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Universos
Número 01 – Janeiro de 2011

Organização: Junior Cazeri

Capa: Rodrigo Martins

http://cafedeontem.wordpress.com/
1000 Universos

Prefácio

O que é o fantástico? Mundos, criaturas e aventuras que


estão além do nosso cotidiano modesto? O calafrio do horror, o
encanto diante da fantasia e o assombro contemplando um futuro
distante?

Definir o fantástico é aprisioná-lo. E isso é um tanto injusto,


dadas as possibilidades infinitas que ele nos oferece. Eu descobri o
fantástico nos desenhos animados, depois nos quadrinhos, cinema e
literatura. Como em uma viagem sem fim, estou sempre a
redescobri-lo, em palavras e imagens.

Hoje, eu lhe convido a participar desta busca, deixando-se


guiar pelas palavras hábeis e imaginação fértil dos escritores aqui
presentes que, tão gentilmente, cederam seus trabalhos para que
nós, juntos, pudéssemos mais uma vez descobrir o fantástico e suas
vastidões. São universos sem fim, arrepiantes, encantadores e
assombrosos. Sente-se confortavelmente, tome fôlego, relaxe e
aprecie. Permita-se sonhar e, sonhando, crie o seu próprio universo.

Junior Cazeri

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Índice

Quimera das Cinzas Douradas 05


de Georgette Silen

Sangue em Suas Mãos 32


de Marcelo Paschoalim

Amazônia Underground 42
de Romeu Martins

Aquela Garota de Olhos Brilhantes 47


de Miguel Carqueija

Ouvir Estrelas 63
de Ana Cristina Rodrigues

Adam 68
de M. D. Amado

Sonho Ruim 81
de Marcelo Galvão

Ars Nova 93
de Ana Lúcia Merege

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Quimera das
Cinzas
Douradas

Georgette Silen

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Georgette Silen | Quimera das Cinzas Douradas

..., porque Moisés havia dito: “Tornei-me hóspede em terra estrangeira;...”


Êxodo, 18:3-27

O céu era ferruginoso à leste, ao amanhecer, confundindo-se


com as cores tórridas do deserto do Sinai. Terra e céu era uma só
massa avermelhada, que parecia arder nas brasas constantes de um
fogareiro sempre alimentado. Um rugido distante se fez ouvir, como
trovões de uma tempestade furiosa. Moisés olhou para a grande
montanha que se elevava a sua frente, como uma verruga
deformada na pele lisa do solo. Cada pedra que compunha o monte
fumegava lentamente, o calor elevando-se em vapores de fumaça
semelhantes aos das baterias das máquinas que, nesse mesmo
momento, acabaram de produzir o maná para o sustento do dia.
Moisés seguia o movimento dos homens e mulheres que retiravam
as crostas brancas de maná de entre as finas tubulações e esteiras
de entretelas metálicas, que recolhiam o orvalho da noite para
convertê-lo na ração diária esterilizada, e o acondicionamento
ligeiro que faziam do produto nos receptáculos de conservação
refrigerada.
Preciso mandar que chequem todas as baterias iônicas dos
equipamentos de sustentação, pensou, preocupado com a
manutenção dos suportes vitais. O maná era muito sensível ao calor
da região, apenas sendo produzido quando as temperaturas caíam
durante a madrugada, e se não fosse devidamente preservado toda
a produção da noite estaria perdida; passariam fome e a
desintoxicação seria prejudicada. E mesmo com todos esses
cuidados a validade de utilização do alimento era curta, não
podendo ser consumido além do pôr-do-sol, tornando-se intragável.
Por isso, todas as instruções de produção e armazenamento,
enviadas dias antes junto com os aparelhos de coleta e conversão

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de alimentos quando uma janela de teletransporte mínima permitiu


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tal contato, eram seguidas à risca.


Moisés suspirou, mirando os vapores que subiam em espirais
delicadas enquanto a intensidade dos estrondos tornava-se maior,
escurecendo o céu aos poucos, trazendo uma nova noite
prematura. A massa negra, como uma sombra invertida do monte
Sinai, se deslocava sem pressa pelo céu negro-alaranjado agora,
repleto de nuvens um pouco mais claras nesse mesmo tom,
buscando refletir com precisão os contornos da montanha. O
comboio de transporte-colônia da Êxodus finalmente chegara e
procurava ajustar sua posição no quadrante determinado. Era uma
manobra arriscada e delicada, e se não fosse feita com precisão
junto a maior janela de abertura na estratosfera colocaria em
cheque toda a missão de resgate dos descendentes dos primeiros
exploradores do mundo de Javé.
— Aarão, venha até aqui. — o som baixo da voz de Moisés
era transportado pelo comunicador do efod dourado, conectado ao
peitoral que usava desde Madiã, cuja transmissão viajava em
segundos, atingindo o comunicador-receptor no peitoral do
primeiro comandante do acampamento.
Os passos de Aarão foram rápidos, assim como suas ordens
para que deixassem os encaixes dos terminais de conexão
devidamente atrelados aos conversores de energia quântica da
Arca. Era um total de vinte e oito armações que formavam uma
impressionante estrutura convergente para o ocidente, norte-sul,
ao longo do acampamento; uma espécie de corredor ladeado por
postes de cerca de cinco metros de altura e setenta e cinco
centímetros de largura, distantes uns dos outros em cerca de
oitenta centímetros, totalmente revestidos de um material
dourado, que os nativos daquele mundo chamavam de ouro, e que

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os exploradores de Javé descobriram ser o condutor ideal para


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suportar um repuxo de transporte subatômico de partículas. No


final desse corredor, em posição oposta à montanha, a cápsula do
Tabernáculo aguardava, enquanto era abastecida pela energia que
captava do atrito da Êxodus com a atmosfera do planeta,
revertendo esse fluxo para o painel das baterias da Arca
posicionada em seu interior. Fagulhas esporádicas de sobrecargas
mínimas espocavam do topo de cada armação, como relâmpagos
estáticos, deixando o ar com o aroma do ozônio pungente.
Moisés conferia o alinhamento à distância, admirado pela
simplicidade complexa necessária a tal arranjo. Cada centímetro
teria que ser preciso ou o teletransporte não funcionaria no
momento certo e os herdeiros de José, um dos primeiros
exploradores das estrelas, sucessor em linha direta do comandante
Abraão, continuariam presos naquela terra incapazes de exercerem
seu potencial devido às limitações impostas pela atmosfera daquele
planeta. Os contornos da Êxodus estavam cada vez mais próximos
do monte. Moisés sentia o peito queimar e as luzes do efod
brilhavam com mais intensidade. As nuvens ao redor nublaram para
um cinza-negro carregado, como uma tempestade magnética
repleta de auroras boreais.
— Já é hora? — Aarão perguntava, vendo o semblante de seu
líder naquela jornada refletir o lusco-fusco dos comandos luminosos
do peitoral. Uma aura de força reluzia na face de Moisés, e mesmo
o efod de Aarão, segundo no comando, faiscava e emitia ruídos de
baixa frequência a aproximação do momento de contato.
— Ainda não. A conexão deve ser precisa. — Moisés
permanecia atento a massa escura nos céus, cuja sombra criava um
paredão ao redor do Sinai, isolando-o da paisagem estéril — Os
homens devem continuar ajustando os equipamentos que os

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comandantes de Javé puderam nos enviar na última janela de


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teletransporte mínimo, conforme as instruções que me foram


passadas, adaptando os recursos desse planeta aos materiais. Eu
devo subir ao monte e esperar as novas ordens para ativar o Portal
do Encontro. — Moisés tocou seu efod, alisando os comandos —
Cuide para que ninguém se acerque da montanha em minha
ausência, Aarão. Sem proteção — e apontou para os peitorais —
nenhum deles pode sobreviver à força da radiação. Somente
quando o Portal for ativado todos poderão cruzar com segurança os
limites do Sinai e ascender à terra de Javé... Finalmente!
Os olhos castanhos de Moisés sorriram diante da expectativa
e sua figura mediana parecia crescer e expandir além dos limites de
seu traje púrpura, como se dominado pela crescente euforia. Aarão
meneou a cabeça em afirmação, sem reação aparente semelhante.
— Não se preocupe. Creio que todos se lembram da última
ocorrência quando a janela mínima se abriu. — Aarão estremeceu
levemente. A lembrança dos corpos desfigurados e parcialmente
queimados daqueles que, em desespero, tentaram subir a
montanha na ânsia de deixarem logo esse mundo o assombraria
pelo resto de seus dias — A lição foi bem aprendida. Mas... — Aarão
o encarou — me preocupa saber que, de geração em geração,
desde José e seus exploradores, esses conhecimentos têm sido
esquecidos, Moisés. Os séculos de escravidão aos nativos desse
mundo, e aos seus deuses transmorfos, fizeram com que cada vez
menos a sabedoria dos primeiros chegasse a todos. Em
circunstâncias diferentes, não seria necessário alertar para um
perigo tão óbvio, um ato imprudente...
— Você se esqueceu de considerar os efeitos dessa atmosfera
estranha, e que nos afeta. — Moisés pontuou, entre impaciente e
condescendente aos comentários de Aarão — Não estamos em

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nosso mundo, aqui tudo consome muito mais energia de nossos


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corpos e mentes, suga a força dos filhos de Javé, nos impedindo de


lutar. Viver nesse planeta é como um caminhar sonâmbulo pela
existência. Não havia como saber ou impedir, a princípio, que
nossas memórias e forças fossem drenadas e danificadas pela
intoxicação dos gases dessa biosfera, e que nos enfraquecia
sensivelmente. Os anciãos fizeram o melhor possível, nas
circunstâncias que nos cercam, preservando nossa cultura e ritos,
guardando os efods, registrando nos antigos diários de bordo, até
que viessem nos resgatar... — encarou a massa escura novamente
— e se não fosse por isso, pelo seu esforço, talvez Javé nunca
tivesse nos encontrado.
Aarão olhou timidamente para o céu. A glória de Javé ainda o
assustava, mesmo tendo sido escolhido como co-capitão da
jornada, desde a saída do Egito. Um gosto amargo insistia em
inundar sua saliva, obrigando-o a cuspir fora como se fosse uma
peçonha corrosiva.
— Acho que Javé esqueceu-se de nós por muito tempo. — o
ressentimento antigo inundou o peito de Aarão — 430 anos,
Moisés. 430 anos! — fechou os punhos — Por que não procuraram
por José e os exploradores quando seu transporte ficou preso em
Canaã, depois da aterrissagem forçada? Por que não ativaram os
localizadores e rastrearam desde sua última posição nesse
quadrante do Universo? Eles poderiam ter feito isso, Moisés, e
nosso povo não teria sido subjugado por tanto tempo...
— E acredita que não o fizeram? — Moisés erguia a fronte
descrente para Aarão — Eu já contei essa mesma história milhares
de vezes! Irmão, eles me mostraram tudo! Jamais deixaram de
procurar pela Gênesis, a nave dos exploradores do comandante
José. Nunca abandonam os membros de seu povo em suas jornadas

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de colonização e estudos pelas estrelas. A Gênesis sofreu danos


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muito sérios ao cruzar as passagens dimensionais de salto no


hiperespaço, e teve de realizar uma manobra de emergência sem as
proteções necessárias de entrada nessa atmosfera. Mesmo tendo o
experiente comandante Jacó entre seus tripulantes, foi impossível
evitar o desastre do transporte-colônia. Com a destruição dos
equipamentos de comunicação e rastreamento, eles ficaram
isolados em Canaã, desconhecendo o uso dos recursos desse
mundo no reparo dos aparelhos. — a sombra negra movia-se mais,
quase os alcançando — Esse é um mundo muito diferente Aarão, e
suas surpresas são muitas. Deve entender, também, que a relação
espaço/tempo é muito diversa a de Javé. Os 430 anos que vivemos
aqui foram bem menos em nosso planeta natal. Mas o importante é
que: eles nos acharam! — seus olhos negros brilharam saudosos —
Jamais me esquecerei quando Javé se apresentou a mim, em Madiã,
pela primeira vez. Um contato holográfico simples, de busca
exploratória, uma luz em forma de chamas que envolveram um
arbusto de sarça nos pastos montanhosos. — mirou o céu — Sabia
que era um chamado de casa, Aarão, como sempre nos disseram
que sentiríamos quando voltassem para nos buscar, para nos
conduzir a terra que emana leite e mel. Iremos para casa, meu
irmão — tocou os ombros fortes de um Aarão ainda sisudo — Javé
veio em nosso socorro, como sempre afirmaram nossos ancestrais
mesmo diante das memórias nubladas. Devolveram-nos o
conhecimento perdido, nos deram o maná que nos alimenta e ajuda
a superar os males dessa atmosfera em nosso organismo, e nos
ensinaram como nos livrar de nossos inimigos no Egito. — mostrou
o bastão que trazia como símbolo de seu primeiro contato com os
habitantes de Javé em Madiã — Deram-nos as armas que nos
libertaram, e agora estão aqui. — apontou a Êxodus ainda oculta

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nos céus — Moveram-se por distâncias imensas no Universo apenas


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para nos resgatar. Não pode dizer que os líderes de Javé não se
importam Aarão, nunca mais diga isso.
Um grande estrondo repicava as palavras de Moisés e seus
olhos adquiriram um brilho dourado, o mesmo que Aarão e outros
já haviam visto. O brilho daqueles que estiveram com Javé, cara a
cara.
— E Séfora? — Aarão perguntou, e a luz cessou nos olhos de
Moisés — Como fará em relação a ela? E aos seus filhos? Seguirá o
que os comandantes disseram? Que nenhum nativo ou seus
híbridos poderão adentrar nossa terra?
Uma grossa coluna de bruma cinzenta desceu, de súbito,
como um tornado dos céus e engoliu a montanha num abraço
possessivo e ciumento. Todo o povo parou para ver. Os cabelos de
Moisés se agitaram pela ventania que se iniciara e lampejos de
energia rasgavam os céus sobre a montanha, formando mais faíscas
que brilharam nos condutores no chão. Ele não respondeu a Aarão.
— Foi por isso que chamou Jetro? — Aarão continuou
impassível — Vai devolver-lhe a filha e pedir que cuide dos netos
quando se for? — Moisés deu-lhe as costas — Por que não ouviu
nossos conselhos e desposou alguém de nosso povo, Moisés? Teria
poupado esse sofrimento a você e a outros...
— Será como Javé quiser... — Moisés pontuou, voltando-se
para Aarão — Não devo pensar nisso agora, temos assuntos mais
urgentes. Devo subir o Sinai e lá permanecer até que as
coordenadas sejam passadas. — o manto púrpura de Moisés
sacudia-se de encontro ao peitoral que brilhava — Deixo-o no
comando de nosso povo, meu irmão. Cuide para que tudo esteja
pronto e para que a fé de todos não esmoreça. E não esqueça: a
Arca do Tabernáculo deve estar na posição correta, no início do

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Portal do Encontro, posicionada bem em frente ao lado ocidental da


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montanha. — segurou mais uma vez os ombros de Aarão — Iremos


para casa, eu prometo! — apertou-o num abraço forte.
Aarão viu a figura mediana de Moisés postar-se diante do
paredão de energia e radiação que cobria a montanha do Sinai, e
que girava como um cone de fumaça de um violento incêndio.
Relâmpagos brilhavam entre as espirais cinzentas, como areia
escura, que se contorciam feito cobras em um ninho. Moisés tocou
uma série de botões em seu efod. Ao final da sequência, um halo
recobriu sua figura, refletindo no rubro da vestimenta como um sol
crepuscular. Aarão desviou o olhar, temeroso pela descarga de
força, e não viu Moisés apontar o bastão para a parede escura, que
se abriu como um corte de adaga feito sobre a carne. Também não
acompanhou o passo firme do irmão penetrando a bruma.
Quando Aarão se atreveu a olhar, apenas as muralhas de
nuvens estampavam-se diante dele, fechando-se como uma cicatriz
regenerada.

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Havia um silêncio total e completo. A única cor era o cinza,
até onde a vista podia alcançar. E não era longe. A neblina beijava e
aderia a tudo, escorrendo e subindo num contínuo movimento. O
tempo, ali, não tinha a menor referência de existir.
Moisés... Moisés... Moises...
O emaranhado de vozes assomou, de repente, no
comunicador do efod. A estática era baixa, mas intermitente,
criando a sensação de se ouvirem abelhas presas numa colmeia em
chamas, rasgando o oco sonoro.
— Eis-me aqui. — Moisés respondeu, mantendo a mão no
peitoral — Vim como foi orientado. Seu povo está concluindo os

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preparativos para seu resgate desse planeta. Apenas aguardam por


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suas ordens para adentrar a Êxodus.


O zumbido elevou-se e depois esmaeceu, quase por
completo.
Fez um ótimo trabalho, herdeiro do explorador José. — uma
cadência de várias vozes sobrepunha-se no comunicador. Para
Moisés, era como se falassem em meio às sombras onde se
encontrava, isolado do restante do mundo — O povo tem seguido
todos os procedimentos que recomendamos, estudado nossas leis
máximas, retomando sua cultura e tradição puras, eliminando as
toxinas desse mundo com o maná curativo e com isso adquirindo
força para a travessia. Fez do povo escravo dos nativos uma nação,
Moisés, e quando as coordenadas se ajustarem, entregaremos o
comando para o catalisador da Arca. — a voz continuava, fazendo a
neblina dançar a cada palavra como se vibrasse com o som — O
catalisador irá gerar um campo quântico de dobra temporal, que
percorrerá os condutores instalados na estrutura do Portal do
Encontro. Avise a todos para que tenham objetos no corpo forjados
com o metal dourado que abunda nesse planeta. Eles servirão como
bio-condutores e estabilizadores de partículas e garantirão que a
travessia será segura para o povo de Javé. Mantenha o
transmutador diante de você — Moisés tocou o bastão em sua
cintura — como fez no Egito, para transmutar os elementos e
dominar os animais inferiores, e no mar, para que o povo pudesse
escapar dos nativos dominadores. Isso trará estabilidade durante a
passagem, Moisés. Depois que todos passarem, entra no portal. E
então destruiremos o catalisador e todas as máquinas que não
pertencem a essa terra alienígena.

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Moisés ouvia, contrito, sentindo a eletricidade dos


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relâmpagos em sua pele, mesmo envolta pelo traje protetor do


efod.
— Todas as recomendações serão seguidas — devolveu sua
voz aos ecos que sopravam — O povo aguarda feliz e ansioso pelo
reencontro com os seus. — e titubeou, a garganta contraída —
Mas... E quanto ao pedido que fiz em nosso último encontro? — sua
voz elevou-se sem que percebesse — Minha esposa e filhos
poderão seguir comigo para a terra de Javé?
A estática aumentava e diminuía em intervalos regulares,
como pulsos de um coração, enquanto a massa cinzenta ficava mais
compacta.
Os nativos e seus híbridos não podem vir — sentenciou a voz,
cravando pregos na alma de Moisés — Nossa biosfera seria letal
para eles, muito mais do que a deles é para nosso povo. Não teriam
chances de sobreviver. — e continuou, indiferente ao olhar que
clamava por misericórdia — Permanece preparado e alerta, herdeiro
de José; o tempo corre aqui diferentemente do tempo que corre com
nosso povo fora do monte. E terá de ser rápido e preciso, pois se
perdermos a janela transcorrerão muitas outras gerações nesse
planeta para que uma nova abertura permita o acesso a um portal
de transporte.
E a voz da transmissão silenciou.
Moisés arfou e gemeu, sozinho. Duas lágrimas grossas
rolaram de seus olhos e perderam-se no chão de brumas. Sem
conseguir sustentar a tristeza em seus músculos, desabou no chão,
estendendo os braços ao longo do corpo, consumindo-se no próprio
sofrimento por um tempo sem medidas. Pensou nos cabelos
castanhos de Séfora, no cheiro dos assados que fazia. Pensou nos
filhos, Gérson e Eliezer, e sufocou um gorgulho na garganta.

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Quando a dor tornou-se suportável para um líder com


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deveres, como ele, raciocinou que fizera bem ao mandar buscar


Jetro. Séfora e seus filhos iriam precisar da ajuda dele. Fechou os
olhos, desejando esquecer por alguns instantes o fardo de sua
missão, o peso que carregava com sua origem...
Eu posso lhe oferecer isso, filho de José... E muito mais... — a
voz límpida respondeu diretamente a seus pensamentos
angustiados.
Pôs-se em alerta imediato, abrindo os olhos. A bruma havia
desaparecido e os contornos das rochas estéreis do monte Sinai
mostravam-se ao redor. Um aroma de leite pairava no ar, junto a
uma brisa que trazia notas de um riso melódico com ela.
— Você me lembra José. — uma cândida profusão de
palavras ressoava — Mesmos olhos, mesmo queixo. Até a mesma
capacidade de tentar lutar contra o que é inevitável, tsc... tsc... tsc...
A herança dos nativos de Javé é mesmo muito espessa em seu
sangue.
E Moisés a viu: deitada languidamente sobre o platô liso de
uma rocha avermelhada. O corpo esguio, coberto até o umbigo com
uma saia dourada, um corte na lateral do tecido que deixava uma
das pernas à mostra; seminua da cintura para cima, braços cruzados
na nuca, pele do corpo levemente banhada em uma poeira de ouro
que se elevava em pequenas nuvens quando se movia. Um
verdadeiro espetáculo bucólico, uma cena fugida de sonhos
paradisíacos.
— Quem é você? — perguntou, sentindo-se um tolo ao fazê-
lo.
Ela não respondeu; espreguiçando-se, os seios saltitando
enquanto punha-se de lado, encarou Moisés. O rosto, uma joia
entalhada pela beleza, mirava-o com olhos de ônix negra, cujas

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pupilas exibiam a ausência de globos oculares esbranquiçados.


