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Espaço e Teatralidade na

Minissérie “Hoje é Dia de


Maria”*
a sugestão inicial e o enredo, que se desenrola por
Sylvia Nemer**
meio de um tipo de montagem em que cada plano,
lembrando o teatro de variedades, é uma espécie
RESUMO: A relação entre cultura popular, teatro e expressão
audiovisual é o tema do presente texto, interessado em discutir de atração à parte. Nesse aspecto, o espaço teve
a questão do uso do espaço teatral na minissérie “Hoje é dia de um papel fundamental.
Maria”, obra profundamente marcada, segundo termos de Paul Filmada no palco da terceira edição do Rock
Zumthor, por uma “intenção de teatro” (ZUMTHOR, 2007). in Rio, a estrutura circular do espaço ocupado pela
RÉSUMÉ: Les rapports entre culture populaire, théâtre et produção da minissérie repercutiu no esquema
expression audiovisuel sont la thématique du présent texte, où
circular da história contada, a de uma menina que
on discute la question de l’espace théâtral dans la minisérie
télevisée brésilienne “Aujourd’hui c’est un jour de Marie”, ouevre sai de casa e após uma longa jornada acaba
profondement ancrée, selon les termes de Paul Zumthor par retornando ao seu lugar de origem, mas igualmente
un “souci de théâtre”, une intentioin théâtrale (ZUMTHOR, no modo fragmentado de contá-la, associado ao
2007).
princípio das “atrações”. Cobrindo a parede interna
ABSTRACT: The relationship between popular culture, theater do círculo, um painel de 360° pintado à mão
and audiovisual expression is the theme of this text, interested
representa as paisagens pelas quais Maria passa,
in discussing the question of theatrical space using in the
miniseries “Hoje é dia de Maria “, a work deeply marked, como o bosque e o sertão. Cada cenário representa
following Paul ZUMTHOR terms, by an “intention of theater” um momento da narrativa cuja estrutura
(ZUMTHOR, 2007). fragmentada lembra a dos espetáculos populares
Na vinheta de abertura da minissérie vê-se um nos quais predomina o princípio das “atrações”. A
palco com uma cortina se abrindo e em seguida a utilização de um cenário giratório foi, nesse caso,
imagem completa de um teatro de marionetes onde fundamental, possibilitando o estabelecimento de
figuras do artesanato nordestino se movimentam nexos entre o “espaço cenográfico”, o “espaço
num espaço composto por elementos do cotidiano, dramático” e o “espaço fílmico”.
da paisagem e da cultura sertaneja. Na segunda Levada ao ar pela Rede Globo em duas fases
temporada o mesmo palco se apresenta, porém suas no ano de 2005, a primeira com 8 capítulos em
figuras remetem ao ambiente da cidade grande com janeiro e a segunda com 5 capítulos em outubro, a
seus personagens, seus edifícios, seu teatro de minissérie é uma adaptação da obra de Carlos
variedades, feitos de pano, metal e papelão. Embora Alberto Soffredini, que se inspirou nas fábulas
situadas em ambientes diferentes, tanto a primeira coletadas por Silvio Romero, Câmara Cascudo e
quanto a segunda temporada da minissérie, nos faz Mário de Andrade para compor o enredo da história,
penetrar na história pela via do imaginário, da
fantasia; o palco, como indica a vinheta de abertura,
é o seu elemento central.
* O presente artigo é parte de uma pesquisa mais ampla realizada no
A vinheta é uma moldura da obra que busca acervo de literatura de cordel da Fundação Casa de Rui Barbosa entre
repetir, no campo diegético, a idéia de teatro 2006 e 2008 com bolsa concedida pelo convênio FAPERJ/ FCRB.
