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Histórias Maravilhosas do Oriente

PEARL S. BUCK

Título original: Fairy Tales ofthe Oríent

AGRADECIMENTOS

Para organizar esta antologia de contos de encantar que reuni ao longo dos anos,
recorri, no tocante a alguns textos que aparecem, revistos, neste livro, a traduções
originais e a antologias. Devo especiais agradecimentos a Lafcadio Hearn, pelos
seus dois livros Kwaidan e Some Chinese Ghosts; ao Dr Ignácz Kuno, pela sua
antologia Turkish Fairy Tales, traduzida por R. Nisbet Bain; a A. B. Mit/ord, pelos
Tales of Old Japan, e a Andrew Lang, pelas suas muitas antologias de contos de
encantar.

P S. B.

Prefácio

Findou um dia de Verão e eu acabei o último conto de encantar, após acrescentar


a cada um deles alguns comentários pessoais. Agora que a minha tarefa terminou
verifico que, afinal, não foi uma tarefa, mas sim uma excursão, uma viagem de
descoberta por terra e mar. Visitei muitos países e não estou ainda certa de haver
regressado à minha própria casa. Talvez seja a paisagem que se abarca da minha
janela aberta que ainda me sugere a atmosfera dos contos de encantar, ou o ar
fusco, ou as árvores da floresta situada para lá dos relvados, agora suavemente
recortadas na névoa que sobe do lago aquecido pelo sol, no sopé do monte. Por
cima da névoa brilha a lua cheia, que inunda de luz os salgueiros da margem. O
luar é tão claro que, se me aproximasse do tanque, veria os peixes dourados
abrirem o seu caminho na água. Porque em noites de lua cheia os peixes
confundem a noite com o dia...

Mas não me aproximarei do tanque. O meu espírito pensativo está repleto de


pessoas: gente da Ásia antiga, gente da velha Europa, gente dos contos de
encantar. Rodeiam-me muitos rostos: indianos de turbante com as suas mulheres
de saris multicores, chineses de vestes compridas, samurais do Japão com as
suas damas sequestradas, turcos e russos, homens e mulheres da Pérsia e da
Arábia. Só estão ausentes rostos do Hemisfério Ocidental, a que pertenço. Porque
não temos nós contos de encantar? Excluo o nosso empolado Paul Bunyan e as
suas famosas aventuras, porque não encontro nele nenhuma magia. Talvez só os
antigos saibam inventar contos de encantar, inspira-
PearlS. Buck
M’

de pinceladas rápidas e arrojadas e os sentimentos não são desenhados com


delicadeza. Existe entre eles a diferença que separa uma aguarela de um cartaz,
mas há vigor em ambos. No conto russo o animal favorito é o cavalo ou o veado -
escolha natural se nos recordarmos das vastas paisagens russas. O estado de
espírito é, com frequência, a melancolia, que não se compara à suave tristeza
asiática. Há qualquer coisa de soturno e de desesperado nos abismos da alma
russa, e isso transparece nos contos de encantar desse grande país. Cavalos
velozes, magia simples, vingança, crueldade, triunfo arteiro - eis o que atrai um
auditório constituído basicamente por camponeses, que se delicia com a vitória da
força e da astúcia.

Todavia, nos contos de encantar russos existe, também, algo cativante: o herói é,
muitas vezes, um simplório, como suponho que acontece frequentemente na vida
real. Seja como for, porém, deve haver certo encanto na sua inocência, na sua
simplicidade, pois de contrário como se explicaria que o simplório encontre
sempre quem o ajude até casar, por fim, com a princesa? Todas as vezes que se
vê auxiliado, parece-lhe isso bom de mais para ser verdadeiro, mas a sorte
continua a favorecê-lo, sem esforço da sua parte, até à conquista do almejado
prémio. É mister admitir, portanto, que existe na alma russa alguma coisa que ama
este homem simples ou que com ele se identifica.

Um conto de encantar persa é como uma pintura persa: delicadamente subtil,


intrincadamente complexo, uma obra de arte miniatural que se desenrola num
ambiente de antiguidade e riqueza. Bonitas raparigas exercem o seu fascínio
sobre jovens delicados e belos, umas e outros envoltos na mesma sonhadora aura
de idílio poético. Os homens são mais ternos do que fortes e os seus anseios não
se impõem; actuam, por assim dizer, por permeabilidade.

Semelhante ambiente se encontra, em parte, nos contos de encantar indianos, por


via da forte influência persa na antiga índia. Os descendentes dos persas viveram
durante séculos nas imediações de Bombaim e concentraram nesta cidade a sua
religião e a sua cultura. Na verdade, são muitos os povos que deixaram na índia
vestígios da sua passagem. Alexandre, o Grande, por exemplo, invadiu a índia em
tempos recuados, com os seus exércitos de homens brancos, e ainda hoje se
encontram no Norte do país indianos de cabelos claros e olhos azuis.

Contudo, a grande diversidade étnica do povo indiano, bem patente na língua e na


cor, aglutina-se na crença no poder de uma bondade que chega a ser santidade.
Os heróis dos seus contos de fadas são homens simples e generosos, como o
venerado Maatma Gandhi, que usava a cobri-lo uma simples túnica de algodão e
se alimentava de vegetais, fruta e leite de cabra, e que nem mesmo quando
esteve em Inglaterra e foi recebido no Palácio de Buckingham abandonou os seus
hábitos de ascética pobreza e frugalidade. Ao proceder assim, cumpria a tradição
indiana simbolizada nos seus contos de encantar. Quem hoje for à índia
encontrará homens destes a percorrer as estradas da província ou as ruas das
cidades modernas.

Os contos de encantar da Turquia revelam características muito diferentes. Neles


o herói é o senhor todo-poderoso, o paxá, o sultão. O destino do homem comum
depende da sorte ou do acaso, de uma feiticeira ou de um génio, mas o senhor
manda e é obedecido. Em cima encontram-se os deuses e embaixo o povo; entre
os dois extremos, porém, situam-se os nobres, seres privilegiados por natureza ou
por nascimento; aos quais acontecem coisas singulares e maravilhosas ou que
produzem esses estranhos acontecimentos. Os contos turcos assemelham-se, de
certo modo, aos russos, quer pela sua acção rápida, quer pelo emprego da
violência, quer pelos pormenores fulgurantes.

Os contos de encantar chineses são os primeiros de todos. Através dos séculos, o


narrador de histórias chinês tem sido também o professor que divulga, de modo
agradável e divertido, as lições da vida. Por isso, encontramos mais graça nos
contos de encantar chineses do que nos de qualquer outro povo. O principal
motivo por que assim acontece consiste em serem os chineses um povo
gracejador. A sua literatura e a sua conversação estão cheias de piadas que vão
do dito grosseiro e picante à sátira e ao chiste mais subtis. Além disso, a vida
ensinou também algumas verdades ao narrador de histórias, o qual sabe, por
exemplo, que o momento em que o auditório ri é o indicado para estender o cesto
de bambu da pedincha...

Mas a literatura chinesa não é apenas humorística; povoam-na igualmente


fantasmas e a presença de tais espíritos, maus ou bons, revela-se nos hábitos do
povo. Até na arquitectura as extremidades dos telhados são ostensivamente
voltadas para cima com o fim de impedir que os espíritos maus deslizem pelas
telhas, e do lado de dentro dos portões principais ergue-se uma parede destinada
a deter os espíritos

voadores, que procuram por todos os meios transpor qualquer portão aberto. Os
fantasmas mais comuns são os espíritos de bonitas mulheres, que se insinuam na
vida dos homens através dos sonhos e adquirem aspecto de realidade - o que não
surpreende num país em que os homens e as mulheres raramente se encontram e
os casamentos são concertados pelos mais velhos. Quem pode censurar a um
jovem, privado da companhia de raparigas ou casado com uma mulher que não
ama, os seus secretos sonhos de amor com o espírito de alguma bonita mulher
doutras eras? Pelo menos assim parecia acontecer na velha China...

O uso de objectos mágicos nos contos de encantar é quase universal e revela as


aspirações e a imaginação do povo. O lugar ocupado pelos sinos na vida chinesa,
por exemplo, reflecte-se nas muitas histórias de fadas em que participam sinos
famosos. Todos os templos possuem sinos e cada templo tem um sino especial
que, quando toca, emite notas de harmoniosa e sublime beleza. Tal sino, afirma-
se, possui voz de timbre quase humano porque alguém - geralmente a filha do seu
fundidor - sacrificou a vida lançando-se no metal derretido, durante a fundição.
Recordo-me, sobretudo, de um grande sino existente num pagode próximo de
Nanquim, na província de Quiansu, que produzia som tão suave que vinham ouvi-
lo de milhas de distância. Segundo a lenda, o fabricante, apesar de muito famoso
pela sua perícia, não conseguia moldar esse sino sem que ele estalasse.
Moldava-o e tornava a moldá-lo, mas a fenda aparecia sempre. Por fim, as suas
três lindas filhas decidiram sacrificar-se e, sem dizerem nada ao pai, lançaram-se,
de noite, no metal derretido. No dia seguinte o sino saiu perfeito de forma e o seu
repique lembrava moças a cantar. O dever filial exige destes sacrifícios quando
tudo o mais falha e foi sobre o dever filial que como preceituou o grande Confúcio,
quinhentos anos antes de Cristo
- se alicerçou a antiga civilização chinesa.

O espelho é também usado com frequência como objecto de magia nos contos de
encantar de todos os países. Talvez a primeira visão do próprio rosto
proporcionasse o portento inicial. Qual de nós se conhece a si mesmo, como
aparece aos outros, se não vir a sua imagem reflectida? Foi há muito tempo,
segundo creio, que Narciso, ao debruçar-se para beber num charco de águas
calmas, viu um rosto que ao princípio não reconheceu, mas que, uma vez visto
não resistiu à tenta-

ão de ver outra vez e outra e outra. Assim deve ter procedido o homem primitivo e
assim procede ainda o homem de hoje, pois raramente passa por um espelho sem
deitar, pelo menos, uma olhadela à sua imagem. Isto deu origem à lenda de que
no espelho «existe» uma criatura mágica, um génio, poderoso como todos os
seres humanos anelam ser, capaz de realizar desejos e sonhos.

Considero especialmente interessante o significado das aves nos contos de


encantar ou a sua utilização como símbolos cuja origem se perde na noite dos
tempos, quando se julgavam as aves mensageiras dos deuses, sobretudo do deus
Sol. Mormente na Primavera, época em que a vida brota dos campos e das
florestas, era natural associar a nova abundância ao regresso das aves de algum
abrigo invernal aquecido pelo Sol. A missão divina das aves, no bem como no mal,
ainda permanece nas lendas da cegonha que traz os bebés, da pomba que desce
do céu com um raminho de oliveira no bico, numa mensagem de paz, e dos anjos
que, apesar da forma humana dos seus corpos, se locomovem por meio de asas
em tudo semelhantes às das aves.

Existem em todos os idiomas contos de encantar em que intervêm criaturas e


instrumentos mágicos que permitem aos seres presos à terra que nós somos
vencer as suas limitações. Tornar-se invisível, mover-se no espaço e no tempo,
realizar o impossível e criar belos e valiosos objectos, apenas pelo poder de os
desejar, obter oiro sem esforço
- nisto se resumem os sonhos universais do coração infantil do homem.

Como já disse, os contos de encantar de todos os povos reflectem simbolicamente


os seus anseios e os seus temores. O sonho universal exprime-se às vezes, por
exemplo, no desejo de ter filhos belos e perfeitos; a mais preciosa dádiva que uma
mulher pode oferecer ao homem amado. Tão querido é este sonho que o
acompanham receios. Será possível tamanha felicidade? Não se conjurarão
contra ele, algures, forças maléficas? Nas histórias, essas forças tomam a forma
concreta de bruxas empenhadas em destruir crianças encantadoras. Assim,
embora bem deva prevalecer, para que nós, seres humanos, não renunciemos
aos nossos sonhos o mal terá de se apoderar de nós e do mundo, a fim de o bem
não sair vencedor sem luta.

Temos de lutar pelos nossos sonhos!

Num conto, a luta é personificada pelo rapaz de cabelos dourados,


PearlS. Bucfc

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tão corajoso e expedito que até os deuses se sentem tentados a ajudá-lo. O


auxílio dos deuses faz sempre parte do sonho. Só, o homem receia não ser capaz
de alcançar a sua meta, sente-se rodeado de forças do mal que, sozinho, não
conseguirá vencer.

Na vida, parece que o bem nem sempre vence; nos contos de encantar, porém, o
mal sai vencido e o bem triunfa, graças a Deus, e o príncipe e a princesa vivem
eternamente felizes. O autêntico conto de encantar proporciona sempre esta
certeza, e talvez seja justo assim, pois quando nós, mortais, perdemos a
esperança e a fé na espantosa e perene força da bondade, perdemos a esperança
e a fé em nós próprios e a vida deixa de parecer digna de ser vivida.

Há algo de profundo neste tema central de todos os contos de encantar que não é,
de modo nenhum, infantil ou simples. Pelo contrário, vale a pena reflectir nele
enquanto vivermos.

A gralha encantada

Os contos de encantar da Turquia possuem, com poucas excepções, mais

características ocidentais do que asiáticas. A Gralha Encantada, directa e prática


na

acção, materialista e rápida na recompensa, não é uma das excepções. O único


sinal’

de simbolismo e animismo asiático encontra-se na facilidade com que seres

humanos entram e saem de corpos de animais, depreendendo-se sempre, .(

evidentemente, que estar no corpo de um irracional é menos vantajoso do que no


de.
um humano. A gralha, geralmente considerada, nos contos de encantar, ave
nociva,.

e até malfazeja, aparece aqui com galas de beleza e virtude e, como justa

recompensa, volta à forma humana e desposa o príncipe.

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Em tempos que já lá vão, existiu um homem que tinha um único filho e que
costumava passar o dia inteiro na floresta, a apanhar pássaros para se alimentar.
Por fim, morreu e o filho ficou só. Um dia, este pegou na armadilha do pai, foi para
a floresta e armou-a numa árvore. Nesse momento uma gralha voou baixo e foi
apanhada pela armadilha, que estava muito bem disfarçada. O rapaz trepou pela
árvore, mas a pobre ave começou a suplicar-lhe que a libertasse, prometendo dar-
lhe em troca coisa mais bela e preciosa do que ela própria. Tanto pediu e tanto
rogou que, por fim, o jovem a deixou ir em paz, preparou outra vez a armadilha e
sentou-se à espera, debaixo da árvore. Pouco depois outra ave caiu na rede. O
rapaz amarinhou novamente pela arvore, mas estacou, surpreendido, pois jamais
vira pássaro tão belo.

