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O bios midiático na cena social contemporânea

Palestra de Muniz Sodré - 27/05/2008

Mariluce Moura − Boa tarde. A palestra do professor Muniz Sodré faz parte da série de
encontros com a pesquisa ligados à Exposição Revolução genômica. Nessas palestras estamos
tentando trazer para o debate com o público não apenas questões fundamentais referentes à
pesquisa da genômica, mas também alguns temas muito importantes sobre a produção do
conhecimento científico contemporâneo. Além das áreas das exatas, as humanas também
entraram aqui normalmente, compondo esse painel de discussões importantes, necessárias para
que a gente reflita sobre a ciência que se constrói aqui no país no século XXI.

Hoje nós vamos ter o professor Muniz Sodré falando de um tema que parece assim, pelo título
“Bios midiático na cena social contemporânea”, meio misterioso, mas vocês vão ver que não é.
Eu chamei para apresentar o professor a professora Maria Immacolata Vassallo Lopes, titular da
Escola de Comunicação e Artes da USP e coordenadora de pós-graduação da ECA.
Pesquisadora já há muito tempo de epistemologia e telenovelas, é a nossa maior autoridade em
telenovelas. E eu a chamei também porque não me sentia muito à vontade para apresentar o
Muniz, porque afinal de contas ele é meu amigo há muitos anos, foi meu orientador de
mestrado, de doutorado, fui para a UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro] fazer essa
pós-graduação, tanto no mestrado quanto no doutorado, por causa dele, que eu acho assim um
dos grandes pensadores contemporâneos da comunicação – e estou falando da comunicação
pensada em termos internacionais, em termos mundiais. E a Immacolata vai ter mais
imparcialidade do que eu para apresentar o Muniz. Boa palestra para todos.

Maria Immacolata Vassallo Lopes – Boa tarde a todos, obrigada pela presença. A Mariluce
disse que eu ia ser mais objetiva, mas começo dizendo que pesquisa sem paixão não existe.
Falar de um pesquisador também tem que ser com muito entusiasmo, principalmente em se
tratando do professor Muniz Sodré. De fato, como você mesma disse, um enfoque da palestra
dele pode parecer misterioso, mas é extremamente inovador. Nós que somos da área da
comunicação, sobretudo pensando o mundo hoje, vemos como o cenário nacional e
internacional é absolutamente comunicativo. Quem se dedica à comunicação tanto na prática,
como na teoria é como que obrigado a dar conta de todo esse cenário e inclusive indicar
caminhos. E eu acho que o professor Muniz Sodré é um caso desses, com uma larga trajetória

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pelos estudos da comunicação. Quero aqui resumir sua biografia para exatamente poder colocar
em perspectiva o tema de sua palestra.

O professor Muniz Sodré nasceu na Bahia, em São Gonçalo dos Campos, graduou-se em direito
pela Universidade Federal da Bahia (aliás dela vai receber uma comenda, não é professor?,
honoris causa), fez mestrado em sociologia da informação e comunicação pela Université de
Paris 4, na Sorbonne; doutorou-se em letras e ciência da literatura na Universidade Federal do
Rio de Janeiro, onde hoje é livre-docente, titular em comunicação. Exerceu o cargo de diretor da
Escola de Comunicação e também atualmente é presidente da Fundação Biblioteca Nacional,
órgão vinculado ao Ministério da Cultura.

O professor Muniz escreveu dezenas de livros e artigos na área de comunicação e cultura, além
de ser um pesquisador muito ativo é, como a gente diz no CNPq [Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico], líder, coordenador de um grupo de pesquisa que é
o Laboratório de Estudos em Comunicação Comunitária. Também ganhou o Prêmio Luiz
Beltrão de Maturidade Acadêmica, concedido por uma das associações de pesquisadores da
comunicação no Brasil, que é a Intercom. Além de ter sido jornalista profissional no Jornal do
Brasil, na revista Manchete, editor do periódico Cadernos Bloch de Comunicação. E, fora isso
tudo,o professor Muniz encontra tempo para proferir conferências e cursos em universidades da
Europa e da América Latina. Um dos pioneiros no campo dos estudos comunicacionais, ele é,
sem dúvida, o mais respeitado pesquisador da área no Brasil; e através de um estudo
bibliométrico que a gente está fazendo na área, o professor Muniz Sodré simplesmente é o autor
mais citado no campo da comunicação no Brasil. E a gente fala bibliométrico porque estamos
fazendo um levantamento adequado, objetivo, por essa metodologia da ciência da informação
que é a bibliometria.

Com seu trabalho inovador, constante, sistemático, o professor Muniz é responsável pela
formação de toda uma nova geração de pesquisadores no campo da comunicação. Dão idéia
disso a plêiade de títulos e de interesses de seus livros e também revelam sua inquietude na área
de comunicação, que passa por um entendimento da cultura brasileira, pela violência, pela
mídia, pela questão das celebridades hoje. Cidade dos artistas, que ele escreveu com a
professora Raquel Paiva; Corpo da mandinga; Multiculturalismo; Claros e escuros; Povo e
mídia no Brasil; Reinventando a cultura, os já clássicos livros da década de 1970 como o
Monopólio da fala, a Comunicação do grotesco. Muitos desses livros foram traduzidos,
principalmente para o espanhol e para o italiano. E o professor Muniz nessa jornada chega
realmente a um ponto de maturidade, continuando hoje a fazer muitos ensaios que são

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fundamentais para se repensar a área. Fez pesquisa de campo e pesquisa etnográfica. Portanto,
como pesquisador, como pensador da comunicação, o professor Muniz passa pelas diversas
áreas com diversas metodologias, com diversos aportes.

Atualmente ela está fazendo uma importante reflexão para a área da comunicação, que é sobre a
própria teoria da comunicação. Como o seu campo é vasto, que esperar dele? Quais são os seus
desafios? Em termos propriamente epistemológicos, teóricos, o professor Muniz tem nos dado
agora o desenvolvimento desse conceito de bios midiático, portanto se situando, vamos dizer
assim, num aspecto que seria da ontologia da comunicação, da filosofia, da antropologia, e
dando a verdadeira transdisciplinaridade desse campo.

Sua obra de maturidade, seu livro Antropológica do espelho, é sobre uma teoria da mídia, tanto
a mídia linear, rádio, televisão, cinema, quanto a mídia reticular, isto é, a mídia da rede, a
internet. E finalmente seu último trabalho, em termos de livro, é “As estratégias sensíveis −
afeto, mídia e política, em que realmente acho que ele quis colocar toda questão do fundamento
da comunicação, que é o do vínculo, do fenômeno do vínculo. Ele traz à tona isso tanto para a
política como para a própria constituição do homem contemporâneo.

Eu acho que não poderia haver nada mais adequado, pertinente, apropriado para a comunicação
se apresentar a vocês, que estão seguindo esse belo trabalho da Mariluce com a revista Pesquisa
FAPESP. Vamos ouvir agora o professor Muniz Sodré. Muito obrigada.

Muniz Sodré – Boa noite para todos.. É embaraçoso, embora seja gratificante, ouvir o que elas
falaram de mim, mas na verdade Immacolata poderia estar falando dela mesma, e de gente
comunicacionalmente respeitada que pensa, e aqui, como vocês podem ver, estão duas figuras
que sinceramente vão nessa mesma linha de não mais, digamos, repetir o conteúdo da mídia que
caracterizou durante muito tempo suas comunicações. Eu acho que nós estamos num momento
realmente de rompimento, de pensar reflexivamente a comunicação, tem um belo momento dos
estudos da comunicação no Brasil.

O grego antigo fazia uma distinção entre zoé e bios. Zoé é a vida crua, é a vida em termos
estritamente biológicos, que é a vida feito carne, é a vida natural, que é a vida a que se assiste,
que vê nascer, que desabrocha, é fisis, é natureza. E bios não é o mesmo, não tem o mesmo
destino etimológico e acabou tomando os mesmos significados latinos e bios para o grego é vida
socializada. Quer dizer, é a vida no interior da cidade-Estado, é a vida no interior da pólis. A
palavra bios é usada por um filósofo de quem sou particularmente fã, que é [Martin] Heidegger.

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Heidegger usa bios em vários dos seus textos, e ele diz que bios significa vida, mas com
freqüência, para ele, bios significa também biografia. É a vida no sentido de existência. Só que
Heidegger fala de bios quando ele fala da vida como orientação básica da existência, quando a
existência vem determinada por uma atitude essencial. Quer dizer, quando a existência vem
determinada por uma atitude possível ou por um modo de fazer básico daquilo que nós
chamamos o existir humano.

Essa noção de bios, o ingrediente constitutivo desse bios, dessa vida, é antecipação em
Heidegger. De onde é que ele tira essa idéia? Na verdade tira, como o fazem os grandes
filósofos do Ocidente, dos gregos. Rouba-se muito dos gregos, pilha-se muito dos gregos, o que
é normal, porque o pensamento é de certo modo pilhagem, é uma pilhagem criativa. Também
essa idéia do bios midiático me ocorreu lendo a Ética, de Aristóteles, a “Ética de Cômaco”,
onde ele falando da cidade, da pólis, explica que há três bios constitutivos, três esferas de
existência nas quais você se move. Uma é a esfera dos sentidos, a esfera dos prazeres, chamada
de bios apolaustikos; outra é a esfera do conhecimento, que é o bios theoretikos; e a esfera da
política, das relações sociais, que é o bios politikos. É nessas esferas socializadas que você se
move, que os bios se moveriam. Heidegger não, Heidegger vai dizer que o ingrediente
constitutivo do bios, portanto o modo básico do existir, é a antecipação, é a livre antecipação, ou
a escolha de uma determinada possibilidade de existência. Quando ele fala de bios, ele está
falando de escolher uma possibilidade de existência.