** Pesquisadora da FAPERJ, Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de
presente na cena de abertura. Há um diálogo entre Janeiro, Brasil

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programada inicialmente para ser um especial da Conceição (Juliana Carneiro da Cunha), antiga
comemorativo dos 30 anos da Globo. aliada nos momentos de aflição, e com a proteção
O projeto, que não chegou a ser concretizado do pássaro misterioso que a acompanha desde o
na ocasião, foi retomado, anos mais tarde, por Luiz início da jornada e que acaba tornando-se seu
Fernando Carvalho que sem poder contar com a Amado (Rodrigo Santoro).
parceria de Soffredini, morto em 2001, recorreu O amor pelo pássaro, que durante a noite se
ao dramaturgo Carlos Alberto Abreu que o ajudou metamorfoseia em homem, é a última experiência
a desenvolver a versão apresentada em 2005 para vivida por Maria que depois de libertar seu Amado
o aniversário de 40 anos da emissora. do cativeiro, retorna a condição de criança. A partir
A minissérie, seguindo a linha do trabalho daí ela reinicia o caminho de volta reencontrando
desenvolvido por Soffredini, recorre ao repertório as mesmas figuras pelas quais havia passado
das tradições orais do Nordeste para compor a anteriormente e chegando, finalmente, ao ponto
história de Maria (Carolina Oliveira), uma menina de partida, a sua casa, onde vê seu pai, sua mãe e
que após fugir da casa do pai (Osmar Prado) para seus irmãos trabalhando na roça normalmente,
escapar dos maus tratos da madrasta (Fernanda como se nada tivesse acontecido.
Montenegro) se vê perdida no mundo, defrontada A jornada de Maria é uma história que costura,
a surpresas, perigos e obstáculos. através das experiências vividas pela menina (em
Inseparável da chavinha dada, antes de morrer, seu sonho), fragmentos de várias outras histórias,
por sua mãe (Juliana Carneiro da Cunha), Maria de histórias antigas pertencentes ao repertório das
percorre um longo caminho; em busca das “franjas tradições orais do país.
do mar” ela atravessa o “país do sol a pino” onde Representando arquétipos do imaginário
se depara com os mais variados tipos de brasileiro e universal, os personagens da minissérie
experiência: a fome, sofrida por Zé Cangaia (Gero funcionam como elos de ligação entre o passado e
Camilo) que, diante das privações, se vê obrigado o presente, entre o mundo rural e a cidade grande,
a vender sua sombra ao diabo; a ganância entre as antigas tradições (registradas pelos
encarnada pelos executivos (Charles Fricks e folcloristas entre o final do século XIX e o início
Leandro Castilho) espancadores de cadáveres; a do século XX) e a cultura contemporânea. Foi com
exploração vivida pela menina carvoeira (Laura esse propósito, de estabelecer uma ponte entre os
Lobo) e pelas outras crianças trabalhadoras nas dois mundos, que os personagens (com outras
minas de carvão. roupagens) retornaram na segunda temporada da
Todas essas experiências lhe deixam marcas minissérie.
profundas, porém as figuras que as correspondem Ambientada na cidade grande, a segunda
desaparecem da mesma for ma que haviam temporada colocou em cena o mesmo elenco que
aparecido. A única que vai lhe acompanhar ao havia atuado na primeira temporada. Os atores
longo de toda a trajetória é o diabo Asmodeu (com exceção de Carolina Oliveira, que continuou
(Stênio Garcia) que tentando desviá-la do seu interpretando a mesma Maria que havia
caminho acaba roubando-lhe a infância. Maria interpretado na primeira temporada) encarnaram
adulta (Letícia Sabatella) não desiste, no entanto, personagens diferentes, porém com os mesmos
de sua busca. Encorajada pelos saltimbancos traços arquetípicos dos vividos anteriormente.
Quirino (Daniel de Oliveira) e Rosa (Inês Stênio Garcia, por exemplo, retornou como
Peixoto), que com sua trupe ambulante levam Asmodeu Cartola, o inescrupuloso proprietário do
alegria aos pequenos vilarejos por onde passam, teatro. Osmar Prado reapareceu na pele do Dr.
ela segue em frente contando com o apoio dos Copélius, o generoso dono da loja de brinquedos.
novos amigos, com o amparo de Nossa Senhora Letícia Sabatella voltou como Rosicler, a dançarina

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que despertou uma louca e impossível paixão no enredo e ao estado da personagem cujo caminhar
sonhador Dom Chico Chicote, vivido por Rodrigo se realiza (GARDIES, 1993, p. 78).
