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A pesquisa em psicanálise xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
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na universidade:
ISBN 978-65-87387-07-9
9 786587 387079
A PESQUISA EM PSICANÁLISE NA UNIVERSIDADE:
UM ENFOQUE NO MÉTODO POR MEIO DE EXEMPLOS
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Reitora: Maria Amalia Pie Abib Andery
Editora da PUC-SP
Direção: José Luiz Goldfarb
Conselho Editorial
Maria Amalia Pie Abib Andery (Presidente)
Ana Mercês Bahia Bock
Claudia Maria Costin
José Luiz Goldfarb
José Rodolpho Perazzolo
Marcelo Perine
Maria Carmelita Yazbek
Maria Lucia Santaella Braga
Matthias Grenzer
Oswaldo Henrique Duek Marques
A pesquisa em psicanálise
na universidade:
um enfoque no método
por meio de exemplos
São Paulo
2020
Copyright © 2020. Alexandre Patricio de Almeida, Alfredo Naffah Neto.
Foi feito o depósito legal.
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri/PUC-SP
Produção Editorial
Sonia Montone
Editoração Eletrônica
Waldir Alves
Gabriel Moraes
Capa
Gabriel Moraes
Imagem capa: venetapublicidad por Pixabay
Administração e Vendas
Ronaldo Decicino
1 FREUD, S. (1924). Resumo da psicanálise. In: Sigmund Freud. Obras completas, volume 16: O eu e o
id, autobiografia e outros textos (1923-1925). Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia
das Letras, 2011.
5
manifestarmos a importância e os impactos das pesquisas realizadas
em psicanálise dentro do Programa de Pós-graduação em Psicologia
Clínica da PUC-SP.
No entanto, além de divulgar as pesquisas dos alunos que estão
atualmente inseridos no Programa, temos, também, o objetivo de
discutir os aspectos centrais que tangem à especificidade do método
de pesquisa em psicanálise. Os trabalhos apresentados trazem uma
pluralidade em relação à aplicação da teoria psicanalítica, como, por
exemplo, os diálogos possíveis entre a psicanálise e a educação; a inter-
venção psicanalítica em instituições públicas (hospitais e CAPS); a
investigação dos fenômenos clínicos que emergem do setting terapêu-
tico; o estudo aprofundado da história da psicanálise; os impactos da
psicanálise sobre a cultura, sobretudo, a política e a sociedade – só
para citar alguns dos principais temas explorados pelos escritos que
compõem este livro. Trata-se, portanto, de pesquisas que permeiam
vários campos sociais e não se restringem, apenas, dentro dos limites
impostos pelas paredes dos consultórios.
A publicação deste compilado de artigos, a nosso ver, pode vir
a ajudar os pesquisadores que estão iniciando sua vida acadêmica,
assim como servir de inspiração para aqueles que pretendem se aven-
turar pelo território da ciência freudiana, pois além de demonstrar,
efetivamente, a estrutura completa de um projeto de pesquisa, cada
trabalho, em sua singularidade, aponta novas perspectivas para a
investigação da e com a psicanálise – o que sustenta as ideias de Freud
que apresentamos no início deste item.
No entanto, essa interlocução com outras áreas do conheci-
mento nem de longe é fácil de ser realizada, pois demanda paciência
e maturidade para sintetizar todas as informações coletadas durante
a realização das pesquisas. Além disso, a psicanálise abarca autores
de pensamentos variados que se contrapõem e, ao mesmo tempo,
se complementam, ao contribuírem com diferentes pontos de vista,
como Klein, Bion, Winnicott, Ferenczi, Lacan, etc. Por isso, o pes-
quisador ao escolher o seu tema de trabalho, deverá ter um conhe-
cimento significativo para delinear suas construções teóricas a partir
6
do referencial utilizado. Misturar autores de linhagens diferentes
pode ser um grande risco de sustentação epistemológica da pesquisa,
criando um emaranhado de teorias sem fundamento algum.
Outra importante questão que queremos destacar nesta apre-
sentação é o fato de que muitos psicanalistas que se formaram em
diferentes instituições trazem debilidades em relação à área acadê-
mica. Explicamos melhor: escrever um caso clínico, não demanda as
mesmas exigências pertinentes ao formato universitário, principal-
mente no que se refere ao campo da Pós-graduação stricto sensu. Uma
pesquisa de mestrado ou doutorado deve ser bem escrita, com um
objetivo claro e com uma metodologia que dê corpo a todo o projeto.
A linguagem acadêmica possui regras específicas que, muitas vezes, o
psicanalista clínico desconhece, já que a razão da clínica é eminente-
mente paradoxal (na qual os contrários convivem entre si e se comple-
mentam) e a razão acadêmica é lógica-formal2. Esses impasses acabam
gerando grandes problemas durante a construção da pesquisa, com-
prometendo o estudante diante da banca no Exame de Qualificação.
Posto isso, ainda temos a questão ética. Toda pesquisa que
envolve seres humanos deve passar, primeiramente, por uma avalia-
ção do Comitê de Ética da própria universidade e, consecutivamente,
postada na Plataforma Brasil3, onde deverá ser novamente avaliada
por outros pareceristas – trâmites essenciais para que a pesquisa
possa ter continuidade. Referimo-nos, igualmente, a detalhes aca-
dêmicos que, também, costumam não ser abordados pelos cursos de
formação em psicanálise.
O método de investigação em psicanálise implica o avanço, cons-
tante, entre os três campos articulados: a clínica (e cada vez menos
sendo tomada somente como o exercício do consultório, mas de
2 Alfredo Naffah Neto desenvolveu essa problemática no artigo: “Paradoxo e racionalidade no homem
winnicottiano: a sombra de Heráclito de Éfeso”, Revista Brasileira de Psicanálise, v. 44, n. 2, 2010, pp. 123-
134. Este artigo problematiza os dois tipos de razão no homem winnicottiano, mas o mesmo argumento
pode ser estendido para toda a psicanálise.
3 A Plataforma Brasil é um sistema eletrônico criado pelo Governo Federal para sistematizar o recebimento
dos projetos de pesquisa que envolvam seres humanos nos Comitês de Ética em todo o país.
7
forma ampliada); a metapsicologia, no que se refere aos impasses teó-
ricos; a possibilidade da psicanálise em extensão, no sentido de arti-
cular a ciência freudiana com outras áreas do saber (ESTEVÃO,
2018). Não se trata de um salto da clínica para cultura: não se pula a
metapsicologia. “O que se faz é se valer da metapsicologia como ope-
rador para pensar o ponto de encontro entre psicanálise e os outros
campos” (ESTEVÃO, 2018, p. 79)4.
Todos esses aspectos são apresentados nos capítulos que cons-
tituem o nosso e-book. Com exceção do capítulo um, onde tecemos
uma breve discussão sobre as atuais condições do ensino da psicaná-
lise nas universidades, enfatizando a importância da pesquisa acadê-
mica como um veículo indispensável para a sua divulgação, expansão
e interlocução com as demais áreas do conhecimento. A partir do
capítulo dois, cada texto se inicia com um “resumo” das ideias prin-
cipais – o que configura, também, a exigência da formatação acadê-
mica. Os artigos são todos baseados nas pesquisas dos alunos que
estão cursando o mestrado e doutorado no Programa de Estudos
Pós-graduados em Psicologia Clínica; alguns em processo de finali-
zação e, outros, em contrapartida, estão no início da pesquisa – o que
pensamos ser conveniente para elucidar as diferentes estruturas de
projetos.
Por fim, queremos deixar claro que toda publicação envolve um
árduo trabalho de seus participantes. Mesmo porque, para colocar
algo disponível a um grande público, é necessário ter coragem e ousa-
dia. Contudo, acreditamos que essa, talvez, seja a melhor forma de
reagir aos ataques realizados contra a educação, demonstrando que
a pesquisa acadêmica tem uma enorme relevância para a construção
do conhecimento e, deste modo, pode produzir um grande impacto
sobre os diversos setores de nossa sociedade e cultura. Não obstante,
pretendemos demonstrar o quanto a descoberta freudiana perma-
nece viva e lança luz em muitos domínios que ainda permanecem
4 ESTEVÃO, I. R. Sobre três eixos da pesquisa em psicanálise: clínica, teoria e extensão. In Leopoldo
Fulgêncio [et al.]. Modalidades de pesquisa em psicanálise: métodos e objetivos. São Paulo: Zagodoni, 2018.
8
na escuridão. Enquanto a psicanálise for capaz de adentrar outros
campos de forma que possa clarear certos problemas, é bem provável
que ela permaneça resistindo.
Que este livro possa servir de inspiração aos jovens pesquisa-
dores. A ideia de lançá-lo em e-book (gratuito) rompe o paradigma
de elitização do conhecimento que, quando acessível a todos, pode
ter um efeito libertador. É isso que precisamos – hoje, mais do que
nunca.
Desejamos a todos uma excelente leitura!
Organizadores
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SUMÁRIO
CAPÍTULO 1
Psicanálise, universidade e pesquisa..................................................................................13
Alexandre Patricio de Almeida, Alfredo Naffah Neto
CAPÍTULO 2
Um exemplo de pesquisa em psicanálise aplicada:
contribuições de Melanie Klein à educação escolar.....................................................29
Alexandre Patricio de Almeida
CAPÍTULO 3
Má integração da agressividade e manejos terapêuticos na clínica infantil:
uma perpsectiva Winnicotiana.............................................................................................51
Maria Carolina Falleiros Signorelli
CAPÍTULO 4
A contratransferência: o analista como agente de transformações.......................69
Márcia Vieira Santos Bernardes
CAPÍTULO 5
O potencial democrático individual na obra de D.W. Winnicott..............................83
Marcos Torati
CAPÍTULO 6
O estudo de caso como ferramenta de pesquisa: a clínica do distúrbio
psicossomático e o uso da fotografia como objeto de mediação........................ 103
Thais Duarte Luna Machado
CAPÍTULO 7
Jovens e os encontros do cuidado em um CAPS........................................................ 115
Aline Lopes de Assunção
CAPÍTULO 8
A questão da religião na obra de Sigmund Freud...................................................... 133
Carlos Silvano de Souza Neto
CAPÍTULO 9
Pesquisando o cuidado e o trauma no pensamento
de Ferenczi e Winnicott........................................................................................................ 159
João Augusto Veronesi de Paiva
11
CAPÍTULO 10
Formação da identidade sexual feminina na contemporaneidade e a crise
identitária das adolescentes em um mundo de velozes transformações......... 175
Gabriela Di Giacomo
CAPÍTULO 11
A escrita como suplência frente ao transtorno do espectro autista.................... 189
Rosângela de Faria Correia
12
CAPÍTULO 1
Psicanálise, universidade
e pesquisa
1 Psicanalista. Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP (bolsista CAPES). Doutorando pelo Programa
de Estudos Pós-graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP (bolsista CNPq). Professor adjunto da
Universidade Paulista. Professor convidado da Pós-graduação em psicanálise da Unifev.
2 Psicanalista. Mestre em Filosofia pela USP. Doutor em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Professor Titular
da PUC-SP no Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Clínica, núcleo Método Psicanalítico
e Formações da Cultura. Autor de diversos artigos e livros sobre psicanálise e música (ópera e música
popular).
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ALEXANDRE PATRICIO DE ALMEIDA, ALFREDO NAFFAH NETO
3 Freud postula essa ideia em sua publicação intitulada “O Eu e Id” de 1923. Título original em alemão “Das
Ich das Es”.
4 O que aconteceu, por exemplo, com o termo narcisismo criado por Freud em 1914, para explicar as con-
figurações identificatórias do Eu. Hoje, é comum ouvirmos que uma pessoa vaidosa é narcisista, o que em
nada tem a ver com o sentido atribuído pela psicanálise.
14
PSICANÁLISE, UNIVERSIDADE E PESQUISA
15
ALEXANDRE PATRICIO DE ALMEIDA, ALFREDO NAFFAH NETO
5 A graduação de psicologia no Brasil é estruturada de diferentes modos ao que tange à sua organização
curricular: algumas universidades possuem apenas um semestre de psicanálise, enquanto outras, chegam
a ter seis semestres – uma discrepância que, ainda, está longe de entrar num consenso.