A obra literária, por exemplo, é um modo, ou um desses modos de antecipação da vida, quer
dizer, de fato essa antecipação da vida se dá pela teoria, se dá pela ciência, eu acho que a
revolução genômica está antecipando modos de ser da ciência, que se dá pela reflexão, pela
filosofia e se dá pela ficção. As palavras são diversas, mas dizem coisas semelhantes, quer dizer,
teoria, por exemplo, é você se dedicar a ver o mundo em suas muitas formas, enquanto ficção é
a criação de outros mundos. Eu acho que o cientista quando faz teoria também ficcionaliza,
inventa e depois tenta tecnologicamente comprovar suas invenções, suas hipóteses.

Mas eu vou partir aqui para explicar essa idéia do bios midiático, como eu fiz em Estratégias
sensíveis, de uma reflexão de um professor italiano de quem eu gosto muito, aliás ele comprou
uma casa em Salvador há algum tempo, chama-se Mario Perniola, é uma grande figura, ele diz o
seguinte: “Parece que é justamente no plano do sentir que a nossa época vem exercendo seu
poder, talvez por isso essa época possa ser definida como a época estética, não por ter uma
relação privilegiada, uma relação direta com as artes, mas porque essencialmente é um campo
estratégico dessa vida que estamos vivendo agora, não é o cognitivo nem é o prático, mas é o do

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sentir, é o campo da esthesis”. Ora, a nossa questão aqui, nós nos perguntamos nesse livro, é
sobre a possibilidade da existência de uma potência emancipatória na dimensão do sensível. Se
no afetivo, no que não é cognitivo, no que não é letra, no que não é racional, para além dos
cânones limitativos da razão instrumental, há alguma esperança de sentido.

Para bem refletir sobre esse assunto, nós teríamos que levar em conta a diversidade das ordens
de modernização do organismo social. O organismo social é modernizado por modelagens
diferentes, por modos muito diferentes. Se nós consideramos essa modernização do que
chamamos sociedade de modernização societária, quer dizer, a sociedade liberal moderna, com
os aparelhos de Estado, uma infra-estrutura institucional de mediação política, de negociação
pública, a que se dá o nome de sociedade civil, isso é o modelo societário, nós vamos perceber o
seguinte, que nesse modelo se concentram todas as representações, todos os dispositivos
disciplinares, os dispositivos de contenção, da força bruta, de monopolização estatal da
violência. Como [Michel] Foucault bem demonstrou, os enclausuramentos e as instituições da
sociedade civil, quer dizer as prisões, os hospícios, a escola, a família, o partido, o sindicato,
tudo isso compõe uma estrutura disciplinar que normaliza os indivíduos e produz a hegemonia.
Não é termo de Foucault, mas termo gramsciano que eu aplico aqui, quer dizer, hegemonia, que
produz dominação por consenso.

Ora, mas há uma outra modernização. Uma outra modernização que concentra as formações
humanas, sob o domínio e o poder dos dispositivos societários que se situa à margem da
centralidade produtiva da economia moderna; se situa à margem da produção de bens, da
produção de desejos, da produção de identidades que são socialmente valorizadas. Eu chamo
isso de modernização comunitária. Pode também ser chamada de outro modo, pois
“comunitária”, no caso, não é um adjetivo absoluto, porque outros tipos de designação são
possíveis, por exemplo, relações sociais de encadeamento, relações primárias, depende da
construção sociológica que se tenha. E tudo isso pode ser avocado para exceções ao domínio do
societário.

Pois bem, estou reservando aqui o sentido de uma modernização de sociabilidade que se
caracteriza por uma forte dinâmica de identificação, de diferenciação e de aproximação que
prescinde de território físico, não precisa de território físico. Falar de comunidade é em
princípio falar também de [Thomas] Hobbes, porque é um dos mais convictos adversários
clássicos da comunidade. Por quê? Porque Hobbes fez na comunidade a descoberta de que no
mais íntimo da sociabilidade humana está o medo. Hobbes dizia que não é preciso qualquer
hipótese, quanto ao suposto estado de natureza do homem para lidar com a argumentação.

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Ele dizia entender que, quando se diz comunidade, que em latim é comunidas, que o munos ou
comunis dessa palavra comunitas é obrigação radical que se tem para com o outro. O munos de
comunidade é isso, é uma obrigação radical. É o imposto originário que nós temos que pagar,
por nascermos agregados, por nos relacionarmos com outros indivíduos. Nós entendemos
comunidade como essa obrigação originária de dar e receber, essa obrigação da troca simbólica,
essa obrigação de você se identificar e você se diferenciar. É essa obrigação que o latim chama
de munos, e no fundo dessa obrigação Hobbes enxergava o medo. Medo de quê? Em última
análise, o medo da morte, o medo de morrer. Agregados, nós construímos defesas contra a
morte. Um homem é mortal, ele dizia, e por isso é sujeito do medo e sujeito ao medo.

Assim, na teoria hobbesiana, a morte é a própria origem da comunidade, no que ela tem de mais
terrível. Portanto o medo da morte atravessa e constitui a sociabilidade de tal modo que você
tem medo do medo. Quer dizer, é o temor de que isso que você sente como naturalmente
comum a todos seja propriamente nosso, seja dado nos dois momentos fundadores de nossa
existência, que é no nascimento e na morte. Ora, essa partilha desse medo foi objeto de uma
longa pesquisa na história do pensamento ocidental, em torno do princípio de que os homens,
pela paixão natural, ofendem uns aos outros, e está em elementos de Direito e política, de
Hobbes. Hobbes constrói uma antropologia da comunidade dizendo que aquilo que os homens
têm em comum é a capacidade de matar e, portanto, de ser morto.

O homem é na verdade o único animal que assassina, os animais matam por outros motivos,
para comer, para sobreviver, até o tigre, quando está velho, o que se diz na Ásia, tigre ataca
crianças, ataca quem parece indefeso ou ataca velhos que parecem indefesos, porque ele já não
tem dentes para disputar com os tigres mais novos. O único animal que efetivamente se
definiria, para Hobbes, por essa capacidade de matar e de ser morto é o homem.

Ora, é a realização histórica dessa comunidade no Ocidente que Hobbes e a modernidade


rejeitam. O processo civilizatório da modernidade ocidental repõe os conflitos inerentes à vida
comunitária numa sociabilidade que se caracteriza pela separação do indivíduo, regulada por
laços jurídicos. Isso é a sociedade. A sociedade regula os indivíduos separando-os e vinculando-
os por laços jurídicos e remotamente psicológicos. O fato societário que eu estou distinguindo
do comunitário é esse, indivíduos autônomos isolados ,mas juridicamente relacionados. Quer
dizer, a sociedade, portanto, tem mais a ver com imunitas do que como comunitas, mais com
imunidade do que com comunidade. Isso não quer dizer que desapareça o vínculo comunitário,
este permanece manifesta e latentemente nas relações de família, é uma comunidade forte, de

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vizinhança, mas também qualquer formação humana que explicite essa dinâmica de
identificação e de diferenciação. Na sociedade liberal clássica o fato comunitário era controlado
principalmente pela sociedade civil, que Hegel entendia como o conjunto das instituições
capitalistas para organizar o trabalho. E nessa organização se destaca o papel sociabilizante, o
papel educativo do trabalho.

Na contemporaneidade, e aí estamos chegando ao nosso tema, emergem outros dispositivos de


neutralização das tensões comunitárias. Dispositivos que vão realçar outros modos de produzir
desejo, de produzir identidades, de produzir necessidades. Portanto, vejam só, a sociedade já é
uma neutralização da comunidade, com o jurídico e com o psicológico. Eu vou falar agora de
um outro modo de neutralização do comunitário, e o principal desse modo é a mídia.

A mídia se constitui numa nova forma de vida, um novo bios, tal como descrevemos nesse livro
citado aqui, Antropológica do espelho. Portanto a mídia como a esfera existencial, inteiramente
regida pela economia monetária. Vejam só, essa idéia curiosamente está no próprio Aristóteles.
Se vocês lerem a “Ética de Cômaco”, depois de falar desses três bios, Aristóteles diz que
poderia haver um quarto bios, ele diz que é o bios dos negócios, ele fala do teórico, do político,
dos prazeres. Ele diz: “Os negócios poderiam constituir a esfera existencial própria”, mas não
constituem, pois Aristóteles diz que cada uma daquelas esferas está ligada com a felicidade,
com a harmonia, com a integração, a boa integração do indivíduo na pólis.