Santoro. Através desses novos personagens, a A terceira noção se liga mais diretamente à
trajetória de Maria é re-encenada, desta vez num cenografia e à atividade de recepção, ou seja, à
ambiente urbano, que, por sua vez, é perpassado capacidade do espectador preencher mentalmente
pelas mesmas referências presentes na os dados que não são passados materialmente pelo
representação anterior voltada para o mundo rural. filme. Uma posição em torno dessa questão foi dada
Com base no quadro, até aqui, delineado, por André Gardies em sua análise do filme “Le
julgamos oportuno, antes de darmos continuidade salaire de la peur” (1953) de Georges-Henri
à reflexão, definir o quadro conceitual que norteia Clouzot. Nesse filme, a relação entre a realidade
a análise proposta. latino-americana e a representação dessa realidade
Os três principais conceitos empregados se é sugerida através de um cenário que evoca
referem à questão do ESPAÇO: “espaço cênico” determinados objetos que seriam próprios do
(correspondente ao local de realização das ambiente representado. Dessa forma o diretor
filmagens e seus elementos cenográficos); “espaço apontou para um ponto comum a todos países
dramático” (referente ao enredo e aos recursos de latino-americanos sem a necessidade de se referir
representação utilizados para desenvolvê-lo); especificamente a nenhum:
“espaço fílmico” (operações de câmera, processos “O burro como meio de transporte, a calçada
de edição, etc). Os dois primeiros foram pensados não asfaltada e deteriorada, as roupas das pessoas
a partir da definição de Patrice Pavis (2007 p 132- na rua me dizem da pobreza do país. Um conjunto
136). O terceiro foi extraído da obra de André de traços me envia para o significado ‘pobreza’.
Gardies (1993). Do mesmo modo outros signos têm por significado
No que diz respeito à articulação entre os três comum o calor úmido: transpiração dos
níveis de espaço – cênico, dramático e fílmico – personagens, proteção contra o sol etc.”
outras noções serão ressaltadas. A primeira se refere (GARDIES, op.cit., p. 72, trad. da autora).
à questão do deslocamento, à jornada da Em relação à questão da TEATRALIDADE
personagem principal cuja caminhada, informando será nossa referência conceitual o verbete de
a construção do espaço, pode ser associada ao Patrice Pavis, segundo o qual: “teatralizar um
modo de composição das cenas de perseguição em acontecimento ou texto é interpretar cenicamente
filmes de ação ou suspense nas quais o fluxo usando cenas e atores para construir a situação. O
narrativo está condicionado a uma descontinuidade elemento visual da cena e a colocação em situação
espacial: “Quando você tem de seguir a trajetória dos discursos são as marcas da teatralização”
de uma ação através de vários espaços, começa a (PAVIS, 2007, p. 374).
ter a idéia de que cada plano é fragmento de um Esta definição é complementada pela
espaço ficcional maior; o espaço total da observação de Paul Zumthor que, citando Josette
perseguição.” (GUNNING, 1994, p. 118). Féral, fala de uma “intenção de teatro”:
A segunda noção diz respeito aos obstáculos A teatralidade parece ter surgido do saber do
encontrados pela personagem na realização de seu espectador, desde que ele foi infor mado da
percurso. Em relação a isso o caso de Maria, na intenção de teatro em sua direção. Este saber
minissérie analisada, e de Fabiano, no filme “Vidas modificou seu olhar, forçando-o a ver o espetacular
Secas” (1963) de Nelson Pereira dos Santos, se lá onde só havia até então o acontecimento. Ele
equivalem. Nos dois casos os obstáculos fazem transformou em ficção aquilo que parecia ressaltar
parte do enredo, da evolução da história na qual o do cotidiano, ele semiotizou o espaço, deslocou os
deslocamento espacial equivale às mudanças no signos que ele então pode ler diferentemente... A

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teatralidade aparece aqui como estando do lado e de vagar perdida a procura do mar, ela reencontra
do performer e de sua intenção firmada de teatro sua família; a segunda em que, depois de encontrar
mas uma intenção cujo segredo o espectador deve o mar e de ser engolida por um monstro, ela se vê
partilhar. (FÉRAL, apud ZUMTHOR, 2007, p. 41) sozinha na cidade grande e procura o caminho de
Sobre a noção de ATRAÇÕES, volta para casa.
