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MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70:...

CONASEMS
Conselho Nacional de
Secretarias Municipais de Saúde

MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO


NA DÉCADA DE 70:
A PARTICIPAÇÃO DAS UNIVERSIDADES
E DOS MUNICÍPIOS

MEMÓRIAS

1ª Edição
Brasília, novembro 2007
MEMÓRIAS
2

Copyright 2007 – 1ª Edição – Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS)

É permitida a reprodução total ou parcial dessa obra, desde que citada a fonte.

MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70: A PARTICIPAÇÃO DAS


UNIVERSIDADES E DOS MUNICÍPIOS - MEMÓRIAS

Tiragem: 10.000

Impressão: Athalaia Gráfica e Editora

Brasil. Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde


Distrito Federal/Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde – Brasília:
Conasems,2007
92 p. ( MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70: A PARTICIPAÇÃO
DAS UNIVERSIDADES E DOS MUNICÍPIOS - MEMÓRIAS).
1. REFORMA SANITÁRIA 2. POLÍTICAS DE SAÚDE NO BRASIL 3. MUNICIPALIZAÇÃO
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3

Diretoria do CONASEMS

Helvécio Miranda Magalhães Júnior


Presidente

José Sival Clemente da Silva


Vice-Presidente

Luciano Von Saltiel


Vice-Presidente

Aparecida Linhares Pimenta


Diretora Administrativa

Antônio Carlos de Oliveira Júnior


Diretor Administrativo – Adjunto

Antônio Carlos Figueiredo Nardi


Diretor Financeiro

Mauro Guimarães Junqueira


Diretor Financeiro – Adjunto

Luiz Odorico Monteiro de Andrade


Diretor Comunicação Social

Tereza de Jesus Campos Neta


Diretor Comunicação Social – Adjunto

Raimundo Alves Costa


Diretor de Descentralização e Regionalização

Maria Adriana Moreira


Diretor de Descentralização e Regionalização – Adjunto

Edvaldo Luiz Gonçalves


Diretor de Relações Institucionais e Parlamentares

Marineze Araujo Meira


Diretor de Relações Institucionais e Parlamentares – Adjunto
MEMÓRIAS
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ORGANIZAÇÃO E PESQUISA

Carmen Lavras
Médica Sanitarista
Doutora em Saúde Coletiva
Pesquisadora Associada do NEPP/UNICAMP
Consultora do CONASEMS

Sonia Prieto
Doutora em Teoria e História Literária pela UNICAMP

Vicente Contador
Doutor em História Econômica pela FFLCH - USP
Professor de História das Relações Internacionais FACAMP

REVISÃO
Sonia Prieto
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SUMÁRIO

Apresentação ............................................................................................................ 7

Nota das organizadoras ........................................................................................... 9

Relação dos Entrevistados ...................................................................................... 11

Introdução

A conjuntura política nacional e o Movimento Municipalista na área da


Saúde na década de 70 ............................................................................... 17

Capítulo 1

Saúde e Democracia: reflexão acadêmica e ação política - depoimento


de Sérgio Arouca ........................................................................................... 43

Capítulo 2

As idéias e as práticas comunitárias na construção de serviços munici-


pais de saúde na década de 70 .................................................................. 59

2.1. A experiência de Campinas ................................................................... 63

2.2. A experiência de Londrina ...................................................................... 73

2.3. A experiência de Niterói .......................................................................... 80

Considerações Finais .............................................................................................. 89

Lista de Siglas .......................................................................................................... 91


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APRESENTAÇÃO

A municipalização, enquanto estratégia de construção no Brasil do Sistema


Único de Saúde – SUS – orientado pelos princípios de universalidade, eqüidade e
integralidade, e pelas diretrizes de descentralização, regionalização, hierarquização
e controle social, consolidou-se amplamente no País durante as últimas décadas.
Solução consensual entre os diferentes atores sociais comprometidos com o setor
saúde, a municipalização vem sendo entendida como opção estratégica para realizar
os princípios essenciais que deram sustentação às mudanças do modelo de gestão
e de atenção à saúde em curso.
No amplo movimento de constituição do projeto de Reforma Sanitária Brasileira
que antecedeu em quase uma década o processo de elaboração e promulgação da
Constituição de 1988 que instituiu o SUS, a contribuição de diversos movimentos
sociais, de universidades e de experiências desencadeadas na esfera municipal foi
decisiva.
Nesse movimento, a capacidade de ação política de Sérgio Arouca foi
fundamental na construção de um novo caminho para o setor saúde no Brasil. Ao
mobilizar e integrar pessoas e instituições no debate sobre a determinação social
do processo saúde-doença, Arouca favoreceu a formulação e a introdução, no campo
da saúde, das bases conceituais e ideológicas que sustentam a concepção de
medicina como prática social. Esse processo de questionamento crítico da Saúde,
inaugurado nos anos 70, foi caracterizado por uma questão central defendida por
Arouca: a compreensão que a ação por dentro do setor saúde poderia engendrar a
democratização da sociedade brasileira. Assim, à constituição do pensamento
médico-social foram agregados conceitos básicos da luta pela transformação da
sociedade, especialmente as noções de descentralização e de participação social,
imprescindíveis ao processo de construção de políticas públicas.
Nessa perspectiva, os municípios de Campinas, Londrina e Niterói, dentre
outros municípios, organizaram seus respectivos sistemas de saúde e abriram novos
caminhos, polarizando a discussão sobre práticas comunitárias inovadoras na área
da saúde e, ao mesmo tempo, articulando uma rede de pessoas e instituições
comprometidas com o fortalecimento e o desenvolvimento do espaço municipal. A
experiência desses municípios, na vanguarda do Movimento Municipalista, registra
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uma história de luta pela democratização do setor saúde conjugada ao processo de


redemocratização do País. Naquela época, as ações municipais desenvolvidas
tiveram como eixo a implementação de projetos de medicina comunitária centrados
no entendimento que a organização da saúde é uma atividade intersetorial, e implica
a participação da sociedade.
Com esta publicação, que reúne um conjunto de informações que permitem
uma compreensão mais ampla da luta pela municipalização da saúde no período
em questão, espera-se reafirmar a importância dessas experiências comunitárias
no campo da saúde. Momento pouco estudado da história do movimento municipalista
no Brasil, a implantação de serviços locais de saúde efetuada por esses três
municípios afigura-se como uma das raízes do Movimento pela Reforma Sanitária
no País e base do Movimento Municipalista.
O CONASEMS entende que revisitar esse período poderá contribuir para
uma compreensão mais ampliada do processo de consolidação das concepções
que deram sustentação ao Movimento pela Reforma Sanitária no Brasil. As questões
fundamentais que orientaram as ações desencadeadas nesses municípios naquela
época tomaram corpo na mobilização de diferentes grupos em torno dos interesses
coletivos e em defesa de uma política de saúde pública e de qualidade. As
experiências vivenciadas pelos municípios de Campinas, Londrina e Niterói
contribuíram para fortalecer um posicionamento político contrário ao projeto
privativista de saúde hegemônico na época, constituindo-se como um marco para o
Movimento de Reforma Sanitária no Brasil.

Helvécio Miranda Magalhães Júnior


Presidente do CONASEMS
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NOTAS DAS ORGANIZADORAS

A reconstrução de parte da história do movimento pela reforma sanitária


brasileira, incluindo o resgate das experiências de Campinas, Londrina e Niterói na
área da saúde na década de 70 levou à opção por apresentar uma Introdução1 aos
depoimentos colhidos, compreendendo a conjuntura sócio-política da época, de
forma a situar as ações iniciais do movimento municipalista em seu contexto de
emergência. O Capítulo 1 centra-se no depoimento de Sérgio Arouca referente aos
cenários técnico e político que engendraram os vínculos entre as ciências sociais
e a saúde na renovação do pensamento em saúde, bem como os desdobramentos
dessa vinculação na prática médica. No Capítulo 2, mostra-se, a partir da
reconstrução da história vivida pelos entrevistados, a posição de vanguarda que
esses municípios ocuparam na organização de serviços de saúde de base municipal
na década de 70.
As informações e depoimentos aqui apresentados foram colhidos no Encontro
promovido pelo CONASEMS, que reuniu em Brasília, em 13/02/2003, o grupo de
atores que fizeram parte desse momento histórico. O objetivo do Encontro, parte
das comemorações dos 15 anos da entidade, foi resgatar a memória da luta desses
atores pela municipalização da saúde e pela redemocratização do País. Coordenado
por Carmen Lavras2, assessora do CONASEMS naquele momento, com o apoio de
Cristina Ruas e Vera Muniz, participaram desse evento os profissionais que iniciaram
o processo de municipalização da saúde nesses municípios. Como no Encontro os
profissionais de Londrina não puderam comparecer, buscou-se posteriormente colher
o depoimento de Márcio José de Almeida sobre a experiência desse município, o
que aconteceu em 2007.
Os textos dos entrevistados, produtos da gravação do Encontro, receberam
tratamento de transcrição textual, na qual foram processadas as adaptações

1
O texto introdutório desta publicação foi produzido por Vicente Contador.
2
Participou, como aluna, dos projetos desenvolvidos pelo Laboratório de Educação Médica e Medicina Comunitária (LEMC) da UNICAMP.
Médica Sanitarista, integrou a equipe da SMS de Campinas/SP na implantação do projeto de medicina comunitária na década de 70. Foi
Secretaria Municipal de Saúde de Campinas (1994-1996).
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necessárias à passagem do registro oral para o escrito. Respeitando-se o conteúdo


das idéias emitidas pelos entrevistados, os depoimentos foram reorganizados sob
a forma de blocos temáticos. Essa opção justifica-se em função da necessidade de
apresentar de forma mais didática os relatos, a fim de dar maior relevo à participação
dos diferentes atores sociais  gestores públicos, universidade, comunidades 
que, articulados, engendraram a transformação do setor saúde nesses municípios.

Carmen Lavras
Sonia Prieto
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RELAÇÃO DOS ENTREVISTADOS

ANTONIO SÉRGIO DA SILVA AROUCA


Médico sanitarista; Doutor em Saúde Pública;
Professor de Medicina Preventiva e Social da FCM
da UNICAMP; Pesquisador da FIOCRUZ (1975-
1978); Fundador e Presidente do CEBES (1976);
Consultor da OPAS em países latino-americanos
(Nicarágua, Honduras, México, Colômbia, Costa
Rica e Cuba); Presidente da FIOCRUZ (1985-
1989); Deputado Federal (em 1990 e em 1994);
Secretário Municipal de Saúde do Rio de Janeiro
(2001-2003); Secretário de Saúde do Estado do
Rio de Janeiro (1987-1989); Secretário de Gestão
Participativa do Ministério da Saúde (2003)

ANTÔNIO DA CRUZ GARCIA


Médico; Diretor de Saúde da Secretaria Municipal
de Saúde de Campinas/SP (1977-1980);
Secretário Municipal de Saúde de Campinas
(1991-1992); Presidente do Conselho Municipal
de Saúde de Campinas
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FRANCISCO MONTEIRO
Médico da Secretaria de Estado da Saúde do
Ceará; Médico da Secretaria Municipal de
Campinas/SP nas décadas de 70 e 80;
Funcionário da ANVISA; Representante da
Associação Médica do Ceará no Conselho
Nacional de Saúde

GILSON CANTARINO O’DWYER

Médico; Especialista em Psiquiatria; Secretário


Municipal de Saúde de Niterói/Rio de Janeiro
(1989-1999); Presidente do COSEMS/Rio de
Janeiro (1993-1995); Presidente do CONASEMS
(1995-1998; Secretário de Saúde do Estado do
Rio de Janeiro (1999-2002); Presidente do
CONASS (2003-2005)

HUGO COELHO BARBOSA TOMASSINI

Médico sanitarista; Professor do Departamento


de Medicina Preventiva da FCM da UFF; Secretário
Municipal de Saúde de Niterói (1997-1980);
Integrante da equipe do Projeto Niterói
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MÁRCIO JOSÉ DE ALMEIDA

Médico; Doutor em Saúde Pública; Professor da


FCM da UEL; Secretário Municipal de Saúde de
Londrina/PR (1977-1980)

MARINA SENA PESSOTO

Assistente Social; Coordenadora dos postos


médicos comunitários da SMS de Campinas na
gestão de Sebastião de Moraes; Secretária de
Planejamento do Município de Itu (1983 - 1993);
Assessora da SMS Campinas (1994-1996).
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A conjuntura política nacional e o


Movimento Municipalista na área da saúde
na década de 70
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INTRODUÇÃO

A conjuntura política nacional


e o Movimento Municipalista na área da saúde
na década de 70

Vicente Contador

Para melhor entendimento acerca da memória das experiências municipais


pioneiras na organização de serviços de saúde na década de 70 reunidas neste
volume, afigura-se como necessária uma análise do contexto sócio-político e
econômico em que ocorreram essas experiências.
No contexto de repressão e de aumento da pobreza que marcou essa década,
a luta pela democratização da saúde emerge no cenário da mobilização política da
sociedade civil, compondo, junto com diversos atores sociais, a resistência ao
autoritarismo do governo militar. Entre os fatores determinantes para o
desencadeamento da abertura política que se iniciou naquela época, figuram aqueles
que são tanto de caráter econômico, quanto de caráter político e social, os quais
compreendem as diversas formas de movimentos de resistência pacífica à ditadura
militar, oriundos dos setores democráticos e populares da sociedade civil nacional,
entre os quais figura o chamado Movimento Municipalista para a Saúde.

O Governo Geisel (1974-1979)

O ex-presidente Ernesto Geisel, juntamente com seu chefe da Casa Civil, o


general Golbery do Couto e Silva, são comumente descritos por alguns analistas
do regime autoritário-militar pós-64 como os formuladores e condutores de um
“projeto” de abertura política a partir de 1974. Tal forma de abordagem apregoa que
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Geisel, contando apenas com a ajuda de Golbery, “acabou com a ditadura”,


“desmantelou o regime”, mantendo “afastados os políticos, a imprensa e a opinião
pública”3. Nesse sentido, a transição brasileira deveu-se “menos às pressões civis
por democracia que à intenção aberturista das Forças Armadas”, com o regime
autoritário-militar controlando e ordenando “o reingresso dos civis à esfera do poder”4.
Todavia, ao ser adotada essa interpretação, corre-se o risco de conformação
com a visão de que o abrandamento das medidas de exceção, o desmantelamento
paulatino dos órgãos de informação e repressão do regime, o enfrentamento com
os oficiais denominados de linha dura que se opunham a essas medidas, e, enfim,
a impossibilidade de ocorrer um novo fechamento político durante o governo Geisel
e o de seu sucessor, o general João Figueiredo, tudo isso teria dependido
fundamentalmente da vontade e das ações unilaterais inseridas no projeto de abertura
política lenta, segura e gradual dos militares castelistas, que era a corrente militar
dentro das Forças Armadas a qual pertenciam Geisel, Golbery e Figueiredo, tida
como “moderada”, ou seja, contrária à ditadura desde a fase inicial do regime e
favorável à devolução do poder aos civis o quanto antes.
O regime, por ser então tido como “brando” quanto ao grau de repressão
utilizado contra os chamados inimigos internos, em comparação com os seus
congêneres na América Latina, desfrutaria de uma “legitimidade” para formular um
“projeto” de abertura política e conduzi-lo a seu modo de forma bem sucedida,

3
Elio Gaspari, A Ditadura Envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p.35
4
Héctor Luis Saint-Pierre in Kalil Mathias, Distensão no Brasil: O Projeto Militar. Campinas: Papirus, 1995, pp. 15, 20-23.
5
Ver Kalil Mathias, 1995, assim como as críticas que são feitas a sua argumentação de que a repressão empregada pelo regime autoritário-militar
brasileiro foi “baixa” e que ela “nem de longe alcançou o grau registrado em outros países, como a Argentina e Chile”. Os autores que a criticam,
como é o nosso caso, assinalam que o equívovo dessa argumentação está no fato de que ela não situa corretamente no tempo a instauração das
ditaduras militares nestes dois países e no Brasil, não levando em conta que o Brasil foi o primeiro país da América do Sul a implantar, na década
de 60, um regime autoritário-militar por meio de um golpe de Estado, vindo assim a servir como matriz ditatorial do exercício do poder controlado
pelos militares. Nunca é demais relembrar que a ditadura militar de direita no Brasil surgiu bem antes da ditadura boliviana, 1971, da chilena e
uruguaia, ambas instauradas em 1973, da peruana, 1975, e dos dois regimes autoritários-militares da Argentina, 1966 e 1976. Em decorrência,
como diz Jacob Gorender em Combate nas Trevas (São Paulo: Editora Ática, 1998), no momento em que estss ditaduras congêneres do Cone
Sul surgiram, a ditadura brasileira já havia atingido o seu “ápice repressivo em 1971, quando passa ao extermínio físico sistemático dos militantes
da esquerda [...], já com suas fileiras consideravelmente reduzidas”. Isso, segundo Gorender, fez com que os governos militares do Chile e da
Argentina se aproveitassem da experiência brasileira, deflagrando “o máximo de atividade repressiva desde o início”, “o que explica, ao menos
em parte sem dúvida, o número de mortos e desaparecidos bem menor no Brasil (em termos relativos e absolutos)”. Diante disso, toda e qualquer
argumentação de que no Brasil houve baixa repressão é inválida e inconsistente se deparada com a contra-argumentação de Gorender de que
“a ditadura brasileira não ficou atrás de suas similares em matéria de crueldade repressiva”, mas “bem pelo contrário, serviu-lhes de modelo e
para elas exportou seu know-how” (Gorender, Idem). Essa contra-argumentação é certificada pelo documento secreto do Sistema de Segurança
Interna, SISSEGIN, que diz que “o Chile e o Uruguai adotaram em seus países um sistema semelhante ao nosso, adaptados às leis e às
peculiaridades existentes em cada um deles”. O mencionado “sistema semelhante ao nosso” se referia ao sistema CODI-DOI, “genuína criação
brasileira”, um “produto nacional de exportação” (Apud: Carlos Fico, Como eles agiam - Os subterrâneos da Ditadura Militar: espionagem e polícia
política. Rio de Janeiro: Editora Record, 2001, pp.11, 135 e 147.
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evitando então chegar ao seu final por meio de um colapso5. O conceito aí implícito
de projeto parte, pois, da visão de que a abertura política foi uma decisão que partiu
dos oficiais de alto escalão da corrente castelista-geiselista, o que contrasta com a
idéia de “processo”, que, no entender do cientista político Bolívar Lamounier, implicaria
considerar a abertura política brasileira como fruto, entre outras coisas, das “ações
deliberadas de crítica e contestação empreendidas por grupos da sociedade civil”.
Na verdade, a abertura, constitui um processo sócio-político impulsionado
por vários movimentos de resistência encampados por diferentes sujeitos individuais
e coletivos da sociedade civil brasileira, abarcando desde as camadas populares,
os segmentos democráticos da classe média, tanto as de orientação liberal-
democrática quanto as de esquerda, e até mesmo algumas frações da alta burguesia
industrial nacional não mais satisfeitas com um modelo econômico desnacionalizante
e dependente do capital industrial-financeiro estrangeiro, o qual, a partir de 1973,
trazia à tona as suas graves deficiências estruturais. Não há como negar o impacto
causado num dos pilares de sustentação social do regime com a atuação de alguns
segmentos da alta e da pequena burguesia liberal que - a despeito de terem antes
apoiado o Golpe de 64, como a OAB e outras entidades profissionais, a grande
imprensa, os magistrados, políticos de centro e o grosso do empresariado nacional,
pouco depois da edição dos Atos Institucionais 2, 3 e 5, assim como da crise da
sucessão presidencial deflagrada pela enfermidade e o impedimento do marechal
Costa e Silva - começaram a questionar o fechamento político, a perseguição à
oposição pacífica, as diversas formas de violência contra presos políticos, a grande
interferência do Estado na economia, o aumento da centralização político-
administrativa por parte do Governo Federal, a concentração do poder deliberativo
nas mãos de um grupo cada vez menor de tecnocratas civis e de oficiais da alta
cúpula do Exército que constituíam os centros de decisões políticas e econômicas
fundamentais para o futuro do País.

Na esfera da política, a questão em torno não apenas da distensão do regime


autoritário-militar, mas também do retorno do Brasil ao regime democrático, já estava
visivelmente posta desde 1973 pela sociedade civil, quando o Movimento Democrático
Brasileiro (MDB) lança as (anti)candidaturas de Ulysses Guimarães e Barbosa Lima
Sobrinho à Presidência e Vice-Presidência da República, com o slogan “navegar é
preciso, viver não é preciso”. Esse fato adquire relevância histórica uma vez que
acabou atraindo a atenção da opinião pública nacional, o que propiciou a alavancagem
de uma ampla campanha pacífica pelo fim da opressão política e da censura à
imprensa, diminuindo assim o clima de medo e a imobilização geral impostos pelo
regime de exceção.
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Nas eleições parlamentares de novembro de 1974, o MDB, diferentemente


das eleições anteriores, obtém uma votação maciça a nível nacional, saindo-se
vitorioso ao eleger 335 Deputados Estaduais, 160 Deputados Federais (tendo assim
sua representação nessa casa aumentada em 96% em relação às eleições anteriores)
e 16 senadores (de um total de 24 cadeiras que foram disputadas). Após essa
derrota, a preocupação política de Geisel era tal que ele tratou de centralizar mais
ainda o poder no núcleo duro do Governo e de interferir ainda mais no processo
político-eleitoral do País, vindo então a criar o Conselho de Desenvolvimento Político,
integrado por ele próprio, pelo ministro da Justiça, Armando Falcão, e pelo chefe do
Gabinete Civil, Golbery do Couto e Silva, o qual teve sua órbita de ação política
ampliada. Daí resultariam a Lei Falcão, o Pacote de Abril e a determinação em
efetivamente reprimir passeatas, comícios, pronunciamentos ou outras
manifestações políticas de caráter oposicionista em praça pública, recintos privados
ou até mesmo na tribuna do Congresso, não havendo, para tanto, da parte do
Governo, hesitação em empregar a peça discricionária mais bem acabada do regime:
o AI-5.
São notórios os fatos que evidenciam que os militares no poder, incluindo a
corrente castelista-geiselista, não pretendiam entregar, seja na década de 70 ou na
de 80, o controle direto do poder do Estado nacional aos civis e, por conseguinte,
restabelecer a democracia no País.
Vale destacar que, pouco antes das citadas eleições parlamentares de 1974,
o presidente Geisel havia feito um discurso ameaçador “criticando a contundência
da campanha eleitoral da oposição”, a qual clamava pela volta do país à democracia
e ao Estado de Direito, dizendo que:

“erram – e erram gravemente, porém – os que pensam poder apressar esse


processo pelo jogo das pressões manipuladas sobre a opinião pública e, através
dessa, contra o governo. Tais pressões servirão apenas para provocar
contrapressões de igual ou maior intensidade, invertendo-se o processo de
lenta, gradativa e segura distensão”6.

Em março de 1974 o mesmo general-presidente decide processar o deputado


Francisco Pinto, do MDB da Bahia, pelo fato de ele ter feito um discurso contra a
presença no Brasil do então presidente do Chile, o general Pinochet.

6
Bernardo Kucinski, O Fim da Ditadura Militar. São Paulo: Editora Contexto, 2001, p.29.
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Em agosto de 1975, Geisel faz um outro pronunciamento reiterando que o


governo não abriria mão dos “poderes excepcionais de que dispõe”7. Ou seja, até
aquele momento ele descartava o fim do Ato Institucional no 5. Dois meses depois,
cinco alunos do Instituto de Tecnologia da Aeronáutica (ITA), acusados de terem
participado de uma reunião do Partido Comunista Brasileiro em São José dos
Campos, foram levados ao DOI-CODI de São Paulo, onde permaneceram presos
depois de condenados pelo Superior Tribunal Militar. Os formandos de 1977 do ITA,
em protesto à prisão de seus colegas, escolheram como seu paraninfo o físico da
USP, José Goldemberg, pai de Clóvis Goldemberg, um dos cinco estudantes presos.
A direção do ITA, composta por oficiais partidários da ditadura militar, não aprovou a
escolha e pressionou os alunos para que o trocassem pelo então presidente da
República, o general Ernesto Geisel. Os alunos formandos não aceitaram, ficando
assim sem paraninfo, o que fez o ocorrido chegar ao conhecimento público.

No mês de maio de 1976, Geisel reiterava que não admitiria “contestações à


‘Revolução’”, recorrendo então a métodos arbitrários de solução dos problemas
políticos. Prova disso, foi que nos anos subseqüentes, diante de informações que
previam o crescimento do partido da oposição consentida e a sua possível vitória
nas eleições legislativas de 1978 (o que de fato acabaria ocorrendo, na medida em
que o MDB acabou levando sobre o partido da situação, a Aliança Renovadora
Nacional – ARENA – uma vantagem de 4,2 milhões de votos na contagem global),
é o próprio presidente Geisel que, ironicamente, inverte o seu “projeto” de distensão
política, impingindo, primeiro, em junho de 1976, a Lei Falcão, que impunha severas
restrições à propaganda eleitoral no rádio e na TV.

Um ano depois, ao editar o Pacote de Abril, Geisel fecharia o Congresso por


15 dias, a fim de que fosse promovida uma reforma política casuística em favor do
Governo. Além de fechar momentaneamente o Congresso, essa medida tomada
por Geisel também estabelecia o quorum de maioria simples, e não mais de dois
terços do Congresso, para a aprovação de emendas constitucionais. Numa mesma
seqüência lógica, seriam estendidas as restrições da Lei Falcão sobre o uso do
rádio e da TV a todas as eleições seguintes, além de tornar indireta a eleição de um
terço dos senadores (os senadores “biônicos”), de fazer com que a duração do
mandato do presidente da República passasse de 5 para 6 anos, e de assegurar a
manutenção das eleições indiretas para governador de Estado.

8
Phydia de Athayde. In Revista Carta Capital no 278 – 18/02/2004. Ver também Maria José de Rezende, A Ditadura Militar no Brasil: Repressão
e Pretensão de Legitimidade. Londrina: Editora da Universidade Estadual de Londrina, 2001, p.210.
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Convém notar, entretanto, que como as regras da Lei Falcão não se aplicavam
ao período não-eleitoral, o MDB organiza, em maio de 1977, um programa nacional
de rádio e TV, criticando o Governo e apresentando o seu programa partidário. A
repercussão foi ampla. Pesquisa do Jornal do Brasil indicava, na seqüência, que
70% da população das grandes cidades haviam assistido ao programa, com 69%
delas apoiando amplamente os pontos de vista do partido.
Em fevereiro de 1977, Geisel cassou os mandatos de dois vereadores do
MDB de Porto Alegre por efeito dos discursos que proferiram na ocasião de suas
posses. Em maio de 1977, os estudantes da Universidade de Brasília entram em
greve. O Governo, ao invés de dialogar com os estudantes, procurando estudar
suas reivindicações, põe a UnB em recesso por 30 dias, coloca uma força policial
no campus e pune vários estudantes. Em junho de 1977, seria a vez dos deputados
federais, Marcos Tito e Alencar Furtado, terem seus mandatos cassados depois
que este último, então líder do MDB na Câmara dos Deputados, fez um
pronunciamento contra o Pacote de Abril, classificando-o como impróprio aos objetivos
da distensão. Em outubro do mesmo ano, sob coordenação do coronel Erasmo
Dias, o aparato repressor do regime invade a Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, onde se realizava uma assembléia estudantil, seguindo assim as diretrizes
vindas do Palácio do Planalto de execução de medidas efetivas de segurança que
se fizessem necessárias nos casos de agitação de qualquer grupo social.
Como esse conjunto de medidas de exceção não bastava, de acordo com o
jornalista Bernardo Kucinski, Geisel acabou tornando, em agosto de 1978, ainda
mais abrangente a Lei de Segurança Nacional ao baixar o Decreto-lei 1.632 que
definia como crime contra a Segurança Nacional todas as greves em serviços
públicos e em bancos, impondo “formas mais rápidas e severas de repressão jurídica
a elas”. Certamente, esse decreto foi motivado pela maior onda de greves em quase
todo o país desde a implantação da ditadura, desencadeada pelos metalúrgicos de
São Bernardo do Campo, mas acabou contagiando, de maio a julho, operários de
outras indústrias, portuários, motoristas de ônibus, trabalhadores rurais, bancários,
professores, médicos e outros servidores públicos de diversas regiões do País. O
movimento influenciou as eleições que ocorreram em 1978 nos Conselhos Regionais
de Medicina, quando foram vencedoras as chapas mais combativas na luta por
melhores salários e condições de trabalho nos ambulatórios do Instituto Nacional
de Previdência Social (INPS), em especial de médicos residentes e plantonistas
que tinham de arcar com “mais de 50% do volume de atenção médica ambulatorial”8.

8
Madel T. Luz, As Instituições Médicas no Brasil – Instituição e Estratégia de Hegemonia. Rio de Janeiro. Editora Graal, 1986 – capítulo IV:
“Políticas de Saúde 1968-1974” – Nota de pé-de-página 6, p.152.
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23

Ao agir concretamente daquela maneira, ao mesmo tempo em que empregava


uma retórica distensionista, Geisel demonstrava que o que ele visava de fato era, no
máximo, afrouxar os instrumentos discricionários do regime, a fim de, diante das
crescentes pressões da sociedade civil, assegurar a posição dos militares no núcleo
do poder político nacional. Demonstrando alguma sensatez a fim de evitarem uma
queda por colapso, ele e seu grupo dirigente incorporariam, quando muito, algumas
disposições liberalizantes com o intuito de estabelecer um “regime político de
competição restrita e direitos limitados”9.
Não se pode ignorar que, ao lado dos fatores sócio-políticos, os fatores de
ordem econômica foram também de primeira grandeza na derrocada do regime
autoritário-militar. Aliás, o projeto oficial de abertura lenta, segura e limitada só
adquire visibilidade depois que o governo Geisel se dá conta de que o Brasil não era
uma ilha de prosperidade, ilesa à crise econômico-financeira pela qual vinha passando
o sistema capitalista mundial desde inícios da década de 70. No terreno econômico,
o sinal de alerta aparecera quando:
a) a taxa de crescimento do Brasil caiu de 14%, em 1973, para 8% em 1974
e 5% em 1975;
b) o déficit na balança comercial tornou-se explícito, com as importações
atingindo o montante de 12,6 bilhões de dólares e as exportações ficando
no patamar dos 8 bilhões de dólares em 1974, e, em 1975, 12,2 bilhões e
8,7 bilhões de dólares respectivamente;
c) a taxa anual de inflação, que havia ficado na faixa de 19,75% entre 1970 e
1973, atingiu o índice médio de 34,5% entre 1974 e 1975, chegando a
48% no ano de 1976;
d) a dívida externa saltou de 9,5 bilhões de dólares em 1972, para 17,1
bilhões de dólares em 197410.

9
Ver Rizzo de Oliveira, De Geisel a Collor: Forças Armadas, Transição e Democracia. Campinas: Papirus Editora, 1994: p.70 e “Conflitos Militares
e Decisões Políticas sob a Presidência do General Geisel” - capítulo V do livro de Alain Rouquié, Os Partidos Militares no Brasil. Rio de Janeiro:
Editora Record, 1980, p.139; Velasco e Cruz, “De Castelo a Figueiredo, uma visão histórica da ‘abertura’” in Isidoro Chereski e Jacques Chonchol,
Crise e Transformação dos Regimes Autoritários. São Paulo: Ícone editora/Editora da UNICAMP, 1986 - Capítulo II, p. 139.
10
Daí por diante, a dívida externa brasileira só cresceu, atingindo o índice de US$ 43,5 bilhões em 1978. E, de 1979 a 1985, a dívida passa de US$49,9
bilhões para US$95,8 bilhões.
Fontes: www.jubileubrasil.org.br/v01/azul/credores/origens/ - acessado em 25/01/07; Werner Baer, A Economia Brasileira. São Paulo: Editora
Nobel, 2a edição, 2003. Demais dados: IBGE - 1987 in Delorme Prado e Sá Earp, “O ‘milagre’ brasileiro” - Capítulo 6 do livro de Jorge Ferreira
& Lucília de Almeida Neves Delgado, O Brasil Republicano: O Tempo da Ditadura – regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio
de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2003.
MEMÓRIAS
24

Era inevitável que esses índices negativos no terreno econômico se refletissem


nos campos social e político. O próprio resultado das eleições parlamentares de
novembro de 1974 comprova isso. Além do mais, deve-se assinalar que a palavra
distensão passou de fato a fazer parte do vocabulário político do Governo em função
dos reveses “inesperados” trazidos por aquelas eleições. Como chegou a admitir
Golbery do Couto e Silva, o “organismo nacional” transformara-se numa “panela de
pressão”, pois as pressões contrárias ao regime autoritário-militar acumulavam-se
aceleradamente, tornando-se “fortes e quase insuportáveis”, o que, segundo o próprio
Golbery punha “em risco a resistência de todo o sistema”11. É por tal razão que o
termo distensão significava, primordialmente, de acordo com as próprias palavras
do presidente Geisel, “a atenuação, senão, a eliminação das tensões” de ordem
política, que nem mesmo o sistema político bipartidário instituído e bastante regulado
pelo regime autoritário-militar conseguia evitar. O próprio Geisel chegou a revelar
que “[...] não havia projeto algum [...]”, mas apenas, como diz Teixeira da Silva, a
consciência da necessidade de imprimir algumas mudanças sem, no entanto,
contrariar fortes interesses existentes no interior do sistema militar12.

Portanto, Geisel não tinha outra saída senão a de deslocar a base de


legitimação do regime do terreno econômico (propiciado por um tempo pelos altos
índices de crescimento da economia nos anos do “milagre”) para o terreno da
propaganda política, acenando com o auto-declarado projeto de distensão oficial,
que Golbery qualificara de estratégia política “superior e criativa”, voltada para evitar
“interferências desastrosas e perturbadoras”, chamadas por Geisel de “formulas
[políticas] ultrapassadas”, as quais poderiam levar a uma ruptura na ordem
estabelecida13.

Seguramente, essas advertências de Geisel e Golbery estavam sendo


direcionadas às forças democráticas da sociedade brasileira e não aos militares
taxados de linha-dura, como prezam algumas abordagens. Para confirmar essa
asserção, basta atentarmos para o pretexto ao qual o quarto general-presidente do
regime autoritário-militar recorria para que a abertura política fosse feita de forma

11
Golbery do Couto e Silva, Conjuntura Política Nacional, O Poder Executivo & Geopolítica do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1981,
p.31.
12
Francisco Carlos Teixeira da Silva, “Crise da ditadura militar e o processo de abertura política no Brasil, 1974-1985”. Capítulo 7 do livro de
Ferreira & Delgado, op. cit., p. 264.
13
Golbery do Couto e Silva, op. cit., pp. 27-32. As frases que se referem ao presidente Geisel foram retiradas de seu discurso de 1o de agosto
de 1975, dirigido à Nação em cadeia de rádio e TV in “Brasil: Política e Governo”. Livro do Ano Barsa 1976. Rio de Janeiro/São Paulo: Encyclopedia
Britannica Editores Ltda, 1977 – “Brasil - Saúde”, p.48.
MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70:...
25

lenta, gradual e segura. Segundo Geisel, a abertura deveria ser feita de tal forma
para que as práticas democráticas fossem aperfeiçoadas em termos “realistas”,
isto é, para que elas fossem adequadas

“às características de nossa gente e ao estágio alcançado pela evolução social


e política do País, a salvo porém [advertia ele] de atentados, declarados ou
solertes, por parte dos que, em nome da democracia liberal, só desejam, de fato,
destruí-la ou, em proveito próprio, viciá-la”14.

É preciso salientar ainda que, de tempo em tempo, Geisel recorria


propositalmente à justificativa de que a “oposição” é que dificultava o seu projeto de
distensão política. Ele próprio disse textualmente que “[...] o que atrapalhava muito
era a oposição”, que, por ter sido “virulenta”, não estaria compreendendo o seu
“objetivo”, a sua “intenção”. Geisel chegou até a culpar diretamente o líder do MDB
na época, o deputado Ulysses Guimarães, dizendo que ele “foi o elemento que
mais me prejudicou no problema da abertura”15.
Outro ponto que merece destaque nessas declarações de Geisel é que nelas
está implícita a visão de democracia dos altos oficiais de sua corrente militar, a qual
reproduz a concepção abstrata de ‘democracia’ elaborada pela Escola Superior de
Guerra, baluarte dos oficiais castelistas que planejaram e executaram o Golpe de
1964. Tal concepção, que foi também expressa pelo marechal Odylio Denys, um
dos partícipes do referido Golpe de Estado, é a de uma democracia peculiar e
tipicamente brasileira, adaptada, segundo ele, ao meio, ao homem, à conjuntura
brasileira e em coerência com a nossa realidade, o que vale dizer, uma “democracia
restringida”, diferente das democracias plenas dos países mais desenvolvidos, que
vinham e vêm praticando esse regime político há mais tempo16.
Segundo a cúpula do regime autoritário-militar, se tivesse que haver
democracia aqui no Brasil, ela deveria ser peculiar, vale dizer, de forma nenhuma
plena, por conta do meio, do homem e da realidade brasileira. Era uma concepção
liberal de democracia que reforçava aquela recorrente opinião das tradicionais elites
dirigentes brasileiras de que o brasileiro comum não sabe votar, aliás muito bem
reproduzida pelo último presidente do regime, João Baptista de Oliveira Figueiredo,

14
Ernesto Geisel, Discursos – Volume I, 1974. Assessoria de Imprensa e Relações Públicas da Presidência da República. Brasília: Departamento
de Imprensa Nacional, 1975.
15
Teixeira da Silva, op. cit., pp.256-68.
16
Odylio Denys, Ciclo Revolucionário Brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1980.
MEMÓRIAS
26

quando ele afirmara, no final de 1979, que “o eleitor brasileiro não tem o nível eleitoral
do eleitor americano, do eleitor francês”17, daí ele, o general-presidente, não acreditar
na existência da democracia plena no Brasil.

As forças democráticas e populares da sociedade civil aceleram o


processo de abertura política dos anos 70 e 80

A sociedade civil brasileira jamais esteve apática e nem impotente ante o


regime autoritário-militar, uma vez que ela foi responsável pela geração de fatos
decisivos para o desenrolar da abertura política e da posterior evolução política do
País para um regime democrático. Com efeito, vários fatos políticos e sociais
foram determinantes para o desencadeamento do processo de abertura política,
para o fim da ditadura militar e para a posterior redemocratização do Brasil.
Em 1974, realiza-se em São Bernardo do Campo, SP, o congresso dos
trabalhadores metalúrgicos daquela localidade, com a conseqüente divulgação da
Carta de São Bernardo que exigia o direito de greve e preconizava a autonomia do
sindicato dos metalúrgicos com relação à estrutura sindical vigente desde a
instauração do regime autoritário militar em abril de 1964.
Em 1975, é organizado um culto ecumênico em celebração ao sétimo dia da
morte do jornalista Wladimir Herzog, que havia sido torturado até a morte nas celas
do II Exército em São Paulo. O culto reúne 8 mil pessoas na Catedral da Sé,
transformando-se na primeira manifestação pública contra a ditadura militar após o
AI-5 e num impulso à ampliação de alianças contrárias a ela.
Em 1976, na reunião anual da SBPC a comunidade acadêmica e os
estudantes universitários pedem o retorno dos professores e pesquisadores
expurgados pelo regime. Quase que simultaneamente, em sintonia com a Anistia
Internacional, há as pressões do MDB, da Organização dos Advogados do Brasil
(OAB) e da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) sobre o Governo
no tocante aos prisioneiros políticos e aos “desaparecidos políticos”, o que acaba
obrigando o ministro da Justiça a divulgar uma versão oficial a respeito do assunto.
O ano de 1978 é repleto de acontecimentos que se destacam pelos efeitos
que acabariam influindo decisivamente no ocaso do regime autoritário-militar. Em

17
Apud: Oscar Pilagallo, O Brasil em Sobressalto. São Paulo: Publifolha, 2002, p.148.
MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70:...
27

fevereiro, é criado, no Rio de Janeiro, o Comitê Brasileiro pela Anistia que, num
encontro nacional, pedia por uma anistia “ampla, geral e irrestrita”. De maio a julho
do mesmo ano, iniciam-se as já mencionadas paralisações dos operários
metalúrgicos de São Bernardo do Campo, que acabaram desencadeando, repita-
se, a maior onda de greves em quase todo o País desde a implantação do regime
autoritário-militar, colocando em xeque a política de controle dos sindicatos por
meio de diretores pelegos e a política de arrocho salarial ainda mantida por Geisel.
Esse movimento grevista fez com que os empresários tivessem que restabelecer, a
contragosto, negociações diretas com os trabalhadores depois de 14 anos de postura
intransigente.
Dado que um dos fundamentos do modelo econômico do regime autoritário-
militar era a contínua depreciação do salário-mínimo, com o conseqüente arrocho
dos salários dos trabalhadores, há também, em agosto de 1978, o manifesto,
anexado a 1,3 milhão de assinaturas, que o Movimento Custo de Vida, ligado às
Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica, entrega no Palácio do Planalto,
reivindicando, entre outras coisas, um abono emergencial de 30% para todos os
trabalhadores e o congelamento dos preços de gêneros de primeira necessidade.

Não menos importantes foram as repetidas atuações da OAB (sob a


presidência de Raymundo Faoro), a CNBB, a SBPC, o MDB e, agora com a
participação da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), que desde o mês de maio
posicionam-se pública e explicitamente a favor do retorno do habeas-corpus, da
anistia ampla e irrestrita, da reconstrução da UNE, de uma Assembléia Constituinte,
e contra a censura, as prisões arbitrárias e as torturas, a doutrina de Segurança
Nacional, o Pacote de Abril, as eleições indiretas para presidente, governadores de
Estado, prefeitos de capitais e para uma parte dos senadores.

O Governo Figueiredo (1979-1985)

Dois fatos são marcantes no período que compreende o governo Figueiredo.


O primeiro deles foi o fim do AI-5, em janeiro de 1979 e, o segundo, a sanção da lei
da anistia em agosto do mesmo ano. Com a aprovação dessa lei, importantes
líderes políticos exilados, como Darcy Ribeiro, Leonel Brizola, Luis Carlos Prestes
e Miguel Arraes, voltam ao Brasil com seus direitos políticos recuperados, podendo,
destarte, participar, de uma forma ou de outra, da vida política do País.
MEMÓRIAS
28

O Governo procuraria tirar proveito desse fato, uma vez que o MDB não parava
de crescer desde 1974, passando o bipartidarismo a incomodar o regime militar, já
que os votos dados ao único partido de oposição consentida eram nitidamente
contra o regime autoritário-militar, adquirindo assim um caráter plebiscitário. O
Governo define, então, parâmetros para o retorno do pluripartidarismo, com o firme
intuito de criar rivalidades entre os líderes da oposição, dividindo-a. Ao instituir a
nova Lei Orgânica dos Partidos, o Governo extingue a Arena, partido em decadência,
e o MDB, este no auge de seu prestígio político-eleitoral. Ficava igualmente
estabelecida uma série de exigências e artifícios legais para a organização de
novos partidos de esquerda que tivessem apoio das camadas populares organizadas
e combativas, como foram os casos do PDT e do PT. No que tange ao MDB, por
exemplo, para impedir que se firmasse uma aderência do eleitorado a esse partido
de oposição em ascensão e com forte capilaridade, a referida Lei exige a mudança
de nome das novas siglas, com a obrigatoriedade da inclusão da palavra partido. O
MDB, porém, limita-se a adicionar tal palavra a seu nome prévio, tornando-se PMDB
em 22 de novembro. Simultaneamente, o novo partido governista surgia como Partido
Democrático Social (PDS).
Em outubro de 1980, todos os outros partidos já haviam atendido às exigências
legais para o registro provisório, aparecendo então no cenário político-partidário
nacional o Partido dos Trabalhadores (PT), uma agremiação política que se forma
fora das instituições parlamentares e que tinha como líder um sindicalista, Luis
Inácio da Silva (o Lula), e não um político tradicional. O Partido Trabalhista Brasileiro
(PTB) foi concedido pelo TSE à deputada federal conservadora, Ivete Vargas, sobrinha
do ex-presidente Getúlio Vargas, seguindo uma estratégia do Governo em não
permitir que essa tradicional sigla fosse obtida por um líder oposicionista carismático
e popular, Leonel Brizola, na época a maior liderança do trabalhismo de esquerda
no País, que teve então que criar seu próprio partido sob outra sigla: o PDT (Partido
Democrático Trabalhista). O tradicional político mineiro, Tancredo Neves, lança o
plano de ação política de um partido liberal, de centro, o Partido Popular (PP).
Ambos os partidos comunistas (PCB e PC do B) continuariam, porém, na ilegalidade
até 1985. No período pós-promulgação da Lei da Anistia, quando ainda vigia a ditadura
militar, a linha de conduta da maioria dos membros de ambos os partidos comunistas
era a de se unir aos partidos políticos democráticos de oposição legal à ditadura,
com vistas a suprimi-la.
Durante todo o ano de 1980 ocorrem cinqüenta atentados terroristas, cujas
responsabilidades foram atribuídas unicamente à corrente militar de direita, chamada
de linha dura, pelo motivo de os seus oficiais e suboficiais estarem diretamente
MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70:...
29

ligados à operacionalidade dos órgãos de repressão do regime autoritário-militar.


No entanto, no ano seguinte, depois de ocorrido o atentado no Riocentro, onde se
realizou, no dia 30 de abril, um show musical para cerca de 20 mil pessoas em
celebração ao 1o de maio, o presidente João Baptista Figueiredo nada fez para que
as investigações sobre o caso acabassem levando a um esclarecimento, permitindo
assim que os membros do Destacamento de Operações de Informações (DOI) do I
Exército, que o executaram, fossem inocentados. Essa postura de Figueiredo indica
que a hierarquia do regime estava organicamente atrelada aos oficiais e suboficiais
que realizavam o “trabalho sujo” junto aos aparelhos informais de repressão do
regime, pois aqueles sustentavam a funcionalidade deste. Isso, é claro, deixou o
Governo mais vulnerável à indignação e às pressões da sociedade civil contra a
impunidade, o que desembocou numa forte crise no interior do próprio sistema
militar, causando um racha na sua já abalada unidade.
Com esse cisma ocorrido no interior das Forças Armadas e da estrutura de
poder do regime, as pressões da sociedade civil avançam no sentido de acelerar a
distensão política, colocando na ordem do dia a atenuação e até mesmo a remoção
das leis discricionárias do regime, bem como as reformas político-eleitorais de
cunho democratizante. O clamor da sociedade política pela extinção dos senadores
“biônicos” e pelas eleições diretas para governador de Estado já em 1980, leva o
governo Figueiredo a apresentar um projeto nessa direção. Esse projeto, não obstante
ter sido aprovado no dia 15 de novembro do referido ano, só restabeleceria, porém,
as eleições diretas para governadores em 1982, e a supressão dos senadores
“biônicos” ocorreu só a partir de 1986. Ao mesmo tempo em que cedia para que
houvesse tais avanços, o governo conseguia aprovar no Congresso, em 9 de setembro
de 1980, a lei que adiava as eleições municipais pré-estabelecidas pelo calendário
eleitoral para novembro daquele mesmo ano, bem como determinava a prorrogação
dos mandatos dos então prefeitos e vereadores.
No governo do general Figueiredo, verifica-se novamente uma situação
econômica desfavorável. Em 1981, a inflação atinge 95,2%, uma pequena queda
depois de uma trajetória ascendente de 1979 (77%) a 1980 (110%). Ademais, em
1981, o PIB per capita chegou a 4,3% negativos em paralelo à elevação das taxas
de juros, restrição do crédito, achatamento dos salários e aumento das taxas de
desemprego. Somado a isso tudo, a dívida externa brasileira tornava-se gigantesca,
atingindo 100 milhões de dólares, o que acabaria deixando fragilizado o governo do
general João Batista Figueiredo.
Cumpre destacar ainda que, como resultado da volta da liberação da
propaganda eleitoral na TV em 1982, os partidos de oposição, juntos, obtém maioria
MEMÓRIAS
30

na Câmara dos deputados, além de conquistarem os governos dos 10 estados


mais populosos e economicamente mais desenvolvidos. Cabe recordar, inclusive,
que essas eleições de 1982 para governadores de Estado foram as primeiras diretas
desde 1965, e que elas ocorrem num cenário econômico totalmente desfavorável
ao Governo, com os indicadores mostrando que a política monetarista ortodoxa em
vigor estava aprofundando a recessão, indicando uma queda do PIB na ordem de
6,3%, com um crescimento de apenas 0,8% no ano.
Conseqüentemente, no Estado de São Paulo, o senador peemedebista, André
Franco Montoro, vence as eleições de 1982 para o governo, com 5,2 milhões de
votos, quase a metade do eleitorado paulista. Na Assembléia Legislativa, o seu
partido, o PMDB, ficou com a metade das cadeiras e, no tocante ao controle das
prefeituras do Estado, passou de 15 para mais de duzentas. No Rio de janeiro, com
a vitória de Leonel Brizola, do PDT, desfez-se uma tentativa de fraude cometida pela
Proconsult, empresa responsável pela apuração eletrônica que, junto com a Rede
Globo, dava vitória a Moreira Franco, candidato do PDS, ao passo que as pesquisas
apontavam Brizola como franco favorito. Já em Minas Gerais, o vencedor foi Tancredo
Neves, do PMDB, com 54,8% dos votos.
Visto que o Partido Popular de Tancredo Neves tinha sido desfeito para se
incorporar ao PMDB, e que este se saíra vitorioso nos estados mais importantes da
Federação, com exceção do Rio de Janeiro, onde também quem venceu foi um
partido de oposição ao regime autoritário-militar, as eleições de 1982 restabeleceram,
na essência, o caráter bipartidário e plebiscitário das disputas eleitorais que se
davam no referido regime.
Consoante ao avanço da oposição no Congresso, o Deputado do PMDB do
Mato Grosso, Dante de Oliveira, apresenta, em abril de 1983, proposta de emenda
constitucional visando tornar direta a eleição do sucessor do presidente Figueiredo.
Em junho, o PMDB lança uma campanha pública a nível nacional por eleições
diretas para presidente da República com a realização de um comício em Goiânia.
Lideranças políticas de outros partidos de oposição começam a aderir. PMDB, PDT
e PT formam uma frente partidária que busca mobilizar a população e atuar junto a
todos os deputados e senadores para a obtenção do quorum de 2/3 nas duas
Casas do Congresso Nacional. No início de 1984, a campanha pelas “Diretas Já”
contava com o apoio de mais de 200 entidades da sociedade civil, incluindo a
grande imprensa escrita e televisiva. Comícios gigantescos são realizados em várias
capitais de Estado, sendo o maior deles, na história do País, o de 16 de abril de
1984, no vale do Anhangabaú em São Paulo, com a participação de mais de 1
MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70:...
31

milhão de pessoas. Todavia, a “Emenda das Diretas” é derrubada pelo Congresso


no dia 25 do mesmo mês de abril e, nos meses subseqüentes, enquanto o grupo de
Ulisses Guimarães e o PT insistiam na manutenção da campanha pelas eleições
diretas, outros grupos da oposição começaram a se articular nos bastidores, o que
levou a apresentação de Tancredo Neves como candidato a eleição indireta no
Colégio Eleitoral. Descartadas, então, as eleições diretas, Ulysses Guimarães
anuncia, em junho, a decisão do PMDB de “ir ao Colégio para destruir o Colégio”.
Um mês depois, o deputado Federal Paulo Maluf é escolhido o candidato do
PDS para a presidência da República. Políticos dissidentes do partido, contrários a
Maluf, formam a Frente Liberal, que inicia conversações com o PMDB para apoiar
um candidato de oposição. Não tendo votos suficientes no Colégio Eleitoral para
eleger sozinho um candidato oposicionista, o PMDB é levado a formar uma coalizão
com a Frente Liberal, constituindo assim a Aliança Democrática. O candidato à
presidência dessa Aliança foi Tancredo Neves, e o vice foi o pedessista, José Sarney,
que se filiou ao PMDB porque a legislação eleitoral em vigor obrigava que os candidatos
a presidente e vice pertencessem ao mesmo partido. Dá-se início a uma campanha
eleitoral pública, de proporção nacional, em busca do apoio popular através de
comícios e atos públicos.
Enquanto a campanha pelas Diretas Já tomava as ruas e as pautas do
noticiário dos principais jornais do país, havia fortes indícios de que as cúpulas do
governo Figueiredo, das Forças Armadas e do PDS agiam em conjunto com os
órgãos de informação e de segurança do regime no sentido de tumultuarem e
radicalizarem o debate político em curso, tentando associar o candidato oposicionista
à eleição indireta para a presidência da República no Colégio Eleitoral, Tancredo
Neves, com “organizações clandestinas”, ameaçando assim com um possível
rompimento das normas políticas então vigentes. Como informava o jornalista Ruy
Lopes, havia “pessoal subalterno do Exército” e “cabos eleitorais do PDS” plantando
“bandeiras vermelhas” e “propaganda eleitoral comunista” na convenção do PMDB
que escolhera Tancredo Neves e, mais tarde, nos comícios deste18.
Quanto ao posicionamento dos cardeais do regime autoritário-militar frente a
esses acontecimentos, o ex-presidente Ernesto Geisel se deixa fotografar, no Rio
de Janeiro, junto ao candidato oposicionista Tancredo Neves. Mas, ao mesmo tempo,
uma das figuras mais importantes do “grupo palaciano” de Geisel, o secretário da
Presidência da República durante o seu governo, o capitão Heitor Ferreira, então
em sintonia com o general Golbery do Couto e Silva, defende aberta e fervorosamente

18
Filme: Muda Brasil de Oswaldo Caldeira. Rio de Janeiro, 1985, 0:59’.
MEMÓRIAS
32

o candidato oficial, Paulo Maluf, o que demonstrava que o discurso e a atuação


política da hierarquia da corrente militar castelista-geiselista era uma ambivalência,
para não dizer uma incógnita.
Em 25 de abril de 1984, dia da votação da emenda das Diretas Já no Congresso
Nacional, os parlamentares foram coagidos pelo governo a votar contra, em função
das medidas de emergência impostas em Brasília, como por exemplo, o envio de
tropas do Exército nas ruas e a proibição de ter a votação da tal emenda constitucional
transmitida pelas estações de rádios e TVs do país.

As condições de saúde da população brasileira nas décadas de 70 e


80 e as políticas dos governos militares para este setor

No período em tela, a atuação do Movimento Sanitário que se iniciava foi


importante não apenas para o processo político da abertura e da derrocada da
ditadura militar, mas para um processo muito mais amplo que foi o da democratização
propriamente dita, o qual vai resultar na expansão efetiva dos direitos de cidadania
e dos serviços sociais do Estado para o conjunto da população brasileira com a
Constituição de 1988.
Na área da Saúde, o quadro não era menos crítico para o regime autoritário-
militar pós-64, pois que os seus indicadores também refletiam as mazelas de um
modelo econômico excludente e concentrador de rendas e de capital. Mas para
conhecermos melhor essa situação, é necessário que se faça uma breve retrospectiva
histórica que nos remeta ao governo Médici (1969-1974), o que propiciará mostrar,
ao mesmo tempo, a evolução da situação da saúde pública do país e as políticas
de saúde dos governos militares.
No final de 1969, o Dr. Francisco de Paula Rocha Lagoa, um ex-aluno da
Escola Superior de Guerra, assume o Ministério da Saúde no recém instalado
governo Médici. Bem antes de assumir tal posto, pouco tempo depois do Golpe de
1964, Rocha Lagoa havia sido nomeado diretor do Instituto Oswaldo Cruz - IOC, do
bairro de Manguinhos, no Rio de Janeiro, quando afastou alguns pesquisadores de
cargos de chefia, além de cortar recursos e financiamentos de outros que eram
acusados de conspiração comunista em seus laboratórios. Muitos dos cientistas
eram, porém, indiciados simplesmente porque lutavam pela valorização da pesquisa
básica e pela criação de um Ministério da Ciência – atitudes consideradas subversivas
MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70:...
33

na época. À frente do Ministério da Saúde por 30 meses, Rocha Lagoa continuou a


perseguir os pesquisadores do Instituto Osvaldo Cruz, desta vez fazendo uso do AI-
5, que havia sido editado em 13 de dezembro de 1968. Daí a cassação de dez
cientistas do Instituto, episódio que ficou conhecido como “massacre de Manguinhos”.
O Governo aplicou também a esses pesquisadores e a outros cientistas cassados,
o AI-10, editado em 19 de maio de 1969, impedindo dessa forma que esses
profissionais altamente qualificados pudessem vir a exercer atividades em qualquer
instituição pública de ensino/pesquisa e até mesmo nas particulares que tivessem
financiamento do governo.

Em agosto de 1972 ocorre a mudança do Ministério da Saúde para Brasília.


Rocha Lagoa foi substituído pelo Dr. Mário Machado de Lemos, Secretário de Saúde
do Estado de São Paulo, cujo programa, tipicamente sanistarista-campanhista,
privilegiaria o combate às doenças infecciosas e parasitárias, a melhoria da
produtividade dos estabelecimentos hospitalares e a definição de uma política
nacional de alimentação. Essa última meta acabou levando o governo a criar uma
autarquia vinculada ao Ministério da Saúde: o Instituto Nacional de Alimentação e
Nutrição (INAN), uma vez que, mesmo nas regiões ricas do país, notava-se um
deficit nutricional na população de baixa renda. Em 1971/72, o próprio Ministério da
Saúde fizera uma pesquisa em todo o país que revelou que 76% da população se
alimentavam, basicamente, de arroz, feijão e farinha de milho ou de mandioca. Em
decorrência, as ações práticas do INAN objetivavam prover assistência alimentar
prioritariamente à população escolar de estabelecimentos oficiais de ensino de 1o
grau, gestantes, lactentes e para crianças de até seis anos de idade. No entanto,
tal programa ficaria limitado pelos problemas referentes aos baixos níveis de renda
e de condições sanitárias de mais de 50 milhões de brasileiros.

Ao associar desenvolvimento à saúde, Machado de Lemos postulava uma


política médico-sanitária agressiva, sem, no entanto, enfrentar de forma determinada
os problemas de saúde: basicamente as carências da população brasileira, oriundas
da extrema pobreza e da falta de saneamento de água e esgostos, uma vez que
para esses problemas o Governo não dava a devida atenção. Seguindo uma política
de atenção médica mais ligada a uma lógica privatista e curativista, com o poder
público repassando os correspondentes serviços e honorários aos consultórios
médicos, laboratórios e hospitais privados, o segundo ministro da Saúde do governo
Médici decide destinar Cr$ 26 milhões para o combate à tuberculose, doença que
ainda figurava entre as de maior incidência no Brasil com cerca de 600 mil doentes
ativos e 40 milhões de infectados, sendo que somente 150 mil estavam registrados
MEMÓRIAS
34

nas diversas unidades de tratamento, excluindo-se os do INPS. Isso significava que


70% dos que sofriam de tuberculose no Brasil não estavam sendo tratados, fosse
por falta de esclarecimento ou por falta de atendimento. Também resulta da referida
política médico-sanitária do ministro Machado de Lemos a decisão de se fabricar
aqui no país, além da vacina BCG, a vacina Sabin, na medida em que a paralisia
infantil aumentava sua área de incidência.
Todavia, entre todos os países americanos, o Brasil continuaria sendo um
dos que menos investia em saúde, ficando à frente apenas do Equador e do Haiti.
Conforme dados estatísticos fornecidos pela Organização Pan-Americana de Saúde
em Las Condiciones de Salud en las Américas, Washington, 1974, o montante
destinado pelo governo Médici à Saúde pública em 1972 perfazia 1,33 dólares por
habitante/ano.
Na edição de 4 de setembro de 1974, a revista Veja publica o montante dos
gastos dos governos militares do Brasil na área da saúde, abrangendo os anos de
1964, 1968, 1970 e 1974, donde se extraiu a seguinte tabela:

Histórico do orçamento da saúde no Brasil (1964-1974)

anos Cr$ Absolutos(milhões) % do orçamento da União

1964 77 3,65

1968 300 2,21

1970 316 1,60

1974 581 0,90

Fonte: G. Galache & M. André, Brasil: Processo e Integração – Estudos dos Problemas Brasileiros.
SP: Loyola, 1979, p.159.

Em 1973, o Estado provia serviços de atenção médica a cerca de 60% da


população previdenciária urbana através do INPS e a medicina suplementar atendia
apenas 5% da população brasileira, abrangendo os funcionários de grandes
empresas privadas nacionais e estrangeiras que firmavam convênios particulares.
O problema era que se permitia àquelas grandes empresas industriais, financeiras
e comerciais pagar apenas 3%, e não 8% como eram de praxe, do valor dos salários
de seus empregados ao INPS, ficando as firmas prestadoras de assistência privada
MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70:...
35

de saúde com os restantes 5%19. Ocorre, porém, que no caso de doenças cujo
tratamento fosse demorado ou que as cirurgias fossem complicadas e caras, bem
como nos casos de aposentadoria por invalidez e de auxílio doença, na maioria das
vezes decorrentes de acidentes de trabalho, estas continuariam sendo de
responsabilidade do INPS20.
Em 1978, esse instituto governamental calculava que cerca de 80% da
população previdenciária urbana seria por ele atendida. Mas, no cômputo geral, até
1980, 40 milhões de brasileiros continuariam não dispondo de qualquer serviço de
saúde por falta de médicos e de leitos hospitalares. E mesmo os segurados do
INPS eram pouco mais do que 25 milhões diante de uma população economicamente
ativa de 32 milhões21. Segundo padrões recomendados pela Organização Mundial
de Saúde (OMS) nos anos 60, a proporção de médicos/habitantes num país deveria
ser de um para mil e a média de leitos hospitalares/habitantes deveria ser de 5 para
cada mil. No entanto, na primeira metade da década de 70, o Brasil dispunha de um
médico para um número aproximado de dois mil habitantes e uma média de 3,5
leitos por mil.
Na 25a Reunião Anual da SBPC, realizada em julho de 1973 no Rio de Janeiro,
após estudos apresentados em mesa-redonda acerca do “Crescimento da População
Brasileira”, constatava-se que, de 1963 a 1973, a mortalidade infantil no Brasil vinha
aumentando, sendo algumas de suas causas principais a desnutrição, as doenças
infecciosas (como a diarréia, o sarampo e a varíola, por exemplo), as parasitoses e
complicações do parto. Em fevereiro de 1974, o Ministério da Saúde revelava que a
taxa média de mortalidade na faixa de 0 a 4 anos em todo o país era de 33,78% por
mil habitantes. Em números absolutos, estimava-se que, em 1974, a quantidade de
crianças de até 1 ano mortas no Brasil era de 105 por mil nascidas. Os Estados
que então apresentavam maior taxa de mortalidade de crianças até 4 anos eram
Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Alagoas. Os Estados que tinham as taxas
mais baixas eram Rio de Janeiro e Guanabara, ambos com 23,06%22.
Findo o governo Médici, o presidente Geisel coloca à frente do Ministério da
Saúde o Dr. Paulo de Almeida Machado, o qual estabelece como prioritário o combate

19
G. Galache & M. André, op. cit., p.187.
20
Idem, pp.177-188. Segundo os autores da referida obra, de 1970 a 1975, morreram em acidente de trabalho 329.337 homens, equivalente na
época à população da cidade de Santos, SP.
21
Hélio Silva, O Governo Geisel: 1975-1978. São Paulo: Grupo de Comunicação Três/Edições Isto é. Coleção “História da República Brasileira”,
1998,p.190
22
Os dados presentes tanto neste parágrafo quanto nos outros dois que o antecedem estão baseados no Livro do Ano Barsa – 1974 e 1975 quanto
na obra de Hilário Torloni, Estudo de Problemas Brasileiros. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1979 – capítulo 8 – 12a edição.
MEMÓRIAS
36

às epidemias. Em reação a um aumento de 90% na incidência da meningite


meningocócica no mês de julho de 1974 (790 casos), comparado a julho de 1973
(450 casos), é instituída, no final do mesmo mês, a Comissão Nacional de Controle
da Meningite Meningocócica. Só em São Paulo – onde já havia sido detectado um
surto a partir de junho de 1972 - ocorreram 55 mortes por dia no referido mês de
julho. Mas a vacinação em massa contra essa doença contagiosa só veio a ser
praticada depois de sua inclusão no Programa Nacional de Imunização do Ministério
da Saúde a partir de 1979, um ano depois da Fundação Oswaldo Cruz ter começado
a produzir a vacina.
Como a questão da Saúde ia adquirindo uma importância política cada vez
maior, em decorrência do crescimento industrial e urbano acelerado que vinha se
dando no Brasil desde a segunda metade da década de 50, o terceiro governo do
regime autoritário-militar procura então dar uma resposta à piora nas condições
sanitárias do País, bem como à falta de políticas de saúde preventiva e de serviços
de atenção médica à população. O terceiro governo do regime autoritário-militar
cria, em novembro de 1976, três secretarias nacionais: a de Vigilância Sanitária, a
de Ações Básicas de Saúde e a de Ações Especiais de Saúde. Através do Grupo
de Avaliação de Projetos e Pesquisas (GAPP), o Ministério da Saúde financia vários
projetos de pesquisa em saúde pública.
Essas medidas eram resultantes das pressões e ações concretas de vários
setores da sociedade civil. Em diversos locais, especialmente nos Departamentos
de Medicina Preventiva de algumas Universidades, foi possível promover discussões
e estabelecer propostas de mudanças nos serviços de saúde e na organização
sanitária do País numa perspectiva crítica e abrangente em termos do saber médico,
uma vez que, essas discussões estabeleciam a correspondência das condições
de saúde da população com as suas condições sócio-econômicas mais gerais,
ouvindo e mobilizando as comunidades.
Segundo Fleury Teixeira & Mendonça, aqueles profissionais da Saúde
compunham o chamado Movimento Sanitário, aproveitando-se das brechas abertas
pela nova ordenação institucional da área da Saúde. Com a criação do Ministério da
Previdência e Assistência Social (MPAS), em 1974, profissionais da saúde passam
a atuar “de forma localizada e marginal”23, aplicando na prática as propostas contidas
no modelo de Saúde Coletiva em busca da democratização da saúde, através de

23
Sonia Fleury Teixeira & Maria Helena Mendonça, “Reformas Sanitárias na Itália e no Brasil: Comparações”. In Reforma sanitária: Em busca
de uma teoria. Sonia Fleury Teixeira (org.). São Paulo: Cortez Editora, 1989.
MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70:...
37

ações concretas dos poderes públicos e da participação de sindicatos de


trabalhadores, bem como das comunidades de bairro, como se viu, em particular,
nos programas desenvolvidos pelas Secretarias de Saúde dos municípios de
Campinas, Niterói e Londrina na segunda metade da década de 70.
Em 1977 foi criada a Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária, vindo a Lei
de Vigilância Sanitária a entrar em vigor em 1978. A partir de junho do mesmo ano,
tornou-se obrigatória no país a vacinação de crianças até 1 ano de idade contra o
tétano, coqueluche, difteria, poliomielite, sarampo, varíola e tuberculose. Em agosto
é aprovado no Congresso o projeto governamental que reformula o INPS, determinando
que o Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social (INAMPS)
passasse a se constituir numa unidade estanque da administração das
aposentadorias e pensões, ficando exclusivamente responsável pela assistência
médica aos trabalhadores.
Em discurso proferido no final de 1977, em São Paulo, o presidente Geisel
diz que os índices de mortalidade infantil no país estavam decrescendo, indicando
então 94 mortes por mil nascidos vivos em 1973, 80 por mil em 1976 e 54 por mil
até outubro de 1977. Contudo, Geisel estaria provavelmente apresentando indicadores
referentes somente à cidade de São Paulo e generalizando-os para todo o país,
uma vez que, dados de 1980 do IBGE, mostram que em São Paulo a relação era de
53,9 crianças mortas por mil nascidas vivas, mas que no Recife era de 83,6/mil n.v.
e em Manaus de 77,2/mil n.v.. No conjunto do país, a taxa de mortalidade infantil
em 1980 havia sido de 65,8% por mil nascidos vivos24.
Enquanto na cidade de São Paulo, em 1980, o índice de mortalidade infantil
era de 48,4/mil n.v., nos EUA o índice era de 10,5, na Suécia 6,4 e no Japão 5,5, só
para citarmos alguns países desenvolvidos à guisa de comparação25 (COHN, Idem:
38). Ademais, com dados disponíveis até 1978, as verminoses ainda infestavam
cerca de 50 milhões de brasileiros, a doença de Chagas em torno de 8 milhões, a
esquistossomose por volta de 12 milhões e a hanseníase 1 milhão.
No último governo do ciclo militar, o do general-presidente João Baptista de
Oliveira Figueiredo, ocorreu um fato na área da saúde que chamou a atenção das
comunidades científicas nacional e internacional. Por não concordar com as
estatísticas oficiais a respeito do número de casos de poliomielite no Brasil, em

24
Fonte: IBGE – Tabulações Avançadas do Censo Demográfico/Brasil – 1980; Ministério da Saúde – Estatísticas de Mortalidade/Brasil-1980. n.v.
= nascidos vivos. In Amélia Cohn, A Saúde na Previdência Social e na Seguridade Social: Antigos estigmas e novos desafios. pp.35-6.
25
Amélia Cohn, Idem, p.38.
MEMÓRIAS
38

1980 o cientista norte-americano, Dr. Albert Sabin, que vinha trabalhando como
assessor especial do Ministério da Saúde na gestão do presidente Figueiredo,
demitiu-se do cargo. Em carta aberta ao presidente da República, Sabin suspeitava
que houvesse pelo menos dez vezes mais casos de pólio no Brasil do que indicavam
os relatórios do Serviço Especial de Saúde Pública (SESP). Ainda segundo Sabin,
de cada 100 crianças que contraíam a doença no Brasil daquela época, 15 a 20
morriam, enquanto que nos EUA, a taxa de mortalidade era de 5%. Dados de 1980,
apresentados pelo Dr Hélio Aguinaga no VII Congresso Brasileiro de Reprodução
Humana, no Rio de Janeiro, mostravam que 63% da população brasileira sofriam de
desnutrição e que os índices de mortalidade infantil giravam em torno de 49%26.
Para agravar a situação calamitosa dos serviços de atenção médica
previdenciária, no primeiro semestre de 1981 os médicos do serviço público do
Estado do Rio de Janeiro fazem quatro paralizações por conta do que denominavam
“contínua ‘proletarização’ da classe”. Depois de realizarem passeatas nas ruas da
capital fluminense em busca do apoio da população, o Sindicato dos Médicos sofre
intervenção do Governo Federal e tem decretada a prisão de seu diretor-presidente,
Dr Roberto Chabo. Entretanto, em julho, a intervenção é suspensa, a diretoria do
sindicato é reconduzida aos seus cargos e, no final, a categoria conquista um
aumento salarial.
Os dados estatísticos, aqui apresentados, mostram que os governos do regime
autoritário-militar não tinham planos adequados para elevar os níveis de saúde e
melhorar o estado sanitário da população brasileira, deixando o Brasil, nessa área,
nas últimas posições no mundo e na América Latina conforme inúmeros gráficos
produzidos pela Organización Panamericana de la Salud, pelo IBGE e pelo Statistical
Yearbook for Latin America da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL)
das Nações Unidas.
Isso, evidentemente, acabou provocando, numa determinada fase do regime
autoritário-militar, pressões que demandavam mais atenção para essa questão social,
tanto por parte da população previdenciária quanto por parte dos profissionais
diretamente ligados à prestação de serviços de saúde no âmbito público.
Entre as diversas forças sociais de resistência à ditadura militar estava um
grupo de pessoas com formação universitária, a maioria na área das Ciências
Médicas e Biológicas, as quais, numa aproximação com as Ciências Sociais,

26
Livro do Ano Barsa 1981. Rio de Janeiro/São Paulo: Encyclopedia Britannica Editores Ltda, “Brasil – Saúde”.
MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70:...
39

passaram a compor, em meados da década de 70, os Departamentos de Medicina


Preventiva e Social de algumas universidades brasileiras. Embora as universidades
estivessem vivendo uma experiência de repressão ainda em meados dos anos 70,
esses Departamentos constituíram-se num espaço de discussão da Saúde Pública
estreitamente interligado com a questão social.
Os departamentos de Medicina Preventiva da UNICAMP, USP, UFF e UEL,
entre outros, através da discussão sobre saúde pública e dos trabalhos de campo
realizados nos projetos de Medicina Comunitária de suas respectivas cidades,
ocuparam, de acordo com Sérgio Arouca, os espaços da Saúde para fazer uma
oposição silenciosa à ditadura militar, contribuindo assim para tornar realidade a
abertura política e, depois, a redemocratização do País. Essas realizações são
mais uma forte evidência de que a abertura política e o posterior avanço do Brasil
em direção à redemocratização foram processos que contaram com a expressiva
participação de movimentos e organizações da sociedade civil brasileira.
Num cenário marcado pela crise previdenciária que se instalou no País no
final da década de 70 e início dos anos 80, e pela presença de vários movimentos
de democratização da sociedade brasileira, começa a se delinear um amplo projeto
de Saúde Pública. Esse projeto, que vai conformar o Movimento Brasileiro pela
Reforma Sanitária, teve sua expressão máxima na realização da VIII Conferência
Nacional de Saúde em 1986. Divisor de águas na história da saúde no Brasil, nessa
Conferência foram delineados os princípios norteadores do que viria a ser o SUS
proposto pela Constituição de 1988.
MEMÓRIAS
40
MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70:...
41

Saúde e Democracia:
reflexão acadêmica e ação política

Antonio Sérgio da Silva Arouca


MEMÓRIAS
42
MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70:...
43

CAPÍTULO 1

Saúde e Democracia:
reflexão acadêmica e ação política 
depoimento de Sérgio Arouca

O depoimento de Sérgio Arouca, aqui apresentado, resgata fatos e


personalidades de um momento histórico decisivo para a constituição das bases
teóricas e conceituais das temáticas integrantes da luta nacional pela reforma
sanitária brasileira, que iria culminar na criação, em 1988, do Sistema Único de
Saúde – SUS. Seu depoimento recupera a história da mobilização, na década de
70, de uma rede de pessoas que, numa diversidade de campos e lugares, se
aglutinaram na luta por mudanças na realidade política e sanitária do País.
Década marcada pela luta política contra o regime ditatorial, nos anos 70
emergiu nos Departamentos de Medicina Preventiva de algumas universidades
brasileiras um movimento crítico que se configurou como um exercício de
constituição, a partir de uma abordagem marxista, de um novo pensamento sobre
saúde. Oriundo da movimentação desses espaços acadêmicos na direção de um
estreitamento de relações entre academia, grupos organizados da sociedade civil e
serviços de saúde, esse movimento afigurou-se, por meio da interação desses atores
sociais, como um campo de luta de dupla feição: como espaço para a constituição
de novas teorias no campo da saúde, e como lugar para a renovação de uma prática
médica democratizadora.
Segundo Arouca, o projeto político do movimento caracterizou-se por um
eixo central: a saúde como campo de luta contra a ditadura:

“Uma questão que considero central é que, nós, como militantes do Partido
Comunista Brasileiro, estávamos na clandestinidade e tínhamos como eixo
fundamental de atuação a luta contra a ditadura. Optamos por empreender uma
luta contra o regime autoritário não na linha da chamada luta armada, mas numa
linha de ação pacífica, democrática, somando todas as forças democráticas
MEMÓRIAS
44

existentes na época. Entendíamos que todos os espaços em que fosse possível


consolidar forças democráticas na luta contra a ditadura deveriam ser ocupados
por nós, e que um dos papéis que a Universidade deveria ter  e que podíamos
ter naquela época  era estabelecer uma rede de pessoas, articulando democratas
no Brasil inteiro, nos mais diferentes lugares, com o compromisso de pensar e
desenvolver projetos de redemocratização do País.
Entendíamos que a saúde era um campo privilegiado da luta democrática,
associado aos outros movimentos de democratização no Brasil. Foi uma luta
particular de uma área, mas que tinha uma ampla dimensão. Contamos com o
grupo de Chico27, no Ceará, com o de Tomassini28 em Niterói, com o de Sebastião29
em Campinas, com o de Márcio30 em Londrina, e com vários outros grupos que
acabávamos identificando no Brasil inteiro, de uma forma suprapartidária, em
que o eixo era a questão dos democratas na luta contra a ditadura.”

De acordo com Arouca, o movimento se constituiu pela conjugação de dois


ciclos: o primeiro abarca o processo de construção, nos Departamentos de Medicina
Preventiva, das bases teóricas e técnicas que deram sustentação à renovação do
saber e das práticas médicas. O segundo ciclo refere-se à institucionalização dos
projetos de medicina comunitária desses departamentos nas prefeituras de
Campinas, Londrina e Niterói, no processo de organização dos seus respectivos
sistemas de saúde. Em relação às ações empreendidas nesse primeiro ciclo,
relembra Arouca:

“O ponto de partida do movimento é a resistência à ditadura, na linha da ocupação


de espaços para promover a redemocratização do país. Esse é o eixo central do
movimento todo. Um dos pólos fundamentais nesse movimento de resistência à
ditadura foram os Departamentos de Medicina Preventiva. Esses Departamentos
das Universidades eram os locais onde era possível, na época, ter alguma
discussão sobre a questão social e a questão da saúde pública. Esses
departamentos se tornaram espaços de atração de segmentos da esquerda
democrata. Foram poucos departamentos empenhados nessa luta, mas alguns
foram extremamente simbólicos nessa questão.
O Departamento de Medicina Preventiva da UNICAMP foi um desses espaços de
luta, porque tinha recebido o Professor Miguel Ignácio Tobar como Chefe do

27
Francisco das Chagas Monteiro
28
Hugo Coelho Barbosa Tomassini
29
Sebastião de Moraes
30
Márcio José de Almeida
MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70:...
45

Departamento. Ele trouxe sua experiência de trabalho com comunidade na


Colômbia, na linha de ensino em comunidade, de saúde comunitária  hoje,
saúde da família  uma experiência de ensino médico que, na segunda metade
da década dos anos 60, estava promovendo a introdução das Ciências Sociais
na saúde.
Um outro departamento importante dentro desse processo de reformulação da
abordagem da saúde, foi o da USP, com a ida do Guilherme31 para o Departamento
de Medicina Preventiva, que era um departamento extremamente conservador.
Com a chegada de Guilherme, foi aberta também na USP a discussão voltada
para repensar a questão da Medicina Preventiva. O projeto de Medicina
Comunitária desenvolvido pela USP no Butantã e o trabalho de Maria Cecília
Donnangelo 32 repensando a contribuição das ciências sociais nesse
Departamento acabam construindo uma rede em São Paulo. Acho que foi um
primeiro movimento de agregação do movimento, muito interessante.”

A constituição de um novo campo disciplinar na área da saúde efetuada nos


Departamentos de Medicina Preventiva atravessou momentos de intensa discussão
e de muitas tensões, como relembra Arouca:

“As Ciências Sociais que começaram a ser introduzidas na fase inicial de


implantação dos Departamentos de Medicina Preventiva seguiam a vertente da
Medicina Preventiva de feição norte-americana, que privilegiava a relação médico-
paciente e os padrões de conduta médica, adotando uma visão antropológica e
predominantemente funcionalista da área da saúde. Essa vertente discutia muito
pouco a questão da determinação social dos sistemas de saúde, da estrutura
social e do processo saúde-doença. Poderíamos dizer, então, que eram ciências
sociais aplicadas à saúde, mas era uma abordagem oriunda de um campo das
ciências sociais mais conservador, de direita.
O primeiro desafio dentro dos Departamentos de Medicina Preventiva foi começar
a ter outra visão da questão social na área da saúde, com a introdução do
pensamento marxista. Começamos a discutir a questão das relações entre classes
sociais e saúde, da determinação social do processo saúde-doença, a utilizar os
trabalhos de Gentile33 sobre organização do sistema, os trabalhos do próprio
Mário Chagas sobre sistemas de saúde, indo buscar referências teóricas nos

31
Guilherme Rodrigues da Silva
32
Maria Cecília Ferro Donnangelo
33
Carlos Gentile de Melo
MEMÓRIAS
46

Institutos de Filosofia e Ciências Humanas e de Ciências Econômicas das


Universidades. Começamos, naquela época, uma grande discussão centrada
na leitura de O Capital, de Marx, o que abriu, nos Departamentos de Medicina
Preventiva mais comprometidos, uma nova vertente no debate sobre as ciências
sociais aplicadas à saúde. Isso produziu enormes mudanças, não só no ensino
das ciências sociais em saúde, mas mudanças que acabaram acontecendo na
visão da epidemiologia clássica, ao incorporar nessa disciplina a visão da
determinação social das doenças.
Esses estudos nos permitiram sair do enfoque centrado na relação médico-
paciente, para discutir o trabalho em saúde e a organização de sistemas de
saúde. Nessa nova abordagem, a visão do trabalho comunitário passou a ser
muito impregnado pela concepção da esquerda de que a participação social,
popular, a conscientização da população eram instrumentos privilegiados da
medicina preventiva e, simultaneamente, instrumentos do trabalho de
redemocratização do País.
Chegamos, por exemplo, no Departamento de Medicina Preventiva da UNICAMP
a trabalhar com uma coisa que se chamava de primeiro e segundo discurso. O
primeiro discurso era a análise da estrutura social e dos determinantes políticos
e sociais da questão da saúde, mas, depois, para que isso pudesse ser absorvido
no campo da Universidade, esse discurso era revestido de uma análise técnica
de sistemas de saúde, para que pudesse passar.
Em Campinas esse movimento por mudanças na saúde teve um forte peso, até
porque Campinas era um fato inédito no campo da ditadura. Enquanto a maior
parte das universidades estava sofrendo uma repressão muito grande, com
perseguição e prisão de professores, como era o caso da UERJ no Rio de Janeiro,
e de várias universidades em ouros estados do Brasil, Campinas funcionava
como uma ilha, onde era possível ter Maria Conceição Tavares34 dando curso; o
Manoel Castells35 fazendo as discussões da questão urbana e do marxismo.
Para lá foram pessoas que no Brasil inteiro não conseguiam fazer residência,
trabalhar ou pessoas que estavam procurando esse caminho. Então, foram para
Campinas o David Capistrano36, o Eduardo Freese37 e Heloisa38, de Pernambuco,
Chico Gordo39. Quer dizer, Campinas, por suas características de esquerda,

34
Maria da Conceição Tavares de Souza
35
Manoel Castells, sociólogo espanhol, professor em Berkeley.
36
David Capistrano da Costa Filho
37
Eduardo M. Freese de Carvalho
38
Heloísa Mendonça
39
Francisco Eduardo de Campos
MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70:...
47

acabou concentrando um grupo grande de pessoas com influência em outros


estados.

Muito marcante nas ações do movimento era o fato de que todos os Departamentos
já desenvolviam Projetos de Medicina Comunitária antes de esses projetos
chegarem aos municípios. Isso aconteceu na UFF em Niterói ; na UNICAMP em
Paulínia e em bairros de Campinas; na USP com o Projeto Butantã e na UEL em
Londrina. O primeiro passo era o Departamento de Medicina Preventiva
repensando a questão teórica da saúde, numa vertente dessa luta pela
redemocratização, estabelecendo projetos comunitários e quase criando uma
nova teoria da saúde.”

Além dos estudos e das discussões realizadas pelos docentes e alunos no


âmbito interno dos Departamentos de Medicina Preventiva, a movimentação desses
docentes dirigiu-se também para a construção de articulações interinstitucionais,
com a adoção da estratégia da promoção de encontros de medicina preventiva,
como relata Arouca:

“Um primeiro fato interessante, do ponto de vista da academia, dentro do


movimento de repensar a área de saúde foi a criação dos Encontros de Medicina
Preventiva. Esses encontros começaram a ampliar o debate, a socializar as
informações, a trocar bibliografia. A bibliografia com que trabalhávamos era
conseguida a duras penas, com cópias mimeografadas ou com livros de vários
autores, como Michel Foucault e Luc Boltanski, que apareciam e eram distribuídos
de mão a mão.”

Em São Paulo, o movimento do Departamento de Medicina Preventiva da


UNICAMP começou a encontrar outros interlocutores institucionais. A esse respeito,
relata Arouca:

“Existia ainda uma outra vertente do movimento que não vinha da vertente mais
ligada ao Partido Comunista. Era ligada à linha da esquerda católica e também
estava fazendo o mesmo movimento de discussão da saúde que os
Departamentos de Medicina Preventiva faziam. Essa vertente constituiu
Departamentos de Medicina Preventiva na Santa Casa de São Paulo e na Escola
Paulista de Medicina, com núcleos que começaram também a desenvolver essa
reflexão.”
MEMÓRIAS
48

No âmbito dessa estratégia de ampliar a interlocução do movimento do


Departamento de Medicina Preventiva da UNICAMP com outros atores institucionais,
Arouca destaca o estabelecimento da articulação com parceiros internacionais,
especialmente a OPAS e a Fundação Kellogg, organismos que ajudaram a fortalecer
e ampliar a socialização do pensamento social na saúde que estava se constituindo
no Departamento:

“Creio que devemos chamar a atenção para dois pontos que foram importantes
para fortalecer o movimento. O primeiro deles foi o papel da Organização Pan-
Americana da Saúde - OPAS, que vinha atuando no fortalecimento do ensino das
ciências sociais na área da saúde, por meio do trabalho de articulação de debates
sobre o ensino médico que faziam Juan César Garcia, Miguel Marques e José
Roberto Ferreira. Esse debate sobre as ciências sociais aplicadas à saúde estava
começando a acontecer, naquela época, na própria Organização Pan-Americana.
Isso quer dizer que os primeiros seminários promovidos pela OPAS sobre ciências
sociais em saúde eram seminários que versavam sobre a relação médico-
paciente, os padrões de comportamento, etc, o que provocou, principalmente no
encontro do grupo do Juan César Garcia com docentes brasileiros, uma linha de
tensão muito grande. Nós, que pensávamos as ciências sociais na saúde numa
perspectiva de esquerda e marxista, nos defrontávamos com o grupo da
Organização Pan-Americana. Mas acabamos encontrando um caminho comum,
com Juan César Garcia fazendo na América Latina, o papel que fazíamos no
Brasil. Ele identificava e articulava nos países da América Latina grupos de trabalho
de Medicina Comunitária, de Ciências Sociais, de Epidemiologia. Isso foi feito no
Equador, Chile, México e em vários lugares, com intercâmbio de bibliografia.
Assim, o movimento que emergiu nos Departamentos de Medicina Preventiva no
Brasil, além de promover um intercâmbio entre instituições brasileiras, ampliou
suas articulações, passando a promover também um intercâmbio latino-
americano de idéias e proposições, porque a América Latina toda, na verdade,
estava passando pelo mesmo processo de ditadura e de luta pela democracia.

A outra vertente que veio a apoiar nosso movimento foi a Fundação Kellogg. Em
que ela estava interessada? Ela não tinha essa visão de esquerda, da questão da
luta pela democratização, mas trazia em seus programas de apoio a idéia de se
pensar sistemas de saúde e reformas curriculares. Isso permitia conseguir apoios
para começar a criar laboratórios de educação em Medicina Comunitária, que
teriam essa vertente das ciências sociais na saúde, pensando em mudanças nos
currículos das Faculdades de Medicina e, ao mesmo tempo, o trabalho em
Medicina Comunitária.”
MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70:...
49

As tensões vividas internamente no Departamento de Medicina Preventiva da


UNICAMP, aliadas às perseguições políticas do regime ditatorial motivaram uma
crise no Departamento que culminou com a saída de Arouca da UNICAMP. O
fragmento do depoimento dele transcrito abaixo refere-se a esse fato:

“Em 1975/76, tivemos que fazer uma migração forçada para o Rio de Janeiro, em
função da crise instalada entre o Departamento e a Reitoria da UNICAMP.
Havíamos feito um convênio com a Fundação Kellogg e, por meio desse convênio,
criamos o Laboratório de Educação Médica e Medicina Comunitária, o LEMC.
Começamos a fazer um trabalho com os alunos-monitores, na linha da medicina
comunitária, em vários municípios da região de Campinas. Através desse
convênio com a Kelloggs contratamos vários consultores internacionais, pessoas
especializadas em educação médica, em sistema de saúde, um chileno, um
argentino. Só que esse grupo que chegou de fora, chegou com outro
posicionamento político, diferente do nosso grupo dentro do Departamento de
Medicina Preventiva, que não estava atuando com um projeto só técnico.
Estávamos na luta pela democratização e num dos nossos documentos sobre
Medicina Comunitária, nessa história de se ter duas versões, nós colocamos de
uma forma explícita que estávamos fazendo a luta pela democracia, para
democratizar o Brasil, a luta contra a ditadura, etc. Esse documento cai nas mãos
de um desses pesquisadores chilenos contratados através da Kellogg e ele leva
ao Zeferino40. Isso acontece num momento em que estávamos travando dentro
da Universidade Estadual de Campinas um movimento junto com o Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, para ampliar a democratização da Universidade.
Eu estava na Direção do Departamento junto com o Pinotti41, batalhando para
fazer a mudança do currículo nessa linha da Medicina Comunitária. O que
acontece? O Zeferino, com esse documento e com esse enfrentamento que existia,
resolveu fazer um corte geral. Então, pegou o cunhado dele, que era o Diretor de
Estudos de Física, Marcelo Dami, e demitiu. Tirou o Pinotti da Diretoria da
Faculdade de Medicina. Demitiu também o Diretor do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas, baixou um decreto determinando que eu só poderia trabalhar
no Centro de Saúde de Paulínia numa hora em que não tivesse nem médico,
nem estudante, nem residente e pegou a minha tese [de doutoramento] que
estava pronta e engavetou. Não me deixou defender. Com isso, o nosso grupo
inteiro não tinha mais o que fazer. Abriu-se então a perspectiva de irmos para a
Fundação Osvaldo Cruz, trabalhar como pesquisadores de um projeto da FINEP,

40
Zeferino Vaz, então Reitor da UNICAMP.
41
José Aristodemo Pinotti
MEMÓRIAS
50

o PESES/PESPES. Na FIOCRUZ, a Escola Nacional de Saúde Pública, naquela


época, estava completamente esvaziada, tinha só doze ou treze pessoas que
seguravam as atividades de ensino, pois o grupo da escola tinha sido destruído42.
Tinha sobrado o Arlindo, o Eduardo Costa, um grupo de resistentes. E saímos em
peso da Unicamp e fomos para a FIOCRUZ, o que permitiu nascer o PESES/
PESPES. Ficou um grupo em Campinas que resistiu a duras penas.
Na minha saída de Campinas para ser protegido como funcionário, fui
contratado como funcionário internacional da OPAS, onde se reúne outro
grupo, o grupo da OPAS em Brasília, com Carlyle 43 . Com a criação do
PPREPS 44 , que tinha uma linha de apoio a programas comunitários, a
programas de treinamento de pessoal, consolidou-se esse grupo, com
participação da Isabel Santos 45, do Pellegrini46. Começamos naquela época
a criar um movimento de aglutinação de pessoas, que se chamava projeto
Andrômeda. Esse projeto buscava reunir pessoas comprometidas com a
visão da saúde enquanto questão social, criando um espaço para pensar um
projeto de saúde que incorporasse a questão da democratização. A idéia
era pensar o que deveria acontecer com o sistema de saúde no Brasil.”

O segundo ciclo do movimento, definido por Arouca como a fase de inserção


institucional, na esfera municipal, das proposições teóricas formuladas nos
Departamentos de Medicina Preventiva de universidades de São Paulo e do Rio de
Janeiro, consistiu na participação de docentes desses departamentos na gestão
da saúde em algumas prefeituras. Propiciada pela eleição de prefeitos da oposição,
eleitos pelo MDB em 1976, tal inserção se deu no âmbito da organização de serviços
locais de saúde, como relembra Arouca em seu depoimento:

“O segundo ciclo da atuação dos docentes dos Departamentos de Medicina


Preventiva consiste na articulação da academia com o movimento de
redemocratização, quando o MDB começa a ganhar prefeituras, abrindo um
novo espaço de luta que, para nós, era um espaço novo, porque vínhamos

42
O governo militar havia instaurado uma devassa na ENSP, com a perseguição política dos pesquisadores, demitindo vários docentes, que foram
para o exílio. Esse episódio ficou conhecido como o “massacre de Manguinhos”.
43
Carlyle Guerra de Macedo, pesquisador brasileiro, Diretor da OPAS.
44
Em 1975, o Ministério da Saúde implanta, com o apoio da OPAS, o programa dessa Organização voltado para a formação de recursos humanos
para a saúde, o Programa de Preparação Estratégica de Pessoal de Saúde – PPREPS, com o objetivo de apoiar o desenvolvimento de recursos
humanos da saúde nos Estados da federação para atender às necessidades de pessoal geradas pelo Programa de Extensão de Cobertura.
45
Enfermeira sanitarista responsável pela execução de projetos do PPREPS.
46
Alberto Pellegrini Filho, docente da FMC da UNICAMP e do Instituto de Saúde Comunitária da UEL, integrante do PESES/PESPES da
FIOCRUZ e coordenador de pesquisa da OPAS.
MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70:...
51

trabalhando apenas em bairros. De repente, abrem-se poucos lugares importantes


de luta [Campinas, Londrina e Niterói], abre-se um novo espaço teórico-prático
em que se começa a pensar o município todo. Eram prefeituras que,
absolutamente, não tinham nada na área da saúde. O exemplo do Tomassini era
folclórico. Ele era o Secretário da Saúde de cemitérios, em Niterói.
Essas três prefeituras, apesar de serem só três prefeituras, tinham um potencial
grande para polarizar o pensamento crítico que estava disperso, seja na
universidade, seja em outros espaços, e de apresentar coisas novas que estavam
sendo feitas e que ninguém estava fazendo.
Então, o desafio era como começar a reconstruir o espaço municipal nessa
articulação com a experiência que foi acumulada em Medicina Comunitária e na
perspectiva de um trabalho político de redemocratização. O nosso papel foi
mobilizar as prefeituras para começar a fazer os encontros municipais de saúde.
Tínhamos a via da Universidade e, depois, a da Fundação Osvaldo Cruz para
isso.
Esse foi um momento marcante no movimento, o da integração do trabalho que
vinha sendo desenvolvido nos Departamentos de Preventiva e o movimento de
redemocratização que foi desembarcar nas secretarias municipais de saúde
pelas vitórias do MDB nas eleições de 1976. Isso permitiu, então, o encontro entre
a Universidade e os serviços de saúde, com a experiência de gestão da saúde no
âmbito das prefeituras. Isso significou um outro salto qualitativo, cujo marco foi a
promoção do encontro [de Secretarias Municipais de Saúde] de 1978.
Tive a oportunidade de participar desse encontro pela FIOCRUZ e de poder
acompanhar o Projeto de Tomassini [na SMS de Niterói] e, mesmo tendo saído de
Campinas, pude acompanhar o projeto do Sebastião Moraes [na SMS de
Campinas] e o de Márcio [na SMS de Londrina]. Nós não conseguíamos chegar
muito perto do Estado, mas a perspectiva toda era abrirmos espaço de atuação
no nível de pequenos municípios, para que eles conseguissem se transformar
em efeito de demonstração. Funcionávamos um pouco como divulgadores do
que o Tomassini, o Sebastião e o Márcio, e depois o pessoal de Montes Claros,
estavam realizando em suas Secretarias. Mobilizávamos as pessoas para que
fossem para lá. Promovíamos a divulgação dessas ações, escrevíamos sobre o
que estavam fazendo e mostrávamos que havia um caminho. Um caminho que
agora não era só acadêmico, também havia chegado aos serviços de saúde.”

A participação dos partidos políticos no movimento de municipalização que


se iniciava através das experiências municipais que se deram na década de 70 por
meio do trabalho que se desenvolvia nessas prefeituras, e que se ampliou em função
da atuação de Arouca na FIOCRUZ, é relembrado por Arouca nos seguintes termos:
MEMÓRIAS
52

“No encontro entre a academia e os serviços de saúde, o PCB, realmente, teve


um papel fundamental. Apesar de clandestino, era um dos poucos partidos
organizados que existiam naquela época. A grande característica do movimento
é que, quando se começa a abrir espaço de atuação nos serviços públicos de
saúde, essa atuação passa a ser suprapartidária. Essa marca foi muito forte. Se,
de repente, o PCB estava brigando na União Nacional dos Estudantes com a
Ação Popular, quando chegávamos ao campo da saúde, essas brigas eram
dissolvidas. Em vários outros lugares tinha-se enfrentamento partidário, mas no
campo da saúde, esses enfrentamentos não aconteciam. Tanto assim que o
movimento agregava as mais diversas pessoas. O Sérgio Góes, na FINEP, que
foi uma pessoa central na realização do encontro entre a FINEP e o Ministério da
Saúde, não tinha nada a ver com o PCB e nem com a esquerda católica. Era uma
pessoa de esquerda, independente, que passava por esta influência do Mário
Magalhães, do Chico de Oliveira e depois vai desembarcar no PT. O David
Capistrano era militante do PCB. O Seixas47, o Guedes48, o grupo do Mercadante49
vinham todos nessa linha da esquerda católica da AP. O interessante, acho que
foi o divisor na saúde, é que nesse campo não houve enfrentamentos de projetos,
de projetos divergentes. Acabou criando certa unidade e marcando o que foi o
PESES e depois o que foi a VIII Conferência, onde se desenvolveu o projeto do
SUS, já na esfera desse campo suprapartidário”.

Outras vertentes do movimento de democratização da saúde são destacadas


por Arouca em seu depoimento, mostrando como a sociedade civil organizada se
mobilizou em torno de ideais comuns na luta pela reforma sanitária. Relembra Arouca:

“Você tem uma experiência de duas outras vertentes que não foram postas aqui:
a vertente dos médicos residentes, organizada pela Associação Nacional dos
Médicos Residentes, que é uma vertente interessante, com os encontros
nacionais, e a vertente constituída pelo pessoal do Movimento de Renovação
Médica, com o Mário Correia Lima, no Rio, depois com Roberto Chabo. Essas
vertentes foram muito importantes em todo esse processo, por motivar uma
discussão maior e mais aprofundada também, que foi uma discussão muito
institucional da universidade. Além dessas duas vertentes, uma outra vertente
significativa se forma por meio do trabalho das comunidades eclesiais de base,
que não eram institucionais, inclusive eram anti-institucionais.

47
José Carlos Seixas
48
José da Silva Guedes
49
Otavio Mercadante
MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70:...
53

Está faltando uma outra vertente também, muito interessante, que foi o movimento
que fizemos para realizar um encontro de saúde da Câmara50. Pela primeira vez,
com o crescimento do MDB, foi possível a criação de uma base parlamentar na
Comissão de Saúde da Câmara, comprometida com a questão da democratização
da saúde.
Na tese da Sarah51, ela coloca essas vertentes, mostrando como o movimento
sanitário nasce no movimento da mobilização que agregou diversos grupos: o
pessoal da renovação sindical médica, o grupo dedicado ao desenvolvimento de
projetos comunitários, a frente parlamentar de saúde e os sanitaristas dos
Departamentos de Medicina Preventiva.”

O papel da FIOCRUZ na expansão da rede de pessoas e instituições


comprometidas com as teses do movimento iniciado nos Departamentos de Medicina
Preventiva foi extremamente significativo, desenvolvendo um trabalho de agregação
de pessoas e instituições por meio do desenvolvimento de projetos na área de
medicina social e da oferta de cursos de pós-graduação. Essa estratégia contribuiu
para consolidar a confluência das diversas vertentes constitutivas do movimento
sanitário que vinha se constituindo no País. Arouca, em seu depoimento, relata
essa mobilização:

“Uma parte da esquerda católica tinha também um projeto de mudança e esteve,


também, na origem desses trabalhos da FINEP, com Sergio Góes, em que vários
grupos acabaram resultando na criação do PT.
Esse projeto da FINEP, aliás, foi um projeto que nasceu um pouco com a bênção
desse campo da esquerda. Antes de eu ir coordenar esse projeto na FIOCRUZ,
que se chamava PESES/PESPES, Programa de Estudos Sócio-Econômicos de
Saúde, tivemos uma reunião com Mário Magalhães, com Francisco de Oliveira,
com Fernando Henrique Cardoso, que eram pessoas que estavam no campo de
luta democrática, para mostrar que existia aquele espaço e que era possível uma
articulação entre a FINEP e a Fundação Osvaldo Cruz, que começava a passar
por um processo de recuperação, com a ida de um economista que tinha ligações
com o PCB e que era ligado ao Seixas. Eles montaram um projeto de recuperação
da Fundação Osvaldo Cruz. Então, o PESPEP, que era um projeto de estudos de

50
Arouca refere-se ao trabalho de mobilização que culminou com a realização do I Simpósio sobre Política de Saúde, promovido pela Comissão
de Saúde da Câmara dos Deputados em outubro de 1979. Esse Simpósio teve como tema central a discussão das políticas de descentralização
e regionalização dos serviços e de desenvolvimento de recursos humanos para a saúde.
51
Pesquisadora da FIOCRUZ . Ver ESCOREL, Sarah. Reviravolta na saúde: origem e articulação do movimento sanitário. RJ: FIOCRUZ, 1998.
MEMÓRIAS
54

epidemiologia e de estudos sócio-econômicos, permitiu criar essa abrangência


maior do movimento no Brasil.
Criamos então esses projetos de pesquisa que, simultaneamente, eram também
projetos políticos. Nosso objetivo era continuar a articulação que os Departamentos
de Medicina Preventiva haviam iniciado, não apenas só no nível de São Paulo e
Rio de Janeiro, mas agora nacionalmente, apoiando os departamentos que
tivessem a perspectiva da esquerda democrática. Buscávamos identificar grupos,
pessoas que estavam espalhados no Brasil, perdidos, sem contato e que estava
vivendo experiências de medicina comunitária. Tínhamos um projeto de
divulgação de bibliografia. Tudo aquilo que era clandestino, reuníamos e
distribuíamos para esses grupos que identificávamos, para que pudessem ter
acesso.
Acho que esse processo que estamos descrevendo um pouco, que aconteceu na
época do Paulo de Almeida Machado no Ministério da Saúde, de você ter abertura,
chegar um grupo de esquerda dentro do Ministério, no caso ligado à esquerda
católica, teve, também, uma versão dentro do INAMPS. Se formos pensar um
pouco sobre a geração que antecedeu a nossa, que era a do Gentile, do Mário
Magalhães, do Mário Vitor de Assis Pacheco e, na Previdência, a do Murilo Vilela
Bastos, que tinha abertura para procurar a integração, para discutir a questão do
município, discutir que a Previdência tinha que integrar com o Ministério da Saúde,
veremos que havia afinidades entre essas vertentes.
O Murilo era aberto a alianças, isso foi uma coisa interessante. Ao mesmo tempo
em que havia um trabalho mais político-ideológico nos Departamentos de
Medicina Preventiva, havia também esse tipo de trabalho acontecendo em vários
outros lugares: como o trabalho solitário do Mário Magalhães, que levava as
críticas às últimas conseqüências, ele com a Nise da Silveira, mas a Nise com
outra cabeça; como o trabalho da Associação Médica do Estado do Rio de Janeiro,
com o Mário Vitor 52, que colocava a questão central de pensar a indústria
farmacêutica, seu controle e propaganda. Tinha-se lá toda uma luta, com o Murilo
como ponto de referência na discussão. Tanto assim que, no desenvolvimento
das experiências que começaram a fazer essa aproximação com o município,
via Previdência, uma figura central, que discutia isso lá dentro, era o Murilo Vilela
Bastos. Acabou acontecendo na Previdência um pouco o que aconteceu na saúde,
com o Aloísio Sales, quando ele foi presidente e monta um grupo de planejamento
junto a ele, que era um grupo de planejamento já nessa vertente de esquerda e,
nesse caso, uma esquerda meio independente. O Guilherme Santos abre essa
vertente.

52
Mário Vítor de Assis Pacheco
MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70:...
55

Acho que esse fato, de repente, de o Estado autoritário começar a abrir brechas
e fissuras e começar a ser ocupado por questões democratizantes, começa a
acontecer não só no Ministério da Saúde. Aconteceu no INPS e em vários outros
lugares. Alguns com mais força do que em outros.
O inédito no nosso trabalho é essa articulação que ninguém fez, aí ninguém fez
mesmo. Não aconteceu na Educação, na Assistência Social, uma movimentação
para fazer a articulação entre a Universidade, o pensamento crítico, e a organização
de serviços, a montagem de um projeto alternativo novo. Tanto assim que, quando
vem a redemocratização, e fomos para a Oitava e para a Constituinte, não
estávamos inventando a roda. Era um processo que já tinha experiência teórica
e prática acumulada na formação de pessoas, na elaboração de idéias, com
teses e publicações, como a revista Saúde e Debate53. A coisa caminha para a
criação do SUS de uma forma quase natural, porque estávamos discutindo durante
a ditadura, não só a crítica à ditadura, mas o projeto de substituição da ditadura.
Isso é que foi o novo, o que não aconteceu, por exemplo, na área da educação.
A discussão na área da educação só vai acontecer quando começa a discussão
da Lei de Diretrizes e Bases, quase dez anos depois de ter acontecido o SUS.”

Esse novo patamar da luta pela democratização da saúde se fortalece com


a ocupação de espaços governamentais, especialmente no Ministério da Saúde,
por um grupo de profissionais ligados ao movimento sanitário. Relembra Arouca:

“No Ministério da Saúde, um grupo de profissionais vinculados à Ação Popular da


Igreja Católica, pela primeira vez, teve acesso ao Ministério, com Paulo de Almeida
Machado e, como Secretário Geral do Ministério, o Seixas, o Yunes. Eles começam
a fazer, também no Ministério da Saúde, essa luta. Começam a proteger pessoas
que eram perseguidas, criam canais junto ao OPAS para formas de contratação
de pessoas, para não terem que passar ficha no SNI. Começa-se a receber
pessoas do exterior, que vem para o exílio, como o Mário Hamilton54 e o Chorny55.
Então, começa, no espaço do Ministério da Saúde, uma luta para encontrar espaços
institucionais para dar cobertura às pessoas perseguidas pelo SNI. Isso não
acontece só no Ministério da Saúde; começa também a acontecer na FINEP e
em vários lugares do aparelho estatal, que, naquele processo de
redemocratização começa a abrir espaço para os integrantes da luta democrática,
mesmo num período duro, que era o período Geisel da ditadura.
53
Publicação do CEBES
54
Dalton Mario Hamilton
55
Adolfo Horácio Chorny
MEMÓRIAS
56

Nessa linha, foram criados na Fundação Osvaldo Cruz os projetos financiados


pela FINEP. Acho importante essa coisa de ocupar espaços, de considerar que o
Estado não era uma coisa monolítica e que você podia ocupar o espaço dentro
do aparelho do Estado, mesmo na ditadura, buscando construir a democracia e
definindo um eixo fundamental. Era uma divisão de água.”

Em seu depoimento, Arouca faz um retrospecto da evolução do movimento


sanitário, desde sua fase inicial das experiências inovadoras dos Departamentos
de Medicina Preventiva na recriação das práticas médicas, passando pelas
mudanças processadas por meio da atuação dos profissionais ligados ao movimento
até culminar no SUS. No relato desse processo de mudanças no setor saúde, a
contribuição do movimento na construção do SUS é destacada por Arouca nos
seguintes termos:

“Tivemos uma grande vitória, num primeiro momento, que talvez tenha sido até
surpreendente, porque o texto que fala da saúde na Constituição foi o único que
nasceu de uma emenda popular, com mais de cem mil assinaturas no Brasil
inteiro. Passou pelos movimentos da Pastoral, pelos movimentos dos
Departamentos de Medicina Preventiva, pelos partidos. Eu tive o privilégio de
apresentar essa emenda popular na Constituinte.
O SUS nasceu, num primeiro movimento, da base social, ao criar essa estrutura
democrática, ter conferência, conselho. Não existe nada parecido com o SUS na
América Latina.
O segundo movimento foi o de institucionalizar essa vitória, de ganhar a base
legal, de aprovar a legislação, que até agora ainda está sendo aprovada, de fazer
a vinculação constitucional, a municipalização. Descentralizar e normatizar a
descentralização, implantar a Lei Orgânica, criar as NOBs. Enfim, foi um projeto
muito intenso de institucionalização que, respeitando sua própria lógica, privilegiou
determinados aspectos, abandonou alguns tópicos da reforma sanitária e teve
que se concentrar no eixo estratégico, que era o eixo da municipalização, porque
se não municipalizasse, o SUS morreria. A base do SUS era ser vitorioso na
municipalização, tanto assim que criou uma base impressionante de novos
sujeitos na área da saúde pública.
Quantas secretarias municipais de saúde tínhamos antes do SUS? Depois do
SUS, foram criados conselhos municipais de saúde em mais de quatro mil
municípios e as secretarias municipais incorporaram um número imenso de
técnicos. Os encontros de epidemiologia antes do SUS reuniam, por exemplo,
MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70:...
57

cinqüenta pessoas. Hoje, a ABRASCO reúne cinco mil, sete mil pessoas. Isso é
fruto do processo da municipalização.
Ao ter que municipalizar, ao ter que criar a base legal, ao ter que normatizar, ao
ter que incorporar o INAMPS dentro disso, a dinâmica da reforma sanitária foi
abandonada e, ao ser abandonada, a universidade de desgarrou. Ela perdeu
essa dinâmica que tinha na relação com o SUS. Hoje, o pacto de uma universidade
no SUS é mínimo. Quanto à questão de mudança de currículo na área de saúde
não aconteceu nada, absolutamente nada. Participar atualmente de uma reunião
da ABEM56 é como se participássemos da reunião da ABEM há trinta anos. É o
mesmo temário, é a mesma coisa. Não avançamos nada. Os temas mais éticos
da reforma sanitária acabaram sendo abandonados durante esse período, como
a questão da humanização, por exemplo. Consolidamos o modelo invertido no
modelo assistencial, quer dizer, nós municipalizamos, porém não mudamos o
modelo assistencial e continuamos baseados no hospital, baseados na
emergência. Crescemos pouco ainda na perspectiva da qualificação da atenção
básica e primária. E não conseguimos formar os profissionais adequados para
esse novo desafio.
Penso ser esse o grande desafio que está sendo colocado agora. Diante de um
governo de mudanças, como é o governo do Lula, o que avançamos no SUS e
qual é o novo ciclo que tem que ser feito? Quais são os temas que temos que
recuperar e que foram abandonados nesse período da institucionalização?
Penso que esse documento57 que está sendo produzido pelo Conselho Nacional
de Saúde pode ser um ponto de partida importante. Mostra a maturidade do
Conselho ao desenvolver um trabalho de construção de um documento tão
crítico, num espaço complexo como é o Conselho, com empresários, com
produtores, com gestores municipais, estaduais, centrais de trabalhadores, até
chegar a um consenso. A identificação desses onze pontos críticos apontados
nesse documento mostra novos desafios. Por isso estamos discutindo a
convocação de uma conferência extraordinária, que não é para discutir apenas
todos esses assuntos, mas sim, o que é fundamentalmente estratégico. Como é
que vamos mudar o modelo assistencial?”

56
ABEM – Associação Brasileira de Educação Médica
57
Conselho Nacional de Saúde. Diretrizes para a Política de Saúde do Brasil para o período de 2003 a 2007. Brasília: CNS, 2003.
MEMÓRIAS
58
MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70:...
59

CAPÍTULO 2

As idéias e as práticas comunitárias na construção de


Serviços Municipais De Saúde na década de 70:
a perspectiva democrática em três prefeituras

Como se pôde perceber por meio do depoimento de Arouca, as experiências


de organização dos serviços municipais de saúde da década de 70 contribuíram
para demonstrar as possibilidades da municipalização no processo de mudanças
da realidade sanitária, fortalecendo as temáticas fundamentais que, nos anos 80,
configuraram a luta do movimento sanitário no País.
A luta por mudanças no setor saúde nos municípios de Campinas, Londrina
e Niterói emergiu em meados dos anos 70, num contexto político marcado por forte
mobilização da sociedade civil, quando a crise do modelo econômico-social e político
do Estado autoritário no Brasil já se fazia presente.
As histórias das lutas pela saúde nesses municípios revelam uma identidade
fundamental, construída na articulação entre a mobilização de docentes e alunos
dos Departamentos de Medicina Preventiva e Social da Universidade Estadual de
Campinas – UNICAMP, da Universidade Federal Fluminense – UFF e da Universidade
Estadual de Londrina – UEL pela renovação da prática médica e as demandas dos
movimentos populares por mudanças na saúde. Essa articulação nasceu dentro da
perspectiva da luta contra o regime autoritário, aglutinando uma rede de pessoas
comprometidas com transformações no setor saúde orientadas pela problematização
da saúde como questão social, e pela implementação de mudanças no sistema de
saúde vigente. Prevalecia o entendimento que o processo de construção de um
modelo descentralizado de atenção à saúde se constituiria também num instrumento
de redemocratização do País. Relembra Arouca, referindo-se às experiências desses
municípios:

“... [Campinas, Londrina e Niterói] são as três únicas prefeituras, pelo menos
identificadas, que estavam naquele momento mobilizadas pela questão
MEMÓRIAS
60

democrática. O trabalho em saúde era assim entendido como instrumento de


redemocratização, na perspectiva de construir um modelo de saúde em que o
município seria o eixo. Na nossa luta pela questão da democratização, se a
ditadura centralizava, a nossa idéia era descentralizar como eixo democrático. A
luta era para abrirmos esse espaço no nível de pequenos municípios, para que
eles conseguissem se transformar em efeito de demonstração.”

Tendo como eixo central a resistência à ditadura, a identidade das experiências


da luta dos municípios de Campinas, Londrina e Niterói pela municipalização dos
serviços de saúde foi também amalgamada em torno da interação com as
Universidades. As experiências docentes-assistenciais, que de formas diversas
contribuíram para o surgimento dessas iniciativas municipais, foram pautadas por
duas linhas de ação: 1) a reformulação da articulação entre ensino médico e serviços
de saúde, empreendendo a construção de um saber e de uma prática médica
orientada por um projeto social em saúde e 2) o fortalecimento da participação da
comunidade na integração entre ensino e serviço de saúde.
Nessa perspectiva, a fim de potencializar o pensamento crítico disperso
pelo País e apresentar propostas para a organização de serviços municipais de
saúde, os atores do movimento pela municipalização desses serviços, liderados
por Sérgio Arouca - “construtor e cimentador”58 do movimento -, organizaram em
1978 o I Encontro Municipal do Setor Saúde. Hugo Tomassini relata esse processo
nos seguintes termos:

“Arouca é o costurador da articulação dessas três secretarias, que estavam


trabalhando na mesma direção. Elegeu-se Campinas para ser a sede do I
Encontro Municipal do Setor Saúde da Região Sudeste, com a preocupação de
que não fosse apenas um encontro do MDB. Tínhamos a preocupação de dar ao
encontro um caráter suprapartidário, um encontro de secretarias municipais que
estavam tentando assumir sua função, o seu papel dentro do sistema nacional de
saúde. E, por isso, envolvemos o IBAM59 e a ENSP60, que nos ajudaram muito na
preparação do encontro, na escolha dos temas a serem debatidos. Então, para
tirar esse caráter de ser um encontro do governo da oposição, procuramos convidar

58
Nas palavras de Francisco Monteiro, sintetizando uma percepção generalizada no Movimento Municipalista.
59
Instituto Brasileiro de Administração Municipal
60
Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca
MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70:...
61

secretários estaduais, representantes do INAMPS e do Ministério da Saúde,


embora nosso discurso já fosse, naquele momento, o discurso da unificação do
sistema, da unificação do MPAS e do MS. Já apontávamos os erros da Lei 6.22961,
da política tributária, da questão da divisão dos recursos entre os níveis federal,
estadual e municipal, porque na partilha, a grande fatia ficava com o Governo
Federal. Já apontávamos a questão da necessidade de desconcentração. Isso
deu um caráter técnico ao Encontro, o que facilitou chamar prefeituras que não
fossem do MDB. Os problemas na saúde na época - carências, dificuldades, a
não existência de ações municipais - eram problemas de quase todos os
municípios do Brasil. Grande parte dos municípios não tinha secretaria de saúde,
apenas um departamento ou setor de higiene. Tentamos mostrar que o município
tinha um papel na saúde e que eles deveriam ter uma secretaria de saúde.”

Num mesmo sentido, relembra Antônio da Cruz Garcia:

“O Sérgio é o responsável pela unidade do movimento, a meu ver. Essa unidade


que permitiu que pessoas como Sebastião, como Tomassini, como Márcio
chegassem às secretarias municipais de saúde com um novo projeto.”

Realizado em Campinas no período de 17 a 20 de maio de 1978, esse Encontro


reuniu representantes de vários municípios das regiões Norte, Nordeste, Sul e
Sudeste e contou com a presença de autoridades municipais e de outros níveis da
federação. Nesse encontro, foram discutidos os seguintes temas: compartilhamento
de responsabilidade entre União, Estados e Municípios; reforma tributária;
necessidade de aumento de recursos para saúde nos municípios; ampliação de
conceitos e práticas em saúde, com ênfase na estratégia da APS e responsabilização
dos prefeitos e SMS.

Segundo Sérgio Arouca em seu depoimento, a realização do Encontro


fortaleceu

61
A Lei 6.229, de 17 de julho de 1975, organizou o Sistema Nacional de Saúde, definindo as competências do Ministério da Saúde (MS), responsável
pelas ações de saúde coletivas, e do Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS), responsável pelas ações de saúde individuais, num
modelo de atenção de natureza assistencial curativista. Essa organização dicotômica, com forte característica centralizadora no nível federal,
recebeu severas críticas dos setores acadêmicos e de setores da sociedade civil.
MEMÓRIAS
62

“...a articulação entre a academia e esse outro movimento pela redemocratização


que foi desembarcar nas secretarias de saúde pelas vitórias do MDB, reunindo
num mesmo espaço os trabalhadores da academia e os trabalhadores dos
serviços de saúde. O encontro entre os Departamentos de Medicina Preventiva
das Universidades e as experiências democráticas das prefeituras significou um
salto qualitativo.”

Essas discussões tiveram continuidade no II Encontro Municipal do Setor


Saúde, realizado em Niterói no período de 24 a 29 de março de 1979. Esse encontro
foi organizado em torno das seguintes temáticas: constituição de rede de serviços;
participação social; responsabilização do Executivo e Legislativo; reforma tributária;
redistribuição de competências entre União, Estados e Municípios; unificação do
MS-MPAS e reorientação da política de recursos humanos da saúde.
A identidade dos processos da luta pela municipalização dos serviços de
saúde nesses três municípios evidencia-se nos relatos dos entrevistados, a seguir
apresentados.
MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70:...
63

2.1. A experiência de Campinas

“As experiências de Campinas passaram a ser ilhas


de atração de gente que não se exilou fora do País,
de pessoas que se “exilaram” dentro do País, pessoas
de outros estados que estavam vindo para
Campinas.”

(Francisco Monteiro)

Sebastião Moraes
MEMÓRIAS
64

A transformação do setor saúde no Município de Campinas foi desencadeada


na gestão de Sebastião de Moraes na Secretaria Municipal de Saúde (1977-1981),
compondo a equipe gestora do governo Francisco Amaral, prefeito eleito pelo MDB
com uma proposta democrática de esquerda, em oposição ao regime militar. Pessoto
relembra em seu depoimento os antecedentes à chegada de Sebastião Moraes à
Secretaria:

“Tínhamos um trabalho ligado aos movimentos sociais da Igreja, em que


utilizávamos sempre a dramatização como recurso para discutirmos temas sociais
com a população. Com esse trabalho de dramatização, queríamos, além da
mensagem explícita, dar uma conotação mais abrangente. Quando o Sebastião
era convidado por essas comunidades para dar uma palestra, ele não ia apenas
como conferencista. Nós íamos juntos, com todas as músicas de contestação e
com a dramatização sobre a temática principal para a qual ele tinha sido chamado.
No auge da pancadaria dos anos 70, estávamos fazendo uma peça e tivemos a
invasão do DOPS em uma das nossas reuniões. O Sebastião, com o grupo que
ele nucleava dentro da cidade, era extremamente reconhecido como alguém de
vanguarda. Em função desse reconhecimento, e por ser médico, Sebastião foi
convidado para a Secretaria, por pressão do vice-prefeito, porque o Prefeito,
Francisco Amaral, conhecia o Sebastião apenas de nome. A pressão do vice-
prefeito sobre o Prefeito pela indicação do Sebastião ocorreu em função desse
trabalho que fazíamos. Na ocasião, havia no grupo uma discussão sobre a
institucionalização do nosso trabalho como uma saída legal, e pensamos muito
em assumir a Secretaria. Achei bom situar o porquê de o Sebastião ter sido
convidado para a Secretaria, porque não emergimos nem da universidade, nem
de partido político. O nosso grupo tinha esse tipo de experiência e éramos
considerados muito à esquerda do próprio MDB.
Ao assumir a Secretaria, não tínhamos muita clareza do que íamos fazer. Lembro-
me de que, no primeiro ano, a receita era de seiscentos mil cruzeiros, da qual o
Hospital Mário Gatti, anexado à Secretaria, levava mais da metade. E tínhamos
só um posto de saúde em cada um dos quatro distritos da cidade, sendo que os
médicos iam aos postos duas vezes por semana. Havia ainda no município o
problema da falta de fiscalização, que era bastante sério. Quer dizer, a Secretaria
não existia.”

Garcia complementa o relato, lembrando:

“Em 1976, Francisco Amaral foi eleito para a Prefeitura de Campinas pelo MDB e
Sebastião Moraes foi escolhido para ser o Secretário de Saúde. Na ocasião, fui
MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70:...
65

convocado para ser seu Diretor de Saúde. Não tínhamos nenhuma idéia do que
era a Prefeitura de Campinas e, muito menos, o que representava administrar
um serviço de saúde do porte da Secretaria. Na época, a Secretaria consistia de
quatro unidades de saúde, onde havia um médico e uma enfermeira. Na prática,
não existia nenhum serviço. O Sebastião Moraes foi o grande desbravador, o
grande incentivador. Tinha uma capacidade criativa muito grande e grande
capacidade de mobilização das pessoas. Fazia com que cada um se sentisse
parte importante do trabalho. Isso produzia um estímulo fantástico nas pessoas
e fazia com que trabalhássemos muito além da nossa capacidade.”

Na composição da equipe central da Secretaria Municipal de saúde, Sebastião


de Moraes procurou articular uma equipe plural, reunindo pessoas de esquerda
oriundas da Universidade (UNICAMP) e pessoas que desenvolviam um trabalho
junto aos movimentos sociais da Igreja, com um objetivo bem definido: implantar
uma rede pública local de serviços de saúde.
O projeto de mudança sanitária implementado por Sebastião de Moraes no
município de Campinas centrou-se na organização dessa rede, fundamentando as
ações de saúde da Secretaria nas concepções de medicina comunitária oriundas
do Departamento de Medicina Preventiva e Social da UNICAMP, que desenvolvia,
através do Laboratório de Educação Médica e Medicina Comunitária – LEMC62, um
trabalho de ensino e assistência médica junto à população de bairros periféricos de
Campinas e região. Em 1975-1976, esse Departamento passou por uma crise
institucional, que resultou na saída da Universidade de vários docentes, dentre eles
Sérgio Arouca, em função de perseguições políticas gestadas no SNI. A crise instalou
no Departamento uma cisão entre os docentes que não se vinculavam às práticas
comunitárias e assistenciais e os docentes comprometidos com a intervenção nos
serviços locais de saúde. Um grupo restrito de professores e alunos-monitores do
LEMC procurou resistir e passou a lutar pela continuidade das ações e projetos de
medicina social que desenvolviam, como relembra Lavras:

“Dentro da UNICAMP, no LEMC, existiam três frentes de trabalho: uma no Costa


e Silva, uma na Vila Rica e uma no Parque Brasília, três bairros da cidade em que

62
Criado no início dos anos 70, o Laboratório discutia criticamente o modelo de atenção médica vigente, efetivando, no processo de ensino, uma
prática de intervenção centrada no apoio ao desenvolvimento dos serviços de saúde de vários municípios da região. Desenvolvia um trabalho com
um conjunto de monitores, alunos da graduação da FCM da UNICAMP, na perspectiva da implantação de novos modelos de organização de
serviços de saúde municipais.
MEMÓRIAS
66

se desenvolviam projetos de medicina comunitária. Quando Francisco Amaral,


candidato do MDB, fazia sua campanha para a eleição de 1976, apoiamos sua
candidatura, com o compromisso de que fosse instalada uma unidade de saúde
num prédio, vago na época, construído pelo Projeto Cura. A unidade iria funcionar
baseada no trabalho de medicina comunitária que vínhamos desenvolvendo em
vários bairros de Campinas, naquela altura de forma clandestina, pois a UNICAMP
havia nos colocado para fora do LEMC. Com a vitória de Francisco Amaral e a
escolha de Sebastião de Moraes para o cargo de Secretário de Saúde,
apresentamos então a Sebastião nosso projeto para o Jardim Conceição. O
projeto foi aceito. Na semana seguinte, já estávamos trabalhando no gabinete
dele e iniciando as ações do projeto. Foi apresentado também ao Secretário, por
profissionais oriundos da UNICAMP, um outro projeto para a saúde, centrado
num modelo mais clássico de atendimento materno-infantil. Esse projeto também
foi aceito. Assim, no início da gestão, foram inaugurados, num mesmo dia, dois
postos de saúde: um, no Jardim Conceição, organizado de acordo com o modelo
de medicina comunitária; o outro, em Aparecidinha, que se estruturou segundo o
modelo materno-infantil de atendimento. Entretanto, na gestão da Secretaria
Municipal de Saúde, prevaleceu o projeto de medicina comunitária. Nós, além de
oferecermos à população um atendimento integral, fazíamos um trabalho de
alfabetização pelo método Paulo Freire, trabalhávamos com farmácia popular e
organizávamos a população contra a ditadura. Foi essa lógica dos projetos do
LEMC que se reproduziu no trabalho da Secretaria Municipal de Saúde.”

Assim, as práticas de intervenção e mobilização popular caracterizadora


dos projetos do LEMC puderam migrar para a Secretaria Municipal de Saúde de
Campinas, configurando o projeto institucional dessa Secretaria na gestão de
Sebastião Moraes. Nesse projeto, a participação da população na gestão dos
serviços de saúde por meio de uma prática pedagógica democrática e organizativa
dos movimentos sociais constitui-se no eixo da luta, em Campinas, pela
redemocratização do País. Garcia relata esse processo nos seguintes termos:

“A questão que vejo como da maior importância é que nós começamos aqui um
movimento sanitário em paralelo ao movimento em nível federal. Estávamos
isolados e sentindo a necessidade de implantar uma rede primária de saúde, já
que todo o sistema de saúde estava organizado na forma de uma rede de
ambulatórios do INPS, centralizados, e de hospitais conveniados e hospitais das
universidades, também centralizados. Identificamos que a população
praticamente não tinha assistência. Assumi a Diretora de Saúde da Secretaria
MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70:...
67

Municipal de Saúde de Campinas com um orçamento ridículo. O Sebastião buscou


apoio em dois órgãos importantes, que eram a SETEC63 e a SANASA64. Eles
financiaram os equipamentos para a instalação dos centros de saúde.”

O processo de implantação dos centros de saúde pautou-se pelos princípios


da regionalização e hierarquização do sistema, e foi caracterizado por intensa
mobilização das comunidades, num ritmo de trabalho também acelerado. Relata
Garcia:

“Um procedimento importante que sempre antecedia à implantação dos centros


de saúde era que o Secretário identificava, através dos líderes ou associações de
moradores dos bairros, os locais onde deveriam ser instalados os centros.
Tínhamos reuniões com a população local antes da implantação dos postos.
Considero as discussões, que ocorriam nessas reuniões, como muito mais
importantes que a própria presença dos postos de saúde, porque discutíamos, de
forma ampla, a questão da saúde. Mostrávamos que o posto de saúde poderia
beneficiar a população em termos de melhoria das suas condições de vida. O
processo de discussão era muito rico. Utilizávamos uma dramatização, da qual
todos participavam, que era baseada numa peça de teatro chamada A Receita65,
proibida nos anos 70. Por meio dessa dramatização, levantávamos toda a
problemática da saúde, a questão da alimentação, a questão do saneamento
básico, a questão do trabalho, a questão da moradia e do transporte. Tudo isso
era discutido com muita profundidade. A população tinha uma capacidade muito
grande de discutir e compreender. Para nós, a questão central era até onde o
centro de saúde poderia melhorar as condições de vida da população, sendo um
gerador de discussão. Os centros de saúde foram implantados como um espaço
gerador de discussão.”

Complementa Lavras:

“Quando já estávamos com oito unidades, fizemos várias reuniões com o


Sebastião tentando diminuir o ritmo de implantação dos postos para que o
processo não explodisse. Ele falou uma coisa que me marcou muito: “A gente
abre os postos e o que abrir ninguém vai fechar. Eu abro de qualquer jeito, mas
abro”. E fomos para mais de vinte e cinco postos.”

63
SETEC - Serviços Técnicos Gerais - autarquia da Prefeitura Municipal de Campinas.
64
SANASA - Sociedade de Abastecimento de Água e Saneamento - empresa de economia mista de Campinas.
65
Peça do teatrólogo Jorge Andrade, proibida na época pela censura.
MEMÓRIAS
68

Em termos da logística da implantação das unidades de saúde, relembra


Pessoto:

“Para otimizar o processo, implantamos a Comissão de Padronização de


Medicamentos. A padronização do material necessário para cada centro chegou
a um grau de aperfeiçoamento para a época muito bom, com um posto de saúde
servindo de modelo. Assim, quando tínhamos uma unidade a ser instalada, já
sabíamos o que comprar, porque o que havia em um posto era reproduzido em
outro. Como o material era padronizado, se um posto fosse mais amplo,
aumentávamos a quantidade de material. Isso facilitava o processo licitatório e
evitava também conflitos entre as unidades.”

Esse processo de implantação das unidades, com a participação das


comunidades locais, permitiu a realização do diagnóstico da saúde de cada bairro
do município, utilizado de forma a orientar a organização dos centros de saúde que
iam sendo construídos. Relembra Lavras:

“A chegada de Maria Nilde66 à Secretaria de Saúde de Campinas foi um reforço


muito importante para a equipe. Ela ajudou a montar o processo de diagnóstico
dos bairros. Íamos de casa em casa, fazendo a investigação epidemiológica que
sustentou a organização dos programas e dos projetos que os centros de saúde
iam desenvolver.”

A instalação das unidades de saúde da rede municipal foi perpassada por


inúmeras dificuldades, tanto no nível da relação da Secretaria com outros órgão da
Prefeitura e do Estado, quanto no nível operacional dos centros de saúde. Garcia,
em seu depoimento, relembra como se deu o enfrentamento dessas dificuldades:

“Na questão da implantação dos serviços, tivemos muitas dificuldades. Primeiro,


pelo nosso desconhecimento da máquina administrativa. Essa foi uma questão
interna muito complicada, pois a experiência que tínhamos da máquina
administrativa era muito pequena. Segundo, pelo ritmo de Sebastião, que

66
Maria Nilde Mascelani, educadora. Foi coordenadora do Serviço Vocacional da Secretaria de Educação do Estado de são Paulo (1962-1968).
MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70:...
69

estabeleceu como prioridade implantar com rapidez os postos de saúde. Ele


ficava na linha de frente, fazendo contatos, identificando as áreas possíveis para
implantação de postos de saúde e nós da Secretaria tentando dar o suporte
necessário, a logística necessária para poder implantar os centros. No primeiro
ano, não havia recursos; eles vinham de outras instituições. Vendo hoje, não
acredito que conseguimos iniciar a montagem da rede, em função das dificuldades
que tínhamos com a máquina na época.
Como éramos considerados dentro da Prefeitura muito à esquerda do próprio
MDB, tínhamos um problema muito grande com relação a recursos e verbas
orçamentárias. Nós utilizávamos as discussões com a população como forma de
pressão sobre o Prefeito e, com isso, o trabalho foi se desenvolvendo.
Na medida em que os postos estavam sendo implantados começamos a
identificar as dificuldades de operação da rede. A primeira dificuldade foi a questão
do abastecimento e do fornecimento de medicamentos aos postos, já que a
Secretaria não tinha recursos suficientes para garantir um abastecimento razoável
aos centros de saúde. Outra dificuldade foi a questão do atendimento de
retaguarda. Começamos a identificar onde os exames solicitados seriam feitos e
por quem; identificamos também a necessidade de integração com outros níveis
de especialidade, à medida que os pacientes precisavam de internação. Essa foi
uma grande dificuldade, que remeteu à necessidade de discussão com outros
níveis do sistema de saúde, o estadual e o federal. Acho que podemos identificar
dois momentos em Campinas. Houve um primeiro momento, o da instalação
dos centros de saúde, e um segundo momento, o da vivência, na prática, das
dificuldades de integração com outros níveis do governo. Havia áreas no município
onde funcionavam um centro de saúde do Estado e um centro de saúde municipal.
Estávamos duplicando serviços numa mesma região. Havia ainda a necessidade
de integração com o hospital universitário, porque o hospital funcionava como
nível terciário e quaternário de atuação. Discutir essa integração foi uma das
grandes dificuldades que enfrentamos; foi bastante difícil estabelecer uma
discussão sobre isso dentro do município.
Tivemos dois momentos de tensão entre a Secretaria Municipal de Saúde de
Campinas e o Estado. Quando começamos a fazer citologia oncótica do colo
uterino, o INAMPS fez um movimento contra a Prefeitura, acusando-nos de tirar a
clientela dele. Houve tensão também quando se constatou o impacto das
iniciativas municipais de atenção à criança na diminuição das internações
hospitalares, o que levou ao fechamento do maior hospital infantil da cidade. Na
área da citologia, fizemos um convênio com o setor de ginecologia da UNICAMP
para onde iam todas as lâminas coletadas. Conseguimos estruturar uma rede
com marcação de consultas, tanto nos serviços municipais como nos serviços da
UNICAMP. Esse processo evoluiu bem.”
MEMÓRIAS
70

Nos depoimentos das pessoas que participaram da municipalização da saúde


em Campinas, destaca-se um aspecto fundamental, que perpassou a ação do grupo
na superação dos obstáculos que enfrentaram na época: a preocupação com o
desenvolvimento de uma reflexão crítica nascida da prática e sustentando a prática.
Em outras palavras, na implantação da rede municipal de saúde, a discussão teórica,
voltada para a questão da hierarquização, da regionalização e da atenção integral,
foi alicerçada nas experiências vivenciadas na prática, geradora dos processos e
instrumentos de organização do sistema municipal. Pessoto, em seu depoimento,
chama a atenção para esse aspecto:

“Quero colocar a importância de Toninho [Antônio Garcia] como Diretor, porque,


como o Sebastião era uma pessoa extremamente carismática, ele sonhava e a
coisa acontecia. A figura do Toninho ficava meio apagada, mas se não existisse
ele na equipe, a Secretaria não seria o que é hoje, porque o Toninho sistematizava
as ações do Sebastião. Sebastião tinha no Toninho uma pessoa de uma relação
de credibilidade enorme. Junto com o processo de democracia interna instalado
na Secretaria, a figura sistematizadora do Toninho foi fundamental. Acho que
esse é o diferencial, desde a hora de eleger o alvo onde a unidade de saúde seria
instalada, discutir com a população e fazer toda a parte de recrutamento, seleção
e treinamento de pessoal na própria área de funcionamento do posto. Acho que
a democracia só funcionou porque as regras foram feitas por meio das nossas
reuniões semanais de representantes, nos postos. Os representantes participavam
das reuniões do nível central da Secretaria, discutindo as questões da saúde de
cada unidade. Nessas reuniões, a discussão era muito intensa entre as várias
correntes ideológicas e políticas existentes67, mas saíamos de lá com um certo
consenso sobre as práticas de saúde a desenvolver nas unidades. Sinto muito
orgulho de ter participado desse processo, de ver que fomos uma semente, às
vezes até de algumas loucuras, mas foram ações muito sérias.”

Lavras complementa o relato, lembrando:

“Há vinte e tantos anos, já tínhamos uma série de posturas, de instrumentos de


planejamento, uma cultura de planejamento que ficou. O diagnóstico era feito
com investigação epidemiológica; o Plano de Saúde da unidade era feito com a
participação da população; os programas escritos, os PAMI  Programa de Atenção

67
A Secretaria de Saúde de Campinas tinha essa característica democrática de gestão interna e de espaço político, agregando o pessoal do MDB,
PC, do PC do B, do MR-8, da AP.
MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70:...
71

Médica Integral   eram elaborados por faixa etária e grupos de risco.


Trabalhávamos com as Comissões Locais de Saúde, implantadas em cada
unidade, tudo isso muito antes do SUS. Implantamos também a nossa
“informatização manual”, a ficha de furinho, picotada na lateral, para organizar as
informações. Esse foi o tipo de planejamento utilizado para montar as unidades.
Quer dizer, tínhamos uma série de instrumentos de gestão, naquela época, que
se consolidaram na experiência da Secretaria.”

Outro aspecto destacado pelos depoentes diz respeito à natureza democrática


da gestão de Sebastião de Moraes, que transformou a Secretaria Municipal de
Saúde de Campinas num espaço de luta, agregando uma frente suprapartidária.
Lavras relembra esse aspecto em seu depoimento:

“A Secretaria tinha essa dinâmica de aglutinação de diferentes correntes


ideológicas no nível central. Na época, tínhamos o pessoal do PCB, do PC do B,
do MR-8, da AP na Secretaria. Sentávamos todos, nas sextas-feiras, e as
discussões eram ferrenhas. De lá apoiávamos todos os movimentos políticos,
por exemplo, as greves do ABC.

O que significou a Secretaria enquanto espaço político? Tudo que acontecia na


cidade, acontecia dentro da Secretaria de Saúde. Depois, no momento em que a
Prefeitura foi fechando, como aconteceu também em Niterói, na gestão do
Tomassini com o Moreira Franco, lá também por interesses políticos, tivemos que
migrar para outros espaços. Havia um padre progressista que ofereceu a igreja e
fizemos muitas reuniões lá. Na época, nessa linha de resistência, já estávamos
mobilizando setores do Estado, do País e associações de apoio.”

Garcia complementa o relato, destacando:

“A partir de 79, quando houve a primeira greve de reivindicação salarial, já tínhamos


nossos representantes na comissão de negociação. Na greve seguinte, a de 80,
já dirigíamos o movimento da Prefeitura como um todo, a partir da Saúde.”

Em 1981, ano que antecede o final da gestão municipal, foram feitas várias
tentativas de afastamento de Sebastião de Moraes da Secretaria de Saúde. Isso foi
motivado, na visão dos entrevistados, pelo conflito de interesses que se instalou em
Campinas em função da eleição que se avizinhava. A forte resistência, tanto dos
MEMÓRIAS
72

profissionais da Secretaria Municipal de Saúde como dos movimentos sociais da


cidade, não foi suficiente para impedir que o afastamento de Sebastião Moraes se
consolidasse meses antes do término do governo. O relato de Francisco Monteiro
refere-se a esse momento:

“Com a saída de Sebastião [da Secretaria], ficamos numa resistência que os


novos dirigentes municipais não conseguiam segurar, mesmo tentando acabar
com as reuniões semanais nos centros de saúde. Se não dava para fazer a
reunião nele, fazíamos em outro lugar. Virou resistência. Os que melhor tentaram
negociar tiveram que conviver conosco, porque era muito difícil agüentar Carminha
[Carmen Lavras] e eu. Perturbávamos muito, movimentando a comunidade. Eles
tiveram que aceitar muita coisa e fazer acordo conosco, para poder funcionar.
Com a saída do Sebastião, não houve tanto, em Campinas, uma solução de
continuidade, porque tínhamos um movimento organizado dentro da saúde que
extrapolava a saúde, extrapolava não só a Secretaria, mas extrapolava para a
cidade com um todo.”

Quando a gestão de Sebastião de Moraes na Secretaria Municipal de saúde


foi encerrada, a rede municipal de serviços de saúde de Campinas contava com
mais de vinte e cinco unidades básicas distribuídas pelo município, com a maioria
delas instaladas em bairros periféricos da cidade.
MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70:...
73

2.2. A experiência de Londrina

“Na minha gestão na Secretaria, a participação da


Universidade foi intensa. Sem o envolvimento direto
dos professores da Enfermagem, da Medicina, e dos
estudantes, dos residentes, dos habilitantes, não
teríamos montado a rede municipal. Foi um trabalho
conjunto, um projeto construído coletivamente.”

(Marcio Almeida)

Marcio José de Almeida


MEMÓRIAS
74

A organização de serviços de saúde na perspectiva da medicina comunitária,


que já vinha sendo implantada no município de Londrina68, foi ampliada na gestão
de Márcio José de Almeida na Secretaria Municipal de Saúde (1977-1980), integrando
a equipe de governo do Prefeito Antônio Belinatti, eleito em 1976 pelo MDB.
Concluídos os créditos do curso de Mestrado em Medicina Social no Instituto
de Medicina Social da UERJ, Márcio Almeida retorna a Londrina em 1977 e assume
a Secretaria Municipal de Saúde, com um projeto centrado prioritariamente na
ampliação da rede de atenção primária à saúde existente no município. Sobre os
determinantes de sua escolha para o cargo de Secretário, relata Almeida:

“O primeiro determinante foi a participação do Grupo Médico69 liderado pelo


Nelsão70, pelo Darli71 e pelo ex-Prefeito da Cidade, todos vinculados ao MDB, na
campanha eleitoral em 1976, na disputa entre MDB e Arena. Eles conseguiram
inserir na plataforma do Candidato a Prefeito Antônio Belenetti o compromisso
de instalar postos de saúde nos bairros urbanos da cidade e na zona rural.
Assim, com a vitória do MDB, havia uma plataforma que precisava ser executada.
O segundo, foi o fato de esse grupo ter tido prestígio para apresentar nomes para
formar o secretariado do Prefeito que ganhou a eleição de 1976, e indicaram
meu nome. O terceiro determinante é que não tinha gente interessada no cargo,
naquela época. Eu fui o último nome a ser escolhido. A última Secretaria a ser
preenchida foi a Saúde.”

A gestão de Márcio Almeida na Secretaria de Saúde de Londrina buscou


consolidar no município um modelo de serviços de saúde centrado nos princípios
da medicina comunitária, colocando em prática a análise teórica do setor saúde
que vinha sendo construída nas Universidades, bem como as propostas de mudança
da realidade sanitária no nível local. É esse projeto que Almeida procura desenvolver
na Secretaria, com a participação da UEL. Relembra Almeida:

68
A UEL, através do Departamento de Saúde Comunitária e do Hospital Universitário, vinha desenvolvendo, desde o início da década de 70, ações
de saúde no município de Londrina. Um convênio estabelecido entre a Universidade e a Prefeitura, em que recursos municipais da saúde eram
repassados à UEL, foi possível assegurar a assistência à população, através do Hospital Universitário e das três unidades básicas de saúde
implantadas no município: duas na área urbana (Vila da Fraternidade e Jardim do Sol) e uma na zona rural (Paiquerê). Conforme estabelecido
no convênio, a UEL, além de administrar o Pronto-Socorro Municipal agregado ao Hospital Universitário, assumiu também a administração das
unidades básicas de saúde, que funcionavam como campo de estágio para os alunos da universidade. O modelo de atenção adotado pela UEL na
gestão das UBS foi o da atenção à saúde familiar, com ênfase no atendimento materno-infantil, por meio do Programa Comunitário de Atenção
Familiar (PROCAF), desenvolvido pela Universidade com o apoio da OPAS e da Fundação Kellogg. Ver. Almeida, MJ. A organização de serviços
de saúde a nível local: registros de uma experiência em processo. [Dissertação de Mestrado]. RJ: IMS/UERJ, 1979, cap. 5.
69
Esse grupo era vinculado ao Departamento de Saúde Comunitária da Universidade Estadual de Londrina - UEL.
70
Nelson Rodrigues dos Santos
71
Darli Antônio Soares
MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70:...
75

“Minha formação teórica no campo da saúde comunitária iniciou-se com o Nelson


e o Darli, no Departamento de Saúde Comunitária, que faziam reuniões
bibliográficas semanais com a participação dos alunos. Eu participava das
discussões sobre as concepções da medicina comunitária no Departamento,
que era o espaço de formação política que os docentes da UEL tinham na época.
Discutíamos questões teóricas ligadas à saúde comunitária e à atenção primária
à saúde, conteúdos que ficavam fora da grade curricular. Mas o curso, desde o
início, tinha preocupações sociais, tinha um projeto inovador e atuava nos serviços
de saúde de Londrina. Não foi à toa que quem estruturou o Departamento de
Parasitologia tenha sido o Samuel Pessoa, junto com outros convidados de São
Paulo. O pessoal da Cirurgia, que tinha sido perseguido dentro da USP, também
foi pra lá; o Nilton Freire Maia, pesquisador famoso, que também foi perseguido,
foi pra lá; quer dizer, havia uma administração na Universidade que começava,
que era liberal, aberta, e isso propiciava a formação integral do médico. Nós,
enquanto estudantes, participávamos também das reuniões de Preventiva que
ocorriam em São Paulo. O Nelsão, o Darli e o Guilherme levavam os estudantes
interessados para os eventos que aconteciam lá. Na UEL, os fóruns de discussão
do movimento estudantil na área da saúde aconteciam, credenciando a cidade
para sediar uma das Semanas de Estudos sobre Saúde Comunitária (SESAC)
realizadas em 1977 e 1978. Ao me formar, em 1973, decidi buscar uma
especialização nesse campo.

Em 1974, fui fazer residência em Medicina Integral no Hospital de Clínicas


da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e emendei com o Mestrado no Instituto
de Medicina Social. Fui da segunda turma do mestrado e aluno (e quase colega,
pois eles eram da primeira turma) do Hésio Cordeiro, do Reinaldo Guimarães, do
Noronha, da Nina Pereira Nunes, da Madel Luz e do Carlos Gentile de Melo, dentre
outros. Nessa época, passei a fazer parte da base política da saúde do PCB no Rio
e, quando voltei para Londrina em 1977, continuei a atuar nessa linha.”
Márcio Almeida encontra a Secretaria Municipal de Saúde e de Promoção
Social em uma situação precária, sem recursos financeiros e com pouquíssimos
recursos humanos específicos do setor saúde. Essa situação só foi revertida em
1978, conforme relata:

“Quando eu assumi o cargo de Secretário em 1977, a Secretaria não tinha nenhum


médico, não tinha nenhum posto de saúde atuando regularmente. A Secretaria
funcionava na época para tomar conta de parques infantis, pois existiam
consultórios médicos instalados só em uma ou duas creches comunitárias para
atender as crianças e o Pronto-Socorro Municipal era conveniado com o Hospital
Universitário, para o qual a Prefeitura repassava os recursos da saúde.
MEMÓRIAS
76

Eu era na época o único médico da Secretaria e ia atender em creches. O então


Prefeito ficou um pouco como coadjuvante naquele processo, até que em 1977/
78 passou a ser protagonista, e dar condições para a Secretaria funcionar. Assim,
em Londrina, o trabalho só passou a ter um desenvolvimento maior a partir de
1978, quando eu consegui a liberação de recursos para a Secretaria. Antes disso,
praticamente todo o dinheiro da Prefeitura que era aplicado em Saúde era
repassado para a Universidade, em função do convênio estabelecido entre a
Prefeitura e a UEL para manutenção do Pronto-Socorro Municipal, que havia sido
criado em 1969/1970. Então, não sobrava nada para a Secretaria, a não ser
poucos recursos para a manutenção dos parques Infantis, com recreacionistas, e
dois ou três Assistentes Sociais. Quando o novo Prefeito assumiu em 1977, o
Reitor da UEL na época exigiu modificar a modalidade de financiamento definida
no convênio. Queria mudar o repasse global de recursos para a forma de
pagamento por unidades de serviço [modalidade de pagamento que o INAMPS
utilizava para a compra de serviços de saúde na rede privada]. Então, todos os
argumentos do Gentile e os estudos feitos no Mestrado me valeram para embasar
o Prefeito na recusa dessa proposta. O resultado disso foi o rompimento do
convênio, que era o que o Reitor queria mesmo, pois na época eles eram
adversários político-partidários, e o Reitor queria que o ônus ficasse para a
Prefeitura. Eu fiz uma análise do problema e mostrei que o ônus não ia caber à
Prefeitura, porque quem estava com o serviço já era a Universidade. Além disso,
o compromisso da campanha foi com a abertura de unidades básicas de saúde.
Minha posposta, quando o Prefeito rompeu o convênio, era aplicar esses recursos
na montagem de oito postos de saúde.”

Na organização da rede de atenção básica em Londrina, a participação da


UEL foi decisiva, como aponta Almeida em seu depoimento:

“Desde 1970/71, o Departamento de Saúde Comunitária da UEL já estava


estruturando unidades básicas de saúde no município, como campo de estágio
para os alunos da graduação. Eu, como estudante, participei da montagem dos
postos de saúde nos bairros, na zona rural, junto com o Nelsão, o Darli. O modelo
adotado era o da atenção primária, com uma equipe de saúde desenvolvendo
ações de promoção, prevenção e recuperação da saúde.
Na minha gestão na Secretaria, a participação da Universidade foi intensa. Sem
o envolvimento direto dos professores da Enfermagem, da Medicina, e dos
estudantes, dos médicos residentes, das habilitantes de enfermagem, não
teríamos montado a rede municipal. Foi um trabalho conjunto, um projeto
construído coletivamente. Nós fazíamos reuniões regulares na Secretaria nos
moldes das reuniões bibliográficas semanais, do meu tempo de estudante. Nós
MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70:...
77

juntamos as duas equipes: a dos professores da Universidade e nós que


estávamos começando na Prefeitura. Toda semana nós fazíamos reuniões para
definir as estratégicas da formação dos auxiliares e planejar os cursos de formação.
Os primeiros profissionais contratados eram ex-médicos residentes e habilitantes
de enfermagem do Departamento de Saúde Comunitária da UEL e os recém-
formados na linha da medicina integral. Sem a participação da Universidade,
não teria jeito de implantar um projeto inovador, seria algo tradicional, repetindo
o INAMPS.”

A participação social na montagem das unidades de saúde em Londrina foi


marcada por dificuldades variadas. Relembra Almeida:

“A participação social era muito precária. Lembro que tinha havido a Operação
Bandeirantes72, ou Barriga Verde, não me lembro bem, vivíamos então um clima
de medo e de controle político-ideológico. O próprio Nelsão, na época diretor do
Centro de Ciências da Saúde da Universidade, havia sido preso numa dessas
operações. Nós, da equipe da Secretaria, tínhamos apenas dez pessoas para
fazer as reuniões com as associações de moradores, para discutir a montagem
dos postos. Na época, não havia ambiente político para montar conselhos ou
comissões locais de saúde. Nosso trabalho baseava-se nas relações
interpessoais. Eu não me lembro de nenhuma unidade, em que havia a proposta
de montar Conselho de Saúde, Comissão. No máximo, houve a organização de
grupos por agravos: grupo de hipertensos, grupo de gestantes. Esse foi o máximo
de ação coletiva que conseguimos organizar, apesar de existirem naquela
pequena equipe inicial várias pessoas politizadas, ex-presos políticos e militantes
de movimentos clandestinos.”

A montagem das equipes de saúde das unidades básicas em Londrina revelou-


se como uma oportunidade para estimular a participação das comunidades. A esse
respeito, relembra Almeida:

“Nas unidades básicas contávamos com o trabalho de sanitaristas e alunos da


UEL, que atuavam como estagiários nos postos de saúde. Trabalhávamos também
nessas unidades estimulando a participação da comunidade na composição das
equipes de auxiliares de enfermagem, os auxiliares de saúde. Adotamos como

72
A Operação Bandeirantes – OBAN – foi um centro de informações organizado pelo Exército brasileiro, em 1969, com a função de coordenar
e integrar os órgãos de repressão da ditadura militar. Instalado na rua Tomás Carvalhal, no 1030, em São Paulo capital. Caracterizado como uma
formação paramilitar de ação repressiva direta e violenta, foi financiado pelos diversos grupos privados que deram apoio á ditadura.
MEMÓRIAS
78

critério para a contratação dos auxiliares de saúde das equipes dos postos que
esses auxiliares residissem nos bairros nos quais iam sendo instaladas as
unidades.”

No cenário da organização dos serviços municipais de saúde em Londrina, a


articulação da Secretaria de Saúde com a rede de pessoas e instituições
comprometidas com as lutas do movimento municipalista que vinha se formando
em São Paulo e no Rio de Janeiro, contribuiu para o fortalecimento, na rede municipal
de Londrina, dos princípios de regionalização e integralidade das ações de saúde
adotados na organização dos serviços de saúde do município. Essa aproximação,
articulada por Sérgio Arouca, entre municípios de Campinas, Londrina e Niterói
possibilitou o desenvolvimento de ações conjuntas de natureza técnica e política.
Sobre essa articulação, relembra Almeida:

“Nós três [Sebastião Moraes, Márcio Almeida e Hugo Tomassini] estávamos


fazendo coisas parecidas em nossos municípios. Só faltava nos conhecermos e
trocarmos experiências. Quando o Tomassini, o Sebastião e eu sentamos para
conversar, apresentados pelo Nelsão e pelo Arouca, nós arquitetamos e
planejamos fazer uma série de encontros municipais de saúde, para trocar
experiências e discutir a organização de serviços locais. O Sebastião era o mais
voluntarioso de todos, animadíssimo. Então, o primeiro encontro foi sediado em
Campinas, em 197873; o segundo, em Niterói, em 1979; e em 1980, nós faríamos
o encontro em Londrina.”

O trabalho que vinha sendo desenvolvido na Secretaria de Saúde de Londrina


foi interrompido em 1980, quando Márcio Almeida renuncia ao cargo de Secretário.
Os motivos da ruptura com o então Prefeito foi relatada por Almeida nos seguintes
termos:

“Em fevereiro de 1980 eu renunciei e entreguei o cargo ao Prefeito. Entreguei


porque ele, que tinha sido eleito pelo MDB, abandonou a oposição e aderiu ao
partido da ditadura, o PDS. E exigiu que os seus secretários fizessem o mesmo.
Eu não concordei, pedi as contas e me retirei quando completava o terceiro ano
de trabalho. Mas os membros da equipe técnica continuaram e desenvolvemos

73
O primeiro desses eventos planejados, denominado I Encontro Municipal de Saúde, realizou-se em Campinas no período de 17 a 20 de maio
de 1978. O segundo foi realizado em Niterói, no período de 24 a 27 de março de 1979.
MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70:...
79

estratégias para dar andamento ao projeto mesmo nas novas condições, mais
adversas. Eu continuei a vida como profissional do movimento da reforma
sanitária, ajudando a organizar os núcleos do CEBES, como professor em cursos
universitários, como pesquisador e assumi a presidência do Diretório Municipal
do PMDB.”

Londrina encerrou a década de 70 com quinze unidades básicas de saúde


distribuídas pelos bairros e distritos rurais. A política municipal de saúde orientada
pelos princípios da Atenção Primária à Saúde e pelas diretrizes do Movimento da
Reforma Sanitária permaneceram inalteradas, ainda que com variações, nas gestões
dos prefeitos que assumiram o cargo nas décadas de 1980 e 1990. Hoje o município
é uma das referências nacionais em termos de Sistema Local de Saúde.
MEMÓRIAS
80

2.3. A experiência de Niterói

“Para o Rio, foi importante a presença do CEBES, a


presença dos movimentos populares pela saúde;
foi importante a presença dos outros movimentos
políticos, a presença da AP, das comunidades de
base, as iniciativas da universidade, de alguns oásis
dentro da universidade..”
(Tomassini)

Hugo Coelho Barbosa Tomassini


MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70:...
81

A transformação da realidade sanitária em Niterói teve início com a


gestão de Hugo Tomassini na Secretaria Municipal de Saúde (1977 – 1980),
integrando a equipe do governo que unira as forças da esquerda nas eleições
de 1976 para o poder executivo municipal. Com a vitória política da oposição ao
regime militar, foram convidados a ocupar a Secretaria Municipal de Saúde e
Promoção Social de Niterói professores envolvidos no Projeto Saúde Comunitária,
que vinha sendo desenvolvido pelo Departamento de Medicina Preventiva da
Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Federal Fluminense. Assim
relata Tomassini:

“Ao assumir a Prefeitura de Niterói, Moreira Franco decidiu que as áreas sociais
do seu governo, principalmente saúde e educação, fossem ocupadas por gente
da universidade [UFF]. O Reitor Manuel Barreto Neto, conhecendo nosso trabalho
na Vila Ipiranga, levou meu nome ao Prefeito eleito. Assim começa uma história
em Niterói em que a universidade passa a ter um papel extremamente importante.
Embora a universidade fosse politicamente antagônica à oposição, existiam nela
diferentes modos de pensar. Nós tínhamos um pensamento de esquerda e já
trabalhávamos com a comunidade local. Isso vai dar origem ao nosso trabalho
na Secretaria.”

Segundo Tomassini, a Secretaria de Saúde de Niterói era conhecida


naquela época como “secretaria da morte”, devido ao fato de sua estrutura ser
constituída por um serviço funerário e um centro social urbano, onde funcionava
um posto de saúde, que estava cedido, em comodato, à Secretaria Estadual
de Saúde.

Coube a Tomassini a reestruturação da Secretaria, implantando uma rede de


postos de saúde abrangendo unidades instaladas nos diversos bairros periféricos
da cidade desprovidos de serviços de saúde. Relembra Gilson O’Dwyer:

“Tomassini tira a Secretaria Municipal de Saúde de Niterói do campo de


administradora de cemitérios e cria, efetivamente, um sistema de saúde local
que, depois, vai se fortalecendo com a VIII Conferência, com o SUDS e com o
SUS.”

As concepções que embasaram a construção desse sistema de saúde em


Niterói tiveram sua origem na experiência acumulada pelo Secretário no
MEMÓRIAS
82

Departamento de Medicina Preventiva74 da Faculdade de Ciências Médicas da UFF.


Nesse Departamento se concentrava na época a discussão sobre a questão da
saúde pública. Assim relata Tomassini:

“A minha atividade como professor da UFF baseou-se, fundamentalmente, no


trabalho desenvolvido junto a uma área de população favelada chamada Vila
Ipiranga, financiado pelo PIDAS75 e apoiado pela Fundação Kellogg. Era uma
iniciativa do Departamento de Saúde da Comunidade, realizada em conjunto
com a associação de moradores da Vila Ipiranga e funcionava numa unidade da
Fundação Leão XIII, que pertencia ao Governo do Estado. Eu levava os alunos
para trabalhar nessa unidade de saúde da Vila. Trabalhávamos com uma equipe
de assistentes sociais, psicólogos, enfermeiros, diferentes profissionais. Os alunos
tiveram uma recepção muito boa a esse trabalho, gostavam muito disso. Gilson
[O’Dwyer] foi um dos alunos nessa época, trabalhador na Vila Ipiranga. Essa
experiência eu pude levar para a Secretaria. Naquele trabalho atuavam pessoas
de várias correntes ideológicas. Tinha o pessoal da AP, o pessoal do PC, o pessoal
do PC do B. Eu conseguia juntar diversas correntes ali. O grupo era extremamente
diversificado e os alunos sentiam essa diversificação, essa pluralidade muito
grande.”

A gestão de Hugo Tomassini na Secretaria Municipal de Saúde de Niterói


aglutinou as forças representadas por instituições e entidades comunitárias
comprometidas com a municipalização da saúde e a redemocratização do País,
favorecendo a introdução de novos atores sociais na gestão da saúde no município:
a universidade e os movimentos populares. Naquele momento, implantou-se na
Secretaria um desenho organizacional novo e um novo projeto para a saúde,
resultantes do desenvolvimento de processos de trabalho inovadores, a fim de
assegurar a participação social na qualificação da atenção à saúde no município. A
montagem da nova estrutura da Secretaria foi relatada por Tomassini nos seguintes
termos:

“Quando comecei a montar a Secretaria, recorri à UERJ e à UFF para compor a


equipe de trabalho. Convoquei todos os técnicos da Secretaria que existiam

74
Na época, esse departamento era denominado Departamento de Saúde da Comunidade. Criado em 1968, adotou como estratégia a articulação
com a rede de serviços de saúde, inicialmente no município de São Gonçalo. Na década de 70, desenvolveu um trabalho interinstitucional com as
populações periféricas de Niterói voltado para a assistência à saúde e apoio ao movimento organizado na comunidade de Vila Ipiranga.
75
Programa de Integração Docente Assistencial
MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70:...
83

(eram poucos), mais a secretária e os motoristas, os médicos (eram poucos


também, os que existiam eram do Estado) e começamos a percorrer Niterói.
Trabalhávamos com as associações dos moradores e as lideranças locais
discutindo as necessidades dos bairros. O intuito era fazer um diagnóstico da
saúde. Então, levávamos as idéias que tínhamos e eles nos ajudavam, por sua
vez, a mostrar as necessidades de Niterói. Com isso pudemos fazer um diagnóstico
da saúde e foi possível elaborar o plano de trabalho da Secretaria. Foi o primeiro
Plano Municipal de Saúde que a cidade teve. A preocupação era começar logo a
implantar uma rede de saúde local para dar assistência à população.”

O desenho organizacional da nova estrutura da Secretaria compreendeu, no


nível central, a conformação de dois setores: o de planejamento e o de coordenação
das unidades básicas de saúde. Em relação à organização do nível central da SMS
e dos processos de trabalho implantados, relembra Hugo Tomassini:

“O nível central da secretaria era bastante enxuto, basicamente formado pelo


pessoal da UFF e da UERJ. Havia a área de planejamento, que estava a cargo de
Mário Roberto Dal Poz76 e o setor responsável pelas unidades de saúde, da ação
executiva dessas unidades, que estava sob a responsabilidade da Dra. Maria do
Espírito Santo Tavares de Souza77. Trabalhávamos coletivamente, realizando
reuniões periódicas com os técnicos do nível central, e destes técnicos com cada
uma das equipes das unidades, buscando encaminhar os conflitos que apareciam.
Os profissionais da rede vinham fundamentalmente da UFF: médicos,
enfermeiras, nutricionistas, assistentes sociais, porque a Secretaria não era só
uma secretaria de saúde; era uma Secretaria de Saúde e Promoção Social. Na
parte da promoção social, tive a felicidade de caminhar com Celina Franco, que
elaborou um programa de creche maravilhoso, tendo uma antropóloga da UFF
para auxiliar no desenvolvimento do programa.”

A concretização do Diagnóstico de Saúde de Niterói (1977), realizado em


conjunto com as associações de moradores dos bairros, subsidiou a elaboração do
primeiro planejamento da gestão municipal da saúde no Município. Denominado
Plano de Ações de Saúde 1977-1980, e referenciado nos princípios da Medicina

76
Docente da FCM da UERJ
77
Docente da FCM da UFF.
MEMÓRIAS
84

Comunitária e nas propostas emanadas da VI Conferência Nacional de Saúde (1976),


o plano tinha como eixo a criação de uma rede de unidades voltadas para a atenção
primária à saúde. Relembra Tomassini:

“O Plano se caracterizava, fundamentalmente, pela implantação de uma rede


básica de saúde em toda a cidade, especialmente na periferia do município,
constituída por dezesseis unidades de saúde. Na elaboração do Plano, os
princípios que adotamos foram a hierarquização e a regionalização, de acordo
com as discussões da época acerca da questão da democratização do setor
saúde. O modelo de atenção à saúde foi o da medicina integral. Naquele momento,
discutíamos muito a Lei 6.229, por que ela chegava ao absurdo de querer entregar
ao município a questão da emergência, sem nenhuma noção do que fosse
emergência. Nossa rede foi formada por unidades de atenção primária à saúde.
Montamos dezesseis unidades, paulatinamente, cobrindo todo o município de
Niterói. E elaboramos um plano para o financiamento da construção dessas
unidades, através do FAS78. Brigamos muito com o FAS, porque era a época dos
hospitais e a prioridade do Fundo não era o setor público. Denunciamos isso, o
que nos trouxe muitas dificuldades na implantação das unidades. Em várias
unidades tivemos que entrar com recursos próprios.”

Em relação ao processo de constituição das equipes multiprofissionais de


saúde das unidades básicas implantadas, incorporando nesse processo a
participação da comunidade, relembra Tomassini em seu depoimento:

“Os auxiliares de saúde eram fundamentalmente pessoal da própria comunidade,


de cada área onde implantávamos uma unidade de saúde. Para formarmos
aquilo que considerávamos como pessoal básico do trabalho, que eram os
auxiliares, os agentes de saúde, buscamos uma articulação com as associações
dos moradores e lideranças locais dos diversos bairros da cidade. A idéia era
que, através da associação, pudéssemos conhecer pessoas que pudessem formar
a equipe básica de saúde das unidades, constituindo o grupo de auxiliares de
saúde. A equipe de técnicos da Secretaria ia às reuniões articuladas pela
associação de moradores para expor nossas propostas. Daí nasciam os cursos
de preparação das pessoas do bairro para atuarem como agentes de saúde.
Esses cursos eram conduzidos por pessoal nosso [da equipe central], com
enfermeira da Secretaria. Mas sempre colocávamos também um médico para

78
Fundo de Assistência ao Desenvolvimento Social
MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70:...
85

ajudar. Eu levava a lista dos melhores classificados no curso para serem nomeados
pelo Prefeito, que não recusava nenhum nome na época.
Para nós o aspecto mais importante era que os auxiliares de saúde conhecessem
a comunidade em que viviam e trabalhavam. Era mais importante a presença
desse pessoal nas unidades do que propriamente o pessoal de nível superior,
que era geralmente importado.
Não havia médico clínico geral nas unidades de saúde, porque a universidade
não estava formando esse profissional. Trabalhávamos com três profissionais de
nível superior: gineco-obstetra, pediatra e clínico. Tínhamos também enfermeira
e pessoal auxiliar, a quem delegávamos muitas funções.”

Gilson O’Dwyer complementa esse relato, lembrando que a organização da


rede local de saúde, num trabalho conjunto com a comunidade, se constituiu como
um instrumento de dinamização dos movimentos sociais no município:

“A discussão com a comunidade foi algo fundamental. Tanto se fazia no próprio


posto de saúde, como na associação de moradores ou numa igreja. Também se
fazia nas reuniões com representantes de cada posto de saúde. Nessas reuniões
semanais, havia sempre um representante de nível superior e um de nível médio,
dentro daquela visão do Arouca de ocupar espaço na saúde para fazer a oposição
à ditadura de forma democrática.”

A experiência da implantação de serviços locais de saúde em Niterói gerou


instrumentos de gestão, como relata Tomassini:

“À medida que os serviços iam sendo instalados, tínhamos de ter um controle de


como os serviços eram feitos. Precisávamos ter uma medição desses serviços:
quantas consultas de enfermagem, quantas consultas médicas, quantas consultas
em cada especialidade. A necessidade de colher esse dados, nos levou a montar
um sistema de relatórios. Esses relatórios eram elaborados por cada unidade
para que fosse feito, no nível central da Secretaria, um condensado. Isso serviu
até para uma divulgação do que se fazia na Secretaria. A questão do controle dos
profissionais de saúde no centro de saúde, por exemplo, era claro para nós que,
à medida que as comunidades locais participavam da formação da unidade, o
controle estava resolvido. Não era preocupação nossa, no nível central, controlar
os profissionais no nível do centro de saúde. Tínhamos a certeza de que o serviço
estava sendo bem prestado dentro daquela estrutura e das dificuldades que
tinham.”
MEMÓRIAS
86

Embora tenha havido momentos de oscilação na relação entre a Universidade


e os serviços de saúde em Niterói, um fator significativo na construção dos serviços
locais de saúde no município foi a articulação da Secretaria Municipal de Saúde
com setores da UFF. Destaca Tomassini em seu depoimento:

“A UFF era na época uma universidade conservadora, que mantinha uma aliança
muito acentuada com o Governo federal, encarnando o processo da ditadura
militar. Mas ela tinha também focos extremamente interessantes de resistência,
a exemplo das faculdades de Economia, História e Educação. O nosso
departamento, o Departamento de Medicina Preventiva, já discutia o perfil do
profissional que estávamos formando e para que realidade o estávamos formando.
Essa discussão, que durou dez a doze anos, fundou as bases para a mudança
de currículo de Medicina na UFF.

Entendo que a UFF lucrou muito nesse sentido, porque o Departamento de


Medicina Preventiva, que se chamava Saúde da Comunidade, depois virou
Instituto de Saúde da Comunidade, teve uma projeção muito maior dentro da
UFF, muito na base do que foi implantado na Secretaria de Saúde de Niterói. O
que vejo de positivo, pessoalmente, foi que consegui formar uma escola de gente.
O que caracteriza, hoje, a UFF? Ela é fundamentalmente, talvez, das escolas
médicas do Rio de Janeiro, aquela em que a parte prática é muito maior, o
trabalho de campo é seu principal eixo e não a questão teórica.”

No final dos anos 70, houve um retrocesso na Secretaria Municipal de Saúde


de Niterói: as propostas que vinham sendo desenvolvidas foram inviabilizadas em
1979, quando o então Prefeito Moreira Franco aderiu ao PDS e demitiu os secretários
municipais ligados às posições progressistas, dentre eles Tomassini, que relata:

“Voltei para a universidade e comecei a trabalhar na reformulação do currículo,


que leva aproximadamente 15 anos para ser aceita. Quando o Gilson [O’Dwyer]
assume a Secretaria de Saúde, o relacionamento entre a Universidade e a
Secretaria fica mais fácil. Houve a possibilidade de levarmos os alunos para
trabalhar nas unidades municipais de saúde desde seu primeiro ano de formação,
na visão de que o ensino de medicina deve começar pela área da saúde e não
pela doença. Hoje, o currículo de medicina da UFF foi um dos grandes fatores
que levaram a Universidade a ser premiada com o PROMED. E nosso grupo,
egresso da Secretaria, vai depois para o Projeto Niterói.”
MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70:...
87

A influência do trabalho desenvolvido na SMS de Niterói no currículo de


medicina da UFF e no Projeto Niterói a que se refere Tomassini é destacada por
O’Dwyer em seu depoimento:

“O Projeto Niterói surge dentro de um acordo entre a Secretaria Municipal de Saúde,


a Universidade, o INAMPS e a Secretaria de Estado de Saúde. Ele se institucionaliza
em dezembro de 1982. A proposta dele começa na gestão de Tomassini, com a
proposta de avançar na articulação do trabalho isolado de cada uma dessas
instituições. Por que a Universidade? Não era só pela questão de ser aparelho
formador, pois a UFF tem um hospital universitário fortíssimo na cidade, que é o
Hospital Antônio Pedro. A própria reforma curricular começa por iniciativa de um
grupo de trabalho do Projeto Niterói e alcança seu sucesso quando o representante
desse grupo de trabalho se torna diretor da Faculdade de Medicina da UFF, e eu,
Secretário de Saúde de Niterói. Esses atores começam a crescer nas suas instituições,
formando quadros. Então, o Projeto Niterói começa assim, depois passa pela
institucionalização, com a questão das AIS. O Projeto começa a ser pensado na
gestão do Tomassini, depois o INAMPS passa a ser um ator importante, até porque
teve o poder do repasse financeiro e, por isso, fazia o secretário executivo do Projeto
num primeiro momento, abrindo depois isso. Termina exatamente em 1989, após
a Lei Orgânica da Saúde. Não tinha mais por que existir. Surgiu então o Conselho
Municipal de Saúde. Nesse caso, esse segundo Projeto Niterói volta para a Secretaria
comigo Secretário, com a vitória de outro candidato de esquerda. Quer dizer, houve
um momento Tomassini com Moreira, na época como Prefeito de esquerda; depois
a Prefeitura vai para a mão do PDS, depois vai para a mão do PDT, com o candidato
Jorge Roberto, e o grupo do Projeto Niterói volta para a Secretaria de Saúde, comigo
secretário, quando começo na rede a experiência do médico de família, mas tendo
como base o sistema.”

O’Dwyer destaca ainda em seu depoimento a importância da gestão de


Tomassini, que iniciou no município a implantação de uma rede de serviços locais
de saúde, o que gerou as condições para uma efetiva mudança da realidade sanitária
em Niterói:

“Tomassini montou uma estrutura modelo de organização de sistema, que foi


fundamental, caracterizada por uma regionalização do sistema. Aquilo que foi
montado na Secretaria de Saúde como estrutura de rede de organização de
serviços ficou. O que houve depois foi a incorporação das unidades estaduais,
em um outro momento. Hoje, as unidades que o Tomassini implantou, que eram
unidades de clínicas básicas, viraram centros policlínicos, transformaram-se em
centros policlínicos de referência de médicos de família.”
MEMÓRIAS
88
MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70:...
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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os movimentos desencadeados na década de 70 em vários locais do país,


que envolveram um conjunto significativo de pessoas e instituições, contribuíram
para a construção das bases teóricas e conceituais que sustentaram o projeto de
reforma sanitária brasileira e que estabeleceram os princípios norteadores do Sistema
Único de Saúde – SUS.
O resgate dessa história, relatada detalhadamente por Arouca em seu
depoimento, evidencia a gênese do movimento sanitário brasileiro num cenário de
luta contra a ditadura. Revela ainda a importância das modificações ocorridas no
campo das ciências sociais em saúde; o envolvimento dos departamentos de
medicina preventiva nas universidades brasileiras na perspectiva de mudança da
realidade sanitária e politica do país; a emergência da proposta de medicina
comunitária e a institucionalização das propostas daí advindas nas secretarias
municipais de saúde.
A importância das experiências de organização de sistemas públicos locais de
saúde vivenciadas pelos municípios de Campinas, Londrina e Niterói na década de 70
expressa-se no fato de que essas experiências institucionalizaram nas respectivas
SMS a discussão teórica que vinha se desenvolvendo nas universidades. Um outro
aspecto que pode ser destacado em relação a essas experiências diz respeito à
aproximação com outros movimentos da sociedade civil, em particular com as
associações de moradores, sindicatos e comunidades eclesiais de base, propiciando
a emergência de novos atores nos espaços públicos de gestão da saúde.
Esses municípios acabaram se tornando referência para as questões técnicas
e políticas constitutivas da agenda dos movimentos pela transformação da saúde
na década de 70. Ao defender a descentralização do setor e a adoção da atenção
integral a saúde, esses projetos favoreceram, por meio de práticas consistentes, a
consolidação das concepções centrais do movimento sanitário brasileiro. Nesse
sentido, transformaram as SMS num espaço efetivo de implementação de mudanças
no setor saúde.
A historia vivenciada por esses municípios evidenciam ainda que, no
nascedouro do movimento pela reforma sanitária, a organização dos serviços de
saúde afigura-se como uma contribuição significativa, por viabilizar uma relação
fecunda entre a academia, os serviços de saúde e a comunidade, e por ampliar a
discussão sobre a estratégia da municipalização nos processos de implantação do
modelo descentralizado de atenção à saúde.
MEMÓRIAS
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LISTA DE SIGLAS

ABRASCO Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva


ABEM Associação Brasileira de Educação Médica
AIS Ações Integradas de Saúde
AP Ação Popular
ARENA Aliança Renovadora Nacional
CEBs Comunidades Eclesiais de Base
CEBES Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
ENSP Escola Nacional de Saúde Pública
FAS Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social
FINEP Financiadora de Estudos e Projetos
FIOCRUZ Fundação Osvaldo Cruz
INAMPS Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social
INAN Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição
INPS Instituto Nacional de Previdência Social
MDB Movimento Democrático Brasileiro
OPAS Organização Pan-Americana de Saúde
PCB Partido Comunista Brasileiro
PC do B Partido Comunista do Brasil
PDS Partido Democrático Social
PDT Partido Democrático Trabalhista
PESES Programa de Estudos Sociais e Econômicos de Saúde
PESPES Programa de Estudos Sociais e Pesquisas Epidemiológicas
PIDAS Programa de Integração Docente Assistencial
PIASS Programa de Interiorização de Ações de Saúde e Saneamento
PMDB Partido do Movimento Democrático Brasileiro
PT Partido dos Trabalhadores
PPREPS Programa de Preparação Estratégica de Pessoal de Saúde
SESAC Semana de Estudos sobre Saúde Comunitária
SMS Secretaria Municipal de Saúde
SUS Sistema Único de Saúde
UEL Universidade Estadual de Londrina
UERJ Universidade Estadual do Rio de Janeiro
UFF Universidade Federal Fluminense
UNICAMP Universidade Estadual de Campinas
USP Universidade de São Paulo
MEMÓRIAS
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