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João Emiliano Fortaleza de Aquino

em relação à Guerra de Tróia, cantada por Homero.


Segundo argumenta, “sendo natural supor que ele
[Homero], como poeta, tenha adornado e amplificado a
··················· 2 expedição, é evidente que ela foi comparativamente [à
Da inteligência e da utilidade da história em Guerra do Peloponeso] pequena” (I, 10, itálicos meus). A
Guerra de Tróia, “embora muito mais notável que qualquer
Tucídides
outra anterior, foi [...] inferior à sua fama e à repercussão que
···················· até hoje, graças à influência dos poetas, tem continuidade” (I,
11, itálicos meus). Tucídides, assim, mantém inseparáveis a
Nos primeiros 23 parágrafos do livro I de sua argumentação em favor da maior importância dos
inacabada obra sobre a Guerra do Peloponeso,1 Tucídides acontecimentos que irá narrar em relação àquele narrado
procura demarcar não apenas a importância dos por Homero e a argumentação contra a própria narrativa
acontecimentos sobre os quais irá narrar, mas também seus poética. Tucídides caracteriza a postura poética como
procedimentos de investigação e exposição, procurando fantasiosa, pois “adorna” e “amplia” para além de sua
distingui-los tanto dos das narrativas poéticas quanto dos realidade os acontecimentos que narra; ao mesmo tempo,
presentes em Heródoto.2 ele chama a atenção para a grande (e má) influência da
poesia, capaz de fazer a Guerra de Tróia ter – para além do
Argumentando que a Guerra do Peloponeso foi o
que permitiria suas dimensões reais – “fama e repercussão”.
maior acontecimento até então vivido pelas cidades gregas,
o que maior número de pessoas e esforços humanos e Aquilo que Tucídides critica na poesia e em seus
materiais mobilizou, Tucídides é levado a demonstrar isso procedimentos narrativos tem a ver, segundo a lógica de
sua argumentação, com a própria tendência dos “homens...
_____ [que] aceitam uns dos outros relatos de segunda mão,
1. Tucídides, História da Guerra do Peloponeso. Trad. br. Mário da negligenciando pô-los à prova, ainda que tais eventos se
Gama Kury. Brasília, DF: Editora da Universidade de Brasília, 1982.
relacionem com sua própria terra” (I, 20). Essa crítica, que,
2. Ele afirma, ao final de todos esses esclarecimentos, que sua além de à poesia, pode ser estendida a Heródoto, que relata
narrativa não é “uma composição para ser ouvida apenas no momento
da competição por algum prêmio” (I, 22). Sabe-se que Heródoto leu sua tanto o que viu quanto o que ouviu de outros,3 pretende
História nos Jogos Olímpicos, leitura a qual, aliás, segundo Marcelino pôr em questão a falta de exigência dos homens acerca do
(autor de Vida de Tucídides), Tucídides teria ouvido e com ela que sabem dos fatos e do que pensam acerca deles.
emocionado-se até as lágrimas; assim, ele parece identificar justamente
aqui nessa crítica algo de comum entre a poesia dos poetas e os _____
testemunhos relatados por Heródoto. Este acontecimento é o que 3. Heródoto, em I, 1-5, relata o que, acerca do rapto de Helena,
inspira um belo artigo de J.-M. Gagnebin (“O início da história e as dizem os persas, depois o que dizem os fenícios e, por fim, sua própria
lágrimas de Tucídides”. In: Sete aulas sobre linguagem, memória e história. Rio opinião sobre os conflitos entre helenos e bárbaros; o mesmo
de Janeiro: Imago, 1997). procedimento ele mantém nos diversos outros relatos que apresenta.