recorreremos ao estudo de Tom Gunning sobre Em “Hoje é dia de Maria” a ênfase recai sobre
o cinema das origens. Referindo-se a esse cinema, o fantástico, o maravilhoso, o extraordinário. Aqui
o autor comenta: “os filmes eram breves, um as coordenadas de espaço tempo foram abolidas.
show de filmes era uma série de atrações curtas Maria empreende uma longa jornada, encontra
e não a criação de um todo ficcional”. A inúmeras pessoas, vive diversas experiências, perde
linguagem das atrações é abandonada com a a infância, torna-se adulta, conhece o amor,
progressiva adoção pelo cinema de um sofrimentos, perdas, volta a ser criança, atravessa
encadeamento narrativo. No entanto (como se diversos tempos e lugares, sem, contudo, se
observa em Méliès, por exemplo) “havia filmes deslocar no tempo ou no espaço. Própria da
usando a combinação de narração e atração” experiência do sonho, em que no fim tudo volta a
(GUNNING, 1994, p. 115-117). ser como era antes, a trajetória de Maria
Nos filmes de Georges Méliès, como observou desenvolve-se de uma maneira circular. Pode-se, a
Susan Sontag, há uma profunda relação entre o esse respeito, pensar nas narrativas da tradição oral
teatro e o cinema. A autora chama atenção para que acabam com todos os problemas resolvidos e
uma possível equivalência entre a montagem teatral o mundo voltando à sua antiga ordem[1].
e o processo de montagem dos filmes daquele A presença de um narrador (na voz de Laura
diretor, cujo resultado, revelado num tipo de Cardoso), repetindo em off a mesma história
espetáculo denominado de “atrações” destacaria mostrada no campo visual pelos diálogos e ações
o “artifício” sobre a forma realista de representação dos personagens, reforça essa idéia, ou seja, de que
(SONTAG, 1987, p. 108). há uma estrutura lendária (circular) presidindo a
A esse respeito são expressivas as experiências composição da minissérie. Essa idéia é retomada
de Eisenstein e de Maiakóvski. Nos dois casos a na segunda jornada quando vemos no final do
experiência com o universo das “atrações”, com último episódio que toda a história não passara de
as técnicas do teatro popular, transfere-se da prática um delírio da menina que, doente em sua cama, vê
teatral, onde atuaram inicialmente os dois diretores, a história contada por sua avó (Laura Cardoso)
para o cinema. (RIPELLINO, 1971). materializar-se em imagens, as mesmas que vemos
Definidos os conceitos, levantaremos alguns passar na tela e que, no fim das contas, constituem
pontos relativos ao modo de construção dos três o enredo da minissérie, o enredo que acom-
níveis de espaço (o “espaço cênico”, o “espaço panhamos ao longo dos cinco capítulos.
dramático” e o “espaço fílmico”) na minissérie Jornada iniciática, a história de Maria se
estudada. Nossa preocupação é compreender como desenvolve no espaço que atua como elemento de
estes “espaços” se articulam, ao mesmo tempo em obstáculo ou de favorecimento à personagem
que dialogam com as instâncias inspiradoras da (GARDIES, op.cit., p 78). Não se trata de uma
referida obra (o teatro popular e o repertório das simples ocupação do espaço cênico (normalmente
tradições orais). concebido apenas como o local onde a trama se
Um dos aspectos relativos a tal articulação diz desenvolve), mas de um tratamento metafórico do
respeito à evolução da história de Maria e ao espaço, ou seja, da tentativa de reproduzir no
avanço da personagem no espaço, em suas duas espaço cênico a idéia de busca que perpassa o
jornadas: a primeira em que, depois de fugir de casa espaço dramático.