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PSICANÁLISE, UNIVERSIDADE E PESQUISA
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ALEXANDRE PATRICIO DE ALMEIDA, ALFREDO NAFFAH NETO
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PSICANÁLISE, UNIVERSIDADE E PESQUISA
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ALEXANDRE PATRICIO DE ALMEIDA, ALFREDO NAFFAH NETO
6 Na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, por exemplo, o candidato deve passar por um longo
período de análise com um analista didata, na frequência de quatro vezes semanais.
20
PSICANÁLISE, UNIVERSIDADE E PESQUISA
A psicanálise na Pós-graduação
A psicanálise na Pós-graduação já apresenta um quadro um
tanto diferente dos cursos de graduação, já que os alunos são, em
sua maioria, psicanalistas, ou formados em instituições psicanalí-
ticas, ou num tipo de formação autodidata, mas que sempre inclui
análise pessoal, estudo teórico e supervisões de casos clínicos. Assim,
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ALEXANDRE PATRICIO DE ALMEIDA, ALFREDO NAFFAH NETO
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PSICANÁLISE, UNIVERSIDADE E PESQUISA
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ALEXANDRE PATRICIO DE ALMEIDA, ALFREDO NAFFAH NETO
8 Kupfer, M. C. Freud e a educação: o mestre do impossível. São Paulo: Scipione, 1988 (primeira
publicação).
9 Lajonquière, L. (1997). Dos “erros” e em especial daquele de renunciar à educação: Notas sobre psicanálise
e educação. Estilos Da Clinica, 2(2), pp. 27-43.
10 Almeida, A. P. Psicanálise e educação escolar: contribuições de Melanie Klein. São Paulo: Zagodoni, 2018.
11 Ribeiro, S. A cerebração de Freud: contribuições do pensamento freudiano para a neurociência – e vice-
-versa. In Maria Rita Kehl [et al.] Por que Freud hoje? São Paulo: Zagodoni, 2017.
12 Rosa, M. D. As escritas do ódio: psicanálise e política. São Paulo: Escuta/Fapesp, 2018.
13 Moretto, M. L. T. Abordagem psicanalítica do sofrimento nas instituições de saúde. São Paulo: Zagodoni,
2019.
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PSICANÁLISE, UNIVERSIDADE E PESQUISA
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ALEXANDRE PATRICIO DE ALMEIDA, ALFREDO NAFFAH NETO
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PSICANÁLISE, UNIVERSIDADE E PESQUISA
Referências
ALMEIDA, L. R. e PLACCO, V. M. N. S. (2014). A didática e o conhe-
cimento pedagógico. In: Formação continuada para docentes em
Administração: das intenções à proposta. Curitiba: CRV Editora.
BERLINCK, M. T. (2008). Psicopatologia Fundamental. São Paulo: Escuta.
FREUD, S. (1912/2010). Recomendações ao médico que pratica a psicanálise.
In: Sigmund Freud, Observações psicanalíticas sobre um caso de para-
noia relatado em autobiografia: (“O caso Schreber”): artigos sobre téc-
nica e outros textos (1911-1913). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
FREUD. S. (1919/2010). Deve-se ensinar psicanálise nas universidades?
In: Sigmund Freud, História de uma neurose infantil (“O homem dos
lobos”): além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). São
Paulo: Companhia das Letras, 2010.
FREUD, S. (1925/2010). As resistências à psicanálise. In: Sigmund Freud,
O eu e o id, “autobiografia” e outros textos (1923-1925). São Paulo:
Companhia das Letras, 2011.
KUPERMANN, D. (2009). Sobre a produção psicanalítica e os cenários da
universidade. Psico. Vol. 40 (3), p. 300-307.
MACEDO. L. (2010). Ensaios construtivistas. São Paulo: Casa do Psicólogo.
MEZAN, R. (2014). O tronco e os ramos. São Paulo: Companhia das Letras.
NAFFAH NETO, A. A pesquisa psicanalítica. J. psicanal. [online]. 2006,
vol.39, n.70 [citado 2019-12-04], pp. 279-288.
NASIO, J. (1991). Os sete conceitos iniciais da psicanálise. Rio de Janeiro:
Zahar.
ROSA, M. D. (2001). Psicanálise na universidade: considerações sobre o
ensino nos cursos de Psicologia. Psicologia USP (Impresso), São Paulo,
v. 12, n. 1, p. 189-200, 2001.
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CAPÍTULO 2
Um exemplo de pesquisa em
psicanálise aplicada: contribuições
de Melanie Klein à educação escolar1
Introdução
Algumas considerações teóricas iniciais
Desde a publicação do livro “Freud e a Educação: o Mestre do
impossível”, em 1989, de autoria de Maria Cristina Kupfer, podemos
dizer que muita coisa mudou no cenário contemporâneo – tanto ao
que tange às questões educacionais quanto aos aspectos referentes ao
estudo da psicanálise e sua disseminação em nosso país. Esta obra foi
um marco para pensarmos as possíveis relações que podemos cons-
truir a partir das aproximações entre a teoria psicanalítica e os desa-
fios pertinentes ao território pedagógico. A dúvida que fica, ainda
hoje, é: será que isso, de fato, vem sendo feito?
A psicanálise inaugurou-se com o lançamento do livro “A inter-
pretação dos sonhos” de Sigmund Freud, publicado originalmente em
1 Este capítulo é um resumo geral das ideias contidas na dissertação de Mestrado do autor, defendida na
PUC-SP, sob a orientação do prof. Dr. Alfredo Naffah Neto, dentro do Programa de Pós-graduação em
Psicologia Clínica, em junho de 2018. Este material de pesquisa deu origem ao livro “Psicanálise e educa-
ção escolar: contribuições de Melanie Klein”, publicado pela editora Zagodoni, São Paulo, SP, 2018.
2 Psicanalista. Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP (bolsista CAPES). Doutorando pelo Programa
de Psicologia Clínica da PUC-SP (bolsista CNPq). Professor adjunto da Universidade Paulista. Professor
convidado da Pós-graduação em psicanálise da Unifev.
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UM EXEMPLO DE PESQUISA EM PSICANÁLISE APLICADA:
CONTRIBUIÇÕES DE MELANIE KLEIN À EDUCAÇÃO ESCOLAR
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ALEXANDRE PATRICIO DE ALMEIDA
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UM EXEMPLO DE PESQUISA EM PSICANÁLISE APLICADA:
CONTRIBUIÇÕES DE MELANIE KLEIN À EDUCAÇÃO ESCOLAR
Método
A pesquisa em psicanálise: a pessoalidade implicada
Falar em pesquisa em psicanálise é quase um pleonasmo, já que
o termo psicanálise já implica, por si só, o termo pesquisa. Dito
de outra forma, quando praticamos psicanálise, estamos sempre
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ALEXANDRE PATRICIO DE ALMEIDA
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UM EXEMPLO DE PESQUISA EM PSICANÁLISE APLICADA:
CONTRIBUIÇÕES DE MELANIE KLEIN À EDUCAÇÃO ESCOLAR
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UM EXEMPLO DE PESQUISA EM PSICANÁLISE APLICADA:
CONTRIBUIÇÕES DE MELANIE KLEIN À EDUCAÇÃO ESCOLAR
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ALEXANDRE PATRICIO DE ALMEIDA
Desenvolvimento
A importância da subjetividade
Neste item, eu discuto algumas ideias iniciais que embasaram
a parte inicial da minha pesquisa, colaborando para sustentar e dar
corpo à investigação que realizei a respeito dos conceitos kleinia-
nos na empreitada desafiadora de articulá-los à educação escolar.
No entanto, apresento, aqui, apenas alguns exemplos da ferramenta
metodológica que utilizei para a construção dos capítulos, ou seja, o
recorte de um relato de minha própria experiência, seguida de uma
articulação e discussão teórica referenciada pelos autores pesquisados
por mim (tanto do campo psicanalítico quanto da esfera pedagógica).
Não é de hoje que sabemos que os aspectos emocionais e afetivos
são importantes ao processo educacional. O problema é que muitas
vezes, esse saber não é posto em prática. Lamentavelmente, a nossa
sociedade se acostumou a dividir os domínios da vida e do conhe-
cimento em setores separados, criando mais oposições do que inte-
rações entre si (MACEDO, 2008). “Nesse ponto de vista, aspectos
afetivos ou emocionais não se relacionam de modo interdependente
com os aspectos físicos, cognitivos ou sociais que lhes são subordina-
dos4” (MACEDO, 2008, p. 11). Pode, também, ocorrer o contrário:
os aspectos cognitivos subordinam os aspectos físicos, sociais ou afe-
tivos. É urgente que se entenda a ação educativa por meio da junção
de todos esses aspectos. Separar campos que deveriam estar amalga-
mados apenas ajudará a compreender o sujeito, assim como toda a
educação escolar, de maneira fragmentada.
Com os problemas diários que exigem soluções forçosas e pon-
tuais, o professor acaba ficando sem tempo para realizar sua própria
percepção e tomar o recuo necessário para compreender o que está
acontecendo. Muitas vezes, movido por tal ímpeto que o impossibilita
4 Trecho retirado do item “Apresentação”, escrito por Lino de Macedo, que está no livro Psicanálise e edu-
cação: construção do vínculo e desenvolvimento do pensar da autora Margarida Azevedo Dupas, São Paulo:
Cultura Acadêmica, 2008.
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UM EXEMPLO DE PESQUISA EM PSICANÁLISE APLICADA:
CONTRIBUIÇÕES DE MELANIE KLEIN À EDUCAÇÃO ESCOLAR
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ALEXANDRE PATRICIO DE ALMEIDA
em uma cena que muito se repete no cotidiano escolar. Esta criança tor-
nou-se uma forte candidata para portar o que chamamos de “dificuldades
de aprendizagem”.
Estava longe de ser psicanalista nessa época, mas já havia lido
alguns textos de Freud sobre o inconsciente, e por esse motivo, o
ocorrido no estágio produziu em mim intensas aflições.
A primeira delas foi relacionada ao fato de que quantas crianças
diagnosticadas com problemas de aprendizagem, possuem a escola
como causadora real de suas dificuldades? Será que esses problemas
não poderiam ser reduzidos através de uma abordagem que consista
em tentar compreender o outro?
Quando andamos por essa via, nos é possível imaginar que a
grande confusão começa a partir do momento em que se localiza na
criança, exclusivamente, a sede de suas dificuldades.
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UM EXEMPLO DE PESQUISA EM PSICANÁLISE APLICADA:
CONTRIBUIÇÕES DE MELANIE KLEIN À EDUCAÇÃO ESCOLAR
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ALEXANDRE PATRICIO DE ALMEIDA
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UM EXEMPLO DE PESQUISA EM PSICANÁLISE APLICADA:
CONTRIBUIÇÕES DE MELANIE KLEIN À EDUCAÇÃO ESCOLAR
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ALEXANDRE PATRICIO DE ALMEIDA
que não. Mediante essa fala, sugeri que chamássemos estes pais à escola a
fim de indicarmos a eles alguma intervenção que possibilitasse a diminui-
ção das dificuldades dessa criança.
Somente a mãe do garoto pôde estar presente no dia da conversa –
o pai trabalhava em dois horários e não poderia se ausentar. Após apre-
sentarmos o que estava ocorrendo com o seu filho, ela desabou a chorar
e disse que se sentia muito culpada, pois, na maioria das vezes, era ela
quem ajudava o menino com as tarefas de casa, as quais ela possuía uma
enorme dificuldade para entender, nos revelando, naquele momento, que
só sabia escrever o seu próprio nome e que até hoje não aprendera a ler
nem a escrever efetivamente.
O sentido da queixa da professora mudava diante daquela situa-
ção. A compreensão da realidade daquela criança nos fez alterar o âmbito
de nossos pensamentos (e atitudes). Ofereci àquela mãe, a oportunidade
de deixar seu filho meia hora antes do horário de início das aulas, para
que pudéssemos auxiliá-lo com as tarefas de casa naquele tempo. Ela con-
cordou no mesmo instante e disse que ficava muito feliz com a ajuda da
escola. Contou também que se propunha a levar o seu filho a qualquer
especialista que indicássemos, para tentar ajudá-lo a superar as suas difi-
culdades. O que não foi preciso, pois em três meses o garotinho estava
acompanhando o restante da classe.