Admirava-o ainda, cheio de espanto, quando a gralha reapareceu e lhe disse:

Leva essa ave ao paxá, que ta comprará. ’.’;.


PearlS. 0ífÉ-

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O rapaz meteu o pássaro numa gaiola e levou-o ao palácio. O paxá ficou louco de
alegria, ao ver a bela criaturinha, e deu tanto dinheiro ao rapaz que este nem
sabia que lhe havia de fazer. Guardaram a ave numa gaiola de ouro e o paxá
deliciava-se a admirá-la de noite e de dia.

Ma5 o paxá tinha um conselheiro que sentia inveja do jovem que levara a #ve e l1-
16 daya tratos à imaginação à procura de uma maneira de o arruinar- P°r nm
encontrou-a.

Foi procurar o amo, um dia, e disse-lhe:

Que feliz seria essa ave, se tivesse um palácio de marfim para

morar!

Sim - concordou o paxá -, mas onde arranjaria eu marfim

que chegasse Para construir um palácio?


Quem trouxe a ave poderá, com certeza, encontrar o marfim -

redarguiu o conselheiro.

O paxá mandou chamar o rapaz e ordenou-lhe, sem preâmbulos, que construísse


um palácio de marfim para a ave.

Ai de mim, meu senhor, onde arranjarei tanto marfim? - la-

mentou-seojovem.

Isso é contigo. Tens quarenta dias para o encontrares, mas se,

findo este prazo, não o arranjares, a tua cabeça estará onde estão agora os teus
pés.

O jovem ficou desesperado e, enquanto tentava decidir que caminho havia de


seguir, apareceu-lhe a gralha e perguntou-lhe que preocupações o torturavam. O
moço contou-lhe o grande sarilho em que a avezinha o meterá e a gralha
tranquilizou-o:

Isso não é motivo para te preocupares. Vai pedir ao paxá quarenta carros de
vinho.

O rapaz voltou ao palácio, pediu e obteve o vinho e, no regresso, surgiu-lhe outra


vez a gralha.

. Há aqui perto uma floresta em cuja orla existem quarenta grandes v#las onde
vão beber tantos elefantes quantos há no mundo. Enche essas valas de vinho, em
vez de água; os elefantes ficarão embriagados assim que o beberem, cairão e tu
poderás cortar-lhes as presas e levá-las ao paxá.

O moço cumpriu as instruções da gralha, carregou os carros com as presas dos


elefantes e voltou com elas ao palácio. O paxá rejubilou

Histórias Maravilhosas do Oriente

í»

ver o marfim, mandou construir um palácio, recompensou o jovem com ricas


prendas e deixou-o ir em paz.

A fascinante ave passou a viver no seu palácio de marfim. Saltitava alegremente


de poleiro para poleiro, mas nada a fazia cantar.

Se o seu dono estivesse aqui - disse o mau conselheiro -, cantaria livremente.


Quem sabe quem é o seu dono ou onde se pode encontrar? -

redarguiu-lhe o paxá, muito triste.

Aquele que trouxe as presas dos elefantes também poderia trazer o dono da ave...

Mais uma vez o paxá mandou chamar o jovem e lhe ordenou que trouxesse o
dono do pássaro à sua presença.

- Como hei-de saber quem é o seu dono, se o apanhei por acaso na floresta? -
protestou o moço.

- Isso é contigo - respondeu-lhe o paxá. - Dou-te quarenta dias para o encontrares.


Se, findo este prazo, não mo apresentares, mando-te matar.

O moço foi para casa a soluçar alto, no seu desespero, mas eis que a gralha
surgiu, a voar, e lhe perguntou porque chorava.

- Como não hei-de chorar? - lamentou-se o pobre rapaz, e contou-lhe a sua nova
preocupação.

- É uma vergonha chorar por semelhante ninharia - afirmou a ave. - Corre ao


palácio e pede ao paxá um barco que seja suficientemente grande para nele
caberem quarenta criadas, um bonito jardim e uma piscina.

O jovem regressou ao palácio e informou o paxá do que precisava para a sua


viagem. Preparado o barco, o moço embarcou, mas ficou indeciso quanto à rota a
escolher. Foi nesse momento que a gralha voltou.

- Aponta o teu barco para leste t navega a direito até distinguires uma grande
montanha. No sopé da mesma vivem quarenta peris1 que experimentarão intenso
desejo de ver o que levas no barco, assim que o avistarem. Lembra-te, porém, de
que deves consentir que entre apenas a rainha, que é a dona do pássaro.
Enquanto lhe mostrares o barco, faz-te de vela e não pares antes de chegares ao
teu destino.

• Espécie de génios benfazejos, mas fantásticos, entre os orientais. (N. da T.)


Pear! S. Buck

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O jovem partiu imediatamente para leste e só parou quando avistou a montanha.


Lá estavam os quarenta peris, a passear na praia, e, ao verem o barco, correram
todos, cheios de curiosidade. A rainha dos peris pediu ao moço que lhe mostrasse
o barco, sobretudo o interior, e ele foi buscá-la num batel e levou-a para bordo.

O peri ficou encantado com a bela embarcação, passeou no jardim com as


quarenta criadas e, ao ver a piscina, disse:

-Já que vim, quero banhar-me.

Entrou na piscina e, enquanto se banhava, o barco fez-se de vela.

Quando acabou de se banhar, subiu à coberta e viu apenas mar à sua volta,
desatou a chorar amargamente. Que seria dela e para onde a levariam? Em que
mãos cairia? Mas o moço tranquilizou-a, dizendo-lhe que a levava para o palácio
de um rei, onde estaria entre boa gente.

Desembarcaram, pouco depois, o jovem mandou avisar o paxá e levou-lhe a


rainha dos peris. Na altura em que esta passava pelo palácio de marfim, a
avezinha começou a cantar tão maravilhosamente que todos os que a ouviram
ficaram loucos de alegria. A rainha dos peris sentiu-se reconfortada, ao ouvi-la, e o
paxá, extasiado, apaixonou-se logo pela sua real visitante e nunca mais pôde
dispensar a sua companhia.

O banquete de núpcias não tardou, e, com o belo peri à sua direita e a fascinante
ave à sua esquerda, não havia no mundo homem mais feliz do que o paxá.

Mas o veneno da inveja continuava a devorar a alma do mau conselheiro.

Um dia, a nova sultana adoeceu subitamente e caiu à cama. Experimentaram-se


todos os remédios, mas os sábios afirmaram que só a curaria uma droga existente
no seu próprio palácio encantado. Então, a instâncias do mau conselheiro, o paxá
mandou chamar o jovem e ordenou-lhe que fosse buscar o milagroso remédio.

Mais uma vez o moço se meteu no barco e preparava-se para içar as velas
quando a gralha chegou. Contou-lhe a nova missão de que fora incumbido e a ave
disse-lhe:

- Vai, então, e encontrarás o palácio atrás de uma montanha. Os portões estão


guardados por dois leões, mas toca-lhes com esta pena no focinho e nem sequer
levantarão uma garra contra ti.

O jovem guardou a pena, chegou à montanha, desembarcou e de-

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essa avistou o palácio. Foi direito aos portões, onde se encontravam, de facto, os
leões. Mal lhes tocou com a pena, deitaram-se e deixaram-no passar. Os peris
viram-no também, calcularam que a sua rainha adoecera e deram-lhe a droga. O
moço fez-se imediatamente de vela regressou ao palácio e dirigiu-se sem demora
para o quarto da sultana, com o remédio numa das mãos e a gralha num ombro.
A sultana estava já na agonia, mas assim que provou o remédio regressou
imediatamente à vida. Abriu os olhos, fitou o jovem e viu a gralha no seu ombro.

- Oh, escrava! - exclamou, dirigindo-se à ave. - Não estás repesa de tudo quanto
este moço sofreu por tua causa?

Explicou então ao paxá ser a gralha uma criada sua, que transformara em ave por
via da sua negligência.

- No entanto - acrescentou -, agora perdoo-lhe, pois vejo que as suas intenções


eram boas.

Ao ouvir estas palavras a gralha estremeceu toda e o jovem viu diante de si uma
donzela tão bonita que pouco diferia da rainha dos peris. A pedido da sultana, o
paxá casou o rapaz com a gralha encantada.

O mau conselheiro foi desterrado e o jovem, nomeado vizir em seu lugar, viveu
sempre muito feliz com a esposa.

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A história de Ming- Y
Este conto de encantar da velha China é uma história de amor. São seus
protagonistas um bom jovem e o fantasma de uma bonita mulher morta há muito

tempo, mas a quem o amor devolveu à vida por algum tempo. Numa floresta

rescendente de flores, os apaixonados cantaram velhas canções, recitaram


antigos

poemas e sonharam os seus sonhos, até que um dia, de súbito, tudo terminou. O

espírito da bonita mulher regressou à sua morada e o jovem que tão


profundamente

a amava viveu a sua vida sem a esquecer, mas também sem nunca falar dela,
nem

sequer aos seus filhos.

Há quinhentos anos, no tempo do imperador Houng-Wou, da dinastia Ming, viveu


na cidade de Genii, a cidade de Kwang-tchau-fu, um homem célebre pela sua
erudição e piedade, chamado Tien Pelou. Este Tien Pelou tinha um filho, um belo
rapaz que não encontrava entre os moços da sua idade quem o ultrapassasse em
sabedoria, graça e delicadas virtudes. Chamava-se Ming-Y.

Ia o jovem na décima oitava primavera quando Tien Pelou foi nomeado inspector
da Instrução Pública na cidade de Tching-tou, aonde Ming-Y acompanhou os pais.
Perto da cidade de Tching-tou vivia um rico homem de posição, um alto-
comissário chamado Tchang, que desejava um professor digno para os seus
filhos. Ao tomar conhecimento da chegada do novo inspector da Instrução Pública,
o nobre Tchang visitou-o, a fim de com ele se aconselhar, e, tendo por acaso
encontrado e conversado com o virtuoso filho de Pelou, decidiu imediatamente
contratar Ming-Y como aio particular.

Como a casa do senhor Tchang ficava situada a vários quilómetros

da cidade, pareceu melhor que Ming-Y nela passasse a viver. O jovem nreparou
todas as coisas necessárias na sua nova morada e os pais desdiram-se ^t com
conselhos sensatos e citando-lhe as palavras de Lao-tseu e dos sábios antigos:
«Um belo rosto enche o mundo de amor, mas não ilude o Céu. Se vires uma
mulher vir do Leste, olha para o Oeste. Se avistares uma donzela vir do Oeste,
volta os teus olhos para

o Leste».

Se, mais tarde, Ming-Y não seguiu esses conselhos, a culpa coube apenas à sua
juventude e à inexperiência de um coração naturalmente
alegre.

Partiu, pois, para casa do senhor Tchang. Passou o Outono, passou também o
Inverno, e quando a segunda lua da Primavera estava próxima, e próximo,
portanto, aquele dia feliz a que os chineses chamam Hoa-tchao, ou «Aniversário
das Cem Flores», Ming-Y experimentou o desejo de ver os seus pais. Abriu o
coração ao bom Tchang, o qual não só o autorizou a partir, mas também insistiu
em oferecer-lhe de presente duas onças de prata, pensando que o rapaz desejaria
levar qualquer pequena recordação aos pais, pois era costume, na festa de Hoa-
tchao, presentear amigos e parentes.

O ar causava sonolência, de tão perfumado, zumbiam abelhas, e Ming-Y


experimentou a sensação de que o caminho que seguia não era pisado por
ninguém havia muitos anos. A erva estava alta e grandes árvores, alinhadas de
ambos os lados, entrelaçavam os ramos vigorosos e cobertos de musgo por cima
da sua cabeça, sombreando a vereda. À sombra das frondes cantavam aves, que
faziam vibrar as folhas, e vapores dourados sublimavam a floresta e tornavam-na
fragrante como um templo perfumado de incenso. A paz sonhadora do dia
penetrou no coração de Ming-Y e o rapaz sentou-se entre flores, debaixo de
ramos que abanavam suavemente sob o céu cor de violeta, a aspirar o perfume e
a saborear o silêncio profundo e doce. De súbito, um ruído atraiu-lhe o olhar para
um recanto sombrio, onde floriam pessegueiros bravos, e entreviu uma jovem bela
como os rosados botões dos pessegueiros, entre os quais tentava ocultar-se.
Embora a olhasse apenas um instante, Ming-Y viu o encanto do seu rosto
adorável, a pureza dourada da sua pele e o brilho dos seus olhos amendoados,
que cintilavam e baixo das sobrancelhas tão delicadamente curvas como as asas
abertas da borboleta do bicho-da-seda. Ming-Y desviou, acto contínuo, a
PearlS. Buck

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vista, levantou-se depressa e seguiu o seu caminho. Tão perturbado o haviam


deixado, porém, aqueles maravilhosos olhos, a espreitá-lo entre a folhagem, que
deixou cair, sem dar por isso, o dinheiro que levava na manga. Momentos volvidos
ouviu passos leves correrem atrás de si e uma voz feminina chamar pelo seu
nome. Voltou-se, muito surpreendido, e deparou com uma graciosa criadinha.

- Senhor, a minha ama mandou-me entregar-lhe esta prata que deixou cair na
estrada - disse-lhe a rapariga.

Ming-Y agradeceu-lhe delicadamente e pediu-lhe que apresentasse os seus


respeitos à ama. Reatou em seguida o seu caminho através do silêncio perfumado
e das sombras sonhadoras da vereda esquecida, ele próprio a sonhar e a sentir o
coração bater com estranha rapidez sempre que pensava na bela criatura que
vira.

Noutro dia, ao regressar pelo mesmo caminho, Ming-Y parou no local onde a
graciosa figura surgira momentaneamente a seus olhos. Desta vez surpreendeu-o
entrever, através de um maciço de enormes árvores, uma habitação em que antes
não reparara - uma casa de campo, elegante, embora pequena. As telhas azul-
brilhante do seu telhado duplo, arqueado e serrilhado, erguiam-se acima da
folhagem e pareciam misturar a sua cor com o azul luminoso do dia, e os
desenhos verdes t dourados dos seus alpendres entalhados eram cópias
delicadas de folhas e flores banhadas de sol. No alto de uma escada que levava a
um terraço e ladeada por grandes tartarugas de porcelana, Ming-Y viu a dona da
casa, o ídolo da sua fantasia apaixonada, na companhia da criada a quem
confiara a sua mensagem de gratidão. O jovem percebeu que o observavam e
sorriam, como se falassem de si, e, apesar de tímido, teve a coragem de saudar,
de longe, a bela desconhecida. Com grande espanto, viu a criada acenar-lhe para
que se aproximasse, e, com um sentimento misto de alegria e surpresa, Ming-Y
abriu uma cancela rústica, semioculta por trepadeiras de flores escarlates, e subiu
ao terraço. Ao aproximar-se, a bela dama recuou, mas a criada esperou nos
degraus largos, para o receber.