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Lembrava os olhos de um bovino, tal a forma e profundidade, e,


semelhante a eles, trazia na testa duas protuberâncias córneas
ricamente adornadas por ouro e pedras preciosas nativas. Os
cabelos negros e lisos eram cobertos por um lenço tecido em
material dourado, com franjas tremeluzentes. Seus lábios rosados
exibiam um sorriso estonteante, que fez Moisés engolir em seco.
— Vejo que nem todo o conhecimento voltou a você. — o
sorriso constante no rosto era emoldurado pelos cabelos que
flutuavam em uma gravidade própria, diferente — Imaginei que
seria diferente, já que está usando o mesmo efod de José e dos
primeiros. Não achei que Javé ainda os procurasse, depois de tanto
tempo. Fiquei realmente surpresa quando soube da saída de seu
povo do Egito. — abriu ainda mais o sorriso, meneando os braços
em gestos suaves, envoltos pela poeira dourada — Gostaria de tê-
los visitado mais vezes depois que seus ancestrais deixaram Canaã,
iludidos por falsas promessas, mas não foi possível como desejei.
Especialmente porque os malditos deuses transmorfos daquele
povo de adoradores de pirâmides nunca apreciaram as visitas de
seus pares. — seu olhar negro queimou em faíscas avermelhadas,
como mariposas que se incendiavam em óleo de lamparinas —
Sempre me perguntei... por que agiam assim? — e riu, sufocando o
ambiente com esse som.
Ela pôs-se de pé. Era a perfeição da beleza maldosa,
corruptível. As ondulações de seu caminhar, um passo diante do
outro, criavam uma harmonia hipnotizante de movimentos
cadenciados e sensuais. O cheiro adocicado de leite que vinha dela
alcançou Moisés, nublando momentaneamente seus sentidos. O
colear de sua cabeça era ritmado, deslizando pelo pescoço flexível.

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Tudo nela era belo... e perigoso, alcançando os sentidos embotados


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dele, enquanto o encarava.


Moisés tremeu, de súbito. Imagens começaram a inundar sua
mente; cenas passadas em épocas diferentes, muito anteriores a
seu nascimento, e mesmo ao nascimento de seus ancestrais
naquele planeta, e entendeu que tais visões eram projeções que
partiam da mente dela, conectada a sua. Percebeu tratar-se, então,
de uma das criaturas místicas que povoavam esse mundo, das quais
seu povo sempre ouvira histórias e lendas e que, a exemplo dos
deuses do Egito, possuía poderes diferentes do que conhecia, e que
nesse planeta chamavam de magia. Viu que ela exultava com suas
descobertas, divertindo-se com a expressão confusa dele, e retesou
o corpo ao compreender que eram esses mesmos poderes que
permitiam que ela estivesse ali, a despeito de todo o cuidado
necessário.
— Quem é você? — perguntou mais uma vez.
— Já tive muitos nomes: Hadad... Bel... Baal... Baalath...
Balaoth... Tantos deles... Tantas formas... Mas se deseja nomear-
me, se isso é necessário para sua compreensão, pode me chamar de
Anat.
— Anat... — o nome passeou pela boca de Moisés, junto com
novas imagens em sua cabeça. Uma sincronia nem sempre precisa
— O que faz aqui, deusa nativa? Está longe de seus domínios, em
terras impróprias.
Ela riu de forma encantadora, cada nota reverberando pelo
espaço estático causando distorções que iam e vinham nas imagens
do cenário.
— Vago conforme meus desejos, filho de Javé — respondeu
sem demonstrar irritação — E eles são muitos, e, às vezes,
requerem percorrer distâncias e mover montanhas para serem

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satisfeitos — empoleirou-se numa rocha que se projetava do solo


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como a unha de uma garra. A névoa dourada a seguia como um


rastro que deseja exibir seu autor — E não meço nem um, nem o
outro.
A estranha estagnação ao redor incomodava os sentidos. Para
onde foi a Êxodus? E as muralhas de energia? Nada sugeria que
Moisés ainda estivesse no mesmo lugar que adentrara; entretanto,
sentia que ainda era o mesmo, de alguma forma.
— Ainda não me disse o que deseja, Anat?
— E o que você deseja, Moisés? — a nova pergunta o fez
redobrar a atenção embotada — Será mesmo que a terra de Javé é
a maior ambição de seu coração? Clama à alma que habita sua
casca? — o sorriso de olhos bovinos invadia sua mente, como água
em solo seco — Pense Moisés, mostre-me o que realmente está
vendo. Deixe-me compartilhar de seus anseios, vislumbrar aquilo
que o deixa inquieto nas noites insones que tem enfrentado. — e
aproximou-se. Os bicos dos seios intumescidos deixavam rolar gotas
de um líquido branco, que sulcava o pó dourado da pele, criando
uma geografia líquida que convergia ao fundo de seu umbigo —
Aqui... — e recolheu gotas do leite entre seus dedos esguios —
encontra-se a solução para seus tormentos, e pode dar-lhe a paz
que não sente, o conforto que busca — as gotas rolavam como
pérolas em sua mão, brincando zombeteiras em meio ao pó
reluzente.
— Eu anseio levar o povo de Javé para casa. — retrucou,
afastando-se — Minha missão é levar nossos irmãos de volta. Nada
mais me motiva.
— Tem mesmo certeza? — a boca rosada abriu-se como uma
flor do deserto, rara e única, e soprou o pó e o leite, agora dourado,
ao redor. Algo como um sereno manso atingiu a face de Moisés; um

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formigamento dominou-o, começando pelo rosto e escorregando


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como chuva por seus membros. Seus olhos ficaram desfocados por
instantes, e quando recuperou o controle da visão todo o cenário
havia mudado.
Estava em uma tenda colorida, ricamente enfeitada com
fazendas e bordados, com ânforas e objetos em bronze e ouro. O
incenso subia como rios de curso invertido e as almofadas e tapetes
estavam espalhadas com capricho. O cheiro adocicado da mirra e do
sândalo alcançou seu olfato, juntamente com os sons de uma
canção que ele conhecia bem, e que estavam do lado de fora: os
cânticos de uma cerimônia de casamento. Podia ouvir as danças e
os votos aos recém-casados no idioma de Madiã, e não se
surpreendeu quando a entrada da tenda se abriu, revelando a
passagem de um jovem casal.
— Séfora... — murmurou, sentindo-se derrotado e fraco
diante da visão de seu próprio passado.
O casamento é um momento mágico! — a voz, sem forma,
estava com ele — Unidos para sempre em comunhão, vocês
juraram. E agora terá de deixá-la para guiar seu povo... É isso
mesmo que deseja, Moisés?
O casal diante dele estacou, congelado no tempo. Então, só a
mulher moveu-se, caminhando. Séfora parou diante de seu corpo,
tomando-lhe as mãos e olhando-o nos olhos. Mas seus olhos eram
estranhos, como olhos de um boi... Chegou os lábios aos lábios de
Moisés.
— É isso mesmo que deseja, Moisés? — e beijou-o.
A força do desejo que o dominou poderia, por si só, criar
portais que o levariam para qualquer lugar em qualquer quadrante
do Universo que desejasse. Mas naquele momento tudo o que
queria era permanecer ali, com ela. Esse pensamento fez o cenário

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mudar outra vez. Via os filhos brincando entre as ovelhas nos


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montes de Madiã. Viu Séfora grávida, exibindo o ventre com


orgulho. Contemplou a paz e a serenidade de uma existência
almejada e utópica agora e chorou, deixando as lágrimas o lavarem
por completo das culpas que o afligiam. As gotas que se
precipitavam de seus olhos formavam arbustos no chão, que
nasciam e cresciam em abundância ao seu redor. As cabras vinham
comer as folhas tenras e Séfora aproximou-se, tomando as lágrimas
entre os dedos, levando-as aos lábios. Os estranhos olhos bovinos
refletiam o semblante de Moisés como espelhos. Ele reconheceu o
rosto de um homem feliz.
Esse é seu desejo, Moisés. — a voz de Anat parecia
transbordar daqueles olhos — Está diante dele, peregrino das
estrelas de Javé. Se partir, deixará para trás o verdadeiro motivo de
sua jornada: a esperança de poder viver ao lado de sua família. Tudo
o que fez até aqui, desde Madiã, foi motivado pela confiança de que
poderia mudar o que lhe foi dito. Que os comandantes da nave
permitiriam a ascensão de Séfora e seus filhos, que eles o seguiriam
para a terra prometida. — uma nova mudança de cenário se operou
diante dele — Mas isso é o que acontecerá depois que se for — o
interior de uma nova tenda escurecida pelas sombras apareceu —
Veja você mesmo.
Um corpo era preparado por anciãs. Bandagens de linho
claro, não tingido, recobriam o cadáver envelhecido, o semblante
sulcado, os cabelos brancos aparentes quase no mesmo tom da
mortalha que a envolvia. Mas mesmo carcomido pelo tempo, o
rosto sem vida de Séfora era belo, imaculadamente belo. Moisés
aproximou-se, ajoelhando. As anciãs desapareceram, deixando o
trabalho incompleto. Tocou o rosto frio, macio... e chorou lágrimas
de desespero.

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1000 Universos

A tristeza consumirá seus dias, levando-a a um fim solitário,


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enquanto você caminhará pelos céus além desse céu. — a voz de


Anat estava em todo e nenhum lugar — A mulher que jurou amar e
nunca abandonar será a morada da desesperança e ressentimento,
e o fim será tão amargo quanto a vida que ela teve.
Os olhos bovinos de Séfora se abriram e o encararam,
lacrimosos.
— É isso mesmo que deseja, Moisés?
O primeiro cenário retornou. Apenas as rochas da montanha
estavam ao redor dele e de Anat. Moisés, ainda de joelhos, buscava
forças para se erguer, sem sucesso algum. O peso da dor de uma
alma dobrava sua espinha. Anat acocorou-se diante dele, coleando
o movimento do pescoço. De seus seios mais leite escorria,
molhando a poeira vermelha do chão.
— Conheço seu povo desde que aqui chegaram, Moisés. —
acariciou-lhe a barba em um toque maternal — Achei-os belos,
fortes, diferentes dos nativos. Eu nunca lhes negaria nada do que
me pedissem. Nada. Diferente de Javé. Viu o que posso lhe dar;
posso satisfazer o desejo de cada um, os mais ocultos. — o leite
esguichava como uma nascente de oásis — Se seu povo quiser ser o
meu povo, seguindo-me e adorando-me, não há limites para o que
posso lhes oferecer. — e pegou novas gotas de leite, deslizando-as
pelas unhas nos lábios de Moisés — Nenhum limite. Tudo será
como quiserem que seja, sempre.
Moisés estava de volta ao lugar onde nasceram arbustos de
suas lágrimas. Séfora sorria com seus olhos peculiares. Gérson e
Eliezer tocavam as ovelhas. Estava em paz.
Diga ao povo para me seguirem, filho de José. — Anat incitava
— Não cometa o mesmo erro de seu ancestral, ao me renegar.

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1000 Universos

Sejam meus súditos, e serei o ventre que protegerá e o seio que


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nutrirá.
Rios de leite corriam em filetes grossos por entre as pedras
do chão, borbulhando em fontes e cascatas, criando um ambiente
bucólico. Séfora estendeu-lhe os braços, junto com seus filhos, e
Moisés levantou-se, dando um passo adiante.
Moisés... Moisés... Moisés...
A voz envolta em estáticas o alcançava, envolvendo-o com
imagens esporádicas de neblina fumarenta. O cenário nublava-se e
voltava, ao toque daquele som, como uma imagem holográfica mal
feita, com interferências.
Moisés... Moisés... Moisés...
Estacou, indeciso. Algo importante precisava ser feito, mas
que ele esquecera. Séfora o encarava, sorrindo maliciosamente.
— É isso mesmo que deseja, Moisés?
Os arbustos pegaram fogo em sequencia em volta dele, e as
vozes que o chamavam pareciam vir das chamas azuladas nas
folhagens.
Moisés... Responda... Moisés... Chegou o momento...
Responda...
Algo na aflição metálica daquele chamado o fez encarar os
arbustos, e lembranças de uma sarça ardente em Madiã
subitamente se fizeram reais, assim como toda a trajetória
percorrida por ele desde então. Um impacto, como um soco, atingiu
seu estômago, e um surto de lucidez sem tamanho alcançou a
mente embotada pelo sonho. Olhou para frente. Séfora
desaparecera, seus filhos também. Apenas Anat o encarava num
misto de frustração e zombaria.
— Maldita criatura nativa! — vociferou, arrancando risadas
agudas dela — Meus ancestrais fizeram bem em deixar Canaã e

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agora sei o porquê! — endireitou o corpo, em desafio — Maldita


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criadora de ilusões e farsas! Oferece seu veneno alucinógeno em


troca de nossas vidas! Cria escravos para servirem-na, aprisionando
suas almas em seus desejos, tornando-os fracos, dependentes! Mas
não serei um desses escravos de sua luxúria onírica — apontou o
punho, resoluto — Sei de meus deveres e vou cumpri-los, mesmo
que isso destroce meu coração. — a voz metálica continuava seu
chamado insistente — Conduzirei meu povo de volta a Javé,
demônia. Você perdeu, mais uma vez!
Anat deslizou até ele, sem temores ou receios, postando-se
como um felino que eriça os pelos do corpo.
— Você é forte, Moisés, posso ver. Mas mesmo essa força
não me impediu de entrar em sua mente e procurar convencê-lo. E
quase consegui, admita isso! Eu não vim até a montanha, Moisés,
ela veio até mim. Você resistiu e admiro essa qualidade. — o leite
jorrou mais forte dos seios dela — Mas poderá dizer o mesmo de
seu povo?
E sumiu, dissolvendo-se em poeira reluzente, ensurdecendo o
ar com sua risada.
Os paredões cinzentos que o receberam estavam novamente
ali, sempre estiveram. Entendia agora que travara uma batalha
mental e não física. Tudo acontecera em um plano de consciência
manipulado pelas criaturas místicas nativas. Mas a sensação tátil
daquele encontro ainda formigava nos dedos de Moisés.
Moisés... Moisés... Moisés...
O efod brilhava intensamente. Tons de urgência refletiam-se
nas névoas ao redor.
— Sim... Estou aqui Êxodus — a boca seca tentava proferir
palavras audíveis.

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Moisés... É chegada a hora... Apresse-se... O tempo está


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contra nós agora...


De entre os paredões, uma luz esbranquiçada e maciça, forte
como um sol que nasce no leste, obrigou Moisés a fechar os olhos,
como havia sido orientado a fazê-lo na presença de qualquer um
deles, antes de ascender ao interior da nave. Não deveria encará-
los, com risco de ter corpo e mente consumidos pela energia. O
calor da radiação o invadiu por completo. Cego pela situação sentiu
o breve toque de uma mão em seu ombro, o aperto firme e
amigável, enquanto dois objetos planos e retangulares eram
colocados em suas mãos pela figura que não podia ver.
Aqui tem as novas tablets de instruções. — a voz sem corpo
proferia os vocábulos — Os comandos estão nelas. Volte rápido e
acione o painel do Tabernáculo. Nos veremos logo, meu irmão. —
sentiu o abraço fugaz, como o beijo de uma borboleta, e percebeu
que a presença se fora, com a luz.

f
— Aarão! Aarão! — o efod brilhava de forma alucinada, mas
os únicos sons que Moisés recebia como resposta a seu chamado
eram de estáticas, e, às vezes, um ou outro ruído estranho e
indefinido. Descia os contornos do Sinai tentando se equilibrar com
apenas uma das mãos. Na outra trazia a esperança de um povo. —
Responda Aarão!
Alcançou o chão plano, vendo a montanha vibrar com a
energia desprendida da Êxodus. Disparou para o acampamento,
atravessando o último dos véus de grossa neblina, desativando o
traje de proteção. Risos e cânticos o alcançaram e antes que
pudesse visualizar o cenário total, sua cabeça girou e um enjoo
pungente tomou conta de sua alma. As tablets caíram de suas mãos
inertes.

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1000 Universos

Uma grande fogueira primitiva brilhava no centro do


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acampamento, entre o Tabernáculo e a passagem do portal.


Retorcia-se como uma serpente belicosa, lambendo os céus acima.
Ao seu redor, o povo comia, bebia e levantava-se para dançar e se
divertir, entoando canções. Grandes jarras serviam os presentes,
despejando um líquido branco, semelhante a leite, mas que brilhava
como ouro líquido. Eram passadas de mão em mão, respingando
seu conteúdo no solo seco e sedento nesse trajeto.
— Aarão! Aarão! — Moisés tentava atravessar a multidão
histérica, trombando com mãos que queriam tocá-lo e braços que
queriam abraçá-lo. Os olhos de todos exibiam o mesmo tom leitoso
dourado da bebida. Moisés desvencilhava-se, aos trancos, lutando
para manter a cabeça acima deles, procurando um rosto entre
todos ali — Aarão!!!
Encontrou-o quase no centro do acampamento, em frente ao
Tabernáculo. Aarão dançava e conclamava os presentes a
acompanhá-lo, enquanto enchia um cálice de ouro diretamente na
fonte produtora da estranha bebida, sorvendo eufórico seu
conteúdo. E, em meio a um profundo desespero, Moisés viu uma
gloriosa estátua de ouro, de quase meio metro de altura, sendo
ovacionada por seus irmãos. Uma figura conhecida, meio
mulher/meio vaca, de cujos seios um jorro de leite corria
incessantemente, projetando-se adiante como uma fonte, e dele
todos bebiam: homens, mulheres e crianças.
O estrondo mais potente que o de mil trovões iluminou o alto
do Sinai nesse momento e Moisés viu o facho de tração de luz que
descia da Êxodus, parcialmente descoberta no céu; uma esfera
prateada e luminosa que se estendia por léguas acima e ao redor da
montanha. O facho veio em direção ao solo, procurando pelo ponto
de contato.

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1000 Universos

— Aarão! — agarrou o irmão, que o abraçava em meio às


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lágrimas de riso desenfreado.


—Moisés! Você voltou!!! — a voz empastada de Aarão
elevava-se acima da multidão, que agora batia palmas e clamava
pelo nome de Moisés — Resolveu voltar!! Soube das boas novas,
não foi? Por isso decidiu retornar para os seus!! — e sorveu mais
um gole, tentando aproximar a taça dos lábios do irmão. O cheiro
adocicado e pungente enojou Moisés.
— Aarão, o que é isso? — apontou para a estátua, que
brilhava nas chamas profanas — De onde isso veio?
— Ahhhh!!! A bela deusa de ouro!!! — Aarão rejubilava-se
em meio ao êxtase de um devaneio — Eu a fiz, Moish — falou com
orgulho — Essas mãos... — e colocou-as diante da face de Moisés —
essas mãos criaram uma deusa para nosso povo. Ela veio em meus
sonhos, e nos sonhos dos capitães, e nos sonhos daqueles que
aguardavam... — Aarão girava o corpo de Moisés, agarrando-o pelo
pescoço, apontando a taça para a estátua — E eu a fiz em ouro, o
ouro dos nativos, como todos me pediram, e ela nos concedeu seus
favores, como disse que faria... — bebeu sofregamente — Temos
uma deusa agora, Moisés! Ela nos dará o que queremos, e não nos
abandonará como Javé fez... Ou como você fez...
— Abandonar? Como assim? — Moisés desvencilhava-se do
abraço com um tranco — Eu não os abandonei, Aarão; apenas subi
o monte para pegar as últimas instruções...
— Subiu e não voltou!!! — Aarão acusava, seu timbre raivoso
subindo em meio ao caos — Você foi embora há 40 dias Moisés! —
o sangue dele gelou — Todos pensaram que partira sozinho para
Javé e esquecera-se de nós. Jetro levou Séfora e seus filhos embora,
para Madiã, achando que havia se esquecido deles, de nós!! —
soluçou, chorando e agarrando-se ao irmão, a raiva antiga cedendo

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1000 Universos

lugar rapidamente para uma alegria esfuziante, arrastando-o até a


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estátua — O povo me pediu, então, alguém para guiá-lo. E ela veio!


E foi tão boa que nos trouxe você de volta, meu querido irmão!
Moisés voltou!! — incentivava o povo a conclamar a notícia —
Moisés voltou!!!
Com mais um tranco violento, Moisés soltou-se do abraço de
Aarão, em meio ao coro das pessoas embriagadas. Ele tornou a
encher a taça, bebendo-a, esquecendo-se completamente dele.
Moisés varreu o cenário em volta. Todos se entregavam as suas
fugas oníricas. Olhou para a estátua. O pescoço da demônia de
Canaã moveu-se em sua direção e sorriu, os olhos bovinos
faiscantes.
Você é forte, Moisés... Mas poderia dizer o mesmo de seu
povo?
Cerrou os punhos, ouvindo a risada que reverberava em sua
mente. Viu a luz cada vez mais forte que vinha do raio tração
projetado pela Êxodus, e que buscava por uma conexão. Procurou
entre os seus por algum sinal de sanidade: apenas a multidão
enlouquecida o encontrou. Uma crescente dor o fez ficar cego pela
raiva. Alcançou o bastão preso a sua cintura. Com outro gesto o fez
se distender, tomando a forma de um cajado longo, levemente
arredondado nas pontas, como uma elipse, cujo olho único faiscou
intensamente, assim como os olhos de Moisés adquiriam um brilho
dourado. Sentiu a mesma energia que usara no Egito e no mar que
abriu acumulando-se em seu corpo, a força dos filhos de Javé, e
apontou o cajado para a estátua dourada, o efod vibrando.
Como quimera, a forma da estátua começou a crescer a olhos
vistos, dobrando e triplicando de tamanho em poucos segundos.
Garras em forma de cascos sugiram de suas mãos e pés e os chifres
se alongaram, enquanto os olhos rescenderam em brasas. Um

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mugido feroz veio dos lábios tomados por um focinho animalesco e


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espirais de fogo e fumaça escapavam em baforadas de suas narinas.