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Há, portanto, uma proposta clara de grande influência na obra do diretor do chamado
articulação entre forma e conteúdo, entre a estética “cinema das origens”[2]. A técnica (operações da
da minissérie e o seu enredo, que se traduz, entre câmera, montagem) transpõe para a tela estruturas
outros aspectos, pela estrutura circular do palco e narrativas próprias do primeiro cinema, evocando
pelas sucessivas mudanças de cenário que o universo da cultura popular[3] por meio da
reproduzem visualmente os diferentes estágios da linguagem das atrações. Desse modo, a
trama, segundo observação de Lia Renha, “apropriação”[4] das tradições se processa não
responsável pela direção de arte da obra em pauta: como “citação”[5] (como é comum na televisão e
O caminho de Maria, que é o caminho da vida não raro no cinema), mas em termos “dialógicos”[6]
de todos que escolhem seus propósitos, vai pelo (não excluindo aí o diálogo com a tradição das
mundo; não fica trancafiado de forma cartesiana. imagens em movimento).
Quando vemos uma paisagem, a enxergamos em Fugindo ao encadeamento narrativo
360º. Quando se entra dentro desse domo, não se tradicional, rompendo com as noções
está dentro de um mundo recriado. Eu não convencionais de tempo e espaço, “Hoje é dia de
conseguiria contar essa história como eu sinto fora Maria”, por meio de uma concepção cenográfica
de um círculo; não vemos o mundo com quinas. incomum nos produtos televisivos, dos mais
(RENHA, 2005, p. 36-37) modernos recursos tecnológicos e de
Os dramas vividos pela heroína acompanham, procedimentos típicos da linguagem audiovisual,
como salientou Lia Renha, o seu deslocamento em como movimentos de câmera e operações de
busca das “franjas do mar”. Essa busca, iniciada montagem, dialoga com as manifestações da cultura
após a fuga de casa, será recortada pela figura do oral tradicional que operam segundo uma lógica
demônio Asmodeu com quem Maria irá se deparar não linear, como observou Paulo Vieira. Referindo-
inúmeras vezes ao longo de seu percurso. Sempre se à presença de romances, xácaras, vilanicos de
ajudada por alguma alma boa que encontra pelo inspiração marítima na peça “Viva a Nau
caminho, Maria consegue avançar e se manter firme Catarineta”, de Altimar Pimentel, o autor
em sua busca, apesar das tentativas de Asmodeu comenta:
de desviá-la de seu objetivo. Somente a simplicidade destas fontes de
Cada vivência de Maria, cada figura que ela origem popular faz compreender – e aceitar, sem
conhece ao longo de sua trajetória, representa uma maiores exigências quanto à construção da fábula
aventura à parte, um quadro com relativa – a passagem de uma ação à outra, da taverna à
autonomia em relação aos demais que formam o navegação, da navegação ao assalto à fortaleza de
todo da narrativa. Como no cinema de Georges onde se liberta a Saloia, daí à tempestade, sem que
Méliès vê-se aqui uma proposta de unidade em haja momentos de crescimento da ação, de
meio a uma estrutura fragmentada na qual cada estabelecimentos de pontos de ruptura que
atração visa captar, por meio da surpresa, do susto, conduzam à circunstância seguinte. (VIEIRA,
do riso, a atenção máxima do espectador 2000, p. 170)
(GUNNING, 1994). Trata-se, no caso, de um tipo A “mediação”[7] do teatro, que ajuda a
de dramaturgia inteiramente diferente da que promover a idéia de circularidade e de fragmentação
costuma caracterizar a programação ficcional da narrativa, se faz também presente na concepção
televisão brasileira. dramatúrgica. Através das técnicas, principalmente,
A composição e a montagem dos planos do teatro popular, “Hoje é dia de Maria” dialoga
reforçam essa concepção estética, de quadros, de com processos narrativos característicos das
atrações, muito comum no cinema de George manifestações orais tradicionais, baseadas,
Méliès e nas expressões populares tradicionais de fundamentalmente, nos gestos e na voz que na

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minissérie receberam um tratamento pode vir a se articular de maneira mais efetiva,
particularizado como se observa no making off da isto é, como expressão artística criadora e
obra onde, nas etapas de preparação dos atores, autônoma, e não como instância redutora de