Ao decorrer da pesquisa, outras histórias como essa, foram utili-
zadas como recortes práticos para a exemplificação da teoria, possibi-
litando discuti-la e, também, desdobrá-la em distintas investigações.
Histórias de uma prática que se pautou em mudar o sentido de uma
educação marcada por desafios. Imagino que “proteger o indivíduo
contra a atividade destrutiva que impera em nossa cultura” seja uma
das chaves que abram a porta de uma educação mais centrada nos
afetos e nos valores humanos. Dar importância, ao que é considerado
sem importância, pode alterar o rumo do destino de muitas crianças
que estariam fadadas ao fracasso.
O aluno é o centro da ação educativa. É nisso que devemos acre-
ditar quando nos propomos a mudar as nossas atitudes e desconstruir
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UM EXEMPLO DE PESQUISA EM PSICANÁLISE APLICADA:
CONTRIBUIÇÕES DE MELANIE KLEIN À EDUCAÇÃO ESCOLAR
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ALEXANDRE PATRICIO DE ALMEIDA
Considerações finais
Ouvi uma menininha dizer que ela amava sua mãe mais do que
todas as pessoas, pois o que faria ela se sua mãe não a tivesse
dado à luz e alimentado? Este forte sentimento de gratidão
estava ligado à sua capacidade de fruição e mostrava-se em seu
caráter e em suas relações com outras pessoas particularmente
pela generosidade e consideração. (KLEIN, 1959/1996, p. 288)
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UM EXEMPLO DE PESQUISA EM PSICANÁLISE APLICADA:
CONTRIBUIÇÕES DE MELANIE KLEIN À EDUCAÇÃO ESCOLAR
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ALEXANDRE PATRICIO DE ALMEIDA
5 Nosso mundo adulto e suas raízes na infância – para mim, um dos textos mais belos de Melanie Klein,
publicado, originalmente, em 1959.
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UM EXEMPLO DE PESQUISA EM PSICANÁLISE APLICADA:
CONTRIBUIÇÕES DE MELANIE KLEIN À EDUCAÇÃO ESCOLAR
Referências
ALMEIDA, A. P. Psicanálise e educação escolar: contribuições de Melanie Klein. São
Paulo: Zagodoni, 2018.
ALMEIDA, L. R. Wallon e a educação. In: MAHONEY, A. A. & ALMEIDA, L.
R. (organizadoras). Henri Wallon: psicologia e educação. 11. Ed. São Paulo:
Edições Loyola, 2012.
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ALEXANDRE PATRICIO DE ALMEIDA
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CAPÍTULO 3
Má integração da agressividade
e manejos terapêuticos
na clínica infantil:
uma perpsectiva Winnicotiana
Introdução
Pessoalidade e pesquisa
Venho me dedicando ao atendimento de crianças e adolescentes
em meu consultório particular ao longo de quase vinte anos e tenho
notado uma demanda significativa de queixas relacionadas à agressi-
vidade. Estas queixas geralmente envolvem manifestações agressivas
de crianças, sendo comum, os pais relatarem diversas situações em
que os filhos apresentam comportamentos considerados “inadequa-
dos” (sic), podendo incluir “rompantes agressivos” como, por exemplo,
bater em outras crianças (colegas de escola, amigos e/ou irmãos). De
acordo com o relato dos pais, são atitudes que normalmente emer-
gem como resposta a situações de disputa ou frustração. Há também,
queixas de manifestações agressivas verbais, às quais eles costumam
se referir como “malcriações e respostas grosseiras” (sic), dirigidas, na
51
MARIA CAROLINA FALLEIROS SIGNORELLI
52
MÁ INTEGRAÇÃO DA AGRESSIVIDADE E MANEJOS TERAPÊUTICOS NA CLÍNICA INFANTIL:
UMA PERPSECTIVA WINNICOTIANA
Método
O presente estudo é de caráter teórico-empírico e se norteia a
partir da teoria psicanalítica de D. W. Winnicott. Tem como base
metodológica, a pesquisa-investigação, descrita por Naffah Neto &
Cintra (2012). Segundo os autores, este é um tipo de pesquisa:
53
MARIA CAROLINA FALLEIROS SIGNORELLI
Considerações sobre
a agressividade na perspectiva de Winnicott
O conceito de agressividade é central na obra de Winnicott e
transita por toda a teorização proposta por ele acerca do processo de
maturação emocional. Embora, não negue as potencialidades indi-
viduais, o psicanalista traz para o primeiro plano, a relação entre as
necessidades do bebê e seu ambiente cuidador, desenvolvendo ampla-
mente a ideia de uma ligação estreita entre a conquista da saúde psí-
quica e a qualidade dos cuidados recebidos.
Para Winnicott, todo indivíduo possui uma vida instintiva ativa,
cada qual com sua singularidade, havendo algo comum a todos: uma
tendência inata à integração. Este autor apropriou-se, portanto, de um
modelo maturacional, fato que o colocou numa posição de distancia-
mento de um determinismo constitucional dos instintos e fez com
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MÁ INTEGRAÇÃO DA AGRESSIVIDADE E MANEJOS TERAPÊUTICOS NA CLÍNICA INFANTIL:
UMA PERPSECTIVA WINNICOTIANA
2 Referimo-nos, aqui, ao conceito das pulsões (tradução dada ao termo alemão Trieb) de Freud.
Recomendamos a leitura do texto A pulsão e seus destinos, publicado, originalmente, em 1915.
3 Quando pesquisamos autores ingleses da psicanálise, é adequado utilizarmos o termo “instintos” ao invés
de “pulsões”, pois estes autores (Klein e Winnicott, principalmente) utilizavam o termo “instinct” para se
referir ao conceito freudiano (Trieb).
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MARIA CAROLINA FALLEIROS SIGNORELLI
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MÁ INTEGRAÇÃO DA AGRESSIVIDADE E MANEJOS TERAPÊUTICOS NA CLÍNICA INFANTIL:
UMA PERPSECTIVA WINNICOTIANA
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MARIA CAROLINA FALLEIROS SIGNORELLI
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MÁ INTEGRAÇÃO DA AGRESSIVIDADE E MANEJOS TERAPÊUTICOS NA CLÍNICA INFANTIL:
UMA PERPSECTIVA WINNICOTIANA
Apropriação da agressividade
pelo self na saúde e na patologia
Analisar de maneira cuidadosa as diversas possibilidades de des-
dobramentos psicopatológicos associados à má-integração da agres-
sividade pelo self é uma tarefa um tanto extensa, não sendo possível
de ser desenvolvida neste estudo. No entanto, os casos clínicos que
me trouxeram inquietações a respeito desta temática, em sua maio-
ria, apresentavam questões relativas às falhas ambientais instaladas
no estágio do concern ou concernimento.4 Deste modo, escolhi pros-
seguir minha exposição a partir deste recorte.
Quando nos referimos ao estágio do concernimento, estamos
considerando um bebê que já caminhou consideravelmente em seu
desenvolvimento emocional, tendo percorrido os estágios da depen-
dência e já possuindo um eu razoavelmente estruturado, capaz de se
diferenciar de um não-eu, com condições de estabelecer relações de
objeto. O estágio do concernimento se inicia por volta dos 8 meses e
se estende até os dois anos e meio, aproximadamente. Estamos aqui,
considerando um bebê que já estabeleceu contornos, sendo capaz de
discriminar um dentro, um fora e de se relacionar com objetos reais.5
É neste momento do processo maturacional que, a partir do status de
eu, o bebê terá como tarefa primordial, a integração da própria instin-
tualidade. É somente a partir da integração instintual que o bebê se
torna, de fato, uma pessoa inteira, capaz de se relacionar com pessoas
inteiras, e de lidar com as consequências de suas ações. A este res-
peito, Dias (2003/2014) salienta:
4 O concernimento é um neologismo proposto por Elsa Oliveira Dias para se referir à conquista da capa-
cidade de concern, ou preocupar-se, proposta por Winnicott. Segundo a autora, quando concern é tradu-
zido como preocupação, este termo não cobre inteiramente as acepções do concern. O termo concernimento é
proposto por ela com a pretensão de que seu uso sistemático vá adquirindo um sentido mais próximo ao
termo original. Adotarei esta terminologia no presente estudo.
5 Para uma compreensão mais detalhada sobre os estágios do amadurecimento, vide Os estágios da depen-
dência e da independência relativas (In: Dias, E. O. A teoria do amadurecimento de D. W. Winnicott),
onde a autora faz uma explanação sistemática e detalhada a este respeito.
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MARIA CAROLINA FALLEIROS SIGNORELLI
Se a mãe sustenta a situação dia após dia, o bebê tem tempo para
organizar as numerosas consequências imaginativas da experiên-
cia instintiva e resgatar algo que seja sentido como “bom”, que
apoia, que é aceitável, que não machuca, e com isto reparar ima-
ginativamente o dano causado à mãe. Na relação comum entre
mãe e bebê esta sequência de machucar-e-curar se repete muitas
e muitas vezes. Gradualmente, o bebê passa a acreditar no
esforço construtivo e a suportar a culpa, e assim tornar-se livre
para o amor instintivo.” (WINNICOTT, 1988/1990, p. 90)
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MÁ INTEGRAÇÃO DA AGRESSIVIDADE E MANEJOS TERAPÊUTICOS NA CLÍNICA INFANTIL:
UMA PERPSECTIVA WINNICOTIANA
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MÁ INTEGRAÇÃO DA AGRESSIVIDADE E MANEJOS TERAPÊUTICOS NA CLÍNICA INFANTIL:
UMA PERPSECTIVA WINNICOTIANA
A partir deste dia, Pedro não se dirigiu mais à sacada, mas o que
veio pela frente foi um período da análise bastante difícil. Instalou-se,
na transferência, um processo de regressão à dependência. Sobre o
processo regressivo, Winnicott (1988/1990) coloca que este só pode
acontecer na análise se o paciente for capaz de confiar e o terapeuta
for capaz de fazer juz à confiança (p. 163). Pedro finalmente pôde
estabelecer uma relação de confiança comigo e o não-experenciado no
passado encontrou na relação analítica, a oportunidade de acontecer
pela primeira vez. Loparic (2014) explica: “a regressão faz parte do
processo de cura, ela é o primeiro passo necessário para que o isola-
mento defensivo se torne o reinício ou mesmo o início do processo
integrativo” (p. 12).
Pedro passou a manifestar, nas sessões, um discurso ansioso e
aflito. Verbalizava de forma sofrida, chegando muitas vezes a chorar,
que não se sentia compreendido por ninguém, nem pelos pais, nem
pela professora e nem pelos colegas, queixando-se exaustivamente
de que todos eram chatos. Dizia que a professora o sobrecarregava
com muitas lições, provas e afazeres. Em diversos momentos, seu
discurso era um pouco desconexo e ele parecia ficar atordoado, che-
gando a perder “o fio da meada”. Repetia com frequência que “não con-
seguia descansar”. Foi um período da análise que demandou de mim,
uma tarefa de sustentação um tanto difícil. Eu podia perceber que a
angústia de Pedro era muito intensa. Lembro-me de me sentir can-
sada no final de muitas sessões deste período. Mas eu permanecia ali,
como uma presença viva e disponível, ouvindo-o cuidadosamente e
acolhendo suas reclamações. Em algumas sessões, os momentos de
extrema ansiedade eram seguidos por momentos nos quais ele soli-
citava minha presença ativa nos jogos, geralmente os jogos de carta.
Inaugurou-se um período em que ele começou a brincar. Não demo-
rou muito para que os jogos com regras dessem lugar às brincadei-
ras nas quais o corpo participava. Em algumas delas, ele convocava
minha participação ativa, como, por exemplo, nas lutas de espadas.
