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Saúde Pública em mim: mais que um caso de amor, um intercessor

emerson elias merhy


médico sanitarista, desde 1976
participante do coletivo micropolítica, trabalho e cuidado - www.medicina.ufrj.br/micropolitica

transformar cada acontecimento em um dispositivo


que nos abre para a imprevisibilidade
pode ser um modo riquíssimo
de fazer valer o risco do real

como escrever esse texto apesar das minhas dúvidas. dilema ...

O convite para contribuir com esse livro, sobre a saúde pública como um dos meus amores,
me foi atraente e ao mesmo tempo problemático. Primeiro, porque seria muito difícil me ver longe
de alguma implicação com a construção da saúde pública brasileira nessas últimas décadas;
segundo, porque esse imbricamento é tão intenso que não sabia como contar essa história da qual
não me via separado, tendo que assumir que toda minha narrativa seria profundamente contaminada
por meus relatos “pessoais”, ao traz também um certo modo de narrar minha história de vida, desde
o final dos anos 60.
Tive que fazer escolhas. Deixar-me levar por essa memória e narrar livremente como uma
testemunha fidedigna de mim e de uma certa forma de acontecer a saúde pública nesses anos todos,
através das minhas relações com acontecimentos que significo como relevantes; e, aí, misturar tudo,
lembranças, julgamentos, amigos, fatos e reflexões. Ou, tentar criar uma distancia para falar desses
anos todos como se fosse um narrador e analista “neutro”.
Não consegui esse segundo caminho, ou melhor, não o quis mesmo que pudesse persegui-lo.
Aliás, esses anos todos escrevendo e escrevendo, não tenho dificuldade em produzir um texto desse
tipo, mas não seria fiel a mim mesmo. Não me traria intensamente, com minha carne e minha vida.
Abri em mim os sentidos dos encontros de diferentes ordens, tempos e lugares. Aquilo que foi
e me é intercessor ( como esse próprio conceito de Deleuze, fundamental para mim).
Fiz essa escolha, por isso o que se segue vai embolar várias coisas: fatos, acontecimentos,
testemunhos, relações, afetamentos, dúvidas, desejos, entre outras várias. E, isso, faz dele um relato
bem meu que talvez interesse a outros e aí sinto que ele se validará para além de um simples relato
pessoal.
Vejamos se isso acontece. O leitor será a única testemunha efetiva.