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Fundamentalmente, essa crítica dirige-se à relação que os da fábula, perdendo, assim, a credibilidade (I, 21).4
homens mantêm com a “verdade” dos fatos, donde sua A sua proposição é, com efeito, a de uma “precisão
tendência a admitir erroneamente os acontecimentos, sejam suficiente” na apuração e narração dos fatos, “à base de
eles narrados pela poesia, por quem os testemunhou ou por informações mais nítidas, embora considerando que
quem ouviu sobre eles de terceiros, o que ocorre mesmo no ocorreram em épocas mais remotas” (idem). Assim, ele
que diz respeito a fatos dos quais a proximidade do tempo pretende estar indicando as “razões” ou os “motivos”
não impede a lembrança. “Há muitos outros fatos, (aivti,ai, aitíai) e “fontes” (prw/ta, próta) da Guerra do
também”, diz Tucídides, “pertencentes ao presente e cuja Peloponeso, iniciando, a seguir, a narrativa dos
lembrança não foi embotada pelo tempo, a respeito dos acontecimentos pelo “pretexto” ou “alegação” ou ainda
quais os outros helenos mantêm igualmente opiniões “causa a mais verdadeira” (h` avlhqesta,te pro,fasij, hē
errôneas” (idem). O que quer Tucídides com isso é álēthestáte próphasis) (I, 23).5
precisamente afirmar a necessidade de substituir tais
práticas por procedimentos mais rigorosos na investigação Diferenciando-se da poesia e de Heródoto, Tucídides
acerca do que se deve dar fé; afinal, essa ingenuidade reconhece a “ausência do fabuloso” em sua narrativa, o
corrente frente às narrativas expressaria, segundo ele, “a que, sem dúvida, poderia torná-la desagradável, mas isso se
aversão de certos homens pela pesquisa meticulosa da justificaria por seu propósito de estabelecer uma “idéia
verdade, e [o quanto] tão grande é a disposição para valer-se clara” dos acontecimentos relatados, isto é, suas “causas”,
apenas do que está ao alcance da mão” (ibidem). suas “razões”, suas “explicações”, a partir da “averiguação
verídica” dos fatos. O que diversos comentadores, no
Essas suas posições, contemporâneas dos primeiros entanto, chegam a dizer é que, quanto aos procedimentos
esforços da filosofia (no caso, os sofistas e suas técnicas narrativos, Tucídides não se afastaria de fato da experiência
retóricas, baseadas na contraposição de argumentos) e do literária da Grécia clássica, mantendo, nesse aspecto,
combate político aos demagogos nas assembléias profundas correspondências formais com a poesia e a
atenienses, esmeram-se por constituir procedimentos de tragédia gregas do período: a preocupação com a unidade
investigação e exposição dos fatos passados e presentes que
se opunham, assim, _____
de um lado, às versões que os poetas cantaram, 4. Segundo propõe J. M. Gagnebin, essa oposição de Tucídides à
prática de trocar a “verdade” pelo esforço de “agradar ao povo” tem a
adornando e amplificando os seus temas, e de outro
ver com seus elogios a Péricles, que falava para “educar” o povo,
[...] [aos] logógrafos [que] compuseram as suas obras diferentemente da atitude dos demagogos nas assembléias (Cf. J. M.
mais com a intenção de agradar aos ouvidos que de Gagnebin, obra citada, p. 32).
dizer a verdade, uma vez que suas histórias não
5. Cf. Thucydide, La Guerre du Péloponnèse, Livro I. Trad. fr., introd. e
podem ser verificadas, e eles em sua maioria notas de Jacqueline de Romilly. Paris: Les Belles Lettres, 1995; P.
enveredaram, com o passar do tempo, para a região Pédech, La méthode historique de Polybe. Paris: Les Belles Lettres, 1964, p.
56.

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da ação, o uso dos diálogos, a relação entre as ouvi-los. Ainda que esquecidos em suas palavras, os
argumentações e o desenvolvimento da ação.6 discursos dos atores dos acontecimentos são guardados em
sua inteligibilidade, o que justamente possibilita a
Explicitando seus procedimentos, Tucídides adverte
inteligibilidade das próprias ações e acontecimentos
justamente que “quanto aos discursos pronunciados por
durante a guerra.
