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A frase acima, extraída do conto Felicidade Clandestina, de Clarice Lispector, surge da elaboração
de uma experiência plena de sentido que faz a personagem, epifania, acerto de contas com uma
consciência que tardiamente alcança o mundo e, ao encontrá-lo, fazer emergir a experiência do
absurdo.
No conto, a autora narra as desventuras de uma menina que gozava previamente da leitura de As
Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, um livro, em suas palavras, “para se ficar vivendo
com ele”. Como estava “muito acima de suas posses”, seu desejo seria realizado
“clandestinamente”, isto é mediante a iniciativa da mãe da colega sádica, filha de dono de livraria, a
qual, à revelia da filha e após inúmeros contratempos, decide emprestar o livro à personagem, “pelo
tempo que quisesse”.
A personagem, após a conquista de seu objeto de desejo, chega a casa e não começa a ler. Como ela
mesma diz: “Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li
algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer
pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes.
Criava as mais falsas dificuldades pra aquela coisa clandestina que era a felicidade”.
A despeito da riqueza do conto como uma totalidade, há, a meu ver, núcleos de significado que
extrapolam os limites do enredo, dado o seu alcance existencial. Nesse sentido, interessa-me aqui a
renovação da alegria do encontro, da satisfação do desejo, o que se manifestava em seu
esquecimento voluntário da posse do livro, apenas para ter o susto de o ter.
A personagem de Clarice, consciente ou não da dinâmica do desejo – que, nada medida em que
alcança seu objeto, condena-se a retornar ao ponto de origem, a saber, ao tédio, à incompletude e à
falta -, eleva-se a uma condição de liberdade, de superação do destino, ainda que efêmera. Cria
estratégias para vencer o ciclo de prazer e desprazer e, mesmo que não possa de todo se
desvencilhar dele, renova-o antes mesmo que ele pereça. Não houve espaço para o desprazer, dada a
distância encurtada entre a partida (desprazer) e a chegada (prazer).
Quanta injustiça acreditar em um único deus. Sim, digo deus, com letra minúscula mesmo. E não o
faço por desrespeito, e sim por vingança. Tínhamos noutros idos vários deuses. Eles, em seus
conflitos e caprichos, preparavam-nos para o mundo que é, o único que subjetivamente é.
jan.sobieski@gmail.com adicionar