um pouco de lembranças e produção de memória


Estou na passagem do 1968 para o 1969. USP, São Paulo, movimento estudantil. Já faz 1 ano
que vivo a escola médica, que tinha sido muito radical. Novidades infindáveis. Greve logo no
começo de 1968 pela reforma universitária. Coisa que não faria o mínimo sentido em mim 3 meses
antes, quando fiz o vestibular e realizar uma promessa de conseguir chegar na escola médica da
Pinheiros, comemorar um feito com tanta carga corporal, intelectual e transferencial colocava-se
muito a frente da possibilidade de ter visibilidade sobre o que a poucos passos viria. A universidade
acossada pela ditadura e seus membros de ali de dentro.
Os efeitos desse primeiros momentos são impossíveis de serem textualizados. Mas, se há
alguns que não consigo não falar são aqueles que me jogaram para novos mundos. Entro na
universidade vindo de um olhar conservador e reacionário e sou tomado pelas novas perspectivas
que outros mundos portavam. Agrada-me os agenciamentos onde me encontro, pois percebo novas
significações do viver, do sentido dos outros em mim, das possibilidades de acionar novidades nos
modos de existências, elementos que posso dar voz hoje tantos anos depois, que me desviaram e aí
me colocaram em novas rotas de colisões.
Vou colidindo e vou produzindo e sofrendo efeitos disso tudo. Viro um militante contra a
ditadura e me vejo profundamente identificado como um homem de esquerda. A noção de um
mundo no qual a exploração do homem pelo homem, as ditaduras, a violência de classe, a
possibilidade da igualdade entre todos, o fim de uma pré-história humana entram nos saberes do
meu corpo. Vivo intensamente tudo isso e não mais que 90 dias de uma dura greve, ainda em 1968,
faz de mim novos territórios de subjetivações. Rebelo-me contra minha história anterior e me vejo
nascendo. Sinto-me portador de uma nova verdade e que tudo que até então me movimentava era
mentira. Irei passar muitos anos até compreender que não é uma questão de certo e errado, que não
há o lado do bem e do mal; que tudo é uma questão de disputa de verdades, que carregam consigo
projetos políticos e de vida.
Somos muitos imersos nisso. Somos grupos e coletivos em movimentos intensos. Todos com
grandes afetações. Há uns que estão exatamente sendo afetados para um lugar que já conhecia: para
posições solidárias com a ditadura e sua essência violenta e conservadora. Sinto isso logo no trote
na chegada na faculdade de medicina e o contraditório disso também. Somos recebidos, nós os
calouros, por conexões diferentes.
Grupos que nos tomam como objetos de suas perversidades, que transformam o trote em atos
de torturas verbais e físicas, atraindo partes de nós que apesar de objeto são aderidos a essas formas
de existir e desejam esse lugar. Mas, uma boa outra parte sente-se ultrajada e aberta às conexões
vindas de outros grupos, que ofereciam encontros com os calouros para fazermos bate-papo sobre
as reformas sociais e a luta contra a opressão, trabalhos coletivos para produção artística no campo
teatral, formação de cine clubes, trabalho no centro acadêmico e atuação na luta estudantil.
Eu e vários não titubeamos. Topamos essa novidade e curiosamente lá vamos para
experimentar. Abertura completamente feliz, produtora de muitas alegrias no meu viver a partir de
então.
Não dou conta de tudo isso nos aconteceres que estão operando aí, mas na passagem de 68
para 69, como já apontei antes, estamos muitos investindo na construção de uma novidade para
receber os calouros que viriam logo, logo.
Temos como solidária a professora Maria Cecilia Ferro Donnangelo, cientista social que era
professora do Departamento de Medicina Preventiva e Social, coordenado pelo médico baiano,
epidemiólogo, Guilherme Rodrigues da Silva, um dos meus ícones da Saúde Pública brasileira.
Muitos de nós, estudantes de medicina, militantes pela reforma estudantil e social, com o
apoio da Cecília vamos inventando uma pesquisa no campo médico-social, sobre desnutrição, para
ser desenvolvida por nós e os novos calouros, no Vale do Ribeira. Ela nos apoia na construção do
desenho dessa pesquisa e lá vamos nós, mais de uma centena de estudantes, entre veteranos e
calouros, para o Vale. Dá para imaginar o movimento que isso se constituiu. Amizades, novos afetos
e novos coletivos em ação. Aí se fundaram relações entre vários de nós, que por anos e anos nos
vimos trabalhando juntos pela construção de uma nova sociedade no Brasil.
Vale observar que estávamos inventando a criação de novas possibilidades de acontecimentos,
que abriam convivências novas, debates críticos sobre a realidade, sobre ideais de futuro, produção
de atividades culturais por dentro da formação e por aí vai, no exato momento que a ditadura estava
criando um dos seus instrumentos mais violentos e fatais para as universidades brasileiras, o
decreto-lei 477, que expulsou inúmeros docentes e estudantes das instituições de ensino. Na USP
tivemos a baixa de professores fundamentais cuja ausência até hoje são sentidas. A universidade se
fez mais pequena.
Creio que uma das grandes consequências em mim dessa vivência, no plano da minha
formação como trabalhador de saúde, dentre muitas outras, foi ter percebido desde cedo que a
desnutrição era uma questão social, que para ser compreendida mobilizaria muitas explicações,
vindas de lugares que eu não reconhecia como saber científico legítimo, mas que agora sim
adquiriam uma visibilidade especial. Desnutrição não seria uma questão médica, pois para essa
sobravam mesmo os agravos para a vida que a desnutrição produzia. A partir de então, a escola
médica ficou muito desinteressante e até um pouco mediocrizada.
Infelizmente, 40 anos depois ainda acho isso. O que talvez eu não achasse com tanta clareza
era o que apontei antes. Não saberia na época dos 60 afirmar tudo sobre o que achava da
desnutrição como hoje narro, mas o meu olhar já estava tão afetado para ver outras coisas e lugares
de modo diferente do que a escola médica tentava me mostrar, que as disciplinas tipicamente
médicas ficaram muito pouco significativas. Comecei a devorar leituras que antes nem sabia da
existência. Comecei a juntar a produção do conhecimento da militância como lugar da minha
formação como trabalhador de saúde.
Ainda cheguei a experimentar uma área de formação um pouco limítrofe, na medicina da
época: a psiquiatria. Já no sexto ano, em 1973, fazendo o internato, pude vivenciar por uns 5 meses
uma formação só no Instituto de Psiquiatria da USP. Foi um horror. Manicômio puro. Prepotência
médica a máxima potência. Tinha me enganado. A Psiquiatria não era limítrofe coisa nenhuma.
Fui fazer residência médica na Preventiva e lá fiquei por 2 anos. Cecilia continuava sendo um
acontecimento e ainda é até hoje com seu corpo sem órgãos. Mas, muitos companheiros desses anos
todos de escola e de luta contra a ditadura, também estavam aí, fazendo esse trajeto. Ricardo Bruno,
Lilia Blima, Eduardo Jorge e muitos outros. Fechando 1975, no segundo ano da residência, dilemas
na formação aparecem para todos nós. Vamos continuar formação no campo, como Ricardo já vinha
fazendo. Estava já no mestrado e isso parecia um movimento natural. Seguir pela pós-graduação e
pela vida na universidade.
Seria, então, esse caminho escolhido por alguns de nós. Eu tinha decidido isso, também. Fui
fazer mestrado com Cecilia. Entretanto, um novo acontecimento: fazer um curso de formação na
Faculdade de Saúde Pública da USP para poder, por concurso, virar médico sanitarista da Secretaria
Estadual, dirigida pelo sanitarista Walter Leser, professor da Escola Paulista de Medicina, como
uma possibilidade de agir lá na vida dos serviços de saúde, construindo um novo tipo de
compromisso com a coisa pública.
Leser sinalizava com a ideia de se construir uma carreira para médicos sanitaristas no Estado
de São Paulo, organizada na perspectiva de quadros públicos, com dedicação exclusiva e que
exercessem atividades técnicas sanitárias e organizacionais na rede estadual, tendo em vista uma
nova tecnoburocracia comprometida com a mudança do padrão de descaso que a saúde vinha tendo,
quando se olhava as necessidades populacionais de saúde. São Paulo na época vivia dramaticamente
com a meningite, o sarampo, a desnutrição, a alta mortalidade infantil e, na intensidade dos
processos urbanos das grandes cidades, tudo apontava para uma deterioração enorme do quadro
sanitário.
Tomar a saúde pública como uma política de estado de primeira ordem tinha sido uma decisão
naquele período e Leser representava isso, mesmo sob o regime ditatorial militar. Teve fôlego para
iniciar essa reforma, inclusive no bojo dos processos de transformação das máquinas públicas que a
ditadura promovia pelos estados brasileiros. São Paulo foi palco de um processo bem instigante
nesse momento, na saúde pública, e muitos toparam esse desafio.
Alguns que aceitaram esse convite procuraram conciliá-la com a aposta na pós-graduação. Eu,
que estava por esse caminho, vou junto com Eduardo Jorge, que não tinha a intenção de ficar na
universidade, fazer a inscrição para entrar nessa primeira turma de formação de médicos
sanitaristas. Tínhamos em mente abrir a possibilidade de entrar na máquina governamental, para
poder se localizar em uma região da cidade de São Paulo, a periferia, com o intuito de tocar para
frente uma militância junto ao movimento operário e popular que se desenvolvia ali. Logo que
começou o curso vamos descobrir que muitos também tiveram essa mesma ideia.
Esse coletivo de alunos expressa uma quantidade importante de desejos por novas
possibilidades na forma de ser trabalhador de saúde, que a Saúde Pública paulista nos permitia e a
medicina nem tanto. Trabalhador de um novo tipo, técnico e militante, ao mesmo tempo, que atuaria
para produzir ações que contribuíssem com a mudança efetiva da sociedade e pela luta contra a
ditadura, no mesmo momento que estivesse interferindo nas condições sanitárias das populações e
no seu envolvimento nessas mudanças.
Em São Paulo, isso tudo ocorria bem antes do movimento sanitário, reforma sanitária e por aí
vai. Estava muito mais articulado a uma aproximação de muitos de nós com os movimentos sociais
que estavam abrindo lutas por melhores condições de vida e contra a pobreza.
Tínhamos esses horizontes em nós e por ele caminhamos. Fomos para o curso na Faculdade
de Saúde Pública e por lá ficamos 6 meses, em formação. Nesse momento, registro dois grandes
acontecimentos que operam em mim: o encontro com vários outros que ali estavam fazendo o curso
e o aprofundamento da militância que eu já fazia na periferia de Zona Leste de São Paulo, desde
1972. Essa história anterior vai nos ajudar, ainda no final de 1976, quando ingressamos na carreira
de médico sanitarista do estado de São Paulo, para nos fixarmos em algumas regiões do estado. Vou
com alguns companheiros atuar na Zona Leste. Insiro-me em São Miguel Paulista e Eduardo Jorge
vai para Itaquera / São Mateus, além de outros que vão se distribuindo pela cidade e pelo estado
como um todo.
O outro grande acontecimento, para mim, que foi o encontro com novos companheiros,
possibilitado por esse curso, foi de uma magnitude muita mais alargada, pois implicou em vários
outros desdobramentos para a luta no campo da saúde, no nível nacional.
Registro antes disso, que o curso era dado de forma tão tradicional com o da escola médica,
mas a atração que o campo produzia em nós, fazia das aulas e dos nossos debates coisas muito
instigantes e atraentes. Esse curso não virou uma chatice, criamos espaços informais e paralelos que
eram constitutivos dele. E, ao contrário do curso médico que produzia fuga, esse virou a construção
intensa de novos nascimentos, por dentro do campo, cujo símbolo mais forte tenha sido a
construção do CEBES – Centro Brasileiro de Estudos de Saúde e da “Revista Saúde em Debate”.
Eu tinha tanta implicação com tudo isso, que o primeiro endereço dessa nova entidade e de
sua revista, para permitir a sua legalização, era a minha casa em São Paulo, pertinho da Vila
Madalena. Além do fato, de que o nascimento da revista em outubro de 1976 é acompanhado de
algo muito marcante na minha vida: o nascimento da minha filha, Emilia, no mesmo dia que o
primeiro número saiu da gráfica.
Acho isso tudo uma lição interessante de olhar. Aquele coletivo não era formado por um
grupo uniforme e coeso. Havia diferenças importantes em nossas trajetórias. Eramos múltiplos,
com filiações políticas distintas, mas ao mesmo tempo com muita coisa em comum. Juntávamo-nos
comum e assim dávamos conta das diferenças, aliás, nos alimentávamos dela. Esse curso, como um
acontecimento intercessor, consolidou um certo nascer de novo, depois dos vários que já haviam
operado em mim na escola médica, e que me permitiam encontrar, dentre vários, alguns novos
amigos especiais, como: José Ruben Alcântara Bonfim e Davi Capistrano Filho. Claro que não
estou sendo justo com dezenas de outros, mas esses dois foram fortes intervenções em mim.
Atravessaram-me.
Caminhamos juntos em muitas coisas, mas sem dúvida a militância no campo da saúde
pública paulista foi marcante e com muitos frutos. Já citei um desses efeitos, o CEBES; mas poderia
registrar vários outros, sempre realizados pelas ações de muitos militantes. Como por exemplo, a
aposta de se movimentar como um coletivo que disputaria a direcionalidade da política, no próprio
campo organizacional da política estadual de saúde, ou seja, na máquina burocrática e infernal da
Secretaria Estadual de Saúde, associada ao envolvimento múltiplo no campo dos movimentos
sociais que lutavam por melhorias das condições de vida e contra a ditadura. Tudo isso foi um forte
comum que juntou dezenas de companheiros desse curso e mais que isso: serviu de forte atração e
agregação para novos que vieram nas turmas seguintes.
Esse movimento em São Paulo, no campo da saúde pública tradicional, revelou a
possibilidade, compreendida muito depois por vários de nós, de que há muitas organizações dentro
de uma organização, bem como há muitos estados sendo disputados no interior do estado instituído,
predominante.
Em movimento, criávamos espaços fora do instituído organizacional no qual gerávamos
debates e tomávamos decisões sobre nossas ações em relação ao campo político do governo
estadual, na saúde. Associávamos isso a uma forte relação com os outros movimentos: populares de
saúde, sindicais, partidários, associativos, entre outros.
Éramos compostos por militantes do PCB – Partido Comunista Brasileiro, ex-militantes de
organizações armadas ou de grupos vinculados a entidades de base da Teologia da Libertação.
Juntávamos tudo isso sem problema, o que agregou novas aprendizagens que hoje tiro proveito: o
comum se potencializa na força da aceitação da diferença do outro em mim. Tentava tirar proveito
disso tudo sem preconceito: somava Paulo Freire e Gramsci e uma boa obsessividade anti-direita.

não mais saúde pública, movimento sanitário


No final do curso no meio do ano de 1976, registro a participação na SBPC – Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência, em Brasília, que tinha virado um acontecimento coletivo
contra a ditadura, no qual se juntaram vários setores intelectuais e militantes de todas as partes do
país. Lá, na nossa turma, como resultado de muita discussão tomamos a decisão coletiva de
participar da construção de uma revista no campo da saúde, que pudesse trazer o debate aberto e
múltiplo, que muitos estavam começando a fazer, da crítica do modelo de política de saúde que a
ditadura vinha apontando. Resolvemos que ir para o encontro em Brasília seria uma oportunidade
grande de conectarmos com outros coletivos de lugares fora de São Paulo. Alguns de nós foi
participar daquela SBPC.
Logo que chegamos no espaço do evento, no minhocão da UnB, distribuímos cartazes
convidando quem tivesse interessado em conversar sobre essa possibilidade. Dezenas de pessoas
foram participar da reunião, amontoando-se em uma sala para escutarem nossas propostas. Foram
feitos vários debates. Alguns que ali estavam já tinham sido contatados anteriormente por alguns de
nós. Os militantes do PCB usaram de sua máquina para atuarem no encontro. Mas, ali estavam
muito mais que isso.
Lembro, como hoje, que todos estavam em sintonia com essa ideia e seria loucura qualquer
imagem que alguns ainda fazem de que essa produção teve um inventor ou um grupo partidário
exclusivo por trás dela. Foi evidentemente uma produção coletiva em comum, sem heróis e autores
específicos. No máximo, tinha em nós animadores e nos grupos organizados forças a favor. Mas,
era um acontecimento que fugia do controle.
Naquela conversa na sala, lá em Brasília, ao falarmos que não tínhamos ainda um nome
fechado para a revista, iniciou-se uma tempestade de ideias e no meio disso tudo um grupo bem
jovem sugeriu: porque não Saúde em Debate, já que era disso que estávamos falando. Com muita
facilidade associou isso ao do CEBES, que já estava sendo ensaiado a algum tempo.
Saímos de lá com a “missão” de contatar muitos conhecidos ou dicas de contatos nas
principais regiões do país. Óbvio que Davi foi atrás de toda uma articulação que já tinha e que
atuava junto com ele: os seus companheiros do Partidão. Mas, eu, por exemplo, me desloquei entre
outros lugares para Porto Alegre, onde conheci Maria Luiza Jaegger e vários outros companheiros,
residentes de saúde pública ou medicina preventiva. Fizemos atividades por lá debatendo alguns
temas da saúde e foi desenhado o primeiro núcleo do CEBES no Rio Grande do Sul. A participação
de residentes dos departamentos de medicina preventiva ajudou muito.
Esses movimentos se espalharam pelo país e no final de 1976, de uma forma bem amadora, já
tínhamos editado o primeiro número da revista e tínhamos em mão, em São Paulo, na nossa sede,
um pedido de adesão de muita gente de vários lugares, não só profissionais ou acadêmicos.
Desses momentos em diante já não tínhamos mais como característica sermos só um grupo de
sanitaristas paulistas em ação na saúde pública estadual; éramos agora parte de um movimento cuja
característica mais saudável era que ninguém mais o controlava, nem quem esteve como artífice do
mesmo desde o começo. O envolvimento dos que estavam nas universidades, nos cursos de
formação em saúde pública e medicina preventiva, nos serviços de saúde pública, trabalhando nas
redes nacionais dos Ministérios da Saúde e da Previdência Social, com militantes políticos e
movimentos sociais de outro tipo, formou um fluxo instituinte inovador. Novos coletivos iam se
fabricando. Estava andando o embrião do movimento sanitário brasileiro.
Estava em curso o processo social e histórico da reforma sanitária, no Brasil.

não só movimento sanitário, mas saúde coletiva também

Tal impacto produz efeitos no próprio campo da saúde pública e na sua irmã de leite, a
medicina e equivalentes. Desde o final dos anos 70, com a crescente produção de trabalhos de
tradição marxista alimentando novos objetos e novos campos de estudo e conhecimento,
interrogantes de outras ordens vão tomando conta de uma parte de nós, trabalhadores da saúde
pública, militantes dos movimentos pela democratização do país e construção de novas políticas de
saúde.
Para muitos de nós, sob forte influência da produção de Maria Cecília Ferro Donnangelo e
seu grupo de pesquisadores, interrogar a natureza da saúde pública como prática social tornava-se
central. De posse de um olhar marxista, prisioneiro da ótica determinista, encaro esse campo social
como efeito dos processos de construção social do capitalismo, no Brasil.
Como eu, muitos iam por esse caminho. Produtivo de um lado, pois rompia com a tradicional
visão da saúde pública como campo científico que cuidava dos fenômenos sociais e coletivos do
campo da saúde, oposta da medicina que se debruçava sobre a doença como fenômeno individual e
pessoal. Alimentando-nos da noção de que saúde pública e medicina vinham do mesmo lugar:
biopolíticas, constitutivas das sociedades capitalistas.
Por outro lado, entretanto, criando uma armadilha na qual enclausurava o campo da saúde
como um todo e da saúde pública em particular, em uma visão que as viam como meros efeitos dos
processos infraestruturais produtores e reprodutores do modo de produção capitalista. E, como tal,
prisioneiros disso.
Um furo no muro nessa concepção mostrou-se rico. A noção, que Cecília Donnangelo trouxe
em seu livro Saúde e Sociedade, da saúde como constitutiva daquelas relações, somada àquela que
o trabalho de Madel Luz trouxe na ótica institucionalista sobre a relação entre medicina e
hegemonia capitalista no Brasil, abria novas possibilidades para os estudos e produção de um saber
militante, por pavimentar a concepção de que fazia diferença agir ou não a partir do campo na
perspectiva de fazer diferente, o oposto do que o capitalismo pretendia, enriquecendo com isso as
nossas possibilidades de gerar lutas solidárias com um agir anti-capitalístico.
Entendiamos, então, que apostar na construção de uma vida “decente e prudente” individual e
coletiva, em si, travaria batalhas no fronte que buscava superar as relações de exploração do capital.
Mesmo assim, muitas foram as produções que seguiram o caminho do entendimento da saúde
como puro efeito e, como tal, sempre reprodutora das relações sociais dominantes. Entretanto,
vários outros seguiram a noção da constitutividade entre as práticas de saúde e as relações
capitalistas, trazendo em si a marca do contraditório dessas relações. Isso permitiu uma certa marca
associada ao conjunto das militâncias contra a ditadura, no qual estávamos engajados, procurar
transitar do campo “tradicional” da saúde pública para uma novidade: a emergência e consolidação
do que chamamos de saúde coletiva, na qual a crítica da medicina e da saúde pública como
biopolíticas, seria feita no amplo campo do agir político da sociedade civil. Abrindo, então, uma
disputa que visava a construção de uma hegemonia social em torno do valor da vida: para ser
explorada ou para ser a principal riqueza social.
Vale registrar, e minha memória é bem fiel em relação a isso, outra figura brasileira nesse
relato: Sérgio Arouca; que no meu olhar simbolizou fortemente o reforço da ação militante de
alguém que era tido como intelectual de novo tipo. Mas, diria pelo menos para mim, que Sérgio não
era uma grande referência por sua produção teórica, aliás, muito pouca quantitativamente. No
entanto, faço jus a uma reflexão sua, que foi publicizada através do texto publicado no primeiro
número da revista Saúde em Debate, na qual fazia uma crítica da concepção da História Natural da
Doença de Leavell e Clark, e que produziu fortes efeitos no movimento sanitário e na conformação
da saúde coletiva. Nessa crítica, construída a partir de sua tese de doutorado, trouxe para muitos de
nós fundamentos chaves para conceber as relações entre saúde, doença e cuidado.
De fato, porém, registro que a marca em mim mais forte do Sérgio Arouca foi a luta travada
por muitos, nos anos 70, pelo seu direito de defender sua tese de doutorado e trago para a cena o dia
da sua defesa na Unicamp, com uma sala repleta de militantes contra a ditadura e a intolerância. Foi
um dos grandes atos políticos inauguradores dessa novidade que vivíamos e que iríamos ainda
viver, nesse fabricar o furo no muro das instituições vinculadas à violência ditatorial.
Nesses anos todos, dos 70 aos 80, senti o trânsito forte desse percurso da saúde pública para a
saúde coletiva, como expressão de um movimento que não tinha dono, nem autor, mas artífices e
que dava como marca a desterritorialização de qualquer campo instituído como predominante, fosse
a universidade, os serviços, as entidades associativas, os coletivos em formação, os movimentos
sociais e por aí vai.
Todos eram seus construtores, mesmo que muitos hoje ainda tenham a mania de querer contar
a história de eventos sociais, através de heróis. Aqui, isso seria impossível, porque o possível é isso
que estou fazendo: falando de um certo lugar, recorte e situação; mas reconhecendo a existência de
muitas outras histórias e narrativas, a partir de outros artífices e situações.
Diria, antes de fechar esse momento, que não era pouca a pretensão de superar a dicotomia
entre medicina e saúde pública pela construção de um novo campo teórico e prático. A saúde
coletiva, de então, não era um departamento ou um instituto, era um movimento de transprofissões
de saúde, transmovimentos, transdisciplinares. Lugar de militância por um novo campo de práticas
sociais, na busca da superação das instituições organicamente comprometidas com a exploração da
vida humana por um outro humano, no interior das quais as de saúde são nucleares.
Procurando desencadear a partir do movimento sanitário construção de uma sociedade mais
democrática, mas também de um novo tipo.
Nesse percurso, vejo-me indo atrás da produção de um novo território, resultado dessa
desconstrução, mas reconhecendo que nem todos do movimento sanitário tinham essa aposta, até
hoje. Ainda há muitos que aceitam, sem uma crítica mais radical, a superioridade da saúde pública
sobre a medicina, ou se prendem à saúde coletiva como um campo disciplinar a mais na área da
saúde.
Essa disputa está na flor da pele das lutas, hoje, pela construção do Sistema Único de Saúde.

não mais saúde coletiva. movimento em defesa da vida, para muitos de nós

Nesse momento, uma marca em meu corpo - movimento em defesa da vida - puxa fluxos de
memórias, nada comprometidos com qualquer cronologia. Mais que isso. Nada comprometidos com
lugares muito nítidos, pois é um turbilhão de ideias, lembranças e afetos misturados. Vou, com
muito esforço, procurando um fio, criando com ele linhas de significações que me levem a outras.
Vou trazendo para cena muitas afecções.
Caio no começo de 1990, nos governos municipais de Campinas, São Paulo, Santos, Ipatinga
e Belo Horizonte. Trago meu engajamento intenso com essas experiências, que parte do Partido dos
Trabalhadores ia realizando, com foco muito claro na busca da construção de práticas
governamentais no campo das políticas de saúde, solidárias aos referenciais de construção de uma
nova ordem democrática, entre máquina governamental e grupos organizados da sociedade como
um todo e de um conjunto de ações públicas que deslocassem o eixo fragmentário e focal das ações
de saúde, para um agir pleno em defesa da vida individual e coletiva, puxado pela imagem de que
uma vida, que fosse, sempre valeria a pena.
Meu lugar de médico sanitarista e militante da reforma sanitária, sem dúvida, levou-me a tudo
isso. E nesse percurso volto a 1978, quando mudo de São Paulo para a cidade de Campinas. No
momento em que a luta contra a ditadura estava se des-dobrando. Os governos militares davam
sinais de estar chegando ao fim. Novos coletivos, novas agremiações políticas. Militância
multiplicada na construção de novos partidos políticos, que se propusessem a não repetir os
formatos clássicos da esquerda. Militância mais que intensa na construção do PT.
Em Campinas, chego como médico sanitarista da Secretaria Estadual. Por direito de
classificação em concurso público, escolho dirigir uma região sanitária ampla, cuja sede era a
cidade de Americana. Fico pouco tempo e me desloco para coordenar o Centro de Saúde da cidade
de Valinhos, quando me vinculo claramente aos movimentos sociais pela saúde da região de
Campinas. Em pouco tempo estou coordenando o Distrito Sanitário de Campinas, que abrangia uma
área de 2 milhões de habitantes.
Abro vínculos de muitas ordens. No movimento popular pela saúde, no movimento de
médicos sanitaristas, nas universidades da região, nos militantes partidários de esquerda. No interior
dessa narrativa, destaco como importante minha articulação entre inserção na rede de serviços de
saúde pública da região com um lugar na universidade, procurando atravessar ambos territórios.
Trabalho com um grupo de profissionais da rede municipal que tinha ido construir o departamento
de medicina preventiva na Puccamp e, depois de um tempo, já com a entrada em cena de novas
relações, possibilitadas pelo núcleo do CEBES na cidade e com o encontro, na ação militante, com
Gastão Wagner de Sousa Campos, aproximo-me do grupo da Unicamp. Novos desvios operam em
mim e novos parceiros são constituídos.
Desses processos todos que se sobrepõem, consigo ter claro que minha chegada na região teve
muitos desvios intercessores, impossíveis de serem tratados minuciosamente, aqui. Mas, mesmo
que repetindo, destaco, de novo alguns deles:

• minha participação junto com vários sanitaristas da Secretaria Estadual, de um coletivo de


reflexão e gestão das nossas ações na máquina governamental e nos movimentos sociais,
dentre os quais minha memória me remete para as figuras de Luiz Cecilio, Haydée Lima,
Marta Salomão, Sandra Roncali, Wanderlei Bueno, Florianita Campos, Mauricio Chakkour,
e muitos outros;
• meu envolvimento com a fundação dos primeiros núcleos do Partido dos Trabalhadores;
• minha militância no movimento popular de saúde;
• minha relação com grupos de trabalhadores da rede municipal de saúde de Campinas e
Puccamp, dentre os quais minha memória me leva ao Angelo Trapé, Carmem Lavras, Bete
Smecke, Alice Garcia, Cristina Restituti, entre outros;
• meu envolvimento com a Unicamp; e
• minha participação nos municípios que, com governos que se diziam do campo da esquerda,
procuravam construir um Sistema Único de Saúde de baixo para cima.

Gostaria de destacar, entre tudo isso, os anos 82/84, quando assumi a direção do Distrito
Sanitário de Campinas, também por concurso. Naquele momento, passei a vivenciar com o coletivo
de sanitarista uma experiência de formação de um colegiado de gestão da rede de saúde pública de
cerca de 80 municípios, sob a coordenação do diretor geral dessa estrutura: o Luiz Cecílio. Aliás,
processo já relatado por ele no seu livro Inventando a Mudança na Saúde, que não descreverei
minuciosamente aqui, mas que se tornou um experimento muito relevante para as próximas ações
que parte de nós tivemos nas nossas inserções em estruturas governamentais, lá pelos anos 90,
quando a aparição de governos petistas em vários municípios entra em um crescente, em todo o
país.
Destaco nesse período a forte vinculação que vai ser construída com o pessoal da medicina
preventiva da Unicamp, onde atuavam dois sanitaristas importantes: Nelson Rodrigues dos Santos e
Gastão Wagner de Sousa Campos. Lá vem mais intercessores em mim, que me faz dar voltas
enormes, inclusive operando superações de forma definitiva de uma visão muito determinística da
análise do campo das práticas sociais e a incorporação teórica e militante da disputa de verdades
como eixo das apostas de ações no campo societário.
Sem dúvida, essa mistura vai se enriquecendo de experiências em novas formas de organizar
governos e de incorporação de novos referenciais teóricos metodológicos, dentre os quais destaco a
presença dos pensamentos de Carlos Matus, apresentado para mim pelo Luiz Cecílio. Gastão,
naquele momento, será alguém mais forte na permanente interlocução produtora de ideias novas no
que toca as relações entre academia, serviços e coletivos em ação, construção de análises sobre o
campo da política e a forte militância em busca de um novo modo de ser esquerda, para além das
amarras das tradicionais máquinas partidárias.
Nessa altura, a salada de situações vividas, experiências acumuladas, militâncias efetivadas já
tinham como efeito uma produção em mim de algo que tinha se desterritorializado dos lugares
iniciais dos anos 60 e das acumulações constituídas no campo da esquerda. Sentia que todos saberes
forjados nesse processo tinham seu lugar e podiam negociar entre si. Percebia em mim uma forte
composição de uma caixa de ferramentas, para a ação do viver, que já não admitia certas separações
institucionais, era como se me percebia sendo tudo ao mesmo tempo e os lugares organizacionais
onde atuava como suporte para essas expressões. Já não via mais a política sendo feita só em
partidos ou em movimentos, mas em todo processo que estava em jogo modos de existir.
Radicalmente defender a vida era um ato em si revolucionário, dentro da noção central de que
a igualdade só seria construída na diferença do outro em cada um de nós.
Essa radicalidade trouxe em mim um processo desterritorializante forte e de novos
entendimentos sobre a própria possibilidade de compreender o que eram os campos de práticas
sociais. A vivência da primeira experiência petista de governo em Campinas e Belo Horizonte -
além de acompanhar de perto Santos, com Davi Capistrano e seu grupo, e São Paulo, com Eduardo
Jorge, no começo dos anos 90 -, vão reafirmar isso.
Óbvio que há outras convivências vitais andando por aí nesse período, como a do grupo que
compunha as experiências de governo no Vale do Aço, em Ipatinga (Minas Gerais), como Leda
Lúcia, Fausto Santos, Deborah Carvalho, Alzira Jorge, Antonio Martins e tantos outros. Mas, isso
seria demasiado registrar, mesmo porque parte disso já está descrito tanto no livro Inventando a
Mudança na Saúde, como no O SUS em Belo Horizonte. Experienciando o Público.
Voltando ao começo desse momento do texto, a marca está aí. Já não falo mais de saúde
pública e nem de movimento sanitário, muito menos de reforma sanitária; estou já imerso, mesmo
que seja no campo da construção do SUS, de uma aposta importante em produzir ali no cotidiano da
fabricação das máquinas públicas estatais, novas formas de governar e de produzir política pública.
Estamos todos imersos em uma disputa forte pela produção de uma nova relação estado e
sociedade, no Brasil, em um novo projeto de construção da vida como eixo.
Estar como docente na Unicamp e militante desses processos, só aprofundou aquilo que
registrei antes da intensa desterritorialização do que era agora o fazer a política e o lugar da
construção de novas possibilidades de existências coletivas na sociedade brasileira.
Minha nova caixa de ferramenta tinha mudado os sentidos, tinha se tornada mais polissêmica
- remeto aqui o leitor para o meu texto “Engravidando as Palavras” # -, não mais a via como lugar de
guardar doutrinas que usaria conforme necessidades, mas como lugar para conversar com vários
saberes, que me interessavam pelos tipos de problemas que procuravam enfrentar e por poder me
sugerir modos de pensá-los e de agir (forte influência do Deleuze, hoje, o autor intercessor em mim
mais intenso; junto com a produção de Erminia Silva, realizada no campo da pesquisa histórica
sobre “o circo e sua teatralidade”, no Brasil).
Passei a mirar a singularidade de cada encontro, sob a ótica da micropolítica. Essa me
possibilitava tanto pensar a produção dos atos de saúde, quanto de qualquer outro tipo de processo
social e coletivo, por serem constitutivamente encontro realizáveis. Isso tudo provocava em mim
novas problematizações, novas dobras subjetivantes.
Creio que uma forma de fechar esse conjunto de desvios produzidos nessas conexões todas,
que provocaram em mim muitos nascimentos, como se fosse portador de vidas passadas em uma
única vida, é a de procurar sistematizar alguns dos efeitos que tomo como hoje relevantes para um
momento que não considero tão promissor como os que relatei, pelo menos no campo da construção

# No site www.uff.br/saudecoletiva/professores/merhy pode-se acessar muitos textos do autor, inclusive esse.


da política de saúde.

fechando, abrindo

Não consigo, hoje, 2010, deixar de colocar que muito do que havíamos desejado ou mesmo
construído durante muitos anos, está indo por água abaixo. Isto é, a intensa luta de milhares de
militantes ou de centenas de coletivos pela construção de um novo campo de práticas de saúde, anti-
capitalístico, se vê diante de muitos dilemas. E ouso dizer mais por dificuldades do próprio campo
da esquerda do que por mérito dos senhores do mercado.
A intolerância à diferença no nosso próprio terreno, a obsessividade de cada grupo querer ser
o hegemônico e aí procurar dominar a cena e se tornar imperativo e dono do verdadeiro projeto,
trazem fragilizações que abriram fissuras em um território antes instituinte, criado de muitas
novidades e em franco processo de consolidação, que era a construção do SUS, no Brasil. Fissura
que permite a entrada de forças de ocupação.
Constato dois elementos analisadores que me permite ver e enunciar certas dificuldades para a
conformação do campo da saúde, como lugar em que a diferença do outro é o mote que dá sentido a
todo esse território institucional: de um lado, a ampla extensão de cobertura que essa política
permitiu no país como um todo, porém capitaneada por um modelo de práticas de atenção devedora
do domínio centrado nos procedimentos profissionais, sem tomar como eixo o outro/usuário, suas
formas de existências e modos de produzir necessidades. Ao colocar sob o tacão da medicalização
as questões sociais, acaba por reduzi-las ao campo de significação do terreno dos adoecimentos e,
portanto, território de domínio do saber agir dos profissionais de saúde, com exclusividade.
De outro lado, o crescimento enorme de um “tanto faz”, no antigo campo sanitário, em
relação aos processos de privatização das coisas públicas, levando o SUS hoje a ter mais a cara de
um “grande plano de saúde pobre, para pobre” do que uma política de estado imbuída da construção
de um novo patamar de cidadanização na saúde, como um todo. A ideia que alguns de nós teve de
“susificar” o campo da saúde suplementar, quando da aparição da Agência Nacional de Saúde
(ANS), se inverteu. O SUS está se “aenessificando”. O mercado e sua lógica penetrou as nossas
fissuras e age de modo forte como poder constituinte.
Vejo que se não encararmos esse tipo de diagnóstico da situação como dramático, não
produziremos boas “resistências” e muitas de toda essas lutas ficarão só como cicatrizes em corpos
individuais e coletivos.
Imagino a necessidade de encarar o fazer cotidiano como o lugar para agir nesse território
fissurado, mas para isso muitos de nós temos que nos colocar em diálogo sobre as seguintes ideias:
• a saúde pública, fragmentada em relação a medicina, ainda foi não superada, em nós; sendo
cada vez mais biopolítica capitalística, do que campo de construção de novas práticas sociais
de saúde;
• a ciência oficial, inclusive no que a própria saúde coletiva se transformou, tem sido um
obstáculo mais do que uma aliada desse processo, e aí torná-la ferramenta mais do que
“saber sobre” é um movimento necessário, para podermos produzir uma resistência
instituinte;
• não há certo e errado, mas disputas de verdades, carregadas de projetos políticos e sociais,
que podem na sua multiplicidade, demarcada pela oposição ao modo capitalístico de
entender a vida, conduzir uma construção coletiva na diferença, que aprofunde promessas do
movimento sanitário, nunca cumpridas;
• temos mais força no fazer comprometido com a produção da vida individual e coletiva, ali
no cotidiano dos coletivos de trabalhadores e usuários, que se encontram aos milhões nas
nossas redes de cuidado, tomando o acontecimento do encontro como lugar de relações de
força para sair do agir sobre a vida para um agir com a vida;
• apostar na construção de coletivos que se vêm enriquecidos com os outros, que estão no
mesmo campo em comum, talvez seja a única forma de revertermos esse processo de
deterioração, que do meu ponto de vista ameaça a produção de uma sociedade mais
comprometida com a vida de todos.

Olho todo esse texto e vejo que não daria mesmo para não produzir no final um desafio, uma
certa convocatória, mesmo reconhecendo sua parcialidade e correndo o risco de estar só trazendo
algo muito centrado, conforme digo no começo, pelo risco de ter optado pela minha lógica
testemunhal. Entretanto, corro esse risco ciente de que aqui há coisas que pode interessar a muitos e
isso o justifica. Continuo apostando que nas nossas diferenças, que ao não se tolerarem se fizeram
fissuras, é onde poderemos encontrar um comum que nos impulsiona para uma ação diferente e que
não permita que o passado fique só para narrativas testemunhais, mas se presentifique aí no mundo
da vida, aqui e agora, em qualquer lugar onde ela pulula e se faz existência.

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