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O SPD foi desde cedo a coluna vertebral da Segunda Internacional, reconhecido como tal
pela generalidade dos outros partidos do movimento. Os dirigentes russos não constituíam
excepção e com frequência recorriam à autoridade dos seus camaradas alemães para arbitrarem
conflitos especificamente russos. Assim, na sua acesa polémica contra os economicistas, Lenine
invocou em “Que fazer?” a autoridade do principal teórico marxista do seu tempo, Karl
Kautsky, a favor da tese de que a consciência socialista deveria ser introduzida no proletariado a
partir “de fora”. Mais tarde, em plena revolução de 1905, citou ainda o mesmo Kautsky contra o
decano do marxismo russo, Plekhanov, que lamentava o recurso às armas por parte do
proletariado russo.
Ainda em 1910, Kautsky continuou a ser poupado por Lenine e por Trotsky, quando se
envolveu numa discussão que o afastaria pessoalmente de Rosa Luxemburg. Perante um
movimento pelo sufrágio universal e pela abolição da monarquia prussiana, Kautsky
argumentava que só o socialismo, e não a implantação da república, poderia trazer verdadeiras
soluções. Rosa, pelo contrário, solidarizava-se com o movimento e proclamava que o
maximalismo retórico de Kautsky apenas reflectia a sua cobardia política. Lenine absteve-se de
tomar posição a favor de Rosa; Trotsky foi mesmo mais longe, censurando à revolucionária
polaca a aspereza e o tom demasiado “russo” das suas intervenções polémicas. Curiosa censura:
mais do que o conteúdo da discussão, parecia ser uma brutalidade especificamente russa a
desqualificar Rosa face à delicadeza alemã do seu contraditor.
Lenine mantinha também um elevado apreço pelo principal dirigente do SPD, August
Bebel. Quando, em vésperas da Primeira Guerra Mundial, este foi substituído por uma nova
geração de burocratas operários, Lenine continuou a esperar dos herdeiros políticos de Bebel
uma firme posição anti-belicista. Em 4 de Agosto de 1914, o dirigente bolchevique ficou tão
surpreendido pela votação social-democrata a favor dos créditos de guerra que começou por
suspeitar de uma notícia forjada pelo Estado-Maior alemão.
Rosa Luxemburg já antes de Lenine detectara os sintomas da degenerescência do SPD,
mas não tinha criado à sua volta um núcleo capaz de cindir no momento crítico. Em 4 de
Agosto, depois do choque da notícia e dum primeiro impulso suicida, decidiu meter ombros à
agitação contra a guerra. Mas no primeiro dia apenas conseguiu reunir sete pessoas - couberam
todas no seu apartamento. Aos 300 telegramas que enviou, só uma personalidade importante
respondeu: a enérgica Clara Zetkin que, com Rosa e com o velho historiador Franz Mehring,
assinou a primeira proclamação contra a guerra. Mesmo o deputado radical Karl Liebknecht
votara os créditos de guerra, por disciplina partidária. Dois dias depois já estava arrependido,
mas só quatro meses mais tarde iria ter nova oportunidade de votar contra eles.
De qualquer modo, os spartakistas iam ter muita dificuldade em fazer prevalecer a sua
política. Apesar da grande popularidade que tinham ganho com a sua corajosa oposição à
guerra, eles chegaram à revolução com um núcleo militante exíguo, que não ia além dumas 50
pessoas em Berlim. A sua influência sobre a torrente revolucionária tinha limites evidentes. Ao
ser derrubada a monarquia dos Hohenzollern, em 9 de Novembro de 1918, Liebknecht
proclamara algo teatralmente a fundação da “república socialista alemã”. Os conselhos
operários eram, com efeito, a base do novo governo, mas a debilidade dos spartakistas deixava
todo o poder nas mãos duma coligação entre social-democratas e “independentes”. Liebknecht,
convidado a sobraçar uma pasta, recusou. Os “independentes” apenas permaneceram no
governo até finais de Dezembro. Daí em diante, todos os ministérios ficaram em mãos do SPD.