Ela saltou. Moisés disparou.
O feixe azulado atingiu Anat no peito, atirando-a contra a
estrutura do Tabernáculo. Uma esfera de energia engoliu sua forma
que se contorcia, sem, contudo, conseguir escapar. A esfera a
envolveu como uma bolha, elevando-se no céu noturno, girando em
seu eixo até tornar-se uma bola incandescente. A vibração percorria
o ar e as estruturas do portal tremeram, começando a ruir,
partindo-se como gravetos secos no deserto, tombando com um
baque estridente na areia. A esfera alcançou velocidades
vertiginosas e um brilho ofuscante iluminou a noite no deserto. Por
fim, explodiu. O som de um grito moribundo ecoou pelo ar,
enquanto o povo de Javé lentamente saía de sua letargia eufórica.
Uma poeira dourada descia dos céus como pequenas brasas
tórridas, moldando-se aos grãos de areia do solo e aderindo as
vestes de todos.
Moisés dobrou um joelho, apoiando-se com firmeza no
cajado. O ataque custou muita energia de seu corpo, e o efod estava
totalmente apagado, alguns comandos chamuscados, inoperantes.
— Moisés! — a voz de Aarão, assim como seus passos, o
alcançou.
Aarão olhou para o irmão, surpreso pelos tufos de cabelos
brancos que agora abundavam sobre sua cabeça, e pelas rugas
profundas na testa e ao redor dos olhos. Mas Moisés via além dele;
vislumbrava o raio tração da Êxodus que se recolhia como uma vela
apagada pela brisa, diminuindo de intensidade até, finalmente,
desaparecer. Os cones de neblina fumarenta se dissiparam como
espectros fugidios da noite e o monte Sinai se fez visível, outra vez.
A gigantesca Êxodus afastava-se a olhos vistos, repicando cores de

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1000 Universos

um prisma multicolorido na insinuação de um amanhecer. Então,


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sumiu. A paisagem do planeta voltava ao normal.


Apoiado no cajado, Moisés levantou-se e caminhou até onde
estavam as tablets no chão. Uma delas funcionava, exibindo os
caracteres luminosos na tela plana de cristal, mas a outra estava
avariada. Olhou para o Tabernáculo parcialmente destruído e
voltou-se para o povo assustado, cujos olhos iam dele para os céus.
Javé se fora. Estavam sós, outra vez...

f
Quando os primeiros raios de um sol ferruginoso queimaram
os grãos de areia do deserto, encontraram o povo de Javé em
marcha. Animais nativos arrastavam as máquinas produtoras de
maná, assim como todos os equipamentos, as armações e o
Tabernáculo desmontados, poupando a energia dos propulsores
anti-gravitacionais usados no transporte das máquinas. Não sabiam
quanto tempo caminhariam até encontrar outro Portal de Encontro,
outra coordenada favorável, uma nova chance de poder partir, e
aguardavam que Javé fizesse contato. Até que isso acontecesse, o
deserto seria sua morada nesse planeta.
No acampamento nada restou; apenas os objetos e adornos
de ouro que teriam usado na travessia para alcançar a Êxodus
permaneceram lá. Abandonados, eram uma amarga lembrança que
ninguém queria guardar. Moisés mirou a carroça da Arca. As tablets
estavam seguramente acondicionados nela; uma delas com um
vazamento radioativo perigoso, e todos tinham ordens para não se
aproximarem até que chegassem novas instruções ou poderia ser
fatal. Viu as cabeças baixas pela vergonha e o sol.
Moisés suspirou. Seu povo caminhava.
Agora seria como Javé quisesse... e apoiou o cajado no chão
arenoso, seguindo sempre adiante. A areia do deserto subia a cada

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1000 Universos

passo, envolvendo-os, e suas silhuetas eram como uma miragem


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que ia e vinha. Na esteira dessa jornada, uma insinuante e insistente


poeira dourada seguia, ao longe, o mesmo rumo incerto dos
viajantes.
E seu brilho reluzia a luz do sol...

A Rober Pinheiro, pela inspiração.

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1000 Universos

Sangue em
Suas Mãos

Marcelo Paschoalin

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1000 Universos
Marcelo Paschoalin | Sangue em Suas Mãos

—Mãos para cima! Eu quero ver essas mãos para o alto


agora!
A arma estava apontada, o suor escorria por sua face, sua
testa estava mais franzida que de costume. Em outros tempos
talvez ele jamais tivesse se colocado naquela situação, mas ele não
vivia no passado... O que era irônico, uma vez que estava num
museu.
—Eu não vou pedir de novo!
Era para ser apenas uma distração no fim de tarde, um
simples passeio. Ele estava à paisana, desejando somente voltar
para casa. Mas não, ele tinha de ver as peças novas que tinham
chegado à ala renascentista... Sua paixão por história o guiando
para aquele lugar...
...levando-o a encontrar os três corpos no chão, poças de
sangue sob cada um deles, pescoços rasgados. Um deles era
segurança patrimonial, ainda segurando uma lanterna de cabo
comprido, olhos vidrados como se não esperasse o ataque. E foi
quando ele examinava o corpo que ele notou a sombra se mexendo.
—Eu não tenho razão para fugir – ela ergueu as mãos com
certa graça, tão lentamente quanto possível, deixando que a luz de
um dos quadros incidisse sobre seu rosto.
Ele estava acostumado com aquelas cenas – os calos da
profissão tinham sido feitos ao longo dos oito anos como
investigador – mas preferia mentir para si mesmo. Aquela mulher
envolta num vestido arroxeado tinha um sorriso leve e talvez
irônico, mas o sangue em suas mãos era uma confissão inaudita
daquele triplo homicídio. Ele procurou os olhos de carvão que o
fitavam, já sabendo que a mulher não o evitaria – de alguma forma,
ele pressentiu que ela sentia orgulho do que tinha feito. Mas, por

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1000 Universos

mais que o enigma estivesse diante de si, ele sabia que era apenas
Marcelo Paschoalin | Sangue em Suas Mãos

questão de tempo agora...


—Qual o seu nome?
Aquela sala acinzentada era sua velha conhecida, embora ele
preferisse o trabalho nas ruas. Ainda assim, ele queria resolver
aquilo. Era fácil demais para deixar na mão de algum outro.
—Nomes não me servem para nada – ela sorriu, seus olhos
negros e sem brilho realmente se parecendo com dois pequenos
carvões.
Ele parou de andar de um lado para o outro e se sentou na
beirada na mesa, segurando as fotos tiradas pela equipe forense nas
mãos. O segurança patrimonial tinha sido o primeiro a ser morto,
seguido pela curadora da ala e de uma visitante casual – hora
errada, lugar errado. A perícia tinha já comparado o sangue nas
unhas com os corpos... o resultado era claro.
—Identidades falsas não são difíceis de conseguir – ele a
olhava de perfil agora, tentando imaginar o que poderia levá-la a ter
cometido tal ato. Suas digitais não batem com nada que temos aqui,
mas você me parece estranhamente familiar.
Ela o encarou enquanto deixava que o sorriso se expandisse,
lábios ligeiramente afastados enquanto mordia a ponta da língua.
Ela estava gostando daquilo.
—Podemos nos familiarizar melhor se é o que quer... – ela
pôs as mãos sobre a mesa, acariciando uma contra a outra apesar
das algemas que impediam que se movimentasse muito.
—O que eu quero saber – ele pôs as fotos diante dela,
espalhadas sobre a mesa – é a razão de ter feito isso. Já sabemos
que foi você.
Ela passou os olhos pelas fotos, longamente se demorando
em cada uma delas. Como se tocasse um relicário, ela levou as mãos

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1000 Universos

à foto da curadora, deitada de costas, olhos fechados e pescoço


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aberto. Era mais que uma reverência, ela...


—A verdade é que tentei ajudá-los – a voz dela parecia mais
aveludada. Tentei estancar o sangue, mas era tarde.
Mais que depressa ele recolheu as fotos. Ele tinha percebido
o olhar dela... Fascinação? Deleite?... O que havia naquilo a
fascinava, talvez como um troféu para ela... um mórbido prêmio por
seu ato selvagem.
—Você quer que eu acredite nisso? – ele agora se sentava na
cadeira de metal diante dela, as fotos empilhadas com a face para
baixo.
—Eu os encontrei daquele jeito – ela juntou as mãos como
numa prece. O sangue ainda pulsava, ainda estava quente, e ainda
assim eu tentei ajudar a cada um deles. Quando você apareceu eu
não fugi porque não tinha feito nada errado – ela abaixou a cabeça
um pouco sem desviar o olhar dele. E, mesmo assim, você me
algemou e me prendeu. Eu suportei tudo isso, mas não sou culpada
de nada.
De certa maneira ela estava correta. Tinha meios, tinha
oportunidade, mas faltava a peça chave da tríade: motivo. Ele podia
mantê-la ali até o dia seguinte, mas de nada adiantaria se não
descobrisse algo mais. O que era simples poderia escapar por seus
dedos...
—O que você estava fazendo no museu? – ele tentou
esconder seu descontentamento aumentando o tom de sua voz.
—O que pessoas fazem em museus – ela jogou o corpo para
trás na cadeira, deixando os cabelos caírem sobre o ombro. Eu
estava passeando. E você? O que fazia lá? Até onde sei ninguém
gritou por socorro.

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1000 Universos

—Ninguém? – ele deixou que o canto da boca formasse um


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sorriso sutil. Quando você viu aquelas pessoas caídas não quis pedir
ajuda?
—Não iria adiantar – ela balançou a cabeça em negativa. Eu
senti... eu percebi que não havia nada mais a ser feito. Mesmo
minha tentativa de salvá-los era nada mais que vã esperança minha.
—Você é médica?
—Não.
—Então como pode ter tanta certeza que pedir por auxílio
médico não bastaria para salvá-los? – ele se sentia mais confiante
agora, acreditando que podia encurralá-la.
—Quantas pessoas com pescoços rasgados você viu serem
salvas? E quanto tempo demoraria para uma ambulância chegar?
Três minutos? Três minutos com sangue jorrando é o bastante para
secar alguém.
—Secar? – ele ergueu as sobrancelhas.
—É um modo de dizer – ela parou por um instante, como se
tentasse colocar as idéias em ordem. Se eu tivesse conseguido
salvá-los eu seria uma heroína. Agora, só porque não consegui eu
sou a culpada? Isso é absurdo.
—Eu... – três batidas no vidro espelhado o interromperam. Se
puder me dar licença...
Ela tinha a nítida impressão de que ele bufara enquanto saía,
como se aquela interrupção fosse a última coisa que ele desejava
naquele instante. E isso fez com que ela relaxasse, apoiando os
cotovelos sobre a mesa e descansando a cabeça em seus braços...
...até que ela viu a pilha de fotos ao alcance de sua mão. Sua
pupila dilatou de imediato enquanto alcançava cada um dos
instantâneos, segurando-os com prazer enquanto desvelava cada
imagem com seus olhos, envolvendo-se com as fotografias como se

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1000 Universos

elas a completassem. Ela até mesmo chegou a abrir a boca


Marcelo Paschoalin | Sangue em Suas Mãos

lentamente, como se sorvesse a emoção daqueles momentos...


—Desculpe-me – a porta abriu novamente e ele entrou, cara
fechada, olhos semicerrados. Eu... – ele a viu com as fotos nas
mãos. O que você está fazendo?
Ela deixou que as fotos caíssem sobre a mesa de forma
natural, embora levemente espalhadas. A reação tinha ocorrido um
segundo depois do que se poderia classificar como genuína
surpresa.
—Eu... – ela abaixou os olhos, talvez por vergonha, ou talvez
para continuar a olhar as fotos – só queria ter um último contato
com essas pessoas que tiveram suas vidas ceifadas tão cedo.
Ele sabia que tinha algo errado, mas não podia fazer nada.
Havia o limite legal de sua atuação, e ele tinha sido atingido. Foi por
isso que ele não disse mais nada. Recolheu as fotos, abriu as
algemas e ficou ali, em pé, olhando para ela.
—Estou livre para sair? – ela massageou os pulsos um pouco.
—Sim, está – ele deu um passo para o lado. Talvez
conversemos mais para frente, mas por enquanto você pode ir.
—Obrigada – ela se ergueu e ajeitou o vestido, caminhando
em direção à porta. Será que alguém poderia me levar até em casa?
Ele estava pronto para dizer não, mas percebeu aquilo como
uma oportunidade. Mais do que ter um registro escrito de onde ela
morava, ele saberia realmente se ela vivia ali – e poderia encontrar
algo que lhe mostrasse o caminho a seguir caso ela fosse realmente
culpada... E ela tinha de ser responsável por aquelas mortes!
—Como forma de me desculpar pelo incômodo – ele deixou
que suas chaves tilintassem –, eu mesmo a levarei.
Não havia trânsito algum naquela hora, apesar da chuva leve
que caía. Estavam no carro dele – por algum motivo ele nunca

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1000 Universos

gostou de usar viaturas oficiais, mas havia colocado uma grade


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interna típica das encontradas em camburões – e a rádio que tocava


teimava em fazer propaganda de algum tipo de revista semanal ou
invés do habitual jazz melódico... e aquilo não contribuía para a
melhora de seu humor.
—Você sempre é assim? – ela estava no banco de trás,
olhando para as luzes da cidade ao longe enquanto seguiam pela
estrada estreita.
—Assim como?
—Quieto, taciturno, vivendo num mundo só seu? – ela olhou
para ele. Eu não sou o inimigo. Eu disse...
—...que tentou ajudá-los, eu sei. Eu ouvi. Eu estava lá –
grunhiu ele enquanto mudava de estação, deixando que uma balada
preenchesse o ambiente. Olha, não é nada contra você eu...
Ele teve de segurar o volante com mais força enquanto o
carro derrapava de lado e as faíscas saíam: o pneu traseiro direito
tinha estourado, talvez por causa de um buraco ou de algo na pista.
O carro ainda andou por quase uma centena de metros devido ao
asfalto molhado até parar junto ao acostamento da pista contrária.
—Você está bem? – perguntou ele, sua respiração um pouco
ofegante.
—Mas claro – ela ria. Isso foi divertido...
—Divertido porque estávamos com o cinto... aquele pneu não
devia ter estourado...
—Você fala como se a culpa fosse sua...
—Não é culpa minha – interrompeu ele. Estamos muito longe
ainda?
Ela olhou ao redor e balançou a cabeça.
—Um quilômetro, talvez menos. De noite é difícil dizer...

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1000 Universos

Ele abriu a porta do carro, mais uma vez resmungando por


Marcelo Paschoalin | Sangue em Suas Mãos

causa da chuva e do frio, e deu a volta para ver o estrago: uma das
faixas de borracha ainda estava presa e tinha batido repetidamente
contra a lataria, deixando uma marca escura e feia. Ele ergueu as
mãos para o alto e chutou a roda danificada, praguejando como
nunca antes o fizera.
Ela bateu no vidro, chamando a atenção dele. Dando de
ombros ele abriu a porta e deixou que saísse.
—Eu posso ir andando – a chuva em sua fronte acumulava
num filete que escorria pela bochecha. Você não precisa se
preocupar comigo...
—Não... – ele não deixaria que ela seguisse sozinha,
querendo saber mais sobre a suspeita. Não vou deixá-la andar
sozinha nessa chuva.
—Não estamos muito longe – ela apontou para algumas
árvores. Se seguirmos direto por ali, poupamos quase metade do
tempo. Já fiz esse caminho uma dúzia de vezes...
—Ainda assim, não acho certo não acompanhá-la. Só que não
tenho um guarda-chuva no carro.
—Não há problema algum! – ela seguiu na frente, a chuva já
moldando seu vestido junto ao corpo. Vamos!
Ele apertou o botão junto à chave e trancou o carro, seguindo
junto dela. Algo tinha mudado – e isso ele tinha certeza –, pois ela
estava mais ativa, mais... amigável, talvez. Ou talvez tudo tivesse
sido paranoia sua e a suspeita fosse realmente inocente... apesar da
maneira como as vítimas tinham sido mortas. Ou talvez...
—Eu me lembro desta árvore aqui – ela pôs as duas mãos
sobre o grosso tronco, quase como se a abraçasse.

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1000 Universos

—É um carvalho? – ele se aproximou, um pouco curioso,


Marcelo Paschoalin | Sangue em Suas Mãos

evitando as poças formadas pela chuva. Nunca vi carvalhos por


aqui...
—É sim – ela ficou de lado, deixando-o de frente para a
árvore. Como reconheceu?
—Pelas folhas... – ele sentiu a casca, molhada pela chuva,
imaginando que acasos poderiam ter sido responsáveis pela árvore
ter nascido ali.
Ele não reparara, mas havia um largo sorriso na face dela. Um
sorriso parecido com o que emoldurou sua face enquanto
observava as fotos da cena do crime.
—Veja, um ninho de pássaros! – ela apontou para o alto,
indicando uma bifurcação em um galho grosso. Está vendo?
—Onde? – ele olhou para cima.
Foi a última coisa que disse. O pescoço à mostra, nu, diante
dela, era um alvo fácil demais para ser ignorado. Ela nem precisou
pensar.
As unhas, antes retraídas, estenderam-se por quase um
centímetro inteiro. O pulso, antes relaxado, flexionou-se de tal
maneira que a mão se tornou uma garra. Seus olhos, antes plácidos,
agora estavam totalmente negros.
Um único movimento, tão rápido quanto um piscar de olhos,
e o pescoço havia sido aberto. O sangue quente nas mãos delas era
quase extasiante, inebriante até. Ela se sentia viva, seu âmago
tomado por uma lascívia que poucos podiam imaginar existir...
Ele nem teve tempo de levar a mão ao seu pescoço ou a sua
arma. Ele simplesmente tombara.
Quanto tempo tinha se passado? Três minutos? Talvez mais.
Foi só então que ela se agachou junto ao corpo e banhou ambas as

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1000 Universos

mãos em seu sangue, sentindo aquela essência vital a completar. Só


Marcelo Paschoalin | Sangue em Suas Mãos

que sangue ainda pulsava, ainda estava quente.


E das mãos o sangue passou aos braços. Ela rapidamente
removeu o vestido que a cobria e deixou que o sangue fluísse sobre
si, cobrindo seu peito, descendo para suas pernas, ungindo sua
cabeça. Não havia pele ou cabelo mais: tudo o que ela se tornara
era uma massa pulsante de sangue quente.
Num idioma antigo ela exaltou. Outros seis anos haviam se
passado e ela precisava desesperadamente de um novo corpo, um
que pudesse nutri-la e prolongasse sua eternidade... Ela sorriu,
revelando dentes rubros enquanto olhava para o corpo aos seus
pés, uma infeliz vítima das circunstâncias...
Afinal, se ele não tivesse intervindo, ele estaria vivo ainda... e
ela teria a opção de se manter como mulher.
Mas não, o destino lhe havia sido cruel desta vez. Ela
imaginara que ninguém notaria a falta daquela visitante no museu,
mas logo em seguida a curadora daquela ala e um segurança
patrimonial surgiram... e depois aquele investigador – só que ele
estava armado, e ela prezava demais sua vida eterna para que fosse
tola o bastante para atacá-lo ali.
Ela soube esperar. Ele era seu agora.
Pelos próximos seis anos, ela se manteria viva. Transformada
naquele que cedeu seu corpo a ela, mas viva.
E era isso o que realmente importava.

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1000 Universos

Amazônia
Underground

Romeu Martins

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1000 Universos
Romeu Martins | Amazônia Underground

Johnny me disse que sentia que ainda morreria na Amazônia.