Ele diz que os negócios são necessários à comunidade, mas não está comprometida com a
felicidade, está comprometida com a concorrência, que é outra coisa. Ele é pouco explícito com
relação ao porquê desse não comprometimento com a felicidade, mas enfim inclui por isso. Foi
lendo a “Ética de Cômaco” que deduzi que a mídia é o quarto bios. A mídia na verdade é uma
esfera existencial, comprometida exatamente com os negócios, com o mercado e, diria,
inteiramente regida pela economia monetária. Quer dizer, é uma forma de vida contemporânea,
que, apesar de simular a naturalidade do mundo, se afasta cada vez mais das condições
concretas, das condições real-históricas da existência, ou seja, move-se numa esfera cada vez
mais abstrata, com relação ao trabalho e às formas concretas de existência. A mídia é uma
espécie de boca de Deus, uso esta expressão de Calvino, que se dizia: “Eu sou a boca de Deus”,
quer dizer, como profeta sendo a boca de Deus. Eu acho que a mídia é também uma boca de
Deus, mas de um deus chamado Mercado. Não é o mercado entendido como lugar técnico para
compra e venda de mercadorias e circulação de dinheiro, mas um lugar que vetoriza as relações
sociais em um momento histórico em que se enfraquecem e fenecem a clássica sociedade
política e a sociedade civil.

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Ora, por que isso ocorre? Por que se dá esse fenômeno? Eu diria que no momento, com o
capitalismo transnacional, com o megaincremento tecnológico, se amplia o mundo, o mundo
está se ampliando, a lei da organização estrutural do mundo, que é o capital, se planetariza e
submete direta ou indiretamente outras formas de regência da realidade, que uma vez fora da
realidade capitalista se destinam à miséria e à fome. Fora da realidade do capital, é a miséria e a
fome. Nessa conjuntura, o comum do homem, tanto a comunidade, é produzida por tecnologia
de distribuição e de informação por organizações de mídia, no espaço sem território, no espaço
sem predominância de marcações humanas ou de marcações simbólicas.

Vejam só para mim que estou tentando ver a totalidade, faz sentido que nesse momento se
trabalhe tanto o genoma, por mais benéfico e mais promissor e antecipatório que isso seja para a
ciência, para o homem de amanhã, o controle genômico, o controle do genoma, o mapeamento
do genoma, e a produção. O anúncio de produção artificial do ser humano, que começa com os
animais, já está de algum modo inscrita na própria história do Ocidente, que é uma civilização
ao mesmo tempo deicida, mata Deus, e parricida. O Ocidente é parricida. A morte de Deus foi
anunciada com essa interiorização do homem, anunciada por Nietzsche, e parricida também
porque a relação, digamos de constituição simbólica com os pais, vem sendo progressivamente
e aos poucos morta no Ocidente, mas nós não nos damos conta disso. Primeiro quando se corta
o culto aos ancestrais. A eliminação do culto aos ancestrais é o corte visceral da ética, que a
ética é a palavra do grupo de fundação, ética é a palavra do pai morto, do pai fundador do
grupo. Quando somos éticos, nós estamos de algum modo, narcisicamente, do ponto de vista da
fundação, repercutindo em nossos atos, nossas atitudes, a palavra daquele que, fundando um
grupo, queria que o grupo continuasse, que o grupo fosse preservado. Portanto a ética é essa
palavra do pai morto, é essa palavra da fundação.

Cortando o culto aos pais, o culto à constituição parental, a formação parental ou a junção
parental, nós de algum modo cortamos a ética e vamos progressivamente, digamos assim,
matando primeiro o pai simbólico, depois hoje o próprio pai biológico, já que se anuncia com
muita veemência, e eu diria com muita coerência, a possibilidade de que os filhos possam ser
produzidos com interferência não tanto direta do pai e − quem sabe se as mulheres estão muito
seguras das suas posições − sem as mães biológicas também. Eu acho que podemos ir nesse
caminho, podemos pensar nisso, e já se pode, aliás, pensar nisso.

Isso coincide com esse momento e com esse novo espaço, configurado primordialmente pela
tecnologia e pelo mercado, e o poder desse novo espaço, coadjuvado pela mídia, apequena o
poder do Estado. Trata-se de um espaço que se amplia tanto horizontalmente quanto por

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duplicação, na medida em que ele cria realidades paralelas, ou realidades virtuais por meio de
dispositivos de alta tecnologia. Significa: o comum do homem hoje é ampliado por computação,
é ampliado por telecomunicações, é ampliado por mídia, e assim aumenta a exterioridade
técnica do homem e reduz a dimensão do simbólico e a dimensão da linguagem.

Ora, como eu digo e repito, não é um fenômeno estranho ao pensamento ocidental, indicativa
disso é a frase de Hegel, em Lições sobre a estética, que diz o seguinte: ”O homem enquanto
espírito, ou o homem enquanto consciência, se duplica”. Quer dizer, ele sustenta que o homem
existe primeiramente para si, como objeto natural, existe como zoé, para si, mas logo depois
existe para o que ele chama e eu traduziria como “objetualização”, em tornar objeto, quer dizer,
da criação de artifícios, ou de objetos transformadores da natureza. O artifício, portanto, se
converte numa nova natureza. Agora, esse artifício é o enviroment, é o ambiente habitual e
doméstico do indivíduo. Portanto cada nova técnica – a qual, prestem bem atenção, não
devemos nunca recusar, isso não é uma fala reacionária minha − amplia por extensão ou por
duplicação o espaço humano, aumentando a espessura do envoltório protetor ao redor da
corporeidade, ao redor do corpo. Mas também está contribuindo para quê? Para eventualmente
tornar as formas protetoras mais importantes do que o protegido.

Esse fenômeno é um fenômeno notável nas tecnologias do ver e do ser visto, como em 1859 já
observava o escritor americano Oliver Wendell Holmes. A propósito da imagem fotográfica,
Oliver dizia que a fotografia, que ele definia − belamente, aliás − como o espelho dotado de
memória, marcava o início de uma época em que a imagem ia se tornar mais importante do que
o próprio objeto. Heidegger vai dizer isso depois, de uma maneira mais difícil, a imagem é mais
importante do que o objeto. Na verdade o objeto, enquanto digamos substância estática e
pesada, se tornaria inútil para ele diante das formas expressivas que iriam resultar da
desmaterialização das coisas.

Hobbes diz: ”Olha, a matéria em grandes massas é sempre custosa, enquanto a forma custa
pouco e é transportável. Ele diz: “De agora em diante nós somos donos do fruto da criação sem
mais o incômodo do caroço”. É textual dele: “Qualquer objeto da natureza e da arte se despojará
de sua superfície para cedê-la a nós. Os homens darão caça a todos objetos curiosos, belos,
grandiosos assim como hoje caçam animais na América do Sul para apoderar-se das peles,
abandonando as inúteis carcaças”. É uma descrição curiosa dessa duplicação das coisas.

Assim a transformação de um objeto em imagem implica a negação de dimensões materiais,

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como o relevo, como o peso, como o cheiro, mas também, isso é que nos interessa, o tempo e o
sentido. Quer dizer, se reduzem a duas as três dimensões do Universo. [Jean] Baudrillard era
muito amigo meu, e eu o acompanhei até o fim e vi a morte dele, ele falava aí de desencarnação.
Baudrillard via nisso aí a desencarnação. Ele chamava a atenção em que é para o preço dessa
desencarnação que a imagem ganha essa potência de fascinação, que a imagem se torna midium.
Ele chamava isso de objetualidade pura. Ele dizia que a imagem vai se tornar transparente a
uma forma de sedução mais sutil que essa sedução da forma.

Ora, mas a mídia hoje não se define como um puro dispositivo técnico, embora o suporte
técnico seja necessário. Não é também uma forma fechada em torno de uma gramática
expressiva − o midium é um conceito maior do que o conceito de televisão, de rádio, jornal, de
internet, quer dizer, o midium é propriamente o conceito dessas formas, é o conceito do
desdobramento tecnológico da cidade humana. Significa: o midium, a mídia, é uma espécie de
prótese ontológica para o controle das relações sociais e o controle das novas subjetividades por
tecnologias informacionais.

Portanto, vejam só, quando digo que a mídia é um conceito não estou dizendo na verdade
nenhuma novidade. Várias pessoas trabalham esse conceito metodologicamente, que é o caso
aqui da Immacolata, e muito falando de corpo e pensando nos textos do Norval que eu conheço
e da Malena. Eu acho que [Georg] Simmel, um sociólogo alemão realmente muito importante
para a comunicação, talvez tenha sido o primeiro a detectar essa prótese, a proposta da televisão.
Em 1936-40, por aí, ele dizia o seguinte: ”O espaço da emissão delimita uma nova região, uma
região que é dotada de características sociais, características geográficas e características
culturais próximas”. Portanto, ele dizia que o interruptor do aparelho de TV faz nascer uma
ordem sintética... O mundo da língua TV, a geografia TV, a comunidade TV. A televisão para
ele cria um espaço social que, no entanto, é de uma outra ordem, que é a simples melhoria da
vida familiar ou da comunidade.

Segundo Simmel, não há influência da televisão sobre a realidade, mas, ao contrário, há a


constituição de uma realidade. Vejam só, essa idéia está toda em Simmel, não há a palavra bios,
mas a idéia de bios está aqui. Quer dizer, a mídia e a tecnologia criando uma realidade próxima,
onde nós entramos. Hoje se torna claro o seguinte: esse espaço social criado por mercado,
tecnologias e onde entram os aportes tecnológicos da ciência é uma verdadeira forma de vida,
que não se limita ao escopo televisivo. É um pouco para entender melhor, quando eu queria
dizer conceito de mídia, porque mídia é um conceito, é um pouco assim, é como quando se
pergunta, onde é que está num livro de um capitalista a mais-valia de que tanto Marx falava?

