. Neste trabalho,
mantém-se a idéia dos modos de partilhar como uma estrutura, mas, como já se notou, ela, sozinha, não
define a estrutura dos agregados familiares. O desenvolvimento conceitual aqui proposto retira a
dimensão cognitiva que está embutida nos modos de partilhar para situá-la nos marcos das operações
dos códigos familiares. Esse corte, entretanto, é apenas uma forma, de operacionalizar a articulação
com outros níveis de análise e de acentuar uma perspectiva mais propriamente semiótica – códigos –
que interativa – comportamentos. Mantém-se como princípio fundamental a tese de que as justificativas
para os comportamentos não são construídas de fora ou por fora dos modos concretos de organizar o
cotidiano da vida familiar (Valsiner,1997).
Modos de partilhar descrevem como os agentes sociais, ocupando posições diferentes dentro de
um agregado familiar, coordenam suas ações em atividades para, através de suas relações, construírem
uma estrutura de convivência cotidiana. Enquanto categoria analítica, ela inclui todos os critérios que
devem ser observados para saber se um determinado processo social é ou não estruturado: dependência
de atividade, de conceito, de distribuição espaço-temporal e de relação social (Bhaskar, 1986).
Enquanto fazer concreto, os agentes estruturam seu cotidiano familiar criando modos de partilhar suas
crenças e comportamentos na realização de atividades estruturantes.
Agora podemos definir as fronteiras que designam um agregado familiar, ou seja, sua
organização e estrutura (ver Figura 4.2). Se
Cs imaginarmos
Cs que os modos de partilhar são a rede de

relações sociais entre os agentes e que os códigos são os nós que coordenam a integração das atividades
V
e crenças que formam os modos de partilhar, teríamos uma imagem da organização de qualquer
Ca Cps Cps Ca
agregado familiar. A organização seria, portanto, definida relação semiótica que permite que códigos e
Cps Cps
modos de partilhar formem estruturas especificas concretas. A organização familiar se constitui por
meio de um processo no qual os modos de partilhar (MP) especificam nos códigos, quais os conteúdos
necessários e como eles devem se articular
Cs
através da mediação
Ca Ca Cs
da utilidade (valor V do código) que os
MPpodem ter para coordenar
códigos C as ações e interações dos agentes, e da utilidade que os modos de
Ca Ca
partilhar podem ter na concretização dessas ações e interações.

Figura 4.2. Códigos familiares básicos por domínio específico.


27
Trata-se de um estudo longitudinal. Cs Cps Cps Cs

65

Domínio Único Múltiplos Domínios


Figura 4.2. Vários tipos de códigos são produzidos na relação semiótica com os modos de partilhar. Num domínio especifico do cotidiano
os códigos são excludentes, mas eles podem se combinar para formar códigos mais complexos quando se trata de coordenar as ações dos
agentes em vários domínios simultaneamente. Essa combinação é mais virtual do que presencial porque geralmente os agentes se engajam
numa atividade de cada vez.

A Figura 4.2 mostra como os modos de partilhar, numa relação semiótica com os códigos que
coordenam as ações e interações dos agentes, especificam vários tipos de códigos, permitindo aos
agentes organizarem de diferentes maneiras seu cotidiano, usando crenças semelhantes. Em um
exemplo hipotético, a família de Seu José é formada pelo casal parental e um filho, a família de Dona
Maria também. Ambas vivem no mesmo bairro e são vizinhos desde que seus filhos homens nasceram,
há 20 anos atrás. Os dois, muito amigos, foram contaminados pelo HIV quando tinham 18 anos, pela
mesma mulher. Os pais dos jovens compartilham as mesmas crenças sobre a origem da doença, seus
sintomas, sabem que hoje eles podem viver a experiência da enfermidade com mais esperanças, e
realizam religiosamente todas as prescrições médicas recomendadas. Neste caso pode se supor que as
famílias compartilham o mesmo código sobre a AIDS? Não. Porque todo código que circula
socialmente (Cs), que chega até a família como insumo, é objeto de interpretação por outros códigos
(CPs e Ca). Se na família de Dona Maria existir uma aliança entre ela e o filho, de tal forma que
comprometa a autonomia do jovem, os efeitos dos mesmos cuidados que as duas famílias dispensam
para seus filhos serão muito diferentes. Neste caso, as crenças sobre a relação mãe-filho coordenavam
um conjunto de comportamentos que especificavam, pela mediação do código sobre a AIDS, quais as
crenças e comportamentos autônomos do filho eram admitidos: para Dona Maria, cuidar do filho era
66
mais importante do que incentivar o auto-cuidado; para o filho, os cuidados de sua mãe eram uma
enorme demonstração de amor e a fonte de sua alegria.

O que podemos concluir desse exemplo hipotético e verossímil, além do que já foi dito
previamente? Que o estudo da estrutura familiar está incompleto se ele não focaliza dois outros
elementos: as trajetórias individuais (Bibeau, 1992) e os efeitos que certos eventos desencadeiam na
estrutura familiar.

Chamaremos de evento disruptivo a todo evento que desencadear, numa unidade de tempo
subseqüente a ele, uma mudança observável na estrutura familiar, isto é, uma transformação nas
relações semióticas entre os modos como os agentes organizam o cotidiano e os códigos que criam e
utilizam para tal fim. As transformações podem ser identificadas nas modificações operadas no
conteúdo (mudança para um estado semiótico vizinho ao anterior, pois a hegemonia semiótica não foi
alterada) ou no valor dos códigos (mudança para um estado semiótico distante do anterior pois a
hegemonia semiótica foi alterada) ou em alguns dos elementos que constituem os modos de partilhar
(rotinas, hierarquia de atividades, posição do agente, qualidade da interação entre os agentes). As
modificações pertinentes aos processos de desenvolvimento dos agregados familiares não podem ser
previstas pela especificação dos diferentes tipos de eventos que as desencadeiam, e sim no contexto da
interpretação do evento pela dinâmica estrutural da família. Acontecimentos muito diferentes entre si,
como a morte de uma pessoa importante na família, o desemprego do chefe de família, a gravidez
prematura de uma filha e suas conseqüências práticas e relacionais, a partida da filha mais velha,
marcam, nos casos que iremos ver logo em seguida, disrupções profundas, precisamente por conta das
inclusões e exclusões semióticas que os agentes realizam. Neste sentido, eventos disruptivos podem ser
desde um fator de risco (biológico ou social) até um programa de promoção à saúde.

4.3. Análises de estruturas familiares28

Apresentaremos alguns exemplos de como modos de partilhar e códigos se articulam na


construção da estrutura familiar. Uma ressalva importante deve ser feita: os dados não foram
produzidos com o intuito de “testar” as hipóteses, teses e argumentos levantados neste trabalho. Por
exemplo, não fizemos nenhuma observação sistemática de rotinas, descrevendo procedimentos passo a
passo como aqui está proposto. Também não podemos esmiuçar o conteúdo proposicional das crenças
que definem o conteúdo dos códigos. Essas limitações serão discutidas nas conclusões.
28
Na análise dos casos apresentados a seguir a parte descritiva repete literalmente trechos escritos pelo mestrando em artigo
desenvolvido por ele e sua orientadora e já publicado (Bastos e Almeida Filho, 1999). Tais descrições são objeto agora de
uma nova leitura.

67
Os dados aqui analisados se referem aos modos de partilhar crenças e comportamentos nos
seguintes domínios da vida cotidiana familiar:
1) Empreendimentos e iniciativas da família voltados para gerar renda (principal ou
complementar); 2) Limpeza e arrumação da casa e cuidado a irmãos menores no âmbito da
casa; 3) Preparo e distribuição de alimentos, e atividades de manusear fogão e utensílios e
limpeza no âmbito da cozinha; 4) Cuidados com os próprios pertences e tarefas escolares; 5)
Atividades extra-muros: fazer pequenas compras, dar recados, acompanhar irmãos menores e
parentes idosos em incursões fora da casa.; 6) Eventos intra-familiares, conflitivos ou não,
requerendo algum tipo de tomada de decisão e gerenciamento; 7) Eventos extra-familiares que
afetem a forma usual de organização do cotidiano familiar (Bastos, 1994).

4.3.1. Uma estrutura familiar "resistente". Fronteiras claramente definidas.

Esta família é formada pelo casal Dilza, dona de casa e diarista, e Luís, encanador
desempregado; mais Cristina, filha mais velha e dona de uma confecção; Cristiane e Alexandre, filhos
de Cristina. Ela está claramente estruturada em torno do trabalho – um código do tipo Cs – explicitado
por uma intensa vontade de progredir, apoiada em projetos concretos. A história da "pronta entrega" é
um deles.

Enquanto existia, as rotinas inerentes ao trabalho na confecção estruturavam e direcionavam o


cotidiano da família. As crianças podiam participar do processo de produção e tinham que lidar com
padrões de relacionamento e cuidados que eram determinados pelas necessidades da produção (ritmo
da produção, viagens para compra de matéria prima e venda dos produtos). Neste contexto, Alexandre
era cuidado por Cristiane, considerada competente para compartilhar tarefas pertinentes aos projetos e
às rotinas familiares. Cristiane ia progressivamente ampliando seu leque de responsabilidades,
conquistando mais autonomia em relação a seus cuidadores e adquirindo uma maior liberdade de
movimentos no espaço interno e externo à casa.

