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Violência nas Escolas Públicas do Rio de Janeiro:

notas exploratórias sobre a autoridade docente e


as percepções da violência
Helena Bomeny
Maria Claudia Coelho
João Trajano Sento-Sé

Resumo
Este texto aborda as percepções da violência nas escolas públicas do Rio de Janeiro junto
a um segmento da comunidade escolar: os professores da rede pública. O foco está na
articulação entre as concepções da autoridade docente e a forma de perceber/conceituar
a violência. Quatro são os temas tratados: a – a atribuição da violência a um “outro”,
definido espacial e/ou temporalmente; b – um “deslizamento semântico” entre as noções
de “violência” e “indisciplina”; c – a negociação entre professores e pais/mães quanto à
responsabilidade pelos alunos; e d – a relação entre o dispositivo pedagógico da “aprovação
automática” e as percepções da violência. Os dados analisados são um conjunto de trinta
entrevistas em profundidade realizadas com professores da rede pública do Rio de Janeiro
em cerca de vinte escolas.
Palavras-chave: violência nas escolas; autoridade; percepções da violência

Abstract
This paper analyzes perceptions of violence in Rio de Janeiro’s public schools among
one specific group of these school communities: the teachers. Its focus lies on the way
conceptions of teacher’s authority relate to ways of conceiving/defining “violence”. It
addresses four main issues: a – the attribution of violence to “others”, spatially or temporally
defined; b – a “semantic alternation” between notions of “violence” and “indiscipline”; c –
the negotiation between teachers and parents concerning responsibility for the students;
and d – the relation between the pedagogical device called “automatic approval” and
these perceptions of violence. A set of thirty in-depth interviews constitutes the data;
these interviews were conducted with teachers who work in about twenty public schools
in Rio de Janeiro.
Key words: school violence; authority; perceptions of violence

*
Este artigo apresenta resultados obtidos no âmbito do projeto de pesquisa “A Violência nas Escolas do Rio
de Janeiro: dimensões do problema e percepção pela comunidade escolar”, desenvolvido no período de agosto
de 2006 a julho de 2008 pelos autores deste artigo com o apoio da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo
à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).

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Introdução

O tema da violência nas escolas tem despertado interesse entre especialistas de


campos distintos, e tem sido uma questão também tratada em diversos países, sobretudo a
partir do final dos anos 1980. Em parte, o interesse vem como decorrência do fenômeno
da massificação do ensino e da universalização do acesso à educação. No Brasil, a escola
pública que, historicamente, foi elitista, incluindo uma parcela da população muito menor
do que a que deveria incluir, passou, desde meados de 1990, a receber progressivamente
mais e mais crianças em idade escolar, a ponto de, em 1998, contar com 98% da população
atendida pela rede pública de ensino. O que a maioria dos países desenvolvidos resolveu
até a segunda década do século XX o Brasil dava sinais de resolver no início do novo
século. A equação desafia porque a inclusão em massa não significou a permanência,
sequer o êxito no desempenho dos educadores em educar e, dos alunos, em aprender. Mas
esta é outra questão.
Ao lado do macroprocesso de inclusão escolar, a sociedade brasileira assistiu, nas
últimas três décadas, à escalada da violência provocada, no parecer de especialistas como
Alba Zaluar, pelo crescimento do tráfico de drogas e pela ausência do Estado nas zonas
mais vulneráveis da habitação popular, reduto mais afetado pela concentração dos negócios
do narcotráfico. A extensão do problema chegou às escolas e encontrou na deterioração
da rede pública um ambiente propício à sua expansão. Com o apoio da UNESCO foi
realizada uma primeira pesquisa em nível nacional divulgada no Brasil, coordenada por
Miriam Abramovay, da Universidade Católica de Brasília, e por Maria das Graças Rua,
da Universidade de Brasília. O livro foi publicado com os resultados nacionais, e pode ser
encontrado em versão eletrônica na página da UNESCO do Brasil (Abramovay e Rua,
2002). Estava sinalizada uma entrada de pesquisa que acabou recebendo, mais e mais,
a contribuição de educadores, psicólogos e sociólogos. Seria a escola afetada de forma
comprometedora pela atmosfera de insegurança progressiva que se trata na imprensa, nos
fóruns especiais, em congressos e em centros de pesquisa? De que maneira os profissionais
da educação, responsáveis pelo atendimento e orientação escolar estariam sendo atingidos
pela crescente onda de violência noticiada em mídias distintas? Quanto sofre a escola em
sua rotina com a intervenção de questões agudas de insegurança? E, sobretudo, como
se manifesta a insegurança e/ou a violência no ambiente escolar, e de que maneira a elas
reagem os membros da comunidade ali atuantes?
São muitas as entradas que um tema desta envergadura viabiliza. O recorte e a
maneira de nos aproximarmos estiveram cativos do perfil dos profissionais envolvidos com
o projeto e com o investimento que cada um tem feito ao longo de suas vidas acadêmicas.
Assim, a concepção original do projeto combinou as áreas de sociologia da educação
(Helena Bomeny), estudos sobre violência urbana ( João Trajano Sento-Sé) e antropologia
das emoções (Maria Claudia Coelho). À conjugação destas três áreas temáticas de
investigação veio somar-se uma perspectiva interdisciplinar interna ao campo das ciências

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sociais, também ancorada na formação dos pesquisadores, e que nos permitiu reunir
um arcabouço conceitual oriundo da antropologia, da ciência política e da sociologia,
delineando, assim, como foco de nossa investigação as percepções da violência nas escolas
pelos professores.1
Com o objetivo de mapear o modo como a violência nas escolas públicas é percebida
pelos professores, elaboramos um roteiro para a realização de entrevistas em profundidade,
dividido em quatro blocos temáticos: trajetória pessoal do entrevistado, trajetória profissional,
características da escola em que leciona e violência nas escolas. O corpus aqui tratado consiste
em trinta entrevistas realizadas em cerca de vinte escolas públicas do Rio de Janeiro, escolhidas
segundo critérios que serão expostos e comentados em detalhe mais adiante.2
O foco deste artigo está na articulação entre a centralidade da noção de “autoridade”
para a representação da profissão docente e a percepção da violência escolar pelos professores.
Este tema perpassa os depoimentos, aparecendo de forma particularmente nítida em dois
aspectos das entrevistas: um “deslizamento semântico” entre as noções de “indisciplina” e
“violência”, evidenciado pela natureza dos relatos de episódios vivenciados, presenciados
ou conhecidos pelos entrevistados, e as queixas e comentários dos professores quanto a
uma suposta “omissão” das famílias dos alunos quanto à sua educação (entendida aqui,
conforme veremos, em um sentido mais amplo do que a mera escolarização).
O texto está estruturado em três partes. Na primeira, expomos a metodologia
empregada para a formação deste banco de entrevistas, incluindo critérios para a escolha das
escolas, dificuldades encontradas para a entrada no “campo”, e perfil dos entrevistados. Em
seguida, exploramos três pontos centrais recorrentes nos depoimentos: (a) a “alterização”
dos relatos sobre a violência nas escolas, ou seja, a onipresença de uma estratégia discursiva
que atribui esta violência sempre a um “outro”, definido ora espacialmente (outras escolas,
outros professores), ora temporalmente (outras épocas, outras gestões, ex-alunos); (b)
uma indefinição quanto à natureza mesma do fenômeno violência, que pode surgir
descrito como agressão física, como imposição de danos materiais, como ameaças ou
xingamentos, ou como desobediência a regras relativas à rotina do funcionamento escolar,
naquele processo a que nos referimos acima como um “deslizamento semântico” entre os
termos “violência” e “indisciplina”3; e (c) um “embate” descrito pelos professores como

1
O projeto original, tal como sugerido em seu título, previa a realização de um survey, bem como
a extensão da abordagem qualitativa a todos os segmentos que integram a chamada “comunidade
escolar” – professores, funcionários, pais e alunos. Em função de cortes orçamentários drásticos na
verba concedida, não foi possível realizar a parte quantitativa do projeto, sendo também necessário
reduzir o escopo da pesquisa qualitativa, restringindo, por opção da equipe, o universo pesquisado
aos professores.
2
As entrevistas foram realizadas pelos cientistas sociais Carlos Costa Rodrigues Luz, Fabíola Ma-
theus Cordeiro dos Santos e Raphael Bispo dos Santos, graduados pelo Departamento de Ciências
Sociais da UERJ, com base em roteiro elaborado conjuntamente pela equipe.
3
Esta imbricação entre “violência” e “indisciplina” vem sendo discutida por outros pesquisadores.
Comentamos alguns aspectos da produção nesta área na seção 2.2 deste trabalho.

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se dando entre corpo docente e responsáveis familiares quanto à responsabilidade pela
conduta do aluno, tanto em termos de seu desempenho acadêmico, quanto em termos
mais amplos de sua socialização. Na terceira e última seção, abordamos um tema inserido
pelos entrevistados em seus depoimentos de forma espontânea e recorrente, em um tom
quase sempre crítico: a aprovação automática.
A aprovação automática é um dispositivo pedagógico introduzido no ensino
público do Rio de Janeiro como desdobramento de uma recomendação contida na Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996. Pela lei magna da educação,
as escolas teriam liberdade de flexibilizar procedimentos de modo a preencher de forma
mais adequada os processos de ensino e aprendizagem. Um dos procedimentos mais
destacados dizia respeito ao aproveitamento dos estudantes com relação ao que era
ensinado. As pesquisas feitas em meados da década de 1980 indicavam o fracasso do sistema
educacional brasileiro em cumprir o que estava prescrito na Constituição. As crianças não
permaneciam nas escolas, era o argumento mais usualmente apresentado; evasão escolar
era a tradução mais explícita do fracasso da escola em prosseguir em sua missão educativa.
As pesquisas, no entanto, sinalizavam em outra direção: as crianças permaneciam nas
escolas, mas não ultrapassavam a primeira série. Os índices de reprovação acenderam a
luz amarela para problemas concentrados no interior das comunidades escolares. Se o
problema mais agudo era a repetência, o próprio sistema escolar entraria em questão. Era
preciso buscar, em seu interior, razões mais plausíveis para o fracasso.
Além de muitos outros fatores – infraestrutura precária, corpo docente despreparado,
falta de incentivos e condições de oferta de boa qualidade e atrativa para o público
estudantil – um dos que ficou em pauta foi exatamente o efeito, sobre as crianças, de
uma reprovação precoce, que eram de toda ordem: psicológicos, pedagógicos e sociais. As
crianças eram chamadas a se ausentarem dos colegas de turma e iniciarem suas atividades
em outro ambiente, com risco grande de novamente ficarem retidas. O sistema de ciclos
foi pensado para responder ou minimizar os efeitos descritos acima. E dentro dele, um dos
procedimentos adotados no município do Rio de Janeiro foi a aprovação automática, em
que os alunos seguiam até a quarta série do ensino fundamental sem que fossem retidos por
reprovação em disciplinas. Sua inserção espontânea e crítica pelos entrevistados foi o dado
que nos colocou na pista para a centralidade da questão da autoridade na compreensão
do modo como estes professores percebem o problema da violência nas escolas. É esta
reflexão que guia nossas considerações finais.

1. Notas metodológicas

Tradicionalmente celebrada por suas belezas naturais e um suposto espírito


alegre e hospitaleiro de sua população, a imagem da cidade do Rio de Janeiro passou a
ser associada, a partir dos anos 1980, por outras marcas não tão positivas. O crime, a
violência e o tráfico de drogas imprimiram na “cidade maravilhosa” o estigma do risco,

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da degradação do espaço público, da insegurança e do medo. Há razões de sobra para que
isso se tenha dado: há anos o Rio de Janeiro está entre as quatro capitais mais violentas do
país. Tomando o ano de 2005 como referência, o Rio de Janeiro apresentou uma taxa de
45,6 vítimas de homicídios por cem mil habitantes4. Desagregados por idade, os índices
são mais perturbadores. Mais de 60% das vítimas estavam na faixa entre quinze e 29 anos.
Na faixa dos quinze a dezenove, a taxa é de 107,6 mortos por cem mil habitantes (20,4%
do total)5. Esses números, que apresentam variações pequenas e pouco animadoras ao
longo dos anos, impuseram a questão da violência na agenda pública e no até então
refratário universo das pesquisas sociológicas. Como lidar com o recrudescimento da
violência criminal em geral? O que fazer para salvar essas gerações que, arrastadas por essa
dinâmica, têm uma parcela sua precocemente desperdiçada?
Nos debates travados nas duas últimas décadas a escola aparece em duas chaves. Na
primeira delas, seu mau funcionamento aparece como um dos fenômenos que legam
aos jovens cariocas (e esse é um dado que pode ser estendido ao país como um todo) o
desamparo e o despreparo que, em tese, os empurraria para o tráfico de drogas e outros
circuitos pautados pela violência que, em larga escala, acaba se configurando, em toda a sua
brutalidade, nas taxas de homicídio. Em segundo lugar, e em decorrência lógica da primeira
chave, a escola aparece como potencial instrumento para a reversão da tendência hoje em
curso. Um maior investimento na rede escolar, uma aproximação maior dela em relação
à comunidade a que atende (incluindo aí não somente os estudantes nela matriculados
regularmente, mas seus pais e responsáveis, vizinhos etc.) poderiam, aposta-se, contribuir
para a criação de redes de sociabilidade que trouxessem para a sociedade formal uma parte
da juventude que é, ano após ano, perdida para e por causa das redes criminais. Esta, vale
ressaltar, é apenas uma aposta; trata-se, contudo, de uma aposta plausível.
Nossa pesquisa situa-se um passo atrás do que foi apontado anteriormente. Dentre as
consequências das altas taxas de violência podemos observar uma espécie de contaminação
das instituições do Estado e o surgimento de uma espécie de cultura do medo no âmbito
da sociedade. A pergunta de base que fizemos ao propor a pesquisa foi em que medida
uma e outra colonizam o espaço escolar. De que modo a violência se manifesta nesse
espaço valorizado como crucial para sua reversão, e como os atores que dele fazem parte
percebem a violência em seu interior?
Como ocorre em todas as grandes metrópoles, a violência no Rio de Janeiro não
é distribuída equanimemente do ponto de vista ecológico. Desse modo, procuramos
entrevistar profissionais de ensino que atuam em escolas situadas em áreas mais
conflagradas e em outras com taxas baixas, tomando a distribuição de casos de homicídio

4
Nos últimos anos, as taxas do Rio de Janeiro só são mais baixas do que as de Vitória, capital do Estado do
Espírito Santo, e Recife, capital do Estado de Pernambuco.
5
Cálculos feitos pelo Laboratório de Análise da Violência da UERJ com base em dados do DATASUS –
Ministério da Saúde.