Pedro pareceu, então, finalmente confiar que eu aguenta-
ria os seus “ataques”. Na maioria das brincadeiras, eu percebia que
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MARIA CAROLINA FALLEIROS SIGNORELLI
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MÁ INTEGRAÇÃO DA AGRESSIVIDADE E MANEJOS TERAPÊUTICOS NA CLÍNICA INFANTIL:
UMA PERPSECTIVA WINNICOTIANA
um espaço com regras, onde Pedro pudesse lidar com sua agressivi-
dade e com seus sentimentos ruins de maneira segura, ajudando-o a
descobrir-se potente. Os pais consentiram e a luta foi um coadjuvante
muito importante neste período da análise, pois ajudou-o a lidar com
seus impulsos destrutivos de forma menos persecutória. Na escola, o
menino, anteriormente contido, que tirava notas excelentes, começou a
apresentar queda no rendimento pedagógico e também, crises de ansie-
dade, nas quais chorava. Queixava-se da sobrecarga de lições, havendo
momentos em que mesmo preocupado em executá-las, não conseguia.
Neste período da análise, tive a sorte de poder contar com uma coor-
denadora pedagógica de escuta sensível e bastante disponível para a
troca. Ela foi de fundamental importância para esta etapa do processo
analítico de Pedro, pois o sustentou em muitas ocasiões, como uma
verdadeira mãe suficientemente boa, que o acolhia nos momentos de
ansiedade, garantindo-lhe o suporte ambiental que a delicada ocasião
demandava. Ao invés de ser cobrado academicamente, Pedro pôde se
sentir acolhido e sustentado pela coordenadora quando as ansiedades o
acometiam na escola. O pai do menino se envolvia muito pouco nessas
questões. Era impaciente às crises do filho, julgando-as como “momen-
tos de infantilidade”. A mãe demonstrava confiar no meu trabalho e,
neste período de piora sintomática de Pedro, recorreu bastante a mim,
deixando transparecer sua necessidade em ser acolhida nas suas ansie-
dades. Eu cheguei a verbalizar a ela que Pedro estava enfrentando um
momento delicado, onde elaborações importantes precisavam acon-
tecer no processo analítico para que os sintomas pudessem se tornar
mais amenos. Ela seguiu confiando no meu trabalho, levava-o às ses-
sões assiduamente e não questionou quando lhe coloquei a necessidade
de aumentarmos a frequência.
O período regressivo da análise de Pedro se estendeu por longos
meses, sendo sofrido tanto para ele, quanto para mim. Tive dúvidas se
estávamos na direção certa e me questionei algumas vezes se eu estava,
de fato, sendo capaz de ajudá-lo. Até que um dia, após uma de suas
“crises de reclamação”, acalmou-se e permaneceu em silêncio por alguns
minutos. Em seguida, deitado no divã e com a voz um pouco chorosa,
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MÁ INTEGRAÇÃO DA AGRESSIVIDADE E MANEJOS TERAPÊUTICOS NA CLÍNICA INFANTIL:
UMA PERPSECTIVA WINNICOTIANA
Referências
CASSORLA, R. M. S. O psicanalista, o teatro dos sonhos e a clínica do enactment.
São Paulo: Blucher, 2017.
DIAS, E. O. A teoria do amadurecimento de Winnicott. São Paulo: DWW editorial.
3ª edição, 2014.
FREUD, S. Além do princípio de prazer. Obras completas: Volume XVIII. Rio de
Janeiro: Imago, 1977.
FULGÊNCIO, L. Por que Winnicott? São Paulo: Zagodoni, 2016.
GARCIA, R. A agressividade na psicanálise winnicottiana. Tese de doutorado em
Psicologia Clínica. PUC-SP, São Paulo, 2009.
KLEIN, M. (1958). Sobre o desenvolvimento do funcionamento mental. In: Obras
Completas de Melanie Klein: Volume III. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
LOPARIC, Z. Temporalidade e regressão. In: Winnicott e-prints, v. 9 (2), 2014.
NAFFAH NETO, A. & CINTRA, E. M. U. A pesquisa psicanalítica: a arte de
lidar com o paradoxo. In: Alter – Revista de estudos psicanalíticos, v. 30 (1),
pp. 33-50, 2012.
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MARIA CAROLINA FALLEIROS SIGNORELLI
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CAPÍTULO 4
A contratransferência: o analista
como agente de transformações
Introdução
Experiência clínica e inquietações
“A maioria pensa com a sensibilidade,
e eu sinto com o pensamento.
Para o homem vulgar sentir é viver e pensar é saber viver.
Para mim, pensar é viver
E sentir não é mais que o alimento de pensar”.
Fernando Pessoa
1 Psicóloga, psicanalista e especialista em Psicologia Clínica (2012) pelo Instituto Sedes Sapientiae. Atua
em consultório particular. Mestranda pelo programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Clinica da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
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MÁRCIA VIEIRA SANTOS BERNARDES
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A CONTRATRANSFERÊNCIA: O ANALISTA COMO AGENTE DE TRANSFORMAÇÕES
Desenvolvimento
Como sabemos, a contratransferência é um tema bastante
conhecido entre os psicanalistas. Freud descobriu desde quase os pri-
mórdios da psicanálise e, no entanto, este conceito ainda permanece
atual, apesar da passagem do tempo.
Zimerman (1999) resgata que a primeira menção explicita ao
fenômeno da contratransferência, que coube a Freud, ocorreu em
1910 no congresso de psicanálise de Nuremberg com a denomina-
ção de Gegenübertragung, traduzido por alguns autores como “trans-
ferência recíproca”. Freud usara o termo para “referir-se a resistência
inconsciente do analista como obstáculo que o impedia de ajudar o
paciente a enfrentar áreas da psicopatologia que ele próprio não con-
seguia enfrentar” (p. 347).
Da mesma forma que Freud, tanto Melanie Klein, como Bion,
também sustentavam a posição de que a contratransferência não era
mais que um obstáculo para a análise. Para esses autores, haveria um
risco de envolvimento emocional com os pacientes (CASSORLA,
2016) – por se tratar de um produto da psicopatologia do ana-
lista. Resgatarei, na parte inicial de meu trabalho, esses primórdios
da contratransferência e as modificações significativas que surgiram
ao longo da história da psicanálise em função da sua utilização para
tratar crianças e psicóticos.
As contribuições de Melanie Klein a respeito dos primórdios
dos processos de simbolização e o conceito de “identificação proje-
tiva”, introduzido por ela, em 1946, em seu artigo Notas sobre alguns
mecanismos esquizoides, designava a principal defesa do ego na posi-
ção esquizoparanoide. Suas ideias anteriores sobre a criança ter fan-
tasias arcaicas de intrusão no corpo materno, são ampliadas com
o uso do termo “identificação projetiva”. O nome genérico para um
número de “processos distintos e ainda assim ligados à cisão e à pro-
jeção” (KLEIN, 1946, p. 18). A partir de então, este termo passa a
ser considerado como uma combinação de partes excindidas do self
que eram projetadas para dentro de outra pessoa. Isto também marca
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MÁRCIA VIEIRA SANTOS BERNARDES
4 No esquema de Bion, a função alfa é simplesmente algo que deve converter elementos beta – conteúdos
impensáveis que não podem ser conectados entre si – em elementos alfa – conteúdos mentais que podem
ser conectados uns aos outros (algo pensável).
5 No texto “Uma teoria do pensar”, Bion irá afirmar que a capacidade da mãe de rêverie é o órgão receptor
da colheita de sensações que o bebê através de seu consciente, obtém do self. Para tanto irá resgatar
o conceito de consciência num sentido restrito descrito por Freud como um “órgão sensorial para a
percepção de qualidades psíquicas”, para sustentar que há uma consciência rudimentar no bebê, mas que
este ainda não é capaz de fazer uso desses dados sensoriais. De modo geral, é a mãe que fará isso por ele.
Para Castelo Filho, rêverie é a denominação dada por Bion sobre a capacidade de digerir, sonhar as expe-
riências emocionais. Capacidade de transformar experiências brutas, dados sensoriais em percepções não
sensoriais. No início da vida, fatos que costumam ser sentidos como intoleráveis ou indigestos pela mente
do bebê dependerão da capacidade de rêverie da mãe para transformá-los.
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A CONTRATRANSFERÊNCIA: O ANALISTA COMO AGENTE DE TRANSFORMAÇÕES
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MÁRCIA VIEIRA SANTOS BERNARDES
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A CONTRATRANSFERÊNCIA: O ANALISTA COMO AGENTE DE TRANSFORMAÇÕES
Método da pesquisa
[...] as verdades humanas devem ser repetidamente descobertas
em novas formas; caso contrário, essas verdades tornam-se cli-
chês, que estancam o fluxo da criatividade e do pensar genuínos.
A renovação do pensar e da originalidade de expressão são mutua-
mente dependentes: a escrita é a forma singular de pensamento; e a
originalidade de pensamento. Conteúdo e estilo não existem um sem
o outro. (OGDEN, 2014, p. 28, itálicos meus)
75
MÁRCIA VIEIRA SANTOS BERNARDES
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A CONTRATRANSFERÊNCIA: O ANALISTA COMO AGENTE DE TRANSFORMAÇÕES
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MÁRCIA VIEIRA SANTOS BERNARDES
[...] dar vida ao que aconteceu entre essas pessoas no setting ana-
lítico depende da vitalidade e tridimensionalidade dos perso-
nagens criados na história. Manter viva sua conexão tanto com
sua experiência vivida com o paciente quanto com sua experiên-
cia com os personagens da história exige do escritor analítico
um delicado ato de equilíbrio [...] A arte da escrita psicanalítica
reside em conseguir sustentar um diálogo vital entre a experiên-
cia analítica e a vida da história escrita. (OGDEN, 2010, p. 141)
78
A CONTRATRANSFERÊNCIA: O ANALISTA COMO AGENTE DE TRANSFORMAÇÕES
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MÁRCIA VIEIRA SANTOS BERNARDES
Referências
BION, W. R. (1961). Uma teoria do pensar. In: Melanie Klein hoje. Rio de Janeiro:
Imago, 1991.
BRITTON, R. (2003). A suspensão da crença e a síndrome “como se”. In: Crença e
imaginação: explorações em psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2003.
CAPER, R. (2002). Elementos Alfa. In: Tendo mente própria: uma visão kleiniana
do self e do objeto. Rio de Janeiro: Imago, 2002.
CASSORLA, R. M. S. Afinal, o que é esse tal de enactment?. In: Para além da con-
tratransferência: o analista implicado. São Paulo: Zagodoni, 2017.
CASSORLA, R. M. S. O psicanalista, o teatro dos sonhos e a clínica do enactment.
São Paulo: Blucher, 2016.
CASTELO FILHO, C. O processo criativo: transformação e ruptura. São Paulo:
Blucher, 2016.
FIGUEIREDO, L. C.; MINERBO, M. Pesquisa em psicanálise: algumas ideias e
um exemplo. In: Jornal de Psicanálise, v. 39, n. 70, pp. 257 -278. 2006.
GERBER, I.; FIGUEIREDO, L. C. Por que Bion? São Paulo: Zagodoni, 2018.
HEIMANN, P. (1995). Sobre a contratransferência. Revista de Psicanálise
da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre ( Jussara Schestatsky Dal Zot,
Trad.), 21, 171-177. (Trabalho original publicado em 1950)
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A CONTRATRANSFERÊNCIA: O ANALISTA COMO AGENTE DE TRANSFORMAÇÕES
81
CAPÍTULO 5
Marcos Torati1
Introdução
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MARCOS TORATI
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O POTENCIAL DEMOCRÁTICO INDIVIDUAL NA OBRA DE D.W. WINNICOTT
2 Loparic (2007) sugere o neologismo “concercimento” ou “concernência” para o termo concern. Ver
LOPARIC, Zeljko. Elementos da teoria winnicottiana da sexualidade. Nat. hum. [online]. 2005, vol.7,
n.2 [citado 2019-11-28], pp. 311-358.