A falência da Pronta Entrega marca o início de um processo de mudanças. A unidade e a


identidade familiares, entretanto, se mantiveram, e até se fortaleceram. As estratégias adotadas para
obter uma nova ordem implicaram em mudanças relacionais e redefinição de posições dos agentes e
mudanças de conteúdo (com conservação de valor) no sistema de crenças solidamente compartilhado.
Seu Luiz, já aposentado, cozinha e supervisiona o cotidiano das crianças; Cristiane tem sua preparação
profissional antecipada; Dilza passa a trabalhar a semana toda como diarista. Quanto a Alexandre, sua
autonomia é cada vez mais consolidada. A família de D. Dilza continua solidariamente unida em torno

68
do carinho dos pais e da intensa dedicação para a família que eles demonstram. Nesse contexto, a
centralidade da figura de D. Dilza é reafirmada: ela planeja, administra e assume a maior parte das
responsabilidades, inclusive aumentando sua própria carga de trabalho. Os códigos para a
autonomização das crianças e adolescentes e para as parcerias se tornaram mais ativos sem assumirem
o lugar do interpretante, ao contrário.
Cristiane está sendo preparada para ingressar no mercado de trabalho. Faz um curso de
manicure e corte de cabelo; já procura estágio e treina em casa com seus próprios familiares as novas
habilidades que vai adquirindo. Continua estudando e já não pode dedicar a mesma atenção à
Alexandre. Cristiane está entrando em um processo transicional que pode se completar quando ela
conseguir seu primeiro emprego.

Alexandre, aos dois anos, brincava de trabalhar quase todos os dias ao final da tarde quando,
então, simulava sua volta para casa na mesma dimensão temporal dos adultos. Aos seis anos, quando
faliu a Pronta Entrega passou a ajudar seu tio no armazém. A atividade de brincar que simulava o real,
incorporou uma dimensão do real no qual podia desenvolver-se. Alexandre estava aprendendo as
operações aritméticas, e a avaliar dimensões e peso dos objetos rapidamente. Ele agora "já é um
homenzinho, cuida das suas coisas, toma banho e se arruma sem a gente precisar mandar" (Dilza) . A
crescente competência de Alexandre era visível e comemorada pela família. A forma positiva como ele
agia frente às adversidades da família era uma demonstração do quanto estava sendo acertada a escolha
do trabalho como quadro de referência central para a construção da identidade familiar. Esse código
tinha uma evidente dependência do passado das suas histórias particulares de vida e da interpretação,
bem presente, sobre o ambiente sócio-econômico, imprimindo continuidade ao sistema de crenças
estruturante. "Todo mundo trabalha... tá todo mundo equilibrado. Foi assim que eu aprendi com meu
pai, desde pequeno" ..."é preciso ter os pés no chão, na realidade, prá não passar fome" (Luís).

Os desenvolvimentos conceituais nos códigos Ca e Cps coordenavam as ações de Cristiane e


Alexandre e deles com seus cuidadores por intermédio dos códigos sobre o valor do trabalho (Cs). A
solidariedade e a autonomia que eles intensificaram visavam enfrentar de forma bem sucedida mais
uma adversidade. Não sabemos em quais das dimensões (descritiva, explicativa, preditiva ou
prescritiva) de Ca e Cps ocorreram as transformações evidenciadas nos comportamentos e nas relações
dos agentes da família.

Figura 4.3. Estrutura familiar persistente.

Hegemonia Semiótica

69
Código
Modos de Partilhar
Mudança nas posições dos agentes(Luis)
Cs
Mudanças nas relações entre os agentes
(solidariedade e autonomia)
Manutenção da hierarquia das atividades
(trabalho- Dilza e Cristiane)
Criação de outras rotinas de trabalho
Ca Cps
(Dilza, Cristiane, Alexandre e Luis)

Direção do Tempo

Figura 4.3. Código e Modos de Partilhar formando uma estrutura familiar persistente ao longo do tempo.

Após a falência da Pronta Entrega, o código familiar manteve o mesmo significado (valor) que
tinha antes da falência. As modificações observadas nos modos de partilhar foram coordenadas por
alterações nos conteúdos dos códigos sem que isso alterasse a posição que eles ocupam no processo
semiótico que os constitui como um código único: crenças sobre a essencialidade do trabalho
continuam mediando as relações de parceria e as outras funções de socialização mais diretamente
ligadas ao processo de construção da autonomia dos jovens da família.

4.3.2.Uma estrutura familiar em desequilíbrio.

Esta família é constituída por Lourdes, Patrícia, Pedro, Paulo, Paula e o pai, a quem eles quase
nunca se referem. Lourdes foi mãe adolescente, precocemente sobrecarregada com o cuidado a outras
crianças. Batia em sua filha mais velha, Patrícia, quando esta tinha apenas 15 dias de nascida,
alternativa que adotou frente às reclamações de seu vizinho de quarto na casa de um único cômodo
onde morava. Encontramos depois um relato de Lourdes sobre Patrícia que teve sarna, a tal ponto
intensa, que ficou toda ferida. Patrícia não foi tão bem cuidada pela própria mãe. Mais tarde, mostrou-
se competente como dona da casa e “mãe” dos irmãos, desenvolvendo um sistema pessoal de
administração do espaço doméstico.
Em casa, os conflitos entre os pais eram recorrentes. Tornaram-se mais intensos quando, após o
nascimento traumático de um dos filhos, quando “o parto subiu à cabeça” de Lourdes, o marido passou
a ter outras mulheres, uma delas na mesma rua em que moravam. As condições de pobreza, agravadas
com a pequena contribuição do marido para a manutenção familiar, obrigaram Lourdes a trabalhar fora
de casa. Foi neste contexto que Patrícia assumiu, desde os sete anos de idade, o lugar da mãe,
construindo ambas uma rede de relacionamentos que orientaram todo o sistema familiar: tanto a

70
estruturação do cotidiano quanto os significados que justificavam as atribuições de poder e papéis. O
código para a parceria mãe-filha mais velha (CPs) assume a posição do interpretante na relação Ca-Cs,
como veremos logo em seguida.

À exceção de algumas poucas tarefas como, comprar pão (Paulo), fazer a faxina e ajudar na
construção da casa (Paulo e Pedro) e cuidar das roupas (Pedro), todo o resto recai sob a
responsabilidade de Patrícia. Ela permite que seus irmãos tenham uma rotina diária mais
descompromissada. As intenções pedagógicas, tão comuns nos modos de partilhar a vida cotidiana
familiar, ficavam diluídas em relação aos irmãos e concentradas em relação à própria Patrícia, que
orienta a sua preparação para a vida adulta às custas de restrições ao desenvolvimento mais autônomo
no âmbito da relação com seus pares e de suas escolhas profissionais e afetivas. Patrícia toma para si a
execução de tarefas que ela própria reconhece que deveriam ser compartilhadas: “Antes a gente lavar
mesmo do que dar prá ele fazer, é menos trabalho”, alega ela diante da iniciativa espontânea de Paulo
em lavar seu uniforme escolar. Em geral a opinião de Patrícia é de que, mesmo mostrando
eventualmente iniciativa e solidariedade, os irmãos são “bagunçados”, “não fazem nada direito”, ela
tem que “ensinar e consertar o que eles fazem”. A “competência superior” de Patrícia é validada pela
mãe quando apelida o quarto dos homens de “ninho de porco” ou se refere à Paula dizendo que “essa
daí não sabe fazer nada”. Quando se sente sobrecarregada ou não pode, por alguma razão, realizar uma
tarefa, não conta com a ajuda espontânea dos irmãos. A solução então é puni-los (reclamando,
tornando-se chata). Esta situação só ajuda a mantê-los sem muitos compromissos com as tarefas que
estruturam o cotidiano familiar. Neste caso, temos signos interligados e contraditórios subjacentes a
uma mesma prática, emergindo de um mesmo contexto de atividades conjuntas. O fluxo
comunicacional entre os agentes é interrompido freqüentemente, indicando que a estrutura do cotidiano
dessa família inclui uns e exclui outros, não só no fazer e aprender a fazer, mas também nas
conversações mais corriqueiras.

Os comportamentos de Pedro e de Paulo, mesmo quando demonstram disponibilidade para


iniciativas autônomas e solidárias, estão mais claramente associados aos significados que legitimavam
as funções desempenhadas por Patrícia, produzidos no interior dos modos partilhar, do que à influência
da tipificação de papéis sexuais - embora esta apareça no momento em que a mãe escolheu a filha, e
não o filho, para substituí-la no comando da rotina familiar.
A crença numa competência específica para cada sexo é re-elaborada como cultura pessoal, no
sentido utilizado por Valsiner (1997), produto das práticas concretas e das representações simbólicas
que Patrícia e a mãe usaram para justificá-las. São os mesmos valores, expressos no interior das

71
relações familiares, que sustentam a competência e autonomia de uma e, correspondentemente, o
descompromisso dos homens e o estigma de incompetente da irmã mais jovem. A parceria entre
Lourdes e Patrícia é muito forte, prescinde de outros que assumam uma responsabilidade, por assim
dizer “estratégica”, pela família. Patrícia é o protótipo da filha responsável, sua presença passa por
tudo, estruturando o modo como os demais membros da família participam. Sua ausência terá força
análoga na reestruturação dos papéis familiares. Resumidamente, o código para socialização típico
dessa família é constituído, genericamente, das crenças sobre as competências especificas de cada sexo
(Pedro e Paulo não fazem porque são homens e Paula porque é incompetente) e sobre modelos ideais
de filhos que tem em Patrícia um perfeito exemplo. Esse código especifica quais as crenças e
comportamentos autônomos são admitidos para os agentes por intermédio do código que justifica a
parceria entre Lourdes e Patrícia.