Os spartakistas tentaram obter a convocação de uma conferência do USPD, não
conseguiram e romperam. Em 30 de Dezembro, reuniram o congresso que iria fundar o KPD,
com a participação da Liga Spartakus e de vários grupos de extrema-esquerda de Bremen,
Hamburgo e Berlim. O grupo de “delegados revolucionários” das fábricas de Berlim, até aí
filiados no USPD, também tinha mostrado interesse em participar, mas finalmente vira
recusadas as suas condições. A grande influência desse grupo nas fábricas da capital ficou,
assim, perdida para o novo partido.
No congresso havia uma clara maioria de entusiastas do bolchevismo que, no entanto,
tinham dele uma compreensão esquemática. Rosa Luxemburg compreendia mais profundamente
as contradições com que a revolução russa se debatia. A sua adesão era mais mediada e
dialéctica que a da maioria do congresso. Ela escreveu o programa do novo partido e obteve a
sua aprovação. Mas em todas as outras votações importantes ficou em minoria. Quis adiar a
fundação formal do partido e perdeu. Quis chamar-lhe socialista e a grande maioria decidiu que
havia de ser comunista: KPD. Na discussão táctica, Luxemburg quis que o partido concorresse
às eleições parlamentares marcadas para final de Janeiro e perdeu por larga margem.
O anti-parlamentarismo simplista da maioria do KPD deixava o partido à mercê da
tentação putschista. Foi o que sucedeu em 4 de Janeiro de 1919 com a demissão do chefe da
polícia de Berlim, o “independente” Eichhorn, pelo governo social-democrata de Ebert. Os
spartakistas, incluindo Liebknecht, caíram na provocação, controlaram parte da cidade e foram
derrotados em dois dias. Luxemburg e Liebknecht mantiveram-se durante algum tempo na
clandestinidade mas, em 15 de Janeiro, foram capturados e assassinados, por ordem directa do
ministro social-democrata Gustav Noske, com a aprovação de Ebert. Dois meses depois, em 10
de Março, era a vez de ser assassinado o outro grande dirigente spartakista, Leo Jogiches. O
sociólogo Heleno Saña sustenta que o duplo assassínio, na realidade triplo, desembaraçou
Lenine de rivais incómodos e possíveis candidatos à liderança da IIIª Internacional. Na verdade,
era o contrário que sucedia: Lenine queria esse contrapoder dentro da Internacional e esteve à
beira de fazer-lhe uma decisiva concessão.
Com efeito, entre 2 e 6 de Março reuniu-se em Moscovo a conferência que iria tornar-se o
primeiro congresso da Komintern. O delegado alemão, Hugo Eberlein, trazia instruções de
Luxemburg, das últimas emitidas em vida desta, para se opor à fundação de uma nova
Internacional. Eberlein era o único delegado a considerar prematura a fundação. Mas a
importância que Lenine atribuía a um eixo germano-russo na fundação da Internacional era de
tal ordem que ponderou mesmo a possibilidade de adiar esse passo, em atenção às objecções
solitárias do delegado alemão. Por ponderar o adiamento, suscitou uma enérgica oposição,
nomeadamente do finlandês Kuusinen e do ucraniano Rakovsky.
Acontece que o próprio Eberlein, conhecido mais pela teimosia do que pela habilidade,
forneceu argumentos aos partidários da urgência: depois de ter apresentado um relatório
triunfalista sobre o alegado crescimento do KPD, ele tentou sustentar o adiamento na
insuficiência do apoio de massas ao comunismo. Zinoviev facilmente voltou o relatório contra
as fundamentações do adiamento: se, num país tão decisivo como a Alemanha, o comunismo
tinha a influência avassaladora descrita por Eberlein, como se podia ainda hesitar?