85
MARCOS TORATI
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O POTENCIAL DEMOCRÁTICO INDIVIDUAL NA OBRA DE D.W. WINNICOTT
Desenvolvimento
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MARCOS TORATI
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O POTENCIAL DEMOCRÁTICO INDIVIDUAL NA OBRA DE D.W. WINNICOTT
A sobrevivência do objeto
Conforme Garcia (2009, p. 21), é a sobrevivência materna
diante das manifestações excitadas do bebê que possibilitará seu cres-
cimento em direção à saúde individual e social. No período entre
seis meses a dois anos de idade, a criança está experimentando sua
destrutividade. Quando a mãe é capaz de sobreviver diariamente à
agressão, dando tempo para que a criança possa se controlar, sem
retaliar, a agressividade infantil pode ser integrada à personali-
dade: “o indivíduo que foi capaz de integrar a agressividade torna-se
um membro saudável da comunidade”. Uma sociedade mais amadu-
recida é, portanto, mais democrática, menos violenta e menos delin-
quente. Para Winnicott (1978 [1958], p. 102), o sucesso de uma
personalidade civilizada implica em tornar-se capaz de drenar cada
vez mais o instintual, realizando-o sem que isso seja uma repressão,
mas um ato consciente de responsabilização perante os seus instin-
tos. A destruição só se torna uma responsabilidade quando existe
integração e organização do ego (WINNICOTT, 1978 [1958],
p. 363). A tolerância a esses comportamentos destrutivos possi-
bilita novo acontecimento: “a capacidade de ter prazer em ideias”,
mesmo que sejam ideias destrutivas (WINNICOTT, 1999 [1950],
p. 77). Assim, a sociedade humana poderá estar mais a salva em rela-
ção ao próprio animal humano que a criou.
89
MARCOS TORATI
O estágio de concernência
O estudo do sentimento de culpa implica para o analista o
estudo do crescimento emocional do indivíduo. Geralmente, conside-
ra-se o sentimento de culpa como um derivado do ensinamento reli-
gioso ou moral. Em Winnicott, este sentimento não decorre por ser
inculcado ao indivíduo, mas é próprio do desenvolvimento emocio-
nal. De certo, as influências culturais são importantes, mas elas, por
si só, podem ser estudadas como superposições de inúmeros padrões
pessoais. Somente a culpa legal se relaciona com o crime, já a culpa
90
O POTENCIAL DEMOCRÁTICO INDIVIDUAL NA OBRA DE D.W. WINNICOTT
Moralidade espontânea
Winnicott (1963, p. 88), dissecou a gênese morfológica da moral.
De forma metodológica o fez. Para tanto, desmembrou o ovo zigoto
constituinte da moralidade. Assim, didaticamente, o anunciou em
duas esferas. Afora: o óvulo sociocultural. O fator ambiente. Adentro:
os potenciais embrionários inatos do lactente. Isto é: a “capacidade da
criança para ser educada moralmente”. É através do respeito às necessi-
dades iniciais da criança, em um ambiente “suficientemente bom”, que o
senso moral genuíno se desenvolve. Desse modo, a culpa moral se cons-
trói, surgindo a partir da própria moralidade adquirida. Sua manifesta-
ção é franca, não carente de técnicas pedagógicas, discursos moralistas,
imposições legais, repressões e punições para que tais impulsos civili-
zatórios construtivos se sustentem. Através dela, a criança pode fazer
reparações e restituições ao ambiente. Para Winnicott (1988, p. 66),
91
MARCOS TORATI
92
O POTENCIAL DEMOCRÁTICO INDIVIDUAL NA OBRA DE D.W. WINNICOTT
A máquina democrática
Nas ponderações de Winnicott (1999 [1950], pp. 253-254),
entende-se por “máquina democrática” a manutenção da possibilidade
dos cidadãos elegerem e se livrarem de seus governantes por meio
93
MARCOS TORATI
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O POTENCIAL DEMOCRÁTICO INDIVIDUAL NA OBRA DE D.W. WINNICOTT
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MARCOS TORATI
O medo da mulher
No parecer de Winnicott (1999 [1950], pp. 263-264), a explica-
ção inconsciente para o fato de haver uma baixa incidência numérica
de mulheres ocupando cargos importantes na cena política mundial,
deve-se a relação da criança com sua mãe. O autor comenta que pes-
soas de ambos os sexos têm “um certo medo da MULHER”. Essa
paúra não é da mulher específica, consciente, mas da mãe incons-
ciente, a representação máxima de poder sobre a vida humana na
fase de dependência absoluta. Em cada indivíduo esse medo pode ser
relativo. Quando a mãe foi suficientemente boa e propiciou um ama-
durecimento sadio na infância, esse débito não necessariamente se
reduzirá a uma gratidão ou elogios, mas à redução desse medo. Caso
essa dependência da MULHER na infância não seja bem reconhe-
cida em função de um fracasso ambiental, o medo dela representará
uma ameaça de dominação em relação à figura feminina. Todavia, por
vezes esse medo da submissão pode justamente impulsionar a pro-
cura pelo seu domínio. Um alívio para essa aterrorizante fantasia per-
secutória de ser dominado pode ocorrer justamente quando ela se
materializa, pois um medo concretizado é menos angustiante do que
um constantemente iminente.
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O POTENCIAL DEMOCRÁTICO INDIVIDUAL NA OBRA DE D.W. WINNICOTT
[...] “os nazistas, que obviamente adoram que se lhes diga o que
fazer não se sentem responsáveis pela escolha de um líder, e são
incapazes de derrubá-lo, sendo pré-adolescentes nesse sentido”.
(WINNICOTT, 1999 [1950], p. 224)
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MARCOS TORATI
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O POTENCIAL DEMOCRÁTICO INDIVIDUAL NA OBRA DE D.W. WINNICOTT
Considerações finais
Através do desenvolvimento desse estudo, Winnicott elu-
cida a importância do aspecto psicológico para o desenvolvimento
de uma democracia. Concebe o sistema democrático como um pro-
cesso retroalimentado pela somatória da saúde psíquica individual
numa sociedade. Esta é chave da maturidade social. Idealmente, sua
obra abre reflexões sobre a importância dos bons lares comuns e da
mãe suficientemente boa como os pilares iniciais da criação do fator
democrático.
Através da teoria do amadurecimento, Winnicott agrega um
novo entendimento sobre o fenômeno da democracia. Ele com-
preende o fator democrático como um fenômeno ocorrido de dentro
para fora do sujeito nos indivíduos maduros. Já no caso dos imatu-
ros, o inverso (falso-self). Portanto, a real democracia seria então uma
99
MARCOS TORATI
Referências
ABRAM, J. A linguagem de Winnicott. Rio de Janeiro: Ed. Revinter, 2000.
GARCIA, R. M. A agressividade na psicanálise winnicottiana. 2009. 217 f. Tese
(Doutorado em Psicologia Clínica). Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, São Paulo, SP, 2009.
GARCIA, R. M. A ética do cuidado e a sociedade democrática. In: Winnicott e-prints, São
Paulo, v. 6, n. 1, p. 79-87, 2011. Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S1679-432X2011000100006&lng=pt&nrm=-
iso>. acessos em 15 out. 2019.
LOPARIC, Z. Winnicott e a Ética do Cuidar. São Paulo: DWW Editorial, 2013.
LEJARRAGA, A. L. O amor em Winnicott. Rio de Janeiro: Garamond, 2012.
NEWMAN, A. As ideias de D.W. Winnicott: um guia. Rio de Janeiro: Imago, 1995.
WINNICOTT, D.W. (1964). A criança e seu mundo. 6ª ed. Rio de Janeiro: LTC,
2008.
100
O POTENCIAL DEMOCRÁTICO INDIVIDUAL NA OBRA DE D.W. WINNICOTT
101
CAPÍTULO 6
Introdução
Uma neblina sutil
O furor acadêmico, repleto de prazos e desafios da escrita, me
tomava por inteira quando fui fisgada pelo convite de produzir este
artigo sobre a minha dissertação de Mestrado2, que se encontra em
pleno processo de construção. Naquele instante me vi como uma
fotógrafa buscando a luminosidade para documentar melhor uma
paisagem com neblinas sutis. De forma idealizada, seria preciso mais
tempo de espera para a vinda de todos os raios de sol. No entanto, a
certeza de que a foto também registra a travessia me autorizou a pro-
duzir o retrato com as condições disponíveis neste momento.
Para observar a “fotografia” da minha dissertação de Mestrado,
é necessário ampliar o olhar à imagem como um todo. Podemos
imaginar que o cenário da foto é composto pelo território da minha
1 Psicóloga clínica, psicanalista com formação pelo Instituto Sedes Sapientiae (departamento de
Psicanálise), mestranda do Programa de Pós-graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP.
2 A dissertação de Mestrado da autora será defendida na PUC-SP em junho de 2020, sob a orientação do
Prof. Dr. Alfredo Naffah Neto.
103
THAIS DUARTE LUNA MACHADO
[...] Este pode até conhecer tudo sobre um caminho que irá per-
correr – todas as paradas, todas as paisagens que encontrará –,
porém jamais poderá prever como ocorrerá cada viagem, à seme-
lhança do psicanalista, que embora conheça o caminho teórico
que constitui o processo analítico, jamais poderá prever cada cena
analítica. Em ambos os casos – do navegador e do analista –,
104
O ESTUDO DE CASO COMO FERRAMENTA DE PESQUISA:
A CLÍNICA DO DISTÚRBIO PSICOSSOMÁTICO E O USO DA FOTOGRAFIA COMO OBJETO DE MEDIAÇÃO
O enquadramento
Interesses da Pesquisa
A minha experiência clínica conduziu caminhos para diversas
práticas institucionais, nas quais a dimensão corporal sempre esteve
em foco. Todavia, foi no Programa de Atendimento e Estudos de
105
THAIS DUARTE LUNA MACHADO
106
O ESTUDO DE CASO COMO FERRAMENTA DE PESQUISA:
A CLÍNICA DO DISTÚRBIO PSICOSSOMÁTICO E O USO DA FOTOGRAFIA COMO OBJETO DE MEDIAÇÃO
107
THAIS DUARTE LUNA MACHADO
3 Na minha prática clínica o grupo é composto por seis pacientes fixos e as sessões ocorrem uma vez por
semana.
4 Ao todo são aproximadamente duzentas e cinqüenta fotos que compõem o conjunto de imagens utilizado.
As fotos operadas a cada sessão são previamente selecionadas pelas terapeutas e variam a cada encontro.
O critério de escolha busca incluir fotos de cenários diversos. O número de fotos a serem operadas a cada
sessão é proporcional ao número de integrantes do grupo (em torno de dez imagens por participante).
108
O ESTUDO DE CASO COMO FERRAMENTA DE PESQUISA:
A CLÍNICA DO DISTÚRBIO PSICOSSOMÁTICO E O USO DA FOTOGRAFIA COMO OBJETO DE MEDIAÇÃO
109
THAIS DUARTE LUNA MACHADO
Norteadores metodológicos
Na pesquisa que desenvolvo, os dois primeiros capítulos são ela-
borados com o objetivo de dar maior contorno aos temas do distúr-
bio psicossomático em Winnicott e do objeto mediador da fotografia,
buscando na teoria elementos que possam sustentar a prática. A partir
desta fundamentação inicial, o terceiro capítulo vem sendo desenvol-
vido e pretende analisar o caso de uma das pacientes do grupo tera-
pêutico que utiliza o instrumento da fotografia como mediação.
René Kaës concebe o grupo como um espaço psíquico comum e
partilhado e distingue três níveis lógicos no estudo da realidade psí-
quica do grupo. São eles: 1- “o grupo”; 2- “o dos vínculos entre os sujei-
tos que o compõem”; 3- “aquele de cada sujeito considerado em sua
singularidade” (KAËS, 2011, p. 54). Partindo desse princípio, busco
compreender o caso clínico de uma das pacientes do grupo conside-
rada em sua singularidade. Sem dúvida, ao analisar o caso, o olhar
singular à paciente estará inserido no conjunto grupal, o que também
implicará em considerar as múltiplas transferências em jogo.
Portanto, trata-se de uma pesquisa qualitativa tendo como sub-
tipo de investigação a análise de caso clínico, diretamente ligada à
metodologia psicanalítica. Naffah Neto (2006) utiliza o termo pes-
quisa-escuta para designar a prática clínica psicanalítica, em que “a
atenção flutuante do analista e as associações livres do analisando
contribuem para a produção de sentidos”. O autor afirma que também
110
O ESTUDO DE CASO COMO FERRAMENTA DE PESQUISA:
A CLÍNICA DO DISTÚRBIO PSICOSSOMÁTICO E O USO DA FOTOGRAFIA COMO OBJETO DE MEDIAÇÃO
111
THAIS DUARTE LUNA MACHADO
5 Neste aspecto, é salientada a importância das questões éticas que circundam uma pesquisa.
112
O ESTUDO DE CASO COMO FERRAMENTA DE PESQUISA:
A CLÍNICA DO DISTÚRBIO PSICOSSOMÁTICO E O USO DA FOTOGRAFIA COMO OBJETO DE MEDIAÇÃO
Traçados finais
“Eu gosto do absurdo divino das imagens”
(Manoel de Barros em Menino do Mato, 2015)
113
THAIS DUARTE LUNA MACHADO
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ZYGOURIS, R. Nem Todos os Caminhos Levam a Roma. São Paulo: Escuta, 2006.