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Você não encontra, você pega um livro contábil de empresa e não está escrito em lugar nenhum
lá “mais-valia”. Por quê? Porque a mais-valia é um conceito daquela exploração que se faz
sobre o salário do trabalhador e que vai permitir a acumulação. A mais-valia, portanto, não está
ali porque ela é um conceito.
Da mesma forma, um livrinho que eu ajudei a editar nos anos 1970, Rock o grito e o mito, de
Roberto Muggiati, que é um cara brilhante, escreve sobre jazz, definia o rock and roll de uma
forma muito prática, dizia assim: “Olha, aquele tipo de ritmo sempre existiu entre os negros, era
o rhythm and blues, eles dançavam daquela forma, cantavam daquela forma, mas depois surgiu
o rock and roll”. Qual é a diferença melódica, rítmica, do rock and roll para o rhythm and
blues? Nenhuma. E o rhythm and blues no entanto é diferente. Por quê? Porque o rock and roll
é o rhythm and blues, portanto, melodia e ritmo mais o disco de 33 rotações. O disco é uma
tecnologia superada, está desaparecendo, aparece o disco de 33 rotações com o disc jockey, mais
a rádio e o mercado. Portanto, o rock and roll é a música mais o midium. Portanto, prestem
atenção, da mesma forma o midium é o jornal, o rádio, a revista, a televisão mais o mercado,
mais uma sociedade conformada pela técnica e pelo capital.

Assim, a idéia do midium é um conceito, em que os dispositivos de informação entram como


componentes, como instrumentos do processo. Esse espaço é uma verdadeira forma de vida, e
que não se limita à televisão nem internet. Na objetualização do comum emerge hoje como
duplo exteriorizado, ou como ecossistema tecnológico, uma forma virtualizada de vida, a que eu
estou chamando de bios midiático e podia chamar de bios virtual: bios virtual, bios midiático é a
mesma coisa.

A manifestação mais evidente da virtualidade é o bios midiático. Estou retomando o conceito


aristotélico de bios como a esfera existencial da vida ético-social, organizada no interior da
cidade-Estado, distinta da zoé, que é a vida natural, que é a vida crua, a vida nua, a vida natural,
essa vida onde se insere a revolução genômica, onde efetivamente se mapeia o genoma. Mas,
não tenham dúvidas, é uma intervenção da tecnologia na vida nua, é uma intervenção da
tecnologia e, claro, no limite controle da vida nua e da vida crua. Ao lado dos bios tradicionais,
reconhecidos por Aristóteles, emerge esse novo, essa nova forma de vida, que é feita de quê? É
feita de fluxos, feita de letras, feita de sons, de imagens, esses fluxos digitalizados e redes
artificiais definidas por uma materialidade leve ou mesmo pela imaterialidade dos circuitos
eletrônicos. Ou seja, a partir de uma realidade sistêmica, que foi ponto de partida e infelizmente
ponto de chegada das análises de [Jürgen] Habermas, surge uma verdadeira forma de vida, que é
esse bios virtual, cuja ponta do iceberg dele, eu digo, é o bios midiático, que é uma espécie de

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comunidade afetiva, uma comunidade de caráter técnico e mercadológico, em que impulsos
digitais e imagens se convertem em prática social.

É esse o objeto dessa nova ciência social, chamada comunicação. Eu acho que efetivamente é
uma nova ciência social. Não há nada de intrigante aí, em termos de civilização. Essa realidade
que eu estou chamando de bios midiático só é possível porque, na modernização, as imagens já
estão inscritas na própria cultura, já estão inscritas na mediação do sujeito consigo mesmo. Quer
dizer, o novo bios é só uma nova exacerbação do processo, é uma forma de vida que torna
socialmente relevante quem intervém nas relações espaço-temporais, e nós percebemos o
mundo por essas relações espaço-temporais, nós agimos sobre o mundo a partir do tempo e do
espaço.

O indivíduo e o mundo se relacionam efetivamente por meio do tempo e do espaço, que são a
base de toda comunicação concreta, que são quadros de percepção mutáveis, que são formas
modificáveis segundo as variações da história e as variações da cultura. Portanto o bios
midiático é uma transformação técnica do espaço-tempo adequada às novas estruturas e às
novas configurações da vida social.

Uma maneira, digamos, mais sociológica, se eu quisesse apresentar essa realidade, eu podia tirar
da teoria dos campos sociais, de [Pierre] Bourdieu, que não é o meu sociólogo predileto, que
também pilha de Aristóteles, nem sempre ele diz isso, pois a idéia de campo vem de Aristóteles,
a idéia de hábitos vem de Aristóteles. A idéia de campos é para Bordieu uma tradução da idéia
de bios também, ele chama de campos um sistema de relações sociais que dá a cada sujeito
princípios, estratégias, conteúdos cognitivos que cabem em função do lugar que o indivíduo
ocupa na hierarquia social.

No campo da ciência, por exemplo, o cientista destaca e valoriza a questão que é reconhecida
como importante para os seus pares, quer dizer, fala das ciências exatas. Mas, digamos,
distinguir um bioquímico de um biólogo nem sempre é fácil, em geral nas equipes trabalham
todos juntos, junto com matemáticos, as separações se dão sempre em departamentos
administrativos das universidades. Mas vamos falar de uma coisa que me mascara, uma questão
de filosofia. Quem vai saber de questões filosóficas, que essa questão é reconhecida como tal
pelos pares, por aqueles que dentro do círculo administrativo universitário da filosofia
reconhecem-na como uma questão filosófica, o seu discurso é filosófico, quer dizer, filos é
aquele que os filósofos reconhecem como tal, não é?, da mesma forma com um biólogo.

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O campo se impõe como ordenação de procedimentos, como um protocolo de reconhecimentos,
e você pode levantar a hipótese de que a informação massiva contemporânea constitui um
campo social, relativamente autônomo, com repertório cultural próprio, com tecnologias
específicas, com formas diferenciadas de organização, que pode conformar as ações sociais dos
agentes inseridos dentro dessa forma. Ora, essa noção de campo parece proceder, na verdade, do
bios aristotélico, como eu disse, da mesma forma a noção de hábitos, que é uma noção
preeminente na teoria de Aristóteles. O Bourdieu pegou essa noção, fez dela uma categoria
central em sua obra, mas não me lembro dos livros de Bourdieu em que ele aponta isso como
tirado de Aristóteles, o que não é nada demais, todo mundo pilha dos gregos, todo mundo pilha
de algum lugar. Entretanto o bios virtual, o bios midiático de que nós estamos falando aqui, é
mais do que o conjunto de atribuições e de competências técnico-profissionais de um grupo, de
um campo, porque esse bios é uma forma de vida duplicada, uma forma de vida que engloba o
profissional e o público e instala um novo tipo de relacionamento com o real, um novo tipo de
relacionamento com a história.

Portanto, essa nova forma de vida implica uma intervenção profunda na dimensão espaço-
temporal clássica. Se retirarmos daquilo que nós chamamos de real o espaço e o tempo teremos
o virtual − o virtual é o real menos o espaço e o tempo. Ora, o bios virtual não está alinhado de
modo neutro ao lado dos campos sociais. Por quê? Porque ele participa ativamente hoje da luta
pelo controle das representações do real. O bios virtual afeta ontologicamente a própria idéia
moderna do social e do exercício do poder, isso vocês já observam na própria academia, nas
próprias pesquisas no nosso campo, é, digamos, desconfiar um pouco das utopias de felicidade
da internet, ou da cibercultura... Desconfiar que isso pode não ser a solução para o
relacionamento humano, imediatamente seria acusado de reacionarismo, há novas utopias
ligadas à cibercultura. Claro, toda a normitação social traz os seus detratores e traz os seus
utopistas. Por quê? Porque há alguma coisa de visceral, de fundo, se dando nessa intervenção no
tempo e no espaço, junto com outras intervenções que a ciência vai fazer na vida nua dos
indivíduos.

Aqui há intervenção na comunidade, na vida comunitária, com a revolução genômica, com a


ciência, intervenção na zoé, intervenção no corpo, na reprodução, no indivíduo mesmo em sua
reprodução. Fora desse viés sociológico, vários autores apontam para essa idéia, quer dizer,
você, fala em telecracia, o poder das teles, cibercracia, sociedade de controle, em [Gilles]
Deleuze, telerrealidade, eu mesmo usei essa palavra, não sei se tirei de alguém, porque faz
muito tempo. Na Máquina de Narciso, Bourdieu fala de telemorfose, para se referir à vida

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plasmada, à vida idealizada, o que ele chama o grau zero de significância da televisão. Mas eu
não acho, nesse ponto aqui eu destôo um pouco de Bourdieu, eu não acho que se trata de arrolar
os efeitos catastróficos da televisão, que é o principal meio síntese imagem do século passado,
sobre a realidade tradicional, eu acho que se trata agora de identificar uma nova forma de vida,
para cuja construção concorrem transformações importantes de toda uma estrutura social básica.