Caso eu não encontrasse um meio de ajudá-lo, aquele seria o dia: o
jovem explorador seria fatiado pelo homem contratado para guiá-lo
naquela floresta. Torres tinha sido um caçador de negros até 15
anos atrás, no período anterior à abolição da escravatura no Brasil,
em 1855. Depois disso, passou a viver da exploração do trabalho
dos indígenas da região. Nunca confiei nele, com suas cicatrizes de
cortes espalhadas por todo o corpo, mas não esperava que o
desgraçado fosse provocar a explosão do túnel, logo depois de
deixar a caverna, me deixando desarmado e isolado aqui dentro.
Sobrevivi porque o capacete que estava usando protegeu minha
cabeça do deslizamento.
As pedras barravam a passagem, deixando só uma fresta por
onde eu enxergava o traidor ameaçar o garoto no lado de fora.
Maldita hora em que J. Neil Gibson inventou aquela expedição! O
americano ficou rico ao descobrir ouro na Amazônia, mas ele queria
mais. Construiu um pólo de indústrias aqui, em Manaus, em
sociedade com o recentemente nomeado Conde de Mauá, para
produzir armamento na guerra que nós e o Paraguai travamos
contra a Espanha pelo controle de Cuba. Com a volta dos tempos de
paz, ele usou dinheiro para convencer esse aventureiro inglês a
buscar novas riquezas debaixo desta mata. O ambicioso escravista
brasileiro fazia o mesmo, mas para isso usava a força, na forma de
um facão de lâmina larga, chamado machete: obrigava o rapaz a lhe
contar a localização de um veio de diamantes descoberto na
véspera.
Como me meti nisso? Por sorte ou azar, conheci Gibson
quatro anos atrás. Eu tinha acabado de entrar para a Polícia dos
Caminhos de Ferro e salvei a vida dele na capital do Império. Pouco
mais tarde, ele me convidou para seu casamento com uma mestiça

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1000 Universos

que conhecera nesta floresta, e voltei a lhe salvar a pele. Minha


Romeu Martins | Amazônia Underground

recompensa veio agora: o milionário fez questão que eu


participasse desta empreitada. Como ele acabou de ser eleito
senador nos EUA e tem sua influência junto à corte do brasileira,
virei voluntário contra a vontade. Todos me chamam de João
Fumaça. Não é meu nome verdadeiro, por óbvio: minha mãe me
deu à luz em um trem a vapor na Inglaterra, daí nunca mais larguei
este apelido. Sou conterrâneo de John, sendo que ele nasceu entre
a aristocracia rural daquela ilha e resolveu viver algumas aventuras
antes de a barba nascer e de seus pais o alistarem no exército
britânico. Eu vim de um vilarejo chamado Wold Newton, cujo único
acontecimento memorável foi uma pedra que despencou dos céus
por lá, 45 anos antes de meu nascimento.
Pensar no meteorito me deu uma ideia. Como eu disse, a
explosão me desarmara, por completo. Tirando a peça que me
salvou a vida – um capacete de exploração subterrânea inspirado na
desventura científica que o doutor Lidenbrock liderou no início da
década passada na Islândia –, só me restava uma pequena picareta.
Ela não seria suficiente para abrir caminho pelas pedras, porém,
como sempre digo, tenho meus truques. Os engenheiros
contratados por Gibson para projetar este capacete instalaram um
tanque de oxigênio nele, de modo que eu pudesse respirar em
ambientes fechados. Não era o caso daquela galeria, já que havia ar
suficiente entrando pelos desvãos dos pedregulhos, mesmo assim o
cilindro seria útil. Eu o tirei das costas, desatei da mangueira que o
prendia à máscara e o posicionei no buraco por onde eu podia ver o
ex-capitão do mato ameaçar meu conterrâneo.
Sem aquela abertura, eu ficaria na escuridão, não fosse outra
engenhosidade: a vela elétrica embutida no capacete, alimentada
com pilhas galvânicas. Graças ao brilho artificial vindo do alto de

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1000 Universos

minha testa, pude erguer a picareta e golpear a válvula de


Romeu Martins | Amazônia Underground

segurança do cilindro. Não foi o bastante. Provoquei faíscas e fiz


saltar lascas que, não fossem os óculos de proteção, teriam
perfurado meus olhos. Torres certamente ouvira o badalo,
parecendo o de um sino a anunciar a morte de algum cristão. Meu
segundo golpe teria que ser certeiro, do contrário os cristãos a
morrerem naquele inferno verde seria eu e meu colega de
empreitada.
Por sorte ou desespero, a nova tentativa foi mesmo no ponto.
A ponta da picareta abriu o lacre e libertou o oxigênio ali
comprimido. O assobio lembrava o som de um furacão. Como se
fosse um foguete chinês, o tubo alçou voo, livrando-se daquele
buraco apertado mais rápido que meus olhos poderiam
acompanhar. Meu projétil improvisado só parou depois de quebrar
a coluna do assassino, metros adiante daquela gruta onde eu me
encontrava. Foi assim que John Roxton sobreviveu à sua primeira
aventura amazônica, pronto para retornar a essa floresta que tanto
o maravilhava muitas vezes ainda.

Notas de referência:

Este texto foi originalmente escrito para participar de uma competição de textos
steampunk organizada pelo artista plástico californiano Tom Banwell. Uma versão
anterior e em inglês foi publicada no blog dele:

http://tombanwell.blogspot.com/2009/06/steampunk-writing-competition-
other.html

John Roxton é um personagem criado por Arthur Conan Doyle (1859 – 1930) para
seu livro Lost world, de 1912, ambientado na Amazônia uns poucos anos antes de
sua publicação.
Torres é um personagem criado por Jules Verne (1828 – 1905) para o livro La
Jangada - huit cents lieues sur l'Amazone, publicado em 1880, mas ambientado em
1852.
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1000 Universos

J. Neil Gibson é outro personagem de Conan Doyle que surgiu no conto “The
Romeu Martins | Amazônia Underground

problem of Thor Bridge”, de 1922, mas que se passa em 1900.


Otto Lidenbrock também é uma criação de Verne para o livro Voyage au centre de
la Terre, de 1864, com ambientação no ano anterior.
Wold Newton é o nome de uma cidade real da Inglaterra onde de fato caiu um
meteoro em 1795. O acontecimento foi usado pelo escritor americano Philip José
Farmer (1918 – 2009) para escrever suas biografias fictícias Tarzan alive, de 1972, e
Doc Savage – His apocalyptic life, do ano seguinte.
João Fumaça é um personagem meu criado para a noveleta “Cidade Phantástica”,
publicada na antologia Steampunk – Histórias de um passado extraordinário, em
2009, mas cuja trama se passa no ano de 1866.

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1000 Universos

Aquela
Garota de
Olhos
Brilhantes

Miguel Carqueija

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1000 Universos
Miguel Carqueija | Aquela Garota de Olhos Brilhantes

“Eis o que diz o Senhor: invoca-me, e te responderei, revelando-te


grandes coisas misteriosas que ignoras.” (Jer 33,3)

Rugas de expressão se formaram na testa do Detetive


Parmenas, quando ele se aproximou dos bancos do jardim e avistou
a mulher gorda e de vestido berrante, sentada junto às
samambaias. Conhecia a peça e sua presença no local não parecia
prefigurar boa coisa.
Parmenas era um homem discreto e reservado e, com seu
terno sóbrio, não era o tipo de pessoa que chamasse muita atenção.
Perto dele, a espalhafatosa Duquesa Matilda Skinner representava
um grande contraste. Havia outras pessoas sentadas em roda,
sendo servidas por uma garçonete, e Matilda acenou vivamente
para Parmenas, pedindo que se aproximasse.
— Parmenas, meu velho! Venha participar! Estamos tendo
uma grande discussão filosófica!
E assim dizendo ela fez as apresentações. O Coronel Ivan
Ismirnoff, a Doutora Érika Matheus III, Marina Castañeda, o casal
Hardy e seu filho de doze anos, o senhor Galhano Torres, uma
garota chamada Naira, o conhecido pintor Toshiro Yuzuke...
Parmenas já conhecia Ismirnoff, de uma missão detetivesca
em Calisto. Eles se cumprimentaram amavelmente e em seguida o
policial volveu o olhar para Naira. Enquanto o militar ostentava
grossas papadas e já ultrapassara os setenta anos, a garota, com
uma calça azul e os cabelos soltos, era a imagem da juventude.
Parmenas focalizou aqueles olhos azuis brilhantes, e lembrou-se
dela. Em algum lugar, no passado, encontrara aquela moça. Ela
também o reconheceu, sorriu para ele.
Parecia a Parmenas que já a conhecia há muito, muito tempo.
Mas isso era impossível, dada a mocidade de Naira. Parmenas

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1000 Universos
Miguel Carqueija | Aquela Garota de Olhos Brilhantes

lembrava-se vagamente de algum episódio nebuloso em que aquela


moça aparecera, desempenhara algum papel importante... e se
afastara de sua vida.
Érika era uma médica infectologista e sanitarista, e ficara
conhecida, dez anos atrás, por sua intensa participação no Grande
Mutirão da África, quando os conhecimentos obtidos no Projeto
Genoma III foram pela primeira vez utilizados em escala continental
para erradicar as terríveis enfermidades que devastavam aqueles
povos. Pessoalmente era gorda, de olhos apertados sem ser
asiática, com braços flácidos e rosto anódino.
Marina Castañeda por sua vez era uma moça alta e esguia, de
olhar triste e pele azeitonada, aparentando uma calma sobre-
humana. Vestia-se de forma simples, quase displicente. Era uma
representante comercial, o que explicava a sua pobreza.
Já o casal Hardy era composto por um homem corpulento,
bonachão e superficial, e uma mulher de gestos nervosos e
sobrancelhas grossas, um penteado horrível, e portando um colar
de pedras talvez preciosas. Eram empresários de mineração,
burgueses típicos e um tipo humano muito difícil de encontrar em
satélites-cidades. O garoto, Peter, parecia uma criança normal.
Galhano era um empresário artístico ligado a conjuntos de
rock cósmico. No mais, um homem de terno, cara quadrada à Dick
Tracy, um cigarro nervoso entre os dedos, um dos quais ostentava
um anel de formatura, de ouro. Um homem de talvez 40 anos,
bastante vigoroso.
Quanto a Toshiro, era magro, elétrico, gaiato, contador de
anedotas nem sempre engraçadas. Para Parmenas seus quadros
eram simplesmente teratológicos, cheios de tornados, tsunamis,
abismos, naves espaciais em chamas e até dragões cuspidores de
fogo.

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1000 Universos

Toshiro tivera uma infância terrivelmente pobre e


Miguel Carqueija | Aquela Garota de Olhos Brilhantes

desenvolvera uma personalidade ferina, misógina e sinistra,


sorumbática, além de irreverente; era uma figura discutida e
polêmica, de caráter contraditório.
Foi ele, em suma, quem introduziu Parmenas na discussão:
— Nós estamos discutindo algo realmente sério: a liceidade
do ato de matar. O homicídio. O senhor, que é policial, nos diga: em
que circunstâncias o assassinato deixa de ser lícito?
— Como assim? — Parmenas admirou-se. — O assassinato
nunca é lícito. É sempre um crime.
— Mesmo a legítima defesa? — Eugene Compostella Hardy
agitou-se. — A lei reconhece...
— Matar em legítima defesa não é assassinar — apressou-se
Parmenas a corrigir. — O termo “assassinato” já pressupõe a
intenção criminosa.
— Querido, você não vai contar o que nós constatamos? —
disse Sylvie.
— Ah, sim, senão ele não vai entender nada! — e
Compostella riu às gargalhadas, aparentemente sem motivo algum.
— Francamente, acho de mau gosto lembrarmos isto... —
frisou Galhano Torres.
Parmenas Sandoval não estava entendendo “lhufas” do que
se dizia. Percorrendo os demais com o olhar, ele que se sentara em
frente à matrona que o chamara — os bancos rodeavam uma mesa
de ferro, fixa — constatou que Marina mantinha o olhar baixo e as
mãos no colo, a esquerda aberta sobre a direita, apertava os pés um
no outro, parecia aflita, enquanto Naira sustentava uma atenção de
coruja a tudo o que se falava.
E foi nesse ponto que ela interferiu:

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1000 Universos

— Por que, Senhor Galhano? Somente o Sr. Parmenas ainda


Miguel Carqueija | Aquela Garota de Olhos Brilhantes

não está a par das coincidências que nós constatamos... e é bom


que ele fique a par.
— Espicaçou a minha curiosidade — admitiu Parmenas,
abrindo a sua caixinha de rapé e cheirando uma pitada. — Quero
saber que coincidências são essas.
— Muito simples — disse a duquesa. — Há cinco anos atrás
ocorreu uma festa de gala no Rio de Janeiro, e nessa festa estiveram
presentes todos os que aqui se encontram.
— Isto seria incrível — disse Parmenas, espirrando. — Tem
certeza disso?
— Na verdade — intrometeu-se Peter — essa garota não
esteve — e indicou a Naira.
— Uma coincidência realmente extraordinária, reconheço.
Toshiro bateu com as palmas, sem motivo aparente, e
acrescentou:
— É verdade, senhor “Sherlock”. Mas o mais extraordinário é
que nessa festa ocorreu um crime de morte!
— Como diz? — Parmenas sentiu-se estranhamente inquieto.
— Isso mesmo! — e Toshiro deu um pulo ridículo, igualmente
sem razão aparente. — Foi tudo gravado em holograma
estereográfico! Você deve ter ouvido falar no assassinato de um
homem de fama sinistra, um homem que espalhava ódio e despeito
por onde passava...
— Quem?
— Jean-François Barjavel, em suma! — gritou Peter,
apontando para o policial, como se este fosse o nomeado. — Você é
um tira, deve estar a par disso!
Parmenas sentiu-se chocado. O caso tivera ampla
repercussão na mídia. Afinal, Barjavel era um conhecido homem de

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1000 Universos

negócios, um homem muito rico e até muito popular, apesar do que


Miguel Carqueija | Aquela Garota de Olhos Brilhantes

Toshiro havia dito. É possível ter muitos amigos e inimigos ao


mesmo tempo, e isso é o que sucedia com ele. Várias vezes
divorciado, execrado por filhos, homem de várias amantes e de
aduladores fiéis, Barjavel elevara uns e arruinara outros;
incursionara pela política e traficara influência, até provocar ódios
inconciliáveis.
Entretanto um homem fora preso e condenado pelo
homicídio. Esse homem, Alarico, era um venezuelano radicado no
Brasil, um pianista de medíocre carreira que um dia acreditara em
Barjavel e fora por este extremamente prejudicado. O tribunal
aceitara a tese da acusação, de que o móvel do crime havia sido a
vingança mesquinha. Alarico tentara o suicídio na prisão mas, tanto
quanto Parmenas sabia, ainda continuava preso e assim
permaneceria pelos próximos vinte e cinco anos. A Lei agira com
grande severidade naquele caso, deixando uma esposa na miséria,
com uma filha adolescente.
— E vocês todos estavam no local? — quis saber Parmenas,
incrédulo.
Ivan anuiu, enquanto acendia o seu charuto:
— Eu falei com Barjavel pouco antes do crime. Foi uma coisa
chocante.
— E todos... menos Naira... estavam lá? O que fazia cada um
de vocês?
A robota-garçonete veio trazer os canapés encomendados e
logo se afastou rodando; Parmenas serviu-se de um refresco de
umbu e continuou escutando as explanações. Ivan, por ser seu
amigo de longa data, tomou a frente das explicações:
— Os Hardy moravam no Rio na ocasião e frequentavam o
palacete flutuante de Gil Penafiel, o ministro que gostava de

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1000 Universos

promover festas suntuosas. Gil era o ministro de finanças do Sul da


Miguel Carqueija | Aquela Garota de Olhos Brilhantes

América, e um dos homens de maior prestígio dos Países Unidos...


antes que o deletassem, é claro.

— A política é uma areia movediça. Há! Há! Há! — expandiu-


se Toshiro, com falta de educação. Ivan procurou ignorá-lo:
— Galhano, por sua vez, estava empresariando o conjunto
Tapa-na-cara, que fazia grande sucesso em sua excursão pelo Brasil,
e por isso foi convidado.
— Eu próprio e minha saudosa esposa éramos amigos de Gil,
que habitualmente nos convidava.
— Toshiro foi convidado porque realizava uma exposição no
Rio, estava na berlinda.
— A doutora dispensa apresentação, era Prêmio Nobel da Paz
e não poderia ser esquecida, estando na cidade.
— Assim se explica a presença de todos nós — concluiu o
coronel.
— E Marina?
Após fazer a pergunta, Parmenas percebeu que a jovem
baixara o olhar. Da posição em que estava, pareceu ao detetive que
a garota apresentava um ligeiro tremor nas mãos, além disso a sua
testa porejava gotinhas de suor.
— Ah, amigo! Você é observador! Eu não conhecia a senhora
Marina, e não me lembro dela na festa!
— Mas então...
— Eu me lembro dela — disse Peter. — Era bem diferente, e
me deu um beijo! Nunca esqueci!
— Peter!

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Era a mãe ralhando. Parmenas, que detestava esses


Miguel Carqueija | Aquela Garota de Olhos Brilhantes

patrulhamentos com que certos pais inibem seus filhos sem motivo
razoável, interferiu:
— A senhora deve deixá-lo falar, ele só disse a verdade.
— Mas, detetive, eu sou a mãe dele! — falou ela com
rispidez.
— Eu quero supor que estamos tratando de um assunto sério
e que eu estou tentando entender o que houve, e o testemunho do
menino é importante.
— Por que diz isso? — indagou Eugene, irritado. — O caso já
foi esclarecido!
— Estamos discutindo intelectualmente a presença de quase
todos aqui, na aludida festa. Mas e você, duquesa? Ninguém falou o
seu nome!
Ivan voltou-se para ela:
— Não precisava nem mencioná-la. A Duquesa Matilde está
em todas, difícil será encontrar um convescote da “high society” em
que ela não esteja presente.
— Bobalhão! Exagerado! — berrou a duquesa.
— De qualquer forma — prosseguiu Eugene, entre risadas
estúpidas — não resta a menor dúvida que o criminoso foi Alarico!
Era de se esperar. Um sujeito sinistro, medíocre, cheio de
ressentimento, e que revelou ali a sua face cruel e vingativa... a
cadeia ainda é pouco para patifes dessa laia!
— Isto é mentira! Ele não matou ninguém!
Todos os olhares se voltaram para Marina. A jovem hispano-
americana se ergueu de súbito, o olhar dardejando chispas de
áscua, a sua fisionomia repentinamente alterada pela cólera.
— Que deu em você? — disse Toshiro, que até deixou cair
uma empadinha de legumes.

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— Senhor Parmenas, sei que o senhor é da polícia. E antes


Miguel Carqueija | Aquela Garota de Olhos Brilhantes

que esse salafrário diga mais sandices, quero que o senhor saiba
que meu pai é inocente e eu tenho comigo a prova que incriminará
o verdadeiro culpado!
Vários dos circunstantes falaram ao mesmo tempo, e
Parmenas fez o possível para fazer baixar o tumulto. Então Naira,
que até então se conservara calada, observou taxativamente:
— Escutem com atenção o que ela tem a dizer.
Marina fitou-a meio espantada, e às várias perguntas e
observações de curiosidade (Galhano, os Hardy, Toshiro, Matilda)
esclareceu:
— Sim, Alarico Mendes é meu pai. A sua condenação colocou
mamãe e eu na miséria, e até hoje lutamos com muita dificuldade
para sobreviver. Detetive Parmenas, eu estou com o holograma
multi-plano que mostra o crime e a sua cuidadosa análise mostra
que meu pai é inocente, e mostra também o culpado, que por sinal
está aqui presente.
Parmenas olhou-a com admiração mas não pôde deixar de
olhar também para aquela outra garota, a Naira, que estava ao lado
da primeira; e os olhos daquela Naira pareciam mais brilhantes do
que nunca.
Toshiro, num gesto vulgar, veio dar um tapinha no ombro de
Parmenas:
— É, meu chapa! De vez em quando a gente depara com
chantagistas... ainda mais eu, que desperto invejas pelo meu
talento... mas asseguro que essa guria não vai conseguir nada, a não
ser um bom processo por calúnia...
Naira deu um passo á frente, até encostar na mesa:

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1000 Universos

— Senhor Toshiro, vou pedir que não tumultue o assunto.


Miguel Carqueija | Aquela Garota de Olhos Brilhantes

Ninguém o acusou, portanto o senhor ainda não precisa se declarar


inocente. Não seja exibicionista.
— O que é que você tem com isso?
— Senhor Toshiro! — Parmenas foi enfático e severo. —
Permita que eu conduza esse assunto!
— Está bem, meu camaradinha...
— Basta! A senhora pretende passar o holo-estereográfico?
— É claro — respondeu Marina.
— Mas como sabia que nos encontraria aqui? — indagou
Ivan, perplexo.
— É simples. Eu apenas segui a pista do criminoso. Jamais
imaginaria que o acaso iria reunir outros integrantes da festa.
— Deduzo — disse Galhano — que você não está usando o
sobrenome de seu pai.
— É claro que não. Papai é Mendes, eu troquei de sobrenome
para não ter mais problemas... ou você achava que ter um pai
trancafiado como assassino perigoso iria me facilitar a vida nos
próximos anos?
O coronel, homem prático à maneira militar, observou:
— Teremos meio, aqui, de passar o holograma?
— Eu tenho — falou Naira.
Houve um espanto geral e, às várias observações, a garota
apenas explicou com frieza:
— Um desses novos aparelhos portáteis e desdobráveis. Está
aqui, na minha mochila.
Ato contínuo ela foi retirando o objeto e montando-o sobre a
mesa.
— Vocês duas já se conheciam? — indagou Parmenas,
admirado.

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1000 Universos

— Eu nunca vi essa menina antes — admitiu Marina, que


Miguel Carqueija | Aquela Garota de Olhos Brilhantes

parecia tão espantada quanto os demais.