- Senhor - disse-lhe -, a minha ama sabe que deseja agradecer-lhe e pede-lhe que
entre, pois conhece a sua reputação e quer ter o prazer de lhe dar os bons-dias.

Ming-Y entrou, tímido, sem que os seus passos produzissem ruído na esteira
macia e fofa como musgo da floresta, e encontrou-se num

Histórias Maravilhosas do Oriente

21””-

vasto salão. Reinava uma paz deliciosa e sombras de aves em voo recortavam-se
nas faixas de luz que entravam pelas cortinas de bambu. Grandes borboletas de
asas chamejantes entravam no aposento, esvoaçavam um instante sobre os
vasos pintados e saíam outra vez para a floresta misteriosa. Silenciosa como elas,
a jovem senhora da mansão entrou e saudou amavelmente o moço Ming-Y, que
colocou as mãos no peito e se curvou muito. Era mais alta do que ele imaginara e
esguia como uma açucena. Pálidos botões de chu-sha-kih entreteciam os seus
cabelos negros, e as suas vestes de seda clara adquiriam suaves cambiantes
quando ela se movia, como a névoa muda de cor sob os efeitos da luz.

- Se não me engano - disse a jovem quando se sentaram, depois das habituais


formalidades de delicadeza -, o meu digno visitante é, nem mais nem menos,
Tien-chou, de apelido Ming-Y, preceptor dos filhos do meu respeitado parente, o
alto-comissário Tchang. Como a família do senhor Tchang é a minha família
também, posso considerar o professor dos seus filhos como meu próprio parente.

- Senhora - redarguiu Ming-Y, com grande surpresa -, permite-me que lhe


pergunte o nome da sua nobre família e o parentesco que a liga ao meu
respeitável benfeitor?
- O nome da minha humilde família é Ping, uma antiga família da cidade de
Tching-tou. Sou filha de Siè de Moun-hiao, e Siè é também o meu nome. Fui
casada com um jovem da família Ping e por esse casamento fiquei aparentada
com o seu excelente amo, mas meu esposo faleceu pouco depois do casamento e
eu escolhi este lugar solitário para viver durante a minha viuvez.

A sua voz possuía uma musicalidade suave, como a melodia dos regatos e o
murmúrio das fontes, e as suas palavras uma graça tão estranha como Ming-Y
jamais ouvira. Contudo, ao sabê-la viúva, não ousou demorar-se na sua presença
sem um convite formal e, depois de beber a chávena de chá que lhe serviram,
levantou-se para partir.

Mas Siè não permitiu que a deixasse tão depressa e disse-lhe:

Não, meu amigo, rogo-lhe que fique um pouco mais em minha casa, pois estou
certa de que o seu nobre amo se zangaria muito se souesse que esteve aqui e
que não o recebi como hóspede de honra. Jante, ao menos, comigo.

Ming-Y aceitou o convite, secretamente feliz, pois Siè parecia-lhe a


PearlS. Buck

22

mais doce e bela criatura que até ali conhecera t amava-a ainda mais que a seu
pai e a sua mãe. Enquanto conversavam, as longas sombras do crepúsculo
fundiram-se lentamente numa escuridão cor de violeta, o grande clarão do poente
empalideceu e os seres estrelados chamados Três Conselheiros, que presidem à
vida, à morte e ao destino dos homens, abriram os seus olhos frios e brilhantes do
lado norte do céu. Dentro da casa de Siè acenderam-se as lanternas pintadas,
pôs-se a mesa para o jantar e Ming-Y ocupou o seu lugar, com pouca vontade de
comer e a pensar apenas no rosto encantador que tinha à sua frente. Ao notar que
mal tocava nas iguarias, Siè aconselhou o seu jovem convidado a beber vinho, e
beberam juntos várias taças. Era um vinho cor de púrpura, tão fresco que a taça
se cobria de vapor, mas parecia aquecer as veias como um fogo estranho.
Enquanto o bebia, Ming-Y experimentava a sensação de que tudo se tornava mais
luminoso, como que encantado, as paredes do aposento dir-se-ia recuarem, o
tecto elevar-se e as lanternas brilharem como estrelas suspensas. A voz de Siè
chegava aos seus ouvidos qual melodia distante escutada através da imensidão
de uma noite lânguida. O seu coração dilatou-se, a sua língua soltou-se e
jorraram-lhe dos lábios palavras que nunca se julgara capaz de proferir. Mas Siè
não o detinha e, embora os seus lábios não sorrissem, os seus oblíquos olhos
cintilantes pareciam rir de prazer dos louvores que o moço lhe tecia, e retribuíam o
seu olhar de apaixonada admiração com afectuoso interesse.

- Ouvi falar do seu raro talento - afirmou-lhe - e dos seus muitos dotes galantes.
Sei cantar um pouco, ainda que não possa alardear instrução musical, e sinto-me
tentada a esquecer a modéstia e a pedir-lhe que cante algumas canções comigo.
Sentir-me-ia feliz se condescendesse em apreciar as minhas composições
musicais.

-A honra será minha, querida senhora - respondeu-lhe Ming-Y.


- Sinto-me incapaz de exprimir a minha gratidão por tão excepcional favor.

Siè tocou um gongozinho de prata e a criada trouxe a música. Ming-Y pegou nos
manuscritos e começou a examiná-los com sincero deleite. O papel tinha um tom
amarelo-pálido e a leveza da gaze; os caracteres eram belos e de um estilo
antigo, como se houvessem sido desenhados pelo pincel do próprio Heisong Ché-
Tchoo, esse génio da tinta, que não é maior do que uma mosca, e as
composições estavam

Histórias Maravilhosas do Oriente

assinadas por Youen-tchin, Koa-pien e Thou-mou, excelsos poetas e músicos da


dinastia Thang. Ming-Y não escondeu o seu entusiasmo ao ver tesouros tão
inestimáveis e únicos e nem coragem tinha de os abandonar, por um momento
que fosse.

Oh, senhora! - exclamou. - São inestimáveis, mais valiosos do

que os tesouros dos reis! Esta é, deveras, a escrita dos grandes mestres que
cantaram quinhentos anos antes do nosso nascimento! Que sorte magnífica terem
sido preservados e existirem ainda! Esta deve ser a tinta maravilhosa acerca da
qual se escreveu: Po-nien-jou-chi, i-tien-jou-ki

«Depois de séculos, continuo firme como pedra e as minhas letras

resistem como laca.» E como é divino o encanto desta composição, a canção de


Kao-pien, príncipe dos poetas e governador de Sze-tchouen há cinco séculos!

- Kao-pien, querido Kao-pien! - murmurou Siè, com estranho fulgor no olhar. - Kao-
pien é também o meu favorito. Querido Ming-Y, cantemos juntos os seus versos
com a velha melodia, a música daqueles anos grandiosos em que os homens
eram mais nobres e mais sábios do que hoje.

As suas vozes ergueram-se na noite perfumada, como o gorjeio de aves


encantadas, o Fung-hoang, e fundiram-se em líquida doçura. Passados
momentos, comovido pelo feitiço da voz da companheira, Ming-Y deixou-se ficar a
ouvi-la, em êxtase mudo, com lágrimas de felicidade a correrem-lhe pelas faces.

Assim passou a nona hora e continuaram a conversar e a beber o vinho fresco cor
de púrpura, e a cantar as canções dos anos da dinastia Thang, até a noite ir muito
avançada. Ming-Y pensou mais de uma vez em partir, mas de todas elas Siè o
reteve, a contar, na sua voz doce e cristalina, histórias maravilhosas de grandes
poetas e das mulheres por eles amadas, que o mergulhavam numa espécie de
transe. Outras vezes entoava uma canção tão estranha que todos os seus
sentidos pareciam falecer, excepto o do ouvido.

As aves acordaram, as flores abriram as suas pétalas ao Sol nascene e Ming-Y


viu-se, finalmente, obrigado a despedir-se da sua encanta°ra teiticeira. Siè
acompanhou-o ao terraço e beijou-o ternamente.

Querido rapaz - disse-lhe -, volte as vezes que quiser, tantas

quantas o seu coração lhe pedir. Sei que não é daqueles que atraiçoam

S os, mas, jovem como é, podia às vezes proceder insensatamen-


PearlS. Buck

24

te. Rogo-lhe, por isso, não esqueça que só as estrelas foram testemunhas do
nosso amor. Não fale dele a ninguém, meu querido, e aceite esta pequena
lembrança da nossa feliz noite.

Ofereceu-lhe um curioso e primoroso pisa-papéis, com a forma de um leão


deitado, esculpido em jade tão amarelo como o criado pelo arco-íris em honra de
Kong-fu-tze. O rapaz beijou ternamente a prenda e a mão que lha dava.

- Que os espíritos me castiguem - jurou -, se alguma vez lhe der,


conscientemente, motivo para me censurar.

Despediram-se com promessas mútuas e, naquela manhã, ao regressar a casa do


senhor Tchang, Ming-Y proferiu a primeira mentira da sua vida: que a mãe lhe
pedira que passasse as noites em casa, agora que o tempo estava tão agradável,
pois, embora a distância fosse um pouco grande, ele era forte e vigoroso e
precisava de ar e de exercício. Tchang acreditou nas suas palavras e não levantou
objecções, o que permitiu ao moço professor ir todas as noites a casa da bela Siè.
Passavam-nas por completo entregues aos mesmos prazeres que haviam tornado
o seu primeiro encontro tão encantador: cantavam e conversavam
alternadamente, jogavam xadrez (o jogo erudito, inventado por Wu-Wang, que é
uma imitação da guerra) e compunham poemas de oitenta versos acerca de
flores, árvores, nuvens, regatos, aves e abelhas. Em todos estes passatempos,
Siè excedia muito o seu jovem namorado. Quando jogavam xadrez, era sempre o
rei de Ming-Y, o ísiang de Ming-Y, que ficava cercado e vencido; quando
compunham versos, os poemas de Siè eram sempre superiores aos dele na
harmonia, na elegância de forma, na elevação clássica do pensamento. Escolhiam
os temas mais difíceis, dos poetas da dinastia Thang, e as canções que cantavam
eram também as de cinco séculos antes, as canções de Youen-tchin, de Thou-
mou e, sobretudo, de Kao-pien, grande poeta e governador da província de Sze-
tchouen.

Assim passou o Verão sobre o seu amor e chegou o luminoso Outono, com as
suas névoas de falso ouro e as suas sombras de mágica púrpura.

Inesperadamente, porém, o pai de Ming-Y encontrou o amo do filho, que lhe


perguntou:

- Porque precisa o seu rapaz de caminhar todas as noites para a cidade, agora
que o Inverno se aproxima? A distância é grande e quan-

Histórias Maravilhosas do Oriente

25

do ele volta, de manhã, vem morto de cansaço. Porque não permite que durma na
minha casa durante a estação da neve?

Surpreendidíssimo, o pai de Ming-Y respondeu-lhe:

Mas, senhor, meu filho não foi à cidade nem esteve em nossa

casa durante todo o Verão! Receio que tenha adquirido maus hábitos e passe as
suas noites em companhia indesejável, talvez a jogar ou a beber com as mulheres
dos barcos de flores.

Não, nem pensar nisso! - protestou o alto-comissário. - Nunca vi nada de mau no


rapaz e não há tabernas, nem barcos de flores, nem lugares de dissipação na
vizinhança. Naturalmente Ming-Y travou conhecimento com algum jovem
simpático com quem passa as noites e mentiu-me por recear que não o deixasse
abandonar a minha residência. Rogo-lhe que não lhe diga nada, pois vou tentar
descobrir o mistério. Esta mesma noite mandarei o meu criado segui-lo e ver para
onde vai.

Pelou concordou imediatamente com a proposta e, depois de prometer visitar


Tchang na manhã seguinte, regressou a casa. Naquela noite, quando Ming-Y saiu
da residência de Tchang, um criado seguiu-o à distância, mas ao chegar ao ponto
mais escuro da estrada o rapaz desapareceu como se a terra o houvesse
engolido. Depois de o procurar em vão, o criado regressou a casa, cheio de
espanto, e contou a Tchang o que acontecera, o qual imediatamente mandou
informar Pelou.

Entretanto, ao entrar nos aposentos da sua amada, Ming-Y teve a dolorosa


surpresa de a encontrar lavada em lágrimas.

- Amor - soluçou ela, abraçando-o -, temos de nos separar para sempre por
razões que não te posso explicar. Sabia desde o princípio que assim aconteceria,
mas a perda é tão súbita, a desgraça tão inesperada, que não posso deixar de
chorar! Depois desta noite nunca mais nos veremos, meu querido! Sei que jamais
me esquecerás enquanto viveres, mas sei também que serás um grande sábio,
cumulado de honrarias e de riquezas, e que uma bela e encantadora mulher te
consolará da minha perda. E agora não falemos mais de tristezas, passemos
alegremente esta última noite, para que não guardes de mim uma recordação
dolorosa e recordes o meu riso de preferência às minhas lágrimas.

Limpou os olhos, trouxe vinho e músicas e o melodioso kin de sete as de seda, e


não consentiu que Ming-Y se referisse à próxima se-
PearlS. Buck

26

paração. Cantou-lhe uma linda canção antiga, que falava da serenidade dos lagos
estivais que reflectiam apenas o azul do céu e da serenidade do coração antes de
as nuvens dos cuidados, da mágoa e do enfado escurecerem o seu pequeno
mundo.

Não tardaram a esquecer a sua tristeza na alegria da música e do vinho, e


aquelas últimas horas pareceram a Ming-Y mais celestiais, até, do que as horas
abençoadas do seu primeiro encontro.

Mas a beleza pálida da manhã chegou, por fim, e com ela regressaram a tristeza e
o pranto. Mais uma vez Siè acompanhou o namorado aos degraus do terraço e,
ao dar-lhe um beijo de adeus, meteu-lhe na mão uma prenda de despedida, uma
caixinha de pincéis, de ágata maravilhosamente cinzelada, digna de um grande
poeta.

E separaram-se para sempre, com muitas lágrimas.