Nós estamos aqui além daquele panóptico, foi descrito primeiro por [Jeremy] Bentham, depois
por Foucault, não se trata mais de tornar as coisas visíveis a um olho externo, a um olho
exterior, mas de tornar as coisas transparentes a si mesmas, quer dizer, a potência de controle é
como que internalizada e os homens não são mais vítimas das imagens, eles mesmos se
transformam em imagens, o sujeito mesmo se transforma em imagem. Assim, uma telemorfose
integral da sociedade não deve ser compreendida como um efeito específico de programação de
televisão, mas é um evento da midiatização, quer dizer, um evento da articulação exponencial,
das tradicionais instituições sociais, com o conjunto da tecnologia da informação a reboque do
mercado.

Portanto, vejam só, em outros termos, se trata de uma associação estreita entre práticas sociais e
espaço público, ativada por processos tecnológicos da comunicação. Não há aí nenhuma
catástrofe, há uma mutação, há tão-somente uma mutação, é assim uma totalidade espacial,
virtualizada, ou eu chamaria de um fato social total, que é uma expressão de Marcel Moss, que
queria dizer com o fato social total um fato que permeia as instâncias econômicas, políticas,
culturais da sociedade.

A informação hoje permeia todas essas instâncias, a mídia permeia todas essas instâncias, ela
está na economia, está na política, está na cultura, mas com uma duração continuada, com uma
forma de vida − é por isso que eu falo em bios. Esse bios é característico de um novo tipo de
ordem social, em que a designação de sociedade controle pode ser adequada, conforme a
expressão de Deleuze, e em especial quando nós pensamos nesse bios como parte das
estratégias de indução, de um dispositivo técnico de controle da zoé, da vida nua, da vida
natural, esse bios como parte dessa estratégia de indução, de certo modo estamos preparados
pelo bios virtual para aceitar a virtualização da vida pela ciência.

Ora, em outras palavras, se trata de um novo tipo de atrator, um novo tipo de operador social,
mais temporal do que espacial, movido a tecnologia avançada. Como é que você detecta, como
é que você sabe que você está nesse bios? Nesse livro, acho que foi nas Estratégias sensíveis, há
um tipo de metáfora conveniente para você demonstrar que esse bios existe, é a metáfora passar

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de uma superfície ou de um registro para a tela; você está em uma superfície, na realidade
efetiva, e você tem a tela aí... ora, a metáfora é a fita de [August Ferdinand] Möbius, aquele
matemático e biólogo que Lacan usou muito, em que você passa de uma superfície para outra
sem quebrar a fita.

Outra é a metáfora sugerida por [Erving] Goffman: para dar conta da alteração de uma forma
social qualquer, ele fala em clave, e em inglês keying, quer dizer, por as coisas em clave. Você
sabe que a clave é um sinal que marca a elevação das notas e dá nome às notas em uma pauta
musical. Você bota a clave de sol, a nota tem um nome, bota a clave de fá, tem outro. É também
a clave com que você unifica temas em um discurso, você diz qual é a clave da sua fala, a clave
do seu discurso. Ora, a mesma conversa que você pode ter em uma mesa de bar pode se
transformar em uma aula se você aplica a clave do poder pedagógico. Por melhor que seja a
conversa de bar de um professor com um aluno dificilmente é aula, enquanto aquela aula que às
vezes é fraca na sala de aula, é aula, é uma aula fraca, mas é aula, porque é o poder pedagógico.

Aí Bourdieu tem plena razão, é o poder, são os mecanismos de controle de poder agindo. Mas a
clave do poder pedagógico é dada por instrumentos que nós professores bem conhecemos, mas
essa mesma clave e essa mesma conversa de bar, que pode virar uma aula se nós mudarmos de
clave, pode se transformar em material psicanalítico em um consultório (as conversas de
consultório psicanalítico são banais, são banalidades que se arrastam, quando não se é muito
doido, não é?). Na psicanálise há uma clave transferencial que cria um espaço próprio, que
confunde mito e história. Eu ria muito em uma novela, pois durante um tempo eu mexi com
psicanálise, uma novela em que o Milton Gonçalves era o psicanalista e tinha a mulher que fazia
análise e tinha dúvida em relação ao seu nascimento, se nasceu ou não de fulana, isso era outra
maneira da novela re-arrumar o tema do nascimento. Um dia o psicanalista manda investigar e
vai em busca da certidão de nascimento e a esfrega praticamente na cara da cliente: ”Olha aqui,
você nasceu foi aqui mesmo“ − nesse dia eu tive um acesso de riso com isso, porque não tem
nada a ver com psicanálise (risos), não se trata de psicanálise provar a verdade histórica de
ninguém, pois você tem que dar crédito ao discurso do cliente e inaugurar uma outra história ali
na sua relação com o psicanalista, porque você lança uma clave ali.

Se você lança em cima daquela história luz verde, você recolhe história verde, digamos que a
luz verde seja Freud, você é freudiano, você vai recolher uma história freudiana e o sujeito vai
ter sonhos freudianos, claro que vai ser induzido a isso: se você lança uma luz amarela, você

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tem uma clave junguiana, você vai sonhar com mandalas e as interpretações possivelmente
serão mandalínicas ou ligadas à gnose universal.

Não quer dizer que tudo disso seja falso, significa simplesmente que você vai obter o que a
clave lhe permite. Ora, o bios midiático é uma espécie de clave virtual aplicada à vida cotidiana,
é uma clave aplicada à existência real e histórica do indivíduo. Em termos de puro livre-arbítrio,
você pode entrar e sair dele, entrar e sair, você não está absolutamente dominado, você pode
entrar e sair. Mas nas condições civilizatórias em que nós vivemos − urbanização intensiva,
relações sociomercadológicas, em que há um predomínio do valor da troca capitalista − estamos
imersos nessa virtualidade midiática e isso nos dá uma forma de vida vicária, daí vem a palavra
“vigário”, essa vida que quer substituir Deus, uma forma de vida substitutiva, paralela, virtual,
alterada, vivemos uma vida alterada. Por quê? Pela intensificação da tecnologia audiovisual
conjugada ao mercado.

Bom, é isso que faz do bios midiático a indistinção entre tele e realidade, a indistinção em
realidade, quer dizer, realidade tradicional, bem entendido, é isso que leva aos entrevistados
como daquele livro sobre a vida na tela, da Sherry Turkle, que é uma psicanalista que investiga
a televisão, a internet, e que entrevista um sujeito que vive colado na internet e ele diz assim
para ela: “Olha, a vida real, para mim, é apenas uma janela a mais na internet”. Ou seja, é só
uma janela a mais. Realmente, é possível que para o adolescente, uma criança hoje que passa o
dia grudada na internet, a vida real seja uma janela a mais, aquela vida virtual já é plenamente
real. É isso que está permitindo às pessoas namorarem pela internet, mas não namorar trocando
cartas, namorar realmente, eu falo namorar como ter relações sexuais, ou seja, essa virtualização
é capaz, em determinadas circunstâncias de substituir a zoé, de substituir a vida nua e crua.
Há autores hoje, eu não me fixo muito nessa coisa da cibernética, mas tem aquela autora,
sempre esqueço o nome dela, que é uma fanática por internet e sustenta por A mais B que uma
relação sexual pela internet, com as pessoas a distância, é tão plena quanto a de um casal
fisicamente. Estando cada um em seu canto, cada em seu lado, ela diz que não é masturbação,
porque não existe masturbação a dois, a dois é sempre sexo, um de um lado, outro de outro. Isso
não é de agora, essa autora escreveu isso há uns 15 anos. Ora, isso faz do bios midiático a
indistinção entre tele e realidade e a realidade de hoje se constitui sobre a égide da integralidade
espetacularizada ou sobre essa realidade imagística a que o real aspira e o real quer.

Portanto se trata de uma inflexão exacerbada do imaginário, que, como Deleuze disse, não é o
irreal, nada disso é irreal, é a indiscernibilidade entre o real e o irreal, quer dizer, não é que nada
disso seja mentira, ou nós estamos vivendo em um mundo irreal, é que nós estamos vivendo em

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um mundo que é cada vez mais difícil de distinguir, de fazer a distinção que antes fazíamos com
muita clareza entre o que é real e irreal. Assim, esse bios não se define como a soma de todas as
imagens tecnicamente produzidas, mas o bios midiático, ou bios virtual, é o poder dos modelos.
Assim como na ordem mítica, o mito é o poder dos símbolos, o poder dos símbolos primordiais,
o poder dos arquétipos, esse bios midiático é o poder desses modelos, que se atualizam, que se
concretizam em determinados tipos de imagens, que são historicamente sobredeterminadas.

Portanto as imagens midiáticas que regem as relações sociais vêm dos modelos hegemônicos do
capital e do mercado globais. Esse espetáculo em que hoje estamos imersos resulta de uma
sobredeterminação histórica da imagem, quer dizer, a espetacularização é na prática a vida
transformada em sensação, é a vida transformada em entretenimento com a economia poderosa
voltada para produção e consumo de filmes, programas de televisão, música popular, moda,
parques temáticos, jogos eletrônicos, efeitos de fascinação, celebridade e emoção a todo custo −
tudo isso permeia sistematicamente essa forma de vida emergente, esse bios, em que a esthesis
detém o primado sobre os velhos valores de natureza ética e significa: o fenômeno estético se
tornou hoje o sumo para a estimulação da vida, e a vida está de agora em diante dirigida para a
indústria e para o mercado.