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como referência6. Queríamos, com isso, verificar uma possível regularidade de casos e tipos
de percepções segundo o contexto das escolas. A dificuldade de entrevistar profissionais,
frequentemente refratários a tratar do tema, e a não observância de variações significativas
nos discursos de profissionais segundo o critério definido nos levou, na segunda etapa
do trabalho de campo, a abdicar do critério previamente escolhido e buscar o contato
com profissionais que, em função de vínculos com pessoas próximas aos pesquisadores, se
dispusessem a tratar do tema da violência de forma mais desarmada. A escolha mostrou-
se acertada e profícua. Em lugar de resistências e silêncios, obtivemos depoimentos mais
eloquentes e esclarecedores. O silêncio, contudo, além de revelar um aspecto do tema
pesquisado (tocar na questão da violência é objeto de receio, trata-se de um tema tabu) é
revelador da importância de mais esforços serem envidados na direção tomada por nós.
Trinta foram os depoentes que compuseram o grupo de entrevistados (professores
da rede pública do Rio de Janeiro) sobre percepção da violência nas escolas onde
trabalham. Alguns comentários gerais podem ser úteis para identificar o perfil desse
conjunto: dos trinta computados, 21 são mulheres; estamos, portanto, diante de uma
tendência que ainda se manteve: 70% dos professores são do sexo feminino, o que é
um dado recorrente não apenas no Brasil, mas em toda a América Latina. E os dados
indicam algumas particularidades que vale a pena mencionar. O grupo de professores
está, majoritariamente, acima de quarenta anos de idade, e em expressiva maioria, atua no
magistério há mais de dez anos. Entre os nove professores homens, três têm mais de 50
anos, portanto, integram uma geração para a qual o magistério não era uma saída natural,
ou uma escolha preferencial, nem menos usual para o sexo masculino. Consideramos
interessante a proporção de um terço de homens entre os entrevistados. Surpreendeu-nos
esta amostra pela idade e pelo tempo de experiência no magistério.
Dos 23 entrevistados que declararam a idade, nenhum tem menos de quarenta anos,
sendo que dez ultrapassaram os cinquenta anos. Este é um dado importante que tem
merecido a atenção de especialistas em educação – profissionais envelhecidos em uma
profissão desafiada por demandas contemporâneas diante das quais os professores se
sentem despreparados e/ou resistentes, o que se materializa muitas vezes na dificuldade
de comunicação com novas gerações e pode ser um dos fatores da crise no exercício
da profissão. Novas tecnologias, novas linguagens instigantes aos interesses jovens
são estranhas aos que conduzem o processo educacional. Dinâmicas inteiramente
desconhecidas ou não praticadas destacam a defasagem entre professores e alunos com
reflexo sobre comunicação e interação das gerações. Estes têm sido pontos levantados nos
diagnósticos que cuidam da alta faixa etária do magistério, e que exprime uma tendência
mais geral por muitas razões, entre elas a pouca atratividade da profissão para as novas
gerações, a baixa competitividade da carreira frente às demais e, por último, e não menos
6
Tomamos como referência espacial as Áreas Integradas de Segurança Pública (AISPs), unidades utilizadas
pela Secretaria de Estado de Segurança Pública para a divisão do Estado do Rio de Janeiro e sistematização
dos dados no que lhe concerne.

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importante, o pouco retorno diante de muitas dificuldades na rotina do magistério.
A característica não competitiva da profissão interfere na pouca disputa entre jovens
por um lugar na carreira de magistério. Recentemente, com a aprovação pelo Ministério
da Educação de um piso salarial para todo o país na faixa dos R$ 900,00, reacendeu-se a
discussão nas mídias impressa e eletrônica sobre a profissão de magistério. A sinalização
importante de aumento do piso é ainda insuficiente para vencer muito das barreiras
encontradas no exercício da profissão. Os perfis dos entrevistados sinalizam fortemente
para pontos que são frequentemente valorizados quando o que está em questão é a análise
do desempenho docente.
O nosso conjunto de entrevistados é experiente tanto em idade (todos acima de
quarenta anos) quanto em tempo de magistério. Dos dez que declararam objetivamente
o tempo de exercício da profissão, todos ultrapassam dez anos, sendo que quatro deles
ultrapassaram vinte anos. Ainda que não tenhamos tido a declaração exata dos demais
sobre o tempo de magistério, os conteúdos das falas sinalizam para mais de dez anos.
Nenhum dos trinta entrevistados estava ou se declarava no início da carreira. Não
encontramos no grupo, e não tivemos indicação para entrevista de nenhum profissional
no início da carreira. Estamos diante de um conjunto de pessoas amadurecidas.
O termo maduro expressa bem o perfil dos entrevistados. São falas que indicam
experiências de vida de pessoas cuja origem social as obrigou ao ingresso no mundo do
trabalho. Os depoentes são oriundos de famílias de classe média, ou classe média baixa,
na maioria, ou mesmo de famílias operárias ou de baixa extração social. A origem familiar
mais próspera tangenciou o limite da carreira militar (dois casos) e de funcionário público
(um caso), um protético (profissional liberal), um advogado. Em nenhum desses casos,
todavia, houve qualquer menção a ambiente próspero economicamente. Estabilidade
profissional e não riqueza. Os demais estão entre operários, profissionais de contabilidade
(dois), jornalista, comerciante, caminhoneiro, técnico e bancário. As mães, em notável
maioria, compõem o grupo das “donas de casa”: ocupam-se das tarefas domésticas, não são
profissionalizadas, e possuem baixo grau de instrução. Nenhum depoimento se destacou
pela origem familiar de alta classe média ou de extratos superiores. E do conjunto de mães,
três apenas estão incluídas entre profissionais da educação, com reflexo declarado sobre
a escolha das filhas pela profissão docente. Este é outro ponto interessante para futuras
explorações: interferência da escolaridade dos pais sobre o desempenho dos filhos e sobre
a escolha das suas carreiras.
Por que estão na profissão? Esta é outra entrada interessante. Com exceção de duas
depoentes, todos os demais ingressaram “por acaso”. Ninguém pensava em ser professor,
com exceção de uma depoente, de 42 anos:

Desde pequenininha a gente brincava. E eu sempre gostei muito de criança, de


brincar no quadro e transmitir alguma coisa. Tentar transmitir alguma coisa pras
outras pessoas. [...] Tanto que eu fui fazer escola de formação normal. Depois, eu

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fiz faculdade de letras. E hoje eu estou numa outra área que não tem nada a ver com
isso, que são crianças portadoras de deficiências mentais. Já dou aula há 27 ou 28
anos, contando a primeira escola que eu trabalhei antes mesmo de fazer a formação
normal.

Este caso tem suas características próprias e esclarecedoras: tias paternas professoras,
mãe enfermeira, pai protético (profissional liberal). A conversa sobre a carreira fazia parte
do universo familiar. Este é um ponto interessante entre as falas: alguns indicam inspiração
originária do ambiente familiar, um gosto que veio da socialização familiar – uma prima,
uma tia, mãe, mas são poucos os depoimentos que sinalizam para esta frequência. Quando
aparece a relação, o depoimento confirma a importância da socialização para a escolha
ou a permanência na profissão por opção (como no caso de uma outra entrevistada que
lista entre as influências que a levaram à escolha pelo magistério o fato de frequentar, em
criança, a escola em que a mãe trabalhava).
Uma outra entrevistada credita à mãe a inspiração que a tomou pela carreira do
magistério. Mãe professora, artista plástica, teve influência decisiva na escolha da profissão
de magistério. Alguns chegam a mencionar que não pensaram nisso e que até resistiam
à ideia; quando começaram, no entanto, foram se envolvendo e se comprometendo a
ponto de permanecerem nem tanto por salários, mas por motivações outras, de natureza
não monetária. Se todos, ou a maioria esmagadora, entrou na profissão por acaso ou
contingência da vida laboral, nenhum deles declara intenção de abandonar por falta de
motivação ou declara arrependimento. É como se a experiência os tivesse embalado a ponto
de se perceberem “vocacionados” no curso da rotina profissional. Há um envolvimento
emocional na profissão que distingue tal trabalho de outros. As entrevistas dão indicação
dessa dimensão que pode ser incorporada ao perfil desse conjunto profissional.
Passemos, então, sem mais demora, ao que foi dito. Aí estão, também, algumas pistas
do que deixou de ser explicitado.

2. Autoridade e Percepções da Violência: três eixos de análise

Uma leitura do conjunto de entrevistas realizadas revela a recorrência de alguns temas


a partir dos quais podemos abstrair três questões principais: (a) a alocação da violência a
um “outro”, definido espacialmente (outra escola, por exemplo) ou temporalmente (em
algum momento passado); (b) um “deslizamento semântico” entre os temas da violência
e da indisciplina, que aparecem de modo intercambiável em muitos momentos dos
depoimentos; e (c) uma “negociação” quanto à responsabilidade pelos alunos, muitas
vezes estabelecendo uma relação de oposição entre pais/professores, ou entre família/
escola.

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2.1 - A Violência dos Outros7

Um tema que chama muito a atenção na leitura do conjunto de entrevistas é a


natureza evasiva das respostas dos entrevistados quando indagados sobre episódios de
violência ocorridos em ambiente escolar. São frequentes as negativas de que, naquela
escola em que trabalham – no sentido do vínculo profissional que os coloca na condição
de entrevistados, uma vez que vários trabalham em outras escolas –, ocorram situações
de violência. Entretanto, muitos relatam episódios que presenciaram, viveram ou de
que ouviram falar, mas sempre atribuindo-os a um “outro”, definido espacialmente ou
temporalmente – outra escola, outra época.
A alocação espacial da violência a um “outro” pode acontecer de diversas formas. A
mais evidente é o relato de episódios que ocorreram em outras escolas. Um exemplo pode
ser visto no trecho abaixo, em que, após comentar de forma evasiva sobre a possibilidade
de ocorrência de brigas entre alunos, a entrevistada afirma:

Você falou que sempre tem esses problemas de brigas, né? De alunos... mas você
consegue lembrar de alguma estória marcante de violência?
Não... porque nada que tenha acontecido assim...
Ou que tenha ouvido falar... de um outro colégio...
Bom, de um outro colégio. Há pouco tempo... há pouco tempo, não... isso já tem
um ano. Na (outro bairro)... professora saiu de sala, você sabe disso?
Não sei...
A professora saiu de sala, não sei por qual motivo, o garoto atirou no outro
com uma arma. Atirou no outro. Pra você ver, isso aí a gente sabe de alguns
colégios que acontecem. Alunos que entram armados, que a gente só vai saber
disso depois...

Um segundo exemplo nítido desta alocação da violência a uma outra escola


aparece também no relato abaixo:

Problema de que? Alguém que vendia?


Não. Alguém tinha, sei lá, cheirinho da loló, na sala de aula. Aí o que acontece?
Abateu isso numa professora, e a professora foi na direção e falou. Aí aciona a
equipe. Vai o (Fulano) “olha presta a atenção para que não aconteça de novo.
Mas aí o que é que nós vamos fazer com essa turma? Monta estratégia? Não
monta? Isso pode ser dito, isso não pode ser dito”. Terminamos o ano, sem
7
Nos trechos citados das entrevistas, as frases em itálico são as perguntas do entrevistador. Eventuais inserções
entre parênteses também em itálico são supressões de dados que poderiam identificar a escola, o entrevistado
ou outra pessoa, e que foram então substituídos por expressões genéricas tais como “Fulano” ou “outro bairro”,
preservando, assim, o sentido da citação sem permitir identificações nominais de pessoas, escolas ou locais.

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problemas. Foi atuado, esse foco foi desfeito. Agora, esse foi o único caso, que
eu me lembre, de tóxico.
Mas e em outras escolas? Você já ouviu falar?
Ah, sim. Os relatos que nós temos são de atrocidades, de... o que eu falei, é?
Galeras? Não. Os comandos. De você..., são dois turnos, né? De alojar um grupo
de alunos de manhã porque não podem estar com o grupo da tarde. Da mesma
escola. De todo dia você colocar porta e, no dia seguinte, não ter mais porta.

Um terceiro depoimento é também muito eloquente:

Você acha que isso acaba dificultando a aprendizagem?