Essa estrutura diádica se desfaz quando Patrícia vai morar com uma tia em São Paulo. As
conseqüências práticas dessa disrupção multiplicam os conflitos anteriores, ampliando as dificuldades
de comunicação no interior do agregado e conseqüentemente sua capacidade de manter-se estruturado.
Com a ausência de Patrícia, Lourdes a substitui automaticamente por Paula, a “incompetente”. Mas
Paula não substitui Patrícia. Não foi preparada para isso. Lourdes reclama da ausência da filha que
partiu, da sobrecarga de trabalho da qual Paula e os irmãos não deram conta - parece ser claro para ela
que a transferência de responsabilidade supõe o devido treinamento. Decide deixar o emprego,
ocupando ela mesma o lugar que era seu e que foi cedido apenas para Patrícia. A situação econômica da
família piora. Paulo interrompe seus sonhos de estudar Medicina para trabalhar num açougue. Paula
tenta um emprego e também quer sair de casa assim que puder. Seu irmão mais velho já mora com uma
mulher num bairro distante. O marido, quase nunca citado por Lourdes nas entrevistas, continua com as
duas famílias. Patrícia sempre manda notícias, trabalha num supermercado em São Paulo, abandonando
seu sonho de ser professora, e não quer voltar.
O padrão de organização da família e as trajetórias de desenvolvimento dos filhos estão
fortemente relacionados com a situação de conflito descrito acima, uma espécie de turbulência interna
permanente que se agravou quando Patrícia partiu. O equilíbrio do agregado, sempre precário, dependia
do padrão de relações que emergia da díade mãe-filha, uma interação local entre dois elementos
hierarquicamente superiores do sistema (MP). Os significados construídos a partir dessa interação local
- a competência de Patrícia, o descompromisso dos irmãos, a incapacidade de Paula - organizaram o
sistema acentuando essa dependência, pois passaram a fazer parte do código (Ca) que coordenava as
ações dirigidas para a construção da autonomia dos filhos. Lourdes, sozinha, não consegue um lugar

72
para os filhos no interior da família. O fluxo de comunicações entre ela e os filhos tornou-se
extremamente ineficiente, na ausência da função orientadora que Patrícia desempenhava. Na verdade,
ela não consegue mais ocupar o lugar de “mãe”, cedido por tanto tempo para a filha mais velha.

A ruptura da díade Lourdes-Patricia elimina a fonte de poder na produção dos modos de


partilhar e dos códigos que, juntos, estruturavam a vida cotidiana dessa família. Não há mais hierarquia
de atividades, as rotinas não são cumpridas, obrigando Lourdes a cuidar sozinha da casa. A qualidade
da interação entre os agentes se tornou extremamente precária, passando a prevalecer as tentativas de
romper a dependência financeira que os filhos ainda tinham. As posições de poder dos agentes, muito
claras quando Patrícia comandava, agora não existem mais: Lourdes não ocupa o lugar de Patrícia, não
há uma correlação de forças entre ela e os filhos que permita promover ordem naquele sistema familiar,
que crie as condições para se construir qualquer hegemonia semiótica. As crenças antigas sobre o
modelo ideal de filha ou sobre as competências próprias dos gêneros perdem suas funções de
coordenação. A família de Lourdes deixou de ser e espaço bio-comunal de socialização daqueles
jovens. Neste contexto, após a disrupção que desfez a díade Patrícia-Lourdes, com as modificações
apontadas nos modos de partilhar a vida cotidiana, os códigos básicos que ajudavam a estruturar a
família de Lourdes perdem completamente o valor, Cs-CPs-Ca não se articulam mais numa estrutura
única. Sem essa referência simbólica, o grupo ou produz uma nova, ou deixará de existir enquanto
agregado com fronteiras claramente definidas.
Posicionamentos bem
CPs definidos.
Atividades hierarquizadas.
4.4. Estrutura Familiar Diádica em
Interação Desintegração
centrada na
díade.
Hegemonia Semiótica
Incompetência e
Cs Ca inabilidade para
Tempo
desempenhar rotinas.
Código

Fim da hierarquia de atividades: as


rotinas não são cumpridas.
Esvaziamento do lar: os outros filhos
buscam sair de casa.
Fim da díadeFim dos posicionamentos: não há mais
Patrícia-Lourdes Evento Disruptivo
hegemonia semiótica.
A comunicação entre os agentes é
interrompida.
Não existem códigos capazes de
coordenar o grupo. 73

Modos de Partilhar em desintegração.


Figura 4.4. Estrutura familiar em desintegração. Os códigos familiares perdem suas funções básicas.

4.3.3. Sofrendo uma perda: no limiar da desordem, a emergência de uma nova estrutura
familiar. Neide e Paulo, pais de cinco filhos, nasceram em Santo Amaro da Purificação, mas
casaram-se em Salvador. Neide trabalhava como doméstica desde os treze anos; ao casar-se, abandona
o emprego, por desejo do marido. Paulo é garçom, mas afastou-se recentemente devido a uma
traumatismo craniano. Logo após a invalidez de Paulo, Neide retoma o trabalho, dessa vez como
servente de uma escola e fazendo bolos para vender. É em torno do seu sistema de trabalho e sob seu
comando que a organização e distribuição das tarefas necessárias ao cotidiano doméstico acontecem.

Diferentemente da maioria dos pais estudados, Paulo aceitava dividir algumas tarefas ligadas ao
cuidado dos filhos. Tratava-se de uma divisão conforme a natureza da tarefa: à Neide competia o lado
“prático” e à Paulo o lado “intelectual”; era ele quem “olhava os estudos” dos filhos. Cobrava deles a
realização das tarefas escolares, conferia as notas, freqüentava as reuniões da escola ou atendia a
chamados da escola quando convidado. Era atento à qualidade do ensino, cuja deterioração identifica,
chegando a reclamar dos professores quando deixam de passar deveres de casa. Neide e Paulo
compartilham a imagem dele como o mais inteligente entre os dois e como um pai dedicado. “Criar
filhos não é fácil não, não é só casar e fabricar”, ele dizia. Seus temas prediletos, ao longo das
entrevistas, eram a política, a miséria, o descaso do governo, a marginalização. Nessas ocasiões, Neide
permanecia em silêncio, atenta e orgulhosa do marido, sorrindo com freqüência, aprovando. Essa
imagem simbólica do pai era o modelo para a socialização dos filhos.

Trata-se de uma família coesa, na qual se afirma a importância da aliança entre pais e filhos,
como se vê no momento em que decisões em relação a emprego são tomadas na dependência de
assegurar a presença em casa, junto dos filhos, de pelo menos um dos genitores. Neide e Paulo

74
perderam uma filha, de leucemia, aos 11 anos de idade. Para eles, o valor de um filho é inquestionável,
integrando a identidade do genitor mais do que seu próprio corpo. Numa das entrevistas, Paulo
comenta a notícia de uma vizinha que pensava em vender o filho devido à miséria em que vivia:

“Uma pessoa pode vender sangue, um rim, qualquer órgão, mas nunca um filho”

Eles se orgulhavam da família que eram e estavam animados com o andamento da reconstrução
da casa - ampliava-se para receber a filha mais velha e sua família, que iam morar em um pavimento
superior, independente, construído "na laje". É nesse momento de suas vidas que ocorre a morte súbita
de Paulo.

Analisamos o impacto desse evento disruptivo na trajetória familiar a partir dos dois filhos mais
jovens, Marcel e Sônia - com, respectivamente, 14 e 15 anos à época da morte do pai. Até então, Sônia
estudava e participava das tarefas distribuídas pela mãe para ela e suas irmãs. “Ela é preguiçosa, mas
faz os deveres da escola e ajuda na cozinha de noite” dizia Neide. Marcel costumava ser visto pelos
familiares como “fora dos padrões”, sem participar das tarefas do cotidiano. O pai planejava colocá-lo
como aprendiz numa oficina e afirmava a necessidade de ser severo com ele. “A mim ele obedece.
Obedece, porque sou um pai grosseiro”. Marcel freqüentava a escola, mas não ia bem.

Os dois anos posteriores à morte do pai são marcados por uma acentuada queda no rendimento
escolar, com abandono e perda do ano letivo, tanto no caso de Sônia quanto no de Marcel. Ocorrem
freqüentes queixas da mãe a respeito do comportamento “teimoso e desobediente” dos filhos. Cria-se
entre eles uma relação conflituosa, que até então não existia. Sem conseguir lidar com as mudanças no
comportamento dos filhos, Neide pensa inicialmente em soluções do tipo medicalização, ao constatar
que seus esforços não são mais suficientes para restabelecer o equilíbrio relativo das relações
anteriores. Insiste em repetir um eletro encefalograma que Marcel tinha feito pouco tempo antes:

“o primeiro deu normal para a idade dele, o outro pode dar alguma coisa, né?”