Portanto é mais esthesis do que ethos, embora você possa falar do ethos, da estética, você possa
falar de uma inteligibilidade sensível capaz de levar a uma ética, uma arquitetura social de
valores. É essa absorção que me faz pensar que há um vínculo entre o mapeamento do genoma e
o bios social e o bios midiático, porque é essa absorção de dígitos, de imagens, de realidade
paralela, que leva o indivíduo a viver virtualmente no espaço imaterial das redes de informação.
É isso que nós estamos chamando de bios midiático. No bios midiático o contato é mais do que
simplesmente visual, ele é tátil, eu entendo tátil como interação dos sentidos, a partir de
imagens de simulação do mundo; vem da tatilidade essa sensação de que você está ocupando
um ponto qualquer do mundo em uma ambiência, ou em uma paisagem feita de matéria
audiovisual, ou de compreensão numérica em alta velocidade, que é o caso da internet.

Essa é a idéia que o [Derrick de] Kerckhove trouxe, o ponto de existência, em vez do ponto de
vista, em vez de ponto de perspectiva. É esse ponto de existência que permitiria ao indivíduo
encontrar uma posição física e meios sentidos que são tecnologicamente prolongados, portanto é
textual de Kerckhove dizer que a sensação física de estar em algum lado é uma experiência tátil,
não é uma experiência visual, é ambiental, não é frontal, é compreensiva, não é exclusiva. O
meu ponto de existência, em vez de me distanciar da realidade, como acontece com o ponto de
vista, torna-se o ponto de partida do mundo. É uma coisa perigosa, porque se eu não tenho

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ponto de vista também não tenho crítica, se eu só tenho ponto de existência estou tão imerso que
− Deleuze tem razão − o controle aí é total.

Ora, dessa maneira, quando levamos em consideração toda uma forma de vida virtual, que é o
bios virtual, ou bios midiático, e não a gramática exclusiva de um meio de comunicação
separado, a experiência sensorial do indivíduo, do espectador, ultrapassa a das expressões
externas do corpo de alguém que fala, como o meneio de cabeça, sorrisos, movimentos, porque
hoje eu não creio que nós possamos mais ser instituídos como simples espectadores, nós somos
hoje membros orgânicos de uma ambiência que deixa de funcionar na escala tradicional do
corpo humano para se adequar existencialmente − é essa a idéia do ponto de existência − pelo
êxtase ou pelo deslumbramento à imersão, quer dizer, nós nos adequamos à escala de um
sistema neural que é a interconexão dos multidispositivos de representação a que se dá o nome
precário de mídia.

Nesse sistema, a corporeidade como tal desaparece, ela fica em segundo plano, e é substituída
por seus índices, por seus muitos índices, que favorecem as formas apresentativas, quer dizer,
não representativas, e nos introduzem em um novo tipo de sensibilidade individual e de
sensibilidade coletiva. Estamos, portanto, eu diria, sob a égide de um paradigma cultural, que é
mais indicial do que cognitivo e sígnico. A televisão é indicial, isso significa que ela nos dá
índice que vai nos levar a sensações, a sentimentos, as palavras estão ali também, claro, mas as
palavras são muito ocas, são vazias, e nós vivemos em um momento, inclusive no jornalismo −
fora o jornalismo oficializado, fora o jornalismo da revista Pesquisa FAPESP, fora o jornalismo
de Caros Amigos, ou da revista Piauí – em que as palavras são cada vez mais ocas, cada vez
mais vazias, porque o jornalismo é indicial, e o índice é diferente do signo. A palavra com signo
é plena, é cheia, quando eu digo a palavra “mesa”, a palavra “cultura”, eu estou me referindo a
signos plenos, que têm um significado na língua, enquanto o índice me aproxima fisicamente,
existencialmente, de uma significação, como quando eu vejo uma fumaça e sei que ali tem fogo.
A fumaça não significa fogo, não é a significação que está ali, é um índice que me aproxima
existencialmente do fogo.

É esse tipo de categoria semiótica, a categoria indicial, que predomina hoje no conteúdo da
mídia e que no fundo dá a chave para a indução de que a mídia exerce sobre nós, ela nos induz
aqui, ela nos induz a um afeto. Portanto eu não vejo com olhos catastróficos a mídia. Ela
neutraliza também as velhas tensões comunitárias afetivamente, mas o modo de se acercar de
nós é pela emoção, é pela sensação, que diz respeito a entretenimento, a espetáculo, mas que diz
respeito ao próprio conhecimento, que os bytes, que os dígitos nos dão. Eu diria, portanto, que o

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bios midiático, essa intervenção da tecnologia do ver e da tecnologia do sentir na vida nua, na
vida crua dos indivíduos, obriga principalmente o intelectual, obriga o professor, obriga a mãe,
obriga o pai a repensarem, a pensarem na forma de vida em que nós estamos ingressando, não
como forma de vida afetada por gracinhas tecnológicas que vão se acumulando e que nós
usamos comodamente, não, mas sim é preciso pensar na radicalidade desse uso da técnica, é
preciso ter, de algum modo, coração técnico para se ampliar esse uso. Eu acho que esse coração
técnico não é catastrófico e está na hora de nós pensarmos radicalmente, pensarmos com
coração, nesse novo modo de compreensão do mundo que se insinua agora junto com o
mapeamento do genoma e com o bios virtual, o bios midiático. Muito obrigado.

Aplausos

Platéia – Professor, você falou bastante que a mídia é inteiramente regida pela ética
monetária, queria que você desenvolvesse um pouco melhor isso, porque muita gente defende
que a internet possibilita o chamado gift economy. Há pessoas fazendo um site como a
Wikipédia e ninguém é pago, todos são anônimos, ninguém aparece, é um site que não tem
imagens quase, um site quase só de textos, e é um fenômeno na internet. Muitas pessoas
defendem que a maior criação na internet é a Wikipédia, em que as pessoas estão fazendo de
tudo lá a troco de nada, ninguém está ficando famoso, ninguém está recebendo nenhum
dinheiro por isso, o site não recebe dinheiro. E há vários outros sites, blogs em que as pessoas
simplesmente estão usando aquilo para externar uma habilidade, bandas que estão dando as
músicas de graça só para serem famosas. Várias pessoas defendem que a internet está
possibilitando outras formas de pagamento que não monetária. Queria que você explicasse essa
questão monetária e a mídia.

Muniz Sodré – Na verdade, a internet é uma mídia em formação, é uma mídia, eu diria, em
statu nascendi, em estado de nascimento. Você só efetivamente tem a conformação de uma
mídia, vamos dizer, por uns 40, 50 anos. Com relação à televisão, a internet é uma mídia que
está se formando... Eu diria que essas pessoas que tão voluntariamente colaboram, trabalham na
mídia e que têm essa impressão de liberdade e colaboração − e isso precisa ser demonstrado
mais detidamente − estão na verdade trabalhando de uma nova forma para as grandes
corporações que estão surgindo em cima da internet.

Por exemplo, você viu a lista das maiores empresas do mundo hoje, a Petrobras parece que
ficou em terceiro lugar, sexto lugar, mas qual era o primeiro? O Google. O Google é um tipo de

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empresa que depende inteiramente da internet, que está na internet, que não tem ativos
clássicos, grandes, sérios, não tem ativos, digamos, administrativos, não tem regras
administrativas rígidas, está se lixando para isso. O filho de uma amiga minha, que é um dos
criadores do Google no Rio, botaram ele como gerente, agora uns dias atrás, e ele é um
geniozinho e não quis, fez uma carta para lá dizendo “Olha, eu acho que eu vou ter que sair”,
porque ele estava crescendo muito na empresa, o negócio como gerente, daí disseram: “Não,
olha, isso era uma sugestão, você faz o que você quiser, o pessoal quer você aí na empresa”.

Administrativamente a empresa mudou, as pessoas jogam, têm mesa de bilhar no Google dos
Estados Unidos... A empresa mudou porque as pessoas que acessam o Google estão trabalhando
para o Google, estão trabalhando, estão sendo indexadas. Por quê? Porque hoje o que está em
jogo é a economia da atenção, ou seja, trata-se hoje de capturar o tempo livre do outro, capturar
o seu tempo, não é mais capturar o olhar apenas, como a televisão, junto com o tempo livre, é
capturar a sua atenção, capturar o seu tempo, isso hoje vale dinheiro, quer dizer, não vale
dinheiro para os que estão trocando mensagem, entrando na Wikipédia ou trocando e-mails, ou
fazendo grupo, isso ainda é muito comunitário, isso ainda é nascimento do mundo, é muito
prazeroso, mas nessa conjuntura já se constituem empresas que estão sendo apontadas como as
maiores do mundo.

E as empresas estão baseadas em quê? Na verdade, qual é a materialidade dessas empresas?


Nenhuma. A menos que você considere, claro, o computador o material, os circuitos são
imateriais, eu diria que vamos esperar mais um tempo para ver se toda essa nossa alegria com
relação à internet desaparece. É uma coisa que surpreende. Outro dia eu tive um choque de ver
que a minha certidão de nascimento estava na internet, eu não consigo imaginar como alguém
pode ter botado a minha certidão de nascimento na internet, lá com a minha mãe, são coisas
surpreendentes, você sabe que não escapa mais, não é que eu queira escapar, não, tudo bem, a
certidão de nascimento está lá, mas é uma surpresa. Com páginas e páginas de coisas que eu
também não sabia lá que eu tinha dito. Veja só, é impressionante, não há como recusar essa
forma técnica que entrou no cotidiano. Agora, o dinheiro está ali, o capital já está chegando ali...