A violência? A violência está crescendo nas escolas assim claramente. É claro. É
muito claro.
Aqui na (escola da entrevistada)?
Ainda não. Graças a Deus aqui nós ainda temos um projeto de trabalho. Nós
conseguimos cumprir esse projeto. Os alunos acompanham... porque nós ainda
temos assim... essa escola ainda é uma escola de bairro.

Uma outra estratégia de “alterização” espacial da violência é atribuí-la a outra escola na


qual o entrevistado também atua profissionalmente, mas que é distinta daquela a respeito
da qual se dá a entrevista. No caso abaixo, além de ser outra escola, não é municipal, mas
estadual e noturna. O trecho está em negrito:

Você chegou a comentar essa coisa da violência. E eu acho que isto está bem presente
na vida de qualquer um. Aqui ou lá, você tem alguma estória, alguma experiência
nessa área que você tenha vivenciado, que tenha te marcado?
Tenho... na minha escola mesmo aconteceu...
Lá ou aqui?
Lá! Aqui não! Lá na escola estadual, noturna. É... um aluno – eu não vou
nem dizer o nome porque não convém – ele estava na escola... eram dois irmãos.
Um deles envolvido com essa questão do tráfico, das drogas e o outro, não. Mas
só que eles viviam juntos, aquela questão de estar ali, acompanhando. E os dois
estavam na escola nesse dia. E alguém entrou na escola procurando um desses
irmãos, o que estava envolvido com as drogas.
Alguém também envolvido?
Alguém também envolvido, mas pra pegar o aluno e... acabar com ele. Entrou na
escola. E esse irmão ficou sabendo antes de ele chegar à turma... porque eles não
eram da mesma turma. Então um irmão era do primeiro andar e o outro lá no
terceiro, o tal que estava sendo procurado. Então, ele entrou na turma dele e disse
assim... parou na porta e ninguém assim, fez barreira para que ele não subisse. E

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ele subiu mesmo. Entrou pela escola e foi direto numa turma que ele começou...
ele ia fazer a busca em todas as salas. Ele chegou ali, abriu a porta, olhou – ele não
perguntou nada – ele olhou, só que nesse, entendeu? O irmão que estava na sala
reconheceu a pessoa. E quando ele foi para a outra sala, ele saiu, conseguiu sair,
correu ao terceiro andar, avisou a pessoa e eles conseguiram fazer uma pequena
fuga da escola. Só que esse rapaz viu que eles estavam fugindo e aí atirou nele,
não no pátio, foi assim... porque a escola tem um portão fechado. Então, fora
desse portão, mas ainda dentro desse espaço escolar. Aí atirou nesse menino, no
pé desse menino. Ele não conseguiu matá-lo, mas a intenção era essa. Foi aquela
correria, aquela loucura. Esse menino ficou afastado por um bom tempo, o que
sofreu o ataque. E nunca mais retornou. E a gente nem sabe se está vivo, se está
morto. A gente não tem a menor notícia. Tanto ele quanto o irmão... sumiram.
Ele não estava envolvido, mas ele tentou salvar o irmão, com certeza ele ia sofrer
uma represália por conta disso. Então, essa foi uma experiência que nós vivemos
ali que foi uma violência muito grande. Que até você saber que acontece, você
ouve falar que o fulano está envolvido, que aquele se meteu ali, que usa droga...
ouvir falar é uma coisa. Agora, você assistir a uma cena dessas...

Na sequência deste relato, a entrevistada faz uma observação que pode ser tomada
como uma síntese deste esforço em caracterizar a violência como algo externo à escola
específica sobre a qual se fala:

E isso atrapalha, atrapalha... e até porque os professores têm um certo medo.


Não vou te dizer que vou para lá tranquila (...) A violência, ela não chega lá
dentro. Eu nunca vi ali, aquela coisa da violência dentro da escola. Eu só assisti
aquela cena, assim, no meio de outro... que veio dali, não é um de nós. O que
levou o tiro era.

O ponto central destes discursos que definem a violência como “do outro” surge,
aqui, com especial clareza: a vítima era um aluno, mas o agressor é textualmente descrito
como não sendo um de nós.
Esta definição espacial das fronteiras entre “nós” e “eles” aparece também na atenção
dada a uma demarcação “minimalista” do espaço escolar, com a ênfase em onde as pessoas
envolvidas com situações descritas como de violência encontravam-se em relação à porta
da escola. Este dado chamou-nos a atenção devido à recorrência com que um dado que,
à primeira vista, pode soar como uma preocupação excessiva com detalhes irrelevantes,
mas que merece, ainda assim, a atenção dos entrevistados, o que pode ser interpretado à
luz deste esforço maior em caracterizar a violência como sendo do outro porque se detém
diante dos limites do espaço físico escolar.

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[...] então, por exemplo, eu nunca vi uma arma dentro da escola. E olha que
a escola é grande. Atende a uma clientela que às vezes a gente sabe que está
envolvida com o tráfico. Às vezes as pessoas que estão no portão, ex-alunos ou
não, podem estar envolvidos com o tráfico.

Só que esse rapaz viu que eles estavam fugindo e aí atirou nele, não no pátio, foi
assim... porque a escola tem um portão fechado. Então fora desse portão, mas
ainda dentro desse espaço escolar.8

Nós temos o problema de que se nós deixarmos os portões abertos, vão entrar os
alunos e os que não são alunos.

Aqui era assim. Foi feita uma festa. Não sei o que é que houve... brigaram e teve
um tiroteio naquele portão dos fundos, ali onde tem a quadra.

E você acha que os professores vêm para cá porque enfrentam esse tipo de problema
nos outros colégios em que dão aulas?
Ah, com certeza. A gente tem uma professora nossa que relatou um caso em
uma escola de (outro bairro) em que o aluno deu um tiro no portão.
Um tiro no portão... conta aí.
Ah, ficou com raiva da professora, brigou lá com uma professora, enfim... ficou
com raiva, foi em casa, pegou uma arma e atirou no portão.

Este “nós”, contudo, não se define apenas espacialmente. A separação se dá também no


tempo – épocas passadas da mesma escola, gestões anteriores, ou até mesmo ex-alunos.
Os depoimentos são recorrentes em afirmar que a violência, naquela escola específica
do entrevistado, não é coisa do momento presente. Embora sejam categóricos ao dizerem
ser a violência algo de “ontem”, não “datam”, contudo, com precisão essa época. A violência
é, assim, percebida como fenômeno de um passado de cronologia vaga. Dois exemplos:

Assim, o que mais a gente tem visto no jornal, que sai hoje em dia, é a violência.
Você acha que a (escola do entrevistado) tem esses problemas?
Já tivemos uns casos isolados no passado, mas que, graças a Deus a gente... até o
entorno está melhor.
Casos... mas como é que foi?
8
Esta citação poderia, a princípio, parecer contrariar o que afirmamos acima sobre a violência ser descrita
como algo que ocorre fora do espaço físico escolar, uma vez que a entrevistada explicitamente afirma que o tiro
foi dado dentro do espaço escolar. Entretanto, optamos por inseri-la aqui por entender que, em seu detalhis-
mo (“não no pátio, fora do portão, mas dentro do espaço”), este fragmento apresenta o mesmo “espírito” dos
demais, no sentido da preocupação em precisar com minúcias onde a violência ocorre em relação ao espaço
físico escolar.

81
Casos não. No entorno, tivemos alguns casos que ficávamos preocupados com
que o aluno saia até... mas...

E você falou... a gente estava falando essa questão da violência nos outros colégios.
Você vê esse problema aqui na (escola do entrevistado)?
Não, não. Não que eu consiga perceber. A gente tem aqui, hoje, uma clientela
que não tem esse tipo de problema. Alguns anos atrás, eu não estava aqui,
eu escuto contar pelos próprios colegas que já estavam aqui, que havia esses
conflitos de facções. Crianças que são do (nome de comunidade) e outras que são
da (nome de comunidade) e não podiam... hoje nós não vemos esse tipo de coisa
não. Hoje nós temos uma clientela única, quer dizer, única no sentido de não ter
diferenças, de não ter brigas entre eles porque um mora numa comunidade e o
outro numa outra.
É briga de quê? De porrada?
De tudo. De ter que chamar a polícia. De ter tiroteio na porta da escola. Há uns
cinco anos atrás era mais ou menos assim.

Eventualmente, contudo, causas específicas para essa transformação são apontadas,


como uma mudança de gestão, a presença da Guarda Municipal ou a saída da escola de um
aluno filho de um traficante conhecido:

Mas de quê? De drogas?


É. Mas agora, de uns tempos pra cá, melhorou. Com a gestão do (diretor), a
disciplina na escola melhorou e o entorno também. Agora com a Guarda
Municipal, nem se fala. Ela já está aqui há quatro anos.
Mas eram o que? Vendas?
É, usavam, né? É mas aí é capaz de... a gente não vê claramente isso. Mas a gente
sabe. Mas, aí, o que é que acontece? A gente corre o risco de nossos alunos
acabarem usando. Mas isso já há algum tempo não ouço falar. Na época do filho
do (traficante conhecido), ficavam esperando os alunos justamente pra isso, pra
seduzir.

A estratégia mais recorrente é, contudo, definir esse passado em relação com o


pertencimento do aluno à escola: são “ex-alunos” os responsáveis pela violência. Alguns
exemplos:

Às vezes, porque, algum aluno que estuda aqui conhece e fala ou tem uma
namorada, que tá ligado à... então a gente conhece ex-alunos que às vezes vêm,
diz para a direção, então a direção...

82
[...] mas existe violência em escola, existe. Em muitas outras escolas, até próximas
daqui... [...] aí uma mãe denunciou e dois dias depois o carro de um professor
foi roubado. Ela tem essa liberdade de chegar ali na frente e falar “poxa, meus
professores não podem mais nem estacionar o carro aqui na frente porque
roubam?”. Meia hora depois apareceu o carro: “olha, tá em tal lugar, mas a gente
não sabia que era de professor. Galera nova na escola”.
Ela conhece o pessoal?
(Balança a cabeça). Ela sabe quem é. Às vezes até são ex-alunos.

Aí os professores tiveram que correr, se esconder. Mas aí, graças a Deus... e muito
dos ex-alunos, né, eram traficantes e alguns já morreram. A gente acaba sabendo
por notícias, um ou outro fala, né? É isso.

Você já chegou a ter casos de alunos que se envolveram?


Não, a gente saber assim, não. Teve um menino aqui na escola [...] que a gente
desconfiava. Não tinha uma certeza. Mas, aí, ele saiu naquele ano, era só a oitava,
ele chegou na oitava [...].

Este conjunto de fragmentos citados compartilha, assim, um primeiro traço


fundamental: a violência nunca é do aqui e agora, mas sempre atribuída a um outro, espacial
ou temporalmente, definido. Este traço pode ser interpretado de várias maneiras: a primeira
delas seria entendê-la como uma estratégia consciente determinada por constrangimentos
institucionais, ou seja, pelo receio de abordar explicitamente um assunto delicado para o
funcionamento da escola. Pensado desta maneira, o ato de atribuir a violência a um outro
que é da mesma natureza daquele que fala – outros professores de outras épocas em outras
escolas estiveram em contato com outros alunos que protagonizaram situações entendidas
como violentas – é uma forma de, ao mesmo tempo, negar e reconhecer sua existência,
conciliando assim uma necessidade/desejo de falar sobre o assunto e, ao mesmo tempo,
preservar a si mesmos e à instituição em que trabalham.
Ainda seguindo essa linha interpretativa, as vocações institucional e profissional
estariam preservadas. Como vimos anteriormente, a natureza do trabalho do professor é
repetidamente associada a categorias que lhe conferem uma aura especial, ascética, quase
religiosa. O professor seria uma espécie singular de profissional que realizaria seu trabalho
com desvelo e dedicação, a despeito dos baixos salários e das dificuldades implicadas no
exercício da profissão. O professor é uma espécie de “vocacionado”. A escola seria o espaço
em que seu trabalho é realizado, alimentando-se da vocação (expressão recorrentemente
usada pelos professores para dar conta de sua escolha) dos profissionais ali envolvidos, da
sua devoção, da boa organização administrativa, tornada possível invariavelmente pelas
qualidades pessoais das equipes pedagógica e de direção. Embora aparentemente óbvia,
a linha interpretativa que aponta para a preservação consciente da instituição em que o

83
professor atua não deve ser desconsiderada. Afinal, as escolas em que atuam são descritas
pelos entrevistados como espaços que funcionam a contento, a despeito das dificuldades
estruturais enfrentadas. A ocorrência de episódios de violência poderia funcionar, em sua
percepção, como máculas, contraexemplos da excelência de seu bom funcionamento.
Uma segunda interpretação seria atribuir a esse discurso um estatuto diverso
daquele da estratégia consciente, inserindo-o, ao invés, no registro de um recurso de
elaboração simbólica da violência: a “alterização”, conforme apontou, entre outros autores,
Caldeira (2000), ao examinar os discursos sobre a violência entre moradores da cidade de
São Paulo.
Nesse tipo de mecanismo, fartamente percebido em estudos sobre discursos acerca
da violência, a alterização funciona como uma espécie de cordão sanitário simbólico.
A violência estaria associada à desordem, ao caos, do mesmo modo que ao sujo, ao
impuro. Essa linha interpretativa remete nosso próprio campo a outros que já podem ser
considerados clássicos no estudo da violência, como aqueles dedicados a meninos de rua
(Silva e Milito, 1995), às classes perigosas (Coimbra, 2001), ou mesmo a agentes do Estado
cujo trabalho os coloca diretamente em contato com as populações marginais, como os
agentes penitenciários (Coelho, 1987) ou os policiais ((Bittner, 2006). A alterização da
violência, nesses casos, decorre de uma percepção difusa, mas fortemente estruturante,
do risco de contaminação implicado no contato com a violência, assim como com os
personagens identificados como seus agentes preferenciais. O mero contato com um ou
outro (a situação de violência ou seus supostos atores) arrastaria a todos, por efeito de
contágio, para o mesmo ciclo imprevisível, fora de controle, sujo, feio e ameaçador que
caracteriza aquilo a que damos, de modo por vezes indiscriminado, o nome de violência;
tornaria-os pares de infortúnio e perdição.
Importante frisar que a primeira e a segunda linhas de interpretação aqui sugeridas
não são de modo algum incompatíveis, ou autoexcludentes. Assim como os muros da
escola funcionam, em alguma medida, como recursos de isolamento do espaço escolar do
mundo precário e ameaçador que vigora em seu exterior (como os muros dos condomínios
paulistanos descritos por Caldeira), a distância espacial e temporal também funciona
simbolicamente como isolamento do universo contaminado daqueles que sofreram o
contágio fatal.
Vale notar que tais estratégias discursivas ocorrem mesmo quando casos entendidos
como violentos são admitidos. Isso de dá pelo modo de narração que os isola no tempo
ou no espaço. É o que ocorre na descrição minuciosa do local em que se deu um dado
episódio, ou na ressalva de que uma outra ocorrência se dera à noite (a noite, esse marco
temporal habitado por personagens sombrios, perturbadores, irresolutos).
Uma terceira forma de pensarmos essa “alterização” seria colocá-la em relação com
um outro fenômeno presente nos depoimentos: uma certa dificuldade em “nomear”
eventos ocorridos no ambiente escolar como sendo “violentos”, ou, colocando de outro
modo, uma imprecisão quanto à definição de “violência” neste ambiente. O relato abaixo

84
é especialmente ilustrativo deste mecanismo:

Você já sofreu algum tipo de ameaça, uma briga com aluno?