diversas personalidades... foi difícil recordar com precisão
rigorosa os que eu mesmo ouvi ou os que me foram Segundo Jacqueline de Romilly, temos, neste aspecto,
transmitidos por várias fontes” (I, 22). Assim, frente a essas algo fundamental quanto ao método de Tucídides: a
dificuldades antes já assinaladas como inevitáveis – não apresentação dos acontecimentos com base no conflito
sendo razoável “dar crédito a todos os testemunhos nessa entre duas intenções contrárias (ainda que, no decurso da
matéria” (I, 20), já que “as testemunhas oculares de vários narrativa, sejam vários os pares que, em momentos
eventos nem sempre faziam os mesmos relatos a respeito distintos, dialogam). O que ele procuraria, dando
das mesmas coisas, mas variavam de acordo com suas importância aos discursos e diálogos, seria precisamente
simpatias por um lado ou pelo outro, ou de acordo com expor as intenções dos sujeitos das ações e, nessa via,
sua memória” (I, 22) –, Tucídides diz ter resolvido elucidar o desencadeamento dos acontecimentos numa
reproduzir tais discursos com as palavras que, segundo o unidade de ação. A racionalidade, a inteligibilidade dos
seu “entendimento”, foram usadas, de acordo com os acontecimentos se apresentaria com base nessas intenções,
“assuntos” e “sentimentos” próprios à situação, argumentações e exposições de razões que, no entanto, não
resguardando, no entanto, o seu “sentido geral”. Em outras se limitam sempre às intenções imediatas de determinadas
palavras, a busca por procedimentos rigorosos que personagens. As intenções ditas, ao anteciparem ações,
articulem fatos verificáveis lhe possibilita, quanto aos ajudam a entender – ou a começar a entender – os motivos
discursos, e dada a fragilidade da memória, reconstitui-los do fracasso ou do sucesso delas; nos discursos e diálogos,
segundo a sua racionalidade, racionalidade apreendida ao os sujeitos explicam suas razões. Portanto, a racionalidade
dos acontecimentos se construiria, na narrativa de
_____ Tucídides, com fundamento nos próprios sujeitos. No
6. Cf. J. Romilly, Histoire et raison chez Thucydide. Paris: Les Belles entanto, se se trata para ele de constituir – na “unidade de
Lettres, 1967, todo o primeiro capítulo dessa obra, intitulado “Procedés
du récit”, no qual a autora cita diversos estudiosos que mantêm esse ação” – o “fio condutor” dos acontecimentos, as intenções
mesmo ponto de vista. Ela analisa até mesmo o uso por Tucídides de contrárias vão para além das intenções imediatamente
determinados recursos literários comuns à época, como as repetições de individuais: elas se transfiguram, segundo ainda J. Romilly,
termos em distintas situações narradas sempre que essas situações nas intenções das forças que estão em conflito: ora os
expressem, para ele, similitudes: “Quando o próprio ato, por sua discursos de Péricles ou as resoluções da assembléia
repetição, traduz a unidade de intenção, ele o informa em termos
similares” (p. 45). Esses termos literários, assim recorrentes, constituir- ateniense, ora simplesmente Atenas versus Siracusa. A
se-iam de correspondências e imagens verbais, muito comuns na poesia conseqüência conceitual desse processo de entendimento
lírica (Píndaro) e trágica grega. do desenrolar histórico é central à estrutura da narrativa

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tucididiana. Segundo diz essa autora, exigência de inteligência das ações, dos fatos e
O ser individual se funde então num sistema que o acontecimentos. Coerente com suas preocupações em
ultrapassa e que põe em relação condições, fatores, tomá-los de modo a esclarecer suas causas, seus nexos e
forças, e dá a cada um seu lugar: a explicação não suas conseqüências, Tucídides diz tê-los relatados “não
procura mais unicamente fazer compreender ti, como apurados através de algum informante casual nem
boulo,menoj (em vista do quê) um personagem age, como me parecia provável, mas somente após investigar
mas pw//j eivko,j (em virtude de qual encadeamento cada detalhe com o maior rigor possível” (I, 22). Nesse seu
normal) ele é conduzido a agir de tal maneira e a procedimento, segundo J. de Romilly, Tucídides apresenta
conhecer tal sucesso.7 os discursos, diálogos e fatos como exposições de uma
Essa é também a interpretação de Paul Pédech: lógica, de um encadeamento de ações e acontecimentos que
ele, antes, já compreendera; portanto, as falas e ações dos
Se Péricles, Nícias, Alcibíades parecem se destacar personagens apresentam-se – em sua narrativa – já
[na narrativa de Tucídides] com um certo relevo, eles
alinhados segundo essa inteligibilidade articulada, na qual
o devem menos por seus traços individuais, dos quais
Tucídides é avaro, que pelo privilégio de encarnar em quase nada é casual. Por outro lado, esse último
um momento dado uma corrente política [courant procedimento revela que as ações e os fatos que ele narra
politique]... O indivíduo não é um fator histórico correspondem a uma inteligibilidade que escapa aos seus
determinante; ele não interessa sobre o plano das próprios sujeitos, do mesmo modo que as intenções
causas reais, mas somente ao nível das causas contrárias vão além das intenções imediatas dos indivíduos.