verifica-se a preocupação do diretor com as universos culturais diversos. (RABETTI, 2000,
dimensões gestual e vocal. Elemento fundamental p. 7 e 8)
da trama, a música (com Villa Lobos e Pixinguinha A observação de Beti Rabetti a respeito do
dividindo a trilha sonora com maracatus, frevos e teatro popular (“como expressão artística criadora
cirandas), na maior parte das vezes, é entoada pelos e autônoma”) serve para pensarmos a obra aqui
próprios personagens em substituição aos diálogos, analisada em sua relação “de diferença e de
dentro de uma linha de representação fortemente distância” com a cultura popular o que, por sua
teatralizada. vez, pressupõe a capacidade de articular
Apesar das inúmeras referências às tradições “variâncias e invariâncias, que garantem a
(romances, mitos, lendas, fábulas cantigas) e ao permanência de um núcleo matricial fixo de
teatro popular (de variedades, de bonecos, de determinadas produções arcaicas, ao mesmo
marionetes, circo), a relação da obra com essas tempo que possibilitam um constante processo de
expressões não é de mera transposição de atualização, para adequação a transformações
elementos de um universo para o outro. Trata- históricas mais amplas”. (RABETTI, op.cit., p 18)
se, ao contrário, da busca de uma linguagem de
articulação entre expressões orais e audiovisuais, [1] A noção de “circularidade”, apresentada
feita através da música, do gestual, do uso de por Bakhtin em seu estudo sobre a obra de Rabelais,
marionetes, do figurino, da maquiagem, da envolve uma relação com o tempo que está na base
iluminação, do cenário e do recurso a acervos da cultura popular, das expressões do riso, do
técnicos próprios ao meio audiovisual com grotesco: “A sucessão das estações, a semeadura,
destaque para a técnica de montagem de atrações a concepção, a morte e o crescimento são os
característica do cinema das origens. Esses componentes dessa vida produtora. A noção
diferentes níveis de articulação não apenas implícita do tempo contida nessas antiqüíssimas
apontam para possibilidades estéticas novas no imagens é a noção de tempo cíclico da vida natural
meio audiovisual (contrapondo-se ao realismo, e biológica” (BAKHTIN, 1999, p. 22)
principalmente, televisivo) como também [2] Nos filmes de Méliès os vínculos com as
propõem formas alternativas de abordagem da atrações circenses e teatrais, talvez se expliquem
cultura popular pelas artes da representação nas pela experiência prévia do diretor nessas áreas.
quais prevalece, quase sempre, a opção pelo Também no caso de Soffredini, Abreu e Carvalho
típico, pelo característico, em detrimento da a atividade teatral é concomitante à experiência
técnica: dos autores nos meios audiovisuais. Além disso,
No que se refere à percepção de acervos os três expressam, em várias de suas obras, fortes
técnicos, talvez devêssemos suspender o vínculos com a cultura popular tradicional que é,
encantamento aflorado pela visão de uma em última análise, um campo onde as atrações
natureza característica, e, então, indagar por um costumam se fazer mais presentes.
sistema de códigos tão singulares quanto [3] A noção de cultura popular adotada na
longamente elaborados. E, acredito, será através presente análise parte das observações de Gerd
do cuidadoso exercício de compreensão e Bornheim que recusa a visão dicotômica promovida
recuperação destes códigos, e através de sua por determinados segmentos intelectuais em
precisa reelaboração em métodos e técnicas relação à chamada “cultura popular” cujas posturas
adequadas à arte da cena, que um teatro popular (positiva, face às tradições do mundo rural,

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consideradas como elevadas e autênticas, e não sobre o conteúdo das mesmas mas sobre as
negativa, face às manifestações culturais da suas for mas, suas estr uturas (associadas à
grande cidade, vistas pelo prisma da essência da expressão) que deveriam ser
massificação) revelam, segundo ele, uma total processadas para dar corpo à nova música
falta de atenção às metamorfoses do público nacionalista (TRAVASSOS, 2000, p. 36-38)
contemporâneo. O autor, que defende uma [6] O conceito de “dialogismo” de Bakhtin
posição menos idealista da cultura popular foi analisado por Robert Stam que chama atenção