Não. Até já, mas o aluno depois até se desculpou. Estava meio..., sabe?
Drogado?
É.
O que aconteceu?
Ele levantou, começou a gritar e nem sabia porque estava gritando. Nem eu
sabia porque ele estava gritando. Depois que tinha esclarecido, pediu desculpas.
Sabe quando você acha que a pessoa falou um negócio e (incompreensível) não
falou. Que falaram para ele que falou. Mas depois veio a mãe dele falar. E ele
já tinha vindo fugido de outra escola. Não tinha nem três meses de escola. Ele
saiu de uma escola no (bairro) para cá e estava envolvido com drogas. Em casa
ele havia tentado bater na mãe. Só que a mãe esconde. Por que? Porque ela tem
medo de que a escola exclua o filho dela. Porque, na verdade, se ela tivesse falado,
a escola poderia ter encaminhado o cara para tentar solucionar o problema dela.
Ou por um psicólogo, ou sei lá, por uma clínica de dependentes químicos, já
que ele era menor. E a coisa explodiu assim. Só veio à tona por conta disso. E
ela perdeu o domínio mesmo, porque ele saiu da escola, não quis mais ficar na
escola, por pressão de ninguém... ele nem dormia mais em casa direito. E hoje
ele perambula por aí. Eu acho que ele tinha 16 anos para 17. Era menor de idade.
Estava na sétima.

Embora possamos reconhecer nesse trecho alguns traços já comentados antes – o


rapaz veio “fugido de outra escola”, estava há apenas “três meses” ali –, o interesse maior
deste depoimento está na hesitação inicial da entrevistada. Indagada diretamente se já havia
sido ameaçada por algum aluno, ela primeiro diz que não, em seguida diz que sim, para
então “concluir” alegando que o aluno depois se desculpara, prosseguindo então com uma
série de explicações que de certa forma “inocentam” o aluno da agressão a ela endereçada:
ele estava “drogado”, “não sabia porque estava gritando”, sua mãe escondera sua história
escolar e familiar por medo de que ele fosse excluído, com isso privando-o de formas de
ajuda que poderiam ter solucionado seu suposto problema (clínicas, psicólogos).
A questão central aqui parece ser um esforço de “ressemantização” da noção de
“violência”: qual a lógica implícita em um relato no qual desculpas posteriores a uma agressão
parecem descaracterizá-la enquanto tal? Ou seja: se o aluno, após agredi-la verbalmente,
em seguida se desculpou, isso faz com que a situação não possa ser inequivocamente
classificada como “violenta”? O ponto-chave, que nos conduz ao próximo eixo analítico
que perpassa o banco de entrevistas formado parece ser um “deslizamento semântico” entre
as noções de “violência” e “indisciplina”, que surgem muitas vezes de forma intercambiável
na fala dos entrevistados. “Violenta” em um primeiro momento, a atitude do aluno pode

85
ser reclassificada como “indisciplinada” quando ele se desculpa, reconhecendo, neste
movimento, a “autoridade” do professor e permitindo assim uma redefinição do evento.
Este é o ponto que exploraremos na próxima seção.9

2.2 – Violência versus Indisciplina

Você disse que a (escola da entrevistada) não tem esses problemas de violência. Mas
tem a Guarda Municipal aqui. Como é que é isso?
A gente cedeu o espaço para a Guarda. Pô, a Guarda dá a maior força. Mas eu te
falo da violência, eu te falo também da (outra escola). A (outra escola) não tem
Guarda Municipal lá dentro. E as brigas que acontecem, são brigas normais.
“Você pegou o meu boné e bateu na minha cabeça”? Não são violências
pesadas. A escola, quando ela é administrada de uma maneira a evitar esse tipo
de conflito, ela realmente funciona.

A expressão “violência pesada” sugere a existência de um tipo de evento que,


embora vizinho da “violência”, seria “leve”, não se encaixando plenamente
naquela rubrica. Paradoxalmente, esta afirmação surge na sequência de uma
exposição sobre a importância da Guarda Municipal na inibição da violência na
escola da entrevistada. A GM é representada como um fator ao mesmo tempo
importante e desnecessário no controle da violência, porque na outra escola
não há “violência pesada”, mesmo sem a presença da Guarda. O recurso a essa
expressão apresenta bem o esforço dos entrevistados em qualificar a violência,
muitas vezes entrelaçando-a com o tema da indisciplina a ponto de torná-las
indistintas.
Este deslizamento entre “violência” e “indisciplina” tem como mediador
principal o tema do “respeito”. A “falta de respeito” é apontada por vários
entrevistados como uma mudança na atitude dos alunos que responderia pelo
surgimento de episódios de indisciplina/violência:

Você acha que mudou, de uma maneira geral? As escolas, os alunos, o colégio...
houve alguma mudança desde quando você entrou até hoje?
Mudou o respeito. O aluno hoje está..., não vem uma palavra, não sei. Ele está
mais ousado, ele te enfrenta mais, ele briga do nada. Agora, mudou também o
relacionamento com os professores. A gente está mais próximo do aluno. Eu
lembro o seguinte, a gente é o orientador dos alunos. Não é o dono do saber.
9
Esta relação não é necessariamente da ordem de uma equiparação inconsciente entre as duas ordens de fenô-
menos no discurso dos entrevistados, podendo aparecer explicitada em sua fala, como no seguinte depoimen-
to: “A escola que não é disciplinada... aí tem uma série de discussões. Se a indisciplina é um tipo de violência
ou ela é uma manifestação do cotidiano escolar...”.

86
Mas mudou muito, mudou o relacionamento. [...]
Você lembra de alguma história, com você ou com outra pessoa, disso, de falta de
respeito?
Olha, eu não posso nem falar porque eu tenho, assim, um jeito de lidar com
eles. Eu não grito, eu não faço uma ameaça de alguma coisa que eu não vou
fazer, entendeu? Agora, se disser que vou tirar um aluno de sala, com certeza ele
sai de sala. Eu lembro de que quando eu fiquei com uma turma de 8ª série – a
professora não veio e fui lá passar um trabalhinho que ela pediu – aí um lá eu
falei assim “você só tem duas opções: ou você participar ou sair”. [inaudível]
tirar de sala, chamar o responsável... aí eu tenho que seguir, né? Agora, eu não
tenho nenhum problema com aluno. Mas eu sei de professor que já levou na
cara, isso acontece.
Brigando com o aluno?
Não, de chegar e desrespeitar mesmo. De xingar, de o professor chamar a atenção
e o aluno sair xingando. Um pouco disso...
Você acha que isso mudou muito então?
Eles estão mais ousados, eles enfrentam mais os professores. Antes eles falavam
escondido. Agora eu não posso te dizer onde é que está, o que aconteceu, são
tantas coisas. Se tá melhor ou não eu acho que também não posso dizer. Antes
era tudo mais tradicional, hoje... [...]

Eu vejo assim: no primeiro dia de aula é o dia das questões. Vamos acertar o ano
inteiro agora. Eu coloco o que gosto, o que não gosto, a questão do respeito,
da conversa durante a explicação. Eu peço que eles não tenham vergonha de
perguntar nada porque se estão todos ali no mesmo nível, com certeza a sua
dúvida será a mesma do colega. Então, não tenham vergonha de perguntar. Não
tenham medo, mas só não perguntem durante a explicação, senão me atrapalha
porque meu chip aqui – eu brinco com eles – que meu chip aqui tá ligado e se
sair daquela linha eu erro tudo. Até para deixar eles, assim, um pouco mais à
vontade. Então, eu não tenho problemas com eles não. Na questão da disciplina,
tem uns mais saidinhos e tem outros que não. A questão é a que eu digo.
Quando eles gostam de você, você conversa com eles na sala, eles vão fazer de
tudo para te agradar. Se realmente alguém estiver saindo da linha... não espero
todos santos na aula, mentira. Eles não vão ficar todos quietinhos. Tem sempre
um ou outro que fala mais alto, que faz uma brincadeira. Aí, você já chama a
atenção, fica quieto ali. Porque se ele não está gostando do professor, não tem
aquela afinidade, ele vai seguir adiante com a brincadeira, vai acabar... aí quem
sofre é ele. Aí o professor fica irritado, coloca para fora. Então a questão é de
você tentar ser amiga desse aluno... também você não vai deixar... ser amiga, você
também não pode deixar isso ser muito paternalista. “Ah, benzinho. Está não vai

87
fazer o trabalho? Ai que bonito”. Não, não é isso. Você tem que deixar ele bem à
vontade para perguntar, mas tem que cobrar dele. “Você fez isso, não fez?”, não
é para ser tão paternalista assim.

Na (comunidade) a gente tinha uma subqualidade de vida, falta de saneamento


básico, não tinha calçamento, mas tinha também o problema da violência. Já
tinha os comandos, já tinha a marginalidade mandando em determinados...
eram determinados por territórios, cada território era um bandido diferente
que comandava. Então, lá a gente tinha esse tipo de entrada para desenvolver o
trabalho. Mas naquela época a escola era muito respeitada até pelos marginais.
Hoje em dia eu acho que não seja mais desse jeito.
Por que você acha isso?
Porque hoje em dia não respeitam mais nada, não é? Acho que não respeitam
mais nada. A gente tinha uma pobreza muito grande, as crianças eram carentes
realmente, mas de tudo, até de atenção e carinho. Muitos pais saíam para
trabalhar de madrugada e quando chegavam eles já estavam dormindo. Então,
quer dizer, era complicado nesse sentido. Mas foi uma experiência muito
gratificante... eu costumo dizer que quem trabalhou na (comunidade) depois
trabalha em qualquer lugar.

Esse “respeito”, quando há, é demonstrado pelo fato de que os alunos “atendem”
ao professor quando são chamados a atenção, cabendo a este ter “pulso” para conseguir
“respeito”:

Você já teve algum problema com aluno? Tem alguma estória para contar?
Não. Sempre, graças a Deus, até hoje... todas as vezes que a gente chama a atenção
eles atendem.
E os professores? Já tiveram algum problema... tem alguma estória?
A gente tem sempre um ou outro professor que não é tão enérgico. Às vezes o
professor fala e o aluno finge que não está ouvindo. Mas nada assim gritante...
algo, né? Mas a gente tem, tem alguns professores que não têm o mesmo pulso,
como a gente costuma dizer, que às vezes fala e entra por um ouvido e sai pelo
outro. O aluno faz o que ele disse para não fazer. Mas não é comum, não é uma
regra da escola isso não. E eles sabem exatamente, esses professores que não têm
essa rigidez... então aí eles aproveitam. Adolescentes conseguem identificar isso
com rapidez.

O deslizamento entre indisciplina e violência aparece explicitamente no depoimento


abaixo. É na forma como os temas se sucedem que podemos perceber essa articulação.
O entrevistado passa do tema da “levadice” dos alunos, capazes, contudo, de “atender”

88
e “respeitar” o professor, a uma violência “entre eles”, expressa de forma física, com socos
e pontapés. Chega em seguida a admitir conexões eventuais com o tráfico, retornando
então ao tema da capacidade do professor de “conter” a violência “chamando a atenção”
de alunos por sua vez capazes de “atender”, reeditando assim o movimento discursivo
com que abrimos esta seção (“até já fui ameaçada, mas depois ele se desculpou”). Vale
acompanhar o depoimento (a ênfase é nossa):

Por que você acha que aqui na (escola da entrevistada) não tem esse problema...
da violência?
Porque a gente não consegue perceber isso. A gente tem uma clientela mais ou
menos dentro da faixa etária regular. A gente tem... Eles são levados? São. Mas
são mais calmos no sentido de respeitar, de atender, de respeitar as ordens que
são estabelecidas pela escola. Hoje em dia, realmente, a escola não tem esse tipo
de problema.
Eu já entrevistei alguns professores e eles sempre apontam essa questão da
violência...
Violência assim, de briga entre eles, há. Qualquer coisa eles dão soco, dão
chutes. Isso há. Mas, aí, voltada para o tráfico. Violência há. Mas são alunos
que atendem. É chamada a atenção e eles atendem. Agora de briga... se a gente
deixar eles brigam o tempo inteiro.