Parmenas achegou-se à pequena, enquanto ela ainda
calibrava o aparelho, e confidenciou-lhe:
— Diga... você e eu já nos vimos antes, não é mesmo?
Ela sorriu, mostrando lindos caninos e incisivos:
— É possível, Parmenas. Nós sempre encontramos muita
gente no mundo.
— Quem é você, afinal?
— Isso agora não é importante. Realmente importante é
livrar um inocente da cadeia.
Parmenas observou a destreza da garota e recordou aqueles
acontecimentos do passado, que tanta repercussão haviam
provocado.
Barjavel fora apunhalado. A arma assassina atravessara sua
pleura, seu pulmão esquerdo, e penetrara no coração. Durante o
julgamento o holograma apresentado tinha sido exaustivamente
analisado quadro-a-quadro e, apesar do ajuntamento, Alarico
acabara sendo condenado porque a referida análise mostrava uma
grande possibilidade de ter sido ele o assassino. Aliás, Alarico
minutos antes batera boca com a vítima, e quase havia ocorrido
uma cena de pugilato, apenas evitada pela habitual turma do deixa-
disso.
Afinal Naira aprontou o projetor e observou:
— Para obtermos uma visão ideal devemos projetar sobre um
fundo mais escuro... como aquela cerca viva que tem mais adiante.
Sugiro que a gente se desloque para lá.
— Se me permite, eu levarei o conjunto aparelho-filme.
— Pois não, Senhor Parmenas.

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O detetive, no íntimo, temia algum atentado que visasse


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destruir a alegada prova. Mas ninguém ousou fazer nada e logo o


pessoal todo se encontrava diante da escura cerca viva. Parmenas,
então, novamente se dirigiu à estranha garota:
— Pois bem, Naira. Você conhece o aparelho, faça a projeção.
— É pra já.
Parmenas era um “expert” nesses aparelhos. Enquanto o
ajustava na mesa também transportada, buscava ao menos
identificar a origem racial de Naira. Diferentemente de quase todos
os presentes, ela falava o Inglês Planetário com desenvoltura e sem
qualquer sotaque reconhecível; mas a morenice da garota não dava
a entender que fosse inglesa, australiana ou norte-americana.
Yuzuke se aproximou:
— Vamos lá, irmão! Mostre a famosa cena do crime!
Assim dizendo ele deu um suposto tapa amistoso no ombro
direito de Parmenas, no momento em que este tentava fixar o
quadripé. O suporte desequilibrou-se e o hologramógrafo voou
longe, arrancando um grito angustiado de Marina; porém Naira, que
por mero acaso (?) se encontrava bem em frente, apanhou o objeto
com a classe de uma goleira.
Eugene Hardy apanhou o japonês pelos ombros e sacudiu-o:
— Começo a achar que você é o assassino! Por que fez isso?
— Eu não tive a intenção, eu juro!
— Basta — disse Naira. — Senhor Parmenas, vou em frente.
Parmenas estava com a pulga atrás da orelha, mas passou o
conjunto para a moça, que iniciou a projeção.
A filmagem mostrava o bafafá entre os dois convivas, a
intervenção da “turma do deixa-disso” e, em seguida, Alarico
voltando, como se houvesse esquecido alguma coisa, e quase

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1000 Universos

roçando com a vítima; falou-lhe alguma coisa e se afastou


Miguel Carqueija | Aquela Garota de Olhos Brilhantes

empurrando as pessoas. O próprio Galhano fora empurrado.


— Onde é que nós chegamos? — perguntou a Duquesa
Matilda. — Esse é o mesmíssimo holograma mostrado durante o
julgamento que condenou o Alarico Mendes! Lembro muito bem da
mendacidade com que ele negava o óbvio... desculpe, menina, ele é
seu pai, mas vamos enxergar a verdade...
— Aí é que está, Duquesa. A verdade se encontra nesse
holograma, só que ninguém soube vê-la. Mas eu a vi. E vou mostrar
a vocês.
— Menina, o quadro-a-quadro foi exibido no julgamento.
— Mas não foi acertadamente analisado. Vou provar a vocês.
Ela pôs-se a manipular o hologramógrafo, fazendo retroceder
a cena até a discussão entre os dois homens e um empurrão mútuo.
Algumas pessoas interferiram, evitando uma luta corporal.
— Reparem bem — observou a jovem — o senhor Galhano, o
senhor Hardy, a Doutora Érica, o coronel e o senhor Toshiro
estavam em volta e impediram que houvesse pancadaria. O meu pai
se afasta. Quando ele voltou foi porque não resistiu em falar “Isso
não vai ficar assim, canalha!” a Barjavel. Logo em seguida o senhor
Barjavel caiu.
— Mas vejam, Barjavel foi apunhalado pelas costas. Embora o
ajuntamento impeça ver o golpe, ao se afastar meu pai teria uma
fração de segundo para se voltar e esfaquear o outro. E teria de ser
um golpe enviesado, esquisito, na fração de segundo em que seu
corpo foi totalmente ocultado pelos do pintor e do senhor Galhano.
Mas o exame anatômico diz que o punhal entrou pelos músculos
costais em ângulo de 90 graus e não de 45 graus, digamos.
— O que você quer dizer com isso? – cobrou Parmenas.

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1000 Universos

— O senhor é detetive e lida com a ciência da investigação.


Miguel Carqueija | Aquela Garota de Olhos Brilhantes

Veja, momentos antes... recuarei um pouco... quem aparece


justamente atrás de Jean-François Barjavel. Olhem bem.
Todos olharam — e todos viram a figura de elevada estatura
do Coronel Ismirnoff, falando qualquer coisa rápida e fazendo algum
gesto quase totalmente oculto, aparentemente um afago
conciliatório do tipo “Calma, não esquente a cabeça!”.
Marina congelou rapidamente o holofotograma:
— Vejam, a vítima faz um esgar de dor ou incômodo. A
lâmina de aço atravessou rapidamente os tecidos epiteliais e
musculares, entre as costelas, e penetrou no pulmão esquerdo. Para
o coronel, que vinha pelo lado direito das costas de Barjavel, era
fácil fazer isso. Para meu pai é que não. O coronel é destro, meu pai
idem. Só que papai passou pelo lado esquerdo de Barjavel e não
cruzou as suas costas, afastou-se para a direita. Jamais conseguiria
apunhalar daquele jeito, com a mão esquerda e enviesada ainda por
cima.
— Ora, que absurdo! — exclamou Eugene Hardy, porém o seu
filho manifestou outro parecer:
— Absurdo nada, pai! Ela mostrou por A mais B! Esse homem
é o assassino!
— Peter! Não diga uma coisa dessas do Coronel! — berrou
Sylvie, transtornada.
— Parem! — gritou Parmenas, fazendo calar também ao
pintor nipônico, que iniciara uma algaravia em sua própria língua,
esquecendo-se de falar em inglês. — Coronel Ivan, o que o senhor
tem a dizer sobre o caso?
O militar empalidecera horrivelmente e falou em tom raivoso:
— Eu posso processar esta moça. O holograma foi examinado
pelo tribunal e ninguém o interpretou desse jeito.

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1000 Universos

A moça estava preparada para a objeção:


Miguel Carqueija | Aquela Garota de Olhos Brilhantes

— Papai não pôde pagar advogado. Deram-lhe uma


defensora pública incompetente ou desinteressada. O que o senhor
esperava? A Justiça já tinha um bode expiatório ideal. Para que bulir
com um militar de alta patente?
— Isto é uma calúnia, uma invencionice!
— Não é, e o senhor sabe disso.
Surpreendentemente já não era Marina quem falava. Era
Naira. Ela se adiantou e se dirigiu ao coronel, e naquele momento o
Detetive Parmenas, julgando delirar, teve a nítida impressão de
avistar uma emanação luminosa naqueles olhos azuis:
— Coronel Ivan Ismirnoff, há uma velha história abafada. Sua
filha Nena, que foi seduzida por Barjavel, envolveu-se com ele e por
causa dele pôs fim à vida. Naquele dia o senhor se vingou. E embora
julgasse nobre a sua vingança, o senhor perdeu toda a nobreza
quando permitiu que um inocente e sua família pagassem pelo
crime. O senhor já é um homem velho, coronel. Vai levar isso para a
sepultura? Em cada noite de insônia, Deus o está cobrando pelo seu
crime.
A cena era tão solene que todos estacaram, como
paralisados. Parmenas, perplexo, esperava até que Ivan estapeasse
a atrevida pequena; ao invés ele se pôs a tremer convulsivamente, a
fisionomia derreada, e com voz profundamente aflita exclamou em
voz bem alta, como se precisasse desabafar:
— Como você sabe? Como sabe das minhas noites de insônia,
relembrando aquele fato terrível? O que diz é verdade. Eu matei
Barjavel naquele dia. Foi como esmagar um verme...
— Talvez, coronel. Não discuto que Barjavel não prestava.
Mas e o homem inocente que está apodrecendo na prisão? E a sua

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1000 Universos

esposa? E a sua filha aqui presente? Para se desforrar de um


Miguel Carqueija | Aquela Garota de Olhos Brilhantes

homem culpado o senhor destruiu três vidas inocentes!


— Você tem toda a razão. Eu peço perdão a todos. Soltem
Alarico. Eu confesso tudo, fui eu o culpado. Barjavel não reagiu de
imediato ao fio da lâmina, que era muito fina. Foi por isso que se
passaram vários segundos antes que ele se sentisse mal e eu já
tinha me afastado. Esse fenômeno às vezes acontece, você é
esfaqueado e não percebe de pronto. Foi isso que me salvou da
acusação naquele dia fatídico.
Ismirnoff levou a mão ao peito, o rosto contraído num
repentino ricto de dor. Ao tombar para a frente, Parmenas o
amparou.
— Doutora Érica, me ajude, por favor!
Poucas horas depois Ismirnoff morria num hospital, tendo
antes assinado a sua confissão.
Após as providências tumultuosas que se seguiram e os
cumprimentos a Marina, com as demais pessoas dispersas, tanto a
venezuelana quanto Parmenas procuraram por Naira e não a
encontraram em parte alguma. E nem acharam qualquer registro de
sua passagem nos hotéis e companhias de navegação cósmica.
Parmenas resolveu acompanhar Marina à Terra, para
providenciar a libertação de Alarico. Ao se acomodarem no ônibus
espacial, o detetive ainda observou:
— Que será ela, afinal?
Marina assumiu um ar sonhador;
— Quem sabe a reencontramos algum dia? Um raio de luz
fugaz pode aparecer em qualquer lugar!

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1000 Universos

Ouvir
Estrelas

Ana Cristina Rodrigues

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1000 Universos
Ana Cristina Rodrigues | Ouvir Estrelas

“Ora direis ouvir estrelas! Certo


Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...
Olavo Bilac – Via Láctea

Foi durante a última das Grandes Guerras que ele começou a


ouvir estrelas. Tinha apenas quinze anos e morava em um país
diretamente envolvido nas disputas de poder que dividiam o
planeta. O mundo estava partido em dois. Uma potência dominava
econômica e politicamente metade do mundo, enquanto a outra
metade unira-se para combater a ameaça implícita no crescimento
de um único poder nacional.
O rapaz morava em um dos muitos que combatiam a Grande
Potência. Ao olhar para trás, no final de sua vida, não se lembrava
dos nomes de nenhum dos países combatentes. Aliás, mal
recordava o próprio nome, de como se chamava nessa época tão
apagada e diferente. Era como se não houvesse lembranças, como
se o passado tivesse deixado de existir.
Nas poucas vezes em que tentava recuperar a memória
daquele tempo, apenas duas lembranças persistiam: as explosões
dos milhares de bombas, como aquela que matara seus pais e o
deixara órfão... E as canções que ouvia, vindas do firmamento.
Uma noite, sozinho e triste na cama fria da casa de estranhos,
percebeu que as estrelas entoavam estranhas melodias, odes a
lugares distantes e inatingíveis, como se pertencessem a outras
realidades. Porém, ninguém mais parecia capaz de notar aqueles
sons tão fascinantes.
Os demais deviam estar ofuscados demais pelas bombas e
suas explosões, que brilhavam ao longe como se fossem estrelas.
No entanto, ele não ouvia canções criadas por aqueles clarões
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1000 Universos

fugazes. No máximo, distinguia uma cacofonia, quase harmônica em


Ana Cristina Rodrigues | Ouvir Estrelas

seu caos interno, sinfonia de destruição cantada em uníssono pelos


gritos de quem morria em conjunto com os urros de glória de quem
matava, combinados pelo soturno e sombrio som de casas
soçobrando, escombros de concreto ruindo sobre si, pontuados
pelo ribombar estrondoso dos explosivos.
Por vezes, as bombas ecoavam em seus ouvidos, enchendo
sua cabeça com o som desagradável de morte e destruição,
obscurecendo a canção das estrelas. Quando isso acontecia, deitava
solitário na cama, apertava a cabeça segurando as orelhas com
força e gritava como se fizesse parte do coro de moribundos.
Berrava até sentir gosto de ferro na boca, a garganta ferida e a voz
arranhada. Era nesse momento que as lágrimas começavam a
correr, e aí sim a música suave que descia do firmamento voltava a
alcançá-lo, tranquilizando-o.
Porém, uma vez, no instante em que não conseguia mais
berrar e os olhos encheram-se de lágrimas, escutou algo jamais
ouvido antes por ele. Uma estrela desconhecida começou a entoar
uma melodia diferente das outras que ele ouvira vindas do espaço.
Trazia palavras paternais, embalando o seu desespero de
órfão como em uma canção de ninar. Dizia que os gritos poderiam
parar para sempre. E ele, apenas um garoto, poderia tornar-se o
maestro daquela música de ruínas e mortes, fazendo da melodia
sinistra dos bombardeios apenas mais uma parte da canção das
estrelas.
Aos poucos, seu coração começou a bater no ritmo
compassado da voz, tão serena e suave. Prometendo noites com
notas simples e tranquilas, sem gritos, sem explosões, só as doces
palavras cantadas por aqueles pontos tão brilhantes e tão bonitos
que eram companhia e apoio nas noites solitárias.

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1000 Universos

Nas noites seguintes, ouviu a mesma melodia, mas agora


Ana Cristina Rodrigues | Ouvir Estrelas

cantada por várias vozes. E esse coro abafava os ruídos da Guerra,


que continuava devastando tudo e todos. A canção isolava o garoto,
deixando-o finalmente em paz. Porém, a manhã afastava as estrelas
e trazia a realidade. A triste sombra de destruição e morte fazia com
que ele ansiasse pela noite, quando não escutava mais estrondos,
apenas murmúrios harmônicos que vinham de muito longe.
A voz da estrela diferente, aquela que sussurrou as palavras
pela primeira vez, como se percebendo sua imensa tristeza,
começou a cantar um convite. Chamava-o para juntar-se a elas, no
firmamento. O rapaz chorava, frustrado, pois era impossível atender
ao apelo. Tentava dizer isso à estrela, mas não sabia comunicar-se
naquela estranha maneira.
Até que um dia, cansado de chorar, adormeceu. No sonho, a
canção da estrela tornou-se mais intensa e ganhou tons fortes, que
fizeram seu coração bater apressado. Cores vibrantes giravam em
torvelinho, pulsando no ritmo absurdo que a música começava a
atingir. Uma dor insuportável brilhou por trás de seus olhos
fechados, e o convite foi feito novamente.
“Junte-se a nós.”
“Eu não sei como.”
“É só nos deixar tocar a sua mente. Iremos libertar o seu
mundo da Guerra. Nunca mais terá explosões em seu planeta.”
Entregou-se e soube que naquele momento integrava um
imenso coral, formado por crianças em todo o mundo que também
ouviram as estrelas e tomaram a mesma decisão. O céu escureceu,
e ao redor do planeta as bombas pararam de cair. As máquinas de
guerra simplesmente não funcionavam mais. Soldados caíram
mortos no chão em pleno campo de batalha, enquanto generais e
políticos sufocavam lentamente em seus gabinetes.

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1000 Universos

Naquele breve instante, o mundo ficou sufocado pela


Ana Cristina Rodrigues | Ouvir Estrelas

escuridão que desceu das estrelas e pela música pulsante que


produziam. Quando a noite passou, só sobraram as crianças que se
juntaram às vozes do céu e os estranhos que vieram com a música.
Mas o garoto não ligava. A única coisa que importava era que
o estrondo terrível das bombas tinha parado e só restara a melodia
estelar que tanto amava. Ficava horas deitado, escutando,
ignorando o mundo ao seu redor, que mudava drasticamente.
Pois enquanto ele e os demais garotos escutavam estrelas, os
invasores transformavam o planeta. Continuavam a entoar o
mesmo cântico hipnótico e mantinham as crianças vivas numa
estranha recompensa pela ajuda involuntária que elas deram na
invasão. Em décadas, não sobraria nada, nem uma sombra de
vestígio da presença humana sobre a Terra.
E o único som que se ouviria nos milênios seguintes seria a
melodia ritmada e melancólica que um dia as estrelas cantaram.

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1000 Universos

Adam

M. D. Amado

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1000 Universos

Este registro, feito de modo arcaico, no qual utilizei uma


M. D. Amado | Adam

réplica de uma caneta esferográfica e papel, roubados de um museu


do século XXI, serve como um pedido de socorro, ou quem sabe
como uma despedida. Tenho esperanças que alguém encontre isso
um dia e possa me achar a tempo. Em anexo, deixo um mapa
rabiscado ao estilo antigo, para que você que esteja lendo essas mal
escritas palavras, possa chegar até onde pretendo estar. Não devo
fixar moradia por lá durante todo o tempo, pois preciso continuar
minha busca. Mas tentarei retornar a cada cento e vinte noites na
esperança de encontrar alguém e ficarei por quinze dias.
Houve um acidente. Lembro-me apenas que meu híbrido
perdera altitude rapidamente e seus mecanismos de
amortecimento da queda não funcionaram como deveriam. De
repente tudo ficou branco à minha frente. Depois de girar várias
vezes e bater em uma rocha, finalmente tudo ficou escuro e pesado.
Não consegui sair debaixo de toda aquela neve. Notei que meus
sinais estavam fracos e senti vários espasmos dentro de meu corpo.
Sinal de que algo não funcionava como deveria. Segui então o
procedimento padrão, acionando o programa de desligamento
automático. O objetivo deste procedimento é preservar meus
órgãos principais, no caso de uma pane elétrica. Em poucos
segundos meus movimentos foram cessando. Em menos de um
minuto, me desliguei.
Quando acordei, já não havia gelo, neve e nem escuridão. O
Sol brilhava sobre as montanhas rochosas e eu acordei com o ardor
de uma queimadura em meu braço. O teto da cápsula de comando
acabou funcionando como uma lente de aumento, queimando parte
de minha pele humana. Não tinha ideia de quanto tempo eu tinha
ficado ali. Tentei olhar no painel do computador de bordo, mas ele
estava apagado. Tentei meu registro interno, mas meu visor

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1000 Universos

intraocular também não funcionava. No início não compreendia


M. D. Amado | Adam

porque a equipe de resgate não havia me encontrado, pois em caso


de pane, a central é avisada imediatamente, e teoricamente, teria
recebido inclusive imagens do local da queda.
Com muito cuidado consegui sair de dentro do híbrido, que se
encontrava entre duas pedras pontudas e poderia cair a qualquer
momento. Na verdade, pelo rastro que vi atrás dele, já devíamos ter
escorregado muitos metros até parar ali. Minhas aventuras da
juventude, quando eu ainda era apenas um humano como outro
qualquer, me valeram naquele momento. Consegui descer daquele
rochedo com uma certa facilidade. Acredito que desci cerca de
cento e cinquenta metros.
Já em solo, de onde eu estava conseguia ver ao longe
pequenos moinhos de vento, coletores de energia que margeavam
todo o vale. Caminhei em direção a eles, pois me veio a ideia de que
eu poderia encontrar alguém da equipe de manutenção por lá. No
entanto, andei durante horas até chegar ao primeiro moinho. Talvez
pela desorientação que ainda sentia, me esqueci que na verdade
eles eram enormes, de proporções gigantescas. Me pareceram
pequenos porque estava realmente muito distante. E tão grande
quanto a sua estrutura foi a minha decepção ao constatar depois de
passar por mais de quinze deles – separados por cerca de cem
metros um do outro – que nenhum estava gerando energia. Suas
pás giravam a toda velocidade, mas as centrais eletrônicas estavam
inutilizadas. Como sempre trabalhei nisso, dei uma olhada com a
intenção de tentar consertar, mas nada podia fazer. Pareciam
queimadas. Todas elas.
Ao entrar na torre do sétimo moinho, me deparei com
esqueletos de duas pessoas, enfiados em uniformes da companhia
de energia. A mesma cena se repetiu na penúltima torre que visitei.

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1000 Universos

Um dos híbridos estava parado em frente a essa torre, mas não


M. D. Amado | Adam

ligava. Nenhum controle funcionava. Olhei em seu compartimento


de fluxo de energia e faltavam as baterias. A sensação de fome me
apertava e isso me preocupava bastante. Se essas sensações
humanas estavam reaparecendo, era sinal de que o cérebro
artificial havia parado de funcionar ou sofrido sérios danos, uma vez
que eu aparentemente mantinha minhas memórias e meus
conhecimentos intactos. Talvez eu só tenha acordado porque minha
mente humana havia retomado o controle sobre meu corpo, o que
no meu caso não era nada bom.
Continuei caminhando em direção a um dos raros riachos que
ainda existiam em Terra Nova, que por sorte ficava no final da fileira
direita de moinhos. No caminho cheguei a ponderar se teria sido
água contaminada, o motivo da morte daquelas pessoas. Eu
precisava chegar ao riacho, pois seria mais fácil encontrar o
caminho de volta para a cidade. Durante todo o percurso me
deparei com vários painéis de comunicação externos,
completamente apagados. Não passavam de meros pedaços de
vidro transparente brotando do solo. Nem como obras de arte
serviam, pois desligados não tinham a menor graça. Quando
cheguei à beira do riacho, me sentei. Precisava descansar. Há meses
eu não sabia mais o que era sentir cansaço. Resolvi dormir ali
mesmo, pois eu teria uma longa caminhada até a cidade mais
próxima, sede da empresa onde eu trabalhava. Vinha de lá quando
aconteceu o acidente. Durante a noite pensei ter ouvido ruídos de
pequenos animais e em nome da sobrevivência, pensei em tentar
caçar algum. Mas eu nem saberia como fazer isso. E mais tarde eu
viria a saber que aqueles sons não poderiam ser de animais. Achei
que poderia aguentar mais um pouco sem comer. Peixe, nem
pensar. Terra Nova há muito já não via peixes em suas águas. Fruto

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1000 Universos

da irresponsabilidade desmedida de nossos antepassados, que lá


M. D. Amado | Adam

pelos idos de 2090 já tinham exterminado com todas as espécies.