tradicional, apresenta duas atitudes em relação para o aspecto relacional do discurso, ou seja,
ao uso do folclore no teatro: “Uma coisa é o para a “relação entre o texto e seus outros”. Na
folclore em estado bruto, que se repete tal como minissérie “Hoje é dia de Maria”, não se observa
surgiu no passado e que, bem ou mal, continua uma relação direta entre o contexto e o texto
se mantendo vivo. E outra bem diferente está que o informa; observa-se, entre estes, o que
naquilo que o teatro pode fazer com o folclore, Robert Stam denominou de dialogismo cultural
servindo-se dele como ponto de partida para a e textual (STAM, 1992, p. 72-78)
instauração de um teatro popular.” [7] O conceito de “mediação” foi
(BORNHEIM, 1983, p. 31-32) introduzido nos estudos de Comunicação e
[4] Sobre a noção de “apropriação” Roger Cultura por Jesús-Martin Barbero que buscou por
Chartier comenta: “Ela evita, inicialmente, meio deste pensar os trânsitos entre o popular
identificar os diferentes níveis culturais a partir tradicional, o erudito e o popular massivo
apenas da descrição dos objetos que lhes seriam ultrapassando, assim, as fronteiras normalmente
considerados próprios”. Nessa passagem o autor, estabelecidas entre as respectivas “áreas”. Desse
ao se referir às for mas de apropriação de modo a fórmula de McLuhan, de que o meio é a
elementos de uma tradição cultural por outra mensagem, passa por uma revisão, apontando
pertencente a um campo diferente, recusa a idéia para um processo no qual ganha corpo a noção
de homogeneidade que quase sempre leva a uma de mediações que pressupõe os intercâmbios
visão hierárquica da produção cultural entre as mais variadas formas de comunicação e
(CHARTIER, 2004, p. 12) manifestação cultural (BARBERO, 1997).
[5] Uma análise do processo de “citação”
de elementos da cultura popular por parte de Referências:
ar tistas er uditos foi feita por Elizabeth BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no
Travassos. A autora comenta sobre os Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo, Hucitec,
procedimentos adotados por representantes da 1999.
música nacionalista do século XIX (como BARBERO, Jesús-Martin. Dos meios às mediações: comunicação,
cultura e hegemonia. Rio de Janeiro, Ed. UFRJ, 1997.
Alberto Nepomuceno que inseriu um maxixe no
Prelúdio da ópera “O garatuja” e por Carlos BORNHEIM, Gerd. Teatro: A Cena Dividida. Porto Alegre,
LP&M, 1983.
Gomes que costumava introduzir temas
ameríndios em óperas com roupagens do belcanto CHARTIER, Roger. Leituras e leitores na França do Antigo
Regime. São Paulo, UNESP, 2004.
italiano) que recorriam à cultura popular em
FÉRAL, Josette. “La Théâtralité”, Poétique, 1988, p 348-50.
termos de citação. Esse recurso foi criticado por Apud. ZUMTHOR. Performance, recepção, leitura. Tradução
Mário de Andrade, defensor de um tratamento Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo, Cosac Naify,
das tradições populares cuja ênfase deveria recair 2007.

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GARDIES, André. Le récit filmique. Paris, Hachette, 1993, p
69-83.
GUNNING, Tom. “A grande novidade do cinema das
origens”. Entrevista concedida a XAVIER, Ismail,
MOREIRA, Roberto e RAMOS, Fernão. Revista Imagem,
Campinas, nº 2, ago., 1994, p 112-121.
PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo, Perspectiva,
2007.
RABETTI, Beti. “Memória e culturas do popular no teatro:
o típico e as técnicas” IN: O Percevejo, Revista de Teatro, Crítica e
Estética, Ano 8, n° 8, 2000, p 3-18.
RENHA, Lia. apud. COSTA, Ana Carolina. “Refinado e
popular: ‘Hoje é dia de Maria’ reaproveita matéria-prima para
retratar o mundo dos contos populares” IN: Luz & Cena.
Ano VII, nº 67, jan/fev 2005, p 36-37.
RIPELLINO, Ângelo Maria. Maiakovski e o teatro de vanguarda.
São Paulo, Perspectiva, 1971.
SONTAG, Susan Sontag “Teatro e filme” IN: A Vontade
Radical. São Paulo, Companhia das Letras, 1987.
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teoria literária à cultura de massa. São Paulo, Ática, 1992, p 72-78.
TRAVASSOS, Elizabeth. Modernismo e música brasileira. Rio de
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VIEIRA, Paulo. “O teatro do povo” IN: O Percevejo, Revista de
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