Um segundo depoimento reforça explicitamente a importância atribuída à disciplina


escolar como forma de contenção da violência, mais uma vez “qualificada”, desta vez como
“gritante” (em lugar de “pesada”):

Só voltando um pouco nessa questão da violência – que acaba sendo um grande


problema, a gente lê toda hora nos jornais – a (escola da entrevistada) você disse
que não passa por esse tipo de problema. Mas qual seria o porquê disso?
Nós ficamos o tempo todo em cima, lá fora e em cima. Quando tem alguma
coisa a gente sinaliza para o responsável e a gente não deixa crescer essa questão
da violência. Então, a gente está sempre, como eu digo, fazendo a poda. Se você
deixar crescer fica complicado. Se houver alguma coisa a gente chama, conversa,
coloca de castigo.
Você lembra de algum caso?
Assim, gritante? Não.

Esta disciplina escolar, se aparece, por vezes, como “antídoto” contra a violência,
pode ter contornos mais ou menos tradicionais, assumindo formas de organização do
cotidiano escolar distintas. Os dois depoimentos seguintes concordam quanto a este
poder da organização disciplinar do cotidiano como forma de inibição da violência,

89
embora divirjam quanto à necessidade do recurso a estratégias convencionais tais como a
organização do deslocamento dos alunos pelo espaço da escola, em filas ou não, “formados”
ou não:

Alguns alunos não precisam ser vigiados mais. Não precisa mais de professor.
Aquilo já está introjetado neles. Alguns são rebeldes, se rebelam, incomodam.
“O professor está aí? O professor chegou?” Eles incomodam. São justamente
esses que a gente reclama. Esses são aqueles que “poxa, acabo de bater o sinal e
esse garoto já...”, porque esses incomodam de alguma forma. Esses incomodam
a essa escola. Escola arcaica, do século XIX, em que os alunos se levantavam
quando o professor entrava. Discurso de que “na minha época”. Então, muitos
de nós... eu sou formado em escola pública, eu sempre estudei em escola pública.
Na minha época, eu não tinha a relação que eu tinha com meus alunos. Nem
sonhava em, sei lá, abraçar o meu professor. Era uma relação diferente. [...]
E pra escola?
Ela é necessária. Nesse momento pra ela é necessário porque você tem uma
organização. É uma instituição. É um poder instituído. Ela tem regras? Tem
regras. Se você deixar 800 alunos – não que eles formem –, mas que você
organize eles para subirem, são 800 alunos. São adolescentes. Aí vão subir essa
escada feito uns loucos. Há o risco de alguém esbarrar no outro e a pessoa cair.
Duas semanas atrás eu levei um com corte no pulso, outro com corte no dedo,
que na brincadeira, um estava bebendo água – e o bebedouro é de ácido inox,
né? – alguém puxou a mão dele e aí rasgou, né? Levou oito pontos. Então se
você não tiver um mínimo de organização, que é necessária, a gente não pode...,
pelo menos nesse momento a gente não tem... aqui não é Escola da Ponte, lá em
Portugal, em que o aluno entra a hora que ele quiser.
Nós fizemos uma festa aqui pra eles. Eles quiseram fazer um Halloween.
Estavam a guarda municipal, seis diretores, todos os professores, estavam todos
ali. Geralmente... não tem bebida nenhuma. Mas numa hora dessas, pode, às
vezes, né? Por serem rapazes novos, às vezes uma briga sai, assim, de repente.
Mas, olha, foi uma coisa assim tão saudável, tão legal. Uma coisa organizada, foi
excelente. Mas você tem que estar sempre... prevenida.
Você falou que esses problemas... foi durante um tempo... mas que melhorou...
Até porque eu moro aqui. Então teve um período que a indisciplina aqui
dentro... eles não formavam, eu trabalhava aqui e ficava até desestimulada com a
casa. Isso foi antes da gestão do (novo diretor).
(Novo diretor) é esse novo diretor...
Novo não. Já tem há nove anos. É diretor. Mas é um trabalho que... aqui, por
exemplo, na entrada dessa porta, ele leva os alunos até... o professor espera
os alunos em sala de aula. Eles dão uma linha, eles formam direito. Aqui tem

90
muitos daqueles cursos de capacitação e muitos outros professores, de outras
escolas, participam. E eles ficam assim... “só escola particular tem isso”. Mentira!
Nem no (outra escola), que é excelente, os alunos vão todos pro recreio assim,
né? Vai todo mundo junto. Aqui, não. Aqui ainda forma. É um trabalho que
ele vem investindo. Voltar àquela coisa inicial, puxar a fileira. Por isso ele está
resgatando. Então, melhorou a disciplina.

Esses mecanismos de uma “microdisciplina cotidiana”, contudo, aparecem mesclados


a outras formas institucionais de controle associadas ao uso (ou possibilidade de) de força
física, como a presença de um guarda municipal no ambiente escolar. Encontram-se,
assim, os dois mecanismos do que David Garland (2001) chama de cultura do controle.
A combinação nem sempre eficiente (sobretudo nos tempos atuais) de estratégias
de incorporação e legitimação subjetiva de normas de conduta, através de hábitos,
inventivas, normas e preceitos, com a possibilidade exibida, acintosa e ostensivamente,
do acionamento do uso da força através de mecanismos invariavelmente institucionais e
estatais do uso da força, a quem tem cabido às polícias, às agências prisionais e, no nosso
caso, à Guarda Municipal, instituição que tem na guarda de escolas e patrimônio público
a sua razão de ser.
Notemos, ainda, que o uso desse segundo recurso é tratado como situação limite
e, ainda assim, atravessado por eufemismos. Afinal, o uso da força é reservado apenas
para as exceções, para aqueles que, por limitações extraordinárias, não se adequam à
norma civilizada. O recurso à Guarda, no entanto, por ser elemento externo e estranho
à escola, pode ser visto como sinal de fracasso da dinâmica escolar no cumprimento de
sua própria missão, ela própria com suas liturgias, regras e rotinas, sendo um poderoso
recurso de conformação dos corpos dóceis de que fala Foucault. É por isso que o possível
acionamento da Guarda Municipal aparece descaracterizado no discurso dos entrevistados,
que enfatizam a natureza de “auxílio” ou “apoio” dos guardas municipais na manutenção
da disciplina escolar (“separando brigas” ou “chamando os responsáveis”), bem como
outras formas de atuação possível, como a prestação de “primeiros-socorros” em caso de
acidentes com os alunos:

E os alunos? Convivem com a Guarda?


Nós tivemos há pouco tempo um evento, aí não é a Guarda que está aqui
dentro. Nós realizamos isso pra trazer cães adestrados, eles tiveram atividades
de recreação. Aí é um grupo que trabalha só com isso. Como a base está aqui,
a gente pede requerimento, aí eles vêm e fazem o trabalho deles. E os que estão
aqui dentro ajudam muito a gente na questão da disciplina. Pô, separam uma
briga. Até ajudam naquele momento de ir lá, falar com ele, entendeu... de ligar
pra casa, chamar o responsável, entendeu?
Mas os alunos têm algum problema...

91
De relacionamento?
É. Eles interferem quando tem esses problemas de briga...
Não, não têm não. Eles vêm, ajudam. Quando eles veem uma situação assim,
eles vêm. Às vezes pegam lá na quadra, quando tem algum problema na aula de
educação física, vão lá, já pegam, já vêm trazendo. Ajudam assim...

Por morar aqui eu sei que tem uma base da Guarda Municipal aqui. E ela está aí
por que?
Esse é um projeto da própria Guarda Municipal em que eles instalam a base e
são chamados de guardas comunitários. Eles estão aqui dentro da escola só por
questão de espaço físico. Eles precisavam de um prédio público aqui nessa região
para se alojar e nós tínhamos esse espaço e cedemos esse espaço.
Não é comum ter a guarda dentro dos colégios?
Não, não é. São seis postos e, até por coincidência, esses seis postos estão dentro
de escolas. Eles nos dão um apoio muito grande. Para nós foi um ganho ter a
guarda comunitária, mas não é específico para a escola, mas para a comunidade
também.
Você acha que a escola ganha em que com a Guarda Municipal?
Acho que impõe um pouco mais de respeito. São pessoas que estão lá fora no
pátio e se vêem uma briga eles vão lá e separam. Se os alunos se machucam,
eles têm noções de primeiros-socorros que nós não temos. Então, assim, foi um
ganho, foi um ganho para nós termos a Guarda Municipal.

Temos, assim, uma oscilação entre duas formas extremas de controle da conduta
dos alunos: a primeira, de exercício coercitivo e institucional (a Guarda Municipal); a
segunda, de domesticação cotidiana da conduta (a normatização detalhada das atitudes
dos alunos em ambiente escolar). Na maior parte dos depoimentos, contudo, fala-se em
sua eficácia para conter a indisciplina, com a menção explícita à violência sendo rara e
surgindo evasivamente de forma “alterizada”. Neste quadro, o depoimento abaixo é ímpar
em sua riqueza, por traçar em linha reta uma relação quase que de causalidade entre o
“afrouxamento” das microrregras do funcionamento escolar na relação professor-aluno e
a eclosão de uma violência física com uso de arma de fogo:

[...] ou que tenha ouvido falar... de um outro colégio...


Bom, de um outro colégio... Há pouco tempo... há pouco tempo, não... isso já
tem um ano. Na Ilha... a professora saiu de sala, você sabe disso?
Não sei...
A professora saiu de sala, não sei por qual motivo, o garoto atirou no outro com
uma arma. Atirou no outro. Pra você ver, isso aí a gente sabe de alguns colégios
em que acontece. Alunos que entram armados, que a gente só vai saber disso

92
depois do... mas, aí é a questão do professor não deixar uma turma sozinha. Eu
tenho falado isso todo dia. A gente tem essa preocupação. Se realmente precisa
sair, tem que ir atender o telefone, tem um inspetor no corredor, ele tem que
ir lá olhar sua turma pra você poder sair de sala. Mas parece que foi na hora do
recreio. Todos desceram e... Aqui na escola, ninguém fica lá em cima.

Encontramos, assim, nos depoimentos dos professores uma acentuada recorrência na


identificação de indisciplina como violência. Os professores sinalizam situações de violência
no interior da escola apontando para uma alteração historicamente datada (últimos vinte
anos) no comportamento de crianças e jovens diante das regras e normas estabelecidas.
Tal alteração teria produzido o vínculo entre comportamento indisciplinado e agressões
à autoridade docente, aos próprios colegas, aos membros da comunidade escolar. A ponte
entre comportamento indisciplinado e atitudes de violência aparece quase sem mediação.
Esta recorrência nos impressionou. No entanto, encontramos na literatura sobre violência
escolar a mesma referência a nos indicar que o fenômeno não está restrito à percepção dos
docentes do Rio de Janeiro contemplados nesta pesquisa.
Exemplo notório da associação entre violência e indisciplina foi a edição de um
número especial da Revista Educação inteiramente dedicado ao tema. Trata-se de uma
revista de grande circulação que tem, em seu projeto editorial, o compromisso de divulgar
pesquisas e avaliações de especialistas sobre temas de grande repercussão nacional.
O balanço é interessante porque os autores, cada um em seu próprio texto, acabaram
por sistematizar o conjunto de pesquisas, teses e publicações dedicadas a responder
analiticamente ao que alguns qualificam como “fronteira débil”, imprecisa, entre uma e
outra noção. A dificuldade em precisar o conceito de violência contribuiu definitivamente
para as associações mais óbvias entre comportamento indisciplinado e agressão de todo
tipo (física, psicológica, moral). Nesta nota, o termo sempre realçado nos relatos é
“desrespeito”, falta de consideração ou abuso na transgressão às normas estipuladas para
a convivência escolar. O comentário de Luiza Camacho, citado em um dos artigos da
revista, deixa clara a extensão de tal associação em outros ambientes escolares fora do
Rio:

Ao analisar o fenômeno da violência, deparamo-nos com uma série de dificuldades.


Uma delas se refere justamente a essa multiplicidade de compreensões a seu
respeito. Essa diversidade evidencia a fragilidade de suas fronteiras. A violência
se confunde, se interpenetra, se inter-relaciona com a agressão de modo geral e/
ou com a indisciplina, quando se manifesta na esfera escolar.10

E não apenas o conceito de violência é deslizante, impreciso, difícil de unificar – o


10
Citado em Paulo Neves, “Indisciplina e violência na escola, frágeis fronteiras”. Revista Educação, Grandes
Temas 1 - Violência e Indisciplina, pp. 79-87. A tese referida é de Camacho (2000).