No entanto, Ming-Y não acreditava que a separação fosse eterna. «Não!»,


pensava. «Visitá-la-ei amanhã, pois não posso viver sem ela, e com certeza não
se recusará a receber-me.»

Tais eram os pensamentos que lhe povoavam o espírito quando chegou a casa de
Tchang e encontrou o pai e o amo à sua espera, no alpendre. Sem lhe dar tempo
de proferir uma palavra sequer, Pelou interpelou-o:

- Onde tens passado as noites, meu filho? Compreendendo que a sua mentira fora
desmascarada, Ming-Y não

ousou responder e ficou envergonhado e silencioso, de cabeça baixa, na presença


do pai. Pelou bateu-lhe então violentamente, ordenou-lhe que divulgasse o seu
segredo e, por fim, receoso do pai e, também, da lei segundo a qual «o filho que
se recuse a obedecer ao seu progenitor será punido com cem vergastadas de
bambu», Ming-Y confessou a história do seu amor.
Tchang mudou de cor ao ouvir as palavras do moço:

- Filho - declarou o alto-comissário -, não tenho nenhum parente com o nome de


Ping, nunca ouvi falar da mulher que descreves nem, sequer, da casa a que
aludes. Sei, no entanto, que não ousarias mentir ao teu honrado pai e, por isso,
estou certo de que deve haver algum estranho mistério em todo esse caso.

Ming-Y mostrou-lhes, então, os presentes que Sié lhe dera: o leão de jade
amarelo, a caixa de pincéis de ágata esculpida e, também, algumas composições
originais, da autoria da própria senhora. Pelou

Histórias Maravilhosas do Oriente

27

CO

mpartilhou o espanto de Tchang ao notarem ambos que a caixa de -gata e o leão


de jade tinham o aspecto de objectos que haviam permanecido séculos debaixo
da terra e denunciavam uma arte que não estava no poder de nenhum vivente
imitar. Quanto às composições, eram verdadeiras obras-primas poéticas, no estilo
da dinastia Thang.

Amigo Pelou - sugeriu o alto-comissário -, acompanhemos

imediatamente o rapaz ao lugar onde obteve estes objectos miraculosos e


recorramos ao testemunho dos nossos sentidos para esclarecer este mistério. Não
duvido que o moço Ming-Y fala verdade, mas a sua história ultrapassa a minha
compreensão.

E puseram-se os três a caminho da casa de Siè.

Quando chegaram ao ponto mais sombrio da estrada, onde os perfumes eram


mais doces, os musgos mais verdes e os frutos do pessegueiro bravo mais
rosados, Ming-Y olhou através das árvores e soltou um grito de espanto. Onde o
telhado de telhas azuis se erguera para o céu, havia agora, apenas, espaço vazio;
onde estivera a fachada verde e dourada, somente roçagavam agora folhas de
árvores, nimbadas pela suave luz outonal, e onde existira o largo terraço, nada
mais se divisava agora que um túmulo tão antigo, tão profundamente comido pela
humidade e pelo musgo que o nome gravado na pedra se tornara indecifrável.

A casa de Siè desaparecera!

De súbito o alto-comissário passou a mão pela fronte e, voltando-se para Pelou,


recitou o famoso verso do antigo poeta Tching-Kou:
- «Certamente as flores de pessegueiro desabrocham sobre o túmulo de Siè-
Thao.» Amigo Pelou - continuou -, a beldade que enfeitiçou seu filho não foi outra
senão aquela cujo túmulo se encontra nas ruínas que estão diante de nós! Não
disse ter sido esposa de Ping-Khang? Não existe nenhuma família com esse
nome, mas Ping-Khang é o nome de uma travessa larga, perto daqui, na cidade.
Falou por enigmas em tudo quanto disse. Declarou chamar-se ie de Moun-hiao;
não há nenhuma pessoa nem rua com esse nome, mas os caracteres chineses
Moun e Hiao, colocados juntos, formam o carácter Kiao. Escutem! A Travessa
Ping-Khang, situada na Rua Kiao, era o lugar onde viviam as grandes cortesãs da
dinastia Thang! Não e verdade que essa mulher cantava as canções de Kao-pien?
Não é em verdade que na caixa de pincéis e no pisa-papéis que deu a
28

PearlS. Buck

m-

seu filho se encontram caracteres que dizem: «Puro objecto de arte pertencente a
Kao, da cidade de Pho-hai»? Essa cidade já não existe, mas permanece a
recordação de Kao-pien, pois foi governador da província de Sze-tchouen e
grande poeta. Não é verdade ainda que, enquanto viveu na terra de Chou, foi sua
favorita a bela e voluptuosa Siè, Siè-Thao, cuja graça não teve par entre as
mulheres da sua época? Foi ele que lhe ofereceu estes manuscritos, foi ele que
lhe ofereceu estes raros objectos de arte. Siê-Thao morreu, mas não como
morrem as outras mulheres. Os seus membros podem ter-se desfeito em pó, mas
há qualquer coisa dela que ainda vive nesta densa floresta, a sua sombra ainda
vagueia neste lugar escuro.

Tchang calou-se e um medo vago apoderou-se dos três homens. A neblina


matinal ofuscava a distância verde e acentuava a beleza fantástica da floresta.
Passou por eles uma leve brisa, deixando um rasto de perfume - uma última
fragrância de flores moribundas, ténue como o perfume que se agarra à seda de
um vestido esquecido -, e as árvores pareceram murmurar, no silêncio: Siè-Thao...

Preocupadíssimo com o filho, Pelou mandou-o imediatamente para a cidade de


Kwang-tchau-fu. Aí, anos volvidos,Ming-Y alcançou grandes dignidades e
honrarias, graças aos seus talentos e à sua erudição. Casou com a filha de uma
casa ilustre, que o tornou pai de filhos e filhas, famosos pelas suas virtudes e
dotes. No entanto, jamais esqueceu Siè-Thao, embora se diga que nunca falou
dela, nem mesmo quando os filhos lhe pediam que contasse a história dos dois
bonitos objectos que conservava sempre na sua escrivaninha: um leão de jade
amarelo e uma caixa de pincéis de ágata esculpida.

O príncipe veado
vi»

:.-**.

i.«J

Este conto de encantar da Turquia fala do filho e da filha de um soberano que,

depois da morte do pai, foram obrigados a abandonar o seu reino e a vaguear pela

Terra. Infelizmente, o jovem príncipe bebe água encantada, para mitigar uma
grande

sede, e fica transformado em veado. Como depois cuida da irmã, empoleirada


numa

árvore; como uma velha astuta a convence a descer e a desposar o paxá; como a

jovem é engolida por um grande peixe, graças ao artifício de uma escrava


ciumenta,

e. dentro dele dá à luz um principezinho; como, depois de tudo isso, é, finalmente,

restituída ao marido, o paxá... Mas lede, lede e vereis!

Era uma vez um paxá que tinha um filho e uma filha. O paxá envelheceu, chegou
a sua hora, morreu e o filho sucedeu-lhe. Mas o filho não soube governar e não
tardou a perder toda a sua herança.

Um dia disse à irmã:

- Todo o nosso dinheiro se gastou. Se o povo soubesse, expulsar-nos-ia da nossa


casa e nunca mais conseguiríamos levantar a cabeça. Parece-me melhor,
portanto, partirmos e recomeçarmos vida noutro lado qualquer.

Reuniram o pouco que lhes restava e, de noite, o irmão e a irmã abandonaram o


palácio do pai e foram correr o vasto mundo. Andaram, andaram, e por fim foram
ter a um imenso e escaldante deserto, o ver uma pequena poça de água, o jovem
sentiu-se incapaz de avanÇar mais um passo que fosse.

Irmãzinha - disse -, não poderei ir mais longe se não beber esta água.

” Não, querido irmão! - exclamou a rapariga. - Quem sabe se


Pecais. Buck

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é boa ou má? Podemos, com certeza, resistir um pouco mais e em breve
encontraremos água fresca.

-Já te disse que não darei nem mais um passo enquanto não beber, embora isso
me mate.

Ajoelhou, bebeu a água - que era encantada - até à última gota e transformou-se
em veado. A irmãzinha chorou amargamente tamanha desgraça, mas nada mais
podiam fazer do que continuar a andar. Subiram e desceram encostas,
atravessaram a imensidão arenosa e chegaram, por fim, a uma nascente, debaixo
de uma grande árvore, onde pararam a descansar.

- Escuta, irmãzinha - pediu o veado -, deves trepar para aquela árvore, enquanto
tento arranjar alguma comida.

A rapariga empoleirou-se na árvore e o veado subiu e desceu encostas, apanhou


uma lebre, levou-a para junto da árvore e comeu-a com a irmã. Assim viveram dia
após dia, semana após semana.

Os cavalos do paxá costumavam ir beber à nascente, debaixo da grande árvore.


Uma noite, os cavaleiros chegaram, como de costume, mas quando os cavalos
iam a beber viram a imagem da donzela reflectida na água e recuaram. Os
cavaleiros pensaram que talvez a água não estivesse limpa, despejaram o buraco
e voltaram a enchê-lo, mas os cavalos recuaram de novo e não beberam. Sem
saberem que fazer, os homens contaram o caso ao paxá.

- Talvez a água esteja suja de lama - alvitrou o paxá.

- Não está - afirmaram os cavaleiros. - Despejámos o buraco e enchemo-lo de


água limpa, mas os cavalos não quiseram beber.

- Tentem outra vez - ordenou-lhes o amo - e observem bem as proximidades.


Deve haver alguma coisa perto da nascente, que os assusta.

Os cavaleiros regressaram e, ao olharem, finalmente, para a grande árvore,


descobriram a donzela e foram logo dar a notícia ao paxá. Este quis ver com os
seus próprios olhos e encontrou, de facto, empoleirada na árvore, uma menina
linda como a Lua, da qual não conseguiu desviar a vista.

- És espírito ou peri? - perguntou-lhe.

- Não sou espírito nem peri, sou mortal como tu - respondeu-lhe a j ovem.

O paxá suplicou-lhe que descesse da árvore, mas não encontrou

Histórias Maravilhosas do Oriente


m.

lavras que a demovessem e irritou-se. Ordenou aos seus homens

e abatessem a árvore, estes foram buscar machados e atacaram o onco


Desferiram machadada atrás de machadada, até restar apenas m caule estreito,
mas como, entretanto, escurecera, interromperam o trabalho até ao dia seguinte.

Mal se afastaram, o veado surgiu a correr da floresta e perguntou à irmã o que


sucedera. Ao ouvir a história, redarguiu-lhe:

Fizeste bem, irmãzinha. Toma cuidado, não desças nunca, digam-te o que te
disserem.

Aproximou-se da árvore, lambeu-a e os ferimentos produzidos pelos machados


desapareceram ficando o tronco outra vez intacto.

No dia seguinte, depois de o veado partir para a floresta, os homens do paxá


voltaram e verificaram que a árvore se tornara mais larga e mais forte do que era
antes. Brandiram novamente os machados e trabalharam até chegarem ao meio
do tronco, mas, entretanto, anoiteceu e, mais uma vez, interromperam a tarefa e
deixaram o resto para o dia seguinte.

Todo o seu trabalho anterior se perdeu, porém, pois o veado regressou, lambeu
de novo a árvore e o tronco tornou-se, acto contínuo, mais largo e duro do que
nunca.

De manhãzinha cedo, logo a seguir à partida do veado, o paxá chegou com os


seus lenhadores. Quando viram que o tronco estava outra vez intacto, resolveram
tentar convencer a rapariga a descer, usando de outros meios. Regressaram ao
palácio e mandaram chamar uma velha bruxa muito famosa, a quem contaram a
história e prometeram rica recompensa se conseguisse, graças a alguma manha
subtil, levar a donzela a descer da árvore. A velha bruxa concordou de bom grado
e, munida de um tripé de ferro, um caldeirão e várias carnes cruas, colocou tudo
perto da nascente. Depois armou a tripeça e pendurou nela o caldeirão, mas de
pernas para o ar. Feito isto tirou água da nascente e deitou-a, não no caldeirão,
mas no solo, conservando sempre os olhos fechados, como se fosse cega.

A rapariga julgou que fosse, de facto, cega e disse-lhe, do alto da árvore:

Querida velhinha, puseste o caldeirão ao contrário e a água caiu toda para o chão!

• Acontece assim, doce donzela, porque não tenho olhos para ver
Pearl S. Buck

Histórias Maravilhosas do Oriente


32

33

- respondeu-lhe a bruxa. - Trouxe alguma roupa suja comigo e, se amas Alá,


desce e vem ajudar-me a lavá-la.

A jovem lembrou-se das palavras do irmão e não desceu.

No dia seguinte, a velha bruxa voltou, andou às apalpadelas, acendeu uma


fogueira e tirou um saco de farinha para peneirar, mas deitou cinzas na peneira,
em vez de farinha.

- Pobre avózinha! - exclamou a donzela, compadecida, e explicou-lhe que estava


a peneirar cinzas.

- Oh, querida menina, sou cega, não vejo! - chorou a velha. Desce e ajuda-me na
minha aflição!

Mas o veado voltara a recomendar seriamente à jovem, naquela própria manhã,


que não descesse da árvore, fosse o que fosse que lhe dissessem, e ela
obedeceu.

No terceiro dia a velha bruxa reapareceu. Desta vez trazia uma ovelha e uma faca
para a matar, mas começou a apunhalá-la e a esfolá-la pela parte de trás, em vez
de lhe cortar a garganta. A pobre ovelhinha balia horrivelmente e a jovem, incapaz
de suportar a visão do seu sofrimento, desceu da árvore para pôr termo aos
tormentos do animal. O paxá, que estava escondido ali perto, apareceu e levou-a
para o seu palácio.

A jovem era tão bonita que desejaria desposá-la sem demora, mas ela recusou-se
a consentir enquanto não encontrassem o irmão, isto é, o veado. Se ele não
aparecesse, afirmava, não teria um momento de tranquilidade. O paxá mandou
homens para a floresta e eles apanharam o veado e levaram-no à irmã, da qual
nunca mais se afastou. Mesmo depois de o paxá e a jovem casarem, o veado
encontrava-se sempre perto deles e, à noite, afagava-os com a pata, um de cada
vez, antes de se deitar a seu lado, e dizia:

3 Este pezinho é para a minha irmã, E este pezinho é para o meu irmão.

Teriam vivido felizes desta maneira se não houvesse no palácio uma certa
escrava. O ciúme devorava-a só de pensar que o paxá tomara por esposa a
donzela esfarrapada do alto da árvore, em vez dela própria, e procurava
oportunidade de se vingar.