Com muito trabalho e tecnologia conseguimos despoluir as águas,
mas o trabalho de repovoamento dos rios ainda estava
engatinhando lá pelas bandas do Brasil, um dos poucos lugares
onde ainda se encontram pequenas florestas e uma quantidade
razoável de bichos de quase todas as espécies. Para chegar lá, é
preciso enfrentar as enormes ondas causadas pelo vários
terremotos no fundo do mar e as fortes ventanias no caminho, que
praticamente isolaram essas regiões, antigamente chamadas de
países. É quase impossível voar até lá. Só é possível entre os meses
de julho e setembro. O túnel submerso que ligava nossos
continentes foi destruído há alguns anos, devido ao excesso de
terremotos. Aquele lugar é praticamente um paraíso perdido,
embora tenha tido parte de seu território submerso em 2065
quando vários tsunamis destruíram tudo, inclusive a velha Europa,
hoje chamada de Terra Nova. Ou melhor, o que restou dela é
chamado assim, pois o nível dos oceanos subiu tanto com o
derretimento das geleiras, que sobraram apenas as terras mais
elevadas. Um antigo continente chamado Oceania, praticamente
não existe mais. Foi reduzido a pequenas faixas de terra, onde antes
era conhecida a Austrália. Restaram apenas o monte Kosciuszko,
que agora dá nome ao lugar, e os lugares mais altos do antigo país.
Logo pela manhã parti em direção a cidade. Comi algumas
folhas de árvores, pois também não encontrei frutos pelo caminho.
Mas aquilo não foi realmente uma boa ideia. Enganei a fome, mas
perdi muito tempo de caminhada, passando mal e tendo que me
virar no meio do mato. E durante as seis horas de caminhada eu não
encontrei nenhum ser humano vivo e nenhum tipo de máquina
funcionando. Ninguém. Somente ossos e alguns esqueletos

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1000 Universos

incompletos, inclusive de animais. Na entrada da cidade, híbridos


M. D. Amado | Adam

abandonados e moradias abertas e vazias. Caminhando pelas


antigas vias de tráfego humano, não encontrei muitos esqueletos
dessa vez. Acho que daria pra contar nos dedos os que avistei. Na
via superior, destinada a androides e robôs obsoletos, também não
havia movimento. A impressão que se tinha é que todos haviam
simplesmente sumido. E foi mais ou menos isso que realmente
aconteceu afinal.
Procurei por toda parte por notícias, vestígios do que poderia
estar acontecendo, mas nada encontrei. Comecei a perceber que
talvez eu teria ficado desacordado por mais tempo que poderia
imaginar. Mas não tinha até então a confirmação de que dia
estávamos, pois todos os painéis de informação estavam desligados.
Nada quebrado, nada destruído. Apenas desligados. No meio da
tarde, encontrei finalmente algumas barras energéticas em um
pote, provavelmente esquecido, dentro de um híbrido cargueiro.
Estava no meio de um monte de outros potes vazios. A primeira
pista de uma data não ajudou muito. A data de fabricação remetia
há alguns dias antes do meu acidente: 12 de julho de 2191. Já a data
de validade dizia 2201, o que não dizia muita coisa. Mas eu nem
sequer pensei nisso. Estava com fome e precisava me alimentar. As
barras acabaram há dias. Sigo comendo folhas de árvores e
pequenos frutos, raros inclusive. Parece que agora meu organismo
já está voltando a funcionar como antes.
Agora devo confessar que cometi um pequeno crime, mas
que você ao ler essa minha carta, entenderá que foi por uma boa
causa. Nesse mesmo museu onde roubei essa réplica de
esferográfica, existe um salão com alguns exemplares de antigos
meios de transportes, que lembram nossos híbridos, mas que se
locomoviam apenas no chão e possuíam rodas que lhe permitiam

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1000 Universos

andar pelas ruas e estradas, o que hoje conhecemos como vias de


M. D. Amado | Adam

tráfego humano. Como admirador de coisas antigas, conheço um


pouco a respeito desses rudimentares automóveis – era como eram
chamados. Obviamente eles não se moviam mais, por falta de
combustível e baterias. Mas não são baterias como a de nossos
híbridos. São de uma tecnologia completamente ultrapassada e eu
não conseguiria adaptar nada parecido. Se meu cérebro artificial
estivesse funcionando, eu saberia até como construir outra bateria
idêntica. Porém, lendo alguns escritos antigos, descobri como fazer
que seus motores funcionem sem precisar dessa bateria. Motores
mecânicos inclusive. Cheios de peças estranhas e que não fazem o
menor sentido para mim. O tal combustível que o fazia funcionar
era originalmente feito com óleos vegetais ou algo assim. Não sei
explicar como isso funciona na verdade, mas me lembrei que o
etanol utilizado como fonte de energia desses veículos, eram bem
semelhantes ao álcool das bebidas destiladas. Sabia que não era o
ideal, mas o que eu podia fazer a não ser tentar? Roubei esse
veículo de transporte. O empurrei com muito custo até a rua e
invadi uma loja de bebidas. Depois de alguns minutos para
descobrir por onde eu colocaria aquelas bebidas, enchi seu
recipiente energético e consegui fazer funcionar.
E vou explicar porque fiz todo esse sacrifício. Assim que
quebrei a porta de vidro do museu, depois de achar estranho o
alarme não soar, vi diante de mim uma pequena mesa, com uma
carta presa por uma fita adesiva – essa é uma das poucas invenções
de nossos antepassados que ainda nos é útil – E foi, inclusive, desta
carta, escrita também de forma arcaica, usando papel e caneta
esferográfica que eu tirei a ideia de escrever esse pedido de ajuda.
Também foi através dela que tomei ciência do que aconteceu com
nossa civilização. Transcrevo aqui a carta.

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1000 Universos

“Para o caso de ainda existir, daqui uns anos, algum ser


M. D. Amado | Adam

humano vivo nessa terra, que ainda não saiba o que aconteceu
nesse mundo, deixo uma breve explanação dos fatos. E peço a todo
aquele que encontrar essa carta, que a deixe novamente no mesmo
lugar, para que num futuro distante todos ainda possam ter ciência
do que nos aconteceu.
Embora julgássemos que somos (ou éramos) uma civilização
extremamente avançada, cujos recursos tecnológicos pareciam
nunca ter fim, ainda não conseguimos nos livrar de um mau que
acompanhava nosso planeta desde os seus primórdios: a guerra.
Nas civilizações mais antigas o uso de bombas e mísseis que
explodiam causando destruição material e perdas humanas era até
então o maior medo das pessoas inocentes e regiões pacíficas.
Depois da unificação dos países, muitas pessoas insatisfeitas com
essa união forçada, formaram grupos rebeldes que por muitos anos
continuaram tentando destruir tudo que viam pela frente. As armas
eletromagnéticas se tornaram tão comuns quanto as antigas
bombas até então tradicionais. A tragédia estava anunciada há
anos, mas não houve tempo de se pensar em alguma solução a
curto prazo. Somos totalmente dependentes de tecnologia e isso
acabou se virando contra nós. Há alguns meses o mundo se viu
iluminado por raios em todas as regiões ao mesmo tempo. Os
sistemas de defesa das principais regiões detonaram suas armas
automaticamente e todos nós fomos atingidos. Quase que
imediatamente perdemos o contato externo. Por algumas poucas
horas ainda obtivemos notícias de outras partes do mundo, graças
às baterias que ainda mantinham ligados equipamentos de reserva
das grandes empresas de comunicação, que encaixotados em
invólucros especiais, não foram atingidos pelas ondas de destruição.
De resto, tudo foi inutilizado. Computadores, equipamentos

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1000 Universos

eletrônicos, híbridos, aparelhos de vida artificial e até mesmo nossos


M. D. Amado | Adam

androides foram afetados. E mesmo aqueles equipamentos que


resistiram ao ataque não funcionam mais, pois as baterias
acabaram e não há como recarregá-las. Não há mais comida em
nossa cidade e nem nos arredores. Existem pessoas cometendo
crime ambiental e caçando para sobreviver. Outros estão fazendo
pior: comendo carne humana. A grande maioria está partindo em
direção ao litoral, na esperança de conseguir comida fresca. Frutos
do mar, alimento até então esquecido por nós, arrogantes humanos
do final do século XXII. Eu também estou partindo, mas vou apenas
por teimosia. Sei que não poderemos sobreviver por muito tempo. O
oxigênio em nosso planeta há muito é escasso e pelo que sei, quase
todas as máquinas de purificação foram danificadas. É apenas uma
questão de semanas até que a população seja dizimada. Segundo os
cientistas mais otimistas, com os sistemas de energia solar ligados
aos purificadores mais antigos, e que ainda deverão ser
consertados, seria preciso pelo menos quatro anos para que o ar
necessário para toda essa gente volte a ser totalmente purificado. E
talvez, quando eles tiverem terminado de concluir esse processo,
não restará mais ninguém em Terra Nova e nem em nenhum outro
lugar no mundo.
Espero sinceramente que eu esteja errado. Espero que alguns
seres humanos tenham conseguido resistir e que possam começar
tudo novamente. Boa sorte!”

Então pude entender porque meu híbrido caiu daquela


forma, tão de repente. Por isso também meu cérebro artificial foi
danificado e todos os circuitos de controle de meus órgãos se
desligaram. Foi um milagre eu ter sobrevivido. O ar está respirável
para mim, mas não posso levar isso em consideração, pois no lugar

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1000 Universos

de pulmões, tenho um complexo mecanismo de filtragem do ar, que


M. D. Amado | Adam

independe do funcionamento do cérebro artificial ou de qualquer


um de seus circuitos. É justamente a parte mais importante do
experimento do qual faço parte. Ele utiliza a energia do próprio
corpo para funcionar e acredito que não tenha sido danificado com
as ondas eletromagnéticas, pois não utiliza micro chips.
Mas continuando minha pequena saga, como citei
anteriormente, eu consegui finalmente fazer aquele automóvel
funcionar e voltei até o local onde meu híbrido havia caído. Me
lembrei que dentro do compartimento de bagagens, havia uma
caixa metálica repleta de baterias nunca antes utilizadas e num
invólucro especial. Não foi nada fácil subir aquele rochedo e muito
menos descer com todo aquele peso. Mas consegui e agora estou
com elas em mãos. Com o meu conhecimento em engenharia
elétrica e eletrônica, tenho certeza que posso fazer aqueles
moinhos gerarem energia novamente e a partir daí, posso arrumar
outros equipamentos e fazer máquinas voltarem a funcionar. O
problema é que preciso de ferramentas avançadas para isso e até
mesmo da ajuda de um androide ou quem sabe até de um obsoleto
robô japonês feito em 2030, que encontrei no museu. Preciso de
alguém para o serviço pesado e ele pode ser útil nesse caso. Depois
de um tempo, o tal automóvel parou de funcionar. Realmente
aquele combustível de bebidas destiladas não era o mais
apropriado. E isso tem dificultado minhas buscas por material. Não
quero gastar as baterias nos híbridos, pois não sei ao certo de
quantas baterias vou precisar para consertar as centrais dos
moinhos e da distribuidora de energia. Cheguei a pegar outro
automóvel no museu, mas também não durou muito tempo.
Só espero um dia poder obter êxito nessa empreitada. E
tenho que ser mais rápido, pois sinto que meu corpo começa a

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1000 Universos

rejeitar as placas de circuitos implantadas. O programa instalado no


M. D. Amado | Adam

cérebro artificial é que controlava essa rejeição, injetando


medicamentos e fazendo com que as células se regenerassem
rapidamente. Tenho vomitado com uma certa frequência e sempre
com um pouco de sangue. Uma das primeiras coisas que preciso
conseguir fazer, é ligar o servidor do projeto e tentar me consertar,
digamos assim. É por isso que preciso partir logo. Espero que ainda
exista o depósito de materiais nível 3 em Velha Barcelona. São
equipamentos e ferramentas que teoricamente funcionariam
normalmente. Apenas não passaram pelos rígidos controles de
qualidade do conselho de segurança. Muita coisa não deve estar
prestando, por causa do ataque, mas se me lembro bem, quando
estive lá, uma das salas lacradas estava sendo utilizada para
armazenamento também, por falta de espaço. Posso dizer que
minhas esperanças estão confinadas dentro dessa sala. Se eu puder
ao menos aproveitar algumas ferramentas e quem sabe, por sorte,
encontrar um lote de placas que ainda funcionem, posso colocar
meu plano em prática em poucos meses.
Consegui encontrar alguns frutos na saída norte e isso tem
me sustentado. Mas confesso que me apavora a ideia de talvez ter
que viver para sempre como os primitivos viviam.
Paralelamente a isso, estou procurando uma mulher.
Qualquer mulher. Não por falta de sexo, nem por carência afetiva.
Não sei se aquela pessoa estava exagerando ou não. Acredito até
que em outras regiões existam pessoas vivas. Afinal, se as unidades
purificadoras foram consertadas, a chance de existirem alguns
sobreviventes é boa. Está certo, que depois de montadas, para que
pudessem purificar novamente, seria preciso algumas semanas até
que rodassem com toda sua capacidade de purificação. Não sei se
as pessoas resistiram esse tempo todo respirando nosso ar tóxico,

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1000 Universos

mas também penso por outro lado. Se quase a totalidade da


M. D. Amado | Adam

população faleceu, o ar que supostamente foi sendo purificado com


os equipamentos recuperados (se é que foram recuperados), pode
ter sido suficiente para uns poucos.
De qualquer forma, preciso fazer a minha parte nessa
história. Se essa tragédia realmente aconteceu, de tal forma a
deixar sobreviventes sobre o nosso mundo, preciso encontrar
alguém para que junto comigo, tente começar tudo novamente,
mesmo que seja apenas aqui em Terra Nova.
Em nossa época, fomos educados de tal forma a acreditar
apenas na ciência. Não temos crenças e deuses, salvo em algumas
regiões afastadas e onde habitavam parte daqueles que eram
chamados de tribais. Mas agora, não sei de onde poderia tirar uma
força e uma vontade de lutar por isso tudo, se não for amparado
por algo maior que a própria ciência. Não sei como devo chamá-lo.
Deus? Deusa? Queria poder encontrar um meio de chegar até essas
tribos. Apesar de toda sua inferioridade tecnológica, eles ainda
sobrevivem e mantém suas tradições. Algo de muito bom eles
devem ter para ensinar. Eu poderia aprender a adorar seus deuses...
Aqui mesmo no museu, em outra ocasião, li a respeito da adoração
à natureza e especialmente à Lua. Eu como homem criado no meio
de cientistas céticos, não vejo muito sentido nisso tudo... Mas
agora, eu que sou homem e máquina, preciso acreditar em alguma
coisa. E a Lua está todas as noites comigo. Mal não há de fazer.
Bom, agora eu preciso mesmo ir. Deixo esse registro aqui na
entrada norte da cidade. Não sei o que será de mim nessa aventura.
Sinto que meu corpo está piorando. Na boca, sinto um gosto
amargo. Não sei se é o medo ou se tem algo de errado com meus
circuitos. Meu es ômago arde m ito e...

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1000 Universos

A tinta da ca eta est ac band


M. D. Amado | Adam

Rogo a um de s qual uer qu me a ude e me pr tej

As ina o: Ad m.

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1000 Universos

Sonho Ruim

Marcelo Galvão

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1000 Universos

O pequeno caixão branco reluzia sob o sol inclemente do


Marcelo Galvão | Sonho Ruim

Haiti, enquanto o choro de uma mãe desconsolada quebrava o


silêncio do cortejo fúnebre. Da porta da sua clínica, Marcos Leme
observava a procissão caminhar até o cemitério, repouso final da
quarta criança a morrer naquele mês em Saint-Claire.
- O que tem de errado nesse lugar? - murmurou, passando a
mão pelos cabelos castanhos que começavam a encanecer nas
têmporas; com trinta e dois anos de idade, o médico brasileiro
parecia no momento ter uma década a mais. Em tese, a resposta
era fácil: habitada por cerca de duas mil almas, Saint-Claire tinha os
piores índices sociais do Haiti, o que não era novidade na nação
mais pobre das Américas. Saneamento básico, saúde pública e ruas
asfaltadas eram palavras desconhecidas naquela área rural ao oeste
do país. A situação só piorara após o devastador terremoto do
começo de 2010: com a capital Porto Príncipe devastada, milhares
de sobreviventes ficaram desabrigados, obrigados a sobreviver em
acampamentos ou a se refugiar no interior menos atingido pela
catástrofe.
- Você fez tudo que era possível - disse Nicole Ames, a jovem
haitiana que era a única enfermeira no consultório; tal como
Marcos, ela chegara no mês anterior, vinda da capital.
O médico meneou vagarosamente a cabeça. Sabia do desafio
que tinha desde o momento em que se inscrevera, cinco anos antes,
no programa de ajuda humanitário de uma ONG internacional.
Trabalhando no Brasil, África e Ásia, presenciara todo tipo de morte
infantil.
Mas era a primeira vez que se deparava com óbitos
inexplicáveis.
Fora o caso de Henri, que agora seguia para seu descanso
final. Seus pais procuraram Marcos no dia anterior, trazendo o bebê

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1000 Universos

de meio ano de vida com um quadro de fraqueza geral.


Marcelo Galvão | Sonho Ruim

O médico detectou mais do que isso. Um odor forte


acompanhava o paciente, algo que ele notara nas outras crianças.
Sua origem, ficou sabendo, eram loções de ervas nativas usadas por
muitos curandeiros adeptos do vodu. Não era novidade para
Marcos que aquelas pessoas do interior, supersticiosas e sem
instrução formal, procuravam os sacerdotes em caso de doença. Ali,
onde o vodu fazia parte do dia-a-dia, a medicina era o último
recurso.
Mas a ciência também não conseguira ajudar Henri. Mesmo
apresentando uma melhora horas após dar entrada e ficando em
observação pela noite, a criança falecera pela manhã sem qualquer
explicação.
Assim como acontecera antes com os pequenos Jean-Pierre,
Françoise e Daniele.
Encostado na soleira, Marcos sentiu um calafrio percorrer seu
corpo fatigado; logo pensou que adoeceria, depois do trabalho
incessante em tentar salvar Henri.
Foi quando viu a mulher do outro lado da rua de terra. Era
uma anciã franzina de pele escura, o rosto sulcado por uma teia de
rugas, usando um vestido de chita verde e na cabeça um lenço
vermelho. Seus olhos negros encaravam com firmeza o consultório.
Outro calafrio atingiu o médico.
Não era a primeira vez que via aquela mulher. Na ocasião da
morte de Daniele, dez dias atrás, Madame Solange posicionara-se
na calçada, observando em silêncio a clínica. Nicole explicara que a
anciã era uma mambo, o nome dado às sacerdotisas do vodu que se
comunicavam com seus espíritos protetores, conhecidos como loas;
Madame Solange tinha a fama de ser uma das mambos mais
conceituadas em Saint-Claire.

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1000 Universos

E agora lá estava a mulher examinando o médico, sozinha


Marcelo Galvão | Sonho Ruim

depois que o cortejo dobrou a esquina. A temperatura estava bem


próxima dos quarenta graus, mas Marcos sentia frio. Ele não sabia o
que Madame Solange queria, porém uma coisa era certa: a
presença dela o incomodava.
Ele precisava descobrir o porquê.
Marcos atravessou a rua de terra em direção da mambo. A
mulher continuou a encará-lo, mas assim que ele se aproximou,
passou a tagarelar em creole.
- Sinto muito, senhora, não entendo uma palavra - Marcos
tentou interromper o monólogo, mas em vão: Madame Solange
matraqueava sem parar, os braços finos movendo-se como ramos
de árvore numa ventania.
E sem aviso, ela virou as costas e foi embora, deixando
Marcos sozinho no meio da calçada.

z
- O que Madame Solange tanto disse, docteur ? - Nicole
perguntou, baixando a xícara de café recém-coado por Charlotte
Lambert, a jovem empregada que no momento lavava a louça ali na
cozinha. Assim como Nicole, a moça também era funcionária da
ONG, com a diferença que era nativa da cidade. Com vinte anos, ela
era responsável não só pela limpeza, mas também pelos serviços
gerais, o que incluía manter o gerador a diesel da clínica
funcionando, algo vital em um local onde o fornecimento de
eletricidade era instável.
- Eu realmente não sei. – O médico encolheu os ombros -
Tinha uma palavra que ela não parava de repetir. Parecia ser
“laguru”, “loguru” ou talvez “luguru” –
O ruído de algo se espatifando interrompeu o rapaz.
- Desculpem-me - Charlotte balbuciou, recolhendo os cacos

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1000 Universos

da xícara que deixara cair.


Marcelo Galvão | Sonho Ruim

- Tudo bem - Marcos disse, para em seguida bocejar -


Estamos todos exaustos depois desses últimos dias. É melhor eu ir
para casa e descansar.
O médico morava numa construção simples de alvenaria, um
luxo se comparado com os casebres de madeira tão comuns em
Saint-Claire. Após uma ducha, ele se deitou e esperou por um sono
que nunca chegava; seria muito fácil colocar a culpa no calor
sufocante do Caribe ou no ventilador barulhento que não refrescava
o lugar.
A razão era outra, Marcos bem sabia. Ele nunca havia
enfrentado uma dificuldade daquele tamanho na curta carreira que
tinha, vendo sua confiança ser minada aos poucos a cada morte
infantil. Para muitos dos seus colegas de universidade, Marcos Leme
- nascido numa família rica e graduado no melhor curso do Brasil -
não passava de um idealista por perder seu tempo em países
miseráveis, quando poderia ganhar muito dinheiro como
dermatologista ou cirurgião plástico numa clínica particular do
primeiro mundo; era o mesmo pensamento dos pais e da ex-noiva
que deixara no Brasil.
Mas ele sempre quisera ser um médico de verdade, um que
fizesse diferença no mundo ao trazer alívio aos necessitados com a
ajuda da ciência, resolvendo assim os problemas do mundo. Fosse
uma visão romântica da profissão ou ingenuidade, aquela era uma
certeza na vida que Marcos tinha como norte.
Uma convicção que agora estava sendo posta à prova.
Marcos fechou as pálpebras. A imagem dos olhos negros de
Madame Solange, tão escuros que era impossível distinguir a pupila
da íris, surgiu na sua mente.
O que a mulher tanto dizia?

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1000 Universos

Marcos só descansaria quando falasse com a mambo.


Marcelo Galvão | Sonho Ruim

z
A casa de Solange era localizada ao lado de um riacho, nos
arredores de Saint-Claire. Nos fundos da propriedade ficava o oufò,
o templo onde ela realizava as cerimônias. A noite começava a
surgir quando Marcos atravessou o portão de madeira que dava
acesso ao quintal; após caminhar alguns metros, encontrou o oufò,
um barracão de madeira e telhado de zinco, decorado por
bandeirolas vermelhas e verdes. Imagens de diversos santos
católicos, sincretizados pelo vodu, estavam penduradas nas paredes
pintadas de azul. No centro do chão de terra batida, erguia-se uma
coluna de madeira com um arco-íris e uma serpente desenhadas
nela: era o poteau-mitan, uma espécie de ponte espiritual pela qual
os loas chegavam para possuir e se comunicar com seus
adoradores.
A decoração colorida do oufò desaparecia conforme as
sombras da noite avançavam. O lugar parecia deserto; hoje, pelo
que Marcos soubera, não era dia de culto. Da entrada do barracão,
ele chamou por Madame Solange.
Nenhuma resposta.
Marcos avançou mais alguns passos. Do fundo do templo,
veio um ruído, junto com um cheiro pungente.
- Tem alguém aí? - Marcos fez a pergunta em voz alta.
A resposta foi outro som que agora pareceu aos ouvidos do
rapaz um gemido de dor. Marcos apertou um interruptor de luz
próximo da entrada do oufò e uma única lâmpada incandescente se
acendeu para mostrar Madame Solange em meio a uma poça de
sangue.
O rapaz correu em direção da mambo; palavras em creole
eram debilmente sussurradas por ela.

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1000 Universos

- Não se mexa, por favor - Marcos disse, vendo a mulher


Marcelo Galvão | Sonho Ruim

entrar em estado de choque, sua garganta dilacerada. Solange


continuou a balbuciar:
- L-lu... luga... lugaru...
Era a mesma palavra repetida enfaticamente pela manhã.
Revirando os olhos, Madame Solange soltou seu último suspiro.
- Lugaru - disse uma voz atrás do médico. Marcos voltou-se e
viu Charlotte. - Era o que ela tentava avisar ao senhor.
- O que você está fazendo aqui?
- Eu ajudo a mambo durante os cultos. - A moça aproximou-
se, levando na mão uma sacola de plástico azul. - Desde o dia que
Daniele morreu, Madame Solange suspeitou da presença de um
lugaru na cidade.
O médico encolheu os ombros.
- Desculpe, mas não sei do que você está falando.
Charlotte olhou para a mulher estendida no solo sagrado.
- Lugaru é uma pessoa que fez um pacto com um loa maligno
em troca de favores mágicos. Noutras vezes, é alvo da maldição de
um bòkò, um feiticeiro que trabalha com magia negra. De qualquer
modo, a criatura precisa se alimentar de crianças para sobreviver.
Marcos pigarreou.
- Charlotte, não quero ser desrespeitoso com suas crenças,
mas...
- De dia, o monstro anda, bebe e come feito gente, como eu e
você. Mas pela a noite, esfrega uma poção de ervas pelo corpo até a
pele sair. Depois de guardá-la num lugar fresco, está pronto para
caçar, se alimentando aos poucos do sangue dos pequeninos.
Quando eles acordam pela manhã, pensam que foi tudo um sonho
ruim. - Os olhos dela se encheram de lágrimas - Até o dia em que
não acordam mais.

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1000 Universos

A moça ajoelhou-se perto da sacerdotisa falecida:


Marcelo Galvão | Sonho Ruim

- Madame Solange pediu que eu a ajudasse a fazer um


amuleto contra o monstro. - Da sacola que carregava, retirou uma
pequena bola de pano multicolorida, enfeitada com lantejoulas.
Marcos vira objetos como aquele pela cidade: era um wanga,
talismã que protegia contra vários tipos de mal e cujo conteúdo era
feito de ervas, terra e, diziam alguns, restos de cadáveres. - Mas
lugaru foi mais rápido.
Ela voltou-se para o médico.
- Sei que é difícil você acreditar nisso, doutor, mas peço que
retorne para a clínica. Outra criança foi internada.
Charlotte levantou-se e colocou a wanga nas mãos de
Marcos:
- Não deixe que ela morra.

z
A pequena Adele dormia tranquila em um leito da clínica.
Numa cadeira ao lado, Marcos a vigiava.
Duas horas antes, ele chegara correndo para atender a garota
com os mesmos sintomas dos pacientes anteriores. Após aplicar o
tratamento inicial, o médico recomendou o pernoite dela na clínica
para garantir que os remédios fossem devidamente ministrados.
Marcos bem sabia que esta não era a única razão para manter
a criança por perto. As palavras de Charlotte ainda ecoavam em sua
mente; no bolso da calça, a wanga pesava como uma pedra.
Depois de dispensar Nicole, ele sentou-se numa
desconfortável cadeira de metal, ajustou a luminária para não
incomodar a paciente e começou a ler uma revista para manter-se
acordado, as pálpebras cada vez mais pesadas. Lá fora, cigarras
cantavam, uma cacofonia que se misturava com o barulho do motor
da geladeira na cozinha e com a respiração pesada da pequena

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1000 Universos

criança.
Marcelo Galvão | Sonho Ruim

Um ruído despertou o médico.


Levantou-se, o coração acelerado. Na cama de metal branco,
Adele ressonava, o soro preso ao braço fino e delicado.
Consultou o relógio: já era madrugada. Marcos virou a cabeça
de um lado para o outro, procurando por algo diferente.
Um cheiro estranho invadiu suas narinas.
Ele o reconheceu de imediato: era igual ao das loções
empregadas pelos sacerdotes voduístas. Franzindo o nariz,
percebeu que o fedor vinha da cozinha. Lá, o odor não só era mais
forte como também sufocante, uma mistura de suor azedo e esgoto
a céu aberto. Avançou pelo cômodo e verificou que sua origem era
a velha geladeira, usada para proteger vacinas do clima tórrido.
Marcos abriu a porta do eletrodoméstico. Uma nuvem branca
e refrescante o recepcionou, junto com o odor estranho.
Estreitando os olhos, viu uma jarra de vidro fosco e tampada por um
pano; com cuidado, afastou os medicamentos e trouxe o recipiente
para perto.
A jarra não possuía qualquer identificação. Marcos a colocou
na mesa, notando como era pesada. Prendendo a respiração para
evitar o fedor, ele a destampou.
Adele gritou no quarto.
Marcos largou a jarra e disparou para o cômodo.
Algo se virou na direção do rapaz. A iluminação precária do
quarto mostrava a silhueta de uma mulher - quadris largos, cintura
fina, mamas desenvolvidas. Não havia sinal de cabelos, já que
também não possuía pele: músculos vermelhos e viscosos cobriam a
sua estrutura óssea, lembrando ao médico os modelos plásticos de
anatomia que estudara na faculdade.
A semelhança com uma figura humana acabava aí. As mãos

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1000 Universos

eram garras curvas e afiadas e da boca, atulhada de pequenos


Marcelo Galvão | Sonho Ruim

dentes triangulares, projetava-se uma língua comprida, pela qual


um filete de saliva escorria e caía na assustada Adele.
Aquilo era uma lugaru.
E pelo visto, não gostava de ser interrompida nas suas
refeições: com um rosnado, a criatura saltou sobre Marcos.
O rapaz só teve tempo de se jogar no chão para evitar o
ataque. Quando levantou-se, viu o monstro de pernas arqueadas,
preparando-se para um novo bote.
E então a lugaru estancou, pupilas brilhantes fixas no chão.
Marcos seguiu o olhar e viu a wanga, caída do seu bolso no ataque.
A criatura tremia como se tivesse frio.
Ou medo do amuleto.
A lugaru rosnava, mostrando os dentes, procurando passar
pela wanga, mas sempre retrocedendo na tentativa. Na cama,
Adele chorava.
Marcos não teria outra chance para salvar a criança. A única
arma por perto era a cadeira de metal.
Ele a agarrou, ergueu e bateu repetidamente na lugaru,
mirando tronco e cabeça. A criatura recuou, fosse pelos golpes ou
pela wanga, até ficar encurralada no canto do quarto.
- Não me mate - As palavras saíram debilmente da boca sem
lábios da lugaru - Eu não tenho culpa.
Marcos, segurando a cadeira deformada pelos impactos,
mirou aqueles olhos suplicantes por uma fração de segundo.
E então as imagens de Adele, Henri, Daniele, Jean-Pierre e
Françoise sucederam-se em sua mente como relâmpagos em uma
tempestade.
A cadeira de metal desceu uma última vez na direção do
monstro.

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1000 Universos

z
Marcelo Galvão | Sonho Ruim

Um sonho ruim. Foi a explicação que Marcos deu para Adele,


antes de aplicar na criança um sedativo e desejando que ele mesmo
acreditasse naquela história.
Mas o corpo grotesco no chão demonstrava o contrário, ao se
dissolver numa poça avermelhada e exalar um odor de podridão.
Marcos se lembrou da jarra na cozinha; lá, com as mãos trêmulas,
pegou o recipiente e o virou de cabeça para baixo.
O conteúdo escorregou pelo tampo da mesa. Engolindo em
seco, o médico encarou o rosto flácido de Nicole Ames; uma
película pegajosa cobria o resto da pele vazia, reluzindo nos seios
murchos, no púbis de pelos crespos, nos braços e pernas ocos.
Exposta ao ar, secou em instantes até se esfarelar em pequenos
flocos escuros, agora que não tinha mais a quem abrigar.
Adele recebeu alta na manhã seguinte e a vida prosseguiu em
Saint-Claire - segura sem a ameaça do lugaru -, mas não para
Marcos: ele não trabalhava ou dormia direito tentando entender o
que havia acontecido com Nicole. Inquieto, refez os passos da
enfermeira e acabou na aldeia natal dela, no outro lado do país.
Após conversar com amigos e parentes da moça, ele acreditou ter
descoberto algo.
Três meses atrás, Nicole socorrera a filha de um vizinho,
vítima de uma infecção grave, a levando para a clínica onde
trabalhava. O pai da garota, porém, queria que ela fosse tratada por
curandeiros locais; depois de muita discussão, a opinião da
enfermeira prevaleceu.
A criança morreu horas mais tarde. Dali em diante, a história
ficava confusa, mas a versão em comum era que o homem nunca
perdoara Nicole: corria o boato de que vendera tudo que possuía
para um bòkò amaldiçoar a moça.

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1000 Universos

Agora, um Marcos Leme pálido e com olheiras profundas


Marcelo Galvão | Sonho Ruim

encolhia-se no último assento de um ônibus abafado. A cada


quilômetro percorrido com destino a Saint-Claire, ele tentava negar
algo que havia se dado conta naqueles últimos dias.
Mas conforme se aproximava da cidadezinha, a sua convicção
de que resolveria os problemas do mundo, com a ajuda da ciência,
desmoronava.
Um calafrio estremeceu o médico.

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1000 Universos

Ars Nova

Ana Lúcia Merege

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1000 Universos

Para Vânia Vidal


Ana Lúcia Merege | Ars Nova

A arte é mais forte que a fome. Era o que Renzo dizia a si


mesmo quando o Ars Nova saía para tocar. Sob o sol de verão,
tomada por hordas de turistas, San Gimignano cheirava a pizza, uma
tortura para quem tinha de poupar cada centavo. Ao meio-dia eles
voltariam à casa minúscula e preparariam uma refeição com o que
comprassem no mercado. Descansariam durante as horas de maior
calor e à tarde tornariam a sair com os instrumentos. Que, pelo
jeito, não seriam substituídos tão cedo. Era isso ou pagar o aluguel.
O grupo de música antiga existia há seis anos, mas a formação
sofrera várias mudanças. Dos integrantes originais, colegas na
Facoltà di Musicologia em Cremona, restavam apenas Renzo e
Marcello. Os outros eram Jordi, um espanhol de Barcelona, e
Gianluca, napolitano de apenas vinte anos, que tocava de ouvido e
tinha uma bela voz. Fora dele a ideia de usar um chapéu de bobo da
corte, adicionando um toque atemporal aos figurinos do século XIV
que Renzo pesquisara com tanto critério. Os turistas gostavam, e
aquilo rendia uns euros a mais.
Mesmo assim, os últimos tempos vinham sendo difíceis.
Naquela manhã, Renzo se alarmou ao constatar que mal
tinham o suficiente para as compras do almoço. Não que fossem
passar fome, havia opções muito baratas, mas estavam fartos de
salsichas, macarrão e qualquer coisa que viesse em lata. Precisavam
de algo mais substancioso ao menos uma vez por dia.
- Que cara é essa? – indagou Marcello. Renzo fez um sinal em
direção à caixa de contribuições. Gianluca olhou de longe e
suspirou, abanando-se com o chapéu de guizos.
- E os CDs? – perguntou, dirigindo-se a Jordi. – Pensei que
aquela loura tinha levado um.

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1000 Universos

O espanhol conferia os discos alinhados contra uma parede.


Ana Lúcia Merege | Ars Nova

Por 15 euros, podia-se escolher entre 68 minutos de música do


trecento, entre caccias, motetos e saltarellos; ou uma hora de
baladas e madrigais do maior nome da Ars Nova italiana, Francesco
Landini.
- Ela ficou um tempão olhando, mas não levou. –
Desanimado, Jordi começou a guardar os CDs.
- Devia estar dura – opinou Marcello. - De mochila,
almoçando sanduíche...
- Ou então não gosta da nossa música – replicou Jordi.
Renzo franziu a testa, sem saber se o catalão falara a sério,
mas se sentindo atingido mesmo assim. “Nossa música” era a arte
do trecento, era o que faziam juntos - mas era sobretudo a sua
música.
Depois de escolher bastante, eles compraram o necessário
para um bom cozido. Jordi e Marcello foram andando na frente
enquanto Gianluca puxava conversa com a morena da banca de
tomates. Renzo esperou alguns momentos, depois começou a
caminhar pela rua ensolarada.
O cheiro de calzone dominava a Piazza Del Duomo. Renzo
procurou uma mancha de sombra e parou, ajeitando a alça do
estojo a tiracolo. Diante dele, encimado pela Torre Grossa, erguia-se
o Palazzo Del Popolo, antigo palácio dos podestàs que tinham
governado a cidade ao longo da Idade Média. Agora abrigava o
Museu Cívico, ao qual os turistas costumavam acorrer em massa.
Por que hoje havia tão pouca gente?
Intrigado, o rapaz se aproximou da entrada do Palazzo. Só
então viu que estava bloqueada por um biombo, no qual um cartaz
anunciava:
CONCERTO PARA O PODESTÀ

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1000 Universos

Restrito a convidados
Ana Lúcia Merege | Ars Nova

Ali estava a explicação para o desinteresse dos turistas. Renzo


deu de ombros e começava a se afastar quando o biombo se
moveu, abrindo uma fresta na qual pôde entrever o rosto de um
homem.
- Não vá ainda, jovem. – O tom era cortês; o sotaque,
indefinível. – Sua presença é oportuna. Por favor, entre.
Sua figura se revelou à medida que ele afastava o biombo. Era
magro, de rosto fino, vestido com uma túnica vermelha que Renzo
associou aos retratos de Dante.
- Vão fazer um concerto, não é? – perguntou, ao entrar. – O
senhor deve ser um dos organizadores.
- Sim, sou o mestre de cerimônias, por assim dizer. Pode me
chamar de Memmi.
- Renzo Canetti – disse o rapaz, aproveitando para ajuntar: -
Trabalho com Ars Nova, o estilo musical surgido no século XIV.
Principalmente a escola italiana.
- Oh, sim! A arte de Mestre Landini. – Um brilho fugaz passou
pelos olhos de Memmi. – Esta série de concertos é de uma época
anterior. É de quando o podestà de San Gimigniano era Nello
Tolomei. Ouviu falar?
- Tolomei? Acho que não.
- Mas já esteve na Sala do Conselho – tornou Memmi. Renzo
moveu a cabeça em concordância. Só então percebeu que tinham
atravessado o pátio de entrada e se encaminhado justamente
àquela sala: um espaço amplo, outrora usado em reuniões, mas
que, devido a uma visita do escritor no ano 1300, costumava ser
chamada “Sala di Dante”. O interior estava escuro, mas mesmo
assim era visível o famoso afresco mostrando a adoração da Virgem.

96
1000 Universos

- Esta é a Maestà – explicou Memmi. – Entre os que prestam


Ana Lúcia Merege | Ars Nova

devoção inclui-se Messire Tolomei. Foi ele quem encomendou o


trabalho.
Apontou para uma figura de manto listrado aos pés da
Virgem. Renzo assentiu e se aproximou, admirando os detalhes. A
pintura era típica do trecento e muito bem-executada, mas o jovem
não reconheceu o autor. Artes plásticas não eram o seu forte.
- Belíssimo, não acha? – perguntou Memmi. – Foi uma época
magnífica para a pintura.
- Para a música também – disse Renzo.
- Sem dúvida. E isso me recorda o porquê de tê-lo convidado.
Temos três concertos marcados, mas um dos músicos não poderá
vir. É um solista, apresenta-se com voz e saltério. Estaria
interessado em substitui-lo?
- Está brincando? Claro que sim! – Um sol nasceu dentro de
Renzo, iluminando-lhe o rosto. – Virei com prazer. É hoje mesmo?
- Sim, às onze. E venha com essa roupa. É avançada para o
período, mas serve. Afinal, o podestà sempre foi um homem à
frente de seu tempo.
Sorriu, olhando para o afresco. Renzo também sorria, mas a
euforia começara a ceder diante de algumas preocupações. Como
preparar numa tarde um repertório de Ars Antiqua?
- Não se preocupe. O que costuma tocar não era tão estranho
aos ouvidos de 1317 – tranqüilizou-o Memmi.
- Espero que sim. E outra coisa: participo de um grupo.
Fazemos apresentações solo, conforme a demanda, mas preciso
perguntar se não há trabalho para eles.
- Receio que não – lamentou Memmi. – Com você, o
programa está completo. Sinto muito.

97
1000 Universos

- Não há problema. Já aconteceu outras vezes, com todos


Ana Lúcia Merege | Ars Nova

nós. Virei sozinho – disse Renzo, pensando se devia falar em


remuneração. Como se houvesse lido sua mente, Memmi o
convidou a acompanhá-lo até a saída, e lá chegando lhe entregou
um envelope tirado da bolsa em seu cinto.
- Um adiantamento pelo trabalho - disse. - A música é divina,
mas os músicos são humanos. Precisam comer.
- Engraçado. Vivo dizendo que a arte é mais forte que a fome
– comentou Renzo.
- De fato. E é eterna. - Memmi sorriu. - Você vai adorar estar
conosco, meu rapaz.

Às dez da noite, Renzo se dirigiu ao Palazzo del Popolo.


Passara uma tarde tranqüila, praticando com o saltério, que não
tocava com muita frequência. Mais tarde, encontrou-se com os
amigos e pagou-lhes um jantar. Ao sair do restaurante, não
percebeu que a rua estava mais vazia que o habitual, mas o
movimento foi ficando ainda menor à medida que se aproximava da
Piazza Del Duomo. Esta se achava completamente deserta. Era
estranho, mas Renzo não dedicou muito tempo a pensar no
assunto, apenas cruzou a praça e entrou no Palazzo.
- Você chegou! Seja benvindo! – exclamou o mestre de
cerimônias. Os dois passaram pelo pátio, iluminado com archotes
em suportes de ferro, e subiram para a Sala do Conselho, onde um
tablado fora montado para servir como palco.
- Pode se preparar. Volto logo – disse Memmi, e se retirou,
deixando Renzo a arrumar suas coisas no estrado. Este fora
posicionado na parede oposta à do afresco, de modo que o
concerto parecia ser, de fato, dirigido ao podestà. No entanto, o

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espaço intermediário fora preenchido com cadeiras portáteis,


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fazendo supor a presença de espectadores de carne e osso.