93
que pode ser considerado violência? Agressão física? Desprezo? Agressão verbal? –, mas
igualmente o conceito de indisciplina padece da mesma profusão de significados. Quando
é que uma brincadeira, uma conversa, uma fala mais enfática pode ser incluída no rol de
atitudes indisciplinadas? Indisciplinadas com relação a que normas? Que padrões? Que
expectativas? Quem percebe como desrespeito? O professor? Os estudantes? A percepção
de disciplina ou indisciplina interfere na categorização de uma atitude como indisciplinada
ou disciplinada? De que maneira a percepção se altera se incluímos na análise a questão
de gênero? Se proveniente de meninos, certos gestos são considerados mais “naturais”;
se de meninas, mais facilmente identificados como transgressores e violentos? A
dimensão relacional de ambos os conceitos – violência e indisciplina – impede qualquer
universalização, embora as pesquisas desenvolvidas reforcem a percepção de ambos os
fenômenos em diversos estados brasileiros (Norte a Sul), a despeito de suas posições na
hierarquia de mais ou menos desenvolvidos. A pesquisa de Longarezi (2001) reforça a
tese da identificação, pelo corpo docente, de indisciplina com violência. A polissemia
agora é reconhecida na identificação das múltiplas faces do que é considerado, ou pode
ser considerado, como indisciplina.
Há certo consenso na literatura de que a emergência de estudos que reforçam a
associação entre indisciplina e violência floresceu no Brasil em estudos realizados no final
dos anos 1980, particularmente em meados da década de 1990, e não apenas no Brasil. A
inspiração francesa também se fez presente aqui. A sociologia da educação no Brasil tem
na França forte referência teórica e inspiração empírica. Estudos sobre escolas francesas
no período em questão denunciaram os efeitos perversos da massificação do atendimento
da rede pública de ensino, e as grandes questões políticas tiveram bastante interferência
na forma como os especialistas recortaram seus objetos de análise. O enfraquecimento do
estado de bem-estar, o recrudescimento de políticas liberais não protecionistas, a crise de
empregabilidade, a reconversão industrial, a alteração profunda no mercado de trabalho
e, consequentemente, na estrutura da divisão do trabalho social, tudo isso contribuiu
para a vulnerabilidade da escola como instituição capaz de preparar indivíduos para a
inserção no mundo produtivo e participação na vida social. Quebrou-se no imaginário
social a ideia de escola como produtora de acesso a melhores oportunidades. A promessa
da escola como mediadora entre vida doméstica e participação pública foi abalada com
tantos constrangimentos macrossociológicos de repercussão imediata nas dimensões da
vida pessoal. Os efeitos gerais de tal contexto tiveram sua materialização mais ou menos
aguda, dependendo das realidades locais.
No Brasil, a abertura política foi, a um só tempo, vetor de dois movimentos
coetâneos: irupção da crítica à tradição autoritária de que também havia sido alvo a
instituição escolar nos 21 anos do regime militar (1964-1985), e, emparelhado ao
mesmo movimento democratizador, a universalização progressiva do acesso à escola de
contingentes importantes da população a quem foi negado, por décadas sucessivas, tal
direito. A entrada progressiva e volumosa de grande contingente populacional somada à

94
autorização crítica a todos os procedimentos identificados com o autoritarismo produziu
efeitos ainda não controlados, e que começam a ser mapeados nas pesquisas sobre os
temas da qualidade de ensino, da comunidade escolar, do desempenho estudantil e da
violência escolar, mas também da reciprocidade, da vida comunitária, da integração social
e da vida democrática. E a questão inquietante seria assim traduzida: teria a democracia
produzido seu contrário? A pergunta desafiadora nos leva de volta a outras que precisam
ser enfrentadas pelos educadores, intelectuais e pelos formadores de opinião. Que relação
possível se pode estabelecer entre autoridade e autoritarismo? Como compatibilizar vida
social democrática com atenção às normas e regras estabelecidas para a manutenção da
vida coletiva? Toda norma é legítima? Defensável? Justificável em qualquer ambiente de
socialização?
Não há respostas generalizáveis a tais inquietações. Os dilemas da vida coletiva
enfrentam, em cada realidade específica, solução com maior ou menor possibilidade
de sucesso. No caso das regras e normas, por exemplo, acompanhando Howard Becker
(1977) em escrito muito anterior a toda essa movimentação, é possível pensar em suas
transgressões sempre e quando ferem o estabelecido por elas próprias. Em uma quase
tautologia, não é possível imaginar a vida social sem regras e não será possível imaginar
regras sem transgressões. São feitas para serem transgredidas, poderíamos pensar no
limite, a não ser que apostemos em algo mais inusitado – a uniformização das consciências
individuais. As transgressões fazem parte da dinâmica da vida coletiva e como tal têm que
ser incorporadas em pretensões de análise e na definição de parâmetros de compreensão
da vida social. Mas boa parte das análises recentes tomam a transgressão – o que vale dizer,
a indisciplina – como sinal ou como prenúncio de seu consequente desdobramento: a
violência. Esse nos pareceu ser o sentido da afirmação dos que identificam nos fenômenos
da indisciplina e da violência raízes indistintas. Tal associação, ou a quase indistinção
entre indisciplina e violência, tem sido também objeto de crítica entre os especialistas
em educação. Indisciplina e violência não têm a mesma raiz epistemológica, ainda
que atos violentos possam indicar alto grau de indisciplina. Se não é possível imaginar
sociedade sem transgressão, é possível conceber vida social sem violência, indicam-nos
alguns dos especialistas. Violência pode remeter ao sentimento de dano, sofrimento
por dano; indisciplina pode não passar de uma mensagem de desacordo com relação à
obediência a certas normas estabelecidas. Há distância entre os dois fenômenos vistos
como manifestações humanas possíveis. E como as escalas são móveis, há igualmente
proximidade quando reações de indisciplina degeneram para gestos ou comportamentos
de agressão, causando danos efetivos e fazendo vítimas.
Podemos, assim, encontrar no discurso sobre a violência nas escolas várias matizações
deste deslizamento indisciplina-violência, que vão desde uma simples indiferenciação até
a procura, pelos entrevistados, de identificação de uma lógica capaz de estabelecer uma
relação de quase causalidade entre o afrouxamento das microrregras de organização do
cotidiano escolar e a eclosão de episódios de agressão física, conforme vimos acima.

95
Esta ênfase na importância da microrregulação cotidiana da conduta aparece ainda
sob uma outra versão. Alguns depoimentos estabelecem uma relação direta entre a não-
observação de regras consideradas básicas de polidez em outros ambientes que não
o escolar e a eclosão de violência física na relação dos alunos com seus professores, em
um raciocínio que pode ser entendido com base na descrição do processo civilizador de
Elias (1993) como sendo essencialmente uma internalização das formas de controle dos
impulsos agressivos inatos ao ser humano. O relato abaixo – um episódio em que um
aluno deu um soco na cabeça de uma professora, fazendo-a desmaiar – é exemplar ao
equacionar o descaso pelas pequenas convenções cotidianas de polidez (como a falta de
hábito de pedir licença ou desejar bom dia) à ocorrência de agressões físicas:

E nesse colégio, como era a sua relação com os alunos? Você tinha algum problema?
Não... era boa. Para você ter uma ideia, a primeira dama lá da comunidade quis
dar o filho dela para eu batizar. Eu que não quis. “Não! Você foi minha aluna...
da 5ª até a 8ª série”.
Mas você via algum conflito de professores com os alunos? Lembra de alguma
estória?
Só tinha. Até hoje tem. Tem professores que estão porque na verdade são heróis.
Porque há esse conflito, sim. De aluno pegar e ficar com o dedo “Pá, pá, pá...
vou te matar!” Você fica assim. Tem que encarar. “Vai matar? Matar por que?
Que isso, garoto! Toma seu rumo!”. Entendeu... tentar pedir a atenção. Tem
professores que levaram soco. Tem uma professora – ela tinha 52 anos, agora
deve ter mais – (nome da professora)... levou um soco na cabeça! Desmaiou.
De um aluno?
De um aluno. Aluno... ele já partiu. O (nome do aluno). E aí, tentar contornar a
situação. Vai dar queixa, não vai? O que faz? Vai aonde? Vai voltar a trabalhar?
Mas ele bateu nela por que?
Porque é de graça, às vezes, as coisas. Ele não era nem aluno dela. Bateu! Deu um
soco, assim, puft... ela caiu. Não era nem aluno dela nem nada. Bateu. É questão
mesmo da coisa da falta de valor, de pedir licença, de dar um bom dia, uma boa
tarde. A gente aqui cria esses hábitos. A escola, ela tem que criar essa noção.
Hoje em dia ela tem que criar essa noção. De manhã, quando você acorda, você
dá bom dia para sua mãe, seu pai, para quem estiver na sua casa, não dá?
Huhum...
Com certeza eles dão? Não!
Você acha que aqui na (nome da escola) é diferente?
É diferente, é diferente. Primeiro porque está no asfalto, bem longe do ambiente
que... se alguns são, está longe do ambiente. E segundo que a gente tem aqui um
projeto... a nossa política pedagógica aqui é qualidade de vida. Então a gente
bate em cima dessa tecla do por favor, do dá licença, do não brigar...

96
O trecho abaixo, formulado pela mesma entrevistada em outro momento de seu
depoimento, é ainda mais claro quanto a essa articulação entre violência/indisciplina e
processo civilizador:

Eu acho que a escola perdeu a força dela, de ensinar, porque as mães... os filhos
traziam alguma coisa para cá. Agora a gente tem que ensinar um monte de coisa
para haver o retorno. Às vezes o aluno em casa não é questionado. Eu aprendi
na escola isso. Não foi nem meu pai, nem minha mãe quem me ensinou não.
Quando você come uma bala e não tem lixo, você guarda o papel de bala com
você. Eu sou incapaz de cuspir no chão. Pode me dar uma vontade louca de
cuspir, mas eu não vou cuspir no chão, não. Às vezes você vê aluno que cospe,
escarra no chão. Isso eu aprendi em casa e reproduzia na escola. Eu não fazia.
Então, são trocas: a casa, a família. A casa troca com a escola e a escola troca com
a família. Quando não tem essa comunicação é quando esquentam as coisas.

Este depoimento adiciona ainda um novo ingrediente a esta forma de conceber a


relação entre violência, indisciplina e formas de contenção/cultivo da conduta cotidiana:
o problema da responsabilidade por este processo socializador. A quem cabe “civilizar”? À
família ou à escola? Esta relação família e escola é o tema da próxima seção deste nosso esforço
de mapeamento das principais questões que perpassam nosso banco de entrevistas.

2.3 - Família versus Escola: o lugar da responsabilidade

[...] “a senhora é responsável. Não sacode o braço dizendo que não sabe como
faz não, porque é teu. Ele vai ser meu só um ano ou dois, no máximo quatro. Ele
vai ser seu para o resto da vida”. Esse tipo de conscientização a gente tenta fazer
aqui.

Então, o que a gente diz pra eles: “Mãe, antes de vir pro colégio, ele é seu filho.
Vai ser seu filho a vida toda. Ela vai passar por aqui e vai embora, mas ele não vai
deixar de ser seu filho.”

Estas falas de duas professoras sintetizam bem uma percepção recorrente entre os
entrevistados: aquela de que a família é omissa na educação de seu filho, muitas vezes
estabelecendo com a escola uma relação de delegação da responsabilidade por seu filho, em
vez de uma relação idealizada de parceria.
A “ausência” dos pais é percebida sob várias formas, desde a ausência física no espaço
escolar – não comparecimento às reuniões de pais, não atendimento a convocações feitas
pela escola etc. – até outras formas mais sutis, como a omissão na ajuda/estímulo às
atividades escolares. O desinteresse ou a indisponibilidade dos pais para acompanhar o

97
desempenho escolar dos filhos é apontado como uma dificuldade para os professores:

É, porque aqui você já vê a ausência de alguns pais porque tem a questão do


trabalho. Eles precisam trabalhar. Ficam um pouco ausentes. E eu acho que isso
faz muita falta para o aluno. Muita mesmo. Porque você faz o seu trabalho aqui,
mas em casa tem que haver a continuidade. E, às vezes, não tem isso. Eles não
estimulam esses alunos a continuar aquilo que você plantou aqui. Então quando
eles retornam, eles voltam com aquela preguiça, aquela coisa... Às vezes voltam
com trabalho de casa sem fazer. Não tem aquele interesse. Aquele estímulo dos
pais: “Olha a escola!”.

Quais são esses problemas?


Por exemplo... as mães que trabalham. Todo mundo tem que trabalhar, isso
também é uma realidade nossa. Mas tem aquela mãe que trabalha, mas também
não dá conta da criança em casa. Chega tarde, não abre um caderno, não sabe
o que a criança fez. Quando chega uma nota, vem a mãe assustada. “Mas por
que?”. Aí você vem com o histórico dele: “porque ele não faz trabalho; porque
ele falta”. Então, é aquela surpresa... A mãe trabalha, todo mundo sabe. Eu
também trabalho, mas quando eu chego em casa “cadê o caderno? Tem dever de
casa?”. Você lê bilhete, lê agenda, lê isso. Então você tem que dar conta. Eles não
pediram para você trabalhar, você precisa trabalhar. Também não pode “ah, vou
ficar em casa cuidando dos meus filhos, ta”? Mas e aí? E a grana? Vem como?
Você não pode fazer essa opção. Todo mundo gostaria de ficar cuidando das
crianças. Mas aquela presença, de ficar ali, cobrando do filho... Aí, tem esses
casos de que a mãe não cobra dos filhos, chega aqui a criança não faz trabalho.

Eu faço a ciranda de livros. Os pequenininhos ainda não sabem pegar. Seria tipo
o CA, né? Isso no ano um. No ano dois eu faço uma ciranda, seleciono, entrego
na mão da professora, cada um leva um livro pra casa e ficam com ele durante
uma semana. A mãe conta a história. A professora conta a história porque tem
mãe que não conta.