E sobre Sônia afirma:

“ Eu tô prá levar ela na psicóloga”.

Também aparece com força a crença de Neide de que isto se deve à ausência da autoridade
paterna. De fato, o pai geralmente trabalhava à noite e podia “tomar conta” dos filhos durante o dia.
Sem a presença do parceiro que indicava, durante uma parte do tempo e em relação a alguns aspectos
do cotidiano, rumos para a socialização, Neide perde parte do controle sobre a trajetória de
desenvolvimento dos filhos.

75
Por outro lado, Sônia e Marcel movimentam-se neste contexto afirmando sua própria
autonomia. Não aceitar a ordem da mãe para ficar em casa enquanto ela trabalha ou abandonar a escola
são práticas simultâneas à procura de emprego, desejo que neste mesmo período os dois jovens
manifestam. Neide lamenta que os filhos não aproveitem a oportunidade de estudar que ela não teve:

“Emprego ... eles vão ver o que é bom”.

A crença de que os filhos não estão na época apropriada para trabalhar é reforçada pelo exemplo
da outra filha, Andréa (16), que além de substituí-la em quase todas as tarefas domésticas tem um bom
desempenho escolar.

A interação entre ela e seus dois filhos está se tornando mais e mais tênue quando Sônia
engravida; o pai é um adolescente que não reconhece a paternidade. Aproximadamente à mesma época,
Marcel consegue um emprego noturno, como ajudante em um bar próximo à sua casa. Passado o
choque inicial, Neide acolhe a filha e dobra sua jornada de trabalho, no mesmo emprego de antes.
Nesse sentido, ela não é diferente de outras mães daquela comunidade: a gravidez não planejada na
adolescência tende a ser vista como algo relativamente comum, normal, um dos poucos recursos
disponíveis para as adolescentes realizarem sua transição em direção à autonomia e ao auto-
direcionamento associados à condição do adulto. Neide logo faz planos nos quais reconhece o novo
status da filha:

“Quando a criança tiver um ano Sônia vai trabalhar. Era danada, não quis estudar, agora taí,
daqui a uns dois meses vem mais um neto. Ela vai ter que ajudar, eu sozinha não posso fazer
tudo” (1997).

Identificamos, assim, no espaço de aproximadamente três anos, acontecimentos que não só


provocaram enorme impacto no curso do desenvolvimento de Marcel e de Sônia, como modificaram
significativamente o contexto familiar: a morte do pai, o trabalho em dois turnos da mãe, a gravidez e
parto de Sônia e o primeiro emprego de Marcel. Esses acontecimentos guardam entre si certas relações
de determinação que transcendem a simples ordenação cronológica. Cada um deles implica em
modificações sensíveis em muitos dos modos de partilhar.

Ao final do período observado, coincidindo com o último trimestre de gravidez, Sônia divide
mais eqüitativamente com sua irmã, as tarefas domésticas e as responsabilidades gerais com o
cotidiano familiar. Neide já se refere a ela como um membro adulto da família. As crenças anteriores
com as quais ela justificava o comportamento de sua filha foram substituídas. Quanto ao emprego de
Marcel, no mesmo setor do pai (que era garçom), Neide demonstra que também está mudando.

76
“O pai quando era vivo dizia: 'Não quero nunca que meu filho seja garçom'. Mas as coisas não
são como a gente quer. Ele é teimoso. Eu vou deixar ele nesse trabalho aí pra vê”.

Entre os significados associados ao emprego, inclui-se uma certa tranqüilidade de Neide de que
trabalhar seria incompatível com o envolvimento em brigas na rua e com as "más companhias" que ela
teme. Marcel chegou efetivamente a envolver-se em brigas, antes do emprego.

Neide continua trabalhando os dois turnos para sustentar a família que vai crescer, mas mesmo
mantendo-se no papel de chefe de família e orientadora dos processos de desenvolvimento dos seus
filhos, evidencia-se que tanto ela espera quanto eles se aproximam do lugar de parceiros na estrutura
familiar. As transições vividas por Marcel e Sônia exemplificam de forma bastante clara o mecanismo
mais geral de estruturação da família: a construção coletiva de significados usados para coordenar as
ações dos agentes e as atividades compartilhadas nas quais eles se engajam, tanto orientam a dinâmica
da organização quanto a direção do desenvolvimento dos agentes. A dinâmica dos modos de partilhar e
seus respectivos códigos sugerem a interdependência entre a reorganização do sistema familiar e as
trajetórias dos filhos adolescentes.

Neide e Paulo compartilhavam uma imagem de Paulo, o pai inteligente e dedicado ao cuidado
com os filhos, o homem provedor ideal (Cs). Essa imagem simbólica do pai era o modelo para a
socialização dos filhos. A distribuição dos agentes nas atividades era feita segundo o código para a
socialização dos filhos. A divisão das tarefas, então, era feita conforme a natureza da atividade; à Neide
e às filhas competia o lado “prático” e à Paulo e os filhos o lado “intelectual” (Ca). O código para a
socialização é mediado pela relação entre Neide e Paulo. Aqui se vê, mais claramente do que nos outros
casos, como Cs, que circula na rede social, é incorporado como insumo na rede social familiar através
das relações sociais (no caso afetivas e políticas) entre a díade que concentra o poder (CPs) e define a
hegemonia semiótica do agregado.
Com as posições dos agentes claramente definidas e com um estado de hegemonia duradouro o
cotidiano pode se estruturar e manter sua dinâmica ao longo do tempo sem disrupções ameaçadoras,
reafirmando a aliança entre eles (CPs). Antes da morte de Paulo, podemos representar a estrutura
familiar da seguinte forma: O código para socialização especifica quais crenças e comportamentos
sobre autonomia são admitidos, pela mediação do código para as parcerias entre Neide e Paulo e destes
com os filhos. Nos modos de partilhar, a hierarquia entre as atividades organiza a distribuição do
trabalho segundo o código de socialização adotado; os agentes estão posicionados claramente e os pais
exercem uma função orientadora consistente com a ressalva de que eles atribuem ao pai maior poder
(mais inteligente do que Neide e tão cuidadoso com os filhos quanto ela), e a interação entre os agentes

77
está baseada na díade Neide-Paulo. O resultado dessa combinação é um estado de hegemonia semiótica
definido, basicamente, a partir das posições de poder dos pais, diferentemente da família de Luis e
Dilza, por exemplo. Nesta, também há uma hegemonia consistente, mas resultante de uma correlação
de forças mais equilibrada entre pais e filhos, onde os códigos para a construção da autonomia dos
filhos especificam as parcerias possíveis e aceitáveis ao grupo.

A partir desse ponto podem ser identificadas nessa família algumas mudanças estruturais. A
primeira delas é desencadeada com a perda definitiva e traumática do pai. As práticas coletivas, o
contexto imediatamente contingente a elas e o modo de inserção de Sônia e Marcel foram alterados.
Entretanto, as crenças anteriores, que formavam o código com o qual Paulo e Neide justificavam e
avaliavam as ações partilhadas com seus filhos, mantiveram-se basicamente as mesmas. Esta
defasagem entre os comportamentos opositivos dos filhos e o código para a socialização, a essa altura
disfuncional, deu origem a obstáculos na comunicação entre os agentes, que por sua vez dificultaram o
fluxo das ações (atividades e rotinas) e significados coletivos que estruturavam a família e organizavam
o cotidiano. Surge, conseqüentemente, uma região conflituosa no espaço da convivência cotidiana que
favorece a crescente iniciativa e autonomia dos filhos em relação à Neide. Ela, contudo, conserva suas
crenças sobre o comportamento ideal dos filhos, embora sejam ameaçadas pela crescente iniciativa dos
mesmos. Este padrão ainda é um desdobramento do primeiro: obstáculos comunicativos evoluem para
um conflito comunicativo29.

O processo de mudanças estruturais continua com os efeitos desencadeados pela gravidez de


Sônia e o primeiro emprego de Marcel. Estes eventos disruptivos, entretanto, desencadeiam uma
reestruturação do agregado que estava ameaçado de se desestruturar em função da crescente defasagem
entre modos de partilhar e códigos familiares básicos. À medida que Neide modifica as crenças com
as quais justificava e avaliava os comportamentos e as crenças de seus filhos, no sentido de reconhecer
a crescente autonomia imposta por eles, reduz-se ao mínimo a região conflitante anterior. Uma nova
estrutura emerge. Agora, o código que ocupa a posição de interpretante é Ca, o que significa que tanto
as alianças quanto a socialização passam agora pelo crivo de uma nova correlação de forças entre os
agentes e uma nova hegemonia semiótica vai se formando. As posições dos agentes foram claramente
modificadas com o crescimento e o reconhecimento da autonomia dos filhos. Neide ainda distribui os
agentes nas atividades e ainda controla as rotinas do cotidiano familiar: por exemplo, Sônia aceita
dividir com sua irmã as tarefas domésticas referentes à limpeza e arrumação da casa, ao preparo e
29
Obstáculos, conflitos e rupturas comunicativas se referem a graus crescentes de defasagem entre códigos e modos de
partilhar e indicam que a estrutura do agregado familiar foi desestabilizada, iniciando-se um período de desordem e criando-
se oportunidades para novas ordens - uma estrutura de desafios, como diria Valsiner.