Renzo acabava de se sentar e dedilhava o saltério quando
Memmi regressou. Tinha um ar solene, que se acentuou quando a
luz diminuiu de intensidade.
- Os convivas chegarão enquanto estiver tocando, mas –
subiu no estrado, pondo-se ao lado do jovem – por favor, não
interrompa a execução de forma alguma. Continue até eu dizer que
pode parar. Promete fazer isso?
Seus olhos brilhavam na semi-escuridão da sala. Isso fez
Renzo estremecer, mas mesmo assim ele prometeu. Era tarde
demais para recuar.
- Muito bem. Que o concerto se inicie! – proferiu Memmi. Sua
mão pousou no ombro de Renzo quando este iniciou a primeira
peça. Era uma balada de Landini, que costumava cantar a duas
vozes com Gianluca, mas cuja versão instrumental se adequava
perfeitamente à sala. Estou na Idade Média, pensou Renzo,
abstraindo a visão das cadeiras dobráveis para se concentrar no
afresco.
Uma sensação agradável correu de seus dedos até o topo da
cabeça, fazendo-o relaxar. Sou um músico do século XIV. A balada
terminou e Renzo começou a tocar outra, que fluiu sem esforço e o
envolveu em suas vibrações. A própria sala parecia ter começado a
vibrar, a atmosfera carregada das emanações que ali tinham ficado
por séculos. Ao som da música, elas se expandiram, agregando-se
em formas que aos poucos se tornariam visíveis.
Foi assim que os convidados começaram a chegar.
No início eram apenas manchas, clarões surgindo aqui e ali
em meio à penumbra da sala. Renzo os tomou por ilusões, reflexos
da luz difusa das lâmpadas, mas a impressão durou apenas um

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instante. Só o tempo necessário para que suas formas se


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definissem.
Vultos. De homens e mulheres, ou melhor, de cavalheiros e
damas do trecento, com as túnicas, vestidos e toucados que Renzo
conhecia das pesquisas. Ou seria de um outro lugar – um sonho,
talvez, ou alguma outra vida? Angustiado, ele se voltou para
Memmi, mas tudo que obteve foi uma advertência acompanhada
de um aperto no ombro.
- Não pare. Toque. Você deu sua palavra – sussurrou o mestre
de cerimônias.
Renzo engoliu em seco e prosseguiu. Os vultos se tornavam
cada vez mais nítidos, seus corpos se adensando à medida que os
sons fluíam do saltério. Logo foram capazes de sentar nas cadeiras,
de onde ficaram a fitar e até a sorrir para Renzo. Deus me proteja,
sou eu que estou fazendo isso, pensou o rapaz, para em seguida
corrigir: não era ele e sim a música. Era ela que estava trazendo
aquela gente de volta à vida.
- Bravo, meu jovem! – Emocionado, Memmi ergueu a voz. –
Amigos, eis que chega nosso protetor, Messire Nello Tolomei! Eis o
nosso podestà!
Do fundo da sala, um vulto até então indistinto avançou
devagar, seus contornos se tornando mais visíveis a cada passo. Em
poucos momentos, um rosto de feições regulares sorria para os
convivas, que se curvavam à medida que o homem de manto
listrado passava pelo meio deles.
- Senhor. – Memmi desceu do estrado, fez uma reverência ao
podestà. Este o beijou nas duas faces, depois se acomodou numa
cadeira dobrável, tão majestosamente quanto o faria num trono de
veludo. Memmi regressou para junto de Renzo, a essa altura agindo
como num sonho em que lhe era impossível parar de tocar.

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Afinal, ele era o músico da corte.


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- Foi magnífico – sussurrou Memmi em seu ouvido. – Só duas


baladas mais, é o que lhe peço. Depois, se quiser, responderei a
suas perguntas – acrescentou. Renzo assentiu e continuou a tocar,
sentindo os olhos de Tolomei sobre ele. Talvez por isso cedeu ao
impulso de concluir com uma canção mais antiga, um poema de
Dante musicado pelo trovador Casella; o podestà sorriu ao
reconhecê-lo, e isso fez com que Renzo se sentisse estranhamente
feliz.
- Um viva para o artista! – A voz de Memmi soou em uníssono
com os aplausos. – E agora, amigos, deixemos que ele descanse,
enquanto outra música alegra nossos corações.
A essas palavras, três adolescentes, usando gibões de um azul
vivo, subiram ao estrado carregando vários instrumentos. Os
convidados afastaram as cadeiras, e logo os sons alegres de um
saltarello ecoavam pelo ar. Memmi puxou Renzo pelo braço e abriu
caminho entre os dançarinos, conduzindo-o até um canto da sala.
- Não tenha medo – disse. – Não é o demônio que conduz
suas mãos. Ao contrário, um dom como o seu é abençoado, pois
reanima homens e mulheres que em vida foram piedosos.
- E agora são fantasmas. - Renzo sentiu o tremor em sua
própria voz. – Vai dizer que estou errado?
- Não, mas afirmo que não representam qualquer perigo.
Querem apenas celebrar, como faziam outrora. E têm pouco tempo.
Ao fim destas três noites, quando a Lua se afastar de Vênus,
voltarão ao lugar de onde vieram. Só eu poderei ficar, pois não
preciso, como eles, do alento da música. Basta-me estar em
presença de minha arte.
- Sua arte. – O jovem refletiu por um instante. – Então, o
senhor é...?

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- Lippo Memmi, o pintor da Maestà – respondeu o outro. – E


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um modesto estudioso dos astros. São eles que me permitem, de


tempos em tempos, trazer velhos amigos ao Palazzo. A única outra
condição é a presença de um músico de talento.
Renzo balançou a cabeça, sem saber o que pensar. Os
convidados dançavam em roda, brincando e rindo. Nenhum era
monstruoso ou ameaçador. Ao contrário, a alegria parecia irradiar
de seus corpos, enchendo a sala de uma nova e contagiante
vibração.
- Você talvez gostasse de dançar. – Mais uma vez, Memmi
pareceu ter lido seus pensamentos. – Eu disse que nossa companhia
seria agradável.
- É, sim, mas... Tenho que ir – disse o jovem, recuando alguns
passos. Aquelas palavras tinham soado como um alarme dentro
dele. Memmi o percebeu e sorriu, levando a mão ao peito, de onde
retirou um envelope igual ao que lhe dera de manhã.
- O resto do pagamento – disse. - Agradeço sua ajuda em
nome de todos. Principalmente do podestà – acrescentou, sorrindo.
– Ele gostou de ouvir Casella, é claro. Mas, conhecendo-o, afirmo
que gostou ainda mais de apreciar a música que apenas começava a
florescer em nosso tempo.

- Oi, Renzo! Já levantou? Como foi a noite?


Na cozinha apertada, Marcello preparava Nescafé. Gianluca
ainda roncava no sofá e Jordi estava no banho, reclamando da
torneira. Tudo tão familiar, pensou Renzo. Tão simples a vida que
levara até agora. Por que não podia voltar a ela e esquecer o que
vira?
A noite anterior deixara nele marcas profundas. Ao sair do
Palazzo, transtornado com a ideia dos fantasmas, tomara a decisão

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de se afastar, sob pena de um grande mal. No entanto, à medida


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que a noite passava e o sono não vinha, seus pensamentos foram se


acalmando, os resquícios do terror se transformando numa
estranha nostalgia. No fim, admitiu que gostaria de voltar lá,
embora a razão o aconselhasse a manter distância. Talvez pudesse
ficar só por uns momentos, disse a si mesmo. Só o suficiente para
sentir de novo aquela atmosfera mágica.
- Bom dia. Chuveiro maldito. – Jordi entrou na cozinha. –
Ainda bem que estamos caindo fora.
- O quê? – fez Renzo, franzindo a testa.
- Ele ainda não sabe – disse Marcello. – Renzo, você lembra
que o aluguel era pra renovar hoje, não lembra?
- Sim, mas ganhei dinheiro. Se precisar...
- Não é isso. O caso é que ontem, depois que você saiu, nós
conversamos e... bom, chegamos à conclusão de que não dá mais
pra ficar em San Gimignano. Decidimos ir pra Florença, o que acha?
Renzo respirou fundo antes de olhar para o amigo. Eu devia
estar zangado, pensou, e pela expressão de Marcello viu que ele
esperava o mesmo. O Renzo que ambos conheciam se sentiria
traído. No entanto, aquela noite mudara muitas coisas – e assim,
em vez de protestar contra a decisão tomada à sua revelia, ele
surpreendeu a si próprio dizendo que estava de acordo.
- Só não posso ir hoje. Fiquei de voltar ao Palazzo – avisou. Na
mesma hora, um calafrio lhe percorreu a espinha. Tinha escolhido,
afinal.
- OK. Eu também não vou – disse Marcello. – O Carlo, da
gelateria, segue hoje pra lá e ofereceu lugar pra dois na pick-up. O
Gianluca e o Jordi vão, levam as bagagens e dormem na casa da
Lívia, prima do Gianluca. Nós vamos amanhã, de ônibus.

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- Combinado – disse Renzo, e se levantou sem tocar na


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comida. Gianluca tinha deixado o sofá e arrumava suas coisas,


enquanto Jordi fazia o mesmo com os instrumentos.
- Pode deixar seu bongô? Também arrumei trabalho – disse
Marcello. – Vou tocar com uns americanos.
- Mas... bongô? – estranhou o catalão. – O que eles tocam?
- Bob Dylan, Simon and Garfunkel, essas coisas. Nada de
música antiga hoje, a não ser pro Renzo. Mas amanhã voltamos aos
eixos.
- Claro! Pro público seleto que são os turistas – resmungou
Jordi. Renzo lembrou do rosto nobre e sereno do podestà e fechou
os olhos, uma onda de tristeza o invadindo sem que conseguisse se
manter à tona.
Jordi e Gianluca partiram no fim da tarde, e em seguida
Marcello saiu para encontrar os americanos. Renzo tentou resistir,
mas, após uma hora de inquietude na casa vazia, levantou-se e
rumou a passos largos para a Piazza Del Duomo. Estava cheia, ao
contrário da noite anterior, mas poucas pessoas se aproximavam do
Palazzo. Algumas chegavam até a porta e recuavam, com expressão
confusa. O músico, porém, entrou sem dificuldade, logo chegando
ao pátio, onde Memmi estava na companhia de três rapazes.
Pareciam jovens comuns, vestidos à maneira do trecento, mas
Renzo sabia o que de fato eram. E, estranhamente, não sentia medo
algum.
- Que surpresa! Falávamos de você – Memmi parecia
inseguro, além de muito pálido. – Lembra-se deles? Tocaram depois
que você foi embora.
- E hoje vamos variar o repertório – disse um rapaz moreno. –
Cantaremos as baladas de meu amigo, Francesco Landini.
- Amigo? – Renzo piscou. – Ele só nasceu em 1325.

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- Era mais moço que nós – explicou outro músico. – Você nos
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vê como éramos na época da Maestà, mas à exceção de Andrea,


que sucumbiu à Peste Negra 30 anos depois, chegamos a conhecer
e admirar o jovem Landini.
- E queremos cantar suas canções para o podestà –
completou o terceiro, de rosto emoldurado por cachos angelicais. -
Gostaria de se juntar a nós?
Como num sonho, Renzo ouviu sua própria voz dizendo que
sim. Andrea – esse era o nome do querubim – o pegou pela mão e o
conduziu à Sala do Conselho, Pietro e Marco logo atrás, tocando
uma marcha triunfal para tambor e cornamusa.
Dali para a frente, as horas transcorreram como num sonho,
um transe do qual seria impossível despertar. Não que o desejasse.
Ao contrário, sentia-se cada vez mais fascinado, arrastado pela
torrente de música, risos e aplausos dos convivas. Todos se
mostravam alegres como na noite anterior, embora, ao fixar a vista
sobre eles, Renzo tivesse a impressão de que seus corpos estavam
menos sólidos. Ainda assim eram capazes de se maravilhar com
suas canções, com a límpida, vigorosa polifonia da Ars Nova, que
poucos tinham chegado a conhecer em vida. O mais arrebatado era,
porém o próprio Renzo, e além dele o podestà, cuja expressão ao
ouvi-los era de puro deleite.
- Tem minha gratidão, caro jovem – declarou, no intervalo da
apresentação. – E lhe dou minha palavra de que patrocinarei sua
arte se voltar para o último concerto.
Seus olhos mergulharam nos de Renzo, tocando-lhe a alma. O
jovem corou, deliciado, e ia dizer que estava a seu serviço quando,
inesperadamente, Memmi interveio, mal murmurando um pedido
de desculpas antes de afastá-lo de Tolomei.

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- Não deve voltar amanhã – disse, com urgência. – Sua música


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animou nossos espíritos, mas a Lua começa a minguar, e com ela a


energia favorável à nossa permanência aqui. Percebe como
estamos?
- Percebo. – Renzo contemplou com angústia alguns rostos
translúcidos. – Mas e se eu tocar mais?
- Seria inútil. Possivelmente até perigoso, dada sua ligação
com o tempo ao qual pertencemos. E as forças que operam sobre
este lugar são poderosas... Não. Você não pode voltar – disse
Memmi, com decisão. – Na verdade, é melhor que regresse agora
mesmo ao seu mundo.
- Agora? Mas o podestà...
- Shhh! Sei o que ele disse. – Memmi levou um dedo aos
lábios. – E sei o que provocou. Por isso lhe digo que vá antes que
seja tarde.
Empurrou-o para a saída. Perplexo, o jovem não resistiu, mas
um olhar para trás lhe revelou os rostos desapontados de Pietro e
Marco. Andrea estava junto ao podestà, e alguma coisa estalou no
peito de Renzo ao pensar que Tolomei faria dele seu protegido.
Como conseguiu chegar a casa, seria impossível dizer. Não se
sentia pertencer a este mundo. Felizmente, San Gimignano pouco
mudara desde o trecento, e ele encontrou seu caminho pelas ruas
escuras. Na sala, demorou a reconhecer os objetos que o cercavam,
embora não o rosto do rapaz que o fitava cheio de preocupação.
- Renzo! – Marcello estendeu a mão, tocou-lhe o ombro. –
Você está com uma cara estranha... Aconteceu alguma coisa?
- Eu acho que... sim, aconteceu – disse Renzo, lutando para se
manter em foco. – No Palazzo. Memmi disse para eu não voltar
amanhã. Mas preciso, Marcello – afirmou, o nome surgindo com

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dificuldade em seus lábios. – Preciso tocar o último concerto para o


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podestà. Ele prometeu que depois disso me ajudaria.


- Ele quem? – fez o amigo, franzindo a testa. – Ajudar como?
E depois de quê? A gente vai pra Florença amanhã, esqueceu?
- Florença! Não irei. Estou farto de tocar para viandantes no
Ponte Vecchio – declarou Renzo. Marcello ficou parado, fitando-o,
por um longo momento. Depois, começou a rir.
- Ah, tá bom, Renzo. Quer curtir sua paixão por Idade Média,
tudo bem. Fica até legal você falar assim com os turistas. Mas cai na
real. Aqui não dá mais. Eu já comprei as passagens, vamos no
ônibus das três pra Poggibonsi e de lá pegamos o trem.
- Não. Vou tocar no Palazzo – disse Renzo, obstinado.
Marcello respirou fundo, passou os dedos entre os cabelos. Parecia
pensar no que dizer, embora – pensou Renzo – nada mais houvesse
a ser dito entre eles. Estava decidido, não voltaria à vida de trovador
errante, quando Nello Tolomei lhe prometera sua proteção. Um
homem como ele não faltava à palavra dada.
- OK, Renzo. Melhor irmos dormir – disse Marcello, por fim. –
Amanhã a gente conversa.
Acenou, desejando boa noite, e rumou para o quarto. Renzo
ficou onde estava, esperando pelo sono que não veio. Dedicou-se
então a planejar o dia seguinte, quando diria a Marcello que seus
caminhos iriam se separar. Ou talvez nem dissesse. Ele não
entenderia, e, de uma forma ou de outra, ficaria magoado. Por que,
então, criar mais atrito? Era preferível o silêncio.
No dia seguinte, ele agiu o mais naturalmente que pôde. De
manhã, desocupou a casa e entregou a chave ao senhorio, depois
almoçou com Marcello e os americanos, deixando-os dominar a
conversa com sua língua bárbara. Às três, sob um céu carregado de
nuvens negras, entrou com o amigo no ônibus, parado na saída do

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centro histórico. Esperou anunciarem a partida e desceu


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precipitadamente, com o pretexto de ter esquecido uma bolsa no


restaurante. Ainda ouviu a voz de Marcello chamando-o de volta
enquanto atravessava correndo a Porta de San Giovanni. Sem tomar
fôlego, percorreu as ruas até o Palazzo, onde, para sua surpresa, a
corte já dançava ao som das canções de Landini.
- Renzo! – Memmi correu ao seu encontro, o rosto lívido. – O
que faz aqui? A Lua está quase...
- O jovem é benvindo! – trovejou o podestà. Sua expressão,
antes cheia de bonomia, estava contraída pela ira, acentuando a
palidez fantasmagórica das faces.
- Ele veio por sua vontade – afirmou. – Agora, está a meu
serviço... assim como você, Mestre Lippo.
Contrafeito, o pintor se afastou. Renzo subiu ao estrado e
pegou o saltério, pondo-se a acompanhar o grupo de adolescentes.
E, como na noite anterior, a música se apossou dele. Ou mais
que isso: o possuiu. A cada nota do saltério, a cada sílaba entoada, a
sensação era a de mergulhar mais e mais numa espécie de vácuo,
um desvão perdido no tempo, onde a matéria se transmutava em
som e luz. Maravilhado, ele se voltou para os convivas e constatou
que também se transfiguravam, alguns se tornando indistintos
como à chegada, outros conservando definidas as formas que,
contudo, perdiam a densidade. Assim estavam os músicos, bem
como Memmi; assim estava o podestà, cujo manto brilhava envolto
em fosforescência. Seu corpo era tão transparente que se podia ver
através – e foi desse jeito, contemplando seu novo protetor, que
Renzo viu um homem surgir à porta da sala.
- O que está acontecendo? – bradou, avançando por entre os
dançarinos. Renzo precisou piscar para reconhecê-lo. Era Marcello,

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seu antigo companheiro de estrada e também músico. Isso lhe


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permitira entrar no Palazzo.


- Quem são essas pessoas? Ou melhor, o que são? –
perguntou ele, o horror crescendo em seus olhos à medida que
compreendia. Os convivas tinham começado a partir, dissolvendo-
se ora em luz, ora em finíssima névoa. Andrea se esvaneceu entre
duas batidas de tambor, o eco ainda no ar quando Marcello saltou
para o tablado.
- Vamos sair daqui! – Agarrou-lhe os ombros, puxando-o com
urgência para baixo. – Não está vendo? Eles são fantasmas, Renzo!
- Afaste-se! – rugiu Tolomei. – Seu amigo escolheu. Ele me
deve obediência!
- Não! Ele ainda não é um de nós! – gritou Memmi, em
desafio. – A música! Ele precisa parar!
Avançou, precipitando-se para o tablado, mas convivas o
detiveram a um gesto do podestà. Outros correram em direção a
Marcello, mas este foi mais rápido: antes que o alcançassem,
arrancou o saltério das mãos do amigo e o atirou contra uma
parede. Os fantasmas saltaram sobre ele no instante seguinte,
enquanto Renzo, desesperado, se inclinava na tentativa de
recuperar seu instrumento. Estava num canto da sala, não muito
longe, mas suas pernas não lhe obedeciam, obrigando-o a um
esforço enorme para se mover alguns milímetros. Ao seu redor, as
vozes eram um zumbido indistinto, seus olhos enxergando apenas
manchas enquanto alguma coisa dentro dele se torcia e se libertava.
- Acabou – ouviu, indistinta, a voz de Memmi. Depois, um
silêncio – e então o choro alto e descontrolado de Marcello, que
Renzo não compreendeu. Afinal, ele conseguira se mover e pegar o
saltério.

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Embora, reparando bem, tanto o instrumento como suas


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mãos parecessem translúcidos.


- Benvindo! – Pietro riu, ajudando-o a subir no estrado. Marco
estava lá, e Andrea empunhava seu tambor. Voltando-se, Renzo viu
então a plateia outra vez reunida, seus corpos nítidos, luminosos,
acercando-se para presenciar o momento em que o podestà beijaria
seu novo favorito.
E antes que o círculo se fechasse à sua volta ele viu Marcello,
os ombros sacudidos por soluços, debruçado sobre a carne e os
ossos inertes de um rapaz. Que nunca mais, nesta vida, tocaria as
baladas de Francesco Landini.

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Autores

Georgette Silen
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Marcelo Paschoalin
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Romeu Martins
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Miguel Carqueija

Ana Cristina Rodrigues


http://talkativebookworm.wordpress.com/
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M. D. Amado
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Marcelo Galvão
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@magalvao

Ana Lúcia Merege


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Rodrigo Martins (capa): http://striderden.deviantart.com/

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Café de Ontem
Horror – Fantasia – Ficção Científica

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