Entretanto, o maior problema causado pela ausência dos pais, na percepção destes
professores entrevistados, não é a omissão no acompanhamento cotidiano do desempenho
escolar de seus filhos. Esta ausência far-se-ia sentir, principalmente, sob a forma de uma
carência afetiva, carência essa que alguns professores esforçam-se por suprir. Este esforço,
contudo, nem sempre é bem sucedido, como nos mostra o depoimento abaixo:

Nós temos a questão do ensino religioso. Então, a professora que nós recebemos,
ela é muito boa. Ela não centraliza o ensino religioso realmente na coisa da

98
religião, em nenhuma religião. Ela faz uma coisa bem ecumênica, porém, ela
encontra também dificuldades. Então ela coloca temas para tentar humanizar
um pouco aquelas pessoas que estão ali. Então ela coloca textos falando de paz,
textos falando de amor, de amizade, de doação, aquela coisa toda assim. Mas
o engraçado é que ela sente dificuldades, porque eles não ... (tempo)... Eu acho
que eles não têm essa coisa do sentimento tão enraizado neles. Porque a gente
ainda tem uma família, tem aquela questão do amor que o seu pai te ensina, sua
mãe te ensina e você passa para os seus filhos. Pelo menos eu ainda vivo isso, né?
Acredito que também muitas pessoas. Mas lá eles não têm isso. “A minha mãe
me largou não sei com quem”... “eu moro não sei com quem”. “Eu tenho um
filho, mas o pai dele está preso”, ou, então, “o pai dele morreu”. Que sentimento
essas pessoas vão ter para analisar um texto... a paz, o amor, a harmonia.
O que você acha disso?
Eles acabam se tornando pessoas... insensíveis. Eles estão se tornando pessoas
insensíveis. Tem alguns ainda, mas numa realidade como essa, em que a violência
domina, que a mãe abandona a criança, que eu tenho um filho com uma pessoa
que morreu, ela está presa, é um traficante, não sei o que... tem tempo de você
ter uma questão afetiva nesse meio todo? Eu não sei se... eu duvido. Então, eu
acho que o trabalho acaba ficando em vão. Eu acredito assim. É muito difícil.
Engraçado que quando você chega e você tenta se doar para eles, eles bloqueiam
isso. “Quem é essa louca? Tá pensando o quê? Isso é mentira, ela está...”.

Neste depoimento fica claro para o professor que seu afeto poderia ser uma via
alternativa para suprir a lacuna deixada pela família. Esta omissão familiar, contudo,
somada a um ambiente definido como “dominado pela violência”, é percebida como mais
forte, gerando seres “insensíveis” e “incrédulos” diante da possibilidade de uma doação
afetiva autêntica, como aquela tentada pela professora.
Esta mesma articulação entre a omissão afetiva da família e a “compensação”
pelo afeto do professor pode, contudo, aparecer em uma versão “otimista”, com o afeto do
professor sendo capaz de superar um embrutecimento que seria somente “aparente”:

Voltei a trabalhar porque, por incrível que pareça eles são super amorosos. É
só saber falar. Se você chegar para eles “vocês são tudo um bando de favelados,
bandido! O pai de vocês... a mãe de vocês...”, aí você não chega nem vivo do
outro lado. Agora, se você chega numa de trabalhar com eles com calma, até
mesmo para falar de drogas...

Os professores descrevem-se assim como desempenhando um papel na vida de seus


alunos, que poderia ser caracterizado como “substitutivo” em relação a pai/mãe, em especial
em sua função afetiva. Entretanto, embora este papel possa ser visto como algo positivo,

99
eventualmente produzindo resultados relatados como muito gratificantes, pode também
gerar um outro tipo de problema justamente por “confundir” os lugares simbólicos de
pai/mãe com professor(a), com este último vindo por vezes a desempenhar uma função
paterna/materna junto a seus alunos. Vários professores expõem em seus depoimentos sua
visão desta “confusão”, que apresenta vantagens, ao mesmo tempo em que é capaz de criar
outras formas de conflito:

O problema deles era com a autoridade. Eles estavam com a [noção de] autoridade
dúbia. Tinha professor que fazia uma coisa, tinha professor que fazia outra. Eles não
sabiam o que fazer. São adolescentes em formação. Se você não dá um referencial, eles
acabam não sabendo o que fazer. Isso pode resultar em atos violentos, que às vezes não são
depreciativos para fazer isso para agredir ao professor. Então tem uma série de coisas aí...
figura de pai e de mãe que se confundem com a do professor.

Você acha que eles veem o professor como pai, é isso?


Sim. Às vezes eles têm um problema com a figura paterna, que quando o
professor reproduz essa figura eles reagem. Eles não estão reagindo ao professor.
Eles estão reagindo à figura paterna.
Você acha legal o professor assumir essa função?
Ele assume inconscientemente. Isso aí é uma coisa que acontece inconscientemente.
Nós temos agora uma turma em que, nitidamente, houve esse problema, da
figura materna/paterna que estava ali, confusa com a do professor.
Na turma ou com alunos específicos?
Não, na turma como um todo. Porque, o que acontece? Tinha alunos específicos,
lidando mal com essa questão, e isso envolveu a turma toda. Às vezes envolve a
turma toda, às vezes é focado num grupo determinado de alunos, às vezes, não.
Até que um dia eu cheguei para eles e falei: “gente, sai da figura de pai. Pai e mãe
vocês já têm. Nós vamos fazer isso e isso, minha função é essa e essa”.
Você acha que o aluno às vezes tem uma relação de pai com o professor?
Tem, tem, muita. Tem alunos aqui muito carentes, que não têm os pais presentes
e eles cobram coisas, assim, de você, que o pai deveria estar cobrindo. Então eu
tenho um exemplo de uma menina aqui que ela é muito carente também, a mãe
dela não liga para ela, não liga. Ela era uma menina que não assistia à aula, faltava
a muitas aulas...
[...]
Eu acho que eu não terminei o meu raciocínio. Então essa menina é assim.
Quando ela começou aqui na escola, ela era uma pessoa muito nervosa, que
brigava muito, não assistia à aula. Quando vinha, brigava muito e a maioria das
vezes ela não frequentava a escola. Ela estava na 6ª. série... ela já era de mais idade,
17 anos. Só que ela mudou o comportamento. Ela se tornou amiga minha e da

100
professora de português também. Nós nos tornamos amigas dela. E também
é assim, são muitos os problemas aqui na escola, mas a gente desenvolver uma
família aqui, aconselhando, não é assim que se deveria fazer o que uma mãe
deveria estar fazendo por ela. E aí ela se transformou. Nunca mais faltou à
escola, ela se esforça para fazer... não é uma aluna brilhante, mas ela se esforça
muito para tirar um R e ela consegue. As pessoas dizem... a diretora da escola
diz que ela se transformou. Ela conseguiu vencer uma batalha. Ela sozinha,
sem mãe orientando, ela conseguiu caminhar sozinha de uma maneira correta,
assim, perfeita. Seria a forma como nós queremos que seguissem nossos filhos.
Mas não sei se será verdadeira: e quando ela sair daqui? Não vai ter mais o nosso
conselho e não sabemos o que vai acontecer. Mas muitos são assim, por causa do
professor, ou da professora, que viram pai e mãe que eles não têm em casa.

Aí eu estava falando do menino. Eu fiquei injuriada com ele. Quando eu soube


da estória dele eu disse “não, vamos resgatar isso daí!”. Hoje ele é meu assistente:
“apaga o quadro para mim!”. Detesto que eles apaguem o quadro, que eles jogam
pó pra tudo quanto é lado. Aí eu falo “tem que ser assim, para o pó ir caindo,
entendeu?”. “Ah, vai pegar não sei o que para mim. Pega o livro, recolhe o livro
do pessoal aí para mim. Anota, não esquece não”. Eu não conseguia entender
aquela letra... só Jesus Cristo..., mas eu comecei a fazer com que ele começasse a
participar da minha aula, participasse daquilo. Por que? Ele ama muito o pai, o
pai construiu outra família e literalmente não liga para os filhos. Não liga. Faz
festa para a outra família, para a outra filha, faz tudo do bom e do melhor e para
o filho nada. Esse é o problema. E isso se repete na escola. “Eu não posso dar
um soco no meu pai, eu dou na professora, eu vou agredir a professora, eu vou
sacudir o braço para ela”.
Você acha que isso às vezes faz o aluno ver o professor como um pai, uma mãe?
Vê... como pai e mãe. Ah, porque eu não tenho a cartinha aqui. Essa menina
perdeu a mãe com câncer, (nome da aluna). Ficou muito ruim, muito mal. Aí eu
virei para ela, “você vai perder o ano por causa disso? Sua mãe acha que vai ficar
feliz? Acho melhor você começar a voltar”. Isso aqui é o que vou juntando para
depois separar o que presta do que não presta.
(A professora procura a carta da aluna.)
E ela mandou essa cartinha para mim... de despedida. Ela diz que perdeu a
mãe, mas é como se eu fosse a mãe dela. Sabe por que? Ela ia perder o ano.
Simplesmente ficou rebelde, não queria fazer mais nada. Se juntou com quem
não prestava.
Aqui no colégio?
Não no (nome de outra escola). Se juntou com quem não prestava...
Ela diz assim “professora, você é muito legal, muito inteligente. Você é a melhor

101
professora que eu já tive. Eu te adoro. Minha mãe morreu, mas eu ganhei outra
que é você.”

Estes três depoimentos juntos mostram duas formas principais como esta atribuição
das figuras parentais aos professores pode se dar. O primeiro depoimento narra uma
situação em que a atribuição ao professor de uma função paterna ganha os contornos de
um desafio à autoridade, entendido pelo entrevistado como um “deslocamento” do alvo
original da contestação, que em sua visão seria o pai. O segundo depoimento fala de uma
situação em que a mescla entre os papéis de mãe e professora se deu pela via do afeto,
expresso sob a forma de um aconselhamento realizado pela professora em substituição ao
desinteresse da mãe da aluna.
Autoridade e afeto parecem, assim, constituir-se nos dois polos da atuação do(a)
professor(a) como pai/mãe. A relação, contudo, não é necessariamente de simples oposição,
podendo os dois termos aparecer sob a forma de uma articulação, como no terceiro
depoimento, em que o afeto da professora é uma forma de resgate da sua autoridade.
Na etnopsicologia ocidental, as emoções são percebidas como associadas ao
descontrole, sendo potencialmente perigosas, em especial quando opostas à racionalidade;
nesta dicotomia, as emoções são também descritas como femininas (Lutz, 1988). O modo
como estas professoras recorrem ao afeto para recuperar/constituir sua autoridade junto
aos alunos nos permite nuançar estas associações recorrentes no senso comum ocidental
entre emoção-feminino-descontrole, sugerindo uma terceira forma de construção da
autoridade pela via do afeto, forma esta que viria, assim, compor, juntamente com as duas
outras maneiras de controle delineadas anteriormente (coerção institucional e controle
civilizatório da conduta cotidiana), uma tipologia das representações da autoridade
presentes neste universo.
Esta fusão entre as funções parentais e professorais tem um caráter ambivalente,
podendo ser ora solução – como no caso em que a “rebeldia” é descrita como sendo domada
pelo afeto substitutivo da professora –, ora problema, na medida em que o desempenho
pelos professores destas funções parentais acabaria por reforçar a omissão da família em
relação a responsabilidades que, na visão destes professores, lhe caberiam. O depoimento
abaixo descreve esse tipo de ambivalência causada por esta indiferenciação:

Você acha que o aluno pode vir a ver o professor como um pai?
Com certeza, isso acontece muito. Até pela carência de atenção que essas
crianças têm, isso acontece o tempo todo.
Você acha isso bom ou ruim?
Eu acho bom no sentido de fortalecer mais os laços de amizade entre o aluno e o
professor. Mas é ruim porque a família pode acabar achando que determinadas
funções que outrora seriam da família, a família acha que é de responsabilidade
da escola. Quando na verdade não é.

102
Os problemas, contudo, podem ainda ir mais longe, atingindo a própria relação entre
professores e pais. Estes são descritos pelos primeiros como eventualmente desrespeitosos,
precisando ser “domados” pela mediação da direção da escola:

Mas como é que foi isso?


Um brigou com o outro. O pai veio tomar satisfação, descobriu que morava
numa área de outra facção. Depois acabaram descobrindo, que na verdade,
eram primos, parentes, que não sabiam. Acabou tudo bem. Tem um trabalho
interessante, que é fundamental, que não chega às vezes, diretamente, aos
professores, que é o que está acontecendo lá no portão. De pai vir aqui querer
tirar satisfação com professor porque chamou o filho de burro, jogou alguma
coisa que poderia ter machucado, ou por causa da nota... A intervenção da
direção é tão imediata que o pai não sobe mais. Ou quando vai falar com o
professor, já vem numa postura...
Amansado?
É, amansado, mas numa postura de diálogo. Porque às vezes vem aqui querendo
dar na cara do professor. Eu já tive reunião aqui de pais que “tudo bem professor,
mas nós não queremos falar com o senhor. Nós queremos falar com o professor
fulano de tal”. “Tá bom, só um instante”. Aí vai chamar a direção, até porque o
professor não vem a essas reuniões, que não é obrigatório. Aí a direção vai e diz
“olha...”