78
distribuição dos alimentos e aos cuidados com seus irmãos mais novos. Mas ela aceitou a determinação
de um novo código na posição do interpretante, operação realizada a partir dos comportamentos
opositivos dos filhos. A hierarquia das atividades também não é mais definida só por Neide já que
Marcel trabalha fora de casa. A nova estrutura não se sustenta mais na correlação de forças resultante
da díade Neide-Paulo, a mãe refaz as alianças quando acolhe e reconhece a autonomização de Marcel e
de Sonia. Na Figura 4.5. representamos essas mudanças estruturais.

Posição dos agentes: Neide-Paulo determinam o


CPs código, definem a hierarquia das atividades e
distribui os agentes.
Hierarquia das atividades: critério fornecido por
CPs.
Qualidade da Interação: Baseada na díade Paulo-
Neide.
Cs CaFigura 4.5. Mudança Distribuição
de Ordem Estrutural num agregado familiar.
dos agentes: Marcel participa pouco;
Sonia sobrecarrega a irmã.
Código Rotinas: Faltam dados
Hegemonia Semiótica
Tempo

Ca Comportamentos opositivos.
Inadequação dos códigos.
Afirmação de Autonomia

Modos de Partilhar em
Cs CPs transição

Morte de Paulo

Posição dos agentes: Neide distribui os agentes nas


Ca atividades e controla as rotinas. Divide com os filhos
a determinação do código e a definição da hierarquia
das atividades.
Hierarquia de atividades: critério fornecido por Ca.
Gravidez da
Qualidade da Interação: Reconhecimento de Sonia
autonomia dos filhos.
CPs Cs Emprego de Marcel
Distribuição dos agentes: Sonia amplia sua
participação nas atividades cotidianas.
Novo Código Rotinas: não há dados.
79
Novo Modo de Partilhar
Figura 4.5. Percurso das mudanças estruturais numa família. Nele se observa a dependência da estrutura Código/Modo de
Partilhar, das relações sociais, das crenças, das atividades concretas que os agentes realizam e da distribuição espaço-
temporal das atividades e dos agentes.

Uma análise comparativa entre esses casos ajuda a propor algumas generalizações.
Os eventos disruptivos desencadeiam períodos de mudanças nas crenças, comportamentos
pessoais e nas interações entre os agentes que constituem a família. Podemos imaginar o evento
disruptivo como um ruído externo que se incorpora à dinâmica interna do agregado, e ressignificado,
isto é, transformado em objeto imediato, pode ser interpretado na ação coletiva dos agentes semióticos,
passando a participar das redefinições funcionais dos códigos e dos modos de partilhar; também pode
ser descrito como uma espécie de turbulência, inicialmente localizada, mas que acaba, por efeito de
amplificação, contagiando o conjunto do sistema. Ou seja, uma alteração no comportamento de um
agente, ou de uma díade, em torno dos quais o agregado se organiza, pode iniciar redefinições
semelhantes às provocadas pelo ruído externo (a partida de Patrícia e a gravidez de Sônia, por
exemplo).
Uma estrutura familiar pode resistir aos desequilíbrios decorrentes das disrupções, operando
dinamicamente para restabelecer a ordem num estado vizinho ao da ordem anterior. Neste caso, a
regulação que os códigos exercem sobre as crenças e os comportamentos dos agentes através dos
modos de partilhar é flexível a ponto de permitir a emergência de mudanças conceituais nos códigos,
sem alterar seu valor, bem como mudanças nos modos de partilhar compatíveis com a função
coordenadora dos códigos. Nestes casos o agregado familiar aprende a reagir às mudanças disruptivas,
reforçando os laços afetivos e as parcerias no interior do grupo, afirmando e desenvolvendo a estrutura
em torno da qual a família se organizava.

80
Pode ocorrer também uma defasagem entre os códigos anteriores e os novos modos de partilhar
a partir da eclosão de comportamentos opositivos à hegemonia semiótica anterior. Neste caso pode
haver interrupção dos fluxos comunicativos ou das trocas semióticas que se realizavam. O bloqueio
comunicativo pode indicar a instauração de um conflito ou mesmo de uma ruptura estrutural. Neste
ponto, há um desequilíbrio estrutural e pode acontecer uma das duas situações a seguir:

A) Um padrão consistente de crenças codificáveis emerge, possibilitando a atração do agregado


para um estado semiótico qualitativamente diferente do interior. Como esta nova estrutura surge a partir
da dinâmica do próprio agregado, ela representa, em relação à historia estrutural do agregado, uma
ruptura, e em relação à organização, uma continuidade. Essa dubiedade aparece nos comportamentos
dos agentes, sobretudo na redefinição de posições e de uma nova correlação de forças dentro do
agregado (é o caso de Neide, por exemplo).
B) A outra alternativa é um processo de conflito comunicacional degenerando-se numa
impossibilidade interpretativa e convivial. Neste caso o agregado não encontra novos códigos e modos
comuns de partilhar a vida cotidiana. À medida que o conflito se mantém persistente ao longo do
tempo, degeneram-se as interações existentes nos modos de partilhar até que se reduzam ao mínimo. As
tarefas cotidianas anteriormente compartilhadas passam a se concentrar em um dos agentes, o que pode
levar a que as crianças e os adolescentes percam a referência familiar como contexto de
desenvolvimento, procurando em espaços exteriores à família novas formas de sociabilidade. O
distanciamento afetivo e psicológico leva ao distanciamento físico e acelera o esvaziamento do lar e a
quebra de vínculos e, em casos extremos, mas não incomuns, empurra crianças e adolescentes para
situações mais acentuadas de exclusão social, configurando situações de risco pessoal e social (a
exemplo do viver na rua).
A dinâmica estrutural em que prevalece a ampliação da participação dos agentes em modos de
partilhar coordenados por códigos flexíveis em conteúdo e resistentes (em valor) aos desequilíbrios
provocados a partir da disrupção, indica como possibilidade mais provável de mudança estrutural a
emergência de uma nova ordem nas proximidades da anterior. O exemplo típico é o da família de
Alexandre e Cristiane.
A dinâmica estrutural em que o fluxo de comunicação é interrompido, mas é imediatamente
recuperado por mudanças no conteúdo e no valor dos códigos e pela adoção de modos compatíveis de
atividades e relações sociais entre os agentes, indica que a mudança estrutural em curso se estabilizará
num estado qualitativamente diferente do anterior. É o caso da família de Sônia e Marcel.

81
Por fim, a dinâmica estrutural em que a interrupção no processo comunicativo degenera num
conflito persistente ao longo do tempo, impedindo a emergência de novos códigos e novos modos de
partilhar, indica, como situações mais prováveis, ou a desagregação e esvaziamento da família, ou sua
manutenção como ajuntamento sem possibilidade de construção de fronteiras pertinentes ao grupo. O
exemplo mais próximo é o da família de Patrícia.

4.4. Tipologia dos códigos e componentes dos Modos de Partilhar.

Códigos (C) e Modos de Partilhar (MP) formam, segundo regras semióticas, a organização do
sistema familiar. Nessa relação, como vimos, os modos de partilhar especificam nos códigos quais os
conteúdos são necessários e como eles devem se articular através da mediação da utilidade (valor V do
código) que os códigos podem ter para coordenar as ações e interações dos agentes e da utilidade que
os modos de partilhar podem ter na concretização dessas ações e interações. A organização familiar
pode ser representada genericamente da seguinte forma: MP – V – C, onde MP é o fundamento do
objeto C, e V é o interpretante da relação MP – C. O interpretante é o signo hegemônico num dado
estado de hegemonia semiótica. Por essa razão derivam da organização tantas estruturas quantas forem
as possibilidades combinatórias dos códigos no uso concreto dos agentes semióticos – atribuindo
valores diferentes e inventando refinamentos conceituais, ou mesmo novos códigos.

Levando em conta as funções básicas dos agregados familiares é possível especular uma
tipologia inicial que explicita algumas das suas estruturas possíveis.

Quadro 4.1. Tipologia dos Códigos e Componentes dos Modos de Partilhar.