114
CAPÍTULO 7
Jovens e os encontros
do cuidado em um CAPS
Introdução
“Me perdi do espaço e do tempo
Não sei porquê a razão me ignora
Estranhos surgem do nada
Meus amigos foram embora
Nada me parece possível
Meu mundo é muito pequeno
Tudo cinza, tudo igual
É como se tomasse veneno
Não tenho domínio do hoje
Mas lembro bem do que fui outrora
As coisas não são mais minhas
Não cuido mais do meu jardim
Não há esperança na “Caixa de Pandora”
Ergueu-se um muro em torno de mim”.
(COELI, 2011, p. 99)2
115
ALINE LOPES DE ASSUNÇÃO
3 O termo paciente deixa de ser utilizado na saúde mental a partir da Lei 10216/01, conhecida como Lei
da Reforma Psiquiátrica, entretanto será utilizada no texto para se adequar a linguagem daquele contexto
histórico.
116
JOVENS E OS ENCONTROS DO CUIDADO EM UM CAPS
4 ‘Doentes mentais’ e ‘doenças mentais’ deixa de ser utilizado a partir da estruturação da Reforma
Psiquiátrica
117
ALINE LOPES DE ASSUNÇÃO
118
JOVENS E OS ENCONTROS DO CUIDADO EM UM CAPS
119
ALINE LOPES DE ASSUNÇÃO
5 BRASIL. “De Volta Para Casa” promove reintegração social de pacientes com transtornos mentais. Blog
da Saúde – Ministério da Saúde, 2016. Disponível em: http://www.blog.saude.gov.br/index.php/pro-
mocao-da-saude/51918-de-volta-para-casa. Acessado em 10/11/2018.
120
JOVENS E OS ENCONTROS DO CUIDADO EM UM CAPS
6 Nesse contexto, ‘terapeuta’ foi utilizado como qualquer profissional do Caps que atue na assistência ao
usuário, em especial, a Referência Técnica do caso.
121
ALINE LOPES DE ASSUNÇÃO
7 A autora traduz o termo doldrums de Winnicott para marasmo depressivo, visando distanciar-se da etiolo-
gia da depressão.
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JOVENS E OS ENCONTROS DO CUIDADO EM UM CAPS
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ALINE LOPES DE ASSUNÇÃO
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JOVENS E OS ENCONTROS DO CUIDADO EM UM CAPS
esses sujeitos “pessoas como nós, em cada caso com uma história
[...] e uma boa carga de canseira e sofrimentos pessoais, e com um
ambiente que é pura e simplesmente mau ou bom [...].” (p. 47).
Além disso, Winnicott destaca em sua obra a importância do
ambiente para o desenvolvimento saudável do bebê. Cesarino (2008)
afirma que, com isso, o autor problematiza a ideia da psicose como
doença individual, enxergando-a como resultado de uma doença
ambiental, contra a qual o indivíduo teve que reagir. Esse conceito
relaciona-se diretamente ao praticado na atenção psicossocial, que, ao
entender o processo de adoecimento através da imersão em seu con-
texto (familiar, territorial e social), busca encontrar a relação entre a
análise individual e a social, para além da cisão observada atualmente
entre a clínica da saúde mental e o movimento antimanicomial.
Importante reforçar, antes de seguirmos, que a luta antimanico-
mial permanece incipiente no mundo todo. A radicalidade a que ela se
propõe em sua origem, isto é, a de que a loucura possa ser aceita na
sua essência pela sociedade e o campo de estudo ultrapasse o da saúde,
retirando-a do olhar biomédico e medicalizante, ainda está distante de
ser contemplada, sendo difícil imaginá-la possível da forma que hoje
a sociedade se organiza. Entretanto, retomar os objetivos propostos
pela luta antimanicomial significa manter no horizonte a perspectiva
da existência de uma sociedade não só livre de manicômios, mas onde o
diferente possa existir por si, com afeto e sem diagnósticos.
Método
“....
De que iracundo deus cumprindo o aresto venho?!
Nada, apenas a dor; que deseja o demente?
que quer na vida, mais que o pesado lenho
que há de arrastar, gemendo e só, eternamente?
Isto mesmo: soffrer: soffre, pois. A tu’alma
se afinará na dor, crysol da amargura;
não mais peças e sonhes, e o teu peito acalma”.
(Anônimo, 1905 apud Cunha, 1986, p. 107)
125
ALINE LOPES DE ASSUNÇÃO
Desenvolvimento
“Arrasta-me daqui loucura
Arrasta-me para a extremidade do bem
Que o teu mal é menor do que eu li no jornal
Leve-me aos poucos ou de uma vez
126
JOVENS E OS ENCONTROS DO CUIDADO EM UM CAPS
8 Trecho do poema “Marcha da Liberdade” de Samuel Barros Magalhães, usuário e militante da luta
antimanicomial.
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ALINE LOPES DE ASSUNÇÃO
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JOVENS E OS ENCONTROS DO CUIDADO EM UM CAPS
129
ALINE LOPES DE ASSUNÇÃO
Considerações finais
Devido ao processo ainda em construção da pesquisa, não é pos-
sível apresentar resultados fechados, entretanto, através da imersão
neste campo de estudo tem sido possível identificar a importância da
relação terapêutica para os sujeitos que nela estão envolvidos. Ao tera-
peuta, experienciar empaticamente a dor, medo e confusão pode ser
estafante, sendo necessária a superação para o estágio de não-saber,
colocando-se como agente disponível ao afeto e ao reconhecimento
das potencialidades do outro. Ao jovem psicótico, sujeito que viven-
cia intenso processo de [des]construções, com incertezas e angústias,
o encontro genuíno é sentido como suporte para a possibilidade de
viver o respeito, a confiança e o afeto.
Referências
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ÁVILA, F. A. Reflexões sobre uma experiência em projetos terapêuticos singulares a
partir do discurso de usuários. 2014. Dissertação (Mestrado em Educação nas
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CHAVES, A. C. Diferenças entre os sexos na esquizofrenia. Rev Bras Psiquiatr.
22(Supl I):21-2. 2000.
130
JOVENS E OS ENCONTROS DO CUIDADO EM UM CAPS
131
ALINE LOPES DE ASSUNÇÃO
132
CAPÍTULO 8
A questão da religião
na obra de Sigmund Freud
Introdução
Esclarecimento e Ilusão
As religiões, – e os temas metafísicos que as envolvem – foram
objetos de crítica sobre os quais os intelectuais, pensadores e pes-
quisadores mais repercutiram ao longo da modernidade. Nesse sen-
tido, Freud se coaduna a toda uma tradição que não fugiu de tomar
este tema de maneira explícita, e mais do que polemizar em torno
da questão, o autor de o Futuro de uma Ilusão (1927), se enveredou
pelo subsolo da mente humana com vistas a tornar o tema da religião
objeto de vasta pesquisa.
É conhecida e notável a posição de Freud frente ao pensamento
religioso e a sua postura pessoal herdeira do Iluminismo clássico.
O Iluminismo, ao prezar pela razão, depositou nos ideais cultu-
rais a imagem de um sujeito que pudesse se desvencilhar da voz
da autoridade (político-religiosa), e assim servir-se do próprio
133
CARLOS SILVANO DE SOUZA NETO
2 KANT. I. Resposta à pergunta: “O que é o Iluminismo?”. Trad: Arthur Morão. Acessado em: 08/08/19
www.lusofilofia.net
134
A QUESTÃO DA RELIGIÃO NA OBRA DE SIGMUND FREUD
3 Em carta endereçada a Pfister, de outubro de 1918 (CARTA 4, p. 84), Freud em tom cáustico pergunta
ao amigo pastor, “bem à parte, por que nenhum de todos estes devotos criou a psicanálise, por que foi
necessário esperar por um judeu completamente ateu?”. A breve resposta de Pfister não é menos mordaz.
Primeiramente declara que ser devoto não é sinônimo de autenticidade intelectual e gênio criador, além
de que, curiosamente Pfister declara, “o senhor primeiramente não é judeu” (!?), e por último, enfatiza
que para ele, Pfister, “jamais ouve cristão melhor”, se referindo a Freud (pp. 84-85.). Cf. Em: FREUD,
S. e PFISTER, O. Cartas entre Freud & Pfister (1909-1939): Um diálogo entre a psicanálise e a fé cristã.
(Organizadores, Ernst L. Freud, Heinrich Meng). Traduzido por: Karin Hellen Kepler Wodracek e
Ditmar Junge. – 3. Ed. – Viçosa: Ultimato, 2009.
4 Apresentação do livro, intitulada: “A psicanálise como enclave do romantismo”. In LOUREIRO, I. O
Carvalho e o Pinheiro: Freud e o estilo romântico.
135
CARLOS SILVANO DE SOUZA NETO
Meu contato precoce com a história bíblica (eu mal tinha aca-
bado de aprender a arte da leitura) teve, como reconheci muito
depois, efeito duradouro sobre a direção de meu interesse. (...).
Ao mesmo tempo, as teorias de Darwin, que tinham então
enorme interesse, atraíram-me fortemente, pois sustentavam
esperanças de um extraordinário avanço em nossa compreen-
são do mundo; e foi ao ouvir o belo ensaio de Goethe sobre a
Natureza, lido em voz alta em uma conferência pública pelo pro-
fessor Carl Brühl pouco antes de eu deixar a escola, que decidi
tornar-me estudante de medicina. ( JONES, 1989, p. 41)
136
A QUESTÃO DA RELIGIÃO NA OBRA DE SIGMUND FREUD
5 Cf. A Interpretação dos Sonhos (1900), onde Freud indica no primeiro capítulo a passagem de uma
leitura místico-religiosa do fenômeno onírico, para a leitura científica e psicanalítica; Psicopatologia da
Vida Cotidiana (1901), Cf. capítulo XII, sobre determinismo, crença e superstição; Atos Obsessivos e
Práticas Religiosas (1907a), primeiro ensaio onde Freud se esforça em relacionar: religião e psicopato-
logia; O Esclarecimento Sexual das Crianças (Carta Aberta ao Dr. M. Fürst) (1907b), Freud destaca
o fator da religião como impeditivo e inibidor do desenvolvimento da criança quanto ao tema da sexuali-
dade, tornando-a futuramente em um adulto neurótico. Uma Recordação de infância de Leonardo da
Vinci (1910), Cf. parte V, onde se refere às ideias em torno do conceito de Hilflosigkeit, (retomadas em
Inibição, Sintoma e Angústia, de 1926); Totem e Tabu (1912-3), coletânea de quatro ensaios em que
Freud busca demonstrar a coalescência da origem da cultura a partir da religião totêmica, assim, religião
e civilização se detém em uma mesma origem, a morte do pai-primevo (Urvater); O Tema da Escolha do
Cofrinho (1913), pequeno ensaio em que Freud procura desvelar o significado de determinados deuses,
que a partir de memórias encobridoras encontraram formas de os homens lidarem com os aspectos da
morte e do amor; O Moisés de Michelangelo (1914a), ensaio pelo qual Freud apresenta a figura mítica
da bíblia como ideal cultural, capaz de renunciar a agressão em função do progresso da Civilização;
Conferências Introdutórias à Psicanálise (1916-7), em vários momentos das conferências, Freud faz
alusão ao fato de que a psicanálise pôde dar contorno científico, a determinados aspectos da vida inte-
rior que sempre foram legados aos místicos e religiosos; O Inquietante (1919), Freud denota ao campo
da religião como uma das maneiras de lidar com o infamiliar que se apresenta na experiência humana;
Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921), Freud indica a formação de grupos como o exercito e a
igreja como modelos para se pensar processos sociais a partir de mecanismos inconscientes; Psicanálise
e Telepatia (1921), mais um ensaio que Freud demonstra interesse pela pesquisa do que se apresenta
como fenômeno oculto à razão; Uma Neurose do Século XVII Envolvendo o Demônio (1923a);
O Futuro de uma Ilusão (1927); Uma Experiência Religiosa (1928); O Mal estar na Civilização
(1930); Novas Conferências Introdutórias à Psicanálise (1933), o tema da religião e do oculto retor-
nam, Cf. Conferência 30 e 35; Moisés e o Monoteísmo: Três Ensaios (1939).
6 Em: Obras Completas volume 16. Tradução: Paulo C. de Souza. Cia das Letras, 2011.
137
CARLOS SILVANO DE SOUZA NETO
Método
138
A QUESTÃO DA RELIGIÃO NA OBRA DE SIGMUND FREUD
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CARLOS SILVANO DE SOUZA NETO
7 Um dos mais importantes ensaios de Freud, O Futuro de uma Ilusão (1927), é um dos frutos dessa interlo-
cução, não esquecendo que Pfister também procurou responder a altura do ateísmo de Freud, em A Ilusão
de um Futuro (1928).
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A QUESTÃO DA RELIGIÃO NA OBRA DE SIGMUND FREUD
Desenvolvimento
8 Tradução livre: “espero que você mantenha sua mente cética e lembre-se de que magnífico é uma exclama-
ção da ignorância e não o reconhecimento de um milagre” (1995/1980, p. 205.). Carta 75. Em: As cartas
de Sigmund Freud para Eduard Silberstein. Org. Walter Boehlich. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1995.
9 Ibid. Cf. Cartas 32, 41, 42, 43 e 44.
141
CARLOS SILVANO DE SOUZA NETO
Por outro lado, Freud teve o impacto em sua trajetória de ter sido
aluno de Ernst Brücke (1819-1892), que segundo o próprio Freud,
teria sido “a maior autoridade que sobre mim influiu” (FREUD,
2014/1926b, p. 222). Segundo Gay (1992, p. 68), Ernst Brücke, era
um inflexível materialista e, impreterivelmente, contrário a “qualquer
explicação misteriosa extraída da romântica Naturphilosophie ou, pior,
da teologia”. Com efeito, Freud contrasta ao longo da sua formação
o conflito de ideias de uma cultura efervescente e, inclinada a ideais
positivistas de ciência conformados ao materialismo filosófico.
As inflexões em torno do judaísmo, todavia a inserção a um
ambiente cultural fundado em bases judaico-cristãs, no entanto, cin-
gidas de laicidade e perspectiva secular, ao que tudo indica, foram
legados a Freud sobre o veio da assimilação cultural europeia. Nesse
sentido, Freud não teria sido incutido à ortodoxia, como provavel-
mente fora o seu pai Jacob. De maneira que, nota-se nisso, algum
dos desdobramentos do ano de 1848 (historicamente importante),
pois é o ano em que a Europa formalmente consente com a eman-
cipação civil e política do povo judeu (MEZAN, 1986); resquícios
do século XVIII para com o iluminado século XIX, de uma Europa
que admira a si mesma como pináculo da Civilização e, que se rego-
zija em (suposta) tolerância e (contundente) avidez técnico-científica.
Sob a marca da ruptura da tradição ortodoxa, Freud pôde favorecer-
-se de uma criação propícia para ideais alheios à religião, e a percep-
ções românticas sobre o sentimento de religiosidade.
Doravante, percebo que Freud colocou em perspectiva que o
reconhecimento das neuroses através da psicanálise, entre outras
questões, trouxera o esclarecimento retroativo de manifestações psí-
quicas anteriormente interpretadas como de natureza espiritual; além
de que, Freud também desvela de forma crítica – a concepção obs
curantista e preconceituosa da neurose, própria à medicina de sua
época – o modo como a psicopatologia era tratada antes da psicanálise.
A fim de desdobrar tal afirmação, cito Birman:
142
A QUESTÃO DA RELIGIÃO NA OBRA DE SIGMUND FREUD
10 “Do you remember my always saying that the mediaeval theory of possesion, that held by the ecclesiastical
courts, was identical with our theory of a foreing body and the splitting of consciousness?” Cf. Carta 56 e
57 (pp. 187-8). In: Freud, S. The Origins of Psycho-Analysis – Letters to Wilhelm Fliess, Drafts and Notes:
1887-1902. Edited by: M. Bonaparte, A. Freud and E. Kris. Translation by: E. Mosbacher and J. Strachey.
Basic Books, 1954.
11 Cf. Cartas: 44, 52, 56, 57; Rascunho N, Carta 71, 116 e 144.
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14 Cf. Cartas: 56, 57, 75, 103, 104, 111, 116, 143, 144, 146 e 153.
148
A QUESTÃO DA RELIGIÃO NA OBRA DE SIGMUND FREUD
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CARLOS SILVANO DE SOUZA NETO
Considerações finais
Penso que a relação de Freud com o tema da religião e da religio-
sidade é complexo e cheio de camadas a serem pacientemente circuns-
critas e observadas. Assim, me contraponho a percepções unilaterais
que propõem visar um Freud que teria sido engolfado pela cegueira
de uma posição ateia, tornando-o um simples acusador e renova-
dor da crítica da religião no século XX. Quanto à última questão,
posso concordar que Freud revitalizou, no início do século passado,
a contraposição a ser feita às religiões e seus dogmas. Todavia, não
imagino que isso seja de algum modo perigoso à religiosidade, mas,
que tal postura possa atenuar as exigências de uma cultura predomi-
nantemente inclinada à crença em mundos e seres de ordem sobre-
natural, tornando-as mais maleáveis e conforme uma ética que leve
em consideração a alteridade, independentemente da crença. Desse
modo, talvez, o que se possa esperar em nosso tempo, dos efeitos pos-
síveis de uma crítica às religiões, se mostre na exortação que Voltaire
escreveu em seu, Dicionário Filosófico, “se entre nós houver duas reli-
giões, hão de cortar-se o pescoço; se houver trinta, viverão em paz”
(VOLTAIRE, 1764/1978, p. 291).
Assim, penso que a obra de Freud pode demonstrar aspectos
complexos e contrastantes em torno do tema visado, contudo, me
vale crer sob o conjunto da leitura que a crítica que Freud fez a reli-
gião dominante valha como instrumento ainda hoje para se pensar
o recrudescimento de ideais culturais retrógados e anti-iluministas!
A atual conjuntura que fazem de forças políticas o verdadeiro ajun-
tamento de uma psicologia de massas – exército e igreja no poder –,
parece dar razão, ainda, às descobertas de Freud indicadas a mais de
um século, sobretudo, ao culto à personalidade, que encarna a figura
do pai, mediador da relação dos filhos com o próprio Deus que este
acredita servir. Se a atual religião, ainda dominante, prega o amor ao
próximo, condição possibilitada pela sobrevivência de certo patrimô-
nio cultural, dificilmente se percebe em seus asseclas uma inclinação
para tal postura.
150
A QUESTÃO DA RELIGIÃO NA OBRA DE SIGMUND FREUD
151
CARLOS SILVANO DE SOUZA NETO
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153
CARLOS SILVANO DE SOUZA NETO
154
A QUESTÃO DA RELIGIÃO NA OBRA DE SIGMUND FREUD
155
CARLOS SILVANO DE SOUZA NETO
156
A QUESTÃO DA RELIGIÃO NA OBRA DE SIGMUND FREUD
157
CAPÍTULO 9
Pesquisando o cuidado
e o trauma no pensamento
de Ferenczi e Winnicott
1 Psicanalista. Formado em terapia de casal e família pelo Instituto Sistemas Humanos. Mestrando pelo
Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP. Atuou no CAPS (Centro de
Atenção Psicossocial) de Barueri, hoje trabalha como psicólogo clínico em consultório particular.
159
JOÃO AUGUSTO VERONESI DE PAIVA
160
PESQUISANDO O CUIDADO E O TRAUMA NO PENSAMENTO DE FERENCZI E WINNICOTT
2 Fizemos pequenas alterações e ajustes gramaticais na tradução original, a fim de manter o texto mais claro
e bem escrito – dada a precariedade da tradução das obras de Winnicott para o português.
161
JOÃO AUGUSTO VERONESI DE PAIVA
162
PESQUISANDO O CUIDADO E O TRAUMA NO PENSAMENTO DE FERENCZI E WINNICOTT
Desenvolvimento
Inicialmente, a pesquisa me levou a perceber que, tanto Ferenczi
quanto Winnicott, entendem a adaptação dos cuidadores primei-
ros na vinda de um recém-chegado como a oferta de um ambiente
que coloque à disposição do bebê uma morada silenciosa e tranquila,
morada que, nesse caso, não venha a ser demasiadamente perturbada
por sons e outros estímulos excessivos e, por conseguinte, invasivos
ao campo psíquico do bebê.
Desse modo, os autores concebem a imunização progressiva por
parte do ambiente, como um elemento de fundamental importância
no sentido de proteger a criança e permitir que ela venha a desenvol-
ver-se, sem vir a ser precocemente perturbada por ocorrências nocivas
que são passíveis de ser engendradas durante o começo da vida.
Nesse caso, ao invés de ser o filho quem deve se adaptar aos
enquadres e modos de ser da família, é a família quem deve se ade-
quar à particularidade de seus rebentos, ofertando a eles uma sinto-
nia afinada ao gesto de sua vinda.
Nesse sentido, pude notar, que ambos fazem migrar a ênfase
de sua área de interesse e pesquisa para as interações primitivas que
ocorrem entre o ambiente e o infante, alterando o eixo de investigação
em psicanálise, do campo intrapsíquico para a área do ambiente e de
seus cuidadores primeiros.
Soma-se a isso, que, ao preconizarem a adaptação da famí-
lia à criança3 e não o contrário, os psicanalistas não apenas colocam
3 Aqui fazemos alusão a um significativo texto de Sándor Ferenczi, intitulado Adaptação da família à
criança, publicado, originalmente, em 1928.
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Considerações finais
Como conclusão pude notar que, embora, para Ferenczi, o cami-
nho de um desenvolvimento humano se desdobra, única e exclu-
sivamente, em virtude da incompletude e do inacabamento de uma
condição humana que, em sua estreia, se expõe ao aberto e ao exílio
do mundo e, para Winnicott, o seu advento só passa a existir, a partir
da ação combinada entre um operador espontâneo e o favorecimento
por parte do ambiente, isso não quer dizer que ambos os autores não
adotem em seu pensamento, um modo de disposição e de apreensão
do mundo, que sendo radicalmente diferente daquele do intelectua-
lismo clássico, questiona-se e desconstrói a noção de representação.
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Referências
DIAS, E. O. A teoria do amadurecimento de D. W. Winnicott. São Paulo: DWW
Editorial, 2014.
FERENCZI, S. (1928). A adaptação da criança à família. In: Sándor Ferenczi,
Psicanálise IV (Obras Completas). São Paulo: Martins Fontes, 2011.
GOLDGRUB, F. Trauma, amor e fantasia. São Paulo: Editora Escuta, 1998.
HEIDEGGER, M. Ser e tempo. São Paulo: Editora Vozes, 1998.
LEVINAS, E. (1991). A ontologia é fundamental? In: Emmanuel Levinas, Entre
nós: ensaios sobre a alteridade. São Paulo: Editora Vozes, 2004.
LOPARIC, Z. Winnicott e a ética do cuidado. São Paulo: DWW Editorial, 2013.
NAFFAH NETO, Alfredo. A problemática do falso self em pacien-
tes de tipo borderline: revisitando Winnicott. Rev. bras. psicanál
[online]. 2007, vol.41, n.4 [citado 2019-12-17], pp. 77-88 . Disponível
em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0486-641X2007000400008&lng=pt&nrm=iso>.
SPITZ, R. A. O primeiro ano de vida. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
WINNICOTT, D. E. (1967). Pós-escrito: D. W. W. sobre D. W. W. In: Donald
W. Winnicott, Explorações psicanalíticas (1989-1994). Porto Alegre: Ed. Artes
Médicas, 1994.
174
CAPÍTULO 10
Gabriela Di Giacomo1
Introdução
A origem da pesquisa
Apresentarei, nesse trabalho, uma visão ampla e, ao mesmo
tempo resumida, do meu projeto de mestrado realizado no Programa
de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
A partir de minha experiência clínica, pude observar um número
crescente de jovens mulheres, entre quatorze e vinte e dois anos,
afirmando ser bissexuais, ou seja, dizem sentir atração por homens
e mulheres. Fiz esse recorte de idade para demarcar o período de
Ensino Médio e faculdade, em que as garotas começam a vivenciar
o despertar de suas sexualidades e têm suas primeiras experiências e,
como consequência disso, trazem muitas dúvidas e questionamentos
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universo que parece estar tão diferente do que fora a nossa própria
adolescência? Quais os impactos dessas novas configurações iden-
titárias na relação pais e filhos? Diferenças transgeracionais sempre
existiram e foram fontes de conflitos e estranhamentos nas diversas
famílias, porém a velocidade das transformações impressa pelo avanço
científico-tecnológico tem deixado um abismo entre os repertórios de
vivências dos adolescentes e seus pais, motivo de mais desencontros,
mais distanciamentos e, assim, maior vulnerabilidade emocional para
os jovens.
Metodologia
A metodologia que será utilizada para a investigação da pes-
quisa apresentada será direcionada pelo referencial psicanalítico. Para
tanto, inicialmente, será feito um trabalho de revisão bibliográfica
e, posteriormente, a análise de material clínico – representado por
vinhetas e trechos de casos atendidos por mim –, relacionando a prá-
tica à teoria.
Será uma pesquisa qualitativa, baseada no estudo de casos clí-
nicos. Primeiramente, apresentarei partes das falas de algumas meni-
nas que atendi em meu consultório (dez garotas foram selecionadas
entre quatorze e vinte e dois anos) focando no tema da sexualidade,
que configurará um recorte de como tal assunto vem se apresen-
tando. Para demonstrar que é um fenômeno que vai além da minha
experiência pessoal (e que não se restringe, apenas, à minha prática),
também farei uso de vinhetas e reflexões de outros colegas da área.
Para ter acesso a esse material, foi realizado um encontro entre cinco
psicanalistas que trabalham com adolescentes, novamente focando
a mesma temática. Como percebemos similaridades entre o público
jovem atendido, podemos pensar em questões que vão além da sub-
jetividade de cada adolescente, aludindo a um possível movimento da
geração e uma ampla transformação cultural.
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4 Apesar de haver algumas pesquisas psicanalíticas que trabalham com a coleta de dados, essa não é uma
prática frequente no âmbito desta ciência.
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Desenvolvimento
A adolescência, no sentido em que a entendemos atualmente,
alude ao efêmero: um momento de transitoriedade, no qual a passa-
gem da infância à vida adulta parece assumir o caráter do estranho
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E A CRISE IDENTITÁRIA DAS ADOLESCENTES EM UM MUNDO DE VELOZES TRANSFORMAÇÕES
5 Termo usado por Freud para designar algo que não é propriamente misterioso, mas estranhamente fami-
liar, suscitando uma sensação de angustia, confusão e estranhamento – ou mesmo terror – que remonta
àquilo que é desde há muito conhecido.
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6 Esse termo retirado da gíria juvenil refere-se a capacidade da sexualidade apresentar graus de feminilidade
e masculinidade.
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Considerações finais
Por entender que a ciência não consiste em um conhecimento
estático, substancializado e acabado, mas sim na possibilidade de um
conhecer contínuo, em que muitas respostas ainda não foram dadas
e, quando o forem, permitirão a criação de novas perguntas, tenho
como objetivo nesse presente trabalho ampliar o entendimento do
sujeito contemporâneo, focando nas meninas adolescentes e em suas
constituições de identidade feminina.
Não pretendo obter respostas conclusivas sobre o tema, mas
sim aproximar o leitor, seja ele pai, profissional da área ou cidadão
comum, da nova geração, mais precisamente das garotas, e ainda abrir
espaço pra elaborar estranhezas, surpresas e tabus que o contato com
essa juventude tem nos suscitado. Espero, com esse movimento de
pesquisa, ajudar na construção de pontes entre as gerações, para que
esses jovens encontrem um contexto continente e propulsor para o
seu desenvolvimento.
Apesar de acreditar estar diante de um fenômeno característico da
geração, não quero perder de vista a especificidade do estudo da expe-
riência clínica, que tem como objeto o reino do subjetivo e da qualidade.
7 Sociedade marcada pelo narcisismo de seus indivíduos. Termo apresentado por Freud em 1910 para
explicar a escolha de objeto nos homossexuais e que, no século XIX, foi adotado pela psiquiatria.
Inspirado no mito de Narciso, personagem que nutria profundo amor pela própria imagem.
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Tal especificidade exige especial cuidado para que não se caia na ten-
dência a homogeneizar pessoas, pois isso poderia levar à conclusões
apressadas, com abusivo uso de categorias e concepções a priori.
Referências
ABRAHAM, N. E TOROK, M. A Casca e o Núcleo. São Paulo: Editora Escuta,
1995.
ALONSO, S. O Tempo, A Escuta e O Feminino. São Paulo: Editora Casa do
Psicólogo, 2010.
FAVILLI, M. A. Metarmofose adolescente: uma nova relação corpo-mente. In: Revista
Brasileira de Psicanálise, volume 50, In: Corpore, 2016.
FERNANDES, M. H. Corpo. São Paulo: Editora Casa do Psicólogo, 2006.
FERNANDES, M. H. Transtornos Alimentares. São Paulo: Editora Casa do
Psicólogo, 2006.
FIGUEIREDO, L. C. Revisitando as psicologias: da epistemologia à ética das práticas
e discursos psicológicos. São Paulo: Editora Vozes, 1991.
FORACCHI, M. A Juventude na Sociedade Moderna. São Paulo: Editora Livraria
Pioneira, 1972.
FREIRE, J. C. O Vestígio e a Aure-a: corpo e consumismo na moral do espetáculo. São
Paulo: Editora Garamond, 2004.
FREUD, S. (1905). Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade. In: Sigmund
Freud, Obras Completas. Rio de Janeiro: Edições Standart Brasileira, Imago,
1996.
FREUD, S. (1910). Leonardo da Vinci. In: Sigmund Freud, Obras Completas. Rio
de Janeiro: Edições Standart Brasileira, Imago, 1996.
FREUD, S. (1913). Totem e Tabu. In: Sigmund Freud, Obras Completas. Rio de
Janeiro: Edições Standart Brasileira, Imago, 1996.
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CAPÍTULO 11
Introdução
A presente pesquisa de Doutorado visa analisar a importân-
cia da escrita autobiográfica e poética na vida de pessoas que sofrem
de autismo. Este trabalho está articulado à minha dissertação de
Mestrado, período em que realizei um estudo a respeito das dificul-
dades de linguagem que as crianças com autismo apresentam por não
conseguirem se apropriar da própria voz. Minha experiência clínica
me convocava, a cada novo caso, a estudar a relação que as crianças
possuíam com a voz e com o olhar. Em muitos tratamentos, o silên-
cio, o mutismo e a recusa ao olhar se fizeram presentes. Essas mani-
festações se desdobravam em impasses na clínica, e o enigma do que
acontece na relação da criança autista com o objeto voz percorreu
toda minha pesquisa de Mestrado.
Nesse estudo, ao conhecer o trabalho de vários psicanalistas e
profissionais que se dedicam a essa clínica, me interessei pelos escri-
tos de Jean-Claude Maleval. O autor nos adverte sobre a importân-
cia de conhecer as produções literárias de autistas e, especialmente, as
1 Psicanalista. Mestre pelo Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Clínica pela PUC-SP e
doutoranda pelo mesmo Programa e instituição. Atua em consultório particular. Atualmente é funcioná-
ria efetiva da Prefeitura Municipal de São Paulo. Tem experiência na área de Saúde Coletiva, com ênfase
em Saúde Mental. Experiência profissional desenvolvida em Centro de Atenção Psicossocial Infantil
(CAPSi).
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A ESCRITA COMO SUPLÊNCIA FRENTE AO TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA
sobre os autismos, uma vez que nos possibilita sair de uma leitura do
autismo como algo “congelado”, em que os sujeitos estariam comple-
tamente fechados para constituírem laços sociais. Nos relatos muitos
autores fazem críticas às instituições e aos profissionais, por não
os considerarem capazes de aprender. Segundo Vorcaro e Ferreira
(2017): “Esses escritos não somente nos ensinam, mas nos interpe-
lam, a todo o momento, sobre nossas concepções, teorias e posiciona-
mentos frente à sensível e contundente vida cotidiana dessas crianças
e de seus pais”. (VORCARO e FERREIRA, 2017, p. 17).
As autobiografias apresentam um saber próprio e um trabalho
constante frente a um mundo permeado de desintegrações e isola-
mentos. O fato que nos chama atenção e está muito bem apresentado
no livro “Autobiografias no Autismo” (2017) de Marina Bialer, é que
mesmo alguns pacientes que haviam sido diagnosticados com seve-
ros graus de incapacidade, puderam escrever sobre seus sentimentos
e dificuldades. É possível notar que não somente os autistas conside-
rados de alto funcionamento possuem a capacidade de escrever, ler e
estabelecer tentativas de comunicação. Há um alerta feito por vários
autistas escritores quanto ao descrédito atribuído a eles por um sig-
nificativo número de profissionais. Desse modo, encontramos a partir
da leitura desses escritos, uma contribuição social e clínica, no que
tange a compreensão dessa prática terapêutica.
A seguir, apresento um pequeno recorte do que Raphael Müller,
diagnosticado como autista, escreve em sua autobiografia.
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que publicam suas vivências nos convidam a pensar sobre seu encon-
tro com a linguagem e a singularidade com que tratam a voz e a fala,
revelando-se algo muito particular, permeado por uma forte angústia.
O que, mais uma vez, aponta para uma clínica que revela que cada
sujeito encontra sua maneira para estar no mundo e, desse modo, o
tratamento se direciona para a singularidade, distanciando-se da uni-
versalização e dos protocolos de avaliação.
Oliver Sacks em seu livro “O homem que confundiu sua mulher
com um chapéu” conta sua experiência com um paciente autista
que possuía habilidades para o desenho. O garoto que permaneceu
durante anos em isolamento, teve a oportunidade de um olhar parti-
cularizado, e pode então, expressar sua paixão pelo desenho. O autor
descreve sua experiência com o menino:
Mas ele tem uma paixão e real capacidade para o particular – ele
o ama, entra nele, recria-o. E o particular, quando é minucioso o
bastante, também é um caminho – poderíamos dizer o caminho
a natureza – para a realidade e a verdade. O abstrato, o categó-
rico, não é do interesse da pessoa autista – o concreto, o parti
cular, o singular é tudo. (SACKS, 1997, p. 250)
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Considerações finais
Considerando a importância de discutir conceitos caros à clí-
nica psicanalítica dos autismos como: pulsão, borda, signos e objetos
autísticos, reiteramos a importância de ouvir os autistas por meio de
suas produções escritas, pois elas nos ajudam a compreender e criar
novas formas de tratamento. Ampliar o diálogo sobre os autismos
abre possibilidades de novas formas de inclusão e acolhimento a pais
e familiares, uma vez que o impacto de preconceitos pode inviabilizar
o olhar para as potencialidades contidas em todos os sujeitos, se res-
peitados na sua singularidade.
A partir das produções escritas e referências psicanalíticas, essa
pesquisa tem como objetivo ampliar o diálogo e constituir um novo
olhar, relativizar e questionar classificações e protocolos, que impe-
dem crianças, jovens e adultos autistas de constituírem novos laços e
apresentarem suas criações para o mundo. Nos relatos autobiográficos
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Referências
BARNETT, K. Brilhante: a inspiradora história de uma mãe e seu filho gênio e
autista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2013.
BERLINCK, M. Psicopatologia fundamental. São Paulo: Escuta, 2008.
BIALER, M. Autobiografias no Autismo. São Paulo: Toro, 2017.
DOVAN J. & ZUCKER C. Outra Sintonia. A história do autismo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2017.
HIGASHIDA, N. O que me faz pular. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.
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