Platéia – Professor, eu concordo absolutamente que o Google não tem valor material porque a
sua base de dados é um negócio que não tem preço. Quase todo mundo que entra na internet,
entra através do Google. E aquilo não é só um coletivo, existem vários computadores, existe
algoritmo caríssimo, que eles não divulgam, existem várias pesquisas em torno para dizer por
onde você vai caminhar na internet, como você se guia pela internet; é um negócio sem preço
dentro de uma mídia, não sei se é tão imaterial assim o valor do Google...

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M.S. – É, não, imaterial que eu digo é que não tem grandes equipamentos, como um jornal de
antigamente. O jornal que eu comecei a trabalhar na Bahia, do qual a Mariluce foi jornalista,
quando inaugurou, eu me lembro aquela rotativa fantástica para imprimir mal aquele negócio,
imprimia como máquina de escrever, eram só máquinas, coisas materiais, é essa idéia de
matéria que desaparece e que no fundo forma o imaginário antigo da máquina. Por exemplo, eu
conheci um caboclo lá na Bahia, essa história que é divertida, que disse ter visto um disco
voador. “Ah você viu disco voador?”; “Vi, pousou no campo, eu cheguei a entrar”; eu disse:
“Como era lá dentro?”; “Era cheio de máquinas de escrever” (risos). O imaginário de tecnologia
avançada de um caboclo do interior da Bahia é máquina de escrever, que nem existe mais, mas
ele é fascinado por alguém batendo a máquina, tá cheio de máquina de escrever, 300 máquinas
de escrever, conformando um disco voador. É isso, é esse imaginário, eu estou no fundo
imaginário do imaterial, não tem mais o mesmo tipo de equipamento pesado, foi nesse sentido
que eu disse.

Platéia – É claro que tem a questão da atenção, mas existem as grandes empresas, existem “n”
organizações, fóruns etc. e tal.

M.S. – Existem. Por enquanto...

Platéia – Que precisam do dinheiro. Você acha que é só uma questão de tempo e tudo vai ser
pago?

M.S. – Eu sou um pessimista ativo. Eu sou pessimista e acho que é uma questão de tempo.

Platéia – Mas você não acha que existe mesmo nos outros meios físicos? Por exemplo, o
celular é quase de graça hoje, não é?, você paga o serviço. Na Europa você tem uma empresa
agora em que o carro é de graça, você se fideliza ao combustível, você pode viajar, tem uma
empresa de avião que é praticamente de graça, você fideliza outras coisas... A gente não tende
a uma economia do gratuito? Ou você acha que o dinheiro vai chegar, é um outro caminho?

M.S. – Eu acho que o dinheiro... Eu acho o seguinte: eu não sei lidar com detalhes técnicos, isso
tudo está previsto, já de estudos de 30 anos atrás, a respeito do barateamento dos produtos das
telecomunicações, mas eu lhe digo uma coisa, acho que fora do capital só a santidade, só o
santo... Por quê? Porque o santo olha diretamente para os seus desejos sem qualquer mediação.
Fora daí não acredito, não acredito que seja possível escapar ao capital.

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Platéia – Eu queria que você se posicionasse quanto à privacidade nesse novo sistema, da
mídia, internet, coisas assim, onde as pessoas entram na sua conta de banco... Você está
produzindo um novo livro, ele sai antes de ser publicado na internet e isso aí é a tendência,
atingir algumas pessoas que se especializam com mais rapidez, e vai dominar a maioria das
pessoas que acessam. Como é que você acha que vai acontecer quanto aos direitos autorais?
Outro dia eu conversei com uma poetisa, eles estão atribuindo a ela poesias que não eram dela
na internet e amigos estavam divulgando como sendo dela em sites de bate-papo. Como é que
essa coisa vai funcionar?

M.S. – Olha, isso aí eu acho um lado assim, acidental e até pitoresco da internet. Claro tudo
tende a ser recuperado, esses hackers que invadem sites no fundo são candidatos a empregos de
grandes empresas de software e aquilo também é trabalho, ser hacker hoje é virtualmente um
trabalho, é um trabalho virtual, pois ele pode vir a ser contratado depois. E quanto a essas
invasões, nós estamos em uma época em que o público e o privado se distinguem muito mal, as
pessoas hoje expõem sua vida privada em público, as atrizes fazem isso sem o menor pudor,
portanto o privado se torna público e o público, por outro lado, se privatiza.

Nas campanhas eleitorais nós assistimos a isso aí, eu acho que na verdade são momentos ou são
aspectos diferentes dessa sociedade que Deleuze chamou de controle. O controle aumenta, essa
que é a realidade, nós estamos progressivamente invadidos. Eu sou presidente da Biblioteca
Nacional e direito autoral é lá, é lá que são registradas as peças, os trabalhos e os livros e, é
claro, eu como presidente de uma instituição do governo federal tenho que defender o direito
autoral, mas tenho cada vez menos ilusões com relação à possibilidade de que o direito autoral
se sustente. Hoje tecnologicamente você pode piratear, e se pirateiam livros com xerox, não
adianta tentar controlar isso, podem botar o seu artigo na internet etc. Tem um caso cubano,
aliás Cuba foi a primeira nação antes da internet a piratear sistematicamente, eu descobri, por
exemplo, que eu tinha um livro traduzido em Cuba, é um livro de redação e nunca me pediram
autorização nem nada, vendem no lugar e me mandaram, foram gentis por isso, uns 15
exemplares do livro... Cuba sempre fez isso, pirateia e está certo. Eu acho que a pirataria é um
meio também de constituição de capital e acho que vai chegar o momento em que é o Estado
com as grandes empresas que têm que pagar o trabalho material, que têm que pagar o trabalho
criativo, pagar o bom e o mau trabalho, porque cada artista ou cada escritor já não poderá mais
viver em garantia do meio jurídico, que é isso que o bios midiático anulando a comunidade vai
anular também as garantias jurídicas.

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Paradoxalmente, na medida em que se judicializa cada vez mais a vida social e se esvazia a
política, o jurídico, na medida em que vai ser tudo, vai ser também ao mesmo tempo quase
nada. Por exemplo, direito autoral, eu não vejo futuro no direito autoral, eu, sinceramente, não
sei se é porque meus livros são comprados pelos estudantes, pelos professores, podem piratear à
vontade, botar na internet, copiar em xerox, porque eu me considero pago, porque eu sou
bolsista do CNPq, o CNPq é que me dá os direitos autorais pelo livro, ele me paga para eu fazer
pesquisas que eu transformo em livro. Se eu ganho depois alguma coisa que os livros vendem,
ótimo; senão, eu estou de algum modo como pesquisador, como professor universitário, sendo
pago pelo Estado. Eu sei que não é essa a posição de todo mundo, mas eu não me incomodo que
pirateiem meus livros, ao contrário, eu aplaudo, fico muito satisfeito que alguém queira vencer a
barreira de alguns conceitos, pirateando, copiando. Portanto eu acho que a tecnologia vem para
invadir realmente a vida privada e vem para, digamos assim, abolir a diferença entre o público e
o privado. Ela é invasiva.

Mariluce Moura – Bom, Muniz, eu queria primeiro cumprimentá-lo por essa aula fantástica
com esse fundo filosófico bem amplo, mas queria aproveitar para fazer uma provocação. É o
seguinte: você quando se referiu à diferença entre bios e zoé, colocou a revolução genômica e a
ciência intervindo mais, no seu progresso, técnico etc., intervindo mais no corpo, intervindo
mais na zoé, na fisicalidade, só que quando a ciência contemporânea trabalha, por exemplo,
com novas próteses, novos fármacos, novas, intervenções ligadas à neurociência, ligadas à
psiquiatria e toda essa pletora de coisas que vêm pela frente para você sentir mais felicidade,
mais euforia, mais isso, mais aquilo, a sensação é de que o horizonte da ciência não é intervir
só no corpo. A própria revolução genômica, trabalhando um pouco com a idéia de, no futuro,
conseguir anular determinadas doenças, determinadas síndromes, determinados sintomas de
mal-estar, na verdade mira uma coisa da percepção e da relação do indivíduo com o mundo, eu
diria que no horizonte da ciência contemporânea, da tecnociência está uma ambição de
trabalhar mais do que intervindo no corpo, trabalhar intervindo também nas percepções, nas
sensibilidades etc. Queria que você falasse um pouco sobre isso e que relação isso tem com
esse mundo midiático em que a gente está ligada, mergulhada etc.

M.S. – Olha, Mariluce, essa percepção, esses perceptos e afetos, e esse pessoal todo que você
fala, são corporais. [Baruch] Spinoza, quando fala de corpo, parte exatamente das percepções
para falar de corporeidade. Veja só, na verdade é uma intervenção maior ainda do que essa que
você está falando. Quando eu falava de corpo, falava da totalidade do indivíduo, da exploração
das partes do corpo. Eu diria que a ciência está intervindo nesse momento e vai intervir nas
formas mesmo de perceber, de ver, de conhecer, de se relacionar, portanto a intervenção é muito

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maior do que imaginamos... Eu estava, claro, falando em reprodução, falando em aspectos, e eu
acho que é uma intervenção total. Agora, essa intervenção, como você usou a palavra “fármaco”
que é ambivalente, ela tem seus aspectos, digamos assim, negativos, perigosos, e ao mesmo
tempo benéficos, ninguém pode recusar os avanços dos estudos neurológicos, biológicos, não
pode recusar esse mapeamento, pelo contrário, ele tem que ser saudado, tem que ser aplaudido e
incentivado, mas, na verdade, para nós, quando eu falei de coração técnico − creio que foi
Platão que disse que em todo homem reside um coração intrépido, a partir do qual tomamos
todas as decisões, percebemos, compreendemos −, não estava pensando exatamente nesse
coração intrépido de que falava Platão, mas é exatamente isso.