Componentes dos Códigos Familiares Códigos Familiares Modos de Partilhar


Códigos. Básicos. Unidimensionais

82
Conteúdo: Conteúdo: Valor: Elementos:
Posição dos agentes na
Crenças Descritivas Cd Funções: Ca – Cs – CPs
estrutura.
Crenças Explicativas Ce Socialização (Cs) CPs – Cs – Ca
Qualidade da interação
Crenças Preditivas Cp Autonomia (Ca)
Hierarquia das atividades
Crenças Prescrivas. Cpr Parcerias (CPs) Cs – Ca – CPs
Distribuição dos agentes
CPs – Ca – Cs nas atividades.
Caracterização de rotinas.
Ca – CPs – Cs
Cs – CPs – Ca

Essas possibilidades combinatórias foram mapeadas ainda de uma forma bastante simplificada,
por domínios específicos. As estruturas que elas formam são flexíveis e mutáveis, correspondendo a
diferentes estados semióticos no processo de desenvolvimento. Só há estrutura quando existe uma
hegemonia produzida pela interação dos agentes. A hegemonia depende das posições que os agentes
ocupam nos modos de partilhar. O processo de produção dessas variações é intensamente disputado em
todas as suas fases, do ato produtivo em si mesmo até a sua concretização em consumo, o que envolveu
o controle da distribuição e da troca.
Resumidamente, códigos constituídos de crenças descritivas, explicativas, preditivas e
prescritivas são determinados e determinam modos específicos de partilhar as crenças e os
comportamentos que elas justificam. Assim relacionados, eles definem a organização e a estrutura
familiar. Organização e estrutura especificam as fronteiras do agregado. A definição dos limites do
agregado é uma construção dos agentes em suas relações comunicativas (semióticas) cotidianas.
Agregados familiares estruturados não possuem fechamento organizacional, não são sistemas
autopoiéticos, mas são reflexivos: usam as influências externas como insumos para produzirem sua
estrutura e com isso reproduzirem/transformarem normas, instituições e organizações de outros níveis.
A estruturação familiar faz parte do processo mais geral de estruturação social através do qual se regula
a produção e reprodução da vida humana em geral. Lócus fundamental dos cuidados com a vida, a
família participa, por esse processo, da rede da sociabilidade humana que produz o sistema de cuidados
com a saúde-doença. A figura abaixo ilustra a dinâmica estrutural dos agregados familiares.
83
Figura 4.6. Dinâmica Estrutural dos Agregados Familiares.

Hegemonia Semiótica Hegemonia Semiótica

Cs Cps

MP 1 MP 2
Ca Cps Ca Cs

T1 T2[Evento Disruptivo] T3 Tempo

Figura 4.6. Sob o efeito de eventos disruptivos em T2, a estrutura familiar, constituída pela relação semiótica entre
MP1, códigos familiares básicos e hegemonia semiótica em T1, modifica-se, mantendo a mesma organização ao longo do
tempo.

Na ilustração acima, mudaram todos os elementos da estrutura. O processo comunicativo entre


os agentes semióticos que em T1 se realizava sob uma dada hegemonia, sofreu a interferência do evento
disruptivo em T2 de forma tão acentuada, que resultou numa nova hegemonia e, conseqüentemente, em
alterações substanciais nos modos de partilhar e no código. Como vimos na análise dos casos, esse
desdobramento representa uma das situações possíveis de acontecer quando a estrutura familiar é
afastada do equilíbrio por um evento disruptivo. Em T2 a trajetória de desenvolvimento do agregado se
bifurca em duas alternativas: (a) o processo comunicativo entre os agentes se desenvolve dentro dos
limites impostos por uma estrutura suficientemente flexível a ponto de absorver os efeitos do evento
disruptivo como signos pertinentes ou compatíveis com a antiga estrutura ou (b) o processo
comunicativo sofre uma descontinuidade explicitada pela incapacidade do antigo código justificar as
ações dos agentes e pelo conflito entre eles, gerado pela perda da hegemonia que anteriormente
orientava o comportamento geral do agregado. Se o agregado se movimenta na direção do estado
semiótico descrito em (b) surge novamente a possibilidade dele se desenvolver em uma das duas
direções: (c) as ações dos agentes resultam na construção de uma nova hegemonia e,
conseqüentemente, cria-se a possibilidade de surgir uma nova estrutura e o agregado continua sua
trajetória de desenvolvimento numa nova fase de estabilidade ou (d) as ações dos agentes inviabilizam
o processo semiótico compartilhado que justificava a vida em comum que eles tinham e o agregado
tende a desagregação.

O modelo de estruturação proposto acima permite prever a direção geral do desenvolvimento


dos agregados familiares quando eles puderem ser observados sob o impacto dos efeitos de eventos

84
disruptivos. É possível relacionar uma quantidade bastante razoável de eventos que se presume como
disruptivos – as situações de risco em geral, os contextos de intervenção em saúde (prevenção, cura e
promoção), as transições normativas (primeira gravidez, primeiro emprego, etc.), desemprego e morte.
De todos eles se pode esperar uma série de acontecimentos subseqüentes na vida dos agentes e dos
agregados cujos efeitos gerais podem ser previstos pelo modelo. Mas o modelo proposto não pode nos
indicar o conteúdo concreto das mudanças, restringindo-se apenas à direção geral do desenvolvimento
do agregado. Conhecendo a estrutura familiar e a história de eventos aos quais ela foi submetida é
possível explicar a posteriori porque ela evoluiu para um dos estados descritos anteriormente ou prever
a priori em quais dos estados ela estará num futuro próximo. Não podemos, contudo, dizer qual será o
conteúdo e o valor dos novos códigos, nem como os agentes se organizarão para compartilhar as ações
do cotidiano, nem qual dos signos propostos e defendidos pelos agentes será mais influente da
determinação da nova hegemonia. Para reduzir o grau de imprevisibilidade do modelo devemos incluir,
de uma forma explicita, a trajetória de desenvolvimento da cultura pessoal (Valsiner, 1998) dos
agentes. Como Bibeau afirmou: “É da interação entre os processos coletivos e as trajetórias individuais
que deveria surgir uma compreensão adequada das condições em que se desenrolam os principais
problemas de um grupo, assim como as estratégias que se elaboram para enfrentá-los” (Bibeau, 1992,
p.16).

CAPITULO V
Conclusões

O que se tentou demonstrar ao longo dessa dissertação foi que a produção dos cuidados com a
saúde-doença, enquanto conjunto de crenças e comportamentos, se realiza na cotidianidade do viver.
Seja qual for o agregado, independente da sua localização na rede da sociabilidade humana que
determina os processos sdc, sua capacidade de influenciar não está dada de antemão, deve ser
construída e reconstruída, o que abre o processo para as disputas de poder e para a formação de
correlações de forças e hegemonias.

85
Compreender a estruturação do sistema de cuidados nos agregados familiares é um importante
passo no caminho da construção social da saúde para todos. Uma compreensão focada no processo de
estruturação pode permitir aos agentes sociais aceitarem mais conscientemente suas limitações e
explorar de forma mais ousada seu trabalho criativo. Pode se tentar ir além das políticas culturalmente
sensíveis e dialógicas, tão importantes no esforço para alcançar melhor qualidade de vida para todos.
Pode se enfrentar com mais esperança o paradoxo da planificação que tem produzido, em muitas
situações, efeitos menos positivos sobre a saúde das pessoas do que os produzidos em situações onde
não se planifica (Paim e Almeida Filho, 2000).

Ao deslocar o foco para a estruturação dos agregados estamos querendo entender como o
sistema de cuidados com a vida é produzido e reproduzido cotidianamente. Não é suficiente descer do
pedestal da ciência e ir ao encontro do saber popular para encontrar uma linguagem, ou um discurso
que leve em conta o que eles sabem como uma estratégia para ensiná-los o que nós sabemos. É preciso
ser ainda mais íntimo. Não basta reconhecer que mesmo as pessoas mais simples ou as culturas mais
exóticas se posicionam como agentes que cuidam de sua própria vida através de suas culturas e ações.
É preciso reconhecer que eles têm poder sobre o que fazem e o que pensam e em torno de suas idéias e
ações se organizam para conduzir suas próprias vidas, e que as regras e normas às quais se sujeitam são
por eles produzidas e reproduzidas.

Conhecer a estruturação nos permite entrar no mérito da questão central para as intervenções e
planejamentos – o que faremos para que as populações interessadas respondam positivamente –
mudando a pergunta para como as pessoas se estruturam para cuidar da vida porque, em geral, elas já
fazem o melhor que podem por si mesmas. Essa pergunta, entretanto, deve ser dirigida não apenas para
os que estão diretamente envolvidos num programa de promoção ou numa ação de prevenção, mas para
toda a rede de cuidados porque, independente do agregado ao qual pertence o agente, o sistema de
cuidados é uma rede de agregados e de agentes articulados que normatizam e regulam mutuamente as
suas ações. Como o planejamento e as intervenções são produzidos e implementados através de ações
locais e compartimentalizadas, aposta-se em se obter o máximo de efeitos positivos locais na
expectativa de que a soma global será positiva: todo esforço, então, é ganhar a maior adesão possível,
se aproximando das culturas do bairro, da comunidade, do povo. A pergunta que estamos propondo em
lugar das tradicionais se dirige ao processo social de cuidados com a saúde-doença, ou seja, à produção
social da saúde-doença. Tomando a utopia da saúde para todos como referencial normativo a ser
seguido, as perguntas tradicionais continuam válidas ao campo restrito das técnicas de persuasão e,

86
nestes termos, devem compor os esforços mais amplos e ousados de mudança de paradigma da doença
para a saúde.

As tentativas de mudar o foco das perguntas investigativas da doença para a saúde e da cultura
para a estruturação do cotidiano estão apenas começando e certamente são encorajadas pelos esforços
crescentes de amplos setores científicos em lidar com a complexidade dos fenômenos da saúde-doença.
Talvez, a mais importante dificuldade para se descrever e explicar o processo de produção da saúde-
doença de uma perspectiva semiótica ou mesmo cultural, seja incorporar em modelos que tentam
explicar crenças e comportamentos de grupos sociais as particularidades das trajetórias individuais.