acidentais e da execução. [...] Todos agem somente
em virtude das forças históricas que ordenam o feixe
“Tucídides”, diz Romilly, “faz aparecer na ação
de acontecimentos particulares.8 relações que escapam aos próprios atores”.9 Ele não faz,
portanto, uma história psicológica, ainda que essa dimensão
Assim, o jogo ou correlação das intenções contrárias esteja realmente presente em sua narrativa histórica. Essas
ganharia crescentemente, no esforço de Tucídides em relações que escapam aos indivíduos parecem dar-se
constituir uma história inteligível (isto é, que vá além da precisamente porque eles intencionam e agem sempre no
“aparência” e da “desordem” dos fatos), um novo interior de determinadas relações que, no entanto, porque
significado: ele constitui-se nas “condições” nas quais os contraditórias e conflituosas, terminam – na guerra, que é o
homens agem e que, portanto, vão além das suas próprias objeto de Tucídides – por se independentizarem de cada
intenções. Daí ser possível falar – como o faz Romilly – um dos lados da disputa.
propriamente de “forças”, “fatores”; daí também por que
essa exigência da inteligência dos discursos seja também a Esta concepção da narrativa tucididiana tem uma
importância específica, justamente quanto à relação entre
_____
7. J. Romilly, Histoire et raison chez Thucydide, p. 51. _____
8. P. Pédech, La méthode historique de Polybe, p. 58. 9. J. de Romilly, Histoire et raison chez Thucydide, p. 58.

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esses procedimentos narrativos e o objetivo da apuração e diz Aristóteles, “a poesia é algo de mais filosófico e mais
da explicação dos fatos: a sua utilidade. Tucídides estava sério do que a história, pois refere aquela principalmente o
convencido de que a compreensão dos “fatos ocorridos”, universal, e esta o particular” (Poet., 1451 b 5-10). Se a
tal como ele a expõe, poderia ser útil à compreensão dos poesia narra ta. kaqo,lou, “os acontecimentos segundo o
que poderiam vir a ocorrer, dada a semelhança e analogia todo” ou “segundo o universal”, é justamente porque o faz
das circunstâncias. Em suas palavras, segundo a verossimilhança e a necessidade; distintamente,
quem quer que deseje ter uma idéia clara tanto dos diz o filósofo, a história narra ta. kaqV e[kaston, “os
eventos ocorridos quanto daqueles que um dia acontecimentos segundo o particular” ou “segundo cada
voltarão a ocorrer em circunstâncias idênticas ou um”. Por faltar à narrativa histórica verossimilhança e
semelhantes em conseqüência de seu conteúdo necessidade, ela apenas diz “o que fez Alcibíades ou o que
humano, julgará a minha história útil e isso me lhe aconteceu” (Poet., 1451 b 10). Neste sentido, a narrativa
bastará (I, 22).10 histórica pouco poderia ensinar, pois não haveria em sua
Neste passo, estamos diante de uma questão central: está narrativa nenhuma racionalidade, nenhuma universalidade.