É preciso, portanto, para entender essa relação, pensar na radicalidade dela e essa radicalidade
nos obriga a olhar para a ciência, nos obriga a, senão entender a ciência, ao menos tomar
conhecimento dela em operações cada vez mais necessárias de sua divulgação. Está agora no
Rio, nesses dias, hoje à noite estava dando uma palestra na academia o Jeni Vaitsman, com
quem eu estive por esses dias. O Vaitsman, por exemplo, tem essa mesma visão da mídia que eu
tenho, ele tinha uma antes benéfica, hoje é mais pessimista, mas ele acha que o antigo
profissional de imprensa, o jornalista, mais do que dar notícias, a ele cabe cada vez mais,
digamos, reinterpretar e interpretar o mundo para a comunidade. Mas de que mundo ele fala?
Esse mundo da ciência, esse mundo da academia. Que cada vez mais nós estamos conformados
com isso e é preciso ter um discurso compatível, porque a transformação é no nível da
percepção, é no nível da cognição, é no nível dos perceptos, não é o corpo, essa fisicalidade
inclui o afeto, inclui o sentir, como eu disse, portanto.

Maria Immacolata Vassallo Lopes – Muniz, retomando um pouco o que o menino lá estava
falando, o último artigo do [Néstor García] Canclini fala de informalização da sociedade, no
sentido de estar destruindo elementos do liberalismo clássico, até do neoliberalismo, e coloca
uma coisa muito interessante sobre a pirataria. Nem tudo está controlado no sentido do capital,
porque essa informalização, conforme Canclini diz, é uma maneira de você perceber, vamos
dizer assim, a sociedade, o que está acontecendo na sociedade. Esse filme, por exemplo, Tropa
de elite, achei, assim, fantástico, de as pessoas que nunca foram ao cinema dizer que tinham
comprado aquilo por 2 reais, 1 real, querendo estar por dentro, é a questão também de você
fazer parte de uma comunidade, isto é, contra a exclusão. Tem tudo isso, quer dizer, a coisa da
informalização. Você falou que era otimista, mas acho que você terminou a coisa em uma
posição muito catastrófica. Sobre o hacker, você diz assim: “Não, mas ele é um desempregado,
que está aí pedindo para Microsoft”, mas não sei se as coisas estão assim... Eu acho que hoje a
sociedade avança com o controle, ou ela mesma está criando mecanismos que não estão sendo

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possíveis de ser controlados. Enfim, o que você acha disso? Esse texto de Canclini vai sair no
segundo número de Matrizes.

M.S. – Toda sociedade, todo grupo social, funciona por meio de ordens, de ordenamentos que
delimitam e que limitam o agir possível. Só que quando nós atuamos, dentro desses limites,
fazemos sempre uma experiência dentro dos limites, nós atuamos com o dentro e com o fora, ou
seja, o que está dentro da ordem e o que está fora da ordem, dentro e fora do ordenamento. A
ética, por exemplo, é uma experiência de limites, nós somos éticos, quando lidamos com o que
está fora do ordenado, com a possibilidade de lidar fora do ordenado também, é por isso que
com a ética acontece o inesperado. Um filósofo dizia que a ética é sobrenatural, ela está fora
dali, ela não pode ser formulada, mas esse fora dali da ética é também a desordem que o
máximo de ordem institui e constitui. Só que essa desordem, que eu estou dizendo, que está fora
do círculo de controle, está próxima de nós.

Eu acho que esse ordenamento excessivo cria um caos, cria uma desordem, e essa apropriação
pelas massas, eu acho que é um caos criativo, as massas são criativas, isso é criatividade. Eu me
lembro de uma frase de um colega meu de, que eu gosto muito e dizia assim: “A história jamais
conheceu a 25ª hora do desespero”, eu repito muito essa frase, quer dizer, você está desesperado
24 horas, a 25ª hora não existe, 25ª hora ou você morre, ou você sai do desespero, você dá um
salto. Vejam só, claro que eu disse que fora do capitalismo só vejo a santidade. Mas fora do
capitalismo, ou fora do capital, há um fervilhar criativo, há uma criatividade que aponta para
novas formas que eu não posso sistematizar, que eu não posso apontar como sistemáticas. Eu
não sei ainda o sistema dessa pirataria, eu sei que ela é um caos, e eu estou apaixonado por ela,
eu gosto dela, por isso que eu estou dizendo “vamos piratear”, entendeu? Como, não como
presidente da Biblioteca Nacional, pelo amor de Deus, senão me põem para fora (risos). Como
professor, se eu disser isso, me põem para fora, acham que eu estou demais do outro lado.

Não, Immacolata, é que eu penso, talvez foi a proximidade com Baudrillard, às vezes
caoticamente, eu penso às vezes apocalipticamente, mas para quê? Meu método é o método de
Baudrillard, meu método é do elástico, realmente é do elástico. Você pega um elástico, você
pega uma forma, uma idéia qualquer, você estica, você vê onde é que ela vai se romper, tem um
ponto em que o elástico fica absurdo, ele se rompe, se for um elástico fraco, uma idéia também,
você exagera, estica, para ver até onde ela agüenta. Às vezes o apocalíptico é esticar o elástico,
é puxar o elástico até o fim, para ver que idéia fica, porque hoje, na verdade, por acaso esse
ponto de existência, de que eu falava do Kerckhove, nós estamos tão imersos nesses objetos

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técnicos, tão imersos nessas coisas que nos chegam sem cessar da tecnologia, que é difícil
pensar em crítica.
É preciso pensar cognitivamente, porque a crítica pressupõe uma distância entre sujeito e objeto,
essa excessiva proximidade nos impede às vezes de pensar, quer dizer, nós pensamos o quê?
Produtivamente, instrumentalmente, isso não é exatamente pensar. Aí eu posso estar querendo
pensar aqui um pouco como Riobaldo, do Grande sertão: Veredas, que diz assim: “E eu me
inventei de especular idéias”, o pensar é esse especular idéias, é também criativamente trazer
um pouco do caos para ali onde a certeza parece instituída. Nesse otimismo com toda a
tecnologia, que me parece às vezes salutar, é bom pôr umas duas pitadas de um pessimismo
criativo (risos). É isso aí.

Mariluce Moura – Bom, eu preciso colocar pelo menos uma última questão para você. É o
seguinte: você falou dessa coisa da tendência de se tornar indiscernível o real e o irreal, mas a
questão que fica é: como que estando nós todos imersos nesse bios midiático, nessa
virtualização do mundo, como que se mantém a lucidez para se transitar entre esse real e esse
irreal que se faz indiscernível? Eu penso em produtores de produtos midiáticos mesmo, nós
pensando, nós fazendo televisão, rádio, cinema, sei lá, jornal, revista, teorias etc.

M.S. – Mariluce, eu só posso lhe responder com um problema, que é o problema de como nós
fazemos diferença, como é que a diferenciação se dá. É aquela historinha, o mestre senta à beira
do lago, essa historinha eu contei no meu livro, e os peixes estão nadando, o mestre diz para o
discípulo: “Olha como os peixes estão nadando felizes”, aí ele diz: “Mestre, o senhor não é
peixe, como que o senhor sabe que eles estão felizes?”; e ele diz: “Olha, e você não é eu, como
é que você sabe que eu não sei que eles estão felizes?”. Quer dizer, o problema, aí ele mesmo dá
a resposta: é que eu caminho ao longo desse rio há muitos anos e caminhando e vendo os
peixes, eu e os peixes ali, sei que eu os pesco, são uma imagem simbiótica de felicidade, na
verdade, a minha felicidade é a felicidade dos peixes. Logicamente o discípulo tinha razão, mas
essa diferença pode ser estabelecida em um patamar humano de integração com a natureza, ou
seja, de integração com a comunidade, quer dizer, mesmo não sendo, como é que você sabe que
eu não sei que eles estão felizes?

Nós temos que aprender nesse panorama da indiscernibilidade a juntar, unidos mais à terra e ao
outro, humano. A idéia não é fazermos a diferença, é quando nós nos juntamos ao outro, é
quando olhamos para o outro, que nós fazemos a diferença. E só uma coisa pode dar nome bom
para essa junção, é o “amor”. Eu não conheço outro nome, e aí, eu diria com o [Karl] Jaspers o
seguinte, que a comunicação é, nesse sentido, emancipatória, quando ela não apenas é um

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dispositivo técnico, ou meios técnicos de colocar produtos, mas quando ela é uma dolorosa e
recíproca interrogação sobre si mesma e sobre o outro, nessa comunicação aí eu acredito ainda.
Nela talvez esteja a resposta da possibilidade de se fazer diferenças.
Obrigado.

[Aplausos]

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