5.1. Pressupostos para a inclusão das trajetórias individuais dos agentes semióticos.

A ação de um agente semiótico é uma intervenção intencional. Na forma como estamos


concebendo-a, trata-se de uma ação causal no mundo, sujeita à possibilidade de monitoramento
reflexivo pelo próprio agente e pelos agregados sociais. O processo socialmente compartilhado de
produção de signos é a forma pela qual o agenciamento constrói a cultura. A ação semiótica produz e
reproduz a cultura através da criação de significados pessoais acerca do “significado” das coisas e das
relações e através de atos de escolha, como por exemplo, de certos tipos de relacionamentos, trabalhos
ou produtos para consumo. Socialmente acoplados, os agentes semióticos dependem da comunicação
para que suas ontogenias ocorram. Mas a comunicação entre agentes, não implica só numa
argumentação para o outro, mas numa negociação com o outro sobre o que se pode ou não fazer em
comum. Por outro lado, o processo sócio-semiótico não produz apenas cultura em geral, mas cultura
em específico, institucionalizada, organizada em agregados que se mantém graças às relações sociais
cotidianas que os tornam dinamicamente estáveis, mas de qualquer forma transitivos, existindo, por
maior que seja sua duração, pela condição de que sejam produzidos e reproduzidos pelas ações e
interações dos agentes. Os diversos estados pelos quais passa um processo social podem ser
caracterizados pela correlação de forças entre os agentes (hegemonia semiótica), na produção semiótica
que coordena o comportamento global do agregado. Precisamente porque dependem de negociações
sistemáticas o tempo todo, é que pode haver a dominação/hegemonia da ação de um (ns) agente (s) por
outro(s). Os agentes e seus agenciamentos produzem, com o fim específico de controlar as posições
que eles ocupam no processo social e os códigos que justificam suas ações e interações num
determinado momento do tempo, as diversas formas de controle e contra-controle sobre o processo
comunicacional que substancia as relações sociais. As relações de dominação e hegemonia que

87
caracterizam tão obviamente a política e a economia (duas das grandes dimensões da rede da
sociabilidade humana) são contínuas com as relações de dominação e hegemonia entre gêneros e entre
gerações que tão corriqueiramente caracterizam a vida familiar.
Esse é o contexto criado pelo agente, mas quem é o agente, qual o seu nome, o seu rosto, onde
está a sua vida? O que fizemos até aqui foi destacar o lugar criativo dos agentes na construção de sua
determinação social. Seria conveniente ir além disso num campo essencialmente voltado para produzir
saberes e praticas sobre a vida de populações? Falar de família e outros agregados sociais num campo
onde a disciplina hegemônica lida com agregados estatísticos pode parecer demasiado arriscado; não
seria uma aventura incluir as trajetórias de vida das pessoas? Não, pelo menos por uma razão, a
necessidade de prover os modelos com a maior capacidade de previsão possível. Se, matematicamente,
modelos que incluem a idiossincrasia dos indivíduos tornam-se intratáveis, não se deve concluir daí
que eles são impossíveis de serem tratados por outros meios, meios esses, mais convenientes para a
compreensão de fenômenos sociais. Vimos, de acordo com Bhaskar, que fenômenos sociais podem ser
estudados cientificamente desde que se reconheça, entre outras coisas, que a ação intencional dos
agentes sociais é causal. Ora, quanto mais pudermos saber sobre a cultura pessoal do agente, mais claro
ficará o seu posicionamento no interior dos modos de partilhar cuidados com a saúde-doença, e mais
evidenciados ainda, a sua contribuição para a produção da hegemonia semiótica orientadora do
comportamento do agregado num determinado período de tempo.
Frohlich, Corin e Potvin (2001) num estudo crítico sobre o uso do conceito de contexto na
epidemiologia, propõem que se inclua a relação entre agenciamento, práticas e estrutura social, como
uma forma nova de se focalizar os estilos de vida coletivos, entendidos como formas compartilhadas de
ação e relação entre os agentes num determinado ambiente. Assumindo explicitamente a influência de
Bourdieu e Giddens, as autoras desenvolvem o argumento de que os estilos de vida devem ser
analisados como aspectos observáveis dos contextos, através das práticas dos indivíduos, que
recursivamente formam o contexto e por eles são formados. “Contexto é o reflexo do lugar e das
características das pessoas do lugar. O contexto reflete os estilos de vida das pessoas, simultaneamente,
em termos de relacionamentos pessoais característicos de um lugar e da similitude entre eles em termos
de práticas sociais. O lugar não pode influenciar as práticas sociais sem grupos de pessoas que estão
influenciando o lugar através de suas práticas sociais” (Frohlich, Corin, Potvin, 2001, p. 792). É
interessante notar que em nenhum momento do artigo as autoras usam o termo cultura para se referir ao
contexto. O espaço social que elas estudam foi dividido em estrutura social, praticas sociais e
agenciamento. Entretanto, o lugar do agenciamento e das práticas sociais é destacado para legitimar a
estratégia metodológica de usar o comportamento dos indivíduos como fonte de informação sobre o
88
contexto. Como já vimos, as propriedades reflexivas dos fenômenos sociais permitem que se tomem os
produtos de um agregado como insumos de outro. Mas as autoras mantém a tradição dos estudos
interculturais sobre saúde-doença e apostam exclusivamente na estabilidade das estruturas e práticas
sociais como uma espécie de imperativo metodológico intransponível, não deixando, com isso, espaço
para o agente, apesar de destacar o agenciamento. Elas próprias reconhecem que na concepção de estilo
de vida que elas adotam, a ênfase recai na estabilidade e não na mudança. “É mais promissor usar este
instrumental teórico para descrever o que os estilos de vida são do que para descrever como eles
mudam” (idem, 793).
Estou convencido que a forma de superar esta aparente impossibilidade é aceitar
peremptoriamente que os agentes humanos são organizacionalmente fechados e impõem aos agregados
um fator de imprevisibilidade criativa inevitável. O que podemos fazer para reduzir os efeitos
ofuscadores da ação semiótica dos agentes é conhecer mais e melhor como os agentes produzem suas
ontogenias por meio das ordens e desordens sociais que eles coletivamente criam. Ao focalizar o
agenciamento e, simultaneamente, a cultura pessoal do agente numa unidade de tempo (T 1), podemos
ensaiar o desenho de modelos que tentem antecipar o agenciamento numa unidade de tempo posterior
(T2) através da discriminação da cultura dos agentes e dos efeitos que sua externalização podem
provocar no comportamento global do agregado. Mas o que é a cultura pessoal do agente?
Segundo Valsiner (1998): “... a cultura coletiva é um sistema heterogêneo de significados, de
objetos significativos, de cenários ambientais, de contextos ritualizados e de sugestões sociais
explícitas que servem como ‘inputs’ orientadores para o desenvolvimento da personalidade – que é a
cultura pessoal” (idem, 398). Trata-se de um sistema idiossincrático de símbolos, praticas e objetos,
cuja função é “organizar os mundos intra e interpessoal no sentido de fornecer um sentido pessoal aos
encontros com o mundo, construindo uma compreensão do mundo que vai além da cultura coletiva”
(idem, p. 32). Através do processo de internalização/externalização, os agentes semióticos constroem
suas historias de vida reapropriando-se dos produtos culturais como sugestões que eles coletivamente
criaram e que canalizam seus desenvolvimentos (Valsiner, 1987). Ao entrarem em comunicação uns
com os outros, os agentes externalizam, num dado momento do tempo, sua cultura pessoal, e ao
fazerem isso, dão continuidade ao processo de co-construção que vinha se realizando até então.
Contudo, culturas pessoais não são estáticas e, portanto, não podemos esperar que a descrição da
cultura de um agente numa unidade de tempo informará com toda a certeza como o agente se
posicionará nos modos de partilhar e na construção dos códigos familiares numa unidade de tempo
posterior. Mas, de qualquer forma, pode-se reduzir as expectativas de incerteza quanto ao
comportamento do agregado, à medida que a trajetória do agente for sendo situada numa estrutura.
89
Além disso, ao descrever a cultura do agente, podemos inferir se está ou não havendo mudança de
comportamento e de crenças pessoais em relação aos processos sdc, o que certamente, é um indicador
seguro das possibilidades de mudança do agregado como um todo.
Metodologicamente, o ponto sensível para a observação da cultura pessoal é identificar a
relação entre aquilo que é conservado e aquilo que está mudando na cultura do agente.
Rompendo com a dualidade interno/externo que caracteriza os estudos que enfatizam a
estabilidade ao invés da mudança, podemos tentar equacionar a questão de como os agentes podem
produzir novidades semióticas em suas ações coletivas. De um ponto de vista peirciano o conhecimento
novo é criado pela invenção de hipóteses razoáveis sobre os fatos observados no presente, sem que
essas hipóteses tenham sido ainda avaliadas por qualquer método indutivo ou dedutivo 30. Nas situações
cotidianas nos defrontamos com situações deste tipo comumente. Sempre temos que decidir, baseado
na experiência passada, se o comportamento numa situação do presente terá os efeitos desejados no
futuro. O elemento de incerteza presente nas situações cotidianas – colocado pela presentificação do
passado e pela antecipação do futuro – exige que nos arrisquemos um pouco mais do que as regras
culturais talvez desejassem, e formulemos hipóteses de ação que não estão ainda muito certas, que
julgamos ser as mais adequadas e convenientes e das quais esperamos efeitos desejados, mas incertos.
Assim, a cultura coletiva resultante das ações e interações entre os agentes, dentro e entre os agregados
sociais, é mais e menos do que a soma das culturas pessoais dos agentes semióticos. É mais porque as
normas que caracterizam e justificam as ações dos agentes e que resultaram das suas interações não
podem ser reduzidas ao comportamento de um agente isolado, qualquer que seja a sua posição de força
dentro de um dado estado de hegemonia semiótica. É menos porque as propriedades globais que
emergem das interações entre os agentes na forma de normas culturais não expressam, por nenhum
método de redução, a diversidade das ações semióticas dos agentes nem as culturas pessoais que eles
criam quando acatam, recusam ou neutralizam as sugestões culturais.
O mesmo raciocínio é valido para entendermos a relação entre a estrutura familiar (MP-C) e as
crenças e comportamentos dos agentes que formam a família. A estrutura regula limitadamente as ações
dos agentes, ou seja, a capacidade de normatização é restrita ao conteúdo e ao valor dos códigos
familiares. Por outro lado, as ações semióticas dos agentes que compõem a família transcendem ao que
foi codificado e socialmente compartilhado: a riqueza semiótica de um sistema familiar não é redutível
à sua estrutura semiótica. Além disso, se as ações dos agentes não são inteiramente dependentes da
30
O tipo de inferência criativa de que estamos falando chama-se ABDUÇÃO: Inferências consistentes com os fatos, com as
explicações possíveis para ele e com os desdobramentos que se espera dessa explicação, sem que haja provas definitivas de
como elas operam e sem que a inferência seja a única dedução logicamente válida, podendo ser, a mais razoável, sensata ou
conveniente numa dada circunstância. Os processos abdutivos conectam, na atividade semiótica do agente, a experiência do
passado com a variedade de possibilidades de ação no futuro que orientam seus comportamentos no presente.

90
estrutura familiar, podendo, inclusive se opor a ela, a ação da estrutura é inteiramente dependente das
ações dos agentes e só existe por meio delas, através de modos concretos de partilhar crenças e
comportamentos.
Metodologicamente pode se derivar as seguintes conseqüências do que foi dito acima:

(a) A capacidade de previsão de qualquer modelo que leve em conta a dinâmica


familiar depende da explicitação das relações entre a estrutura familiar e as culturas
pessoais dos agentes em diferentes instantes de uma trajetória temporal;

(b) A produção semiótica do agente define sua posição dentro da estrutura: quanto mais
ela for explícita ou explicitada mais claro ficará para o observador a influência que
o agente exerce na construção de uma dada hegemonia semiótica no interior do
agregado familiar;

(c) Os elementos que constituem os Modos de Partilhar – a posição dos agentes na


estrutura, a qualidade da interação entre os agentes, a hierarquia das atividades que
eles compartilham, a distribuição dos agentes nas atividades e a caracterização das
rotinas que estruturam o cotidiano familiar – se referem ao agenciamento, do ponto
de vista de sua influência causal sobre a estrutura familiar31;

(d) As crenças e comportamentos dos agentes que, funcionalmente, não estão incluídos
na classe dos agenciamentos para a produção da estrutura familiar, devem ser
investigados e especificados visando:

1) Acompanhar a trajetória de desenvolvimento dos agentes; [o agente mudou hábitos


que põe sua saúde em risco, por exemplo].

2) Identificar possíveis impactos futuros sobre o processo de produção da hegemonia


semiótica do agregado; [o agente está se tornando mais autônomo frente aos seus
cuidadores, por exemplo].

O refinamento do modelo que está sendo esboçado nesta dissertação depende de investigações
teóricas e etnográficas futuras.

31
A compreensão sobre os elementos que constituem os modos de partilhar ainda é bastante inicial. É necessário especificar
as dimensões de cada categoria e os indicadores que podem ser utilizados para sua observação.

91
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Glossário

Agente: O ser vivo pode ser designado como agente para destacar a propriedade de realizar ações que
lhe permitam “continuar sua existência em um determinado meio ao fazer surgir o seu mundo”
(Maturana e Varela, 2001, p. 36).

Agente social: é todo agente cuja ontogenia se realiza através de interações coordenadas entre agentes,
que resultam numa história de mudanças estruturais mútuas e funcionalmente articuladas.

Agregado: Conjunto de agentes cujas interações coordenadas resultam em propriedades estruturais que
delimitam fronteiras com o mundo social.

Agregado social: Agregado de agregados.

98
Atividade social transformativa: “A caracterização da estrutura ontológica da atividade humana
como essencialmente transformativa ou poiética”, consiste em afirmar que “a transformação de causas
materiais (naturais e sociais) pré-estabelecidas”, se faz “pela atividade intencional eficiente” do agente.
“É válido propor eficiência causal para os eventos sociais, pois o social existe e persiste apenas em
virtude da atividade humana” O modelo transformativo, portanto, acentua o “caráter recursivo da vida
social” (Bhaskar, 1986, p. 122).

Códigos: Instrumentos para criar valorizações, produzir marcações que agregam ou separam, operar
reciclagens que interrompem ou dão continuidade a um processo comunicativo; são estruturas
semióticas compartilhadas por uma comunidade de conviventes. Códigos são relações sociais
recorrentes, ou seja, só existem e funcionam como tais se forem produzidos e reproduzidos
cotidianamente. Os sistemas cognitivos dos agentes operam com os códigos, conservando-os e
transformando-os, segundo as exigências cotidianas e os imperativos da satisfação dos seus desejos,
submetendo-os à semiose.
Finalmente códigos são padrões propositivos que justificam comportamentos, códigos são crenças
estruturadas.

Crenças: Toda e qualquer proposição que justifica um comportamento. Crenças podem justificar uma
ação, descrevendo suas características ou efeitos, explicando suas causas ou razões de existência,
prevendo suas conseqüências, prescrevendo ações que modifiquem ou conservem um objeto ou
evento. Justificar é uma forma reflexiva, orientadora, de coordenar ações entre agentes.

Estruturação social: As propriedades estruturais da sociedade, como a cultura, por exemplo, têm
efeitos causais sobre as ações humanas “simplesmente porque são produzidas e reproduzidas nas ações
cotidianas”. “Todas as coações sociais só são coações em função dos motivos ou interesses que possam
ter os atores” (Giddens, 2000, p. 66-67).

Hegemonia semiótica: O controle do processo de produção dos signos, que se dá através da


cooperação/competição entre os agentes a partir de uma dada posição que eles previamente ocupam no
processo semiótico, resultam em correlações de forças e hierarquias entre os agentes que estipulam as
condições de fronteira de um agregado social. O estado semiótico hegemônico é constituído de
99
oposições funcionais de duas classes de códigos (dominantes e subalternos) e de comportamentos
(cooperativos e competitivos)
. Códigos definem o que é pertinente a uma relação social e aquilo que está fora da relação, ou para ser
rejeitado, ou para ser incluído condicionalmente.

Metabolismo social: (Marx, 1985; Foster, 1999): Por metabolismo social deve se entender os
processos causais bidirecionais entre as transformações que a sociedade humana realiza sobre a
natureza (através do trabalho) e as modificações nas formas das relações sociais que sustentam sua
atividade no mundo.

Modos de Partilhar: Descrevem como os agentes sociais, ocupando posições diferentes dentro de um
agregado familiar, coordenam suas ações em atividades para, através de suas relações, construírem uma
estrutura de convivência cotidiana. Enquanto categoria analítica ela inclui todos os critérios que devem
ser observados para saber se um determinado processo social é ou não estruturado: dependência de
atividade, de conceito, de distribuição espaço-temporal e de relação social (Bhaskar, 1986). Enquanto
fazer concreto, os agentes estruturam seu cotidiano familiar criando modos de partilhar suas crenças e
comportamentos na realização de atividades estruturantes.

Princípio ontológico:
Causalidade: Os fenômenos e os processos sociais são causados pelas ações e interações dos agentes.

Princípios epistemológicos:
Recursividade: Os fenômenos sociais são redutíveis às ações e interações entre os agentes sociais.
Auto-referencialidade: As ações e interações são atos comunicacionais cujos insumos e produtos são
signos.
Não-linearidade: Agentes são organizacionalmente fechados. Agregados são sistemas abertos

Rede da sociabilidade humana: Conjunto de estruturas histórica e funcionalmente articuladas pelas


ações e interações dos seres humanos na realização convivial do processo de produção [criação,
reprodução e controle] da vida.

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Saúde: Modo de Produção da Vida Humana que se expressa num conjunto de iniciativas pessoais e
coletivas que realizam a produção da unidade e da identidade autopoiética e das condições conviviais
do viver humano, através de sistemas de cuidados com a saúde-doença, orientados pela meta de viver
mais e melhor. O sistema de cuidados com a saúde está distribuído na rede da sociabilidade humana.

Sistema de cuidados com a saúde-doença: Conjunto de práticas e saberes criados, reproduzidos e


controlados por agentes dedicados à produção social da vida e do viver humano.

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