Havia no palácio um bonito jardim com uma fonte, onde a jovem


l

snosa do paxá costumava passear. Um dia, com um pires de oiro na

mão e uma sandália de prata no pé, dirigiu-se para a grande fonte, mas

escrava invejosa seguiu-a e empurrou-a para dentro dela, onde um

enorme peixe a engoliu imediatamente. A escrava regressou então ao

palácio, vestiu os trajes dourados da sultana e sentou-se no seu lugar.

Ao regressar, à noite, o paxá perguntou-lhe, julgando tratar-se da esposa, que


fizera ao rosto, que o tinha tão transtornado.

Passeei muito no jardim e estou fatigada - respondeu-lhe a escrava.

O paxá acreditou-a e sentou-se a seu lado, mas o veado veio juntar-se-lhes e


reconheceu a escrava, ao afagá-los com o casco e ao dizer:

Este pezinho é para a minha irmã, E este pezinho é para o meu irmão.

Tornou-se então desejo da escrava ver-se livre do veado o mais depressa


possível, com medo de que a denunciasse. Depois de pensar muito, fingiu-se
doente, mandou chamar os médicos e deu-lhes uma grande quantia em dinheiro,
para que dissessem ao paxá que só se curaria se comesse o coração do veado.

Os médicos procuraram o soberano e informaram-no de que, se a esposa não


comesse o coração do veado, não haveria esperança de se salvar. O paxá foi ter
com a escrava, que ainda julgava ser a sua esposa, e perguntou-lhe se teria
coragem de comer o coração do próprio irmão.

- Que hei-de fazer? - suspirou a impostora. - Se eu morrer, que será do pobre


bichinho? Se o matarem, viverei e ser-lhe-ão poupados os tormentos que
padecem os pobres animais quando envelhecem e adoecem.

O paxá ordenou que afiassem uma faca de carniceiro, acendessem uma fogueira
e pusessem sobre ela um caldeiro de água. Compreendendo o que se passava, o
pobre veado correu para a fonte e disse três vezes à irmãzinha:

A Jaca está na pedra, A água está ao lume, Apressa-te, irmãzinha, apressa-te!


PearlS. Buck

34

E três vezes ela lhe respondeu, das entranhas do peixe:


Aqui estou no ventre do peixe, Com um pires de oiro na mão, Uma sandália de
prata no pé E nos braços um paxázinho!

Pois a esposa do paxá dera à luz um filho, nas entranhas do peixe!

O paxá, empenhado em apanhar o veado, fora sorrateiramente atrás dele, ao vê-


lo dirigir-se para o jardim, e ouviu tudo quanto os irmãos disseram um ao outro.
Ordenou, serenamente, que esgotassem toda a água do reservatório da fonte,
retirassem o peixe e lhe abrissem a barriga. E que julgais que viu? Nas entranhas
do peixe encontrava-se a sua mulher, com um pires de oiro na mão, uma sandália
de prata no pé e um filhinho nos braços. O soberano abraçou a esposa, beijou o
filho e levou-os para o palácio, onde lhe contaram tudo quanto se passara.

Quanto ao veado, encontrara uma substância mágica no sangue do peixe, bebera-


a e voltara a ser príncipe. Correu para junto da irmã, abraçaram-se e choraram de
alegria.

O paxá mandou então chamar a escrava ciumenta e perguntou-lhe que preferia:


quatro bons corcéis ou quatro boas espadas.

- Guardai as espadas para o pescoço dos meus inimigos - respondeu-lhe - e dai-


me os quatro corcéis, para que tenha o prazer de os montar.

Os homens do paxá amarraram-na à cauda de quatro bons cavalos e mandaram-


na dar um passeio. Os corcéis esfrangalharam a invejosa rapariga, fizeram-na em
bocadinhos e lançaram-nos ao vento. Mas o paxá e a esposa viveram felizes, e o
filho do rei, que fora veado, ficou com eles. Deram um grande banquete que durou
quarenta dias e quarenta noites e todos realizaram os seus desejos numa vida
longa e venturosa.

ffi.:

O príncipe Ahmed e ajada Peribanou \

Este conto de encantar persa refere-se a um jovem príncipe, bom e delicado, a


uma bonita princesa e a um peri ainda mais bonito. O príncipe era o mais novo
dos três filhos do sultão das índias. Os três irmãos estavam todos apaixonados
pela princesa,

que fora confiada aos cuidados do sultão, e este, preocupado, tentou encontrar
maneira de descobrir qual dos seus filhos era mais digno de desposar a jovem.
Por j

fim foi o peri quem ajudou a resolver o problema e viveram todos muito felizes.

35
Houve em tempos que já lá vão um sultão que tinha três filhos e uma sobrinha. O
príncipe mais velho chamava-se Houssain, o segundo Ali, o mais novo Ahmed e a
princesa, sobrinha do sultão, Nouronnibar.

A princesa Nouronnibar era filha do irmão mais novo do sultão, que morrera e a
deixara órfã ainda muito pequena. O sultão tomara a seu cargo a educação da
sobrinha e criara-a no seu palácio com os três limos, pensando casá-la com algum
príncipe vizinho, quando atingisse idade conveniente. Um dia descobriu, porém,
que os seus três filhos a amavam apaixonadamente e ficou muito preocupado,
prevendo que seria difícil levá-los a chegar a um acordo quanto àquele a quem a
mão da jovem deveria ser dada. Achou que, por deferência, os dois príncipes mais
jovens deviam consentir em resignar-se a favor do irmão mais ve no, mas, ao
verificar que se opunham terminantemente a tal soluÇão, mandou chamar os três.

Hinos, já que não os consegui persuadir a escolher quem deve

esposar a princesa, acho que não seria má ideia se cada um de vocês

jasse por países diferentes, para não andarem juntos e a brigar uns
Peart S. Buck

36

com os outros. Como sabem, sou muito curioso e delicio-me com tudo quanto é
singular. Prometo, portanto, a mão da minha sobrinha àquele que me trouxer a
raridade mais extraordinária. Para a sua aquisição e para as despesas de viagem,
darei a cada um certa soma de dinheiro.

Como obedeciam sempre à vontade do sultão, e cada um pensava que talvez a


sorte o favorecesse, concordaram todos com a proposta. O pai entregou-lhes o
dinheiro e naquele mesmo dia ordenou que se iniciassem os preparativos das
viagens. Os filhos despediram-se dele, dispostos a partirem na manhã seguinte.
Assim, partiram da mesma porta da cidade, vestidos de mercadores, e cada um
deles com um oficial de confiança disfarçado de escravo, todos bem montados e
equipados. No primeiro dia viajaram juntos e ficaram numa estalagem onde a
estrada se dividia em três outras estradas; à noite, enquanto jantavam,
combinaram viajar durante um ano, findo o qual se reencontrariam na estalagem.
Aquele que chegasse primeiro esperaria pelos outros, pois, como tinham partido
juntos, era possível que regressassem juntos também. Na manhã seguinte, ao
nascer do dia, depois de se abraçarem e desejarem mutuamente felicidades,
montaram nos seus cavalos e cada um tomou a sua estrada.

O príncipe Houssain, o mais velho, chegou a Bisnaga, capital do reino do mesmo


nome e residência do rei. Instalou-se num caravansará destinado a mercadores
estrangeiros e aí tomou conhecimento de que existiam quatro zonas principais
onde mercadores de todos os géneros vendiam as suas mercadorias e tinham as
suas lojas. No meio da praça do mercado erguia-se o palácio do rei. No dia
seguinte dirigiu-se a uma dessas zonas, ficou muito impressionado e observou a
praça com admiração. Era grande e dava para várias ruas, todas abobadadas e
protegidas do sol, mas, apesar disso, muito claras. As lojas eram de igual tamanho
e os comerciantes de cada espécie de mercadorias ocupavam uma rua, o mesmo
acontecendo com os artesãos, que tinham as suas oficinas em ruas mais
pequenas.

A grande quantidade de lojas, abastecidas de toda a espécie de mercadorias (os


mais finos linhos da índia, com animais, árvores e flores pintadas nas cores mais
vivas; sedas e brocados da Pérsia e da China; porcelanas do Japão e da China e
maravilhosas tapeçarias), fizeram-no duvidar dos seus próprios olhos. Quando
chegou às lojas dos ourives e joalheiros, ficou extasiado perante tão prodigiosas
quantidades de

Histórias Maravilhosas do Oriente

. e prata lavrada, e ofuscado pelo brilho das pérolas, dos diamandos rubis, das
esmeraldas e de outras pedras preciosas expostas

para

venda.

Outra coisa que o príncipe Houssain também admirou foi o grande número de
vendedores de rosas que enchiam as ruas; os indianos gostam tanto desta flor
que não fazem nada sem um ramalhete na mão ou uma grinalda na cabeça. Os
mercadores tinham igualmente rosas em jarras, nas lojas, para perfumarem o ar.

Depois de observar as mercadorias daquela zona, rua por rua, o príncipe


Houssain sentia-se deslumbrado com as maravilhas que vira. Como estava muito
fatigado, um comerciante convidou-o a sentar-se na sua loja. Pouco depois de se
sentar, o príncipe viu passar um pregoeiro levando no braço uma tapeçaria dos
seus seis pés quadrados, que o homem apregoava por trinta moedas. Houssain
chamou-o e pediu-lhe que lhe mostrasse a tapeçaria, que lhe pareceu avaliada em
preço exorbitante, não só devido ao seu tamanho como, também, à pouca
espessura do tecido. Depois de a examinar bem, confessou ao pregoeiro não
compreender por que motivo pedia preço tão elevado por tapeçaria tão pequena e
insignificante.

O pregoeiro, que o tomou por mercador, replicou-lhe:

- Se o preço lhe parece extravagante, maior será a sua surpresa se lhe disser que
tenho ordem de o elevar para quarenta dinheiros e não vender por menos.

- Deve possuir algo de muito extraordinário que eu ignoro - comentou o príncipe.


- Acertou, senhor. O que há de extraordinário neste tapete é que quem quer que
nele se sente será imediatamente transportado aonde desejar, sejam quais forem
os obstáculos.

Ao ouvir tal explicação, o príncipe das índias lembrou-se de que o pnncipal motivo
da sua viagem era levar para casa uma raridade qualquer, e achou que não podia
encontrar nada mais adequado, nesse capítulo.

~~ Se o tapete possui a virtude que lhe atribuis - disse ao pregoeiro , não


considero quarenta dinheiros preço exorbitante e ainda te darei um presente.

r. .~T~ Disse-lhe a verdade, senhor - afirmou o homem. - Aliás, será convencê-lo.


Fechemos o negócio por quarenta dinheiros, com a
PearlS. Buck

38

condição de eu fazer uma demonstração. Como calculo que não traz tanto
dinheiro consigo, acompanhá-lo-ei à sua morada. Colocarei o tapete no chão e,
depois de nos sentarmos nele, o senhor desejará ser transportado aos seus
aposentos no caravansará. Se não nos transportar, ficará desobrigado do negócio.
Quanto ao presente, embora o vendedor pague o meu trabalho, aceitá-lo-ei como
um favor e ficar-lhe-ei muito agradecido.

O príncipe aceitou as condições e fechou o negócio. Sentaram-se ambos no


tapete, o príncipe exprimiu o seu desejo e pouco depois encontrou-se com o
pregoeiro nos seus aposentos. Como não precisava de mais provas da virtude do
tapete, contou as moedas de oiro e juntou-lhe mais vinte, de presente.

Desta maneira ficou o príncipe Houssain possuidor do tapete e feliz por em tão
pouco tempo de estadia em Bisnaga haver encontrado uma raridade tão grande
que, estava certo, lhe mereceria a mão de Nouronnibar. Em resumo, parecia-lhe
impossível que os irmãos mais novos encontrassem alguma coisa que se pudesse
comparar ao que ele próprio encontrara. Bastar-lhe-ia sentar-se no tapete para
estar no ponto de encontro naquele mesmo dia, mas como seria obrigado a
esperar aí pelos irmãos, de acordo com o combinado, e. sentia curiosidade de ver
o rei de Bisnaga e a sua corte, e de se informar acerca da força, das leis, dos
costumes e da religião do reino, resolveu demorar-se ali alguns meses, com esse
objectivo.

O tempo passou e, embora o príncipe Houssain pudesse ficar mais tempo na corte
de Bisnaga, estava tão ansioso por se encontrar mais perto da princesa que
estendeu o tapete, sentou-se nele com o oficial que o acompanhava e, mal
proferido o desejo, foram transportados à estalagem onde ficara de se reunir aos
irmãos.
O príncipe Ali, o irmão do meio, escolheu a estrada que levava à Pérsia, juntou-se
a uma caravana e, passados quatro dias de viagem, chegou a Xiraz, capital do
reino, onde passou por joalheiro. Na manhã seguinte vestiu-se e foi dar um
passeio pelo bazar de Xiraz.

Entre os pregoeiros que se azafamavam de um lado para o outro com as suas


mercadorias, viu, surpreendido, um que segurava na mão um telescópio de
marfim, de cerca de trinta centímetros de comprimento e da grossura de um dedo
de homem, que apregoava por trinta moedas. A princípio, julgou que o homem
fosse doido e, para se certí-

Histórias Maravilhosas do Oriente

f r dirigiu-se a um mercador que se encontrava à porta da sua loja e perguntou-lhe:

__ Diga-me, senhor, aquele homem é doido? Se não é, devo estar muito


enganado.

Na verdade, senhor, ainda ontem estava no seu juízo perfeito.

Garanto-lhe que é um dos nossos pregoeiros mais competentes e o mais utilizado


por todos quando queremos vender alguma coisa valiosa. Portanto, se apregoa o
telescópio de marfim por trinta moedas, pode ter a certeza de que vale outro tanto
ou mais. Mas ele passará por aqui em breve; chamá-lo-emos e satisfará a sua
curiosidade. Entretanto, sente-se no meu sofá e descanse.

O príncipe Ali aceitou a amável oferta do mercador e, pouco depois, o mercador


passou. O dono do estabelecimento chamou-o pelo nome e, apontando o príncipe,
disse-lhe:

- Explica a este cavalheiro porque apregoas esse pequeno telescópio por trinta
moedas. Eu próprio me sentiria muito surpreendido se já não te conhecesse.

O pregoeiro voltou-se para o príncipe e declarou:

- Não é o senhor a primeira pessoa que me julga doido por causa deste
telescópio, mas decidirá por si próprio quando o informar da sua característica
especial. Primeiro - prosseguiu o pregoeiro, estendendo o tubo de marfim ao
príncipe -, queira observar que este tubo tem um vidro em ambas as extremidades
e considerar que, espreitando por um deles, poderá ver qualquer objecto que
deseje.