Este “desrespeito” pode assumir mesmo uma forma mais belicosa, em que aos pais
é atribuída uma visão do professor como um “rival”. Nesta percepção, surge uma visão
“infantilizada” e “psicologizada” da atitude dos pais, descrita como uma substituição de
natureza semelhante àquela que os alunos realizariam entre seus pais e seus professores.
Nesta percepção, os pais se comportariam como “alunos”, contestando a autoridade dos
professores de seus filhos como uma forma de “reedição” dos sentimentos de hostilidade
que teriam nutrido em relação a seus próprios professores:

Olha só... eu costumo dizer que são poucos os pais que costumam reconhecer o
trabalho dos professores. E eu costumo dizer que os pais, quando o aluno tem
um bom desempenho, o aluno está de parabéns. Quando ele tem um péssimo
desempenho, o errado é o professor, o errado é a escola. Então, a gente tem esse
conflito de aceitação porque alguns pais enxergam o professor como um rival.
Quando, na verdade, não é. Eu acho que às vezes dificulta mais até o fato de o pai
não ter uma formação, porque aí a rivalidade aumenta. Porque se não tem uma
formação, eles acham... eles transferem a raiva que eles têm dos professores que
foram dele para os professores dos filhos. Eu acho isso uma coisa que dificulta
muito o trabalho.

103
É interessante, contudo, realçar que esta visão não parece estar em conflito, na lógica
nativa destes depoimentos, com a percepção de que os professores desempenham funções
substitutivas parentais, o que, se percebido igualmente pelos pais, poderia evidentemente
explicar a imagem do professor como um “rival”. Ter que desempenhar funções parentais
e ser alvo de hostilidade/rivalidade dos pais são, ambas, razões para queixas quanto à
dificuldade de realizar seu trabalho como professores. Como explicar esta aparente
contradição?
Uma professora, que iniciou sua carreira há 25 anos, expõe assim sua visão das
transformações por que a educação teria passado nesse período:

Você acha que, desde quando você entrou, que mudou muito essa questão da
educação?
Mudou. Mudou para pior. No sentido de... os professores continuam
trabalhando do mesmo jeito? Sim, acredito que até mais do que trabalhavam
antes. Mas a valorização do professor mudou. A escola não é mais respeitada
pela sociedade como era antigamente. Antigamente a gente costumava dizer
que o que o professor falava era lei. Hoje em dia, não. Hoje em dia existem
algumas leis, alguns estatutos que foram criados, né? A gente não pode isso
com o aluno, a gente não pode aquilo com o aluno. Você não pode revistar uma
mochila, você não pode chamar a atenção de uma forma mais ríspida porque
é constrangimento público. Você não pode deixar de castigo depois da hora
porque é cárcere privado. Enfim, eu acho que tudo isso veio dificultar o trabalho
do professor porque hoje o próprio professor tem a consciência de que a gente
não tem artifícios de fazer uma cobrança. E outro, antigamente a gente... o que
o professor falava estava certo. A mãe aceitava e dizia que estava certo. Hoje em
dia não... hoje em dia a mãe vem aqui e questiona. O professor não pode brigar,
independentemente do motivo de ter chamado a atenção, o importante não é
o professor estar corrigindo meu filho não. Ele não pode chamar a atenção do
meu filho, você está me entendendo?
Você acha que isso se deu de que forma?
Olha, o Estatuto da Criança e do Adolescente, por exemplo, eu acho que foi
um estatuto que veio para derrubar o nosso trabalho porque a gente não pode
chamar a atenção porque é constrangimento público, não pode colocar de
castigo depois da hora porque é cárcere privado, a gente não pode revistar uma
mochila porque é invasão de privacidade e os alunos... e quais são os argumentos
que nós temos? Nenhum. Então, os alunos, hoje, se ele faz uma coisa errada, ele
sabe que não vai ser punido. Então, se perde o respeito não tem nada a fazer.
Aí você chama o responsável, o responsável fica irritado porque teve que sair
de casa para vir até aqui ou teve que largar o trabalho para vir até aqui. Ontem,
inclusive... a gente teve essa semana aqui uma situação de uma aluna, seis alunas,

104
fazendo guerra de água no banheiro das meninas.... uma na outra, se molharam
todas, uma arranhou o rosto da outra, podiam ter caído, batido com a cabeça,
se machucado feio. Quando eu chamei a mãe de uma delas, eu chamei a mãe
de todas, mas só uma mãe veio. Quando ela veio, a primeira pergunta que ela
fez foi “a mãe das outras a senhora também chamou?”. A questão que estava
sendo discutida ali não era a mãe das outras. Era a postura da filha dela. Então,
o essencial deixou de ser importante, deixou de ser essencial. Se tinha outras
pessoas envolvidas, então o erro é dos outros, não é o erro do filho.
Você acha que mudou essa ideia de que o professor não pode punir?
Ele não tem mais autonomia, voz ativa. Isso é uma coisa que dificulta muito o
nosso trabalho.

Em seu depoimento, a professora enumera uma série de fatores que dificultariam


o trabalho do professor. Estas dificuldades apontadas, contudo, não dizem respeito a
fatores de ordem didática – por exemplo, o acesso a recursos tecnológicos, livros ou a
participação em cursos –, ou de infraestrutura – as condições materiais da escola. Suas
queixas concentram-se em um tipo de dificuldade que incide sempre sobre a autoridade do
professor, e que provém de diversas fontes distintas. Em primeiro lugar estaria “a sociedade”,
que não “respeita” mais a escola, com isso “desvalorizando” o professor. Em segundo lugar,
haveriam as mudanças de natureza legal (o Estatuto da Criança e do Adolescente), que,
em sua visão, aproximariam atitudes disciplinares tradicionais de determinados ambientes
escolares (“chamar a atenção” ou “colocar de castigo”) a infrações legais (“constrangimento
público” ou “cárcere privado”). Em terceiro lugar estaria a família, que contestaria as
atitudes do professor, assumindo uma postura de “defesa” de seu filho.
Algumas passagens deste depoimento iluminam a lógica destas queixas, que
apresentam um tom nostálgico em relação a um passado em que “o que o professor
falava era lei” e “o que o professor falava estava certo”. Se dispositivos legais sobrepõem-se
agora a práticas disciplinares tradicionais, e se a família, em vez de aliar-se ao professor,
contesta seu saber pedagógico, o efeito é a perda do respeito do aluno pelo professor, como
decorrência da certeza de impunidade diante de qualquer malfeito. Em decorrência, o
professor é descrito como “não tendo mais autonomia, voz ativa”, o que teria como efeito
o solapamento da sua autoridade perante o aluno.
Este tema da autoridade pode ser, assim, entendido, em nosso conjunto de
depoimentos, como um fio que alinhava os diversos tópicos aqui tratados. Em primeiro
lugar, temos a recusa, seja ela estratégica (preservação consciente de si e de seu local de
trabalho) ou simbólica (a “alterização” da violência), a nomear como “violentos” episódios
ocorridos em sua escola, o que pode ser entendido, de um ponto de vista genérico, como um
esforço de negar o solapamento desta autoridade (“aqui isto não acontece”); em segundo
lugar, a ressemantização da violência, (con)fundida com episódios de indisciplina; e,
em terceiro, a negociação com a família quanto à responsabilidade por educar/conter/

105
controlar o aluno.
A centralidade da temática da autoridade nos conduz ao quarto e último ponto
de nossa análise: a presença do tema da aprovação automática em vários depoimentos.
Inserido de forma espontânea por vários entrevistados, a recorrência deste assunto pode
causar estranheza devido à sua inexistência no roteiro original das entrevistas. À luz do
tema “autoridade”, contudo, o interesse dos professores por este tópico ganha enorme
relevância, pois nos dá uma pista para entender o modo como “violência” é compreendida
no contexto escolar.

Considerações Finais

O depoimento dos professores trouxe um dado interessante para o qual não havíamos
feito qualquer hipótese no início da pesquisa: relação entre aumento da violência e a
política de aprovação automática do município do Rio de Janeiro. Tal associação, expressa
sob a forma de uma introdução espontânea por vários entrevistados do tema da aprovação
automática no decorrer de seus depoimentos, provocou na equipe um conjunto de
pequenas e/ou mais refletidas ligações para as quais chamamos a atenção neste trabalho.
A política de aprovação automática não pode ser classificada apressada e levianamente
como “politiqueira”, “ideológica”, “irresponsável” ou “oportunista”. Os especialistas que
a fundamentaram o fizeram com base em ponderações persuasivas dos pontos de vista
pedagógico e psicológico. O que significa reprovar uma criança nas primeiras séries
do ensino fundamental, o que vale dizer, nos primeiros anos de socialização escolar?
Estamos falando de crianças na faixa etária de seis a dez anos, sem considerarmos o fato
de poder haver defasagem idade/série, o que elevaria a faixa etária acima dessa referência.
Educadores e psicólogos ponderam sobre os efeitos perversos, emocionais e psicológicos,
advindos da decisão ou do anúncio da reprovação, com desdobramentos profundos sobre
a experiência de socialização das crianças, sobre o rendimento escolar e a convivência
humana. Ser reprovado é perder o convívio com a turma e significa estigmatizar crianças
com efeitos negativos duradouros dificultando a recuperação posterior. Não reprovar
crianças no início da vida escolar pode ser fundamental para sua permanência na escola,
para o interesse pelo estudo e a possibilidade de motivação com reflexos positivos para o
melhor rendimento e para um desempenho mais adequado na rotina escolar.
Como fazer, então, para evitar que crianças entrem e sigam as séries fundamentais,
não aprendam o básico e continuem em progressão negativa acumulada? O complemento
da política de aprovação automática seria o sistema de ciclo – um processo constante de
acompanhamento individualizado dos alunos de modo a perceber fragilidades e agir
sobre elas sem que se marque o estudante com reprovação em disciplinas. E neste ponto o
desafio iminente seria viabilizar a combinação entre aprovação automática e efetivação do
sistema de ciclo. Isso não acontece na rede pública do Rio de Janeiro. As razões do fracasso
ou da extrema dificuldade do sistema de ciclo formam uma lista nada desprezível: 1)

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turmas com número excessivo de alunos, impedindo o acompanhamento individualizado;
2) sobrecarga ao corpo docente, não preparado para essa alteração de função e para as
exigências pedagógicas que tal intervenção reclama; 3) problemas endógenos às escolas
(materiais, infraestruturais, humanos etc.); d) problemas externos à escola com impacto
sobre a rotina escolar (desestruturação familiar, ambientes afetados pela insegurança são
desafios permanentes que afetam o ambiente escolar e que se interpõem ao corpo docente).
A combinação das dificuldades interpostas ao bom rendimento do sistema de ciclos com
a efetivação da aprovação automática produziu o contrário do esperado originalmente.
Os estudantes obtiveram “licença para seguir adiante” sem qualquer correspondência de
acompanhamento e avaliação individualizada. Pesquisa recente de um aluno de mestrado
do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UERJ confirmou as dificuldades
encontradas em uma escola da rede pública para a implementação da política de ciclos
e a junção feita no discurso dos professores do desacerto de ambas as iniciativas: o ciclo
e a aprovação automática ( Jaime, 2007). Também ali encontramos reforço à fala de
professores que veem com muita apreensão os desdobramentos de tais políticas sobre a
melhoria da educação pública no Rio de Janeiro.
No caso de nossa pesquisa, as falas dos professores ampliaram o cenário crítico com
a observação de que a aprovação automática retira do professor aquilo que o distingue
do corpo discente: a autoridade de avaliação. A despeito de sua interferência sinalizando
o despreparo do estudante para seguir, o aluno segue por séries continuadas sem que a
apreciação pedagógica docente seja considerada. Podada na base, naquela dimensão que
mais obviamente identifica a posição do professor diante da turma, a autoridade se esvai
com implicações para além da fronteira estritamente conteudista, de conhecimento,
pedagógica. Os professores estariam “desmoralizados” diante da turma como atores
qualificados para orientar sobre o percurso de aprendizado e, em correspondência, sobre
o percurso das relações intraescolares. O esvaziamento da dimensão de autoridade nos
pareceu ser a fonte de muitas outras avaliações que atravessaram os depoimentos, exigindo
dos analistas uma postura mais atenta aos seus desdobramentos e às consequências daí
advindas. Estaria a autoridade docente dependente de um único aspecto da atividade
de magistério, a possibilidade de reprovação? Seria tal percepção um estreitamento da
percepção do sentido de autoridade pelo corpo docente? O que significa reduzir o sentido
de autoridade à sua dimensão repressiva? Há uma ponte direta entre esvaziamento da
autoridade de reprovar e perda da capacidade de se fazer obedecer em outras orientações
de vida?
Aprovação automática e indisciplina se casam nos depoimentos dos professores
como sinais da perda de controle e do aumento da violência entendida aqui em uma escala
muito mais ampla das relações humanas que se efetivam no universo escolar.
A inserção espontânea do assunto “aprovação automática” aponta, assim, para
o tema da autoridade como eixo central organizador das percepções dos professores
entrevistados sobre o tema da violência nas escolas, interligando: a - o deslizamento entre

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as noções de violência e indisciplina; b - a interpretação nativa “eliasiana” das relações
entre ausência de socialização primária para o respeito para com o outro e a eclosão
da violência/indisciplina na escola; e c - a relevância da discussão sobre a quem cabe a
“responsabilidade” pelo aluno, se à escola ou à família, com o esmaecimento da fronteira
entre os papéis de pai/mãe e professor(a) surgindo como denúncia recorrente. Este banco
de entrevistas constitui, assim, um conjunto precioso de dados para a análise do modo
como o problema da violência nas escolas é percebido pelos professores, evidenciando um
processo de ressemantização que o vê não como uma questão isolada, mas, sim, como algo
que possui articulações profundas com outros aspectos do cotidiano escolar e da própria
identidade da profissão de professor.

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