aqui a fonte mais clássica da clássica consigna historia est A diferença entre a poesia e a história, assentada deste
magister vitae, “a história é a mestra da vida”; a fonte mais modo em ta. kaqo,lou e ta. kaqV e[kaston, é precisamente a
clássica, portanto, da idéia da utilidade prática da mesma que, segundo o quadro de níveis de conhecimentos
experiência histórica e, inseparavelmente, do conhecimento apresentado por Aristóteles na Metafísica, há entre a te,cnh,
histórico. O que significa esta idéia? Como compreendê-la? “arte” ou “técnica”, e a evmpeiri,a, “experiência”. Aristóteles
Neste ponto, façamos um pequeno desvio. Sabe- define esta última como o conhecimento constituído pela
se que, em sua Poética, Aristóteles opôs a poesia à historía memória com base nas sensações, de modo que,
de Heródoto. A poesia apresentaria ta. dunata. kata. to. sucintamente, diz ele, nos homens “a experiência deriva da
ei,ko.j h; to. av-nagkai/on, “os acontecimentos possíveis memória [...] muitas recordações do mesmo objeto chegam
segundo a verossimilhança ou [segundo] a necessidade” a constituir uma experiência única” (Met., 980 b 25 / 981
(Poet., 1415 a 35 / 1451 b 5, tradução levemente modificada).11 a).12 Apesar das semelhanças com a experiência, a tékhnē
Diferentemente da poesia, a narrativa histórica apenas diria dela se distingue justamente porque “de muitas observações
ta. geno,mena, “os acontecimentos ocorridos”. “Por isso”, da experiência, forma-se um juízo geral passível de ser
referido a todos os casos semelhantes” (Met., 981 a 5). O
_____ que temos aqui traduzida por “juízo geral” é, mais uma vez,
10. Por “conteúdo humano” Mário da Gama Kury traduz a
expressão grega avnqrw,pinon, anthópinon; a tradução francesa feita por J. a expressão kaqo,lou, “universal” ou “segundo o todo”. Em
de Romilly opta por “caráter humano” (cf. Thucydide, La Guerre du seguida a esta última passagem citada, Aristóteles oferece
Péloponnèse, pp. xiv e 15, respectivamente). _____
11. Aristóteles, Poética. Trad. br. e Prefácio de Eudoro de Souza. São 12. Aristóteles, Metafísica. Trad. it., introd. e notas de Giovanni
Paulo: Ars Poetica, 1992 (Edição bilíngüe grego/português). Reale; trad. br. Marcelo Perine. São Paulo: Edições Loyola, 2002.

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um exemplo: o conhecimento de um remédio que serve a poesia e a narrativa histórica, podemos dizer que ambas
Sócrates e também a muitos outros indivíduos, não é tékhnē, também só podem falar do particular; em outras palavras, é
mas sim empeiria, pois, embora diga respeito a muitos, a uma perfeitamente possível que o historiador e o poeta narrem
multiplicidade, o é, contudo, segundo o particular e não do mesmo modo o mesmo acontecimento. A diferença
segundo o universal; aqui ta. kaqo,lou se distinguem de, e se entre elas, contudo, é que a primeira, como tékhnē que é,
opõem a kaqV e[kaston polloi/j, “muitos segundo o narra o particular do ponto de vista do universal, ou
particular” ou “segundo cada um” (Met., 981 a 5-10). segundo o todo; a história, sendo experiência e, portanto,
Kath’hékaston pollois não são o mesmo que tà katholou, pois conhecimento segundo o particular, narra o particular do
ainda que aqueles sejam vários, muitos e mesmo todos, o ponto de vista do particular. De que se constitui, contudo, o
conhecimento deles se constitui segundo o particular. A conhecimento segundo o todo? Conforme Aristóteles, o
multiplicidade não é o mesmo que universalidade. Deste conhecimento universal se constitui do conhecimento do
modo, ainda que o saber da experiência dê conta de um porquê (to. dio,ti, tò dióti) e da causa (aivti,a, aitía): “Os
conjunto múltiplo de casos, ele o faz, contudo, segundo o empíricos conhecem o puro dado do fato, mas não seu
particular ou cada um, mas não de um ponto de vista porquê; ao contrário, os outros conhecem o porquê e a
universal, “segundo o todo”; unicamente neste último causa” (Met., 981 a 25-30). O empírico conhece o puro