- De bom grado pedirei desculpa do que pensei se assim for afirmou o príncipe,
pegando no tubo de marfim. - Mostre-me por que extremidade deverei olhar para
acontecer o que diz.

O pregoeiro elucidou-o e o príncipe olhou pelo vidro indicado, ao mesmo tempo


que desejava ver o pai. Avistou-o imediatamene> de perfeita saúde, sentado no
seu trono entre os seus conseheiros. Depois, como nada no mundo lhe era tão
querido, a seguir ao sultão, como a princesa Nouronnibar, desejou vê-la & a sua
vontade realizou-se: a princesa apareceu-lhe, no seu toucador, a rir e em disposta,
rodeada de todas as suas aias. O príncipe Ali não P ecisou de mais provas para
se convencer de que aquele telescóera o objecto mais precioso do mundo e de
que nunca enconana raridade que se lhe assemelhasse. Levou, por isso, o pré-
PearlS. Buck

40

goeiro ao caravan-sará onde se instalara, pagou-lhe e recebeu o telescópio


mágico.

O príncipe Ali ficou louco de contentamento com a aquisição e persuadiu-se de


que, como, por certo, os irmãos não encontrariam nada tão raro e admirável, a
princesa Nouronnibar seria sua. Assim que a caravana se preparou para
regressar, o príncipe reuniu-se-lhe e chegou à estalagem, feliz e sem
contratempos ou incómodos que não fossem os próprios de viagem tão longa e
fatigante. Já lá encontrou o irmão Houssain e, juntos, esperaram pelo príncipe
Ahmed.

O príncipe Ahmed escolheu a estrada de Samarcanda e, quando lá chegou, ouviu


um pregoeiro apregoar uma maçã artificial por trinta e cinco moedas. Deteve o
homem e disse-lhe:

- Mostra-me essa maçã e explica-me que virtudes e propriedades extraordinárias


possui para valer preço tão elevado.

- Senhor - respondeu-lhe o pregoeiro, entregando-lhe a maçã -, exteriormente,


esta maçã parece, de facto, sem valor, mas se considerar as suas propriedades, a
sua grande utilidade e os benefícios que pode trazer à Humanidade, achará que
trinta e cinco moedas não são nada, pois quem a possuir será dono de um grande
tesouro. Em resumo, cura todos os enfermos das doenças mais mortais e, se o
paciente está moribundo, devolve-lhe imediatamente a saúde, bastando para isso
que o doente cheire a maçã.

- Se é verdade o que dizes, as virtudes desta maçã são, de facto, maravilhosas.


Mas, para que te acredite, terás de mas demonstrar.

- Senhor, esta maçã é conhecida de toda a cidade de Samarcanda, que nela


confia inteiramente. Interrogue os mercadores que vê por aí e ouça o que lhe
disserem. Vários lhe dirão que não estariam vivos se não fora este remédio
excelente, fruto das experiências de um célebre filósofo desta cidade. Dedicou
toda a sua vida ao estudo das virtudes de plantas e minerais e, finalmente,
produziu esta maçã, graças à qual operou já muitas curas surpreendentes. Só é
pena que tenha morrido de súbito, sem ter tempo de beneficiar do seu invento.
Deixou mulher e muitos filhos em situação pouco invejável e a pobre senhora tem
de vender a maçã, para sustentar as crianças.

Entretanto, tinham-se reunido em volta deles muitas pessoas que confirmaram as


palavras do pregoeiro. Uma delas declarou ter um amigo gravemente doente, em
perigo de vida, e ser a oportunidade favo-

Histórias Maravilhosas do Oriente

41

”vel para uma experiência. Ao ouvir tais palavras, o príncipe prometeu ao


pregoeiro quarenta moedas se curasse o enfermo.

Vamos, senhor, façamos a experiência e a maçã será sua - disse o pregoeiro ao


príncipe. - Posso garantir-lhe que se obtém sempre o efeito desejado.

Em resumo, a experiência foi bem sucedida e, depois de entregar as quarenta


moedas ao pregoeiro, o príncipe ficou com a maçã. Aguardou pacientemente a
primeira caravana com destino às índias e chegou de perfeita saúde à estalagem
onde os príncipes Houssain e Ali o aguardavam.

De novo juntos, os irmãos mostraram uns aos outros os respectivos tesouros.


Qual não foi a sua consternação, porém, quando viram pelo telescópio que a
princesa agonizava. Sentaram-se imediatamente no tapete, desejaram estar com
ela, e assim aconteceu, num instante.

Logo que se encontrou no quarto de Nouronnibar, o príncipe Ahmed levantou-se


do tapete, imitado pelos irmãos, aproximaram-se da cama e colocaram o pomo
debaixo do nariz da moribunda. Momentos depois a princesa abriu os olhos, voltou
a cabeça de lado para lado, olhou as pessoas que a rodeavam, sentou-se na
cama e pediu que a vestissem, como se acordasse apenas de um sono profundo.
As aias disseram-lhe alegremente que devia agradecer aos três príncipes o súbito
restabelecimento da sua saúde, sobretudo ao príncipe Ahmed, e a jovem não
escondeu a alegria que lhe causava vê-los, agradeceu a todos e depois, em
particular, ao príncipe Ahmed.

Enquanto a princesa se vestia, os três irmãos foram lançar-se aos pés do pai e
prestar-lhe as suas homenagens. Verificaram que o eunuco-chefe da princesa já
informara o sultão da chegada dos filhos e da maneira como haviam curado a
princesa. O sultão recebeu-os com a maior alegria, tanto por terem regressado
como pela cura da sobrinha, que estimava como se fosse sua filha, e, depois das
cerimónias e cumprimentos usuais, cada príncipe apresentou a sua raridae- o
príncipe Houssain o seu tapete, o príncipe Ali o seu telescópio de marfim e o
príncipe Ahmed a sua maçã artificial. Deixaram a decisão a cargo do pai e
pediram-lhe que se pronunciasse acerca do seu des> lsto é, a qual deles daria por
esposa a princesa Nouronnibar, corno prometera.
PÔS ouvir o que os filhos tinham a dizer acerca das raridades que
PearlS. Buck

42

traziam e da maneira como fora salva a princesa, o sultão ficou calado durante
algum tempo, a pensar na resposta que devia dar.

- Dá-la-ia a um de vocês, meus filhos, com grande prazer, se pudesse fazê-lo com
justiça - disse por fim. - Mas ouçam e vejam se isso é possível. É verdade,
príncipe Ahmed, que a princesa deve a sua cura à tua maçã artificial; mas
poderias tê-la curado se não soubesses pelo telescópio do príncipe Ali o perigo
que corria e se o tapete do príncipe Houssain não te tivesse trazido tão depressa?

«O teu telescópio, príncipe Ali, informou-te, e aos teus irmãos, de que podiam
perder a princesa; por isso, devem-lhe todos um grande favor. Deves também
concordar que essa informação de nada valeria sem a maçã artificial e o tapete.

«E finalmente, príncipe Houssain, a princesa seria muito ingrata se não


reconhecesse o serviço prestado pelo teu tapete, tão essencial para a sua cura.
Mas deves concordar que de pouco serviria se não tivesses conhecimento da
doença da princesa pelo telescópio do príncipe Ali e se o príncipe Ahmed não
possuísse o pomo artificial. Portanto, como nem o tapete, nem o telescópio de
marfim, nem a maçã artificial tiveram preponderância uns sobre os outros, e como,
pelo contrário, existe igualdade perfeita, não posso conceder a mão da princesa a
nenhum e o único fruto que colheram das viagens que fizeram foi a glória de
contribuírem igualmente para restaurar a sua saúde. Sendo tudo isto verdade,
compreendam que devo recorrer a outros meios para determinar qual de vocês
merece ser escolhido. Arme-se, portanto, cada um de arco e flecha e reúnam-se
na grande planície onde se exercitam os cavalos. Prometo dar a princesa
Nouronnibar àquele que disparar mais longe.»

Os três príncipes nada tiveram que dizer contra a resolução do pai. Muniu-se cada
um de arco e flecha e dirigiram-se para o local do encontro, seguidos por grande
multidão.

Assim que o sultão chegou, o príncipe Houssain, como mais velho, pegou no arco
e na flecha e disparou primeiro; o príncipe Ali disparou a seguir, com muito mais
alcance do que o irmão, e o príncipe Ahmed foi o último a esticar o arco, mas
ninguém viu aonde a sua seta foi parar; não apareceu longe nem perto. Embora
se acreditasse que o seu disparo fora o de maior alcance e que, portanto, merecia
a mão da princesa Nouronnibar, foi impossível prová-lo. O sultão decidiu a favor
do

Histórias Maravilhosas do Oriente


• ripe Ali e ordenou que se iniciassem os preparativos do casamenue se celebrou
poucos dias depois com grande magnificência.

O príncipe Houssain não honrou a festa com a sua presença; o seu dessosto era
tão profundo que abandonou a corte e renunciou a todos os seus direitos de
sucessão ao trono para se tornar eremita. O príncipe Ahmed, como o irmão mais
velho, também não compareceu, mas ao contrário de Houssain não renunciou ao
mundo. Resolvido a descobrir aonde fora parar a sua seta, afastou-se do seu
séquito e foi procurá-la. Dirigiu-se primeiro ao ponto onde as setas do príncipe
Houssain e do príncipe Ali tinham sido encontradas e, seguindo a direito a partir
daí, e olhando cuidadosamente para ambos os lados, andou tanto que por fim
começou a pensar serem vãos os seus esforços. Mas não resistiu à tentação de
continuar a avançar, até que chegou a uns rochedos íngremes e escarpados,
situados numa região árida, distante cerca de quatro léguas do ponto de onde
partira.

Junto dos rochedos encontrou uma seta, na qual pegou e que examinou
atentamente, surpreendendo-se por verificar que era a que disparara.

«Certamente», disse para consigo, «nem eu nem qualquer outro homem poderia
disparar uma seta tão longe.» Verificando, ainda, que ficara deitada, e não
espetada no solo, calculou que ressaltara contra a rocha e pensou: «Deve haver
um mistério nisto; um mistério que talvez seja vantajoso para mim. Terá a sorte
trazido para aqui a seta, a fim de me compensar de ter perdido o que considerava
a minha maior felicidade?».

As rochas estavam cheias de cavernas, algumas das quais fundas, e o príncipe


entrou numa, olhou à sua volta e descobriu uma porta de terro que parecia não ter
fechadura. Empurrou-a com o corpo, a porta abriu-se e descobriu-lhe uma descida
suave, pela qual meteu com a seta na mão. A princípio caminhou numa penumbra
sombria, mas pouco depois brilhou uma luz na sua frente e, ao penetrar num largo
espaçoso, a cinquenta ou sessenta passos de distância, encontrou um magní°
Pa’ácio. Ao mesmo tempo, encaminhou-se ao seu encontro uma se-

ora de aspecto majestoso, acompanhada de um grande grupo de aias,

as tão bem vestidas e bonitas que era difícil distingui-las da ama. viu a dama, o
príncipe Ahmed apressou-se a apresentar-lhe os
56115 resPeitos e ela disse-lhe, falando-lhe em primeiro lugar:
PearlS. Buck

44

- Aproxime-se, príncipe Ahmed; seja bem-vindo.

Grande foi a surpresa do príncipe ao ouvir o seu nome pronunciado num lugar do
qual nem sequer ouvira falar e que ficava tão perto da capital do seu pai. Não
compreendia que o conhecesse uma senhora que lhe era absolutamente
estranha. Retribuiu o cumprimento, lançando-se-lhe aos pés e dizendo, ao
levantar-se:

- Mil agradecimentos, minha senhora, pelas suas boas-vindas. Permita-me,


contudo, que lhe pergunte como é possível conhecer-me e ser-me totalmente
desconhecida?

- Entremos no salão, príncipe - convidou-o. - Aí responderei às suas perguntas.

Conduziu o jovem ao salão, sentou-se num sofá e quando Ahmed, obedecendo ao


seu convite, se sentou também, disse-lhe:

- Sabe, sem dúvida, que a sua religião ensina ser o mundo povoado por espíritos,
tanto como por homens. Pois eu sou filha de um dos espíritos mais poderosos e
distintos e chamo-me Peribanou. Achei-o digno de destino mais feliz que o de
desposar a princesa Nouronnibar. Encontrava-me presente quando disparou a sua
seta, previ que não alcançaria mais longe que a do príncipe Houssain, apanhei-a
no ar e fiz com que embatesse nas rochas junto das quais a encontrou. Agora
digo-lhe que está na sua mão aproveitar esta oportunidade favorável para ser feliz.

Ao pronunciar as últimas palavras o tom da voz da fada Peribanou modificou-se e


ela olhou o príncipe com ternura e pudico rubor nas faces. Claro que o jovem não
teve dificuldade em compreender a que felicidade ela aludia... Reflectiu que a
princesa Nouronnibar jamais poderia ser sua e que a fada Peribanou a excedia
infinitamente em beleza, simpatia, inteligência e - pelo que a magnificência do
palácio permitia conjecturar - em imensas riquezas, abençoou o momento em que
decidira procurar segunda vez a seta e, cedendo ao seu amor, respondeu:

- Minha senhora, se me fosse permitida a felicidade de ser toda a vida seu escravo
e admirador dos muitos encantos que arrebatam a minha alma, julgar-me-ia o
mais venturoso e abençoado dos homens! Perdoe a ousadia que me inspira a
pedir este favor e não se recuse a admitir na sua corte um príncipe que lhe é
inteiramente devotado.

- Príncipe, não me jura fidelidade, jurando-lha eu?

Histórias Maravilhosas do Oriente

Q^ sjmí minha senhora! - respondeu o príncipe, num êxtase

. iearia Que poderei fazer de melhor e com maior prazer? Sim,

nhã sultana, minha rainha, dou-lhe o meu coração sem a mínima re-
serva!

Então será meu marido e eu sua mulher - respondeu a fada. -

Mas como suponho que ainda não comeu nada hoje, mandarei servir-lhe uma leve
refeição, enquanto se prepara a festa que celebrará, esta noite, o nosso
casamento, e depois mostrar-lhe-ei os aposentos do meu palácio.

Algumas aias da fada abandonaram o salão e regressaram pouco depois com


excelentes carnes e vinhos. Depois de o príncipe comer, a fada Peribanou
mostrou-lhe todo o palácio, onde ele viu diamantes, rubis, esmeraldas e outras
belas pedras preciosas, misturadas com pérolas, ágata, jaspe, pórfiro e os mais
preciosos mármores. O príncipe afirmou que jamais imaginara existir tanta beleza.