Inesperadamente, sugestionado pelo ambiente eufórico que suscitavam as notícias da revolução
húngara, o delegado alemão adoptou uma atitude mais flexível. A maioria proclamou a
fundação da Komintern e Eberlein limitou a expressão das suas reservas a um voto de
abstenção.
Apesar da confirmação das suas críticas pelos factos, Levi tinha contra si a direcção da
Komintern. A pretexto duma intervenção que teve no congresso do partido italiano, ele foi
afastado da direcção. O golpe final, que o afastou também do partido, foi a acção de Março de
1921. O dirigente húngaro da Komintern, Bela Kun, interveio para forçar um putsch comunista
que aliviasse as dificuldades sentidas pela Rússia soviética. A nova direcção embarcou o KPD
na aventura, contra as advertências de Levi e Clara Zetkin. Tudo indica que a intervenção de
Bela Kun teve o beneplácito de Zinoviev.
Quando o putsch fracassou, Clara Zetkin exigiu internamente a responsabilização dos
seus promotores, ao passo que Levi os denunciou publicamente na brochura Unser Weg. Lenine
apoiou Zetkin contra a restante direcção do KPD e, numa carta que lhe dirigiu, incitou mesmo o
KPD a resistir a injunções estúpidas que pudessem vir da Komintern. Segundo o testemunho do
dirigente kominternista Iakov Thomas, a entrevista de Lenine com Bela Kun foi muito severa,
desautorizando o dirigente húngaro e em parte o próprio Zinoviev. Quanto a Levi, que sempre
tinha protegido, Lenine acabou por resignar-se a caucionar a sua expulsão por ter atacado
publicamente o partido. Fê-lo, contudo, reafirmando que Levi tinha razão no fundo da polémica
contra a acção de Março. Segundo Lenine, Levi tinha perdido a cabeça – mas era o único que
tinha uma cabeça para perder.
Foi então que Levi se decidiu a publicar a mesma brochura de Rosa Luxemburg que tinha
retido na gaveta quatro anos antes. Trotsky reagiu com irritação e Clara Zetkin aproveitou para
testemunhar que Rosa já tinha entretanto mudado de ideias e revisto as suas críticas à direcção
bolchevique. Lenine, pelo contrário, recebeu estoicamente a publicação e reclamou mesmo que
o KPD publicasse a obra completa – sublinhando completa - de Luxemburg. Manifestou por
certo a sua divergência face às críticas da brochura, mas afirmando no mesmo fôlego que essa
divergência em nada diminuía a estatura da autora. É curiosa a expressão utilizada por Lenine:
“Uma águia pode voar por vezes mais baixo que uma galinha, mas continuará sempre a ser uma
águia”. Não era segredo para ninguém que o dirigente bolchevique mantinha desde longa data
essa elevada apreciação sobre Rosa. Mas a alusão às galinhas não servia apenas a Levi, seu alvo
explícito naquela circunstância, e sim, também, aos epígonos alemães do leninismo.
A aposta de Lenine e Trotsky era, nesse momento, um dirigente de massas, spartakista da
primeira hora, apoiante das posições de Zetkin e Levi em 1921: o já citado Heinrich Brandler,
que ao sair da cadeia foi instalar-se durante algum tempo em Moscovo, no executivo da
Komintern, e regressou à Alemanha com a incumbência de organizar uma insurreição em defesa
dos governos de coligação entre “independentes” e comunistas na Turíngia e na Saxónia. Esta
acção defensiva podia ser a centelha que conduzisse à tomada do poder na Alemanha. Mas
Lenine, fora de combate, já só tinha poucos meses de vida pela frente. Trotsky propôs-se ir para
a Alemanha dirigir os preparativos insurreccionais, mas viu essa proposta recusada pela troika
Stalin-Zinoviev-Kamenev, que receava a popularidade acrescida dum rival colocado à frente da
revolução mais importante do mundo.