modo de conhecer, os muitos ou a multiplicidade são dado do fato, assim como o historiador narra “o que
“reduzidos à unidade segundo a espécie”, katV ei;;doj e]n aconteceu”, o que “Alcibíades fez”. Ao contrário, por
avforisqei/sin (Met., 981 a 10); e, assim, concebidos num figurar o possível, segundo a verossimilhança e a
todo. necessidade, o poeta narra de acordo com a causa e o
porquê; a poesia é, por isto mesmo, mais próxima da
É isto justamente o que, por fim, Aristóteles termina
filosofia, diria Aristóteles.14
por dizer: “a experiência é o conhecimento segundo o
particular [ou segundo cada um, kaqV e[kaston], enquanto a Não pretendo desenvolver aqui um exame sobre a
arte é conhecimento universal [ou segundo o todo,
kaqo,lou]” (Met., 981 a 15-20). Ora, na medida em que todas _____
14. “O que é realmente notável nesta passagem é o fato de que a
as ações, assim como as produções, ocorrem apenas sob a distinção em questão, pelo menos à primeira vista, se dá mais entre
forma do particular – “o médico não cura o homem a não filosofia e historiografia, do que entre poesia e historiografia. [...] Por
ser acidentalmente, mas cura Cálias ou Sócrates ou qualquer filosofi,a Aristóteles normalmente entende nada mais nada menos do
outro indivíduo” – não há, no “agir”, diferenças entre que ciência, evpisth,mh. [...] O termo filosofi,a não designaria a
empeiría e tékhnē.13 Assim, voltando à discussão sobre a aspiração, e sim a familiaridade com certo saber” (C. W. Veloso,
Aristóteles mimético. São Paulo: Discurso editorial/ Fapesp, 2004, p. 155).
_____ Esta observação é pertinente, pois permite que se perceba em toda a
13. O substantivo to. prattei/n, “o agir”, é um termo mais amplo sua amplitude a exigência aristotélica implícita em sua crítica à história:
que inclui tanto a pra/xij, “ação”, quanto a ge,nesij, “criação, produção” ela estaria mais longe da ciência do que a poesia, pois não tematizaria o
de coisas materiais, concretas, e abstratas, imateriais. porquê e a causa.

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exatidão dessa consideração de Aristóteles sobre a narrativa palavras, a verossimilhança da narrativa se constitui
herodotiana, mas sim, independente da correção desse precisamente de sua necessidade.
juízo, propor uma determinada aproximação entre E em Tucídides, o que vem a constituir to.
Aristóteles e Tucídides, e justamente tendo em vista a
paraplh,sion, “aquilo que é semelhante”? Minha hipótese é
compreensão e discussão sobre a relação entre inteligência e
a de que, antes de tudo, esta noção de Tucídides reenvia ao
utilidade da história. Partamos daqui: a natureza “mais
problema do “sistema de forças” a que se refere J. de
filosófica” da poesia estaria, segundo Aristóteles, em que
Romilly. Segundo a interpretação dessa pesquisadora
sua narrativa se funda na verossimilhança e na necessidade.
francesa, o sistema de forças no qual os homens agem,
Ora, quando Tucídides considera que a história é útil
escapando às suas intenções subjetivas e às suas ações,
baseia-se tanto no “caráter humano” quanto nas
escapa também a qualquer psicologia individual e mesmo à
“circunstâncias idênticas” ou “semelhanças” dos
dos povos: constitui-se, sempre, de “relações íntimas entre
acontecimentos narrados e vindouros. A rigor, a palavra
os fatos”.15 Assim compreendido, este conceito de sistema
grega traduzida ao português por estas últimas expressões é
de forças nos permite pensar que o conceito de semelhança
a de to. paraplh,sion, “o que é próximo de”, “o que é
do qual faz uso Tucídides se refere – claro, não à relação
quase semelhante a”; não é, pois, o mesmo termo usado por
necessária entre o caráter das personagens e suas ações,
Aristóteles: to. eivko,j, que, porém, também significa “o que
como em Aristóteles – mas às semelhanças existentes entre
é semelhante a”, “o que parece com”. É inegável, portanto,
situações constituídas por sistemas de forças parecidas;
a proximidade semântica entre estes dois termos gregos.