- Príncipe, se admira tanto o meu palácio (e não há dúvida de que é muito belo),
que diria dos palácios do chefe dos nossos espíritos, que são muito mais belos,
espaçosos e magnificentes? Poderia encantá-lo também com os meus jardins,
mas deixaremos isso para outra ocasião. A noite aproxima-se e são horas de
jantar.

O salão a que o conduziu em seguida, e onde estava posta a mesa do banquete,


era o único aposento que o príncipe ainda não vira. Ao entrar, o jovem admirou o
número infinito de castiçais com velas de cera perfumadas de âmbar, que, em vez
de causarem confusão, estavam dispostas com tal simetria que produziam uma
luz suave e agradável. Ao lado havia uma grande mesa com uma baixela de oiro
tão variada e finamente lavrada que o trabalho dir-se-ia ainda mais valioso

j *•

ao que o próprio oiro. Diversos coros de bonitas mulheres, ricamente vestidas,


iniciaram um concerto, acompanhadas pelos mais harmoniosos instrumentos
imagináveis. Quando se sentaram à mesa, a fada Peribanou teve o cuidado de
servir ao príncipe Ahmed as iguarias mais içadas e ° jovem achou-as tão
maravilhosamente boas que as gabou com exagero e afirmou ultrapassar aquela
hospitalidade tudo quanto m homem poderia imaginar. Achou igual excelência nos
vinhos, que e e nem a fada provaram antes de servida a sobremesa, que constia
de guloseimas e frutas deliciosas. A festa de noivado continuou la seguinte, e os
que se seguiram foram também dias festivos.
PearlS. Buck

46

Ao fim de seis meses, o príncipe Ahmed, que continuava a amar e a reverenciar o


sultão, experimentou o grande desejo de saber como ele estava, desejo que só
podia ser satisfeito com uma visita. Falou no assunto à fada e pediu-lhe licença
para se ausentar.
- Podes ir quando quiseres, príncipe - respondeu-lhe ela.

Mas não esqueças os conselhos que te vou dar acerca da maneira como te deves
conduzir. Primeiro, não é conveniente falares a teu pai no nosso casamento, nem
na minha condição, nem neste palácio. Roga-lhe que se dê por satisfeito com
saber que és feliz e nada mais desejas e explica-lhe que o único propósito da tua
visita é tranquilizá-lo e informá-lo de que estás bem.

Nomeou vinte nobres, bem montados e equipados, para lhe servirem de séquito,
e, tão logo os preparativos ficaram concluídos, o príncipe despediu-se da fada,
abraçando-a e renovando a sua promessa de regressar brevemente. Trouxeram-
lhe então o cavalo, animal tão belo e bem ajaezado como os melhores das
cavalariças do sultão das índias. O moço príncipe montou-o com graça inexcedível
e, após um último e terno adeus à fada, pôs-se a caminho.

Como o palácio do pai não ficava longe, o príncipe Ahmed depressa lá chegou. O
povo sentiu-se feliz, ao vê-lo, recebeu-o com aclamações e seguiu-o, em multidão,
até junto do pai. O sultão recebeu-o com grande alegria, embora o censurasse,
com paternal ternura, pelas horas de angústia que a sua ausência lhe causara.

O moço príncipe contou a história das suas aventuras sem aludir à fada, conforme
lhe prometera, e concluiu:

- O único favor que peço a vossa majestade é que me permita visitá-lo


frequentemente, apresentar-lhe os meus respeitos e ver como se encontra.

- Não posso recusar-te o que me pedes, filho, mas preferiria que resolvesses ficar
comigo - redarguiu-lhe o sultão das índias. - Diz-me, ao menos, onde poderei
comunicar contigo, se não apareceres, ou quando a tua presença me parecer
necessária.

- O que vossa majestade me pede faz parte do mistério de que lhe falei -
respondeu o príncipe Ahmed. - Rogo-lhe que me autorize a continuar calado a
esse respeito, pois virei com tanta frequência que, receio-o, mais depressa me
julgará maçador do que negligente nos meus deveres.

Histórias Maravilhosas do Oriente ,

O sultão não insistiu e replicou-lhe:

j^ão tentarei desvendar os teus segredos, filho; és livre. Acredita que nada poderá
dar-me maior prazer do que as tuas visitas, para m a tua presença me devolveres
a alegria que me abandonou durante todo este tempo. Serás sempre bem-vindo.

O príncipe Ahmed demorou-se apenas três dias na corte do pai e, no quarto dia,
regressou para junto da fada Peribanou.

Um mês após o regresso do príncipe, da visita ao pai, a fada perguntou-lhe:

Príncipe, esqueceste o sultão teu pai? Não te lembras da promessa que lhe fizeste
de o visitares com frequência? Pela minha parte não esqueci o que me disseste
ao regressar e, por isso, to recordo.

O príncipe partiu na manhã seguinte, com um séquito ainda mais luzido do que o
anterior, e ele próprio melhor montado, equipado e vestido do que anteriormente.
O sultão recebeu-o com a mesma alegria e satisfação e as visitas repetiram-se
durante vários meses, de cada vez com uma equipagem mais rica do que a
anterior. Por fim, alguns vizires (os conselheiros favoritos do sultão, que avaliavam
a dignidade e o poder do príncipe pela maneira como se apresentava) fizeram
com que o pai invejasse o filho, dizendo-lhe recearem que este fosse capaz de se
insinuar nas boas graças do povo e de destronar o sultão.

O soberano estava longe de imaginar que o príncipe Ahmed pudesse engendrar


plano tão terrível e respondeu-lhes:

- Estais enganados; meu filho ama-me e estou certo da sua ternura e fidelidade.

Mas os conselheiros continuaram a difamar o príncipe, até que o sultão disse:

Não acredito que o meu filho Ahmed seja tão mau como pretendeis fazer-me crer.
No entanto, fico-vos grato pelos vossos conselhos e não duvido das vossas boas
intenções.

sultão das índias resolveu, então, mandar vigiar o príncipe Ahmed,

m °lue ° stu grão-vizir o soubesse. Para isso chamou uma mágica, que

entrou nos seus aposentos por uma porta das traseiras, e ordenou-lhe:

•, . arte imediatamente e segue o meu filho quando ele deixar o pa-

°- igia-o bem, descobre onde mora e informa-me.

magica partiu e, conhecedora do local onde o príncipe Ahmed


PearlS. Buck

encontrara a seta, para lá se dirigiu imediatamente e escondeu-se entre os


rochedos.

Na manhã seguinte, ao nascer do dia, o príncipe Ahmed partiu do palácio do pai.

A mágica, ao vê-lo aproximar-se, seguiu-o com o olhar, mas, de súbito, perdeu-o


de vista, assim como ao seu séquito. Em virtude de os rochedos serem tão
íngremes e escarpados que constituíam uma barreira intransponível, deduziu que
só podia haver duas explicações para o desaparecimento do príncipe: ou entrara
numa caverna, ou visitara a morada de um espírito ou de uma fada. Abandonou,
por isso, o seu esconderijo, encaminhou-se para uma das extremidades dos
penhascos e olhou cautelosamente à sua volta. Não obstante toda a sua atenção
e diligência, não lobrigou nenhuma abertura nem, tão-pouco, o portão de ferro que
o príncipe Ahmed descobrira, pois este só podia ser visto e aberto por aqueles
cuja presença fosse agradável à fada Peribanou. Compreendendo a inutilidade de
continuar a procurar, a mágica contentou-se com a descoberta que fizera e
regressou ao palácio, a fim de informar o sultão.

Este ficou satisfeito com a conduta da mulher e disse-lhe:

- Procede como achares conveniente. Esperarei com paciência mais informações.


- E, para a encorajar, ofereceu-lhe um diamante de grande valor.

Desde que a fada Peribanou o autorizara a visitar a corte do sultão das índias,
uma vez por mês, o príncipe Ahmed nunca deixara de o fazer. Um dia, antes de
uma dessas visitas, a mágica voltou aos rochedos e esperou toda a noite.

Na manhã seguinte o príncipe Ahmed transpôs, como de costume, o portão de


ferro, acompanhado do seu séquito, e passou pela mágica. Ao vê-la caída, com a
cabeça pousada numa rocha e a gemer como se padecesse grandes dores, teve
pena dela, virou o cavalo e foi-lhe perguntar o que tinha.

A astuciosa feiticeira olhou-o tristemente, sem levantar a cabeça, e respondeu-lhe,


com palavras entrecortadas e suspiros, a ofegar, que ia a caminho da capital, mas
que a atacara uma febre tão violenta que as forças lhe haviam faltado e tivera de
se deitar ali onde a via, longe de qualquer habitação e sem esperança de
assistência.

- Boa mulher, não estás tão longe de socorros como supões

Histórias Maravilhosas do Oriente

49

frmou-lhe o príncipe Ahmed. - De boa vontade te ajudarei e lea um lugar onde te


curarás depressa. Levanta-te e permite que Vm dos meus homens te transporte
no seu cavalo.

Ao ouvir tais palavras, a mágica, que se fingira doente apenas para saber onde
vivia o príncipe e o que este fazia, não pôde recusar a caridosa feita Um dos
cavaleiros desmontou, ergueu-a para cima do cavalo, montou atrás dela e seguiu
o príncipe, que retrocedera em direcção ao portão de ferro. Ao chegar ao pátio
exterior, Ahmed, sem desmon-tar, mandou um dos seus homens dizer à fada que
lhe desejava falar.

A fada Peribanou acorreu apressadamente, perguntando de si para si porque teria


o príncipe regressado tão depressa. Este, sem lhe dar tempo de indagar o que
acontecera, disse-lhe:

Princesa, desejo que tenhas compaixão desta boa mulher - e

apontou a mágica, que dois cavaleiros amparavam. - Encontrei-a neste estado e


prometi-lhe auxílio. Por favor, não a abandones.

A fada Peribanou, que não tirara os olhos da falsa doente enquanto o príncipe
falava, ordenou a duas aias que levassem a velha para dentro do palácio e
cuidassem dela.

Enquanto as duas mulheres cumpriam as suas ordens, aproximou-se do marido e


segredou-lhe:

- Príncipe, esta mulher não está tão doente como pretende e creio que se trata de
uma impostora e que será causa de grandes contratempos para ti. Mas não te
preocupes: libertar-te-ei de todas as armadilhas que te estenderem. Vai e continua
a tua viagem.

As palavras da fada não assustaram o príncipe Ahmed, que lhe retorquiu:

- Minha princesa, não me lembro de ter feito mal seja a quem for e não creio,
portanto, que alguém pense em fazer-mo a mim.

Entretanto, as duas aias transportaram a mágica para um aposento ricamente


mobilado e sentaram-na num sofá, com as costas apoiadas numa almofada de
brocado de oiro, enquanto lhe faziam uma cama com uma manta finamente
bordada a seda, lençóis de linho finíssimo e colcha dourada. Depois de a deitarem
- pois a velha bruxa iingia-se atacada por uma febre tão violenta que não a
deixava far nada , uma das mulheres saiu e voltou passados instantes com

a chávena de porcelana cheia de certo líquido, que ofereceu à mágica:


PearlS. Buck

Histórias Maravilhosas do Oriente

50

ir

- Bebe isto - recomendou-lhe. - É água da fonte dos leões e remédio infalível


contra todas as febres. Sentirás os seus efeitos benéficos em menos de uma hora.
A feiticeira aceitou a chávena, depois de muito rogada, e, inclinando a cabeça
para trás, bebeu o líquido. Deitou-se outra vez e as duas aias taparam-na.

- Fica quieta - recomendou-lhe a que lhe trouxera o remédio e tenta dormir um


pouco. Deixamos-te só e esperamos encontrar-te completamente curada, quando
voltarmos, daqui a uma hora.

As duas aias regressaram decorrida a hora estabelecida e encontraram a feiticeira


vestida no sofá.

- Oh, admirável poção! - exclamou. - Curou-me ainda mais depressa do que


disseram e agora poderei continuar a minha viagem.

As duas mulheres, que eram fadas como a ama, conduziram-na através de


diversos aposentos, mais nobremente mobilados do que aquele onde ela estivera,
a um grande salão que vencia todos os outros do palácio, em riqueza e
magnificência.

Peribanou encontrava-se aí sentada num trono de oiro maciço, coberto de


diamantes, rubis e pérolas de extraordinário tamanho, e acompanhada de grande
número de belas fadas, todas ricamente vestidas. Ao ver tanta majestade, a bruxa
ficou não só muito deslumbrada, mas também tão aturdida que, depois de se
prostrar diante do trono, não foi capaz de abrir a boca para agradecer à fada,
como desejava. Peribanou poupou-lhe o trabalho e disse-lhe:

- Boa mulher, ainda bem que tive ensejo de te ajudar e que te encontras em
condições de reatar a tua viagem. Não te deterei, mas creio que não te
desagradará ver o meu palácio. Acompanha as minhas aias e elas to mostrarão.

Por fim, a mágica regressou e contou ao sultão das índias o que acontecera,
acrescentando que, graças ao seu casamento com a fada, o príncipe Ahmed se
tornara riquíssimo, mais rico que todos os reis do mundo, e que havia o perigo de
pretender tirar o trono ao pai.

Embora o sultão das índias pensasse que o príncipe Ahmed era naturalmente
bom, não pôde deixar de se preocupar com as palavras da velha feiticeira. Ao
despedi-la, disse-lhe:

- Agradeço os teus serviços e as tuas boas palavras. Não as esquecerei e


deliberarei acerca delas no conselho.

Os conselheiros invejosos e despeitados, recomendaram que se matasse o


príncipe, mas a mágica discordou:

Obrigue-o a dar-lhe toda a espécie de coisas maravilhosas, com


ajuda da fada, até esta se cansar dele e o mandar embora. Por exemi todas as
vezes que vossa majestade entra em campanha incorre em grandes despesas,
não só em pavilhões e tendas para o exército, como também em mulas e camelos
para o transporte da bagagem. Pode pedir ao príncipe que se sirva da sua
influência junto da fada para lhe arranjar uma tenda que possa ser transportada na
mão de um homem e ao mesmo tempo tão grande que abrigue todo o exército e o
proteja do mau tempo.

Depois de ouvir a feiticeira, o sultão perguntou aos seus conselheiros se tinham


alguma proposta melhor e, como eles se calassem, resolveu seguir o conselho da
mulher.

No dia seguinte, procedeu de acordo com as palavras da feiticeira. O príncipe


Ahmed nunca esperara que o pai lhe pedisse coisa tão difícil, impossível na
realidade. Embora não soubesse até que ponto ia o poder das fadas e dos génios,
duvidava que fosse susceptível de arranjar uma tenda como a desejada pelo
sultão.

- Não deixarei de pedir à minha mulher o favor que vossa majestade pretende -
disse por fim -, mas não lhe prometo obtê-lo. Se não tiver a honra de o voltar a
visitar, isso significará que não fui bem sucedido. Desde já lhe rogo, porém, que
me perdoe e considere que foi vossa majestade quem me colocou nessa situação,
se acaso não vier.

- Filho, ficarei muito triste se o que te peço me roubar o prazer de te voltar a ver -
respondeu-lhe o sultão das índias. - Creio que ignoras o poder que um marido tem
sobre a esposa, e a tua daria provas de muito pouco amor por ti se, com o seu
poder de fada, recusasse satisfazer pedido tão insignificante.

O príncipe regressou muito triste e receoso de ofender a fada e,

depois de esta insistir em saber o que o atormentava, confessou-lhe:

Senhora, deves ter notado que até agora me tenho contentado

com o teu amor e nunca te pedi qualquer outro favor. Acredita, portan-

’ ^ue nã° sou eu, mas o sultão meu pai, quem abusiv amente te pede

m pavilhão tão grande que possa abrigar da violência do tempo ele pró-

°, a sua corte e o seu exército, e que um só homem consiga transpor-

a mão. Lembra-te, repito, que é meu pai quem te pede este favor.
PearlS. Buck
Histórias Maravilhosas do Oriente

- Príncipe - respondeu-lhe a fada, a sorrir -, lamento que problema tão


insignificante te perturbe e constranja dessa maneira.

Mandou então chamar a sua tesoureira, a quem disse:

- Nourgihan, traz-me o maior pavilhão do meu tesouro. Nourgihan voltou pouco


depois com o pavilhão, que não só

transportava sozinha, mas que também lhe cabia na palma da mão, com os dedos
cerrados. Entregou-o à ama e esta deu-o ao príncipe Ahmed.

Ao ver o pavilhão a que a fada chamava o maior do seu tesouro, supôs que ela
troçava de si e olhou-a com ar tão surpreendido que Peribanou desatou a rir.

- Então, príncipe? Imaginas que troço de ti? Verás que te enganas. Nourgihan -
disse à tesoureira, tirando a tenda da mão do príncipe Ahmed -, vai armá-la, para
que meu marido veja se é suficientemente grande para o sultão.

A tesoureira saiu imediatamente do palácio e levou-a para muito longe. Quando


armou a tenda, uma das extremidades desta chegava junto do próprio palácio e o
príncipe achou-a tão grande que abrigaria à vontade dois exércitos maiores que o
do sultão seu pai.

- Peço à minha princesa mil perdões pela minha incredulidade disse a Peribanou -
Depois do que vi, creio que nada é impossível para ti.

- Como vês, o pavilhão é maior do que os desejos de teu pai; além disso, possui
uma propriedade extraordinária: pode tornar-se maior ou mais pequeno, conforme
o exército a abrigar.

A tesoureira desarmou a tenda e entregou-a ao príncipe, que montou a cavalo e


se dirigiu, com o seu séquito, ao palácio do sultão.

Este, que na realidade não acreditava que existisse tal pavilhão, ficou
surpreendidíssimo com o êxito do filho. Aceitou a tenda e, depois de a examinar, o
seu espanto foi tão grande que teve dificuldade em recuperar a compostura.
Quando armaram a tenda na grande planície, verificou que chegava para recolher
um exército duas vezes maior do que qualquer general poderia manter em
campanha.

No entanto, ainda não estava satisfeito.

-Já te disse, filho, quanto te estou grato pela dádiva da tenda, que considero o
objecto mais valioso de todo o meu tesouro. Contudo, gostaria que fizesses ainda
mais uma coisa por mim. Estou informado

ue a fada tua esposa utiliza certo elixir chamado «água da fonte

dos leões» na cura de toda a espécie de febres, mesmo as mais perigo-

Como não duvido de que a minha saúde te é cara, tenho a certeza

de que lhe pedirás uma garrafa dessa água, para meu uso, quando dela

recisar. Faz-me isso e cumprirás o dever de um bom filho para com

um terno pai.

O príncipe regressou e contou à fada o pedido do pai.

$erá perigoso cumprir esse desejo, como verás pelo que te vou

dizer respondeu-lhe a esposa. - A fonte dos leões encontra-se no

meio do pátio de um grande castelo, cuja entrada está guardada por quatro
ferozes leões, dois dos quais dormem enquanto os outros dois vigiam. Mas não te
assustes, pois proporcionar-te-ei meios de passares por eles sem qualquer perigo.

A fada Peribanou estava naquele momento muito atarefada com vários novelos de
fio, num dos quais pegou e estendeu ao príncipe, dizendo-lhe:

- Primeiro, pega neste novelo, cuja utilidade te explicarei depois; segundo,


precisarás de dois cavalos, um para montares e outro para conduzires, o qual
transportará um carneiro que deve ser morto hoje e cortado em quatro quartos;
terceiro dar-te-ei uma garrafa em que trarás a água. Parte amanhã de manhã cedo
e assim que transpuseres o portão de ferro atira o novelo para a tua frente. O fio
rolará até chegar às portas do castelo, tu segui-lo-ás e, quando parar, as portas
abrir-se-ão e verás os quatro leões. Os dois que estão acordados despertarão,
com os seus rugidos, os outros dois; mas não te assustes! Limita-te a atirar a cada
um deles um quarto do carneiro. Depois esporeia a montada, galopa para a fonte,
enche a garrafa sem te apeares e regressa da mesma maneira. Os leões estarão
tão entretidos a comer que te deixarão passar.

O príncipe Ahmed partiu na manhã seguinte, à hora estipulada pela fada, e seguiu
à risca as suas instruções. Ao chegar às portas do castelo, distribuiu os quartos de
carne pelos quatro leões e, passando corajosamente pelo meio deles, chegou à
fonte, encheu a garrafa e regressou são e salvo. Já um pouco afastado das portas
do castelo olhou P ra trás e verificou que duas das feras o seguiam. Empunhou o
sabre P eparou-se para se defender, mas ao avançar viu um dos felinos sair
strada e demonstrar-lhe, com acenos da cauda e da cabeça, que
PearlS. Buck

54

não pretendia fazer-lhe mal, mas apenas seguir à sua frente, enquanto o outro
ficava atrás, para lhe proteger a retaguarda. Embainhou o sabre e, assim
protegido, chegou à capital das índias, mas os leões só o abandonaram às portas
do palácio do sultão. Regressaram então pelo mesmo caminho, assustando
quantos os viam, embora procedessem sossegadamente e não mostrassem a
mínima ferocidade.

Acorreram diversos oficiais, que ajudaram o príncipe a desmontar e o conduziram


aos aposentos do sultão, o qual se encontrava, naquele momento, rodeado pelos
seus conselheiros. O príncipe aproximou-se do trono, depositou a garrafa aos pés
do sultão e beijou a rica tapeçaria que cobria o supedâneo.

- Trouxe-lhe, senhor, a salutar água que vossa majestade pediu disse. - Desejo-
lhe, ao mesmo tempo, uma saúde tão extraordinária que nunca precise de se
servir dela.

Depois de ouvir os cumprimentos do príncipe, o sultão sentou-o à sua direita e


disse-lhe:

- Fico-te muito grato por este valioso presente e também pelo grande perigo a que
te expuseste por minha causa. Fui informado a esse respeito por uma mágica que
conhece a fonte dos leões, mas gostaria me informasses graças a que poderes
foste capaz de conseguir a água curativa.

- Não mereço os elogios que vossa majestade tem a bondade de me dirigir, pois
todo o mérito se deve à fada minha mulher, cujos bons conselhos segui.

Explicou, então, ao pai em que haviam consistido esses conselhos e como tudo
decorrera sem complicações. Mal o príncipe terminou a narrativa, o sultão, que
exteriormente demonstrava grande alegria, sentiu-se intimamente mais ciumento e
retirou-se para outro aposento, ao qual mandou chamar a feiticeira.

- Filho - disse no dia seguinte ao príncipe Ahmed -, tenho ainda um pedido a fazer-
te e, depois, nada mais esperarei da tua obediência. Desejo que me tragas um
homem que não tem mais de trinta centímetros de altura, mas cuja barba mede
nove metros de comprimento, e que transporta aos ombros uma barra de ferro que
pesa duzentos e cinquenta quilos e lhe serve de arma.

O príncipe Ahmed não acreditou que houvesse no mundo homem como aquele
que o pai descrevia, mas o sultão insistiu no seu pedido

Histórias Maravilhosas do Oriente


55

ntiu-lhe que a fada podia fazer coisas muito mais incríveis. No H seguinte Ahmed
voltou para junto da sua querida Peribanou e inf rmou-a do novo pedido do pai,
que lhe parecia ainda mais impossível de satisfazer que os dois anteriores.

Não posso imaginar que exista tal homem no mundo - afirmou por fim. - Tenho a
impressão de que meu pai pretende apenas experimentar-me, para ver se sou tão
idiota que tente encontrar semelhante criatura. Ou talvez deseje a minha
desgraça. Como me pode supor capaz de vencer homem tão bem armado,
embora pequeno? Que armas empregarei para o vergar à minha vontade? Se há
maneira de o conseguir, rogo-te mo digas, para sair com honra desta prova.

Nada temas, meu príncipe - tranquilizou-o a fada. - Arriscaste-te quando foste


buscar a água à fonte dos leões a pedido do teu pai, mas não correrás nenhum
perigo para encontrar esse homem, que é o meu irmão Schaibar. É diferente de
mim, embora sejamos filhos do mesmo pai, e possui temperamento tão irascível
que nada o pode impedir de demonstrar o seu ressentimento pela mais pequena
ofensa. Por outro lado, porém, é tão bom que está sempre pronto a fazer tudo
quanto lhe pedem. É exactamente como o teu pai o descreveu e mandá-lo-ei
chamar. Mas acautela-te! Prepara-te para não te mostrares assustado com o seu
estranho aspecto, quando o vires.

- O quê, minha rainha? - redarguiu o príncipe, estupefacto. Dizes que Schaibar é


teu irmão? Pois seja feio ou deformado, jamais o seu aspecto me assustará.
Respeitá-lo-ei e estimá-lo-ei, como teu irmão.

A fada ordenou que colocassem no alpendre do palácio um rescaldeiro de oiro,


aceso, assim como uma caixa do mesmo metal, da qual tirou um perfume que
lançou ao fogo, provocando espessa nuvem de fumo.

Poucos momentos depois, disse ao príncipe Ahmed:

- Olha, aí vem o meu irmão.

Ahmed viu Schaibar aproximar-se, gravemente, com a pesada bara ’erro a°


ombro, a longa barba, que segurava à sua frente, e um espesso bigode cujas
guias metia atrás das orelhas e lhe cobria quase todo rosto. Possuía olhos muito
pequenos e afundados nas órbitas, usava oné de granadeiro e tinha uma grande
corcunda. Se o príncipe Ah^ não soubesse que Schaibar era irmão de
Peribanou, seria incapaz o har sem medo; assim, manteve-se ao lado da esposa,
sem o mínimo receio.
PearlS. Buck

Histórias Maravilhosas do Oriente

56
Ao aproximar-se, Schaibar fitou o príncipe de maneira que chegaria para lhe gelar
o sangue nas veias e perguntou a Peribanou quem era

- É o meu marido, irmão - respondeu-lhe a fada. - Chama-se Ahmed e é filho do


sultão das índias. Não te convidei para o meu casamento porque não quis distrair-
te da expedição em que andavas nessa altura empenhado e da qual soube com
prazer que regressaste vitorioso. Tomei a liberdade de te mandar chamar agora.

Ao ouvir tais palavras, Schaibar fitou o príncipe com melhores olhos e disse:

- Poderei servi-lo de alguma maneira, irmã? Basta que seja teu marido para que
me comprometa a fazer tudo quanto ele desejar.

- O sultão seu pai mostrou empenho em te ver - respondeu-lhe Peribanou -, e


desejo que meu marido te conduza à sua corte.

- Basta que me indique o caminho e segui-lo-ei.

- Irmão, é demasiado tarde para partirem hoje - lembrou-lhe a fada. - Fica,


portanto, até amanhã de manhã e aproveitarei o ensejo para te informar de tudo
quanto se passou entre o sultão das índias e o príncipe Ahmed, desde que nos
casámos.

Na manhã seguinte, Schaibar e o príncipe Ahmed partiram para a corte do sultão.


Quando chegaram às portas da cidade e o povo viu Schaibar, desatou a fugir e a
esconder-se. Uns fechavam as lojas e trancavam-se em casa, outros fugiam
apenas e comunicavam a quem encontravam o seu pavor. Estes não olhavam
para trás; fugiam também. Schaibar e Ahmed encontraram as ruas desertas e,
quando chegaram ao palácio, os porteiros fugiram, em vez de guardarem as
portas.

Os dois homens avançaram, assim, sem encontrarem obstáculos, até à sala do


conselho, onde o sultão dava audiência sentado no trono. Aí, os introdutores
fugiram também, como os outros, abandonando os seus postos e deixando a
entrada livre.

Schaibar dirigiu-se ousada e arrogantemente ao trono, sem esperar que o príncipe


Ahmed o apresentasse, e disse ao sultão das índias:

- Mandaste-me chamar. Aqui estou. Que queres de mim?

O sultão tapou os olhos com as mãos, sem dizer palavra, para evitar a terrível
visão, e Schaibar, melindrado com a grosseira recepção, depois de se ter dado ao
incómodo de vir de muito longe, levantou a barra e matou o sultão, sem que o
príncipe tivesse tempo de interferir
l

57

a seu

que e

favor Conseguiu apenas evitar que matasse também o grão-vizir,


2 stava sentado perto e que afirmou ao j ovem ter dado sempre bons conselhos ao
sultão seu pai.

Foram estes, nesse caso, que lhos deram maus! - exclamou

S haibar, e matou todos os outros vizires e bajuladores do sultão, que eram,


simultaneamente, inimigos de Ahmed.

Todas as vezes que erguia a barra matava alguém e só escaparam aqueles que
conseguiram fugir.

Terminada a terrível execução, Schaibar saiu da sala do conselho e dirigiu-se para


o meio do pátio, com a barra de ferro ao ombro. