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A Coleção Pensar, desenvolvida pelo Centro Brasileiro de Filosofia para Crianças, reúne
artigos de filósofos e teóricos da Educação, dirigidos a professores e educadores. Os textos
apresentados apontam para uma nova perspectiva de enfoque educacional, voltada para o
desenvolvimento do pensar.
Lembro-me claramente que naquele momento senti uma pontada de desgosto, não com a
pessoa, mas com o que ela disse. No entanto, não falei nada. Mais tarde, ao refletir,
perguntei a mim mesma porque havia sentido aquilo. Por que havia tido aquela reação tão
forte? Eu mesma havia dito àqueles professores, no livro Filosofia na Sala de Aula, que
um dos principais objetivos de fazer filosofia com crianças no 1º grau era, justamente,
transformar as salas de aula em comunidades de investigação. Além disso, eu mesma
afirmei que tal meta não seria atingida a não ser que os próprios professores vivenciassem o
que seria participar de tal comunidade.
- Talvez,- pensei - justamente porque você não está realmente certa do que seja uma
comunidade de investigação é que se sente tão mal quando um professor lhe devolve suas
próprias palavras nesse tom de satisfação. Talvez, experimente uma pontada de dor porque
suspeita que foi você mesma a responsável por sua própria desilusão.
Então, me lembrei de algo mais. Um longo poema que havia escrito em 1980 e que contava
a história de uma garota chamada Mieke. Na realidade era uma história sobre investigação
e, no final, Mieke, já na meia idade, diz:
Hoje, eu anseio, exatamente como meu avô fazia, pela liberação intelectual de todas as
crianças, e pelo reconhecimento de seus direitos à investigação. Também anseio, como ele
ansiava, por educação de qualidade para todas as crianças. Se elas soubessem lidar com as
ferramentas da investigação e do diálogo, poderiam efetuar sua própria liberação
intelectual. Uma liberação que é pré-requisito para a reforma econômica, política e social.
A educação dialógica, imbuída de investigação, tem que começar bem cedo, quando as
crianças estão nos primeiros anos escolares. E precisa ser reforçada, ano após ano, por
professores que compreendem as crianças e a investigação, e respeitam as idéias das
crianças. Esses professores devem ajudar as crianças a pensar criticamente, de um modo
aberto ainda que rigoroso, construindo sobre as idéias umas das outras, enquanto vivem a
vida da investigação.
À medida que o processo continua, ano após ano, o enfoque deve sempre ser no
aperfeiçoamento da própria investigação, na sua relação com os problemas em discussão. É
esta educação, e somente esse tipo de educação, que capacita as crianças a pensarem por si
mesmas de uma maneira objetiva, consistente e abrangente.
Só tenho 49 anos. Ainda tenho tempo para ensinar às crianças. Agora, quando eu a vejo,
reconheço o que é uma comunidade de investigação. E, estou ficando cada vez melhor em
ajudar crianças a transformarem as salas de aula em tais comunidades.
Mas me seria difícil especificar todas as suas características. É algo que se vive, ano após
ano, de modo que, após um tempo, se torna parte do seu sangue. E se pode tornar isso, uma
realidade para as crianças. (1)
Talvez vivamos certas experiências que sabemos serem genuínas e as reconhecemos como
tal quando as vivenciamos, embora não possamos descrevê-las ou explicá-las com palavras.
Hà, no entanto, algo a respeito da noção comunidade de investigação, seja ela colocada
como a meta do bom ensino ou descrita como experiência vivenciada, que exige análise e
esclarecimento dos critérios identificadores. Sua própria natureza exige, ao menos, uma
tentativa de uma descrição cuidadosa do processo. Senão, como se saberia que a está
vivenciando? Ou, como um professor saberia quando, finalmente, transformou uma classe
em comunidade de investigação?
É verdade que podemos identificar com precisão alguns comportamentos que indicariam
que um aluno estivesse vivenciando o que é participar de uma comunidade de investigação:
A teoria da relatividade mudou o nosso modo de pensar sobre as coisas, incluíndo o próprio
processo da educação. Certamente tem a ver com o que pensamos a respeito da matéria, do
espaço e do tempo. Mas também influencia significativamente o que pensamos sobre
certeza e verdade(2). Atualmente, muitos filósofos diriam que não existe uma certeza
essencial. Outros diriam que em relação à verdade, o melhor que podemos conseguir são
asserções garantidas que estão sempre sujeitas a revisão. Mas será que isso condena as
comunidades de investigação ao relativismo, no qual não existe maneira pela qual se posa
decidir entre teorias ou visões de mundo conflitantes? Não! A participação numa
comunidade de investigação permite aos alunos perceberem os pontos de vista dos outros e
os levarem em conta ao construirem sua própria visào de mundo. O diálogo permanece
sempre aberto. Podemos educar os nossos alunos para identificarem um conceito produtivo
de racionalidade, para terem um conceito mais sensato de como viver bem, e para
desenvolverem uma tolerância mais estudada da diversidade de modos de entender o
mundo em que vivemos. Isso porém só pode ocorrer se os levarmos, desde cedo, a
participar de uma comunidade de investigação comprometida com o princípio da auto-
correção e a dialogar dentro da tradição filosófica que os seres humanos elaboraram até
hoje. Esse diálogo não só é caracterizado pela comunidade, mas também pela
responsabilidade e pelo comprometimento individual.
Pode parecer paradoxal, mas a mente da criança e do jovem tanto é educada como
educável. Quando um filósofo perguntou a um grupo de crianças qual era a diferença entre
esperar e desejar, uma delas respondeu: - Até o dia do Natal podemos esperar e desejar um
determinado presente. Após abrir os presentes, podemos apenas desejar que tivesse sido
alguma outra coisa, mas a esperança acabou. O mesmo filósofo perguntou a outro grupo de
crianças o que seria mais precioso para elas: as fotos tiradas durante as férias na praia ou as
lembranças que elas tivessem das férias. Uma das crianças disse: - Minhas lembranças,
porque jamais serão destruídas. Ao discutir os direitos dos seres humanos e dos animais,
outra criança, na Inglaterra, disse que do ponto de vista religioso, achava que moralmente
era mais errado matar um animal. Os seres humanos tinham a oportunidade de viver uma
outra vida, mas o animal não.
É através do falar com outras pessoas que nos tornamos pessoas. É através do falar com os
outros que o mundo é trazido à realidade. Stº Agostinho nos diz nas Confissões: "...e assim,
aprendi não daqueles que ensinavam, mas daqueles que falavam comigo." A linguagem e o
pensar são atividades que se sobrepõem. Contar nossas idéias aos colegas de classe é criar e
expressar nosso próprio pensar e, de certo modo, criar a nós mesmos. Além disso, como
Collingwood salienta, "a experiência do falar é também uma experiência do ouvir."(3) Ao
falar com os outros, o implícito se torna explícito, e é assim que conhecemos melhor o que
antes só conhecíamos de modo confuso. É desse modo que nos educamos.
Quando uma criança participa de uma comunidade de investigação na sala de aula ela é
colocada em uma situação muito estranha. Quando se pode compreender o que um colega
está dizendo, pode-se atribuir a essa pessoa as idéias que as palavras provocaram em nós.
Isso implica tratar as palavras como se fossem nossas, reconstruindo-as de modo que façam
sentido para nós. E isso é essencial para responder apropriadamente. Se o nosso mundo é
tanto feito como encontrado, (e eu acho que é) então, segue-se que, vir a saber, para a
criança, é um processo tanto de refazê-lo quanto de se referir ao que já existe.
Como desde o nascimento, cada pessoa está cercada por outras pessoas, os seres humanos
se tornam conscientes de si como pessoas e de suas próprias idéias, à medida que se tornam
conscientes dos outros. Compreender outra pessoa é mostrar (enquanto ouvinte) que você
pode atribuir corretamene uma idéia à outra pessoa como orador. Não adquirimos uma
linguagem e depois a colocamos em uso. Possuí-la é usá-la e, no uso, nos tornamos pessoas
em relação ao outro. A descoberta de mim mesma como pessoa é também a descoberta das
outras pessoas à minha volta.(4) Os outros oradores e ouvintes se tornam as fronteiras do eu.
Assim, falar com outros é formar uma comunidade de discurso, uma fusão de pelo menos
duas pessoas, suas idéias, seus sentimentos e suas imaginações.
A esta altura poderíamos, com razão, perguntar se essa comunidade de eterna investigação
chega a algo. Esse processo de eterna auto-correção produz alguma coisa? Existe alguma
concepção verdadeira de racionalidade ou de moralidade; se tudo o que podemos fazer é
nos aproximar dela no diálogo? É aqui que os pensadores diferem. Como Richard Rorty
afirma em seu livro, Philosophy and the Mirror of Nature, alguns acham que tudo que
temos é o próprio diálogo, o eterno processo de auto-correção continuamente sendo
expresso dentro da tradição filosófica. Além disso, ele e outros acham que esse diálogo é
suficiente para tornar o mundo mais razoável, mais humano, pois proporciona o uso de
modos de procedimento pelos quais podemos tornar o mundo um lugar melhor para viver,
um mundo mais razoável. Outros filósofos acham que o fato de podermos falar de nossas
diferentes concepções como diferentes concepções da racionalidade pressupõe uma verdade
absoluta. O próprio fato de podermos concordar que alguns pensadores no passado tenham
sido teimosos, obsecados por uma idéia ou brilhantes em algumas coisas, mas limitados em
outras, pressupõe, ao menos, que tenhamos um ideal regulador de um intelecto justo,
atencioso e equilibrado. Como diz Hilary Putman, "achamos que realmente existe um
porquê e um como para explicar o fato de alguns pensadores não terem alcançado o ideal".
(6)
A noção de uma comunidade de investigação é muito complexa. Pressupõe alguma
noção de verdade que, por sua vez, pressupõe alguma noção de racionalidade que, por sua
vez, pressupõe uma teoria do bem. O bem depende das concepções que possuímos a
respeito de certas coisas tais como, natureza humana, sociedade, pessoas, moralidade e
mesmo, universo. De fato, temos tido que revisar, repetidas vezes, nossas noções de bem,
quando nosso conhecimento empírico aumenta e muda nossa visão de mundo. (7) Mas, o
simples fato dos seres humanos terem mudado suas visões de mundo, pressupõe uma
comunidade de investigação - uma comunidade de pessoas-em-relação, oradores e ouvintes
que se comunicam entre si de modo imparcial e consistente, uma comunidade de pessoas
dispostas a reconstruir o que ouvem umas das outras e submeterem seus pontos de vista ao
processo auto-corretivo da investigação. Nesse ponto, talvez um professor ou um aluno
pergunte, "por que ser racional? É tão complicado. Por que não fazer simplesmente o que
nos ordenam, aceitar o que a maioria pensa e deixar como está? Seria muito mais fácil". A
resposta mais direta que posso pensar para dar a essa pergunta é que o método racional - o
método da investigação - é o único que ajudará os seres humanos a se tornarem pessoas
completas, capazes de ações autônomas, criatividade e auto-conhecimento. É o único
método que eu conheço, que pode ajudar as pessoas a preverem meios para atingir os fins
que consideram significativos e valiosos. É o único método que permitirá fazer previsões e
viver uma vida de auto-realização moralmente satisfatória. Por outro lado, uma vida
satisfatória envolve viver a vida do próprio método, o que pressupõe racionalidade. (Eu
talvez omitisse esse último comentário se estivesse falando com uma criança).
O papel da filosofia no 1º grau é fazer uma ponte entre o antigo e o novo, tornar consciente,
nas palavras das crianças, as idéias fundamentais da cultura e ajudar os alunos, através da
investigação, não só a se apropriarem da tradição, mas revivê-la e reconstruí-la numa
versão mais coerente e significativa - uma versão que faça sentido para eles. O raciocínio
filosófico é, por definição, um raciocínio aberto. Aponta novas maneiras de ver, perceber e
compreender o mundo. É também um método de transformar em realidade essas novas
visões e versões, se forem julgadas válidas. Dá novas esperanças às crianças de hoje em
dia, muitas das quais estão desiludidas com as visões e versões da geração mais velha.
Assim como uma obra de Kandinsky pode ser tão excelente e tão bela quanto uma pintura
de Rembrandt, novos modos de ver o mundo e julgar o que é importante e significativo na
vida humana são sempre possíveis para jovens numa comunidade de investigação(9).
Supondo que tivesse dito tudo isso para aquela professora, no último verão, durante o
treinamento intensivo, quando ela disse, tão orgulhosamente, que ela e seus colegas haviam
formado uma comunidade de investigação em apenas sete dias. - Deu trabalho, - disse ela -
mas nós chegamos lá. Será que ela ainda estaria tão satisfeita se eu tivesse,
cuidadosamente, lhe revelado algumas das minhas reflexões a respeito das pressuposições
do que penso ser participar de uma comunidade de investigação?
NOTAS
2. Hilary Putnam, "Literature, Science and Reflection," in Meaning and The Moral
Sciences," London: Routledge and Kegan Paul. Volta
4. Ibid Volta
6. Hilary Putnam, "Reason and History," in Reason, Truth and History. Cambridge:
Cambridge University Press. Volta
7. Hilary Putnam, "Values, Facts and Cognition," in Reason, Trut and History. Cambridge:
Cambridge University Press. Volta
8. Para uma discussão dessa passagem de uma postura pessoal através de uma postura
cooperativa para uma postura colaborativa, ver Harry Stack Sullivan (1953), Conceptions
of modern Psychiatry. New York: Norton. Volta
10. R.G.Collingwood, Principles of Art p.336. Também com relação ao diálogo, ver
Sherman Stanage, "The personal World" - para Stanage, o diálogo é o verdadeiro encontro,
o envolvimento real, o pleno compromisso. A dialética é a mais íntima aproximação do
diálogo como de fato em processo e conhecido reflexivamente como estando em processo.
É recriação, re-interpretação e transformação do diálogo. Estas idéias estão implícitas em
"Principles of Art". Volta
Mathew Lipman
Atualmente há um grande interesse pelo desenvolvimento das habilidades de raciocínio dos
estudantes das escolas de 1º e 2º graus e das universidades. Para muitos observadores do
quadro educacional, a deficiência nessas habilidades é o cerne do problema da educação
contemporânea.
Certamente em algumas séries o número de estudantes testados foi muito pequeno para que
se pudesse fazer inferências seguras. Mas o resultado final é sugestivo. Parece haver um
progresso gradual entre a 2ª e a 7ª séries e, em seguida, um declínio. E quando finalmente
os calouros universitários são testados - e esses são apenas uma parte da população jovem,
os 60% academicamente mais bem qualificados na sua faixa etária - a performance não
ultrapassa aquela atingida na 6ª série. Tanto os estudantes da 6ª série como os calouros
universitários conseguem responder corretamente a 76% dos itens do teste.
Isso não significa, necessariamente, que os alunos do 1° grau estejam raciocinando tão bem
quanto poderiam. Mas nos ajuda a compreender um pouco melhor porque muitos
estudantes universitários consideram os cursos tão difíceis: na verdade eles os enfrentam
com uma capacidade de raciocínio condizente com a 6ª série.
Para a Filosofia o desafio não é novo. Desde suas origens, tem sido a única disciplina capaz
de dar os critérios - os princípios da lógica - que tornam possível distinguir entre bons e
maus raciocínios. A Filosofia tem se preocupado com o desenvolvimento das habilidades
de raciocínio, com o esclarecimento de conceitos, com a análise dos significados e com o
cultivo de atitudes que levem as pessoas a questionar, investigar e tentar, de várias
maneiras, buscar os significados e a verdade. De fato, a Filosofia tem sido tradicionalmente
caracterizada como um pensar que se dedica ao aprimoramento do pensamento. Portanto,
para que se possa melhor cultivar o raciocínio das crianças e dos jovens, a Filosofia deveria
ser parte essencial do currículo da escola de 1° grau.
Isso não quer dizer que a Filosofia tenha que ser apresentada no 1º e 2º graus como tem
sido tradicionalmente ensinada na universidade. A Filosofia ainda é filosofia quando,
despida de sua terminologia técnica e de sua história de sistemas de pensamentos, retém sua
ênfase na discussão lógica das idéias que são importantes tanto para os alunos quanto para
os professores. Continua a ser Filosofia quando consiste em investigação intelectual
cooperativa e auto-corretiva, não importando se os estudantes em questão são do jardim de
infância ou da universidade. Quando a Filosofia é adicionada ao currículo produz uma
educação genuinamente reflexiva motivando os alunos a conversarem uns com os outros de
maneira disciplinada sobre assuntos essenciais e a pensarem objetivamente sobre seu
próprio pensar.
Mas quais os critérios que deveríamos usar para avaliarmos os vários programas que
propõem desenvolver as habilidades de raciocínio? Parece que dois critérios relevantes são
indispensáveis: um quantitativo e outro qualitativo. O primeiro se refere à aferição do
desenvolvimento das habilidades cognitivas através de testes válidos e seguros. O segundo
refere-se ao significado educacional do programa - no que ajuda o aluno a se tornar um
indivíduo racional, criativo e auto-crítico numa sociedade democrática. É de suma
importância a interdependência desses dois critérios pois, se o primeiro for aperfeiçoado
sem o segundo, o aluno se tornará pouco mais que uma peça de equipamento pensante à
procura de um programador.
Algumas das questões que precisam ser colocadas ao considerarmos a Filosofia como
sendo o veículo para o cultivo da competência do raciocínio são:
Nos primeiros anos escolares, o desvio ocasional da criança do uso gramatical aceito estará
sujeito à censura e correção por parte dos professores. Isso é algo que os professores estão
preparados para fazer - ficar atentos a certos desvios e prontamente corrigí-los. Mas, o
mesmo não ocorre em relação à inabilidade da criança que começa a raciocinar. Raramente
os professores são instruídos de modo a estarem preparados para vigiarem os tropeços
lógicos de seus alunos, e a terem informações suficientes para corrigir tais erros com
segurança. É tido como certo que as habilidades de raciocínio primárias são adquiridas
durante a aquisição da linguagem - o que em si não é uma pressuposição descabível. Mas,
também é tido como certo que nas escolas não é necessário tomar nenhuma providência
para diagnosticar ou corrigir deficiências de raciocínio, apesar de empregarem especialistas
para o diagnóstico e a correção de deficiências em leitura.
Com isto não estamos querendo sugerir que os professores falham em modelar raciocínio
correto diante de seus alunos ou que deixem de envolver seus alunos na realização de
inferências. O fato é que eles fazem isso sem se dar conta que o fazem. Consideremos as
tão familiares expressões dos professores: Estou ouvindo conversas, ou Não estou vendo
nenhuma mão levantada. Os professores não dizem tais coisas por estarem buscando
confirmação da classe a respeito de algum fato. Essas observações funcionam como a
premissa menor de um silogismo condicional cuja premissa maior é omitida (entimema).
Os alunos, mesmo nos primeiros anos escolares, são capazes de suprir as premisssas
omitidas - Se eu ouço conversa, terei que interromper a aula, ou Se você sabe a resposta,
levante a mão. Eles, então, ao lidarem com as regras de silogismos condicionais, fazem as
inferências apropriadas - Se você sabe a resposta, levante a mão. Eu não vejo nenhuma
mão levantada. Portanto, vocês não devem saber a resposta. Os professores geralmente
não se apercebem do valor que tais expressões têm para estimular as habilidades de
raciocínio. Infelizmente, eles também desconhecem os passos que devem ser dados quando
os alunos tropeçam nas exigências lógicas. Quando os professores não são capazes de
reconhecer falhas de raciocínio na sala de aula (como por exemplo, inconsistências, auto-
contradições, etc) ou não estão preparados para remediar aquelas que constatam, os alunos
com deficiências elementares de raciocínio estarão condenados, durante os anos escolares -
e durante toda a vida - a enfrentar da melhor maneira que puderem, um mundo que espera e
exige deles logicidade e racionalidade. De algum modo, muitos conseguem passar
desapercebidos, mas só parcialmente. Eles talvez desenvolvam técnicas de auto-
preservação, afim de camuflarem suas incapacidades, transformando-as em fraquezas
inocentes e charmosas, ou evitando situações em que a habilidade de raciocínio seja
obrigatória. Todavia, enquanto aceitarmos como verdadeiro que as habilidades de
raciocínio são suficientemente aprendidas na primeira infância e que não necessitam
nenhuma atenção subsequente das escolas, deixaremos os alunos abandonados, para nadar
ou naufragar e, muitos deles certamente, mais cedo ou mais tarde, começarão a naufragar.
Seria melhor dar uma parada neste ponto para mencionar duas concepções errôneas muito
em voga. A primeira tem a ver com a relação entre habilidades primárias de raciocínio e as
assim chamadas habilidades básicas tais como ler, escrever e calcular. Ler, escrever e
calcular são de fato básicas em relação ao desenvolvimento educacional subsequente, pois
sem elas dificilmente podemos nos habilitar nas disciplinas acadêmicas com as quais nos
deparamos desde a escola primária e que são característica da escola secundária e da
educação universitária. Mas ler, escrever, falar, escutar com atenção e calcular são mega-
habilidades incrivelmente complexas e sofisticadas, são orquestrações de um grande
número de habilidades e atos mentais altamente diversificados que foram previamente
desenvolvidos. Racionar não é outra dessas mega-habilidades; é, pelo contrário, o seu
próprio alicerce e é fundamental para que se desenvolvam. Entretanto, se analisarmos, até
mesmo esses fundamentos são multi-nivelados e uma de nossas maiores tarefas é
desembaraçar e ordenar a galáxia de componentes cognitivos que devem ser coordenados
até mesmo num simples ato de ler, escrever, falar, escutar atentamente ou calcular. (1)
Já que a importância do raciocínio tem sido reconhecida por milhares de anos, como pode
ter acontecido que o cultivo das habilidades de raciocínio tenha sido sistematicamente
omitido dos currículos das escolas de 1º e 2º graus? Sem dúvida os filósofos, guardiões da
sub-disciplina da lógica, deveriam ter elevado suas vozes mais vigorosamente em favor da
instrução filosófica desde cedo. As escolas de educação deviam ter colocado o cultivo do
diálogo e do pensamento reflexivo ao invés do aprendizado e da administração escolar
como sendo o fundamental na preparação de professores. Os taxonomistas dos objetivos
educacionais deviam ter reconhecido que as habilidades de investigação, às quais dão tanta
importância em suas taxonomias, não seriam adquiridas sem os requisitos da linguagem e
das habilidades de raciocínio. (2) E os psicólogos, ávidos em preservar o raciocínio como
um indicador inigualável do processo cognitivo, deviam ter se questionado a respeito das
implicações éticas ao declararem que o raciocínio não poderia ser ensinado sabendo que,
como consequência, ele não seria ensinado. Mas, tudo isso talvez já esteja no passado e
parece que estamos em situação de apresentar algo de promissor na questão do
aperfeiçoamento da habilidade de raciocínio.2. Ensinar
A Filosofia pode ser ensinada de várias maneiras às crianças desde o jardim de infância até
a universidade. Isso não tem que ser feito da maneira que nós do Institute for the
Advancement of Philosophy for Children temos feito, mas somente podemos relatar a nossa
própria experiência. Temos verificado que textos filosóficos para crianças são realmente
essenciais embora possam sem escritos como novelas, ao invés da forma abstrata e didática
dos textos tradicionais. Às crianças que são personagens das novelas não são ensinados, por
exemplo, os princípios da lógica, mas elas os descobrem por si mesmas no processo de
discussão de conceitos filosóficos que lhes são importantes, tais como justiça, amizade e
verdade. Na sala de aula os alunos discutem essas descobertas de uma maneira cooperativa.
Se alguns oferecem generalizações, outros podem oferecer contra-exemplos; se alguns
emitem opiniões sem razões, estas são prontamente exigidas. Eles, aos poucos, vão
descobrindo inconsistências em seus próprios pensamentos. Com o passar do tempo, eles
aprendem a cooperar entre si elaborando sobre as idéias uns dos outros, questionando
reciprocamente pressuposições subjacentes, sugerindo alternativas onde alguns se sentem
bloqueados e frustados, e ouvindo atenta e respeitosamente outras pessoas expressarem os
seus pontos de vista. É através desse diálogo disciplinado que uma comunidade de
investigação começa a se desenvolver na sala de aula. Quando os participantes de tal
comunidade percebem inteiramente o processo no qual tomam parte, eles o internalizam e
ele se torna um método de abordar cada uma das disciplinas acadêmicas na escola. Além
disso, quando o comportamento auto-corretivo do grupo é internalizado, torna-se uma
atitude auto-crítica e auto-corretiva no indivíduo e isso pode ser expresso de maneira
comportamental na forma de maior capacidade de auto-controle.
Haverá aqueles que dirão que pode não ser muito útil adicionar mais uma disciplina - a
Filosofia - a um currículo já abarrotado e cujos componentes os alunos recebem de maneira
fragamentada e desarticulada. Mas, a adição da Filosofia aliviaria mais do que exacerbaria
esta situação. As principais divisões ou sub-disciplinas da Filosofia representam
abordagens que se cruzam em ângulos retos com as matérias já existentes no currículo e as
funde em um conjunto conexo:
Este quadro não representa a adição de novas e desarticuladas áreas de estudo ao currículo
existente; representa, ao contrário, o desenvolvimento da compreensão dos aspectos
lógicos, estéticos, éticos e epistomológicos já presentes nas matérias que os alunos estudam
agora, mas que são negligenciados em virtude da falta da Filosofia no currículo.
É evidente que há necessidade de cursos de Filosofia no decorrer de todos os anos
escolares, desde o jardim de infância até o 2º grau. O cultivo do raciocínio não pode ser
levado a cabo a não ser que haja um critério para se distinguir entre bom e mau raciocínio e
somente a Filosofia fornece tal critério.
Alguns educadores, após esta leitura, podem alegar que a filosofia não poderá ser disciplina
obrigatória em todas as séries sem uma total reorganização curricular. Diversas disciplinas
talvez tenham que ser aparadas e isso fará com que vários grupos de profissionais se
coloquem na defensiva. Podemos somente questionar se os educadores estão preparados
para defender cada fragmento do que está presentemente sendo ensinado como sendo
essencial para que uma pessoa seja verdadeiramente educada numa verdadeira sociedade
democrática. Suspeitamos que muito do que atualmente é ensinado, não tem outra razão de
ser que não a de que é o que se costuma fazer - a mesma razão pela qual a filosofia tem sido
excluída. Os educadores podem, certamente, reconhecer que o argumento para a inserção
da filosofia no currículo é muito mais forte do que o argumento para a retenção de muito do
que existe hoje - e, no entanto, preferir se calar e nada fazer. Mas há outros cenários e
podemos perfeitamente escolher um melhor.
Notas
A COMUNIDADE DE INVESTIGAÇÃO
Um dos objetivos da educação diz respeito ao bem pensar. Não queremos com isso dizer
que os conteúdos a ser pensados devam ser aprendidos e decorados; queremos dizer que as
crianças devem ter oportunidades de exercitar o bem pensar de maneira deliberada e
consciente, para que possam depois 'pensar por si mesmas' sobre os assuntos mais diversos
que a vida lhes apresente. A melhor forma que conhecemos de alguém vivenciar esta
experiência é a dada pela comunidade de investigação.
As questões abertas têm sua morada na filosofia. Tanto o tratamento das questões abertas
(como por exemplo, O que é verdade? O que é espaço?) quanto a discussão dos métodos da
investigação são temas recorrentes na filosofia. É portanto natural que, inicialmente, a
Comunidade de Investigação seja uma comunidade de investigação filosófica.
Philip Cam diz que a discussão em sala de aula é "uma discussão em que as crianças fazem
perguntas umas às outras, dão razões umas às outras, escutam o ponto de vista do outro, e
assim por diante, com relação a todos os procedimentos (...) Essa é obviamente uma
atividade cooperativa, na qual a classe se torna uma comunidade de pessoas investigando
juntas - o que Lipman chama uma comunidade de investigação. Como a investigação é
filosófica, podemos dizer que é uma comunidade de investigação filosófica."
A PRÉ-ESCOLA
Quando nos propomos a falar sobre a pré-escola no Brasil, não podemos ignorar o
pluralismo pedagógico, cultural, filosófico e político presente nas escolas do nosso país.
Muitas experiências são realizadas, a partir de reflexões pedagógicas desenvolvidas e
aprofundadas, buscando uma melhor prática educacional.
Não encontramos mais a visão de pré-escola apenas como um lugar adequado para dar
assistência às crianças enquanto os pais trabalham, ou como forma de compensação de
possíveis desvantagens sócio-culturais.
A pré-escola, hoje em dia, é vista e assumida com um verdadeiro papel de escola, sendo ela
o início de todo o sistema escolar.
Para tal, tornou-se necessário especificar algumas funções próprias desse período escolar.
De um modo geral, podemos propô-las sob dois aspectos diferentes:
"A determinação das finalidades da pré-escola deriva da visão da criança como sujeito
ativo, empenhado num processo de contínua interação com as outras crianças, com os
adultos, com o ambiente e com a cultura.". (SINASCEL-CISL, 1991)
Quando a criança ingressa na pré-escola, já tem uma história pessoal, já assume posturas
diferenciadas e complexas diante da realidade. É ativo, curioso, interessado em conhecer e
entender, capaz de interagir com os outros e de procurar mediações para conhecer e
modificar a realidade.
Estas atitudes básicas da criança, capacidades que ela traz consigo ao ingressar na escola,
exigem do educador uma contínua disponibilidade para dar espaço às suas perguntas,
questionamentos e formas de expressão, evitando oferecer respostas pré-maturas e
incentivando as crianças a buscar as respostas.
A pré-escola, através de uma boa proposta curricular, deve assumir de forma explicita e
coerente o seu papel educacional, articulando e orientando as atividades da escola para que
a criança seja estimulada e desafiada a construir novos conhecimentos.
A interessante indicação curricular para a pré-escola encontrada no texto da Segreteria
Nazionale del SINASCEL-CISL, parte das diversas áreas de experiência educativa da
criança como percursos metodológicos que oferecem às crianças boas condições de
aprendizagem.
Segundo Tiziano Loschi, "dentro de cada área de experiência, acontece sempre uma
interação entre a criança que age e o ambiente que a circunda, uma interação dinâmica, com
a qual a criança dá significado às suas atividades, desenvolve aprendizagem, adquire o
instrumental lingüistico." (p.13)
Queremos que as crianças pensem, ajam de maneira ética, levem em conta os outros,
tenham competência cognitiva, se expressem bem mas queremos também que sejam
criativas, solidárias e investigativas, além de emotivas e afetuosas.
Bertrand Russell, em Os Problemas da Filosofia, diz que a filosofia "se não pode responder
tantas questões quanto poderíamos desejar, tem ao menos o poder de fazer as perguntas que
aumentam o interesse do mundo, e mostram a estranheza e o maravilhamento que pairam
logo abaixo da superfície mesmo das coisas mais comuns da vida cotidiana."
O trabalho da Comunidade de Investigação não é desprovido de emoções, mas sua
especificidade é a racionalidade. Esse trabalho porém, não acontece de maneira isolada. No
desenrolar de um (ou muitos) anos de trabalho em Comunidade de Investigação as pessoas,
sejam crianças ou adultos, desenvolvem habilidades de caráter ético, afetivo, criativo, e
cognitivo. Dr. Lipman tem afirmado que o pensamento tem três dimensões: o pensar
crítico, o pensar criativo e o pensar atencioso (caring thinking).
Na faixa etária da pré-escola a criança ainda está desenvolvendo o uso da linguagem. Usar
a linguagem implica ser capaz de entender mensagens e ser capaz de comunicar mensagens.
Existem muitas formas de linguagem não verbal que utilizamos todos os dias como, por
exemplo, a linguagem corporal ou dos gestos.
No que diz respeito a entender a comunicação dos outros, não basta a criança entender
quais foram as palavras utilizadas. É necessário que ela entenda o significado do que está
sendo dito. Essa não é uma tarefa fácil, principalmente para crianças. Muitas palavras são
desconhecidas, muitas situações expressas são novas e muitas palavras são ambíguas e nem
sempre é imediato saber qual dos significados está sendo considerado.
Quanto antes as crianças forem chamadas a ler e ouvir com a necessária atenção, mais cedo
poderão comunicar-se com competência o que, além de efeitos cognitivos positivos gera
também benefícios afetivos. Comunicar-se eficazmente é mais fácil, mais produtivo e mais
agradável.
Num mundo tão variado e maravilhoso como é o nosso, parece necessário que a pré-escola
cuide para que a criança tenha um espaço seguro onde possa expressar e discutir as
perplexidades que encontra. Isso não quer dizer que a Comunidade de Investigação deva ser
um espaço onde impere o espontaneísmo. Uma Educação para o Pensar deve trabalhar de
forma bastante organizada. As questões que a classe discute são as levantadas pelas
crianças a partir de um texto (que pode ser lido pelas crianças ou pelo professor, ou talvez
representado). Além das discussões das questões, algumas habilidades presentes no texto
são trabalhadas, registros são feitos, assim como brincadeiras e atividades pertinentes aos
conteúdos abordados. Passa-se, então, à leitura do episódio ou capítulo seguinte. Temas
intrigantes e instigantes devem estar espalhados como iscas em textos especialmente
concebidos para este fim. Mesmo que algumas iscas não sejam fisgadas pelas crianças
como sendo de seu interesse, outras serão, e as primeiras provavelmente reaparecerão em
textos futuros e poderão ser fisgadas.
A preocupação não deveria ser discutir esse ou aquele tema, mas sim, discutir de maneira
aberta os temas que surgirem na classe a partir do texto. Não é tema da Comunidade de
Investigação se uma aluna da classe estava certa ou errada ao pegar um objeto de um colega
sem pedir permissão mas, se o texto assim sugerir, as crianças podem tentar estabelecer se e
em quais condições seria correto alguém pegar algo de outra pessoa sem pedir permissão.
Histórias pessoais e fatos da realidade entram na discussão como exemplos, mas não são
objeto de investigação por parte da Comunidade de Investigação. Isso deve ser feito por
outra instância, num momento que não seja o reservado para o trabalho, derivado do texto,
da Comunidade de Investigação.
A Comunidade de Investigação não é a ‘roda’ presente em muitas escolas e sua função não
é nem ser doutrinária, nem moralista, nem terapêutica ou disciplinadora. Na ‘roda’ os
alunos também falam mas, geralmente é sobre qualquer coisa que queiram comunicar,
como o presente que ganharam, o passeio que farão ou a briga com algum colega. Na
Comunidade de Investigação a pauta é determinada pelo grupo, mas o contexto está dado
pelos temas sugeridos num texto e implica, necessariamente, uma discussão das questões
levantadas. Na Comunidade de Investigação há diálogo, enquanto na ‘roda’ há uma
conversa espontânea, muitas vezes parecida com uma contação de casos. Como as crianças
podem falar o que querem, as outras nem sempre se preocupam em ouvir e a troca se faz na
direção aluno-professor-aluno, outro aluno-professor-outro aluno, outro aluno-professor-
outro aluno e assim por diante.
Para que uma conversa possa ser considerada diálogo Splitter e Sharp apontam condições
necessárias:
Se acreditamos que as crianças se tornarão mais capazes de cooperar sabendo que há boas
razões e razões injustificadas e se queremos que elas sejam capazes de distinguir umas das
outras, então é preciso que tenham a oportunidade, tão cedo quanto possível, de exercitar
esta distinção, e de perceber que ao avaliarmos razões utilizamos critérios e , dependendo
do critério, uma razão pode ser considerada melhor ou pior. Quando, ao vesti-lo, a mãe
explica ao filho pequeno que é preciso colocar casaco porque está fazendo frio ela está
dando a ele a razão pela qual ele deve vestir o casaco. O critério utilizado é a temperatura
ambiente.
Na Introdução do Manual Instrucional de Elfie Dr.Lipman afirma: "Antes mesmo de
entrarmos na escola, aprendemos que, independente de quão satisfatórios nos pareçam, os
nossos atos e as nossas opiniões são muitas vezes considerados questionáveis pelas outras
pessoas. Nesse período estamos no processo de aprender que temos de fazer mais do que
meramente explicar o que dissemos e fizemos: temos de justificar nossas façanhas e
comentários questionáveis. Não apenas dizer qual foi a causa de eu fazer isso, mas qual era
meu propósito ao fazê-lo. Não apenas como cheguei a ter uma certa opinião, mas qual é
minha razão para continuar a mantê-la. Não apenas as condições que me compeliram a
fazer um juízo, mas quais os critérios que me guiaram ao fazê-lo."
No primeiro capítulo do Thinking Together, Philip Cam escreve que existem atividades que
fazemos melhor se pensamos ao fazê-las e existem outras que fazemos melhor se não
pensamos ao fazê-las. As primeiras são as práticas reflexivas. As pessoas devem executar
bem os dois tipos de atividade: acertar a grafia das palavras sem pensar muito para escrever
corretamente é bom , mas agir sem pensar nas conseqüências não é. A conduta sábia
examina as possibilidades antes de agir. Já as pessoas que não estão acostumadas a
examinar mais de um ponto de vista são pensadores dogmáticos, não imaginativos e
inflexíveis. Para que os alunos possam tornar-se inteligentes em seu pensamento e
arrazoados em suas ações, a escola deve trabalhar os dois tipos de habilidade em sala de
aula, as habilidades rotineiras e as reflexivas.
Numa Educação para o Pensar os textos, inclusive os destinados à pré-escola, devem ser
construídos de modo a que diversas habilidades cognitivas e de raciocínio apareçam, dando
ao professor e às crianças a oportunidade de as exercitar. Elas são ferramentas básicas
empregadas nas investigações filosóficas ao se realizar os procedimentos básicos do
pensamento reflexivo.
Quando estas ferramentas são apresentadas sem seus nomes técnicos e aplicadas a situações
de fácil compreensão, as crianças de 5 a 7 anos são capazes de as utilizar e realizar os
procedimentos básicos para investigar a fundo uma questão de seu interesse. A função do
professor é muito importante pois se a proposta completa do trabalho não estiver clara para
ele, não será possível que coordene bem o trabalho das crianças. Alguns nomes técnicos
podem aos poucos ser introduzidos, quando a habilidade for de domínio dos alunos.
Quando as crianças aprendem, por exemplo, a procurar conseqüências significativas na aula
de Filosofia, elas transferem essa aprendizagem para os outros campos de sua vida e a
incorporam como hábito. O mesmo ocorre com os outros procedimentos e com as
ferramentas do bem pensar.
O trabalho de Educação para o Pensar, realizado com textos especialmente construídos para
esse fim, e feito na forma da Comunidade de Investigação, quando constante e bem
coordenado, propicia aos participantes do grupo (inclusive o professor) verdadeiro prazer
intelectual e afetivo, daqueles que deixam suas marcas ‘para sempre’. Por este motivo, além
de todos os outros acima apresentados, afirmamos que quanto antes for a ‘primeira vez’
mais oportunidades (na escola e fora dela) os alunos terão de desfrutar este prazer. Alunos
que tenham vivenciado a alegria de participar de uma verdadeira Comunidade de
Investigação na pré-escola irão demandar que ela continue existindo no primeiro grau.
Professores que vivenciem uma verdadeira Comunidade de Investigação com seus alunos
relutarão em trabalhar apenas nos velhos moldes.
Splitter e Sharp dizem: "De uma perspectiva mais ampla, a inabilidade - acoplada a uma
falta de desejo - para envolver-se numa conversação séria é um traço das sociedades no
mundo todo (mais em algumas do que em outras), e é dramática demais para sugerir que
muito do conflito no qual o mundo hoje se encontra poderia ter sido evitado, e quase
certamente poderia ser resolvido, se os principais envolvidos fossem capazes e estivessem
inclinados a se engajar em diálogo uns com os outros."
Para a Educação para o Pensar, 5 a 7 anos não é cedo demais para começar a trabalhar na
Comuinidade de Investigação. As crianças são capazes de se envolver em discussões
coerentes, aprofundadas (ao nível delas, não de um grupo de adultos) e devem ser
estimuladas a buscar, no espaço da Comunidade de Investigação, a razoabilidade tão
necessária para a vida de hoje e de amanhã. O verdadeiro diálogo não existe sem ela e, sem
a perspectiva da possibilidade de diálogo efetivo fica difícil imaginar um futuro melhor. E
nós não desistimos do futuro melhor.
Bibliografia:
Borghi, Quinto, Le cose, il tempo e la natura. Bologna, Nicola Milano Editore, 1993
Cam, Philip, Thinking Together; Philosophical Inquiry for the Classroom. Sydney, Primary
English Teacher Association and Hale & Iremonger, 1995.
Cunha, Marcus Vinícius da, John Dewey - Uma filosofia para educadores em sala de aula.
Petrópolis, Editora Vozes, 1994
Lipman, Matthew; Sharp, Ann M. e Oscanyan, Frederick S.. Filosofia na Sala de Aula,
trad. de Ana Luiza Fernandes Falcone. São Paulo, Nova Alexandria, 1994.
Lipman, Matthew; Gazzard, Ann, Getting Our Thoughts Togother; Instructional Manual to
Accompany Elfie. Upper Montclair, IAPC, 1988.
Mandel, Sylvia; Reed, Ronald, Rebeca: Manual de Instruções. (trad. da autora) São Paulo,
Difusão de Educação e Cultura, Filosofia para Crianças, 1996.
Matthews, Gareth, Phylosophy and the Young Child. Cambridge, Harvard University Press,
1980
Splitter, Laurance; Sharp, Ann M., Teaching for Better Thinking; The Classroom
Community of Inquiry, Melbourne, ACER, 1995.
A educação deve procurar produzir agentes morais, inteligentes, sinceros e autônomos que
possam emitir juízos corretos e razoados.
Se admitirmos que a educação tem esses dois papéis, socialização e autonomia, então
segue-se que também tem uma dimensão espiritual. A relação entre autonomia e
espiritualidade tem sido explorada por muitos filósofos ocidentais e orientais: Santo
Agostinho, Spinoza, Martin Buber, Gabriel Marcel, J. Maritain, Pascal e S. Tomás de
Aquino, para mencionar somente alguns.1
Um dos maiores perigos hoje em dia, é que a educação tem abandonando seus objetivos de
autonomia e se resignado a ser nada mais que um instrumento de socialização. Uma
evidência disso é a submissão do estabelecimento educacional a estimular a mídia destinada
a atrair o visual infantil, mídia que é contraproducente em auxiliar as crianças a dominarem
as ferramentas da investigação que são um pré-requisito de sua própria autonomia
intelectual. Agora, talvez mais que nunca, os valores sociais e intelectuais frívolos são
capazes de seduzir as mentes jovens.
Sabemos que se a próxima geração deve emitir juízos morais e políticos corretos em
relação aos problemas de nossa sociedade, as crianças de hoje devem aprender um método
para avaliar sua sociedade e seu estado ideal e atual. Elas devem ser incentivadas a
questionar seus próprios valores, assim como os valores universais da sociedades dentro do
contexto de uma comunidade de investigação. Isso é educação moral em sua mais ampla
acepção. "Quando realmente utilizamos método, é que realmente começamos a existir...Nas
ações que têm método, nós agimos...nós realmente agimos."2 Essa educação não seria
apenas filosófica mas também espiritual no sentido mais profundo. Ela levaria à criação de
um mundo mais justo, mais bonito e melhor.
A internalização do método da investigação requer tempo, e precisa de professores que
entendam de crianças, de raciocínio e de pedagogia. Não há dúvida de que as crianças
podem pensar por si mesmas a respeito de qualquer tipo de assunto. Para perceber a
sofisticação de seus raciocínios, precisamos apenas escutar uma conversa entre dois jovens
de 5a. série.3 Atualmente, em educação é quase um lugar comum dizer que o conhecimento
ou o saber não residem só nos livros e nos discursos. Um livro não pode responder, não
pode questionar de maneira que o leitor fique ciente das pressuposições subjacentes e
comece a questionar essas pressuposições. (Uma exceção seriam os trabalhos de Plantão,
Nietzsche e Wittgenstein, que forçam o leitor a entrar no diálogo com o autor). Um
discurso não permite que as descobertas cumulativas de uma sala de aula formem uma
comunidade de investigação cooperativa, comprometida em explorar os assuntos de uma
maneira racional e metódica.
Mas se os livros e os discursos não são adequados, o que seria? A educação dialógica
comprometida com a investigação em comunidade! De qualquer forma, as crianças
precisam ser redirecionadas para que possam iniciar o processo de entender o pensar, os
vários estilos de pensar e os critérios para destinguir o bom pensar do pensar descuidado,
dentro de uma comunidade de sala de aula. Esse pensar melhor logo se transferiria para um
melhor falar, escrever e ler. Além disso, daria às crianças as ferramentas que necessitam
para pensar por si mesmas sobre quem são e sobre o que suas condutas devem refletir. As
crianças devem ser incentivadas a pensar sobre que tipo de pessoas gostariam de ser e em
que tipo de mundo gostariam de viver. Às crianças deveriam também ser dados os meios
para criarem uma sociedade e um mundo qualitativamente melhor.
A única disciplina que pode enfrentar esse desafio é a filosofia. Por 2.500 anos ela tem se
aperfeiçoado em pensar a respeito de assuntos importantes. Ao fazer filosofia é que as
crianças, aos poucos, começam a prestar atenção em seu pensar e na relação entre seus
pensamentos e suas ações. Essa auto-consciência surge concomitantemente com o
enriquecimento do intelecto. É a filosofia que capacita as pessoas, tanto adultos como
crianças, a verem os acontecimentos do dia-a-dia de modo questionador. Aos poucos, as
crianças começam a pensar sobre as conseqüências de suas ações e o que deveriam levar
em consideração ao fazer um juízo moral ou social. Além disso, elas começam a se
perguntar em que ações devem se engajar agora, se querem atingir certos fins no futuro. Se
uma criança quer ser uma certa pessoa daqui há cinco anos, tem que se perguntar o que
deve ser feito agora para que esse ideal se torne uma realidade. É aqui que a investigação
em comunidade é muito enriquecedora. As crianças começam a perguntar umas às outras
sobre pressuposições subjacentes, sobre como devem escolher suas idéias, suas ações e suas
crenças.
Nos diálogos de Platão, é evidente que o leitor adquire pouco conhecimento de Sócrates.
Contudo, o leitor se torna consciente do método de investigação que Sócrates geralmente
emprega. Ele usa o mesmo método quando está falando com um adulto ou com uma
criança. O método envolve o diálogo (em geral entre duas pessoas) e um compromisso
consciente com a consistência, objetividade e abrangência, assim como o respeito pelas
idéias e pelas pessoas que sustentam essas idéias.
Mas, será que os professores poderiam ser ensinados a transformar as salas de aulas em
comunidades de investigação? Será que eles poderiam ser preparados para dirigir
discussões filosóficas entre as crianças como um maestro que rege uma orquestra? Se
podem, como iríamos preparar tais professores? Uma coisa é certa: levaria tempo e
envolveria uma revolução total no conceito de educação de professores. Os professores em
perspectiva teriam que ser preparados para pensar em determinadas disciplinas e a
comunicar esse processo ativo a seus alunos ao invés de somente transmitir-lhe fatos. No
início, os professores deveriam trabalhar sob a supervisão e acompanhamento direto de um
monitor e começar com conceitos simples e atraentes que se relacionem diretamente com a
experiência das crianças. Então, em seguida, o professor passaria para a construção de uma
consciência de grupo e ajudaria as crianças a perceberem a estrutura do raciocínio em
comunidade.
São Tomas de Aquino, em seus escritos sobre educação, mostra que, em certo sentido, os
professores são periféricos quanto ao engajamento das crianças no pensar, ouvir e
investigar. A criança é o centro, não o professor. As crianças ensinam-se a si mesmas
quando, em comunidade, exploram as idéias e passam a investigá-las. Mas, em outro
sentido, o professor é crucial. É ele que tem que ter a habilidade de captar o momento certo
em que a criança estará disposta para tratar o assunto com atenção.
Mas como seria se tanto o professor como os alunos fossem realmente questionadores a
respeito de muitas coisas? Nessa situação, as crianças teriam uma boa chance de fazer
filosofia juntas, isto é, se o professor possuisse as ferramentas necessária para guiar uma
discussão filosófica. Mas o que acontece se as perguntas filosóficas não vierem dos alunos?
Isso não é raro, principalmente no início do processo quando não têm certeza se podem
confiar no professor ou mesmo em si próprios. O que fazer, então? Esperar? Não! É nessa
hora que o professor deve propor experiências que provoquem indagações filosóficas. Os
professores e os alunos podem ler e discutir os textos de Filosofia para Crianças.5 Podemos
também usar filmes, contos de fada, literatura infantil, revistas em quadrinhos, desde que
estejam salpicados com temas filosóficos que interessem ás crianças e que o professor saiba
como dirigir a investigação filosófica de maneira rigorosa.
Não é uma questão de ou isso ou aquilo. Podemos usar vários veículos ao mesmo tempo
como trampolins para a investigação, enquanto percebemos as implicações filosóficas ou
lógicas do discurso diário das crianças. Disto temos um belíssimo exemplo na discussão de
Santo Agostinho com seus discípulos em Cassicíaco (geralmente denominado como
"Divina Providência e o Problema do Diabo"). Á medida que a classe se torna mais
habilidosa nas regras da investigação, há uma boa possibilidade de que comecem a apreciar
uma discussão mais rigorosa e estruturada e, ao mesmo tempo, a perceber a dimensão
filosófica da própria conversação.
O professor tem que estar atento ao fato de que algumas questões são mais frutíferas para o
diálogo filosófico. É aqui que a formação acadêmica em filosofia, teologia e pedagogia é
tão importante. Não é que o professor tenha que saber a resposta; ou melhor, é a formação
acadêmica em filosofia, teologia e pedagogia, unida à participação diária na investigação
em comunidade, que coloca o professor em situação de saber que questões não serão
educativas e quais delas o serão.
Uma vez que a discussão esteja se desenrolando, o professor pode facilitar a formação de
uma comunidade em sala de aula fazendo perguntas como estas:
- Será que você pode ajudar o colega a expressar seu pensamento mais claramente?
Entretanto, devemos ter cuidado para não confundir a evidência de uma comunidade de
investigação, que está começando a surgir, com um simples bate-papo. Se o tema em
discussão é interessante para as crianças, provavelmente elas exigirão algumas regras de
procedimento para que possam ser ouvidas. É melhor esperar até que os alunos busquem
um procedimento aceitável por todos aos invés de impor-lhe um logo de início.
Nesta altura, o professor deve sugerir algumas regras ou pedir aos alunos que eles mesmos
as criem. Algumas regras a serem sugeridas podem ser:
Estas são apenas 14. Provavelmente os alunos poderão vir com mais 14, se lhe derem
tempo. O importante é admitir a necessidade de regras de procedimento desenvolvidas a
partir das discussões das crianças, ao invés de impor uma série de regras logo no início.
O ensino dialógico força os alunos a pensarem sobre o significado de suas palavras e sobre
as conseqüências de suas opiniões, assim como de suas ações. Por estarem participando
ativamente de todos os assuntos em discussão, começam a vivenciar a relação entre teoria e
prática, em contraste com falar sobre. Uma das pressuposições do método é que deliberar
com os outros é um caminho mais seguro para a verdade e para o significado do que uma
reflexão solitária ou a memorização do discurso do professor.6
Uma educação dialógica em que as crianças são incentivadas a investigar, entre si mesmas,
sobre amor, integridade, verdade, regras, padrões, respeito, amizade, identidade,
propriedade, liberdade e justiça é um processo que pode guiar as crianças em direção a um
estágio moral que elas já internalizaram. O benefício dessa educação fica evidente na
capacidade das crianças de responder eticamente, se surgir a necessidade.7
As leis morais não são o tipo de coisa que pode ser provada. Como Wittgenstein uma vez
disse numa aula de ética: "Minha tendência e, acredito, a tendência de todos os homens que
tentaram escrever sobre ética, era ir além das fronteiras da língua.... A ética, na medida em
que provém do desejo de dizer algo sobre o sentido último da vida, o bem absoluto, o valor
absoluto, pode não ser ciência....Mas é um documento da tendência da mente humana que
eu, pessoalmente, não posso deixar de respeitar profundamente". O que consideramos como
ação moralmente certa é mais o resultado de um juízo estético, da habilidade de perceber a
ação apropriada num determinado contexto, do que de qualquer abordagem científica.
No entanto, há uma grande diferença entre agir irrefletidamente e agir após ter tido muita
prática em pensar cuidadosamente e levar tudo em consideração, inclusive as
conseqüências de nossas ações. Essa habilidade de pensar leva anos de imersão no diálogo
filosófico. Num certo sentido, tornar-se um agente moral é como se tornar um artista;
ambos estão comprometidos em criar uma harmonia. A vida do artista envolve anos de
observação, experimentação, estudo da obra dos artistas do passado, trabalho sob a
orientação de um mestre, desenvolvimento de um certo senso de cor, textura, proporção,
perspectiva, objetividade, composição, experiência com uma imensa variedade de meios de
comunicação e decisão de qual meio é o certo para expressar o que ele quer comunicar.
Entretanto, eventualmente isso envolve o desenvolvimento de nosso próprio estilo, nossa
própria perspectiva, nosso próprio meio de expressão - todos totalmente únicos para o estilo
individual do artista. Não desenvolver um estilo próprio é não ser nada mais que um
simples técnico. Ninguém consideraria tal indivíduo um artista.
Finalmente, uma educação moral deve tornar as crianças capazes de pensarem por si
mesmas de modo que forme um todo harmonioso. As ações devem ser tanto estética como
moralmente corretas. A felicidade, então, é a recompensa pela ação correta, uma
recompensa intrínseca. As pessoas não devem fazer a coisa certa pelo elogio ou por alguma
outra recompensa. Elas agem, como diz, Wittgenstein, de uma certa maneira porque lhes
convém de acordo com os seus próprios valores. Tais ações fazem com que se sintam em
harmonia com o mundo, consigo mesmo e com os outros. Quando alguém se engaja nesses
tipos de ações, dia após dia, começa a ver a "vida como auto-justificada, a única vida
correta para aquela pessoa."8
As crianças podem ser ajudadas a ser tornarem sensíveis à necessidade ou força em suas
vidas. Assim como um bom artista demonstra a necessidade dessas coisas que têm que ser
aceitas e toleradas, mesmo asseguradas, assim também o estudo da filosofia pode ajudar as
crianças a se tornarem conscientes da necessidade em suas próprias vidas e de como lidar
com isso se quiserem se tornar independentes para sempre. A arte pode ajudar as pessoas a
transcenderem a rotina diária e a falta de sentido de muitas de suas atividades e a perceber a
perfeição universal do mundo. A filosofia pode ajudar as crianças a superarem o trivial e
banal e verem sua própria experiência diária a partir de uma imensa diversidade de
perspectivas. Essa realização é libertadora para uma criança porque a capacita colocar
alguma ordem na sua experiência.
A boa arte, seja música, pintura, escultura, poesia, arquitetura ou ficção, ajuda as pessoas a
separarem o qualitativo do trivial. De certo modo, a arte ruim é uma falsidade a respeito do
mundo, assim como as más ações são respostas inadequadas a uma determinada situação.
Aprender a distinguir o adequado do inadequado, a fraude da verdade, o genuíno do
impostor é uma educação durante toda vida, de experiência, reflexão e investigação numa
comunidade filosófica.10 Pierce nos diz que certos tipos de ações têm uma qualidade
estética que as tona intrinsecamente satisfatórias. Os seres humanos naturalmente
encontram inconsistência entre seus ideais e suas ações detestáveis. Se olharmos ao nosso
redor, veremos que as pessoas fazem algum esforço para serem consistentes, embora muitas
tenham se treinado para viver com inconsistência pelo fato de não pensarem sobre isso.
Contudo, muitas pessoas, de tempos em tempos, revêm seus ideais e suas ações. Isso não é
algo que só acontece uma vez na vida. A vida está constantemente apresentando às pessoas,
situações às quais elas podem ou não responder. O remorso só é positivo quando leva as
pessoas a agirem, no futuro, de acordo com seus ideais.
É verdade que as crianças não podem falar sobre assuntos filosóficos com um vocabulário
técnico, e a maioria das crianças não teria nenhum interesse em ler os textos filosóficos de
Aristóteles, São Tomás de Arquivo ou Kant. No entanto, se elas fossem guiadas por um
professor treinado que soubesse como traduzir o vocabulário técnico da filosofia para a
linguagem cotidiana das crianças, os resultados poderiam mostrar evidências que lançariam
dúvidas sobre a validade da teoria dos estágios. Qualquer objeção à teoria dos estágios
poderia fazer uma enorme diferença na educação atual quando a maior parte do currículo é
ditada pelos assim chamados "estágios Piagetianos". Se os psicólogos, os educadores e os
pais pudessem observar as crianças investigando sobre assuntos filosóficos poderiam se
dispor a rever suas noções sobre as capacidades das crianças e levar em consideração a
importância do primeiro ambiente educacional da criança e da rica investigação de que elas
são capazes com pouca idade, uma vez que lhe sejam fornecidos os professores certos.
Uma das coisas mais maravilhosas sobre a investigação é que ela não só torna os
investigadores auto-conscientes mas também é auto-corretiva quando conduzida num
ambiente comunitário. Essa auto-consciêcia e auto-correção podem se avivar e acompanhar
a investigação para onde se dirigir. Uma vez que os adulto e as crianças começam a
pressentir um mundo em que ambos podem discutir todo tipo de assunto de uma maneira
racional, a própria educação pode ser revolucionada. Não só as crianças cresceriam na
compreensão das perspectivas dos adultos mas, os adultos (inclusive os professores)
cresceriam em sua capacidade de ver o mundo a partir de perspectivas muito mais ricas. À
medida que esse adulto amadurecido é percebido pelas próprias crianças, isso reforçará
seus esforços para compreender as perspectivas dos adultos e para questionar a experiência
humana em geral.
Se os adultos estão realmente interessados em ajudar as crianças a se prepararem para o
futuro, eles devem estar dispostos a viver de tal modo que a discussão racional seja um
estilo de vida, em casa ou na sala de aula. Exigir que se dê as razões, as explicações e que
se acolha uma pluralidade de perspectivas são pré requisitos para o diálogo racional tanto
para as crianças quanto para os adultos. Desenvolver o hábito de examinar as
pressuposições subjacentes nas regras, em casa e na sala de aula, buscar alternativas que
sejam mais aceitáveis tanto para adultos quanto para crianças, escutar as necessidades de
todos os participantes - isto indica um reconhecimento da habilidade de raciocinar das
crianças e, portanto, um respeito a elas como pessoas.
Uma vez existindo essa atmosfera, podemos imaginar novas visões da vida familiar e da
relação entre alunos e professores que envolvem as contribuições das crianças. Às crianças
falta experiência, não racionalidade; os adultos geralmente têm muita experiência no que
fazem mas raramente lhes é pedido para dar as razões para as regras que eles formulam
para as crianças. Assim, se tanto as crianças como os adultos estiverem engajados num
diálogo racional, possibilidades nunca antes imaginadas podem se tornar uma realidade.15
Foi Santo Agostinho quem disse que a insegurança e a infelicidade humana provêm de uma
falta de critérios para julgar o bom a partir do ruim, o genuíno a partir do falso, o belo a
partir do feio. "Não há melhor maneira de ver a verdade que pelo método de perguntar e
responder".16
Podemos ver moralidade como uma atividade responsável, conveniente e bela da parte do
agente autônomo. Por serem racionais, os seres humanos podem aplicar os critérios da
investigação a seus pensamentos e ações. Esses critérios serão éticos, estéticos e lógicos. É
novamente Peirce que pergunta: "No que consiste o raciocínio correto?" Parece que se
pudéssemos calcular isso teríamos meios de atingir nosso objetivo. Mas qual é esse
objetivo? Os lógicos, a essa altura, devem imaginar que Peirce acha que o objetivo final do
ser humano é ético. Mas quando nos voltamos para a ética, tudo que descobrimos é que as
pessoas têm que ter poder de auto-controle. Nenhum objetivo limitado ou egoísta pode
jamais ser satisfatório. O único objetivo satisfatório é o mais amplo, o mais alto e o mais
geral. Para mais esclarecimentos, temos que nos voltar para os estéticos, cujo trabalho é
dizer qual é o estado das coisas mais admiráveis em si mesmas, independentemente de
quaisquer razões finais. E qual é esse estado? Beleza! Aquele que é admirável em si
mesmo. Assim, moralidade não só se interessa pelo pensar e agir justa e corretamente mas
pelo se engajar em atos belos. Os atos morais estão sujeitos aos critérios estéticos, assim
como aos lógicos e éticos.
É por isso que agir moralmente é muito mais que fazer o que se deve. Esta razão é limitada,
pequena, a antítese de um belo ato fruto do amor.
O poeta produz beleza fixando a atenção em algo real. O ato de amor é produzido do
mesmo jeito. Saber que esse homem, que está com frio e fome, existe realmente tanto
quanto eu mesmo e, está realmente com frio e fome - isso é suficiente. O resto vem por si
mesmo. Os valores puros autênticos - verdade, beleza e bondade - são resultado de um
único e simples ato, uma certa aplicação de atenção a esses estados mais elevados do
objeto.
Fazer filosofia com crianças é um modo de trazer sensibilização ás relações. Á medida que
as crianças perseguem a investigação, são forçadas a lutar com relações entre partes e todo
assim como com relações entre meios e fins. A comunidade de investigação como um todo
trata de como as percepções se relacionam com o conhecimento, como os ideais se
relacionam com as ações, como as palavras se relacionam com as frases, como a linguagem
se relaciona com a natureza do ser. Não se pode fazer filosofia dentro de uma comunidade
de sala de aula a não ser que se perceba a si próprio como ser em relação com os outros
investigadores, ao invés de buscar individualmente o significado. É a criança em relação
com as outras crianças e adultos em seu mundo que torna possível fazer filosofia.
É através desse tipo de lealdade que a criança vai aos poucos compreender auto-
conhecimento. Lealdade para Royce é a devoção disposta, prática e eficaz de uma pessoa
para uma comunidade.
Quando você pergunta a alguém quem ela é, ela não pode simplesmente dar-lhe seu nome.
Mas se ela responde em termos de vocação de lealdades sociais, de posição em uma
comunidade, ela está dando a única resposta possível se uma pessoa procura e ainda não
encontrou sua verdadeira lealdade, busca é um propósito, uma natureza temporária. Mas em
todo caso, onde quer que haja lealdade, há auto-conhecimento, personalidade, objetivo
individual na vida.
As crianças de hoje serão dirigentes de amanhã. Porque elas estarão vivendo em um mundo
pluralístico, elas precisam receber uma educação formadora, que as sensibilize para a
complexidade da experiência humana e para a variedade para as respostas morais. As
crianças não só merecem mas necessitam de uma educação que as ajudará a desenvolver
critérios para destinguir justiça de injustiça, moralidade de inmoralidade, e humanidade de
desumanidade. A educação que eles recebem deveria não somente encorajá-las a pensar por
si mesmas provendo-as com as ferramentas intelectuais e experiências que exigem
pensamento original, mas deveria imergi-las numa tradição da cultura, integridade e
comunidade.
1. Ver Santo Agostinho, The Confessions e sua Exposition of the Psalms; The Instruction of the
Uninstructed; e Concerning the Teacher. Ver também Rousseau, Emilie; Maria Edgeworth, "Wit and
Judgment" em The Practical Education of the Child (New York: John Hopkins Press 1965); Alfred
North Whitehead, The Aims of Education (New York Macmillan, 1929); Gabriel Marcel, The Mystery
of Being (Chicago:Regnery Company, 1951); Maurice Merleau-Ponty, Consciousness and the
Acquisition of Knowledge trad. de Hugh J. Silverman (Evanston, IL: Northwestern University
Press, 1973); John Dewey, Democracy and Educacion, Art As Experience, Experience and Nature; e The
Theory of the Moral Life; L.Wittgenstein, Lectures and Conversations on Aesthetics (Berkeley, C.A:
University of California Press, 1967); Philosophical Investigations, trad. G.E.M. Anscombe (Oxford,
Blackwell,1958); On Certainty (Oxford: Blackwell,1969); e Tractatus Logico-Philosophicus, trad.
D.F.Pears and B.F.McGuinness (N.York: Humanities Press,1961). Podemos ver também a obra de
Adrian Du Puis para uma filosofia da educação Católica. Volta
2. Simone Weil, Lectures on Philosophy, trad. Hugh Price, com introdução de Peter Winch (N.York:
Cambridge University Press, 1978) p.73. Volta
3. Robert Coles, "Political Children", The New York Review of Books, 20 de fevereiro, 6 de março e 20
de março, 1975. Coles nos leva a acreditar que as crianças não só podem pensar por si mesmas
quando emitem juízos políticos, mas também não têm dúvidas ao darem as razões para seus
julgamentos. Stephen Toulmin em Cognitive Development and Epistemology (N. York: Academic
Press, 1971} pp. 27-71, mostra que nossa "opção pela teoria dos estágios em psicologia terá o mesmo
valor que a opção pela fisiologia do desenvolvimento; nos compromete com a mesma visão geral a
respeito das capacidades que queremos que os adolescentes desenvolvam e com uma opinião ética
a respeito da verdadeira natureza do homem, todas elas muito questionáveis." p.53. Volta
4. L.S.Vygotsky, Mind and Society (Cambridge: Harvard University Press, 1978) p.87 Volta
5. Essas novelas foram escritos por Matthew Lipman e, no Brasil, são traduzidas e publicadas pelo
Centro Brasileiro de Filosofia para Crianças. A Descoberta de Ari dos Telles, lida com a lógica e a
investigação filosófica em geral; Luísa lida com a lógica e sua relação com a investigação ética; Suki
(não traduzido), lida com a estética e a filosofia da linguagem aplicada à escrita da poesia; Mark
(não traduzido), é dedicado ás relações entre filosofia social e política, teoria sociológica e estudos
sociais. Cada texto é acompanhado por um manual de instrução que esclarece cada um dos
conceitos dos vários capítulos do texto e operacionaliza cada um desses conceitos com planos de
discussão, exercícios e atividades para serem executadas em sala de aula. Volta
6. Ver "The Socratic Method", em Leonard and Nelson, Socratic Method and Critical Philosophy:
Selected Essays (New Haven: University Press,1957). Volta
7. Martin Buber "The Education of Character" em Between Man and Man {N.York: Macmillan, 1965} e
C.I.Lewis, The Ground and Nature of the Right (N. York: Columbia University Press, 1955). Volta
8. Max Black, A Companion to Wittgenstein’s Tractatus (Ithaca: Cornell University Press, 1964), p. 372.
Volta
9. Santo Agostinho, The Instruction of The Uninstruted, 23, citado em G.Howie, Educational Theory and
Practice in St.Augustine, p.109. Volta
12. Peirce para Lady Welby, Semiotic and Significs: Correspondence between Peirce and Victoria Lady
Welby, ed. Charles S. Hardwick (Bloomington: Indiana University Press,1977) p.13. Podemos
também ver "Ideals of Conduct", Collected Papers, 591 a 615. Volta
13. Ann Palmeri, "Childhood’s End: Toward the Liberation of Children". Whose Child? (Totowa,
N.J.: Littlefield, Adams and Company,1980), p.110. Ver também Shulamith Firestone, The Dialectic
of Sex. Firestone faz uma forte analogia entre o tratamento da mulher numa sociedade e o
tratamento das crianças. Ela, assim como Ann Palmeri, acham que as crianças são raciocinais e que
o lhes falta é experiência. Volta
14. Lady Welby para C.Peirce, Semiotic and Significs, p.14. Volta
16. Santo Agostinho, Exposition of the Psalms,26,7. Citado em George .Howie, Educational Theory and
Practice in St.Augustine (N.York: Teachers College Press, 1969),p. 170. Volta
- quando entro numa sala de aula, como sei que uma comunidade de investigação está em
formação?
- quais são algumas das consequências práticas, sociais, éticas e políticas desse
comportamento?
Vou pressupor que uma comunidade de investigação é caracterizada pelo diálogo que é
estabelecido colaborativamente com a contribuição ponderada de todos os participantes.
Vou pressupor também que as discussões em sala de aula tornam-se mais disciplinadas
pelas considerações lógicas, epistemologicas, estéticas, éticas, sociais e políticas
apropriadas. Nesse tipo de comunidade, o professor monitora os procedimentos lógicos
mas, filosoficamente torna-se um do grupo. Os estudantes aprendem a rejeitar o raciocínio
fraco, construir um raciocínio forte, aceitar a responsabilidade de contribuir para o
contexto, aceitar sua dependência em relação aos outros, seguir a discussão por onde ela
for, respeitar as perspectivas alheias, envolver-se colaborativamente em auto correção
quando necessário e ter orgulho das realizações do grupo assim como das suas próprias.
Além disso, no processo, eles praticam a arte de elaborar bons juízos dentro do contexto do
diálogo e da investigação comum.
Desde que não existe nenhum critério, independente das várias preocupações práticas, que
no diga quando atingimos a verdade, e já que o conhecimento é algo essencialmente
linguistico e inseparável da atividade humana, o conhecimento é um produto do raciocínio
prático. E é por essa razão que a aquisição e retenção do conhecimento deve ser sempre um
processo ativo.
Existem alguns comportamentos sociais que podem ser observados:
O grupo manifesta um certo cuidado, não só com os procedimentos lógicos mas com o
crescimento de cada um dos membros da comunidade. Esse cuidado pressupõe a disposição
de estar aberto, de ser capaz de mudar de idéia e de prioridades para cuidar do outro. No
verdadeiro sentido, cuidar pressupõe uma boa vontade em ser transformado pelo outro - em
ser afetado pelo outro. Esse cuidado é essencial ao diálogo. Mas também é essencial para o
desenvolvimento da confiança, uma orientação básica em relação ao mundo que é
responsável pelos indivíduos perceberem que têm um papel a desempenhar no mundo, que
podem fazer uma verdadeira diferença. Além disso, o mundo é um lugar que receberá não
só seus pensamentos, mas também suas ações. A confiança, por sua vez, é uma pré
condição para o desenvolvimento da autonomia e da auto-estima dos indivíduos
participantes. Esse cuidar torna possível uma concepção do mundo como um lugar em que
se pode obter resultados e criar beleza onde antes nada existia.
Os participantes parecem ser capazes de se dar aos outros, falar quando acham que têm algo
relevante a dizer ou quando acham que têm a responsabilidade de trazer o diálogo de volta
aos trilhos. Os estudantes parecem ter rejeitado o papel de prima donna e parecem capazes
de colaborar e cooperar com a investigação. Eles podem ouvir e acolher o que os outros
têm a dizer de modo a que o significado e a vitalidade são compartilhados. (5) Eles estão
livres da necessidade de sempre estar certos. Eles têm a coragem e a capacidade de tentar
mudar suas mentes e de manter seus pontos de vista. Eles parecem não estar na defensiva
mas sim encantados em estar numa comunidade de investigação. Se o pensar dialógico
requer uma boa vontade em ser desafiado e perturbado pelas idéias dos outros, também
implica uma abertura à verdade emergente - um dar de si mesmo, no mais amplo sentido -
embora perceba-se que a verdade que se atinge no final é apenas provisória. Para fazer isso,
os estudantes precisam ser capazes de chegar a entender que não sabem muita coisa, talvez
nada.
disciplinar a centralização do eu
a eventual transformação do eu
Os participantes evitam se envolver em extensos monólogos que esvaziam o diálogo, ou
que realmente não requerem uma resposta. Eles sabem como dialogar entre si - o diálogo
implica uma certa capacidade para flexibilidade intelectual, auto-correção e crescimento.
Nós mesmos já não tivemos a experiência de submeter uma questão ao grupo e, então, ver
emergir do árduo, se bem que excitante, diálogo uma compreensão muito mais profunda do
que a oferecida por uma única contribuição? Esse acontecimento deveria ser avaliado não
só em termos do produto mas também em termos do processo - as relações experienciadas
no decorrer da investigação.
Precisamos estar dispostos a ouvir a questão atrás da questão, o medo atrás do desafio, a
insegurança atrás da timidez - tudo isso como sendo um componente essencial do
significado do próprio diálogo. Além disso, precisamos ser capazes de ver, ler a expressão
facial dos que falam e dos que não falam, e interpretar o que estão, ou não, dizendo. Alguns
talvez fiquem em silêncio porque não têm nada a dizer. Outros talvez fiquem em silêncio
porque têm medo de expressar suas idéias. Outros, talvez sejam tímidos. Outros talvez
tenham medo de que suas idéias sejam desafiadas - e isso é um sinal de que algo está muito
errado.
O colapso da comunidade ocorre quando existe uma obliteração das pessoas. E isso
acontece quando uma pessoa explora a outra, isto é, usa as relações que se estabeleceram
para qualquer outro propósito fora do que se pretendia: a busca do significado, da
compreensão e o crescimento de cada membro da comunidade. Na medida em que os
indivíduos se envolvem em monólogos, eles bloqueiam a investigação. Na medida em que
fazem pressuposições sobre o que o outro vai dizer, antes que o outro tenha oportunidade
de dizer, eles bloqueiam a investigação. Na medida em que se envolvem em devaneios
quando alguém está falando, eles bloqueiam a investigação. Na medida em que assumem a
responsabilidade de falar pelos outros por medo ou insegurança, eles destróem a confiança
essencial para a investigação dialógica.
Assim, a comunidade de investigação constitui uma praxis, uma ação reflexiva em conjunto
- uma maneira de agir no mundo. É um meio de transformação pessoal e moral que
inevitavelmente leva a uma mudança nos significados e valores que afetam os juízos e
ações cotidianas de todos os participantes. Uma característica marcante de uma comunidade
de investigação é que, com o tempo, seus membros mudam. Eles, com o tempo, serão
capazes de dizer a si mesmos coisas como:
- Acho que não sou obrigado a aceitar pontos de vista que levam a consequências que
considero perigosas.
- Acho que sempre pensei dessa maneira mas, agora, posso explicar porque penso dessa
maneira.
- Estou começando a perceber quais os padrões de comportamento que têm mais sentido em
minha vida.
É um compromisso com a liberdade, com o debate aberto, com o pluralismo, com o auto-
governo e com a democracia. A razão política, a investigação reflexiva e o juízo prático
ponderado na praxis política comum pressupõe que as pessoas na sociedade tenham um
senso de diálogo e de investigação comum e facilidade com as habilidades dessa
investigação. Só na medida em que os indivíduos têm a experiência de dialogar com outros
iguais, de participar da investigação pública partilhada é que são capazes de,
eventualmente, desempenhar um papel ativo na formação de uma sociedade democrática.
Entendimentos e experiências compartilhados, práticas diárias intersubjetivas, senso de
afinidade e solidariedade, junto com todos os laços afetivos tácitos que unem as pessoas
numa comunidade são uma pré condição para a ação reflexiva em comum na esfera
política.(14)
Nesta última década tem havido muita discussão na literatura educacional sobre a
construção da auto-estima, na tentativa de relacioná-la com o sucesso escolar. A maior
parte dessa literatura enfatiza o "sentir-se bem consigo mesmo" como se esse estado
resultasse em confiança, sucesso acadêmico e felicidade. Um exame dessa literatura revela
pouca análise do que significa a expressão "consigo mesmo" ou o que está envolvido no
"estimar". Será que se considerassemos o significado desses dois conceitos não
questionaríamos em que sentido a auto-estima poderia estar relacionada ao sucesso
educacional ou à felicidade? Além disso, será que o conceito de auto-estima não poderia ser
substituído pelo conceito de auto-transformação como indicador de sucesso, crescimento,
felicidade e respeito pelos seres em constante mudança que somos?
Estimar é dar valor a algo - achar que vale a pena. Para estimar, é preciso ter critérios,
normas, padrões e ideais. Eu posso estimar um determinado filme como sendo bom, mas
quando meus critérios são submetidos à investigação pública posso perceber que meu juízo
está distorcido. Eu posso estimar um determinado vinho mas se for exposto a outros mais
refinados, mais delicados, mais aromáticos, posso mudar de opinião. Eu posso estimar uma
certa pessoa mas, refletindo sobre o que creio ser as características de um amigo, posso
descobrir que a minha estima está dedicada a quem não merece. O mesmo é válido para o
self. Eu posso estimar a mim mesmo como sendo atraente, agradável, competente,
responsável, honesto, esforçado e inteligente. Mas posso estar errado. Como posso ter
certeza disso se não submeter meus critérios a alguma investigação pública? Quando eu
faço isso, me envolvo numa investigação metafísica, estética, lógica ou ética. Negar o
acesso às ferramentas dessas disciplinas é negar à pessoa os meios de que ela necessita para
emitir juízos qualitativos sobre o self.
Para que uma transformação seja realmente genuína é preciso que surja algo genuinamente
novo. É como se algo que existia antes desaparecesse, dando lugar a alguma coisa
diferente. Numa comunidade de investigação genuína, esta coisa nova emergente é o
cultivo das habilidades de raciocínio, de investigação, de formação de conceitos e de
tradução - pré-requisitos necessários para a ação e o juízo inteligentes. No entanto, existem
mais coisas, além das habilidades. O diálogo filosófico em comunidade é um processo
criado para que, com o passar do tempo, comece a surgir uma nova forma de ser no mundo,
caracterizada pela atenção, curiosidade, cooperação, paciência, todas mescladas por um
sentimento de maravilhamento por se estar vivendo neste mundo.
Aprender a colocar o ego em perspectiva não é tarefa fácil. Envolve ter um controle sobre
as emoções egoístas, e descobrir como o self se relaciona com os outros, sejam pessoas,
animais, plantas, enfim, toda a natureza. Este conceito de um self equilibrado é um sub-
produto da investigação filosófica em comunidade que cultiva novos hábitos e disposições,
dentre os quais o exame de pressuposições, o auto-controle, a abertura de espírito, a
tolerância e a apresentação de perspectivas alternativas às hipóteses mais estimadas.
Dialogar com rigor sobre a dimensão filosófica das experiências, auxilia no cultivo das
disposições necessárias para a experiência da felicidade, entendida como sendo a
disposição para maravilhar-se, para agir com cuidado e atenção, para compreender,
investigar, experimentar e para entrar no desconhecido e crescer.
Filosofia para Crianças, isto é, a investigação filosófica em comunidade, não pode, por si
só, esperar solucionar todos os problemas das crianças, pois muitos só podem ser resolvidos
pela ação. Mas, certamente pode ajudar a ver, com maior clareza, quais são os problemas e
a levantar hipóteses que podem levar à sua superação. Se o problema for uma baixa auto-
estima, a prática da filosofia em comunidade pode envolver as crianças num processo onde
elas descobrem aspectos desconhecidos de si mesmas, possibilidades de auto correção
nunca antes vivenciados e, normas e ideais que jamais foram levados em consideração.
O self é uma construção social, elaborado por nós mesmos com a ajuda de outros desde a
infância. Trata-se de um conceito enigmático, sempre sujeito a mudanças e não acessível
pela introspecção. Por mais improvável que possa parecer a princípio, os momentos nos
quais percebemos nosso self mais intimamente não são aqueles em que nos sentimos bem a
nosso respeito. Pelo contrário, são aqueles em que cometemos erros, temos consciência da
pessoa que cometeu esses erros e iniciamos o árduo processo da auto-correção com a ajuda
das pessoas da comunidade. Portanto, é pela auto-correção que chegamos a nos conhecer.
Filosofia para Crianças dá valor aos erros, à falta de conhecimento, às respostas incorretas
ou limitadas - não como fins em si, mas como meios de se chegar a uma compreensão mais
abrangente de nós mesmos e do mundo em que vivemos. A afirmação "Eu não sei" pode
ser o início de um processo de descoberta de novos conhecimentos e de significado - o
significado da nossa busca de compreensão e da nossa necessidade de nos transformar em
seres humanos mais investigadores, curiosos, inteligentes e responsáveis.
Existe uma antiga história Sufi sobre um homem que, à noite, deixou cair suas chaves no
lado escuro da rua. Ele atravessou a rua em direção a um poste de luz e começou a procurar
suas chaves onde estava claro. Quando um amigo lhe perguntou por que ele procurava suas
chaves perto do poste de luz, ao invés de procurá-las onde as havia deixado cair, o homem
respondeu: "Estou procurando as chaves aqui porque está mais claro." Não seria isto que os
adultos geralmente fazem? Buscam apenas dentro das estruturas familiares habituais? Não
importa que isto não funcione. Muitos de nós insistimos em continuar as nossas buscas,
teimosamente, debaixo do poste de luz. (Charlotte Joko Beck, Nothing Special, 1993,
p.120-121). Muitos de nós temos medo de nos expor aos pontos de vista diferentes dos
nossos, de questionar os nossos pressupostos, de repensar os nossos hábitos, enfim, de nos
auto-corrigir.
O que nos leva à transformação? No fundo, essa força vem das inseguranças que temos
com relação ao modo como vivemos. Sentimos que há algo melhor para além de uma vida
sem sentido. E mesmo assim, relutamos em mudar, em questionar nossa visão de mundo,
ou em submeter nossos pontos de vista ao exame público. Por quê? Será que o processo de
socialização nos incentivou a ficar presos às nossas ilusões e a não questionar os
pressupostos fundamentais da nossa vida do dia-a-dia? Este poema de W.H.Auden capta
muito da atitude do adulto, egoísta, controladora, não questionadora, desprovida de
qualquer disposição para investigar em comunidade os pressupostos básicos da nossa
experiência cotidiana. Será que Auden poderia estar certo quando diz:
ou será que os hábitos da mudança precisam ser inculcados durante a infância, de modo a
serem realmente efetivos?
A contribuição de Peirce
Uma das formas de se considerar o self é como um processo de crescimento que só faz
sentido quando relacionado aos outros que o influenciam. O self cresce na medida em que
aumenta a capacidade de auto-controle sobre sua própria conduta e a habilidade de agir de
modo a atingir seus propósitos e objetivos. Foi Charles Peirce quem sugeriu que o processo
de auto-correção revela o self para o self. A auto-correção é o processo no qual formas mais
abrangentes e criativas de percepção de mundo começam a surgir a partir das constantes
mudanças de hábito, motivadas pelo desejo de auto-correção. Peirce pensava no self como
um pacote cheio de hábitos. Em constante mudança, o self é um fio frágil com o qual
costuramos o tempo numa única história. Esta história é algo que vamos construindo à
medida em que vivemos a nossa vida cotidiana. Uma comunidade de investigação em sala
de aula oferece às crianças a oportunidade de falar sobre essas histórias. Tais histórias
revelam suas idéias, suas lutas, seus erros e suas tentativas de auto-correção, de improvisar
e de responder a contextos imprevistos. Revelam, também, a capacidade das crianças de
mudar de opinião e de aprender novas habilidades, novos hábitos. Resumindo, suas
histórias revelam seu crescimento. Participar de uma comunidade de investigação filosófica
é estar envolvido na construção de uma história que revela o crescimento da nossa auto
consciência e da compreensão que temos não apenas dos outros, mas de outras visões de
mundo em relação à nossa própria visão de mundo que está em contínua expansão.
Para Peirce, o critério fundamental que guia o nosso auto-controle é a razoabilidade que se
desenvolve numa comunidade. "Nenhuma mente pode dar um passo sem o auxílio de
outras mentes", nos lembra Peirce. Neste sentido, todos os selves são inter-dependentes. É
um engano pensar no self como uma essência individual ou como uma célula independente,
pois é apenas numa comunidade que nos tornamos nós mesmos. Cada pessoa vive um
processo contínuo de criação e definição de sua própria identidade através da sua interação
com o mundo natural e com as outras pessoas.
Peirce considerava o self como sendo um signo em constante processo de interpretação, não
só pelos outros mas, também, por ele mesmo. É neste sentido que nós estamos
continuamente envolvidos no processo de contar a nós mesmos histórias sobre nós mesmos.
São estas histórias que formam a base do conceito que temos de nós mesmos. Algumas
histórias ajudam o crescimento e outras o impedem. Dizer a mim mesma que sou fraca,
indulgente, desmerecedora de amor ou incapaz de qualquer ação que possa fazer uma
diferença qualitativa no mundo, pode retardar o meu crescimento. No entanto, pode
também ser o primeiro passo para a auto-correção. Geralmente, esta auto-correção nasce de
um desgosto intenso de si mesmo, da percepção de que não estamos atendendo aos
mínimos requisitos que nos colocamos para nos considerarmos pessoas.
Ser uma pessoa é ser uma criatura que fala consigo mesma. Este diálogo interno é chamado
de pensamento pelo filósofo George Herbert Mead e por outros pragmatistas americanos.
Esses diálogos não podem ser separados do processo contínuo de auto-construção. Peirce
nos lembra que:
Quando o self pensa, são sempre dois selves pensando: o self habitual e o self inovador.
Quando o self pensa, o self habitual procura persuadir o self inovador. O primeiro
representa os hábitos de uma pessoa, e o segundo os desafios a estes hábitos. Como o self
inovador está sempre dialogando com o self habitual, temos a sensação de que existe
sempre um mistério dentro de nós - é como se nunca tivéssemos muita certeza de quem nos
tornaremos. Participar de uma comunidade de investigação filosófica em sala de aula é dar
um passo na direção de uma reflexão comunitária sobre o tipo de pessoas que deveríamos
vir a ser.
E é neste sentido que Peirce percebia o self como sendo um pacote da hábitos. Ter um
hábito é dizer que eu me comportarei sempre de uma mesma forma numa mesma
circunstância. Esses hábitos podem ser positivos ou negativos, condutores de crescimento
ou de auto-destruição. Porém, o que importa, é que são sujeitos a transformação à luz da
reflexão e da experiência. A mudança não precisa, necessariamente, ser previsível, ou
sujeita às normas da maioria. O que faz com que o ser humano seja maravilhoso é a
possibilidade de realizar alguma coisa bela que seja original, harmoniosa e única. A esta
capacidade de auto-correção, de adoção de hábitos que produzam o crescimento, podemos
creditar a nossa surpreendente criatividade, a nossa liberdade humana.
Para Peirce, o maravilhoso é que o self não está confinado ao corpo. Por ser um signo, o
self pode não só ser interpretado por nós mesmos e pelos outros, mas também ser
comparado com a palavra. E, assim como as palavras, é possível as mentes estarem em dois
lugares ao mesmo tempo:
percebo o que ele sente, não estarei vivendo em seu cérebro e ele
no meu? Sim, é verdade que minha vida animal não está lá, mas lá estão
Mas os selves não são coisas. E é por isso que, em circunstâncias normais, não deveríamos
tratar as pessoas como se fossem coisas. Aquilo que chamamos de auto-conhecimento é
composto de inferências (algumas mais ponderadas do que outras) do mundo exterior e de
juízos que expressamos do próximo. Não podemos chegar a nos conhecer apenas pela
introspecção. Pelo contrário, é quando nos percebemos cometendo um erro, que nos
tornamos conscientes do self que cometeu o erro. Essas pessoas têm a capacidade de levar
em conta o que os outros dizem e corrigir seus próprios erros. A auto-correção torna-se,
então, o critério significativo do auto-conhecimento, da auto-transformação e do auto-
crescimento. Perceber-se a si mesmo como um self é ser capaz de reconhecer onde
falhamos.
Resumindo então, para Peirce, o self é (a) uma construção evolutiva orientada para o futuro;
(b) uma teleologia do desenvolvimento, uma busca de propósitos e planos dos quais podem,
de fato, emergir propósitos genuinamente novos; (c) básica e fundamentalmente um
processo de auto-correção no qual, em qualquer momento da vida, algum tipo de
significado está em vias de se desenvolver. E é justamente na comunidade de investigação
filosófica em sala de aula que refletimos sobre tais significados.
Em comunidades como essas, percebe-se que as crianças procuram descobrir quem elas são
- o que elas pensam e o que elas querem fazer de suas vidas é importante. Para que isto seja
possível, elas necessitam de tempo para analisar conceitos contestáveis subjacentes à sua
existência cotidiana - conceitos como, liberdade, fé, verdade, amizade, comunidade,
democracia, justiça, regras, self, identidade, linguagem, tempo, amor, morte, conhecimento,
significado, bondade, sociedade - e tentar descobrir o que cada conceito significa para elas.
Alguns autores chamaram isso de busca de autenticidade. Autenticidade esta que nasce de
uma mudança na consciência que temos daquilo que exigimos de nós mesmos: as verdades
pessoais e a integridade passam a ser considerados como fins em si mesmos. Essa
autenticidade está relacionada com a liberdade - a habilidade de pensar e agir por si mesmo.
Envolve, por parte da criança e com o auxílio dos seus companheiros de investigação, a
busca e a criação do seu projeto de vida. O ideal de autenticidade pode direcionar as
crianças para um modo de vida mais responsável, mais completo, mais diferenciado e mais
apropriado.(Taylor, p.64)
Portanto, um diálogo autêntico exige humildade intelectual que pressupõe que (a) somos
falíveis, (b) que nossas idéias são, em geral, muito limitadas, quando não erradas e ( c ) que
somos criaturas que podem estar abertas para diferentes formas de encarar as experiências.
O comprometimento com o falibilismo e com a investigação aberta não significa que
abramos mão imediatamente das nossas idéias e perspectivas. A auto-correção pressupõe
um ideal de verdade regulador, com o qual toda a comunidade se compromete de modo
mais ou menos consciente. Por esta razão, os participantes conseguem perceber se houve ou
não algum progresso. Entretanto, é um fato que, quando expressamos nossas idéias e
perspectivas aos membros da comunidade - com visões de mundo muito diferentes das
nossas - manifestamos coragem de arriscar nossas crenças e opiniões presentes e
incorremos na possibilidade de experimentar uma auto-transformação radical. É como se,
neste ponto, uma pessoa dissesse a si mesma: "Eu não quero viver uma vida de ilusões.
Quero saber das coisas e conhecer todas as suas possibilidades. Quero entender o mundo, a
mim mesmo e aos outros. E, caso eu não entenda, então me disponho a mudar a forma
como encaro as coisas."
Filosofia para Crianças está comprometida com a narrativa como modo educacional para
elevar a consciência da dimensão filosófica da experiência. Não pressupõe uma hierarquia
da realidade na natureza: os seres humanos são vistos em relação aos animais, às estrelas,
ao oceano, aos planetas, e não acima deles. Essa ênfase nas relações ajuda as crianças a
desenvolverem uma sensibilidade ecológica do mundo em que vivem. O currículo de
Filosofia para Crianças enfatiza as relações não só entre as palavras e as idéias, as
disciplinas e a experiência, mas também entre as espécies na natureza.
A observação atenta dos reinos subatômicos e das galáxias, nos leva a perceber que a
distinção clássica entre matéria e energia desaparece. A matéria é energia se movendo em
padrões relacionais definidos. Mesmo assim, os humanos continuam sendo o "meio" ou o
mediador entre os mundos. Isto ocorre porque aquilo que percebemos só pode ser
conhecido e avaliado a partir do contexto do nosso ponto de vista. Somos, neste sentido, a
"mente" do universo, o lugar onde o universo toma consciência de si mesmo. (Reuther,
p.249)
A consciência reflexiva é tanto o nosso privilégio como o nosso perigo. Pelo menos nestes
últimos milhares de anos da nossa história cultural, a classe dominante masculina tem se
utilizado desse privilégio da mente para colocar-se acima e à parte da natureza e das
mulheres e crianças dominadas. Com isto, negando a existência da teia de relações que nos
mantém todos unidos, e da qual é, ela mesma, uma parte absolutamente dependente. A
tarefa urgente da comunidade de investigação é ajudar as crianças a tornarem-se
conscientes da Terra, de modo que possamos utilizar as nossas mentes para entender a teia
da vida e nela viver como seus guardiões e não como seus destruidores.
Existem filósofos que crêem que este tipo de sensibilidade ecológica deve basear-se em três
premissas: a transiência dos selves, a interdependência viva de todas as coisas e o valor da
comunicação pessoal. À medida que as crianças começam a aceitar o valor do self, elas
despertam para um novo senso de familiaridade em relação a todos os organismos. Assim
como os seres humanos, as plantas e os animais são centros vivos da vida orgânica que
existem por alguma razão. Um relacionamento saudável entre os seres e com a Terra requer
uma nova consciência por parte da próxima geração. A participação em uma comunidade
de investigação filosófica possibilita não só uma transformação psíquica interna, mas
também uma transformação na forma como concebemos as inter-relações entre homens,
mulheres e crianças, entre os seres humanos e a Terra, entre os seres humanos e a
experiência do sagrado, entre o divino e a Terra. Resta-nos pouco tempo para mudar, se
quisermos salvar o sistema biótico da Terra que está em perigo. O Worldwatch Institute
estima que temos por volta de 40 anos para, voluntariamente, transformarmos o estado das
coisas. Depois deste período, prevê-se desastres como a fome e o colapso do sistema vivo,
todos estes provocados pela pressão da exploração humana. Nem o pessimismo, nem o
otimismo são necessários, mas sim uma comunidade de investigação engajada e dedicada à
preservação da natureza.
A metanoia ou a mudança de consciência, começa com cada comunidade de investigação
em sala de aula. Isto não ocorre de um momento para o outro, mas é um processo
ininterrupto. Fundamentalmente, é preciso que sistema educacional prepare as crianças a
pensarem e agirem tanto globalmente quanto localmente. As crianças precisam saber sobre
as comunidades de investigação que existem na Europa Ocidental e Oriental, na Asia, na
África e na América Latina e sobre como os problemas específicos de cada uma destas
diferentes regiões têm interconexões com as nossas próprias vidas. Essa consciência global
desempenha dois papéis. Primeiro, as crianças percebem que seus esforços locais são parte
de um empenho global, e que somos todos interdependentes neste esforço. Segundo, pode
possibilitar que as crianças mantenham ligações com movimentos internacionais onde
ocorrem fóruns políticos e sociais. As lutas pelas mudanças locais carecerão de
profundidade, caso não sejam concebidas como parte integrante de uma nova consciência
global. (Reuther, p.273).
Descartes, o mais famoso porta voz deste modelo de raciocínio descompromissado, deu um
passo decisivo que nos levou a muita confusão. Podemos considerar este modo de
raciocínio como uma realização a ser almejada para que alguns propósitos sejam atingidos -
apesar de que o nosso pensamento é dialógico e, na maioria das vezes, incorpora aspectos
emocionais, tradicionais e culturais. Descartes partiu do pressuposto de que somos uma
razão descompromissada - isto é, puro entendimento, distinto do corpo - e de que a visão
que temos de nós mesmos é apenas confusão. É justamente essa forma de conceber a
racionalidade que nos leva a controlar o meio ambiente. A dominação parece nos fazer
sentido, seja porque podemos tirar mais proveito daquilo que desejamos, porque a sensação
de poder nos envaidece ou porque se adequa ao que consideramos como sendo auto-
realização. No entanto, a "dominação da natureza" não é tudo. Existem dois outros
contextos morais que precisamos lembrar:
1. Nós já vimos que a "dominação na natureza" está relacionada com a forma de nos
concebermos como racionalidade potencial desengajada. Isto está fundado num ideal moral
de raciocínio auto-responsável e auto controlado. Há aqui um ideal de racionalidade que é
também um ideal de pensamento autônomo e auto criador.
2. Uma outra visão que passou a ser aceita nestes últimos quatro séculos é o que Taylor
denomina de afirmação da vida comum, isto é, a percepção de que a vida de produção e de
reprodução, a vida familiar, profissional e comunitária tem sentido. Além disso, essa
concepção parece ser uma boa forma de aliviar o sofrimento humano. Em contraste com a
visão aristotélica de mundo, Francis Bacon propôs uma ciência que pudesse contribuir para
a condição humana, e cujo critério de verdade seria sua eficácia instrumental. Você
descobre algo quando pode intervir para a mudança das coisas. (Taylor, 104)
Se perguntarmos aos filósofos por que as crianças devem aprender filosofia nos anos
formativos de suas vidas, teremos provavelmente muitas respostas: para aprimorar o
pensamento, para ajudá-las a fazer juízos melhores, para cultivar a sabedoria, para melhorar
o desempenho escolar, para aumentar sua auto-estima. Poucos diriam que as crianças
devem aprender filosofia para serem felizes. Talvez haja uma boa razão para isto. A
felicidade não parece ser algo a ser buscado diretamente como um objeto de desejo,
interesse ou ação. Ela é, como diz Dewey, "um produto final, um acompanhamento
necessário de uma certa maneira de ser ou de uma condição do self. A felicidade é o fruto
espontâneo de um interesse em objetos que são duradouros e intrinsicamente relacionados
com uma natureza expansiva e extrovertida".
Mesmo assim, a maioria dos pais querem que suas crianças sejam felizes. Muitos
professores querem que seus alunos sejam felizes. Algumas vezes a felicidade das crianças
é mais importante do que a dos próprios pais ou professores. É como se acreditassem que a
infelicidade nas crianças causasse impaciência, ódio, ciúme, desesperança,
desconsideração, intolerância, indiferença ao próximo e dificuldade em lidar com
mudanças. Observando o mundo hoje, descobrimos que existem muitas crianças infelizes.
Às vezes a infelicidade provêm da pobreza - no entanto, freqüentemente ela tem origem em
outra coisa. A depressão nas crianças é comum em famílias consideradas de classe média
ou alta. O índice de suicídio infantil é consideravelmente mais alto nos países do primeiro
mundo onde as necessidades básicas das crianças são atendidas.
Em todas as novelas de Filosofia para Crianças a palavra felicidade aparece apenas uma
vez, no final do capítulo 1 de A Descoberta de Ari dos Telles. Nesse capítulo, encontramos
Ari percebendo que ele está feliz por ter feito uma descoberta intelectual, por tê-la corrigido
com a ajuda de um amigo, e por ter colocado sua descoberta em prática no mundo real da
comunicação entre adultos e entre adultos e crianças. Ari percebe que a sua descoberta não
só funciona, mas pode também fazer uma diferença ética na forma como pensamos e
falamos sobre as outras pessoas. É como se a prática persistente da investigação, da auto-
correção, da colaboração intelectual numa comunidade e a sua aplicação, pudessem criar o
estado de espírito que todos chamamos de felicidade.
A felicidade não é apenas um sentimento de realização ou de bem estar, e sim uma certa
disposição que carregamos conosco e que nos auxilia nas situações cotidianas. Ela envolve
uma qualidade mental com a qual nos deparamos e interpretamos as novas situações. Como
na história onde uma pessoa vê um copo meio cheio e outra o vê meio vazio, a felicidade é
uma atitude mental característica que pode ser mantida por algumas pessoas mesmo em
circunstâncias adversas. Não é algo que possa ser buscado, ou alcançado diretamente. Não
é algo que possa ser comprado ou dado por alguém. Da mesma forma como o significado, a
felicidade é algo que devemos descobrir por nós mesmos, e que depende do cultivo da
investigação, da percepção, da coragem de tentar coisas novas e da compreensão da
complexidade do mundo. Ela é o acompanhamento de um certo modo de vida desenvolvido
numa comunidade, é uma condição do self numa comunidade de investigação engajada na
transformação e no crescimento qualitativo. É o produto final espontâneo de um interesse
crescente e do responsabilidade com relação a objetos que valham a pena, que sejam
duradouros; objetos de beleza, de justiça, de significado e de verdade. (Rockfeller, John
Dewey, p.380) Se é verdade que a felicidade está relacionada a uma natureza expansiva, a
uma natureza caracteristicamente investigadora, cooperativa, corajosa, experimental,
aberta, está relacionada às pessoas que estão engajadas em trazer os ideais à realidade,
então os educadores devem se perguntar que tipo de educação poderia desenvolver estas
disposições nas crianças.
Conclusão
Quais seriam as conseqüências das crianças assumirem o self como sendo uma obrigação
de crescimento em direção ao "self ideal" em relação com toda a natureza? Este self ideal é
um produto da nossa imaginação, do diálogo e da tradição humana. Ele é regulado por
normas, critérios e padrões que devemos submeter à investigação em comunidade. É neste
sentido que dizemos que não só temos o direito, mas também a obrigação, de fazer
filosofia. Como pessoas somos não só obrigadas a pensar mais logicamente, a viver mais
ética e esteticamente, mas também a idealizarmos um self e a utilizar este ideal para regular
as nossas decisões importantes e o nosso comportamento cotidiano. E ninguém pode fazer
esse trabalho por nós. Mas outras pessoas podem nos ajudar a dar os primeiros passos. A
comunidade de investigação em sala de aula é um fórum dialógico no qual todas as crianças
podem cultivar um método que lhes servirá de base para se engajarem no processo vital da
auto transformação e correção. O self que é conquistado pelo auto-controle aperfeiçoado
numa comunidade de investigação em sala de aula e pela exposição contínua a perspectivas
alternativas, torna-se um poder autônomo e em constante crescimento capaz de se dedicar a
projetos que demandam planejamento, lealdade, coragem, inteligência e o retardamento de
gratificações. Sob esta perspectiva, o self é um gerador de poder que passa a existir pelo
esforço infindável da auto-correção e auto-controle. Tornar-se um self é lutar contra o self
habitual, é obrigar-se a crescer apesar dos revezes. Transformar-se num self que cresce e
reflete, atento a sua interdependência com toda a natureza, em constante processo de tornar-
se a si mesmo, é uma das formas mais íntimas de liberdade que as crianças podem
experienciar. Se a educação é um processo liberador, ela tem a obrigação de fornecer a
oportunidade para que as crianças realizem esta forma pessoal de liberdade.
Bibliografia
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- Griffin, Susan Woman and Nature: The Roaring Inside her (N.Y. Harper and Row, 1978)
Em seu poema, a vida é um contínuo começo e fim na Terra e um progresso através das
gerações de filhas. O que sabemos, sabemos em relação à matéria - nossos corpos, os
corpos dos que vieram antes de nós e dos que virão depois, sejam humanos, animais ou
minerais. Isso acontece porque somos matéria. Não existe luz fora do mundo da natureza,
nenhuma realidade ou mundo de formas do qual nossas vidas são simplesmente pálidos
reflexos; qualquer luz que seja é natural. Nós somos compostos dela do mesmo modo que
somos compostos de água - a mesma água que forma os pântanos, os lagos e os rios ou que
sustentam o musgo e a urze. Nós somos natureza vendo natureza... Natureza falando da
natureza para a natureza Para Griffin, a luz está em nós... Nós compartilhamos com a
natureza as células que fornecem energia iluminadora. Nós colaboramos para produzir o
fenômeno que entendemos por luz.
- Hein, Hilde "Knowledge and the Model of Mind"em Half a Mind: Philosophy from a
Woman’s Point of Wiew, seu livro manuscrito não publicado. Nesse trabalho Hein
pergunta se existem aspectos da experiência da mulher que sejam suficientemente
difundidos e incipientes para ter um papel determinante em modelar o seu modo de
cognição. Ela acha que a nossa adaptação biológica à reprodução nos torna mais receptivas
à noção de integração e menos ameaçados pela intermisturação e interpenetração espacial.
"As mães e as crianças modelam umas as outras não simplesmente durante o período da sua
ligação física mas durante toda a vida." Esses fatos não predispoém as mulheres a uma
preocupação com o espaço interior como concluiu Erikson prematuramente. Mas Hein diz
que geraram um novo modelo para a compreensão do conhecimento, um modelo que ela
chama de interpenetrativo. E embora não haja nada de exclusivamente feminino em relação
a esse modelo de mente, Hein diz que "a ausência condicionada de fronteiras do ego, a
preparação no decorrer da vida para o papel reprodutivo, a negação da individualidade e a
pluralidade de tarefas relacionais que as mulheres desempenham" o torna mais familiar às
mulheres. Hein vê esse modo de conhecer como análogo ao amor: "Imaginem o conhecer
como um ato de amor... um dar do self ao assunto, ao invés de um objetivo fixo à distância.
À medida que permitimos que o conhecido banhe o ser, o compreendemos, o envolvemos e
somos envolvidos por ele. O conhecedor, como disse Aristóteles, torna-se o conhecido, mas
também se transforma... o conhecedor torna-se literalmente absorto por aquilo que é
conhecido." Nesse modelo não existe nenhum outro.
Comparar com: J. Maritain "O amor nos une a um outro na medida em que se torna um
conosco."; S. Tomás "O amor é uma força mais unificadora que o conhecimento."; e com
Peirce quando ele fala a respeito do ágape como outra forma de razão.
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Somente há cerca de oitenta anos a ciência foi considerada como algo que podia ser levado
à escola primária e, só recentemente, a partir da segunda metade do século XX, é que
começou a se desenvolver uma estrutura curricular para favorecer o estudo das disciplinas
científicas na escola primária. Em 1969, Dr. Matthew Lipman achou que teria que fazer o
mesmo com a disciplina da filosofia, isto é, teria que reconstruí-la de maneira a ser
acessível às crianças, sem perda de sua integridade.
Durante vinte anos, Lipman havia ensinado na universidade dando aulas de Introdução à
Lógica e Introdução à Filosofia. Em 1969, ele disse a si mesmo: se eu pudesse colocar o
conteúdo dessas disciplinas em novelas, talvez os alunos de oito, nove, dez ou onze anos
pudessem enfrentar as mesmas questões que ensino na universidade. Ele estava bastante
interessado em fazer isso porque tinha quase certeza de que essas matérias não eram bem
trabalhadas na universidade. A lógica, tal como ele a ensinava, os estudantes achavam
aborrecida ou, então, não estavam interessados nela; e a socialização não os preparava para
receber bem sequer as questões que tinham a ver com uma Introdução à Filosofia.
Em 1969, Piaget era extremamente popular e Lipman também dava cursos de Filosofia das
Ciências Sociais. Um dos seus cursos incluía uma explanação completa acerca de Piaget e o
desenvolvimento intelectual das crianças. Piaget afirmava que as crianças de dez ou onze
anos são capazes de realizar operações formais que chamaríamos de operações lógicas
básicas. Lipman queria assegurar-se de que as ferramentas da filosofia fossem acessíveis
para as crianças. Não se tratava de levar às crianças a história da filosofia - não era isso que
ele queria. Na verdade o que ele queria era utilizar a disciplina como um todo - suas
habilidades cognitivas e intelectuais, seus conceitos e, de alguma maneira, reconstruí-la na
forma de histórias ou novelas e fornecê-la a crianças e professores juntamente com uma
pedagogia que chamou de "Comunidade de Investigação"; o que, de certa forma, permitiria
que utilizassem essas ferramentas com algum sentido de libertação. Ele estava certo de que
se não se dispõe dessas ferramentas cognitivas, se não se sabe dialogar e como envolver-se
no diálogo, e se não se consegue reconhecer um conceito filosófico quando o encontramos,
de certa forma, somos presas fáceis da propaganda dos meios de comunicação no sistema
em que vivemos. Assim, vou tentar falar tanto sobre o conteúdo da filosofia como sobre os
procedimentos pelos quais nós ensinamos.
Não podemos nos esquecer que Filosofia para Crianças já tem mais de vinte anos e que
nesse meio tempo houve uma revolução na educação. Em primeiro lugar, nos anos 70,
tivemos o movimento de desenvolvimento das habilidades de pensamento; nos anos 80,
tivemos o movimento do pensamento crítico de modo que, hoje em dia, a educação para o
pensar é algo muito comum, muito usual entre as teorias a respeito da educação. E desde o
início estamos comprometidos, estamos certos de que o pensar tem sua morada, sua casa na
filosofia. E não seria justo dar às crianças somente as habilidades cognitivas e não o
restante da disciplina. Vamos falar da educação para um pensar de ordem superior - uma
combinação de pensamento crítico e criativo ou, em outras palavras, pensamento analítico e
pensamento sintético. Esse pensar é cultivado, desenvolvido e estimulado pelo diálogo
numa comunidade de investigação.
Com efeito, uma das coisas que Filosofia para Crianças faz é transformar a sala de aula
tradicional numa comunidade onde o professor está encarregado de facilitar os
procedimentos da investigação e passa a ser um co-investigador quando chega às perguntas
substantivas da filosofia: ‘O que é um amigo?’, ‘O que é a verdade?’ porque percebe que
nem ele, nem os alunos têm respostas para as perguntas filosóficas que estão sendo
levantadas.
• O que é razão?
• O que é real?
• Qual o limite entre o que é real e o que é imaginário?
• O que é pensar ou pensamento?
• Posso saber o que outra pessoa está pensando?
• O que é regra?
• Por que temos de tratar as pessoas com respeito?
• O que é pessoa?
• Qual a relação entre essa coisa que chamamos corpo e essa coisa que chamamos
mente?
• O que significa belo ou bonito?
Se você se olha no espelho e diz a você mesma: ‘Bem, acho que sou bonita!’, como você
sabe disso? Ou então, você se olha no espelho e diz: ‘Na verdade, me acho muito feia!’,
como você sabe disso? Que tipo de critério você teria de ter para fazer esse juízo?
A filosofia é uma disciplina muito diferente das outras que as crianças têm na escola: dá
mais atenção às idéias do que aos fatos e convida todas as pessoas da comunidade a
prestarem especial atenção a tudo aquilo que no dia-a-dia assumimos ou aceitamos como
certo. Atualmente, Filosofia para Crianças conta com um currículo de histórias, ou novelas,
para crianças dos três aos dezoito anos de idade. Imaginem como seria se tivessem três anos
de idade , começando a ter algum conhecimento da linguagem e, todos os dias, trabalhando
com definições de alguns conceitos filosóficos. Uma manhã, por exemplo, ao se levantar,
sua mãe lhe diz: ‘Você tem de se apressar para chegar a tempo no colégio.’ Nos
perguntamos o que será que ela quer dizer com a palavra tempo. Seria possível perguntar à
mãe, mas não tenho certeza se ela poderia dar uma resposta satisfatória. Embora só tenha
três anos de idade, espera ser uma boa criança e suas mães também esperam que seja uma
boa criança. O que será que ela quer dizer com ser uma boa criança? As pessoas esperam
que a criança diga sempre a verdade, supõem que não precisam mentir, mas me pergunto o
que querem dizer com verdade. As crianças têm irmãos e irmãs que vão à escola e se
perguntam porque também têm que ir a um lugar como esse. As crianças de três anos falam
de suas mentes, usam a palavra mente, e dizem palavras como eu. E eu me pergunto o que
querem dizer com isso já que o tempo todo dizem ‘Eu quero isso’, ‘Eu quero aquilo’.
A filosofia é uma tentativa de explorar coisas como essas, observar os conceitos que
formam a nossa experiência cotidiana. Trata-se de prestar atenção aos conceitos que
usamos diariamente e que, na verdade, não temos nenhuma idéia do que significam.
Como já disse anteriomente, em filosofia não se está interessado nas provas ou evidências
científicas, no que chamamos de fatos, embora esse seja outro conceito filosófico e me
pergunto o que querem dizer com a palavra fatos e como as coisas chegam a ser fatos. Mas,
em filosofia não se está só interessado em somar opiniões a respeito de conceitos tais como
verdade ou amizade, mas também em encontrar boas razões para o que se pensa. Além
disso, depois que a criança passa a escutar os colegas, a filosofia torna-se uma disciplina
que nos dá coragem para mudar de idéia se percebemos que não é conveniente ou não é
bom manter o ponto de vista que tínhamos antes. Nesse sentido a filosofia é um amor à
sabedoria.
Em Filosofia para Crianças, seguimos alguns procedimentos com as crianças: por exemplo,
podemos utilizar cartazes com a letra Q para indicar qual a questão que estamos discutindo;
com a letra R para pedir ao colega que dê a razão pela qual está afirmando algo; com a letra
S para perguntar quais as suposições que estão sendo feitas ao dizerem o que estão dizendo;
com a letra I para explicar as inferências que estão sendo feitas. Como podemos distinguir
uma boa inferência de uma inferência ruim? Com a letra E para pedir um exemplo com
relação ao que se está dizendo; com a letra C para solicitar um contra-exemplo do que está
sendo dito.
Assim como as crianças podem aprender a usar um computador mais rapidamente que um
adulto, acredito que também podem aprender a jogar esse jogo mais rápido que nós. E elas
gostam, porque isso as ajuda a dar sentido ao mundo em que vivem.
Uma maneira de ver o todo da nossa proposta é pensar a respeito das antigas e tradicionais
categorias tais como verdade, belo, bom e, depois, perguntar a nós mesmos como podemos
ver as subdisciplinas ou partes da filosofia. Lidar com essas perguntas - o que é verdadeiro
ou o que é a verdade, o que é belo ou o que é a beleza, o que é bom ou o que é o bem - e
levá-las a crianças e jovens de três a dezoito anos. Percebam que em Filosofia para
Crianças aposta-se no cultivo do bom juízo - os juízos estão envolvidos no que dizemos,
produzimos e fazemos. Então, a beleza, o bem e a verdade começam a servir de idéias
reguladoras a partir das quais nos conduzimos. As proposições são verdadeiras ou falsas, as
obras de arte são belas ou não são belas (as criações) e as ações são boas ou são más.
Outra maneira de ver o todo da proposta é que Filosofia para Crianças trata de dar às
crianças a conscientização - conscientizá-las em relação aos vários atos em que estão
envolvidas no dia-a-dia quando falam umas com as outras.
Não se trata apenas de falarem sobre as coisas nas quais estão interessadas mas que sejam
conscientes, por exemplo, de que em alguns casos têm de ser sensíveis ao contexto: quando
dão as razões, quando apresentam os contra-exemplos, quando fazem inferências, quando
fazem analogias e avaliam se são boas, quando emitem juízos de valor de modo que seus
colegas podem perguntar quais são seus critérios. Enfim, a lista de coisas que fazemos com
nossa mente todos os dias é infinita.
Mas quando estou consciente desses tipos de atividades mentais que tenho, posso chegar a
ter um certo autocontrole e a ser consciente de como posso chegar a pensar e agir melhor.
Existe, portanto, uma ênfase no construir, ou chegar à perfeição, no crescer em direção à
perfeição. E a pergunta é: como fazer isso com crianças e jovens entre três e dezoitos anos?
O que nós fizemos foi escrever uma série de novelas eliminando todo o campo técnico da
filosofia, o jargão filosófico, ou seja, usando as palavras do dia-a-dia, as palavras comuns,
observando os diferentes ramos da filosofia e verificando como se relacionam com a nossa
experiência.
Se o objetivo for trabalhar nos primeiros anos da escola primária, temos Elfie, que se
concentra na habilidade de fazer distinções. O programa Issao e Guga centra-se no mundo
da natureza, na importância de melhorar e enriquecer nossas percepções e entender a
relação entre o eu e o mundo - o mundo das estrelas, dos animais, dos rios. Pimpa centra-se
na linguagem e nas habilidades de raciocínio analógico. Se não dominamos perfeitamente
as analogias, de certo modo estaremos prejudicados para o resto de nossas vidas pois não
teremos a habilidade de perceber semelhanças e diferenças, e todo o mundo da linguagem
figurada estará fechado para nós.
A descoberta de Ari dos Telles, uma novela para crianças entre dez e doze anos, tenta
introduzi-las à lógica formal e informal e à investigação filosófica em geral. Luísa é uma
novela centrada na investigação ética e foi pensada para jovens no final do 1o grau. Suki é
uma novela centrada na investigação estética e foi pensada para alunos do início do 2o grau
e baseia-se na escrita de poesias e de pequenas histórias de ficção. Mark é uma tentativa de
aplicar a filosofia às questões políticas e sociais: o que é liberdade, o que queremos dizer
com as palavras democracia, comunidade, justiça. Recentemente, elaboramos um programa
para crianças bem pequenas chamado The Doll Hospital. Neste programa, as crianças são
levadas a perceber as condutas necessárias numa comunidade de investigação de maneira
consciente - o que realmente quer dizer escutar uma outra pessoa, quando se pode dizer que
estamos realmente escutando e quando não estamos, o que é dar uma razão. Sempre temos
que dar razões? Como distinguir uma boa razão de uma que não é boa?
Outra maneira de dizer isso é observar todo o conjunto de disciplinas a que as crianças
estão expostas no 1o grau - linguagem, artes, matemática, ciências, educação física, estudos
sociais, e perceber quais as habilidades que tentamos cultivar - ler, escrever, falar e escutar,
prestar atenção. Depois, verificar qual o tipo de pensamento que se pressupõe que elas
tenham para fazer esse tipo de coisa em geral : o pensamento crítico e o criativo estão
subjacentes ao ler, ao escrever e ao falar bem. Então, por que não posso ter a oportunidade
de tratar do tipo de pensamento subjacente às atividades que tenho na escola?
Outra maneira de ver a proposta é fixar-se nos diferentes tipos de programa que criamos e
observar as habilidades que tentamos desenvolver em cada um dos níveis. Por exemplo,
para as crianças de 6 a 8 anos, fazer distinções e fazer conexões; ter consciência do tipo de
inferência que fazem para as de oito anos; raciocínio analógico para as de nove e dez anos;
o reconhecimento de contradições para a investigação ética, investigação estética e
investigação política, e assim por diante. É preciso perceber que nos primeiros anos
estamos envolvidos em muita prática, e só mais tarde começamos a ver a estrutura do que
estamos fazendo.
É interessante notar que em filosofia, embora em diferentes idades possamos dar mais
atenção a diferentes habilidades, o tipo de conceito sobre o qual falamos não tem idade. No
programa inicial (The Doll Hospital) encontramos as crianças discutindo os mesmos
conceitos que aparecem repetidamente em todas as novelas - o que é uma escolha, o que é
um amigo, como sei que alguém gosta de mim, o que aconteceria se o tempo andasse para
trás, o que é a morte. Nos programas para o 2o grau usamos a palavra liberdade em vez de
escolha; identidade em vez de eu. As palavras mudam mas os conceitos se repetem. E,
lembrem-se: são esses conceitos que estão por trás da nossa experiência cotidiana. E quanto
mais nos apropriamos das habilidades, mais capazes seremos de discutir esses conceitos
que são subjacentes à nossa experiência cotidiana.
Além disso, o interessante é que os conceitos filosóficos são contestáveis, isto é, existem
muitos pontos de vista sobre o que significa uma determinada coisa. Se estamos fazendo
filosofia e nos deparamos com palavras como verdade, liberdade, democracia, mente, eu,
vamos nos perguntar o que a outra pessoa está supondo ao usar essas palavras; e isso é o
que quero dizer quando digo que a filosofia é libertadora, pois quando percebemos que são
questões sempre em aberto, estamos mais protegidos em relação à doutrinação. E trata-se
também de respeitar as outras pessoas que têm pontos de vista diferentes, por exemplo,
sobre a natureza do eu. Podemos nos dar conta de que outras pessoas podem ter uma
concepção de mundo coerente, diferente da nossa, e que dá sentido ao que ela faz. Se
esperamos entender uns aos outros, devemos perceber o que cada um pressupõe quando usa
palavras como amigo, tempo ou justiça. Podemos estar casados com uma pessoa por trinta
anos e, de repente, nos dar conta de que ela pensa de uma maneira muito diferente a
respeito dessas palavras.
Mas, nas diversas disciplinas da escola de 1o grau, estamos tratando dessas questões
filosóficas, estamos o tempo todo cruzando com elas: por exemplo, em educação artística,
estamos expostos a critérios estéticos. Dizemos que algumas obras são boa literatura e
outras não, e se não estamos habituados a perguntar qual o critério que está sendo usado
para fazer tal distinção, nós simplesmente a introduzimos no sistema intelectual. Em
ciências sociais, por exemplo, boa sociedade, democracia, justiça, são conceitos que
precisam ser esclarecidos. Em ciências, temos palavras como causa e efeito, descrição e
explicação, e todas elas têm diferentes significados para diferentes cientistas e, no entanto,
nós assumimos que todos pensam a mesma coisa a respeito desses conceitos quando
chegamos nas aulas de ciências na escola. E, assim, eu poderia passar muito mais tempo
mostrando os pressupostos filosóficos que aparecem em cada uma dessas disciplinas.
A filosofia é uma maneira de perceber que tempo aparece em ética, em estudos sociais e em
todas as diferentes disciplinas.
Como já disse antes, a metodologia que utilizamos em Filosofia para Crianças é chamada
de Comunidade de Investigação e, de certo modo, envolve uma outra revolução em relação
à educação tradicional. Na educação tradicional é como se o capitalismo tivesse penetrado
na maneira como educamos as crianças de modo que ao invés de achar que o conhecimento
é algo que deve ser compartilhado, em vez de achar que você pode me ajudar e eu posso
ajudá-lo e nós dois juntos podemos construir e dar significado ao mundo, acaba achando,
após algum tempo, que o conhecimento é como o dinheiro que tenho no banco e não quero
compartilhar com ninguém. Guardo-o para mim mesma, só me interesso pela prova e trato
de tirar uma boa nota porque quero ser a melhor da classe e só estou interessada em mim,
em mim, em mim! Eu não compartilho nada, não falo com os outros porque eles podem
aprender comigo e talvez tire uma nota mais alta e eu não quero isso; e além do mais, quero
entrar na universidade... E todos nós já sabemos o resto!
Nesse tempo todo também vimos como as crianças crescem em relação a auto-estima, em
seu próprio senso de personalidade. Algumas são ouvidas pela primeira vez, antes suas
idéias nunca tinham sido levadas a sério e na comunidade de investigação constrói-se a
partir delas. Isso é muito importante para o crescimento das crianças. Uma outra
característica da comunidade de investigação é trabalhar cooperativamente, respeitando uns
aos outros como possíveis fontes de saber. Algumas vezes, mesmo a criança mais apagada
pode dizer algo capaz de mudar todo o rumo da conversação; o que não só é importante
para essa criança como também para o trabalho de investigação que se está fazendo.
Notem que existe uma certa conscientização no tipo de coisas que se assume no diálogo
filosófico. E, de um ponto de vista pedagógico, as crianças estão cultivando certas
disposições: por exemplo, a disposição para maravilhar-se, a disposição para ser visto, para
respeitar os outros e respeitar pontos de vista diferentes dos seus. Disposição para ser
criativo, coragem para produzir suas próprias teorias, disposição para ver alternativas
diferentes das suas e, portanto, para autocorrigir-se. À medida que o processo se
desenvolve, começam a sentir a necessidade de algum tipo de ideais que regulem a conduta
do dia-a-dia. Assim, ideais como verdade, beleza e bondade começam a ter sentido ou um
significado intrínseco para mim e, se não tiverem, certamente os colegas na comunidade
vão me ajudar. Nesse sentido, a investigação filosófica é uma educação moral pois,
mediante a experiência do diálogo em comunidade, fortalecemos nosso raciocínio e
expressamos que queremos viver nossas vidas de um modo que sejam mais verdadeiras,
mais belas e melhores.
Finalmente, havia algumas pessoas que estavam interessadas na avaliação e, então, o que
fizemos foi distinguir uma série de condutas para poder observar por meio de vídeos se
aconteciam mudanças nas condutas que ocorrem na sala de aula. Seis meses após ter se
iniciado o diálogo, as crianças estão fazendo mais perguntas, perguntas melhores, parecem
reconhecer a dimensão filosófica do que vêem e parecem evitar o que chamaríamos de
grandes generalizações como ‘todos os argentinos são....’, ‘todos os chilenos são..’, ‘todos
os mexicanos são...’ou ‘todas as pessoas dos Estados Unidos são...’; parece que esse tipo de
generalização começa a desaparecer. Em outras palavras, as crianças começam a ser mais
cuidadosas com o que dizem, pedem mais provas, mais evidências, começam a fazer
hipóteses sobre temas como personalidade, tempo, espaço Começam a trabalhar juntas em
lugar de tentar derrubar umas às outras. Se alguém diz algo e o professor pergunta ‘Por
quê?’ - sempre há algum outro que logo tenta ajudar a dar uma razão. Estão construindo a
partir das idéias dos outros, estão trabalhando como uma equipe, estão fazendo analogias,
estão perguntando e questionando as analogias, estão questionando as inferências, parecem
escutar uns aos outros com mais atenção, parecem ter a mente mais aberta, parecem estar
mais dispostas a abrir os conceitos ao invés de fechá-los. E essas são coisas que podemos
ver se estão ou não sendo feitas. E se estiverem, talvez também estejam pensando melhor.
Nossa esperança é que à medida em que pensem melhor, vivam um mundo melhor em
termos qualitativos. Sem dúvida, não há garantias. Uma das coisas que a filosofia lhes
ensina é aprender a pensar por elas mesmas e uma vez que se aprende a fazer isso é muito
difícil prever o que vai se fazer com essas habilidades. Mas a comunidade de investigação
atua como uma espécie de rede de segurança porque é preciso praticar certas virtudes para
sobreviver. Como, por exemplo, aprender a escutar os outros e levá-los a sério. E se alguém
tem dez ou quinze anos de prática dessa investigação em comunidade, acho que alguns
hábitos e algumas habilidades que aprende passam a fazer parte de sua experiência no
mundo.
* Profa. Ann Margaret Sharp é diretora do Institute for the Advancement of Philosophy for Children, na
Universidade de Montclair, NJ, Presidente do International Council for Philosophical Inquiry with Children e
co-autora dos manuais do Programa de Filosofia para Crianças.
Existem hoje mais crianças fazendo filosofia no Brasil do que em qualquer outro país.
Muitos centros regionais já existem e outros virão a ser criados. A institucionalização da
Filosofia para Crianças já começou em várias universidades do país. Programas de
treinamentos e Mestrados em Filosofia para Crianças também já passaram a existir. Tudo
isso me dá grande alegria e me maravilho com o que vem ocorrendo. Podemos afirmar hoje
que o "sonho impossível" de Catherine Young Silva está se tornando uma realidade
concreta.
1. memória e expectativa
3. signos e símbolos
4. burocracia e espírito
5. socialização e liberdade
É preciso ser historicamente honesto. A Filosofia para Crianças não é uma idéia totalmente
nova no Brasil. Quando Catherine Young Silva retornou do Institute for the Advancement
of Philosophy for Children, nos Estados Unidos, descobriu que ela voltava a um solo fértil.
Em pouco tempo, ela percebeu que sua construção se calcava no trabalho de Paulo Freire,
que havia preparado milhares de professores brasileiros para pensar em termos de diálogo,
criatividade, raciocínio crítico e de superação da opressão. Os objetivos e a metodologia da
comunidade de investigação foram bem vindos - o que era necessário era o controle do
legado intelectual, herança legítima de todas as crianças brasileiras. Legados, no entanto,
pretendem dar poder que é utilizado da forma que considerarmos mais apropriada. Legados
não devem paralisar, nem sufocar, nem dominar. O legado intelectual da humanidade está
aí para ser apropriado pelas crianças para que elas o utilizem para criar um mundo melhor.
Por outro lado, quando uma investigação genuína ocorre numa sala de aula, as crianças e os
professores esquecem o tempo cronológico. Eles entram em outro reino: o de kairos ou o do
tempo realizado - eles experienciam o atemporal. Já foi dito que a observação de uma
comunidade de investigação em andamento é análoga à observação prazerosa de uma obra
de arte genuína. A discussão entre as crianças e o professor expressa a qualidade da
liberdade associada à criatividade e autodeterminação. As possibilidades emancipatórias
latentes das experiências passadas das crianças se abrem através do diálogo partilhado -
diálogo carregado de expectativas de novas idéias. Há uma dimensão de criação estética na
conversação em curso. A participação neste tipo de diálogo permite que a criança
desenvolva um senso do que é certo e apropriado falar numa determinada situação. Uma
espécie de totalidade com vida própria é criada a partir dos diálogos. Tal conversação é
marcada pela comunhão - pessoas reunidas em comemoração harmoniosa. E o que estão
comemorando? Os ideais, aquelas criações que fazem com que nós nos superemos:
verdade, justiça, beleza, amor, bondade. Essa comunhão tem sempre uma conotação
atemporal.
Infelizmente, nós seres humanos, não vivemos num contexto onde podemos sempre criar,
pensar e agir além do tempo cronológico. Precisamos tanto do tempo cronológico quanto
do tempo realizado para vivermos o nosso dia-a-dia de modo criativo e responsável. Por
sermos seres físicos, nos vemos interminavelmente tentando equilibrar as tensões entre
esses dois tempos. Mas não devemos jamais esquecer que é kairos que traz o espírito, a
comunicação. É kairos que sinaliza a criatividade e a liberdade. Este tempo é sagrado -
tempo espiritual - de onde nós extraímos a matéria das nossas criações. As pessoas que
experienciam este tempo de forma partilhada, desejam naturalmente criar rituais. Esses
rituais são os signos de sua vontade de evocar uma atmosfera especial ou uma presença
para o trabalho em grupo. São símbolos do modo como uma comunidade se reúne para
criar algo novo com a colaboração de cada um dos participantes. Pensem nos rituais
variados e ricos que têm sido criados nas salas de aula pelo Brasil afora que marcam esta
experiência comunitária.
Estes dois símbolos apontam para o objetivo maior da Filosofia para Crianças: a liberação
das crianças. Eles não tratam da criação de estruturas institucionais, nem do poder, do
dogma ou do autoritarismo. Trabalhar colaborativamente para converter as salas de aula em
comunidades de investigação é possibilitar as condições educacionais para que as crianças e
os professores se tornem seres reflexivos, autocorretivos e autocompreensivos enquanto
indivíduos e enquanto grupos. Essas comunidades são caracterizadas por kairos e pelo
diálogo genuíno - a intersubjetividade autêntica. As crianças aprendem a aprender com as
outras e experienciar o que significa crescer, mudar de idéia e criar horizontes de
significados cada vez mais vastos para elas mesmas e para os seus colegas. Essas
comunidades de investigação são as sementeiras de novos significados, novas
possibilidades e novas energias - o solo fértil para a transformação social e espiritual.
Devemos assegurar que todos os Centros de Filosofia, sejam eles nacionais ou regionais, se
caracterizem pelos traços de uma comunidade de investigação, para que não se tornem
rígidos, dogmáticos, temerosos do novo ou excessivamente competitivos. Devemos ser
capazes de reconhecer imediatamente os grupos de Filosofia para Crianças pelo seu
pluralismo, pelo não autoritarismo, pela autocorreção, solidariedade, diversidade e
comprometimento com o falibilismo. São esses traços característicos que protegerão a
Filosofia para Crianças da degeneração num culto ou num dogma, ou num corpo inerte de
fatos a serem memorizados pelas crianças.
Os participantes de uma comunidade de Filosofia para Crianças são indivíduos leais - leais
sempre, mas de uma forma crítica. São pessoas, como vocês e eu, que buscam trabalhar em
direção a uma sociedade não sexista, não racista, diversa, complexa, multifacetada, justa e
significativa para todos. Elas sabem que no seu trabalho do dia-a-dia devem ser
inerentemente democráticas, igualitários e não hierárquicas. Reconhecemos essas pessoas
não pelo que elas dizem, mas pelo que elas fazem. Observem como elas sempre abrem
espaço para novas vozes, novas formas de se ver o mundo e de solucionar os nossos
problemas comuns.
Dewey disse, em algum lugar, que a boa educação é caracterizada por uma tensão entre a
socialização e a liberdade. Para que seja acessível para as massas, a educação deve ser, de
alguma forma, institucionalizada. Isto é um fato. Entretanto, nós da Filosofia para Crianças,
temos a responsabilidade de sempre dar um passo para trás e nos assegurarmos que a
institucionalização não seja uma conquista em detrimento da reflexão crítica, da
criatividade, do espírito nem da liberdade. Esse distanciamento pressupõe que estejamos
equipados para ter uma consciência crítica e criativa de todos os poderes comuns que dão
forma a nossos pensamentos e ações enquanto deliberamos em grupo. As comunidades de
investigação são lugares onde crianças e adultos se tornam criticamente conscientes de
todos os significados e temas (sociais, políticos, econômicos, etc.) que exercem influência
nas nossas vidas cotidianas e de como eles dão forma ao mundo. Essas pessoas nutrem,
uma nas outras, a coragem para mudar essas forças, caso elas sejam contrárias à liberação.
Muito obrigada.
O melhor lugar onde a racionalidade pode ser desenvolvida através do cultivo das
habilidades do pensamento (as habilidades de investigação, de raciocínio, de formação de
conceitos e de tradução) é na "comunidade de investigação", cuja alma ou essência é o
diálogo.
É na troca de idéias que as pessoas têm grande chance de estar expondo suas idéias aos
outros, de estar escutando as idéias dos outros sobre o mesmo tema ou assunto, de estar
comparando suas idéias com as dos outros e as dos outros entre si e de estar, a partir daí,
podendo melhorar, completar, ou mesmo modificar o que pensam ou, então, confirmar
ainda mais seus pontos de vista.
Costumamos dizer que, na situação de dialogo, as pessoas trocam, alem das suas
convicções, os seus argumentos, as suas razões relativas às próprias convicções. É nesta
troca de razões que elas podem ficar mais fortalecidas, menos fortalecidas ou até
claramente frágeis ou sem sustentação. Estas oportunidades são ótimas para provocar, nas
pessoas envolvidas, a autocorreção dos seus pontos de vista, o que implica a utilização das
mais diversas habilidades de pensamento.
Fazer tudo isto é fazer investigação sobre um tema ou um assunto, em grupo, e com a
intenção de esclarecê-lo cada vez mais. Pôr-se em grupo e com tal intenção é o que
chamamos de comunidade de investigação.
As habilidades que revelam competência no diálogo são habilidades de raciocínio. Por essa
razão, diálogo entre crianças permite que você promova as habilidades de raciocínio sem o
uso de treinos, sem compulsão. O caráter de jogo, espontâneo, do diálogo entre as crianças
faz com que a participação seja agradável e autogratificante. Não é algo que se faça para
agradar ao professor ou por qualquer recompensa extrínseca."
Este caráter de jogo, de lúdico, de automotivação, pode ser observado facilmente quando
se trabalha com crianças e jovens em situações de diálogo. Quando eles estão juntos,
buscando esclarecer conceitos não muito claros, construir uma informação ou
conhecimento a respeito de algo, decidir se um comportamento ou uma atitude é a mais
adequada ou correta que outra, etc., o envolvimento das crianças e dos jovens é
surpreendente, como é surpreendente o esforço que têm que fazer para estar:
- autocorrigindo-se quando convencidos pelos outros de seus pontos de vista não são
verdadeiros ou completos;
- elaborando mentalmente tudo isto e sendo capazes de expressar verbalmente este conjunto
de elaborações.
- aprende-se que o próprio ponto de vista tem o mesmo valor e peso que os dos outros;
- aprende-se a respeitar a vez dos outros e a exigir respeito pela própria vez;
- aprende-se que as regras podem ser discutidas e modificadas, mas que são necessárias
para a vida comum;
Estas, e as razões anteriores, não são boas razões para concordarmos que nossas salas de
aula devem ser transformadas em pequenas comunidades de investigação? Por que não
tentar?
Em A Filosofia na Sala de Aula, Lipman acrescenta, ainda, as seguintes idéias: "Quando
nos envolvemos no diálogo, devemos estar intelectualmente alertas: não há lugar para o
raciocínio desleixado ou para comentários involuntários ou brincadeiras impensadas.
Devemos ouvir cuidadosamente os outros (pois ouvir é pensar). Devemos, então, ensaiar
em nossas mentes o que nós e os outros dizemos e reconsiderar o que deveríamos ter dito
ou o que os outros deveriam ter dito.
Juntamente com Lipman, Ann Sharp tem escritos sobre este tema dentre os quais chamo a
atenção para o artigo Educação: Uma Jornada Filosófica (publicado pelo Centro Brasileiro
de Filosofia para Crianças - Coleção Pensar no. 2), no qual ela diz:
Paulo Freire caminha na mesma direção ao propor uma Educação Dialógica, expressão
forte e marcante do seu pensamento pedagógico. Num dos seus livros, Extensão ou
Comunicação?, onde o próprio título já propõe a discussão do que escolher, comunicação
(diálogo), ou extensão (ensino de verdades prontas), ele diz:
"A educação é comunicação, diálogo, na medida em que não é transferência de saber, mas
um encontro de sujeitos interlocutores que buscam a significação de significados"(p.69).
"Ser dialógico é não invadir, não manipular, não sloganizar. Ser dialógico é empenhar-se
na transformação constante da realidade. Esta é a razão pela qual, sendo o diálogo o
conteúdo da forma a ser própria à existência humana, está excluído de toda relação na qual
alguns homens sejam transformados em "seres para os outros" por homens que são falsos
"seres para si". É que o diálogo não pode travar-se numa relação antagônica.
A idéia acima de "invasão cultural" é uma idéia fortemente repugnante para quem se pauta
pelo ideal de uma autêntica racionalidade. Invadir as mentes dos outros e colocar nossas
idéias, autoritariamente nelas, é o mesmo que alguém invadir a casa dos outros ou um país
invadir o país dos outros. As três situações são situações de violência e de dominação e, por
isto mesmo, elas não são justificáveis. isto é, não há razões ou conteúdos racionais que as
justifiquem.
Um bom começo para entender o papel da filosofia é a obra "Filosofia na Sala de Aula",
onde Lipman inicia refazendo o percurso histórico da filosofia na Grécia antiga, quando os
cidadãos começaram a pensar sobre os pensamentos. A partir de Sócrates, no século V a.C.,
a filosofia passa a ser relacionada com a investigação dialógica. Ele nos mostra que pensar
é um ofício, e é um tipo de ofício que não se faz por ninguém. Ele modela a investigação
intelectual para nós, procurando se abster de impor produtos prontos da sua própria
investigação. Esta investigação começa com os assuntos de maior interesse para cada um,
para conhecer a si mesmo, um incentivo de ver a vida se aperfeiçoar a partir do pensar
sobre ela. Ele envolve na conversação, desperta intelectualmente para ouvir
cuidadosamente os outros (que é pensar), pesar as palavras para falar (que é pensar),
reconsiderar o que foi dito, explorar as possibilidades, descobrir alternativas, reconhecer
outras perspectivas, ângulos de visões diferentes. O seu pensar é rigoroso. As idéias e
opiniões têm que ser internamente coerentes, apoiadas em evidências. Nas palavras de
Lipman, "A investigação intelectual é uma disciplina que tem a sua própria integridade, e
não se desfaz em investigação científica, nem permite ser mascarada com uma ideologia
política ou religiosa" ( Lipman, 1994, p.13). Sócrates descreve-se como uma "parteira" e
nos propõe tal atitude. Platão aprendeu com Sócrates que a filosofia é diálogo, a vida do
filósofo é de aprendiz de professor; que a filosofia é ensinada tanto quanto é aprendida. Ela
não pode ser incutida à força, mas desejada.
Historicamente a filosofia tem sido relegada a uma segundo plano, perdeu seu caráter
popular, tornando-se elitista. A proposta de Lipman é de democratizar a filosofia. Fazer
filosofia é um direito de todas as pessoas por ser uma necessidade de todos os seres
humanos.
Lipman parte da sua experiência frente à ineficiência do sistema educativo e dos métodos
utilizados para combatê-lo. O critério que propõe para mudar a educação é que o objetivo
global do sistema educacional deve estar voltado, essencialmente, para o seu valor
intrínseco em contraste radical com o sistema cujos valores são puramente instrumentais e
extrínsecos, com significado e racionalidade e com uma unidade metodológica coerente.
Para Lipman, os significados das experiências não podem ser dados, transmitidos, mas têm
que ser captados, buscados por meio do envolvimento no diálogo e na investigação. Eles
nascem da reflexão das relações entre as partes e o todo, entre meios e fins. A educação
está onde surge o significado que pode ser em qualquer situação da vida da criança.
Para que as crianças possam trabalhar com significados elas precisam ser ensinadas a
pensar por si mesmas. "O pensar é a habilidade par excellence que nos habilita a captar os
significados" (Ibid, p.32). O pensar é uma habilidade passível de ser aperfeiçoada. Lipman
coloca o problema pedagógico que é o de transformar a criança que já pensa numa criança
que pense criticamente. Por isso, ele alerta que "um programa confiável de habilidades de
pensamento deveria fazer mais que capacitar as crianças a lidarem de modo efetivo com as
tarefas cognitivas imediatas, tais como problemas a serem solucionados ou decisões a
serem tomadas. Deveria buscar consolidar as potencialidades cognitivas das crianças de
modo a prepará-las a um pensar mais efetivo" (Ibid, p.35). Não transformá-las em filósofos,
mas ajudá-las a pensar mais, a ser indivíduos mais reflexivos, a ter mais consideração, a ser
mais razoáveis e criteriosas, a desenvolver o juízo que é o vínculo entre o pensamento e a
ação. Ele parte do pressuposto que as habilidades de pensamento (cognitivas) - habilidades
de raciocínio, de investigação, formação de conceitos e tradução - são pré-requisitos para o
envolvimento e engajamento dos alunos na investigação e a trabalhar dentro das disciplinas
tradicionais. Embora a linguagem e matemática sejam chamadas de "habilidades básicas"
porque são capazes de abrir as portas para outras habilidades cognitivas e reforçá-las, elas
são apenas duas expressões do processo cognitivo, cujas habilidades cognitivas subjacentes
necessitam ser desenvolvidas para ampliar a capacidade da criança de aprender. Estabelece
uma analogia entre a boa escrita e literatura e o bom pensamento com a filosofia. O ensino
do raciocínio em função de melhorar a leitura, uma vez que o ato de ler é mais um meio de
ajudar as crianças a pensar do que um fim em si mesmo. A leitura e o raciocínio são
habilidades que podem ser ensinadas e se reforçam mutuamente. As habilidades, por sua
vez não podem ser ensinadas isoladamente num exercício mecânico, mas correlacionadas
com a aquisição dos significados, dos sentidos da própria vida humana.
- trata da forma como os conceitos regulam nossa compreensão das coisas que fazemos em
nossas vidas. Esses conceitos são fundamentais para dar sentido aos aspectos sociais,
estéticos e éticos de nossa vida. Esses conceitos são essencialmente contestáveis. A
filosofia é atraída pelo problemático, pelo controverso, pelas dificuldades conceituais que
se escondem nas frestas e interstícios de nossos esquemas conceituais. É o exame crítico
das idéias. Começamos a pensar quando nos deparamos frente a algum problema ou
situação problemática. Quando algo nos é apresentado como conhecido, completo e
acabado, nós não somos convidados a pensar nem a dialogar;
- trabalha com a consistência do pensar, falar e agir, do raciocínio válido, das boas razões
(lógica);
- desenvolve a compreensão dos aspectos lógicos, epistemológicos, éticos, ontológicos,
sociais, políticos, estéticos já presentes mas negligenciados nas matérias que os alunos
estudam.
Lipman aponta que a lógica formal contribui com o pensar organizado na medida em que
incentiva os alunos a serem sensíveis às inconsistências, terem interesse pelas
consequências da argumentação, estarem conscientes da coerência de seus pensamentos...
Deixa claro que há limites na lógica formal que devem ser compensadas com a lógica das
"boas razões" que não tem regras específicas e necessitam de avaliação do próprio
pensamento e do pensamento dos outros, dependendo do contexto das ações ou dos
acontecimentos. Esta lógica é necessária dada a ampla variedade de situações que pedem
um pensamento deliberativo.
Assim, Mead concebe a teoria do self compreendendo-o como cognitiva e social: "A
essência do self (...) é cognitiva: ela reside na conversação de gestos internalizados que
constitui o pensamento, ou em termos da qual opera o pensamento ou a reflexão. Daí, a
origem e as bases do self, como aquelas do pensamento, serem sociais" (Ibidem, p. 226).
Para Lipman, a discussão aguça o raciocínio e as habilidades de investigação das crianças
como nenhuma outra coisa pode fazer. Durante a investigação dialogada a autoridade do
professor consiste, no que se refere a técnicas e procedimentos da investigação, em
estimular os alunos a explicar os fundamentos e implicações de seus pontos de vista,
garantir os meios de se defender no curso da discussão filosófica(lógica). Ele pode intervir
para introduzir considerações filosóficas relevantes para salvaguardar a integridade da
investigação.
"aceita, com boa vontade, a correção feita pelos colegas; é capaz de ouvir atentamente os
outros; é capaz de considerar, seriamente, as idéias dos demais; é capaz de construir sobre
as idéias dos demais; é capaz de desenvolver suas próprias idéias sem medo de rejeição e
humilhação; é aberta a novas idéias; é capaz de detectar pressuposições; demonstra
preocupação com a consistência ao apresentar um ponto de vista; faz perguntas relevantes;
verbaliza relações entre meios e fins; mostra respeito pelas pessoas da comunidade; mostra
sensibilidade ao contexto ao discutir conduta moral; exige que os colegas dêem suas razões;
discute questões com objetividade; exige critérios"(SHARP, 1995, pp. 7-8.).
Para Lipman, a educação deveria tomar como ponto de partida a situação em que a criança
se encontra. Ele fica indignado em relação à falta de percepção ou da má interpretação do
adulto em relação à criança:
Bibliografia
01. LIPMAN, Matthew. A Filosofia Vai à Escola. São Paulo, Summus Editorial, 88.
02. ___________ A Filosofia na Sala de Aula. São Paulo, Nova Alexandria, 94.
04. MEAD, George Herbert. Linguagem como Pensamento. In: Thinking, The Journal of
Philosophy for Children, Volume I, Number 2, 1990, p. 23-26.
05. SASS, Odair. Crítica da Razão Solitária: a Psicologia Social de George Herbert Mead.
Tese de doutoramento, PUC/SP, 1992.
06. SAVIANI, Nereide. Saber Escolar, Currículo e Didática. Campinas, SP, Ed. Autores
Associados, 1994.
Angélica Sátiro*
* Angélica Sátiro, pós graduada em Temas Filosóficos, é diretora de projetos do Grupo Pitágoras e autora de
inúmeros artigos e materiais na área da Educação.
Será que Nietzsche tem razão quando diz que o humano é um ser que avalia? Pensar na
questão da avaliação de dentro do conceito de ser humano nos faz pensar nela mais
globalmente; nos faz olhar filosoficamente para a avaliação.
O que significa definir o humano como ser avaliador? Avaliar é uma necessidade humana?
Se o humano é um ser que avalia, então avaliar é um atributo daquilo que constitui a
humanidade do humano. Portanto a questão da avaliação não pode ser pensada apenas
como estratégia, técnica ou um procedimento pedagógico. Mas como algo que forma parte
do nosso pensamento, da nossa racionalidade. Nesse sentido, não há como falar de
aprimoramento do pensar sem falar em avaliar.
O pensamento quer se tornar um justo avaliador. E como isso é possível? Como poderemos
nos tornar justos avaliadores se somente formos avaliados? Se não exercitarmos nossa
capacidade de avaliar? Como nos autocorrigir sem saber avaliar? Como nos autoconhecer
sem saber avaliar?
Como compreender o ser humano como um ser de relações, sem buscar desenvolver nesse
humano a capacidade de perceber relações? Qual ser humano poderá ser capaz de
conhecer-se desconhecendo uma capacidade fundamental que, inclusive, lhe atribui
significado enquanto ser?
Se o ser humano é um sujeito por vocação, alunos são seres humanos, portanto são sujeitos.
Então, por que deveriam ser tratados como objetos no processo avaliativo?
Neste sentido é importante ressaltar que os alunos precisam ser tratados como avaliadores e
não apenas como avaliados. Avaliadores da dinâmica da aula, da metodologia, dos temas
em discussão, do trabalho do professor, das habilidades de investigação que a aula se
propõe a desenvolver, dos componentes da comunidade de investigação e de si mesmo.
Propiciar, aos alunos, espaços para que sejam avaliadores é uma transformação necessária
para as salas de aula. É uma transformação que considera esses pressupostos que ampliam a
concepção de avaliação e do ser humano como sujeito avaliador. É uma transformação que
está em sintonia com os princípios do Programa de Filosofia para Crianças, que quer
promover o aprimoramento do pensar.
Vale lembrar o sentido etimológico da palavra pensar, que vem de sopesar e significa pôr
na balança para avaliar o peso de alguma coisa. Nesse sentido, em alguma medida pensar é
avaliar. Portanto, avaliar bem é necessário para pensar bem. Aprender a pensar por si
mesmo, a ter autonomia intelectual implica em aprender a avaliar.
Dada a amplitude desta concepção, avaliar precisa ser visto como um processo contínuo de
pensamento. Não pode ser tratado como fato isolado e posterior ao trabalho de ensino na
ação educativa.
Sabemos, hoje, que o ser humano pensa através da mediação de símbolos. Também
sabemos que esse processo é construído através de múltiplas relações que fluem em
diferentes direções, desde, para e através do mundo cultural, social e físico. Já que o ser
humano pensa através de símbolos, por que não utilizar imagens e figuras que contenham
elementos artísticos e culturais, como símbolos mediadores para o ato de avaliar?
Normalmente, nas escolas, quando os alunos são avaliados recebem notas, créditos. É feita
uma analogia do desempenho dos alunos com números. Isto também é algo questionável,
será possível quantificar o que é qualitativo? Bem ,esta é uma boa questão para se pensar
mais profundamente. Por agora interessa-nos lembrar que em alguma medida o que se faz
quando avalia um aluno é uma analogia, e que os símbolos utilizados são números.
Aqui estamos invertendo o lugar do aluno - de objeto avaliado para sujeito avaliador e
estamos propondo que se utilize outros símbolos - que sejam imagens artísticas e de
significado cultural representativo para os sujeitos avaliadores.
Desta forma, avaliar será mais uma oportunidade para re-significar os símbolos que já estão
presentes na imagem de mundo que cada um tem. Será uma oportunidade de
prosseguimento da aprendizagem, que incorpora não só o desenvolvimento e o
aprimoramento das habilidades mentais envolvidas no ato de avaliar; mas também da
ampliação da compreensão dos símbolos que utilizamos na compreensão do mundo e da
sociedade.
É preciso considerar isso e sua conexão com o fato de trabalhar a capacidade de raciocinar
analogicamente, ao se propor que os alunos sejam os sujeitos avaliadores. Se os símbolos
são construídos através de múltiplas relações, então, nesta proposta, os alunos -sujeitos
avaliadores - estarão cada vez mais aptos para pensar e interpretar a realidade.
É corrente, hoje, a idéia de que o ser humano interpreta o mundo a partir de esquemas de
pensamento que são redes intrincadas afetivas, cognitivas, conscientes e inconscientes.
Considerando isto, utilizar elementos estéticos para realizar avaliações, com certeza,
ampliará as possibilidades de se atingir mais globalmente estas redes.
Ainda podemos ressaltar que o ser humano interpreta o mundo a partir de elaborações
internas, construídas dentro e a partir do contexto cultural e social.
Se interpretamos o mundo assim, podemos dizer então que avaliar conjuntamente é algo
muito interessante, porque enriquece a experiência coletiva e individual. A interação
resultante de avaliar, conjuntamente, colabora para o desenvolvimento do pensar por si
mesmo, porque permite a influência do outro sobre o eu e vice-versa e, ainda, permite a re-
significação dos elementos que são comuns ao contexto do qual os sujeitos avaliadores
fazem parte.
Segundo Matthew Lipman, "a infância é uma dimensão legítima da experiência humana."
Se concordamos com ele, então tudo o que foi afirmado acima, inclui as crianças , que
também necessitam ser tratadas como sujeitos avaliadores! Entretanto quando nos
referimos às crianças não podemos esquecer de algo fundamental que as caracteriza: a
ludicidade.
A atividade lúdica é importante para qualquer ser humano em qualquer idade. É difícil
pensar na hipótese de que alguém nunca brincou... Mas a criança brinca para se conhecer e
também para compreender o mundo que a cerca. Brincando a criança aprende a se
constituir como um ser pertencente a um grupo social, construindo assim sua identidade
cultural. Na brincadeira, a criança é desafiada a questionar, transformar e desvendar a
realidade. Nas brincadeiras, as crianças enxergam diferentes opiniões e pontos de vista,
além de lutar pelas suas próprias idéias. Utiliza dados, percepções e informações do mundo
à sua volta; o que permite a construção de hipóteses e análise da realidade.
Então por que não avaliar através de brincadeiras e jogos? Avaliar ludicamente parece ser
absolutamente pertinente ao universo infantil e não só ao infantil...
Rubem Alves diz que a tarefa da beleza é tornar leves as coisas que são pesadas. É disto
que estamos falando aqui. Falamos da possibilidade concreta de viver o ato de avaliar como
algo belo, alegre, prazeroso e com um sentido profundo para nossa própria humanidade!
"Cativa, a razão não pode fundar um diálogo entre homens livres: é preciso libertá-la. Mas,
não libertá-la para a ciência, e sim libertá-la para a doxa, para a prática da palavra, que
permite ao homem revelar e revelar-se, tornando transparente os contextos externos e
internos de dominação ilegítima."
Rouanet
Atualmente percebemos cada vez mais a necessidade de uma educação básica que priorize
a reflexão e a autonomia moral. Isto, de certa forma, significa dizer que carecemos de uma
educação que nos ofereça a possibilidade de discernir e deliberar com independência e
responsabilidade acerca das relações referentes à manutenção da vida, ao domínio público e
ao âmbito pessoal.
A pergunta que nos cabe enquanto educadores é: a escola tem condições de vislumbrar em
seu horizonte pedagógico a preocupação com a emancipação efetiva do aprendiz, e mais
especificamente, com a dimensão moral imanente a um projeto emancipatório
comprometido com a reflexão crítica do agir humano em sociedade? Se tem, o que
podemos fazer para potencializá-las? Se não tem, como podemos criá-las?
A epistemologia está presente nos objetos primeiros do processo pedagógico que é o trato
com o conhecimento, e também de maneira indireta em todas as atividades que circundam a
educação, já que esta, a educação, procura apoio em várias ciências, e, ainda em aspectos
aparentemente desvinculados da epistemologia, mas que não deixam de carregar maneiras
de compreender a realidade, passando, assim, por pontos de contato com os processos de
conhecimento.
O sistema de ensino, da maneira como estruturou seu programa curricular, sua concepção
de aprendizagem e suas bases metodológicas, colaborou duplamente para os propósitos da
razão instrumental - ao utilizá-la em sua teoria da educação, aceita seus pressupostos e
decorrências, divulgando-os como modelo; e o pior, ao levá-la para a sala de aula, amplia
seu poder hegemônico e aniquila a possibilidade de consolidação de uma racionalidade
mais aberta.
Com a moralidade a situação não é diferente. Ela perde seu nexo genuíno de integração
social e com a possibilidade de estar apoiada em critérios racionais, sendo empurrada para
o limbo do decisionismo irracional ou relativismo.
Para Habermas, a superação do quadro estreito forjado pelas conseqüências da
racionalidade instrumental está em condicioná-la em espaços delimitados de atuação,
restringindo seu campo de influência. E concomitante a isto, realizar um salto
paradigmático que amplie o conceito de razão para além das relações objetivas e solitárias
entre o sujeito do conhecimento e o objeto de estudo.
Levar a racionalidade comunicativa para dentro da escola, significa permitir que questões
aparentemente desvinculadas de uma abordagem argumentativa racional passem a fazer
parte do contexto pedagógico. Contudo, esta perspectiva implica em redimensionar a
educação em uma estrutura que lhe seja compatível e impulsionadora. Implica em
pensarmos procedimentos que dilatem os fundamentos epistemológicos da educação e,
doravante, que estes sejam demarcados em bases comunicativas.
Estas condições podem ser encontradas, se não totalmente, pelo menos em parte, na
proposta da educação para o pensar, a partir do programa pedagógico Filosofia para
Crianças, de M. Lipman.
A educação para a racionalidade na Filosofia para Crianças está aliada à noção de cidadania
competente e comprometida com as causas democráticas. Lipman deixa explícita sua
posição em considerar a racionalidade como um antídoto à barbárie. Não se trata, portanto,
do uso da razão para formas ardilosas de ação. A pretensão da Filosofia para Crianças é
incrementar, via educação, a racionalidade emergente nas situações em que há insistência
no procedimento dialogal, na compreensão de objetivos e decorrências, e, principalmente,
na preservação dos instrumentos de argumentação geradores de mais racionalidade.
A Filosofia para Crianças reserva um espaço considerável para as questões éticas, o que
parece ser uma decorrência presumível se levarmos em conta as palavras acima. Lipman
sustenta que a educação ética, antes de concentrar-se na norma ou princípio moral, deve
dedicar-se a sua investigação, nas condições de sua validade e decorrente fundamento. Daí
a necessidade de justificativas nas avaliações dos valores (fundamentação); de buscar
ampliar, em nível coletivo, as implicações diretas e indiretas da escolha de um valor
(universalização); e de expor os argumentos à crítica e autocrítica, mantendo abertura de
espírito para as contribuições dos envolvidos na investigação axiológica
(intersubjetividade).
Em referência a filosofia, podemos dizer que Lipman lhe confere a tarefa de mediar e de
recuperar os aspectos práticos e teóricos implícitos na construção do conhecimento,
aproximando-se, assim, da noção habermasiana de filosofia como mediadora entre o senso
comum e as ciências.
Tendo por premissas estes aspectos da noção de racionalidade, conclui-se que a educação
para o pensar‚ aquela organizada na perspectiva da racionalidade dialógica e
normatizadora, permissiva à participação igualitária. Ao estendê-la à política educacional, à
administração, ao currículo, à sala de aula, ter-se-ía todo o circuito educacional integrado
numa racionalidade diferenciada daquela ora existente no sistema educacional.
Assim, a Filosofia para Crianças, ao abrir uma vereda pedagógica na direção de formas de
investigação que não estão concentradas na razão instrumental, mas sim na filosofia e no
diálogo, amplia o conceito de racionalidade e reflexão que tal investigação pode orientar e
também os usos que dela podemos derivar.
Entretanto, como o próprio Lipman alerta, para que a reflexão crítica se instale na escola,
ou, usando uma categoria de Habermas, para que a ação comunicativa passe a coordenar o
âmbito escolar nos seus variados aspectos, torna-se imperioso que todas as atividades
escolares passem a ser normatizadas pelo entendimento comunicativo, e não só aquelas que
dizem respeito à sala de aula.
Bibliografia
Lipman, M., Oscanyan, F., Sharp, Ann M. A Filosofia na Sala de Aula. São Paulo: Ed.
Nova Alexandria, 1994.
Eu creio que na própria sala de aula, em qualquer dos graus de ensino, essas questões de
ordem prática e teórica aparecem. Nos meus contatos com professores tenho ouvido
indagações e observações assim: "Em determinados momentos das aulas, fico me
perguntando de que lugar teórico estou falando, quais minhas filiações teóricas, a que
linhagens de pensadores eu me filio, como eu me coloco na perspectiva histórica do tempo,
seja da cultura ocidental, seja da história da filosofia ou da história das idéias."
Professores também se colocam questões sobre que horizontes, que perspectivas podem ser
apontadas, podem ser vislumbradas pelo trabalho de "educação para o pensar" que estão
desenvolvendo em sala de aula. Também aparecem questões sobre em que sentido a
educação na Comunidade de Investigação desenvolve compromissos éticos, ou que modelo
de racionalidade se está formando, que tipo de razão se está construindo, não só com nossos
exemplos, mas com as dinâmicas, os modelos que estamos propondo na sala de aula.
Estes grupos de questões, e outras análogas, podem ser endereçadas a esses campos
conceituais, em torno dos quais se propôs esta mesa-redonda, da racionalidade, da ética e
da educação. Esses campos conceituais, podemos ver, são campos de questões abertas, e
seria desejável que houvesse um eixo conceitual comum que organizasse essas questões,
permitindo um imbricamento, uma articulação entre esses três campos. Nosso propósito é o
de procurar trazer para a reflexão um recorte que possa iluminar, não só alguns aspectos da
nossa prática, mas também alguns aspectos dos compromissos teóricos que definem nossa
filiação histórica.
Eu creio que seria interessante colocar algumas balizas conceituais para achar ou propor
uma questão que venha a servir de eixo organizador de todas essas pequenas ou grandes
indagações teóricas e práticas, que podem ser postas a respeito do tema. Algumas dessas
balizas conceituais foram já esboçadas. Mas gostaria de acrescentar, ou de olhar com mais
detalhe para três balizas. A primeira, diz respeito à razão. O tema da racionalidade remete
de imediato ao conceito de razão: o que precisamos considerar em comum como
constituindo o núcleo conceitual da idéia de razão?
Creio que, seguindo pistas deixadas por Wittgenstein, em suas Investigações Filosóficas,
poderíamos obter um certo consenso ao dizer que a ‘razão’ se define no campo da
experiência: ela não passa de uma ‘experiência humana’, uma experiência humana natural,
talvez tão natural quando andar, quanto falar, ou mesmo quanto respirar. Não foi a filosofia
que inventou a razão. Não foi o filosofar que inventou a racionalidade, não foram os gregos
que criaram o pensar racionalmente. Sempre existiu esta experiência humana de pensar
com a razão.
Em que consiste esta experiência, que por hipótese estamos considerando tão natural
quanto andar e falar? Creio que consiste em que naturalmente somos convidados ou
solicitados a tomar algumas significações como objeto do nosso pensamento, como objeto
da nossa consideração mental, como foco de nossa atenção. Assim, a experiência humana
que tratamos por razão consistiria em tomar em consideração algumas significações,
retirando-as do fluxo normal em que são utilizadas nos seus contextos de uso, de modo que
passassem a ser examinadas em outro contexto caracterizado pelo rigor, pela clareza e pela
radicalidade.
Detenhamo-nos por um momento na idéia do que são significações, para entender em que
sentido elas podem ser tomadas como objeto de consideração pelo pensamento. Vemos que
há significações que são da ordem do vivido, das emoções, que têm seu conteúdo baseado
em experiências interiores, secretas para cada um até que cada um consiga comunicar a
outro. E há, também, significações que decorrem de representação de algo externo a nós, e
que se formam de maneira mais ou menos precisa, segundo o processo de ‘mensuração’ ou
de acesso à coisa representada. Eu diria, assim, que há significações da ordem do vivido e
significações da ordem do mensurante, e que a experiência da razão consiste em olhar para
o conteúdo dessas significações, a importância que elas podem assumir quando transpostas
mentalmente para situações pensadas.
O conceito de razão, no entanto, não poderia ser resumido neste aspecto. Teríamos que
fazer uma outra pergunta: "Por que se tomam significações como objeto de consideração?
Por que simplesmente não vamos operacionalizando essas significações no complexo do
aqui-gora, sem tomar distância em relação a elas? Para que se toma distância em relação às
significações? Ora, não é difícil perceber que tomamos distância em relação a significações
usuais do cotidiano, em primeiro lugar, porque é desejável avaliar a consistência das
mesmas. Avaliar como? Como se operam avaliações de consistência de uma idéia, já que
uma avaliação deste tipo se dará no nível do simbólico, no nível do pensamento relacionado
com as leis que regem seu próprio funcionamento?
Mas, critérios de julgamento para julgar o quê? Aqui podemos nos colocar diante da
primeira proposta do que viria a ser esta instituição de que nós fazemos parte, a Filosofia.
Para que foi criada a Filosofia? A Filosofia nasceu para que, usando a razão ‘natural’, nós
pudéssemos discutir, desenvolver e aplicar critérios de julgamento, a fim de avaliar o valor
de verdade do conteúdo das nossas crenças e a validade, ou a legitimidade das normas,
hábitos e costumes que regulam as nossas ações e comportamentos. Temos crenças e em
função delas agimos. Filosofamos para avaliar o quanto nossas crenças são sólidas e o
quanto nossos comportamentos são justificáveis.
Lançamos, até aqui, alguns elementos para balizar o conceito de razão. Com esta idéia de
razão, procurando critérios para avaliar a verdade das nossas crenças, e a legitimidade dos
atos, práticas e costumes, ao mesmo tempo em que nos colocamos no campo da
racionalidade, penetramos já no campo da ética, daquilo que podemos identificar como
sendo a dimensão ética da experiência humana.
Em que consiste este segundo balizamento que pode ser considerado a dimensão ética em
qualquer significação, atitude ou ação? Creio que o ético estaria, também, na comparação.
Mas, agora, não de significações, mas comparação de ações ou motivos de ação,
localizados no passado ou no futuro, visando sua aprovação ou desaprovação frente ao
valor de ser ‘bom’, ou de servir ao que é ‘bom em geral’.
Como se daria essa comparação que define a dimensão ética? Em qualquer modelo de
racionalidade em que estejamos, essa comparação se dá no pensamento, pela consideração
dos interesses envolvidos, dos valores, e das consequências das ações realizados em nome
destes. Essa consideração dos valores, interesses e consequências das ações comparece na
interação entre as pessoas, entre os sujeitos da ação, numa perspectiva de superação do que
é particular, dos particularismos. Ou seja, o ético está na comparação das ações com vistas
a uma perspectiva universalizante dos valores e interesses que podem estar presentes nas
consequências das mesmas.
E no campo da educação, podemos também considerar como uma baliza a idéia de que a
educação sempre está carregada de um projeto político, ela sempre está voltada para uma
articulação da racionalidade com um modelo de ética ou com um conjunto de referenciais
valorativos, que servem, explícita ou implicitamente, a alguma intenção ou a um projeto de
sociabilidade, um projeto político, portanto. A educação sempre estará comprometida em
suas práticas, conscientemente ou não, com formas de organização e de participação das
pessoas nos destinos da sociedade a que pertencem, da vida política das instituições, no
sentido da legitimação e do exercício dos poderes.
Diante dessas três balizas conceituais, podemos, agora, propor a questão comum que
estávamos procurando, visando articular os três campos de indagações que servem de pauta
às nossas reflexões, definindo o que é a razão e como ela funciona, em que consiste a
dimensão ética e como ela se instaura no pensamento e na ação, e a serviço de que vem a
educação, quais seus pressupostos, qual a sua função, e como nós a desenvolvemos.
A hipótese que pretendo colocar para a discussão é que o encadeamento entre esses três
campos de indagações aponta para um denominador comum articulador das diversas
questões levantadas, que seria o conceito de pessoa. O que entendemos por ‘pessoa’, quanto
colocamos as questões sobre a razão, sobre a racionalidade, como operacionalizamos o
conceito de pessoa, quando colocamos as questões de ética e as questões sobre educação?
Por exemplo, poderíamos nos perguntar de que maneira, do ponto de vista da educação, ou
do ponto de vista do nosso programa de Filosofia para Crianças, podemos considerar as
crianças como pessoas, e em que sentido as crianças são pessoas? O que vale entender por
‘ser pessoa’? O que significa formar uma pessoa, ou contribuir para a formação de uma
pessoa? Também questões de outro tipo: que momento é apropriado para que os indivíduos,
em seu desenvolvimento, possam ser reconhecidos como pessoas? Momento da aquisição
da linguagem? Com que idade: infância, adolescência, fase adulta? Com que idade já
possuímos a dignidade de pessoa?
Cabe aqui ressaltar alguns aspectos sobre o que estamos entendendo por pessoa. Creio que
‘diálogo’ é a palavra-chave para definir o conceito de pessoa, no sentido de que podemos
ser reconhecidos como pessoa, e nos aprimorar enquanto pessoa, quando nos tornamos
capazes de um ‘diálogo interior’. Certamente, e aqui podemos nos apoiar em autores tão
diferentes, como George Mead ou como Vigotsky, o diálogo interior mimetiza, no sentido
de que é modelado pelo o diálogo exterior praticado em jogos sociais de comunicação,
guardando com este bastante semelhança de conteúdo e forma.
Voltando à pergunta, em momento uma criança poderia estar aprendendo a ser pessoa?
Nesta linha de raciocínio, em todos os momentos em que ela precisa conversar com outra
pessoa, relacionar-se com os outros de sua convivência afetiva e social. Especialmente,
naqueles momentos quando relacionando-se com outras pessoas, ela precisa assumir certas
idéias a respeito do que é o certo e o errado, de qual a legitimidade que alguém diferente
dela terá para lhe impor determinado modelo de ação ou de pensamento.
Vejo esta idéia de pessoa como podendo ser articuladora dos três campos de indagações em
pauta, racionalidade, ética e educação. Experimentemos tomar o conceito de pessoa como
centro de referência de cada um desses campos, para melhor explicitar o grau de articulação
entre os mesmos, indagando sobre como operatoriamente as condutas racionais, quando os
indivíduos são considerados como pessoas, adquirem conteúdo e valor ético, ou força
educativa e transformadora. Perguntemo-nos sobre como lidamos com as pessoas, sejam
elas crianças, meninos ou meninas, adolescentes, mulheres, negros etc.? Tanto no processo
educacional, quanto nos processos de formação dos valores éticos a serem internalizados
por todos os membros da sociedade, quanto no uso ou assimilação de modelos de
racionalidade.
Finalizo colocando um problema, que figuraria neste meu arrazoado como uma tentativa de
refutação de tudo quanto foi dito. Quero formulá-lo a partir de uma frase do escritor
irlandês Bernard Shaw, que cito de memória, e que considero significativa: "As pessoas
sensatas são aquelas que se adaptam ao mundo, as pessoas insensatas são aquelas que
adaptam o mundo a si." Ora, o mundo nesta maneira de pensar estaria povoado de pessoas
insensatas, pois que acha-se transformado para adaptar-se à vontade humana. Como ficaria,
então, a questão da defesa da racionalidade na educação moral do homem, a construção de
uma ética argumentativa, centrada nas razões, se muitas vezes os insensatos, os que
recusam o uso das razões, são os que fazem a história.
Esta mesma questão poderia ser colocada nos seguintes termos: consideremos uma pessoa
fanática, alguém que se guie por uma crença fundamentalista, que não leva em conta o
contexto histórico ou o contexto humano da sua validade. Um fanático pode perfeitamente
orientar-se por uma racionalidade estrita, sendo extremamente ‘sensato’, e produzir uma
ética bastante coerente e bastante consistente. A pergunta-chave é: em que sentido um
fanático, com toda a sua racionalidade instrumental, com toda sua coerência zelosa com os
dogmas, caberia dentro de uma Comunidade de Investigação?
Bibliografia
Ronald Reed*
* Ronald Reed é professor de Filosofia e de Educação na Texas Wesleyan University e autor do livro-texto
Rebeca,
publicado no Brasil pelo CBFC.
Quando não deprime, a história corrige. Em 1990, num encontro em Taiwan, afirmei que
Filosofia para Crianças tinha alcançado certa maturidade, que não tinha mais um único
‘dono’, que tinha se expandido para além de fronteiras temporais e geográficas e, assim,
tinha se tornado mais aprofundada e mais complexa. Quando novas vozes foram
acrescentadas à troca de idéias, a qualidade da discussão aumentou. O que antes fora
assumido como questão de fé, era então, dada a pluralidade de perspectivas, questionado e
examinado criticamente. Do modo como eu o via então, o movimento ia de uma série de
grandes idéias de um único pioneiro para a base de uma disciplina - uma disciplina como
Ética Aplicada ou Filosofia do Direito - que seria pública e autocorretiva e automonitorada
e todas estas coisas nobres e interessantes. Na realidade, Lipman deu corpo à noção de
Peirce da Comunidade de Investigação e, agora, era tarefa de todos nós fazê-la acontecer.
Acredito que a descrição era correta, e acho que a predição implícita na descrição - que
Filosofia para Crianças poderia ser legitimamente pensada como uma disciplina com seus
próprios domínios e métodos - provou-se verdadeira. Em 1979, havia uma única revista e
um currículo incompleto. A revista Thinking era basicamente expositiva e justificativa (ela
explicava essa coisa nova chamada Filosofia para Crianças e tentava mostrar, apesar de
Piaget, porque era arrazoada). Naquele tempo o currículo era a criação de um único filósofo
e, novamente, com um aceno em direção às afirmações de Piaget com relação às operações
formais, começou com uma história adequada a jovens de doze anos. Hoje, ultrapassamos
bastante a simples exposição. Há pelo menos quatro grandes revistas dirigidas à análise
crítica de Filosofia para Crianças e Comunidade de Investigação, inúmeros jornais, e uma
rede informatizada, literalmente, cheia de críticas. E, depois que Lipman completou o
currículo, diversas pessoas o ampliaram, acrescentando e alterando-o de modo a não mais
fazer sentido falar do currículo como se ele fosse monolítico.
Talvez seja por isso que estou tão feliz por ter esta oportunidade de falar a vocês a respeito
de questões da prática filosófica e pedagógica com crianças pequenas. Vocês me dão a
oportunidade não de ignorar o conhecimento recente - na verdade tenho esperança que o
conhecimento recente inclua esta minha palestra - mas retornar a algumas idéias originais,
algumas idéias seminais que caracterizaram as primeiras teorias de Filosofia para Crianças,
e de manter estas idéias à nossa frente, enquanto falamos sobre uma questão prática básica:
O que devemos fazer quando estamos fazendo filosofia com crianças?
Vou tentar estender uma rede lingüística sobre a grande idéia. Vou tentar expressar o que
considero uma idéia única, uma idéia seminal, numa série de formulações distintas: É
possível fazer filosofia com crianças pequenas. É possível fazer filosofia com todas as
crianças em idade escolar. Talvez seja possível fazer filosofia com crianças mesmo antes
que entrem na escola.
Devemos detectar então algumas ‘implicações’. Crianças são capazes de falar (e escrever e
ouvir e desenhar e assim por diante) bem sobre o que é bom, verdade e belo. Na verdade,
elas o fazem quase que espontaneamente nos primeiros estágios de desenvolvimento
lingüístico (O que me faz eu? De onde vem tudo? e assim por diante, as perguntas das
crianças pequenas aos seus pais, as questões dos filósofos a si mesmos). Mais
simplesmente, crianças são capazes de fazer filosofia. A questão, então, se torna uma
questão da prática. O que deve ser feito para desenvolver esta aptidão?
Primeiro um ponto sobre estrutura e sintaxe. O mundo é complexo, nossas vidas, muitas de
nossas vidas são desesperadamente complexas, as discussões que temos com as crianças
muitas vezes também o são, mas a estrutura profunda, os fundamentos, se preferirem, a
sintaxe de Filosofia para Crianças, me impressiona por ser tão simples que até parece
austera: narrativa - uso da narrativa - discussão da narrativa. Começa-se com um todo
coerente. Tipicamente, é uma novela ou história curta, mas poderia ser uma pintura ou um
experimento científico ou a apresentação de uma peça de teatro ou de um número de dança.
Depois ‘usa-se’ a narrativa. Lemos, ou ouvimos ou a vemos, depois a questionamos.
Finalmente, as questões tornam-se trampolins para uma discussão da narrativa.
Talvez porque nos primórdios de Filosofia para Crianças não houvesse escolha, pouco foi
escrito a respeito dos critérios que orientam a tomada de decisões com relação às narrativas,
e a respeito da mecânica envolvida nessa tomada de decisão. Aqui, ao invés de especificar
muito os critérios vou limpar o mato, abrir uma área na qual os praticantes, os verdadeiros
tomadores de decisão, possam ver o terreno, e possam decidir melhor com relação à safras
e nutrientes.
É tentador esquecer o contexto típico no qual Filosofia para Crianças ocorre. Quando
conversamos com as crianças e descobrimos quão ricos e provocativos seus pensamentos
podem ser, a tentação é, como o ditado diz, de seguir a investigação para onde ela levar.
Ah, às vezes, fazer isto é não reconhecer o contexto no qual a investigação ocorre. O lugar,
uma escola, é um lugar temporal, é um lugar seqüencial e um lugar governado por
recompensas e punições. A narrativa tem de ser escolhida levando-se em consideração
como ela se encaixa na escola. A narrativa vai contribuir para o desenvolvimento
sequenciado implícito no restante do currículo? A narrativa se encaixa, de algum modo, na
cultura da escola? (Note que ‘se encaixar’ não significa, necessariamente, replicar. O
encaixar pode ser concebido como reformador, isto é, a narrativa pode refletir sobre ou
engendrar reflexão nas inconsistências ou injustiças presentes no ambiente escolar?). A
narrativa presta-se aos limites de tempo que constituem o dia escolar, o ano letivo - é
possível ler e discutir um trecho do texto durante o período de uma aula? Dizer que uma
narrativa é boa, sem dizer em qual contexto, em qual escola ela será usada, é emitir uma
afirmação meramente teórica - que aguarda ser testada na prática.
USO
Vamos supor que a narrativa em questão é uma história. ‘Uso’, no sentido aqui empregado,
envolve ler uma parte da história em voz alta e solicitar aos alunos questões relativas a
coisas no texto que eles acharam interessantes ou problemáticas. Em minha experiência - e
temo que minha experiência seja replicada aqui - ‘uso’ é o que recebe menos atenção. Ele
se parece com ‘prolegômenos’ e passamos por eles rapidamente para chegar ao texto
principal. Lemos rapidamente a história, ficamos impacientes com a criança cujas
habilidades de leitura são limitadas, passamos pelas questões tão rapidamente quanto
possível porque, e nesse ponto acho que posso estar falando por milhares de professores,
queremos chegar à filosofia.
Neste texto, estou tentando fazer algo muito prático - estou falando sobre o que os
educadores nos Estados Unidos chamariam a melhor prática em Filosofia para Crianças.
Para fazer isto tive que tocar em coisas um tanto teóricas. Ao mesmo tempo, ciente do fato
de que sou seu convidado, abstive-me de tudo que cheirasse a conselho. Vocês são os
especialistas em seu ambiente, e seria leviano eu clamar pelo manto de autoridade - leviano
porque seria filosoficamente arrogante, culturalmente imperialista, e pior que tudo,
pedagogicamente incorreto. No entanto, há algo que eu gostaria de apresentar para sua
consideração. De modo muito simples, pode ser um erro pensar no ‘uso’ como
prolegômenos da filosofia. Talvez seja melhor pensá-lo como parte integral do processo.
Assim como a artista pode não distinguir o cuidado que tem com seu pincel, a preocupação
com a qual as cores são misturadas, assim também devemos pensar no ‘uso’ enquanto
filosofia mesmo. Quando se faz isso, quando se muda a imagem, se trocam as metáforas,
mudam a linguagem do uso, e nossa atitude em relação a ele. Passar pelas coisas
apressadamente, deixa de fazer sentido. Começa a fazer ainda menos sentido tornar-se
impaciente com o leitor vagaroso. Filosofia para Crianças precisa valorizar o tipo de ócio
que Aristóteles exaltou na Política - o tempo para pensar, para examinar e ponderar.
Sabemos que o processo de fazer filosofia, incluindo o que eu chamei de ‘uso’, tem sua
própria dinâmica, sua própria gestalt, e assim o ritmo de nossas discussões com as crianças
tem uma qualidade de vagareza.
DISCUSSÃO
Como já mencionei antes, estou tentando voltar a idéias seminais. Nas palavras do poeta,
estou tentando ver coisas antigas com novos olhos. O passado recente viu um bocado de
discussões a respeito, entre outras, de como nomeamos as discussões filosóficas com
crianças. Deveríamos chamar estas discussões de ‘dialógicas’ ou de ‘conversações’ ou de
alguma outra coisa? Quão focadas as discussões deveriam ser, quão sensíveis a correção
‘de meio de percurso’ deveriam ser? No que se segue, não vou ignorar o debate atual em
Filosofia para Crianças, mas vou pôr em foco coisas mais relacionadas às origens.
Uma discussão de Filosofia para Crianças deveria trabalhar com os interesses (interesse no
sentido psicológico referido anteriormente) dos membros da comunidade. Na verdade, os
interesses deveriam fornecer o ponto de partida para a conversa. Isso não quer dizer que
todos os membros estarão igualmente interessados em discutir um dado assunto ou que
cada indivíduo sempre terá o mesmo grau de entusiasmo por um assunto. Quer dizer,
simplesmente, que se o material for desinteressante para um número significativo (seja lá
que número for) de crianças, ele não deveria ser um tópico de discussão.
Uma discussão de Filosofia para Crianças deveria resultar em algum tipo de progresso. O
progresso pode ser tão pequeno quanto descobrir que, na verdade, não sabíamos aquilo que
achávamos que sabíamos. Pode ser tão sem importância quanto descobrir que não estamos
em condições, não temos as ferramentas conceituais para lidar, numa certa época, com um
determinado problema. Parece-me que, se não há nenhum tipo de progresso, então não
aconteceu uma discussão de Filosofia para Crianças.
Uma discussão de Filosofia para Crianças deveria dar a cada membro da classe igual
oportunidade para falar. Isso não significa que os membros da comunidade poderão falar
quando e como quiserem. Na verdade, é mais provável que ocorra o contrário. Garantir que
todas as crianças tenham oportunidade de falar pode requerer uma série de regras a respeito
de como e quando elas podem falar.
Uma discussão de Filosofia para Crianças deveria ter conexão com outras partes do
currículo bem como iluminá-las. Do modo como a conhecemos hoje, Filosofia para
Crianças é um acontecimento de sala de aula. É uma disciplina entre muitas outras.
Discussões de Filosofia para Crianças não deveriam ter de mostrar uma conexão linha-a-
linha com matemática ou artes. No entanto, a discussão deveria, de algum modo, capacitar
o aluno a ver conexões em matemática ou línguas para se tornar um matemático melhor ou
um melhor usuário da língua do que ele seria se não tivesse participado da discussão.
Há alguns últimos pontos que eu gostaria de comentar. O primeiro é sobre o uso dos
manuais. No que se segue vou usar os manuais de Lipman e Sharp como os principais
exemplos porque é com eles que a maioria de nós está mais familiarizada e porque, a
maioria dos manuais que surgiram depois, inclusive o meu, são de alguma forma
modelados por eles. Como o tempo é curto vou fazer meus comentários o mais breve
possível com a esperança de que o debate a seguir os ilumine.
Primeiro, é útil observar as diferenças entre duas entidades distintas existentes no manuais.
Planos de Discussão, acredito, não são exatamente isso, isto é, não são realmente planos.
São conjuntos de questões, algumas relacionadas, outras não. Sua intenção é prover o
professor com algumas questões destinadas a ajudar a começar a discussão e, dependendo
dos movimentos durante a discussão, ajudar a continuá-la. O professor sábio, ouvindo com
atenção a discussão, utiliza as questões que achar adequadas. Exercícios - e por favor,
notem que a nomenclatura não é essencial. Estou apenas tentando fazer uma distinção entre
tipos. A distinção, eu diria, ocorre em todos os manuais de Filosofia para Crianças. A
nomenclatura não, - ela tem sua própria dinâmica, gestalt. As questões e os exemplos,
tipicamente, vão do concreto para o mais problemático e o professor sábio, em certo
sentido, segue o exercício permitindo que ele oriente o trabalho conceitual.
Segundo, podemos distinguir entre entidades que são convergentes, que levam a uma única
resposta, a um único entendimento e entidades que são divergentes, que permitem múltiplas
interpretações. Alguns exercícios de lógica são exemplos do primeiro caso enquanto alguns
de estética são exemplos do último caso. O professor sábio sabe que é crucial ter uma
mistura adequada. Muitos exercícios convergentes de uma só vez aborrecerão muitos
alunos e muitos. Muitos exercícios divergentes deixarão muitos alunos perdidos.
Bem, as atitudes mudaram. Agora procuramos as atitudes grávidas, o ‘contar casos’ que é
filosoficamente rico, que pode ser bem intencionado. Acredito que esta é uma mudança
bem-vinda. Ao mesmo tempo há uma fragilidade na mudança, uma fragilidade relacionada
a limites de tempo, uma fragilidade relacionada ao desejo legítimo de ser produtivo, e de
conseguir que as coisas sejam realizadas. Reconhecendo esta fragilidade, encerro pedindo
que vocês mantenham a atitude no que pode ser chamado de maneira william-jamesiana.
Lembrem quão seriamente a experiência, mesmo a mais bizarra, mesmo a mais trivial, foi
considerada por James. Pensem na afirmação repetida de James que toda experiência, se
suficientemente explorada, nos diz algo importante sobre a realidade. Lembrem a dignidade
que James dava à experiência dos místicos e dos visionários. Talvez, quando o ‘contar
caso’ aparece na sala de aula, devamos acrescentar ao nosso papel de dirigentes da sala de
aula a tentativa de emular o caráter de William James.
Foi um grande prazer e um verdadeira honra para mim estar aqui com vocês. Espero que
essa conferência contribua para a conversa importante na qual vocês se envolveram, uma
conversa ética, cognitiva, social e estética, uma conversa sobre o tratamento que damos às
crianças pequenas.
Neste artigo, sem pretender esgotar o assunto, faço uma leitura sumária2 — à luz da
perspectiva de Martín Buber — do diálogo e do dialógico que permeia a Pedagogia da
Comunidade de Investigação nos moldes de Matthew Lipman.
A importância que Lipman atribui ao diálogo não é por acaso. Compartilha com outros
pensadores (George H. Mead, Lev S. Vygotsky, entre outros) o pressuposto sócio-
interacionista de que é o diálogo que gera a reflexão. Em outras palavras, o pensamento é
concebido como internalização do comportamento lingüístico num determinado contexto
social.
Nas reflexões iniciais em Eu e Tu5 , Buber concebe a palavra como sendo dialógica,
princípio e fundamento da existência humana. Para confirmar-se como pessoa, o homem
precisa entrar em relação-com-o-outro, através da palavra — elemento do diálogo — ,
sendo que este "outro" ao responder-lhe o confirma como pessoa.
Buber nos diz que o homem entra em relação com o mundo e com os outros homens
através de duas palavras-princípio. São elas: Eu-Tu e Eu-Isso. A palavra-princípio Eu-Tu só
pode ser proferida pelo ser na sua totalidade, estabelecendo desta maneira uma relação,
onde a reciprocidade da ação é necessária. A palavra-princípio Eu-Isso, posterior a Eu-Tu, é
utilizada para conhecer o mundo e modificá-lo.
a) do debate, onde cada pessoa trata o outro como uma posição e não como uma pessoa;
d) do colóquio amoroso, onde o indivíduo se volta para o deleite da sua própria aventura
íntima.
Em decorrência, Buber assinala dois movimentos básicos principais, aqui entendidos como
a "ação essencial do homem em torno do qual se constrói uma atitude essencial" que se faz
sentir até "na tensão dos músculos oculares e no calcar do pé no chão".6
Movimentos básicos
Um segundo movimento, que não decorre do anterior, é o monológico. Este movimento não
designa o desviar-se-do-outro, mas o dobrar-se-em-si-mesmo, nos diz Buber. Este dobrar-
se-em-si-mesmo, Buber7 o caracteriza como o...
Referindo-se às considerações feitas por Buber quanto ao diálogo, Lipman (1995)10 , apesar
de achá-las pertinentes, escreve que "...talvez até mesmo necessárias, não são suficientes"
(p.342).
Quanto aos dois papéis que a educação tem — socialização e autonomia —, segue-se, diz
Sharp, que também a educação tem uma dimensão espiritual. Sharp (1996:21-22), cita
explicitamente Martín Buber como um dos filósofos que trabalha a autonomia e a
espiritualidade.
Ainda nos alerta Sharp13 que num diálogo filosófico precisamos estar dispostos a:
1) Ver e ler a expressão facial dos que falam e dos que não falam;
6. Saber sentir.
Para que estes enunciados aconteçam, precisa-se, em primeiro lugar, conceber-se como
pessoa, para logo realizar aquilo que Buber fala de movimento básico dialógico (o voltar-
se-para-o-outro). É o movimento, na abordagem buberiana, no qual usamos não só o corpo
como também a alma, na tentativa de apreendermos a totalidade do outro. Este tipo de
movimento é contrário ao monológico (o dobrar-se-em-si-mesmo).
O diálogo filosófico, portanto, não pode estar destituído do seu desdobramento o dialógico,
pois ambos são essenciais para o desenvolvimento e aperfeiçoamento das habilidades do
pensamento.
É um desafio.
Nilson Santos
A Comunidade de Investigação representa o encontro de consciências, é diálogo interior
que se exterioriza. Somente posso ter encontro de consciências se os elementos que
participam do diálogo não se posicionarem como superiores ou inferiores, como mais
importantes, ou como meros espectadores, porque o encontro das consciências se assenta
numa relação de confronto entre iguais, não como relação de respeito e submissão.
O respeito comumente é tomado não como a atitude de levar em consideração o que outros
dizem, mas como a postura do ouvinte de não permitir vozes que não a do outro, o que
implica em não discordar do seu interlocutor, tornando intocável o que é dito, sendo
tomado como verdade.
Uma das primeiras expressões do diálogo como modificador aparece nos Diálogos de
Platão, onde seria impossível supor que, após a narrativa dos diálogos em que Sócrates era
um dos personagens centrais, todos saíssem como entraram, que pudessem negar o
momento em que penetraram, onde cada um fora enredado, num profundo movimento da
consciência em busca do estabelecimento dos significados.
A educação fundada no diálogo humaniza o mundo, pois torna consciente o que seja
significativo da singularidade, e também da práxis social do grupo ao qual pertença.
Recobra ao homem o papel de designar significados às coisas, destrói a relação mecânica
entre sujeito e objeto, onde o objeto sempre tem algo a revelar ao sujeito. Restitui ao sujeito
a possibilidade de instaurar o significado das coisas, recombinando o mundo de acordo com
a condição singular e social a qual está envolvida.
Podemos ter a perspectiva crítica, atrelada numa atividade de reproduzir as regras e valores
existentes; colocamos todo o conhecimento humano para validar o existente. Isto manifesta
nossa incapacidade de reconhecermos em cada um o caráter eminentemente criativo. A
densidade de significados que cada um tem para instaurar o mundo sucumbe a um tipo de
realidade; tudo se desmancha diante de uma das formas de existir do existente. Passamos a
ser acessórios e secundários diante dos objetos e tornamo-nos positivistas sem mesmo o
desejar.
A educação dialógica destrói realidades, pois não são maiores do que seu criador. A
criatura, ou seja, uma realidade exteriorizada, mesmo que socialmente validada, não pode
ter "anima" própria, não possui significados outros senão os atribuídos pelo homem, seu
criador.
Não há, desta forma, relação de hierarquia na atitude de expressão do mundo, mas antes um
mesmo patamar de princípio. Isto não significa que há um único nível de vivências
culturais. Estas podem ser mais ricas, ou bem articuladas, não se constituindo, por isso,
como expressão verdadeira, ou mais verdadeira, pois não há como afirmar o Belo, o Justo e
o Verdadeiro como coincidentes e preexistentes.
Para tanto, natureza e homem coincidem como episteme. Não está aqui colocado sob
suspeita o existir do existente, mas seu instrumental valorativo passa a ser reconhecido
como pertencente ao humano. Os conteúdos da natureza não são alheios ao homem, ou
seja, o mundo que nos cerca é humano e compete ao humano atribuir significados tais, que
sejam capazes de instigar a crítica cada vez mais repleta de significação.
Em nome do diálogo tem-se criado uma sociedade monolítica, que é portadora de única
expressão do real, que só reconhece signos e não significados, que reconhece o objeto, mas
não seu criador. Reconhecemos nas coisas sua densidade, seu uso, sua cor, sua textura, seu
valor de uso, seu valor de troca, atribuímos a elas poder mágico tal, capaz de garantir a
quem as possua "status" diferenciado. Secundarizamos o homem, submetendo-o à
normatividade do mundo dos objetos. Relevamos o homem a patamar dependente e menos
expressivo. Um dos seus subprodutos é o império do ter, não do ser.
Isto obriga o homem a articular discurso sobre o mundo que somente reconhece a expressão
do objeto como sendo o dizer verdadeiro. Há completa inversão e o homem passa a
dialogar com o mundo. Quixotescamente o homem luta contra os moinhos de vento que
foram criados, descredencia-se como interlocutor com outros homens. Pura
inverossimilhança.
Esta sociedade monolítica, de signos únicos, obriga cada um a anular sua consciência, sua
interioridade, a fim de que a práxis social, prisioneira da forma de expressão mundo, possa
ser absorvida e reconhecida como a única verdade das coisas. O discurso sobre as coisas, se
não estiver validado pela expressão reconhecida socialmente, torna-se opinião ou
manifestação da irracionalidade, outro subproduto temeroso da razão. A interioridade passa
a ser descartável, em detrimento do discurso descritivo e científico.
Este patamar fundante deve se constituir não como horizonte único, mas como interlocutor
que precisa ser superado, que precisa ser constituído também como exterioridade, que irá
dialogar inexoravelmente com outras exterioridades. Desafio, contradição e enigma que
serão diluídos pelo diálogo. Não neutraliza a singularidade, constitui-se como o modo de
expressão da sociedade, como forma de constituição também humanizada do mundo, não
inibe a capacidade instauradora. Reflete horizontes comuns, razão interpretativa, de onde
partem as singularidades.
Pois o homem não vem ao mundo de forma acabada; se constitui e constitui; cada
manifestação sua é ato criador. Ao mesmo tempo em que cria a semente, cria o fruto; ao
criar o fruto, instaura a semente; ao criar o algodão, cria o tecido; ao instituir o tecido, dá
significado ao algodão. Tudo é expressão não da dialética da natureza, mas desta dialética
da criação, pois tudo é expressão do esforço de humanização do mundo.
Pensar, opinar, discutir, reconhecer-se como singularidade garante antes de mais nada a
sociedade plural, criativa e de múltiplos significados, rica na densidade do seu mundo,
distante da destruição do significado e da concretização do Império dos Signos, da Ditadura
da Aparência.
O homem, pelo diálogo, leva em consideração o que é dito, mas não o toma como absoluto,
pois é a expressão de outra singularidade que não a sua. Ao absorver simplesmente a
expressão de outros, revela-se como falso pois, reproduz impressões que não são
genuinamente suas, abdica da condição de criador, pois torna-se apenas reprodutor,
revelando sua infidelidade consigo mesmo, pois não nomina o mundo, mas o faz segundo o
já estabelecido.
Esta alegoria é fundamental, para que compreendamos a atitude que temos que ter diante da
Comunidade de Investigação, na construção do diálogo. Se desejarmos estabelecê-lo,
fundamentalmente temos que reconhecer em todos um deus, devemos reconhecer e
valorizar Marte, Eros, Ceres, Hermes, Zeus, Athena, Poseidon, e não subjugá-los à única
expressão de comportamento socialmente valorizado; antes, devemos garantir a
possibilidade de expressão da singularidade, devemos garantir o exercício único da
divindade criadora, e devemos reconhecer em nós mesmos este pleno exercício. Devemos
reconhecer e reconhecer em nós a dignidade da capacidade criadora.
Dewey, em "Democracia e Educação", afirma: "O aluno deve ser educado de modo a
possuir iniciativa individual" (p.94). A nossa educação não reconhece a possibilidade da
iniciativa diante do mundo, de atitudes singulares, pois não reconhece individualidades,
mas indivíduos que devem se informar (aprender) sobre o mundo. Anulamos a
possibilidade do encontro de consciências, e temos a instauração da prática pedagógica que
neutraliza e entorpece as consciências, a fim de que o discurso monolítico e as verdades da
sociedade sejam introjetadas.
Bibliografia
A Profª Drª Ann Margaret Sharp conhecida pelo seu trabalho conjunto com o Prof. Dr.
Matthew Lipman no desenvolvimento do Programa Filosofia para Crianças afirmou, em
palestra em São Paulo, que uma das razões da boa aceitação das propostas do referido
Programa no Brasil está nas afinidades das idéias, nele contidas, com as idéias de Paulo
Freire.
A "boa conversa" é aquela que produz avanços cognitivos capazes de nos ajudar a ir saindo
da "doxa" (opinião) em direção ao "logos" (verdade). Assim diz Paulo Freire:
"A educação que renuncia a ser uma situação gnosiológica autêntica, para
ser esta narrativa verbalista, não possibilita aos educandos a superação do
domínio da mera "doxa" e o acesso ao "logos".
Estas palavras constam do livro Extensão ou Comunicação? no qual o autor propõe que o
processo básico da educação seja o da comunicação (diálogo) e não o da extensão (o apenas
alguém estar expondo "os seus saberes").
Tal proposta, encaminhada em todo o livro, consuma-se na sua última parte e em especial
no seu item "b" que tem o seguinte título programático: Educação como uma situação
gnosiológica. Ou seja, as situações educacionais devem ser sempre situações de produção
de conhecimento por parte das pessoas que nelas estejam envolvidas. Todos, aí, devem
estar aprendendo, uns com os outros, mais do que já sabem.
Aprendendo as relações
Aí está uma grande possibilidade para os seres humanos: superar a superficialidade das
tomadas de consciência para aprofundar-se na apreensão das relações explicativas.
Quando se sabe das relações que produzem a realidade desta forma, pode-se,
eventualmente, querer modificar estas relações e, por conseguinte, a própria realidade. Ou
pode-se querer preservá-la, tal como está, buscando preservar as relações.
Aprendendo a perguntar
Tal esforço é sempre social, isto é, coletivo. Ele ocorre nos encontros das pessoas umas
com as outras, mediatizadas pelo mundo e pela realidade, nos quais é preciso que ocorra a
comunicação, isto é, a fala, a conversa de uns com os outros a respeito da realidade vivida.
o Mas, como deve ser esta fala? Como deve ser esta conversa?
o Deve ser uma conversa que se inicia com a problematização da realidade e
das pessoas nela e com ela e que mantenha, o tempo todo, este espírito
perguntador.
O que importa, pois, como conteúdo das conversas educativas que não são "meras
conversas", é a experiência humana tal qual ela ocorre nos seus produtos e na forma
(processo) de os produzir. Produtos como: obras, objetos, idéias, convicções, aspirações,
mitos, arte, ciência, etc., etc. ...
Tais conteúdos precisam ser "ad-mirados". Isto é, há que "mirar" (olhar de "um certo
modo"...) para ("ad") eles.
Este é um dos princípios que garante não só a "boa conversa", como a "boa qualidade" dos
conhecimentos que, nela, se pretende produzir. É o princípio da autocorreção constante e
continuada.
O pensar sobre o pensar e o pensar sobre os resultados já obtidos com o pensar, isto é, sobre
os conhecimentos já produzidos, faz parte dos conteúdos significativos de uma conversa
produtiva: é por este caminho que os conhecimentos vão se refinando, vão se aperfeiçoando
e vão se aprofundando.
Aí, nestes cuidados todos, reside "toda a força da educação que se constitui em situação
gnosiológica."
Mas, há mais: há que haver, nas análises e sínteses constantes e progressivas, a busca da
"colocação", isto é, do "encaixe" das nossas "mirações" que podem ser parciais ou
parcializadas, em totalidades explicativas cada vez mais abrangentes.
Isto é, os objetos, as coisas, as convicções, a arte, as idéias, etc. não existem e nem se
explicam por si mesmas, isoladamente dos contextos situacionais em que ocorrem. As boas
"miradas" não podem esgotar-se nestes "objetos de conhecimento" tomados em si mesmos.
Eles precisam ser tomados nas suas relações com os contextos relacionais nos quais
ocorrem e se dão.
Esta é uma das características básicas e fundamentais de um diálogo que, realmente, vai
produzindo a compreensão que todos desejam ter.
"Deste modo, o objeto (que pode ser uma situação-problema), inicialmente "ad-mirado"
como se fosse um todo isolado, vai se "entregando" aos sujeitos cognoscentes como um
subtodo que, por sua vez, é parte de uma totalidade maior.
Quando as pessoas, sejam adultos, crianças ou jovens, estão envolvidos nesse diálogo com
estas características, eles então são sujeitos cognoscentes. Isso significa que eles se tornam
os produtores (sujeitos) dos seus conhecimentos (cognoscentes) e não objetos da
transmissão pura daqueles que se julgam os únicos sujeitos cognoscentes: os falsos mestres
que não são capazes de ajudar aos demais a serem, eles também, sujeitos, isto é, pessoas
que pensam por si mesmas.
Pessoas que sejam, todas, mestras, isto é, que possam possuir a "mestria" na produção dos
conhecimentos.
As "meras conversas" são aquelas que ficam na periferia dos problemas e tendem à
ingenuidade.
Esta tarefa não é fácil, mas é a única promissora na direção de uma educação verdadeira
humana. Tanto para Paulo Freire, quanto para Matthew Lipman.
O PAPEL DA "COORDENAÇÃO"
É curioso, mas o próprio nome "Filosofia para Crianças" pode sugerir às pessoas
que crianças são filósofos naturais e que, dado um ambiente livre, desimpedido, no
qual apenas a qualidade do pensamento é monitorada, elas se envolverão em
investigação filosófica genuína. Além disso, na tentativa de amparar a confiança
dos coordenadores novatos em relação a sua capacidade de lidar competentemente
com filosofia em suas classes, e talvez também no esforço para enfatizar o respeito
pelos alunos - um pré-requisito importante para uma comunidade ser bem
sucedida - os manuais do professor muitas vezes romantizam a capacidade
filosófica "natural" dos jovens. Essa crença na propensão filosófica natural e
espontânea das crianças é ainda enfatizada por alguns comentários, como os feitos
por Lipman em Filosofia na Sala de Aula, de que "Em circunstâncias adequadas, uma
classe cheia de crianças se arremeterá sobre uma idéia como um bando de gatinhos
se arremeterá sobre um novelo de lã atirado em sua direção. As crianças brincarão
com a idéia até que ela seja desenvolvida, elaborada e até, ..." (é preciso realçar que
Lipman também enfatiza a importância da intervenção do professor ).
3. Modelagem
4. Cortando caminho
Por último, mas não menos importante, e apesar dos avisos com relação ao perigo
de sua utilização, a lista de perguntas e comentários de tipo Rogeriano que são
fornecidos como ajuda para a coordenação de discussões de grupo, novamente
reforçam a idéia que, para ser bem sucedido numa Comunidade de Investigação,
basta conseguir manter a conversa com perguntas como "Quais as razões que você
tem para dizer isso?" ou "Será que você poderia esclarecer este comentário?" ou
com comentários como "Parece que você está dizendo que ... ?" ou "Então, do seu
ponto de vista...?". Se não recorrermos a um padrão de medida do sucesso
independente, como por exemplo, o progresso em direção à verdade, muitas vezes
o "coordenador" novato acreditará que se a conversa ocupou o tempo disponível, e
se a maioria ou todos os alunos participaram, o resultado terá sido tudo o que
Filosofia para Crianças ou Comunidade de Investigação objetivam.
1. Instigar o aprofundamento
Se os alunos acreditam que podem dizer qualquer coisa que lhes venha à mente
sem precisar mostrar como isso é importante ou relevante ao assunto em
discussão, sem ter de se engajar em análise conceitual, sem ter de fundamentar as
opiniões com razões, sem ter de se preocupar em ser consistente, eles tendem a
dizer qualquer coisa que passe por suas cabeças, e uma coisa qualquer que passe
por suas cabeças pode muito bem ser algo aborrecido ou algo que não valha a pena
ser ouvida! Se os alunos vão aprender que vale a pena ouvirem uns aos outros,
então o coordenador precisa garantir que o que os alunos têm para dizer vale a
pena ser ouvido. O fato de que cada um tem algo a dizer que vale a pena ser
ouvido, não quer dizer que tudo que é dito valha a pena ser escutado. Na verdade,
é o contrário. Se não pensamos muito no que dizemos, não tem sentido gastar
tempo e esforço tentando analisar o conteúdo, nem tentando escutar seriamente. E
o fato de boa parte daquilo que as pessoas têm para dizer (incluindo seu diálogo
interno) ser dito sem muito ‘pensar’, é a própria razão porque programas como
Filosofia para Crianças são tão importantes, i.e., espera-se que tais programas
incentivem os alunos a pensar. Essa é, então, a tarefa do monitor: garantir que os
professores insistam, sem descanso, para que seus alunos exponham o processo de
pensamento que existe por trás daquilo que dizem. Quando os alunos se tornam
cientes de que é esse o meio onde estarão conversando, eles estarão mais aptos a
pensar um pouco antes de abrirem a boca, e o que disserem valerá a pena ser
escutado.
2. Um tópico filosófico
Em seu artigo "On the Art and Craft of Dialogue", Ronald Reed escreve:
O que é então essencial ao processo da investigação é o que
Alfred North Whitehead chamou ‘sábia ignorância’. Se a sala
de aula tradicional aprecia o acúmulo de informações, a
comunidade de investigação precisa valorizar sua própria
ignorância. O próprio reconhecimento de que há algo que não
sabemos, de que há algo importante que pode ser obtido no
processo, é que dá à comunidade sua existência.
Essa necessidade de ‘sábia ignorância’, talvez mais que qualquer outra coisa,
justifica a inclusão da filosofia num currículo já sobrecarregado. Na verdade, em
quase todas as outras disciplinas, o professor tem informação a dar ou um tópico
que deve ser apresentado. Ele é a autoridade. Mesmo que ele tente utilizar o
método da Comunidade de Investigação no território das outras disciplinas, e se
espera-se que a comunidade gere o entusiasmo de uma investigação genuína,
talvez a reformulação das questões sejam necessárias para que tenham uma
propensão filosófica. Questões não filosóficas tendem a ter respostas definitivas
que geralmente não podem ser decididas apenas pelo diálogo. Diálogo, neste tipo
de questões não filosóficas, resultará numa série de conjeturas que podem, ou não,
ser produtivas e que, de qualquer modo, geralmente requererão uma revisão após
investigação empírica ou aquisição de conhecimentos concretos, no caso de existir
interesse para se aproximar mais da verdade. O uso da Comunidade de Investigação
enfocando assuntos não filosóficos precisa ser feito com cuidado pois, em vez de
estimular o interesse, pode levar ao aborrecimento com o método. Se o professor já
sabe a resposta, por que os alunos deveriam gastar seu tempo investigando a
respeito de algo que poderia ser comunicado com muito pouco esforço?
Um foco que seja filosófico é ímpar na forma com que facilita a possível criação de
uma atmosfera de "sábia ignorância" e é, por excelência, um foco gerador de
investigação genuína que pode ser entusiástica e autenticamente modelada pelo
coordenador. Por essa razão, coordenadores não filósofos precisam ser
especificamente treinados e ajudados, para além do espaço da modelagem, a fim
de poderem distinguir questões que são filosoficamente promissoras das que não o
são (veja, por exemplo, as Folhas de Foco, no apêndice II). Uma pergunta como
"Por que ele disse ‘cala a boca’?" por exemplo, teria pouco valor enquanto ponto
focal de uma investigação se ela permanecer no nível psicológico empírico com
conjeturas do tipo "talvez ele estava aborrecido;" "talvez ele estava com ódio"; etc.
Estas são perguntas cujas respostas não podemos saber, a menos que tenhamos
acesso aos fatos da situação. Perguntas assim podem trazer frutos se
considerarmos as oportunidades filosóficas que apresentam: por exemplo,
podemos refletir sobre por que dizemos coisas desagradáveis uns aos outros, ou
qual é o papel que a expressão ‘cala a boca’ parece ter na interação interpessoal na
América do Norte, e assim por diante. Esta é uma pergunta para a qual ninguém,
incluindo o professor, tem resposta. Mas, como é uma pergunta para a qual uma
investigação dialógica aprofundada trará compreensão genuína, ela poderá
promover um raciocínio aprofundado tanto individual quanto coletivamente.
A melhor maneira para os não filósofos encontrar e manter o foco num tópico
produtivo é fazer a discussão num dia posterior ao da leitura da história e da
escolha da questão a ser discutida. Dessa maneira, antes da discussão começar, o
coordenador tem tempo para refletir nos enigmas filosóficos presentes na questão
escolhida podendo, assim, ter um "ideal norteador" pelo qual monitorar suas
próprias reações e respostas. Contudo, o coordenador precisa ter em mente que
"ideais norteadores" são perigosos por duas razões. A razão mais óbvia é que eles
podem incitar o coordenador a "controlar" a direção da discussão desde o princípio
e assim roubar a discussão dos participantes. Constantes manobras como esta
podem não só levar os participantes a acreditar que estão sendo manipulados
segundo um plano secreto, como podem também minar a crença dos participantes
de que, eles mesmos, também podem, com alguma paciência, rastrear a verdade.
Além disso, pode impedir o desenvolvimento do tipo de autoconfiança que é
essencial para a transferência fora da sala de aula, para a reflexão filosófica
genuína fora do cenário de Filosofia para Crianças. O segundo perigo de formular
um "ideal norteador" é que ele pode cegar o coordenador para outros enigmas
filosóficos que possam estar presentes na questão e abortar uma outra discussão
talvez mais produtiva e relevante. Tudo isso é para dizer que coordenar uma
comunidade de investigação é verdadeiramente uma arte. Se o coordenador
conseguir lembrar que o progresso em direção à verdade é a meta - mas uma que
só pode ser alcançada através dos esforços dos participantes - ele poderá ser capaz
de coordenar o rastreamento da verdade mantendo em mente a primeira parte da
afirmação anterior e, ao mesmo tempo, permitir que a discussão transcorra de
modo bastante relaxado, pois tem em mente a segunda parte da afirmação
anterior. Suponho que a moral da história seja que o coordenador deve sentir uma
constante fonte de tensão como resultado de ser continuamente puxado entre os
dois ideais, de "verdade" e de "autonomia do participante".
Tendo dito que o coordenador deve ter em mente uma série de tópicos para ser
capaz de "ver" um tópico promissor quando ele se apresentar, é preciso enfatizar
que o coordenador não deve ter uma lição em mente, nem aproveitar uma
oportunidade para criar uma lição. Isso pode ser difícil pois surgem muitas
oportunidades para "ensinar" lições aparentemente importantes. Porém, o
coordenador precisa estar decidido a resistir a essa tentação. Dado um tópico,
digamos, sobre por que as pessoas ridicularizam outras pessoas, o coordenador
pode ser tentado a exagerar a empatia e assim diminuir os incidentes desse tipo de
comportamento perguntando aos participantes o que eles acham que as pessoas
sentem quando alguém zomba delas. Como alguém se sente quando zombam dela,
no entanto, é um tópico diferente de por que alguém pode querer zombar de outra
pessoa e enfocar o primeiro pode obstruir a discussão do segundo. No entanto, a
reflexão sobre o segundo tópico pode ser necessária para uma mudança genuína
de comportamento. Depois que as crianças forem chamadas a focalizar como
alguém se sente quando zombam dela, elas receberão a mensagem em alto e bom
som de que tal comportamento é errado. Supondo que este seja o caso, e supondo
que esta é a mensagem que um representante importante de autoridade está
tentando transmitir, seria preciso uma criança realmente muito autoconfiante para
admitir, até para si própria, que ela é culpada de tal comportamento. O resultado
pode ser que a discussão reforce um tipo simplista de autodesilusão: é sempre um
outro que se engaja nesse tipo de comportamento e a razão pela qual os outros
agem de modo tão mesquinho é que eles são pessoas desprezíveis. É claro que a
realidade é muito diferente. A maioria das crianças, se não todas, se envolve nesse
tipo de comportamento uma vez ou outra. No entanto, para que as crianças
tenham controle desse tipo de comportamento, que sejam capazes de autocontrole,
elas terão de reconhecer quando se envolvem em tal comportamento e por que o
fazem. Isto é, elas terão de analisar com algum detalhe por que pessoas
normalmente muito decentes se comportam, em relação aos outros, de maneiras
desagradáveis. Se as crianças obtiverem desde o início a idéia de que o
coordenador e/ou o resto do grupo acha que apenas crianças realmente
desprezíveis se envolvem em tal comportamento, será difícil para elas pensar
honestamente sobre o assunto, que dirá discuti-lo honestamente.
RESUMO
O coordenador novato precisa ter sempre em mente que sua meta a longo prazo é
ser muito mais que um coordenador. Ele precisa também ser um modelo na paixão
pela verdade; um vigilante em sua exigência pela excelência no raciocínio; um
sensibilizador filosófico ao demonstrar a capacidade de enfocar no que é
filosoficamente promissor; e um líder em garantir que a direção seja mantida.
Estaremos ajudando muito o novato se o deixarmos saber desde o princípio que
"investigação não é mera conversa" e que "coordenar uma investigação é uma
tarefa árdua!"
APÊNDICE II
Filosofia para Crianças
Nome do professor:_____________________
Série:_____________________
Data:_____________________
Texto:____________________________________
Questão escolhida:__________________________________________________
_________________________________________________________________
_________________________________________________________________
_________________________________________________________________
_________________________________________________________________
O que aprendemos:
_________________________________________________________________
_________________________________________________________________
Retomada:
_________________________________________________________________
_________________________________________________________________
_________________________________________________________________
_________________________________________________________________
APÊNDICE I
TIPOS DE DISCURSO 1 2 3 4 5
PEDAGÓGICO
Conversa Coordenada Comunidade de Investigação C.I. Discussão Modelada C.I. Discussão Modelada Discuss
(Assunto Decidido) (Resultado Decidido)
A coordenador modela escutar • coordenador mesmo que C.I. exceto que o professor expõe muitos oradore
atentamente; garante que modela escutar coordenador decide o tópico pontos de vista com a ponto d
múltiplos pontos de vista são intenção de corrigir na esp
expressos e que as opiniões atentamente; compreensões errôneas vencedo
são fundamentadas garante que
DINÂMICA DE GRUPO
múltiplos pontos
de vista são
expressos e que as
opiniões são
fundamentadas e
testadas quanto à
sua adequação
• coordenador ajuda
a focalizar um
tópico e ajuda a
alcançar
"profundidade no
rastreamento da
verdade"
• um conhecimento
relativamente
profundo do
ponto de vista de
outros
• assessor de
valores
competente
Ann Gazzard
O programa de Filosofia para Crianças será examinado aqui em termos da sua capacidade
de ensinar filosofia para crianças ou, como preferem advogar seus defensores, "de trazer a
filosofia às crianças", "de fazer filosofia com crianças", ou de fato, "incentivar a
investigação filosófica nas crianças". No entanto, antes de mais nada é necessário clarificar
a natureza da filosofia em si mesma. Considerando que até os filósofos discordam sobre a
natureza e os propósitos da filosofia, precisamos, na medida do possível, explicitá-los de
modo a acomodar as mais variadas interpretações. Uma vez isto feito, é preciso delinear os
componentes necessários para que o ensino da filosofia seja bem sucedido. Tendo então um
modelo pelo qual possamos avaliar programas que pretendem ensinar filosofia, podemos
nos voltar ao programa de Filosofia para Crianças para verificarmos até que ponto ele
atende às propostas teóricas ideais.
A Natureza da Filosofia
A "Filosofia" se presta a muitas interpretações e, com o passar do tempo, esta característica
tornou-se um domínio de investigação respeitável para os filósofos profissionais. A
literatura apresenta três interpretações que abarcam, com bastante sucesso, uma variedade
de outros pontos de vista.
Em primeiro lugar, existe uma concepção de filosofia enquanto uma espécie de esforço
associado à busca do conhecimento sobre como viver melhor, sugerido por expressões
como "a busca de significado", "a busca da verdade", "a conquista da sabedoria" e "a busca
de uma vida racional". Em segundo lugar, há a concepção que oferece à filosofia um corpo
específico de problemas e/ou a história das idéias dos filósofos do passado e do presente.
Nesta perspectiva, o filósofo é aquele que apresenta uma competência especial com relação
aos métodos e conteúdos filosóficos tradicionais. Em terceiro lugar e mais recentemente, há
a perspectiva de que a filosofia é uma forma particular de pensar - em geral de modo mais
reflexivo - algo como uma metadisciplina que possibilita a elucidação e uma avaliação
crítica de praticamente todos os problemas em todas as disciplinas. Observando cada uma
dessas perspectivas com mais atenção, encontramos o seguinte:
"A conquista da sabedoria": A filosofia enquanto busca de uma vida mais razoada, mais
significativa
Não há nenhuma razão lógica para afirmar que conhecer a história da filosofia e os
problemas filosóficos tradicionais bastaria, por si só, para fazer com que as pessoas se
tornassem mais sábias, mais razoadas, ou que as suas vidas tivessem mais significado. Em
outras palavras, não é necessário que o ensino da filosofia nesta sua primeira interpretação
utilize a história da filosofia ou os seus problemas particulares. Evidentemente, não
devemos depreciar o contato com esta disciplina e com o entendimento que ela busca, mas
ela, por si só, não gera necessariamente este mesmo entendimento.
Em toda e qualquer época, alguns problemas têm sido identificados como problemas
filosóficos peculiares. Na nossa própria era histórica, por exemplo, há problemas
dominantes como as questões do livre arbítrio, do determinismo, da relação corpo-mente e
da identidade pessoal. Se interpretarmos a filosofia como sendo uma disciplina atenta a
problemas como esses e às visões de mundo que os geram, segue-se então que um curso de
filosofia deve tratar precisamente destes assuntos.
Além disso, devemos esperar que quanto maior a lucidez na apresentação destes temas,
melhor será a educação filosófica. No entanto, não é necessário que o programa alcance um
alto grau de sofisticação em uma ou em todas as áreas da filosofia. De fato, esta expectativa
raramente é satisfeita, mesmo no caso de filósofos profissionais, cujas áreas de
especialidade acumulam rapidamente tanta literatura, que a sua absorção requer muito mais
atenção do que é possível se dar.
Voltemo-nos agora para o terceiro conceito da filosofia para determinar até que ponto ela
demanda ou não um currículo consistente. A filosofia é frequentemente vista como sendo
um estado mental reflexivo. Em outras palavras, ela é apresentada como uma predisposição
à reflexão intelectual, cujo objeto é, muitas vezes, o alicerce conceitual sobre o qual
repousa um problema ou um questionamento. Pensar sobre o problema do aborto, por
exemplo, requeriria uma reflexão sobre o assunto e uma análise global de conceitos do tipo
"o direito à vida", "a propriedade da escolha", "a moralidade do homicídio", etc. Uma
reflexão científica, em contrapartida, focalizaria a questão da probabilidade de
sobrevivência do feto, do número de adoções após o nascimento de crianças indesejadas,
etc. Isto é, utilizaria como base de reflexão as realidades estatísticas. Sob esta perspectiva
da filosofia, qualquer problema poderia ser tratado filosoficamente e o olhar filosófico,
mesmo no caso dos problemas tradicionais, significa, em geral, uma análise da linguagem
nos termos em que estes problemas são formulados. Nesta visão, a "filosofia" se interessa
por tornar explícitas as pressuposições e implicações ocultas nas questões e respostas
invocadas pelos problemas.
Para que sejam capazes de praticar este tipo de filosofia, seria necessário ensinar duas
coisas aos alunos. Como a filosofia se baseia fortemente na distinção entre assuntos
conceituais e empíricos, os alunos deveriam saber como fazer estas distinções. Visto que a
filosofia aqui está interessada em circunscrever o domínio de possibilidade do estado das
coisas e dos eventos daquilo que não é possível, os alunos necessitariam ter as habilidades
não só para discriminar as possibilidades conceituais das possibilidades empíricas, mas
também para estabelecer os limites de cada uma dessas possibilidades. Entretanto, o
fundamental é a habilidade de saber o que se constitui como uma descrição coerente de
eventos, uma vez que ela transcende as fronteiras do empírico/conceitual. Isto é, o aluno de
filosofia precisaria também saber como determinar quando a explicação de um assunto
reflete uma descrição coerente, independente da investigação referir-se à natureza de uma
impossibilidade empírica particular ou de uma possibilidade conceitual. De qualquer
maneira, não basta que os alunos sejam capazes disto. Eles também precisam ser capazes de
articular para os outros aquilo que fazem ou fizeram, isto é, precisam ser capazes de
delinear aquilo que constitui a coerência de um assunto e, conseqüentemente, necessitam de
prática nesta articulação verbal e/ou escrita dos seus pensamentos.
O segundo resultado indesejável dos programas que não incentivam o desejo de uma busca
de significado é que os alunos tendem a não buscar significado na vida cotidiana. Os
programas de filosofia precisam incentivar um amor ao conhecimento e ao entendimento.
No contexto da sala de aula, a falta de incentivo em compreender ou perceber os
significados das informações pode não ser muito evidente. No entanto, fora da sala de aula,
onde os motivos para agradar os professores ou para passar nos exames deixam de ser
relevantes, os alunos provavelmente estarão menos preocupados em refletir e interpretar as
experiências do dia-a-dia. Consideremos, por exemplo, uma criança que, em sala de aula,
aplica suas habilidades de pensamento crítico numa determinada passagem do seu livro
didático, mas que fora da sala de aula não as aplica num diálogo com um amigo. Embora
ela possa verificar a validade, o valor e o significado do seu livro, ela não tem a mesma
oportunidade de fazê-lo no diálogo com o amigo. Isso não ocorre porque a fala do amigo
não admite esta análise. Porém, sem a motivação para desempenhar uma análise reflexiva,
reduz-se o alcance dos significados possíveis que esta criança poderia estar extraindo na
sua interação com o seu amigo. Quando o desejo para compreender é bloqueado, as
crianças, geralmente, são mantidas num estado de dissonância cognitiva, isto é, entre como
pensar sobre o material da sala de aula e como pensar sobre os outros aspectos de suas
vidas.
Voltemos agora a nossa atenção aos programas de filosofia que excluem, na sua concepção,
a disciplina tradicional da filosofia, seja do estudo da história ou dos problemas clássicos
desta disciplina. Os programas que compreendem a filosofia como sendo determinados
processos de pensamento e/ou apenas a busca de significado roubam do aluno a
oportunidade de reconhecimento da grande tradição do pensamento intelectual, conhecida
como filosofia. Desta forma, nega-se aos alunos o acesso a uma valiosa fonte de idéias e
significados que podem contribuir para a compreensão de si mesmos e do mundo. Esse
modo de apresentar a filosofia atribui pouco valor às questões de maior interesse dos
filósofos profissionais e às formas de abordagem dos problemas por eles utilizadas. Para as
crianças, isto é indesejável. Por um lado, a familiaridade com estes problemas intricados da
filosofia e com a busca incansável dos filósofos pode encorajá-las a enfrentar as
perplexidades e dificuldades aparentemente insolúveis da vida cotidiana. Por outro lado, é
esta mesma familiaridade que desenvolve uma atitude aberta, preocupada com o
esclarecimento e com a compreensão. Além disso, a literatura filosófica exemplifica
diferentes formas de encarar problemas que podem ser assimiladas pelas crianças; elas
podem encontrar disposições e processos de pensamento que atendam às suas necessidades.
Resumindo, o respeito e o envolvimento com os problemas aparentemente recalcitrantes,
tratados pelos filósofos profissionais e por outros, podem auxiliar os alunos a reconhecer
que os problemas que merecem um esforço e que são plausíveis, nem sempre são aqueles
cujas soluções estão garantidas.
Está claro que, as pessoas que estão familiarizadas com os problemas filosóficos clássicos,
têm consciência da ilimitada quantidade de dados relevantes que podem existir sobre
qualquer um desses problemas. Portanto, é preciso pensar sobre o que deve ser incluído
como matéria para se avaliar como bom um curso de filosofia. Dois critérios se apresentam
para fazermos esta afirmação: a complexidade e a dificuldade da questão filosófica
considerada; e, a experiência anterior e a competência em lidar com as questões que os
alunos já tenham. Um requisito para todas as variáveis que possam existir nessas duas
dimensões é, no entanto, a quantidade de matéria suficiente para servir de prevenção contra
uma doutrinação filosófica ou contra a doutrinação sobre um ponto de vista filosófico em
particular. Isto é, a instrução que não comunica acuradamente as variações de opiniões
existentes sobre uma questão filosófica em particular ou, aquela que envolve afirmações de
pontos de vista controversos sem que haja uma consideração razoada daquilo que compõe
esse ponto de vista, pode ser acusada de inculcar visões tendenciosas. É claro que existem
pessoas que, conscientemente, procuram ensinar desta forma justamente com o propósito
de instilar nos jovens uma ideologia específica. Além da seriedade desta prática
irresponsável, há também o problema da doutrinação inadvertida; isto é, a infusão de
crenças resultantes da falta de conhecimento do professor a respeito de um problema
filosófico em particular. Por exemplo, um professor que chega a um ponto da lição que
trata do problema mente/corpo, sem jamais ter sido exposto aos antigos debates a este
respeito, pode reagir tão adversamente sobre a questão do dualismo que a lição
automaticamente se empobrece devido a esta inferioridade intelectual. Falhar em dar pouca
ou insuficiente atenção à disciplina da filosofia pode, portanto, no contexto da sala de aula,
provocar situações de doutrinação não-intencionada. Os professores que ignoram a
abrangência e as sutilezas dos argumentos que caracterizam qualquer ponto de vista
filosófico, podem permanecer fechados à vitalidade filosófica dos seus alunos e podem,
sem querer, desencorajar o seu desenvolvimento. Tanto os professores quanto os alunos
devem, portanto, ser educados na disciplina filosófica de modo a reduzir as possibilidades
de uma doutrinação filosófica.
Mesmo assim, o tipo de ênfase dado ao hábito da reflexão em oposição a qualquer outro
aspecto da filosofia merece algumas considerações. Parece não haver controvérsias quanto
à necessidade de se potencializar ao máximo o desenvolvimento de um hábito mental
reflexivo nos alunos. A questão se volta, então, ao objetivo almejado por este
desenvolvimento. Educar para o pensamento reflexivo parece desejável até o ponto em que
o pensar se torna um fim em si mesmo. Isto é, desencorajar os estudantes a serem pequenos
analistas ávidos, que queiram dissecar tudo até "o fim", parece ser um objetivo mais
apropriado, inclusive para se garantir o espírito filosófico discutido anteriormente. Isto quer
dizer, a busca por um maior significado e um melhor entendimento precisam ser
encorajados simultaneamente, a fim de evitar que os estudantes sejam "analisadores
crônicos". Isto orienta a capacidade para a crítica reflexiva de modo que se torne uma
ferramenta na busca de significado e uma ferramenta a serviço da humanidade, ao invés de
ser uma perspectiva isolada, crítica mas superficial da realidade. Sócrates nos lembra da
importância desta atitude na seguinte passagem:
não teria valor. Pois se não soubéssemos fazer uso do ouro, ele de nada
nos serviria... Mesmo se tivéssemos algum conhecimento que nos tornasse imortais, se não
soubéssemos como utilizar a imortalidade, mesmo isto de nada nos serviria.
Concluindo, programas de ensino de filosofia que não incluem práticas que se adequam a
cada uma das três interpretações da filosofia, falham em aproveitar toda a riqueza de
conhecimento que passou a ser conhecida como filosofia. conseqüentemente, aos alunos é
negado o acesso a várias fontes do conhecimento que podem ajudá-los tanto em suas
conquistas acadêmicas como em suas realizações na vida diária. Não quero aqui sugerir que
a exclusão de qualquer um destes componentes de um curso elimine as contribuições que
ele possa trazer à prática educacional existente. O ponto que quero enfatizar é que, na
ausência destes componentes, um curso que se entitula "filosofia" não oferece uma
contribuição suficientemente abrangente à educação para fazer justiça a essa disciplina.
Além disso, um curso que não tenha uma dessas três dimensões não está realmente
ensinando filosofia, uma vez que estará representando-a muito mal ao negar sua riqueza,
sua complexidade e o valor que ela pode ter na educação de todas as pessoas.
Vamos agora considerar a relação que existe entre Filosofia para Crianças e as três
concepções da filosofia anteriormente discutidas.
O programa de Filosofia para Crianças representa uma tentativa séria de unir, em um único
currículo, estas três concepções da filosofia: a noção da filosofia enquanto corpo específico
de problemas, enquanto uma metodologia mental particular e enquanto forma de trazer
maior significado aos pensamentos e às ações na vida das pessoas. Discutirei, a seguir, de
que modo o programa atinge cada uma destas finalidades.
Há quem faça objeções à Filosofia para Crianças afirmando que seu conteúdo filosófico é
demasiadamente limitado para que seja considerada como um programa de filosofia sério.
O argumento é que o programa não faz juz à disciplina da filosofia porque não oferece aos
alunos os argumentos dos filósofos profissionais nos termos elaborados e intricados por
eles utilizados. Uma das objeções à Filosofia para Crianças é que ela é, na melhor das
hipóteses, uma filosofia "aguada". O significado dessa objeção, no entanto, é realçado ao
reconhecermos os dois pressupostos capciosos sobre os quais ela se baseia. Por um lado,
esta posição implica uma visão míope da natureza da filosofia e, por outro, ela representa
uma compreensão ingênua ou errônea do papel que a filosofia tradicional desempenha no
interior da Filosofia para Crianças.
Em primeiro lugar, a perspectiva da filosofia que origina esta objeção nega o papel da
filosofia enquanto técnica de reflexão intelectual e de investigação e enquanto uma
ferramenta a serviço do significado. Em outras palavras, mesmo que a Filosofia para
Crianças não incluísse a disciplina da filosofia acadêmica, poderíamos dizer que ela ensina
filosofia com profundidade e riqueza por ensinar a pensar e por incentivar uma disposição
para a busca de significado. A exposição deste valor filosófico não teria crédito na estreita
concepção da disciplina que fornece a objeção da "filosofia aguada". Em segundo lugar, a
objeção sugere que filosofia enquanto disciplina é algo que se aprende, e como tal, não é
relevante para Filosofia para Crianças pois esta se baseia no ponto de vista de que a
filosofia é algo que se faz. A idéia de que os filósofos profissionais são os transmissores da
filosofia e das idéias filosóficas é a base desta objeção. No entanto, se a abordagem da
Filosofia para Crianças não desrespeita e nem desmerece os trabalhos dos filósofos
profissionais, ela considera que as ponderações das crianças são tão importantes e
filosóficas quanto as dos filósofos profissionais ou dos adultos. No programa de Filosofia
para Crianças as idéias da filosofia são utilizadas como trampolins para o desenvolvimento
do raciocínio profundo das crianças. A Filosofia para Crianças está baseada na idéia de que
a filosofia ajuda igualmente os professores, as crianças e os formadores dos professores a
ampliar o seu entendimento do mundo ao forçá-los a se defrontar com pontos de vista
diferentes dos seus e por persuadi-los a apreciar cada um desses pontos de vista em termos
de seu embasamento no bom pensar. Portanto, a disciplina tradicional está inclusa no
programa com essa finalidade.
A questão que surge agora é "até que ponto a visão dos filósofos é apresentada e
aprofundada no currículo de Filosofia para Crianças?" Os eventos que se prestam à análise
nos moldes da filosofia acadêmica são sistematicamente desdobrados nas novelas. Ao
manter um estilo característico de um pensamento, os personagens das novelas tendem a
adotar, na maior parte das vezes, um ponto de vista compatível com uma escola filosófica
tradicional. O diálogo resultante retrata crianças envolvidas numa arbitragem racional
desses pontos de vista. Essa arbitragem, em geral, utiliza-se do descobrimento dos
problemas que são classicamente evocados, bem como dos tipos de raciocínio necessários
para sua elucidação e validação. Cada ponto de vista filosófico, seja ele tradicional ou não,
é esmerado na medida em que provê o ponto de vista significativo das personagens/crianças
cujas idades aproximam-se às dos leitores. E, ao mesmo tempo, os pontos de vista são
expressos nas novelas numa linguagem compatível com a dos jovens leitores garantindo-
lhes o acesso aos modelos de pensamento transmitidos.
Assim, a filosofia acadêmica tem dois papéis nesse currículo. Por um lado, garante aos
leitores a exposição de muitos pontos de vista diferentes aos seus, e por outro, revela os
modelos de pensamento necessários para a sustentação destes pontos de vista. A seleção
dos pontos de vista filosóficos para todas as novelas é feita segundo o critério de
significado e razoabilidade. O primeiro critério para essa seleção a partir da literatura
filosófica é que o ponto de vista deve fazer sentido para a criança para que ela faça a
conexão com sua experiência de mundo. Isto é, pontos de vista são selecionados por serem
relevantes para o mundo contemporâneo da criança e não por apoiar esta ou aquela
concepção particular das coisas. O segundo critério, razoabilidade, é utilizado no sentido
que as posições filosóficas são selecionadas e elaboradas pressupondo que os leitores sejam
pessoas inteligentes capazes de um comportamento razoado. Os personagens das novelas
são modelos deste tipo de pessoas. Uma das críticas à Filosofia para Crianças tem sido de
que trata-se de um programa adequado apenas a um grupo seleto de crianças da classe
média, ou apenas aos bem-dotados. Essa acusação, no entanto, interpreta mal a intenção do
modelo. A questão não é que possa haver apenas algumas crianças inteligentes e razoadas,
nem que Filosofia para Crianças tenha sido feita para elas. A questão é que, a fim de
encorajar as crianças a desenvolver um comportamento mais razoado e inteligente, é
necessário mostrar-lhes que tipo de comportamento é esse e que isto não está além das suas
capacidades. Isto é, a Filosofia para Crianças parte do princípio que as crianças necessitam
de modelos de pessoas jovens parecidas com elas, que se comportam ou pensam de modo
que evidenciem inteligência, reflexão e razoabilidade. Isto quer dizer que as crianças, assim
como os adultos, geralmente atendem às expectativas que fazemos delas.
A partir do exposto acima, podemos verificar que a Filosofia para Crianças não tem sido
descuidada ao apresentar a filosofia acadêmica como um sistema de idéias e de
conhecimento valioso e relevante para o mundo contemporâneo.
O currículo de Filosofia para Crianças foi elaborado tendo como objetivo principal o
desenvolvimento do pensamento das crianças, em particular, o pensamento reflexivo. No
contexto da educação contemporânea, a Filosofia para Crianças não é o único programa que
visa o desenvolvimento das habilidades do pensamento. O que o faz único, no entanto, é o
contexto no qual o pensar é ensinado: a interação entre a filosofia e a vida cotidiana. Isto é,
os alunos aprendem a desenvolver e a refinar seu pensar através da discussão, com seus
colegas, sobre os problemas clássicos da filosofia que se manifestam na sua vida cotidiana.
Assim como a maioria dos programas que visam o desenvolvimento das habilidades do
pensamento, a Filosofia para Crianças fornece incontáveis oportunidades para realçar as
habilidades criativas e analíticas nas crianças. Entretanto, diferentemente dos outros
programas, a Filosofia para Crianças considera o cultivo dos processos reflexivos como um
dos seus principais objetivos, tendo o diálogo como pedra fundamental desse processo.
Apoiando-se no pressuposto de que o pensamento é o diálogo internalizado, a Filosofia
para Crianças objetiva produzir pensadores reflexivos como conseqüência da sua
participação numa comunidade de investigadores reflexivos. As crianças não só têm a
oportunidade de refletir sobre os assuntos de interesse de todos, mas, também, aprendem a
refletir sobre seus próprios pensamentos, a partir da observação dos pensamentos dos
outros participantes. E, enquanto tudo isso ocorre, a comunidade está envolvida na
dinâmica complexa e interpessoal da reflexão. Pontos de vista diferentes são apresentados e
a comunidade os considera numa perspectiva eclética. À medida que os participantes vão
internalizando esse processo, vão adquirindo uma forma de reflexão mais abrangente. Os
participantes não ficam mais limitados ao seu modo particular de pensamento e, enquanto
indivíduos, começam a refletir no modo que é característico ao grupo. É claro que a força
deste paradigma na educação se baseia no pressuposto de que o pensamento é o diálogo
internalizado. Embora haja uma forte tradição intelectual dando suporte a este pressuposto,
é bom lembrar que a questão da natureza do pensamento é bastante controversa. Existem
concepções diferentes a este respeito que, na maior parte das vezes, produzem práticas de
ensino diferentes. Por exemplo, existe a visão comum de que o pensamento é produzido por
estruturas cognitivas e que o pensamento funciona da mesma forma como funcionam os
computadores; existe também a visão, bastante popular, de que o pensamento é a ação
internalizada. Essas visões diferentes contam também com um histórico e sólido apoio
intelectual, que desafiam o pressuposto sobre o qual se baseia a Filosofia para Crianças. A
força relativa desse pressuposto que dá sustentação à Filosofia para Crianças deve ser
comparada com as reivindicações da psicologia acadêmica.
Caso o pensamento seja realmente o diálogo interno, a Filosofia para Crianças fornece,
através da investigação dialógica em comunidade, meios adequados para o avanço do
pensamento, em particular, para o avanço do pensamento reflexivo. Em outras palavras, ela
oferece a pedagogia apropriada para o ensino da forma de pensar que veio a caracterizar a
filosofia e que promete fornecer uma base cada vez mais sólida para a psicologia acadêmica
contemporânea.
No seu livro, A Filosofia na Sala de Aula, Lipman escreve amplamente sobre a importância
do significado para a integralidade da vida e cita muitas razões para estudar filosofia nesta
linha. As novelas para as crianças e os manuais do professor, no entanto, colocam mais
ênfase no desenvolvimento das habilidades cognitivas e no desenvolvimento das razões
para se crer em algo. Isto quer dizer que a Filosofia para Crianças poderia fornecer um
método adequado para gerar a busca de uma vida com mais significado se o pensamento
claro e válido e o estabelecimento de razões sólidas fossem, indubitavelmente, os únicos
provedores de significado. Entretanto, a relação entre razões para crer e para conhecer é
controversa, e a relação entre o conhecimento e seu significado não é simétrica. A busca
pelo significado, portanto, não é tão fácil de ser compreendida como sugerem os escritos
iniciais de Lipman e de seus colaboradores.
É preciso sermos capazes de pensar clara e razoadamente sobre vários aspectos da nossa
realidade, para que possamos fazer as modificações necessárias, dando mais significados a
esses mesmos aspectos.
Fica claro então que, neste aspecto, o sucesso do programa depende grandemente da
consciência do professor e na sua habilidade em transmitir, no contexto da sala de aula, as
conexões acima descritas. Aqui, mais do que em qualquer outra área de ensino de filosofia,
o sucesso deste programa ou de qualquer outro programa de filosofia depende do professor.
Isto é, o ensino de filosofia bem sucedido repousa totalmente no fato de o professor ter uma
certa atitude com relação ao conhecimento e uma disposição ao filosófico. Como essas
disposições e atitudes podem ser cultivadas, os professores podem ser preparados para este
trabalho. Além disso, é preciso empenhar-se num esforço persistente e contínuo na análise
das noções filosóficas pessoais e dos outros, e isto leva tempo.
Talvez esta seja a razão pela qual os monitores - as pessoas encarregadas de formar os
professores - de Filosofia para Crianças são escolhidos "a dedo". Os pré-requisitos formais
para se tornar um monitor no programa são um doutorado em filosofia e experiência de
ensino. Porém, na verdade, requer-se mais do que isto. Um candidato a monitor deve
evidenciar uma atitude e uma disposição particular; uma atitude que é prontamente
transmutada, no ambiente educacional, numa forma de ensinar que seja "pedagogicamente
forte e filosoficamente discreta". Em geral, esta expressão é usada para indicar um ensino
que, de um lado, mantém as práticas da investigação filosófica e, de outro, não permite que
os pontos de vista do professor influenciem o pensamento dos alunos mais do que os de
qualquer outro participante.
Não há dúvida de que existem críticas, difíceis de serem rebatidas em termos estritamente
lógicos, a esta prática de preparação de monitores. Entretanto, do ponto de vista mais
prático, devemos admitir que os procedimentos de seleção da maioria dos profissionais
estão vinculados à consideração de atributos pessoais, como disposição e atitude. Para que
a Filosofia para Crianças funcione dentro dos seus objetivos, a seleção de candidatos a
monitores feita por pessoas com muito conhecimento em filosofia, com experiência e
comprometimento suficientes ao projeto curricular das escolas, é ainda bastante difícil.
Além disto, a preparação de monitores neste momento ainda apresenta dois grandes
problemas para o programa de Filosofia para Crianças. Em primeiro lugar, o método de
treinamento de monitores não produz muitos deles por ano. O treinamento envolve a
participação de, pelo menos, dois workshops de 20 dias, e estes ocorrem apenas duas vezes
por ano. O número de participantes por workshop é limitado a fim de garantir um bom
nível de investigação filosófica. Embora os procedimentos sejam admiráveis, novos
modelos alternativos precisam ser desenvolvidos: a) que se adaptem ao número cada vez
maior de professores interessados em treinamento; b) que promovam mais sessões de
reciclagem aos monitores , além dos longos e custosos workshops já existentes.
PENSAMENTO E FILOSOFIA
Aqui, pretendo discutir alguns dos aspectos das relações que Lipman estabelece entre o
pensamento e a prática filosófica, orientando-me pela análise mais aproximada dessas
noções. O processo do pensamento é próprio da "natureza humana", ou seja, o homem
naturalmente pensa. Porém, segundo Lipman, isto não pode significar que tal processo não
tenha condições de ser aperfeiçoado por meio de procedimentos adequados 1. Desse modo,
em sua obra O Pensar na Educação, observamos ser um de seus objetivos especificar os
elementos que podem ser considerados como componentes constitutivos do pensar
excelente, ou de ordem superior, e quais são as condições de possibilidade de seu
desenvolvimento.
Trata-se de uma abordagem normativa e não descritiva, ou seja, que enfoca o pensamento
sob o ponto de vista de como deveria ser e não de como ele de fato ocorre; a discussão
sobre o pensamento comum tem seu lugar apenas em função de uma possível distinção
avaliativa em confronto com a excelência do pensar.
O pensar excelente, de ordem elevada, é caracterizado como uma associação dos aspectos
crítico e criativo do pensamento, que precisam ser entendidos como aspectos que se
complementam no ato de pensar bem; além disso, o pensar excelente é o que avalia seu
próprio desempenho. Nas palavras de Lipman:
"Pensamento complexo inclui o pensamento recursivo, o pensamento metacognitivo, o
pensar autocorretivo, e todas aquelas formas de pensamento que envolvem a reflexão sobre
sua própria metodologia, enquanto examinam, ao mesmo tempo, seu tema principal." 2
Lipman aponta para a discussão detalhada dos aspectos crítico e criativo nas partes II e III
da obra acima mencionada. Vejamos como ele os caracteriza.
O autor associa os termos crítico e critério por terem ambos uma etimologia comum. E
relaciona critérios com juízos porque os primeiros podem ser definidos como princípios
utilizados para o ajuizamento5. O pensar crítico é habilidoso e não pode ter seu
desempenho avaliado sem a concorrência de critérios para tanto. Por isso, o pensar crítico é
aquele que se pauta por critérios e que busca critérios para sua própria apreciação, isto é,
está constantemente buscando a correção de suas falhas, tendo como orientação
metodológica máxima (megacritério) a busca da verdade. Desse modo, ele pode ser
considerado um pensar que se apóia em fundamentos, tem uma estrutura e também recursos
que lhe conferem força para sua defesa e autocorreção.
Lipman inicia sua reflexão sobre o pensar criativo comparando-o com as características do
pensar crítico. Evidentemente, busca esclarecer que não concebe o pensar criativo como
oposto ou contendo elementos distintos do pensar crítico. Para ele, a diferença se encontra
na maneira como os dois aspectos, ou componentes do pensar excelente, estão oganizados
porque o pensar criativo conduz ao ajuizamento, é orientado pelo contexto, é
autotranscendente, e sensível a critérios contrastantes6.
Pensar Crítico:
b) conduz ao juízo
d) é autocorretivo
e) é sensível ao contexto
Pensar Criativo:
b) conduz ao juízo
d) é autotranscendente
"Podemos esperar que o pensar crítico e o criativo sejam orientados pela qualidade
universal da situação específica da investigação e sejam sensíveis ao perfil e configuração
daquela situação. Mas o pensar crítico fará isto buscando critérios e conceitos através dos
quais possa orientar o rumo da investigação. O pensar criativo, por outro lado, será sensível
à maneira como a qualidade universal incorpora valores e significados e estará nas mãos de
poderosos esquemas que tentarão fazer com que o pensar siga por esta ou aquela direção."7
"A filosofia impõe que a classe se converta numa comunidade de investigação, onde
estudantes e professores possam conversar como pessoas e como membros da mesma
comunidade; onde possam ler juntos, apossar-se de idéias conjuntamente, construir sobre as
idéias dos outros; onde possam pensar independentemente, procurar razões para seus
pontos de vista, explorar suas pressuposições; e possam trazer para suas vidas uma nova
percepção de o que é descobrir, inventar, interpretar e criticar."12
Um pensamento que se exercita desse modo exige a presença dos aspectos crítico e
criativo, o que me parece permitir a conclusão de que o pensar filosófico coincide com o
bem pensar e legitima a proposta de envolver alunos e professores nesse tipo de exercício.
Com o título Educar para Pensar, a primeira parte do livro referido é composta de quatro
capítulos que têm os seguintes subtítulos : o modelo reflexivo da prática educativa;
aprendendo a pensar; a plenitude do desempenho cognitivo; cognição, racionalidade e
criatividade.
Pelos títulos já se pode depreender que Lipman pretende explicitar aspectos importantes
dos resultados de suas investigações a respeito do tema Educação para o Pensar.
Lipman se alinha àqueles que sustentam que "o fortalecimento do pensar na criança deveria
ser a principal atividade das escolas e não somente uma consequência casual". (LIPMAN,
1995, p. 11).
Isto não significa que apenas trabalhando os conteúdos das várias disciplinas,
automaticamente, o pensar dos alunos vai sendo desenvolvido e fortalecido. Significa
afirmar que é preciso oferecer atividades voltadas, intencionalmente, ao cultivo do "pensar
bem", além da oferta dos conteúdos. Estes últimos, sempre necessários.
Mas o que seria o "pensar bem"? Antes: o que constitui o ato de pensar?
Lipman coloca esta segunda pergunta à página 13 do livro, mas não é aí que ele a responde.
Há uma resposta que chama a atenção à página 140: "pensar é fazer associações e pensar
criativamente é fazer associações novas e diferentes".
Em passagem anterior a esta, Lipman afirma a mesma coisa sobre o que é o pensar,
explicitando-a um pouco mais:
Nas duas passagens Lipman está afirmando que pensar é o processo de descobrir relações
existentes na realidade e representá-las em nossas consciências e que isso nos permite
atinar para os significados ou os sentidos que, de alguma forma, estão dados na mesma.
Esta não é uma tarefa fácil, pois a realidade é complexa nas suas relações e inter-relações.
Mas a única forma de apreender o seu sentido é estar apreendendo as relações que a
constituem. E, se estas relações são dinâmicas, isto é, estão sempre se refazendo e se
modificando, o nosso pensamento precisa estar atento e precisa ser competente para
apreendê-las neste seu dinamismo.
Lipman indica, ainda, uma possibilidade especial do pensar: a de produzir ou criar novas
relações e, portanto, a de os seres humanos estarem produzindo novas significações ou
novos sentidos para a realidade e, por conseguinte, para suas próprias vidas, visto que
fazem parte do processar-se da realidade.
Um pensar assim, para Lipman, é um pensar bem, é um pensar de ordem superior que é
crítico e criativo.
A expressão mais utilizada por Lipman, neste livro, para se referir ao pensar bem é
pensamento de ordem superior que ele opõe à expressão pensamento de ordem inferior.
Algumas afirmações suas podem nos ajudar a ir entendo o que ele quer dizer com esta
expressão que, assim como outras, diz ele, são contagiadas pela inexatidão ( p. 37) :
É claro que aquilo que denominamos aqui de pensamento complexo inclui o pensamento
recursivo, o pensamento metacognitivo, o pensar autocorretivo e todas aquelas formas de
pensamento que envolvem a reflexão sobre sua própria metodologia, enquanto examinam,
ao mesmo tempo, seu tema principal. (idem, p.43).
Faz parte do pensamento crítico bem desenvolvido (e isto influencia e faz parte do
pensamento criativo) a utilização ótima daquilo que Lipman denomina de habilidades
cognitivas.
A um dado momento deste capítulo, após tecer várias considerações sobre o raciocínio e
sobre a linguagem, Lipman contesta um equívoco que ele diz ser comum: o de se afirmar
que nossas habilidades de raciocínio aumentam e melhoram com a idade. Diz ele que isso é
verdade apenas parcialmente. Todos nós contamos com um repertório básico de habilidades
cognitivas que, se não forem estimuladas adequadamente por um processo educacional
propício, não se desenvolverão para além deste repertório básico.
Mas quais seriam as habilidades cognitivas (ou habilidades de pensamento) que constituem
o repertório básico que todos temos e que precisariam ser melhor desenvolvidas?
Assim, mesmo quando estamos envolvidos com os tipos mais elaborados de pensamento -
longas cadeias dedutivas, construções teóricas altamente confusas, e coisas parecidas -
pressupõe-se uma familiaridade com um número relativamente pequeno de atos mentais,
habilidades de raciocínio e habilidades investigativas sobre as quais se baseiam as
operações de pensamento mais elegantes e sofisticadas.
Sem a capacidade de presumir, supor, comparar, inferir, contrastar ou julgar, para deduzir
ou induzir, classificar, descrever, definir ou explicar, nossa própria capacidade para ler e
escrever estaria ameaçada, para não mencionar nossa capacidade para participarmos em
debates em sala de aula, prepararmos experimentos e compormos textos.
(idem, p. 57).
Pensamento de ordem superior é mais exigente quanto a critérios, razões, profundidade,
abrangência de sua compreeensão e ao contexto ou contextos a que se refere, quanto ao
rigor, à autocorreção, a se ver e se acompanhar no seu próprio processar-se (metacognição),
quanto a complexidade das relações que identifica ou que estabelece e reconstrói e quanto à
sua capacidade reflexiva.
Ora, dirá Lipman, para um pensamento assim são necessárias habilidades cognitivas de
ordem superior.
Aquelas do repertório básico são a base. Seu uso comum, sem determinadas qualidades, as
tornam habilidades de ordem inferior. Seu uso de uma outra forma, num outro grau de
complexidade, as tornam de ordem superior.
As habilidades cognitivas são utilizadas assim, de uma maneira "superior", quando são
articuladas naquilo que Lipman chama de mega- habilidades, isto é, gupos de habilidades
que são utlizadas conjuntamente para as operações de raciocínio, investigação, formação de
conceitos e tradução. Habilidades de raciocínio, habilidades de investigação, habilidades de
formação de conceitos e habilidades de tradução são expressões utilizadas por Lipman para
indicar grupos de habilidades cognitivas. Cada grupo contém, ou envolve, várias
habilidades que concorrem interligadamente para que aconteça, ou o raciocínio, ou a
investigação, ou a formação de conceitos, ou a tradução.
Não só. Estes grupos de habilidades estão sempre funcionando interligadamente no nosso
processo de pensar e, por conseguinte, no nosso processo de falar. É no nosso processo de
falar que o nosso processo de pensar é operado. Sem linguagem, para Lipman, não há
pensamento. Daí a importância que ele atribui à conversa organizada, isto é, ao diálogo
investigativo que deve ser promovido na sala de aula. A sala de aula deve ser transformada
em uma pequena, mas importante, comunidade de investigação.
Seria muito útil, para se ter uma idéia mais clara do que Lipman está pensando sobre
diálogo e comunidade de investigação, ler a última parte deste livro e, em especial, o
capítulo 14 que tem como título: Pensar em Comunidade.
Mas voltemos aos quatro grupos de habilidades cognitivas. É nas páginas 65 a 76, do livro
que estamos examinando, que Lipman descreve e explicita estes quatro grupos de
habilidades.
É bom notar que, com respeito ao grupo das habilidades de formação de conceitos, Lipman
utiliza uma segunda denominação: "organização de informações". Isso faz sentido, pois
todo conceito é, na realidade, uma organização de informações sobre algo que produzimos
ou construímos em nossa consciência sobre algo.
"As áreas de habilidades mais relevantes para os objetivos educacionais são aquelas
relacionadas com os processos de investigação, processos de raciocínio, organização de
informações (formação de conceitos, é bom lembrar) e tradução.
É provável que crianças muito pequenas possuam todas essas habilidades de maneira ainda
rudimentar.
Interessante, nesta passagem, é que Lipman coloca o grupo das habilidades de investigação
antes das habilidades de raciocínio, o que ele faz, também, à página 72. Em todos os seus
outros textos por nós conhecidos, ele coloca, em primeiro lugar, o grupo das habilidades de
raciocínio.
Ainda que esta ordem não seja essencial, é interessante notar nas suas explanações, que ele
diz que, na investigação, nós produzimos as primeiras informações. Isto é, nós produzimos
ou construímos nosso primeiro conhecimento que se expressa em juízos, ou seja, em
afirmações que vamos produzindo a respeito de tudo que se apresenta a nós como
necessário de ser entendido.
Para produzirmos juízos, precisamos investigar. Para investigar precisamos ser capazes de,
no mínimo, observar bem, problematizar ou formular boas questões, formular hipóteses
plausíveis, verificar cuidadosamente, constatar, chegar a produzir conclusões ( os tais
juízos) e, muito importante, ser capazes de nos autocorrigirmos toda vez que nossas
conclusões se nos mostrarem enganadas.
Em Natasha, sua última obra traduzida no Brasil, ao ser interrogado quanto à expressão
"habilidades de investigação", Lipman diz que a utiliza na "falta de melhor nome. São as
habilidades empregadas para fazer ciência."(LIPMAN, 1997, p. 49).
Ora, as habilidades empregadas para fazer ciência são, dentre outras, as relacionadas acima
e que Lipman não indica, nos seus escritos, em listagens assim, mas assinalando umas ou
outras delas, ou apresentando-as numa grande listagem sem separá-las nos quatro grupos
das "megahabilidades".
Um exemplo de grande listagem das habilidades cognitivas pode ser encontrado às páginas
80 e 81 do livro: A Filosofia vai à Escola (LIPMAN, 1990). Neste mesmo livro, nas
páginas 227 a 241, Lipman explicita o seu entendimento de cada uma das vinte e sete
habilidades listadas às páginas 80-81.
É necessário que tal explicitação se dê para cada professor que se proponha a trabalhar
educacionalmente na direção do desenvolvimento ou fortalecimento destas habilidades
como o propõe Lipman.
Vejamos o que ele diz a respeito das habilidades que compõem o grupo das habilidades de
raciocínio.
Habilidades de raciocínio
Informações, por certo, que são organizadas nos nossos juízos ou nos nossos
"julgamentos", conforme citação anterior.
Ora, os nossos juízos são afirmações (ou negações) que produzimos a respeito de uma
situação, de um fato, de algo, após termos feito uma análise investigativa: descobrimos
alguma "verdade" a respeito e a afirmamos com base na investigação feita.
Pois bem, diz Lipman, quando ordenamos e coordenamos os nossos juízos de uma tal
forma que, a partir deles, nós ampliamos aquilo que havíamos descoberto na investigação,
nós estamos fazendo um raciocínio.
Mas há raciocínios mais simples e raciocínios mais complexos, isto é, aqueles que fazem
parte do pensamento de "ordem superior". Um dos objetivos de uma educação para o
pensar deve ser o de ajudar crianças e jovens a serem capazes de realizar raciocínios mais
complexos. Para tanto é importante promover o fortalecimento das habilidades de
raciocínio que envolvem,
Nós podemos ir formando conceitos a partir de nossas relações diretas com as coisas,
objetos, situações, etc., dentro de contextos situacionais culturais de uso e de significação
ou, também, podemos formar conceitos sem estarmos em relação direta, física, com os
objetos.
Habilidades de tradução
Traduzir, então, é conseguir dizer algo que está dito com certas palavras ou de certa forma,
por meio de outras palavras, ou por meio de outras formas, mantendo o mesmo significado.
Diz Lipman, que isto é o que ocorre nas boas traduções de uma língua para outra. Mas isto
ocorre, também, quando procuramos dizer, com nossas próprias palavras, algo que alguém
disse com as palavras dele. Ou, ainda, quando alguém procura traduzir em gestos, ou em
desenhos, etc., algo já dito ou expresso de qualquer outra forma. O importante é manter o
significado.
No seu livro Natasha (1997), Lipman tem passagens que explicitam, ainda mais, o que
entender por tradução. Dentre elas, recomendamos a leitura da página 49.
O que procuramos mostrar neste texto foram algumas das idéias de Matthew Lipman sobre
Educação para o Pensar. Trata-se de uma primeira aproximação do que Lipman diz.
Obviamente, faltam, ainda, leituras de outros textos e maiores explicitações. Faltam,
principalmente, análises críticas das propostas de Lipman.
Fica, aqui, convite e propostas para que outras pessoas ampliem o que está apenas
começado.
Bibliografia
LIPMAN, Matthew. A Filosofia vai à Escola. São Paulo. Summus, 1990.
LIPMAN, Matthew. A Filosofia na Sala de Aula. São Paulo. Nova Alexandria,1994.
LIPMAN, Matthew. O Pensar na Educação. Petrópolis. Vozes, 1995.
LIPMAN, Matthew. Natasha: diálogos vygotskianos. Porto Alegre. Artes Médicas, 1997.
Richard Fox
Tradução: Melanie Claire Wyffels
Outro dia, observei um episódio bastante incomum, ocorrido numa escola primária de um
pequeno vilarejo, onde os alunos pareciam ser felizes e bem ajustados. Depois de uma aula
de teatro, foi pedido a um grupo de uns dez alunos na faixa dos 9-11 anos que escrevessem
um texto. Sem que fossem incitados a isso, os alunos logo começaram a trabalhar, em
completo silêncio. Eles escreveram, sem interrupção ou conversa, por vinte minutos. Isso
foi incomum em dois aspectos. Em primeiro lugar, não é comum vivenciar o completo
silêncio em salas de aula do primário durante mais que alguns poucos segundos. E, em
segundo lugar, é mais incomum ainda que o silêncio ocorra sem que seja solicitado pelo
professor. Aquelas crianças pareciam achar natural querer compor um texto em silêncio, e
assim o fizeram. Eu ainda estou para encontrar um escritor, artista ou compositor adulto ou,
de fato, qualquer adulto que esteja tentando pensar de modo concentrado sobre um
problema qualquer, que não busque, regularmente, paz e silêncio. Além disso, os
professores que conheço, que querem que as classes mais adiantadas do primário trabalhem
com problemas como escrever uma dissertação, por exemplo, reportam que as crianças se
ressentem no início, mas depois ficam gratas pela imposição do silêncio de vez em quando.
Nada de estranho nisso, você pode dizer. A reflexão silenciosa requer atenção e abomina
distração. Quando fazemos filosofia verificamos que há um momento para a conversa e um
momento para o silêncio. A Filosofia para Crianças encoraja, explicitamente, os pequenos
silêncios no decorrer da discussão, permitindo, assim, a reflexão. Fiquei encantado ao ver
que Victor Quinn (Sapere Journal, Abril 1994, p.24) inclui a tolerância ao silêncio na sua
lista de virtudes intelectuais a serem utilizadas nas discussões. Apesar disso, parece-me que
é necessário enfatizar e defender o valor do silêncio no processo do pensamento. Fui
estimulado a escrever essa defesa quando ouvi uma palestra dada por Martin Coles, durante
a conferência "Critical Thinking in Education", na U.E.A., em abril. Nela, Coles faz as
seguintes afirmações, entre outras:
Coles argumenta que, no sistema educacional atual, "os alunos estão, como um todo,
aprendendo passivamente coisas que serão repetidas na escrita". Ele defende o ensino e o
aprendizado na tradição Socrática, via diálogo, e considera que esta perspectiva tem o
suporte da teoria de Vygotsky, a qual sugere que o pensamento internalizado se desenvolve
a partir da interação social, particularmente do diálogo.
Embora eu concorde, em grande parte, com o que diz Cole, eu gostaria de aprofundar-me
nessas afirmações corajosas. Eu diria que as salas de aula do ensino fundamental ouvem
muito o que os alunos têm a dizer, mas não de uma forma que realmente os ajude a
aprender. Muito das conversações das crianças ocorre nos termos "assimilatórios" de
Piaget, isto é, lidam com ou assimilam as experiências correntes através do conhecimento
existente. Em geral, são também, compreensivelmente, um meio de entretenimento, ao
invés de um desafio intelectual. A conversação é, de fato, uma chave do currículo, mas o
conhecimento é outra. Isto é, a visão educacional centrada apenas na conversação é tão
desequilibrada quanto a visão centrada no conhecimento ou no conteúdo. A importância da
conversa em sala de aula pode ser exagerada se começarmos a encará-la como um bem
inqualificável, como algo não apenas necessário mas suficiente, em si mesmo, para o
aprendizado efetivo. Além da fala, as crianças podem aprender através do escutar (que é,
em si, um processo ativo), da leitura, da escrita e através do fazer e produzir. É verdade que
a teoria de Vygotsky enfatiza as origens sociais do que ele denominou "as funções mentais
superiores", mas vale a pena recordar que ele também colocou bastante ênfase no fato de
que isso possibilitou o pensamento internalizado. Esse pensamento internalizado, para
Vygotsky, transformou, drasticamente, as possibilidades e os poderes do pensamento
humano. Definitivamente, ele não afirmou que só é possível pensar através do diálogo
social. O diálogo interior torna-se um instrumento fundamental do pensamento.
Nos últimos trinta anos, na Grã Bretanha, pesquisas e artigos têm incentivado a necessidade
dos aprendizes de buscar o significado das novas idéias participando de conversas e
diálogos. Desde pioneiros como James Britton (1972) e Douglas Barnes (1976),
perpassando o trabalho de Andrew Wilkinson, que cunhou o termo "oracy", até o recente
Projeto Nacional de "Oracy" (Norman, 1992), as virtudes da conversa têm sido
constantemente defendidas. As discussões em sala de aula ou em grupos pequenos têm
sido, de fato, tão amplamente aceitas como característica da boa prática que talvez tenha
chegado o momento de respirar fundo e dizer: sim, mas não qualquer tipo de conversa; não
o tempo todo. No nosso entusiasmo por uma boa conversa, estamos correndo o perigo de
esquecer o valor do aprender a pensar silenciosa, concentrada, individualmente, por um
período prolongado.
Karl Popper sugere que a consciência humana evolui com a função primária da resolução
de problemas do tipo não-rotineiro (Popper&Eccles, 1977, p. 125). Quando podemos
reduzir a solução de um problema numa resolução rotineira, que requer pouca atenção
consciente, nós geralmente o fazemos. (Assim, quando aprendemos a dirigir um carro, na
fase inicial nós ficamos muito atentos aos nossos movimentos, percepções, planos, etc.;
mais tarde, dirigimos quase automaticamente enquanto conversamos ou pensamos sobre
outros problemas). Isso sugere que o pensamento consciente é reservado para os problemas
mais difíceis, demandando a nossa plena atenção. De fato, nos momentos de intensa
concentração mental, nós podemos chegar a perder a consciência de nós mesmos, tão
absortos estamos no objeto do nosso pensamento. Esse tipo de estado pode até ser
considerado a mais alta realização das nossas mentes conscientes. Portanto, não é por acaso
que, a fim de alcançarmos o pensamento concentrado, buscamos romper com todas as
distrações sensoriais externas. Pode ser que, quando estamos pensando em termos de
linguagem internalizada, ou diálogo interno, a intrusão da fala vinda do mundo exterior seja
destrutiva à nossa concentração, à nossa busca de uma única linha de pensamento.
As grandes tradições religiosas e místicas têm sempre estado muito atentas ao silêncio, seja
nas variadas formas de meditação ou na oração silenciosa. Uma forma de entender essa
questão é o conselho para que as nossas atenções estejam voltadas, regularmente, para
dentro de nós mesmos, longe do mundo externo, para que contemplemos o espaço interno
da mente. Tais ensinamentos advertem o noviço contra as distrações das fantasias interiores
ou dos sonhos acordados dirigidos; a intenção é, em geral, dirigir a mente na direção de
alguma representação de Deus, ou de esvaziar a mente de toda atividade intelectual. Mesmo
assim, a meditação e a oração podem ser vistas como extensões da prática do pensamento
silencioso atento, com propósitos espirituais particulares. Donaldson (1992) afirma que a
mente humana tem dois caminhos poderosos e complementares para o seu
desenvolvimento, cada qual requerendo um tipo particular de autotranscendência. Um dos
caminhos desenvolve as emoções em direção ao que ela denomina "modo transcendente de
sentir valor". O outro desenvolve os poderes intelectuais em direção a um "modo intelectual
transcendente". O ponto de interesse neste contexto é que o desenvolvimento de cada modo
requer o cultivo deliberado, por parte do indivíduo, de poderes particulares de atenção.
Sinto muito se essa tentativa de defender o lugar do pensamento silencioso, seja em sala de
aula ou fora dela, parece muito óbvia ou redundante. Mesmo assim, quando você estiver
numa sala de aula, tente observar o quanto as crianças, individualmente, dedicam seu tempo
ao pensar silencioso e ininterrupto. Pergunte a si mesmo se o silêncio necessário para o
pensar aquietado tem recebido o devido valor em suas salas de aula. O silêncio, como tentei
demonstrar, tem seus propósitos intelectuais além de, talvez, ter um propósito terapêutico
nesse mundo barulhento.
Referências