semelhanças estas que apenas intelectualmente podem ser
De que se constitui a verossimilhança pensada por conhecidas, com base na inteligência dessas mesmas
Aristóteles? Justamente da necessidade, to. avnagkai/on. situações ou sistemas de forças. Daí precisamente por que o
Observo que Aristóteles não diz “verossimilhança e (kai,) conhecimento histórico pode ser útil: na medida das
necessidade”, mas sim “verossimilhança ou (h;) similitudes e verossimilhanças entre os acontecimentos
necessidade”. Não se encontra aqui uma dupla conceitual, passados e futuros, similitudes e verossimilhanças cuja
mas uma mesma exigência teórica a qual – neste contexto compreensão exige a inteligência de cada uma das situações
específico – pode chamar-se alternativamente por e sistemas de forças em particular, embora não – como diria
verossimilhança ou necessidade. Ora, a verossimilhança se Aristóteles acerca da narrativa de Heródoto – kaqV e[kaston,
constitui não da relação mimética entre a narrativa poética e “sob o ponto de vista particular”. A possibilidade da
algum acontecimento extranarrativa, mas da relação intelecção das semelhanças entre situações diversas,
necessária, não-casual, não-arbitrária, entre o caráter dos distantes no tempo, só pode residir justamente numa
personagens, as situações e as ações; isto é, a compreensão kaqo,lou, “do ponto de vista do todo”. Em
verossimilhança diz respeito à coerência interna da outras palavras, o conhecimento causal dos acontecimentos
narrativa, donde justamente ela pode ter inteligibilidade (ou _____
necessidade, o que vem a dar no mesmo). Em outras 15. J. de Romilly, Histoire et raison chez Thucydide, p. 50.

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em situações particulares permitiria o conhecimento de estar exatamente no “caráter humano” dos acontecimentos (e
acontecimentos semelhantes vindouros; deste modo, o que, por serem humanos, seriam previsíveis), mas nas
conhecimento histórico em Tucídides seria – como o é similitudes dos acontecimentos futuros (os “sistemas de
aproximativamente, para Aristóteles, a poesia – um forças”, a “situação”, as “relações íntimas entre os fatos”, de
conhecimento da semelhança, ou mesmo, da que fala Romilly); futuros acontecimentos semelhantes e
verossimilhança.16 Ainda que não seja uma epistémē, uma análogos devido, possivelmente, ao “caráter humano que é o
ciência no sentido aristotélico, seria, contudo, tão filosófica seu”. Mas por que, então, o caráter humano dos
(ou científica) quanto a poesia, e não simplesmente uma acontecimentos futuros os tornaria semelhantes e análogos
experiência. aos do passado? Talvez pensar numa natureza humana fosse a
melhor resposta; ou a mais fácil. Mas outra hipótese é possível:
Ora, esses dois aspectos – o sistema de forças
as ações humanas, por serem humanas, escapam sempre aos
constitutivo da situação e a busca de uma sabedoria eficaz da
seus sujeitos, articulando-se – como diz Romilly – num
verossimilhança – colocam-nos em face de uma interpretação
sistema de forças que lhes é independente e que, por isso, nos
muito difundida, a interpretação de que a história ensinaria
permitiria pensar os acontecimentos segundo uma causalidade,
porque, para Tucídides, a natureza humana seria a mesma,
ou ainda, segundo o “motivo mais verdadeiro” (I, 23).
devendo repetir-se nos acontecimentos semelhantes e
análogos. Em outras palavras, a possibilidade de a história
ensinar dar-se-ia pelo previsível comportamento dos homens,
determinados por uma sua natureza. Com base no que disse
acima, considero que um outro entendimento é possível.
Afinal, se mesmo as ações humanas terminam se articulando
em um sistema de forças que escapam aos homens, indo além
tanto de suas intenções primeiras quanto de suas ações
imediatas, parece que é unicamente com base nessa conjunção
articulada de forças contrárias – na qual os homens estão e
somente no interior da qual podem agir – que eles
efetivamente agem. Assim, a tônica de Tucídides não parece
_____
16. Segundo J. de Romilly, Tucídides não apenas teria assumido
teoricamente, ao lado dos sofistas, como método de pesquisa e
exposição, a prática muito comum na democracia grega do uso do
diálogo, das contradições e argumentações, mas também, como aqueles,
pretendera “fundar sobre a verossimilhança dos comportamentos uma
sabedoria eficaz” (J. de Romilly, “Introduction” a Thucydide, La Guerre
du Péloponnèse, p. xiv).

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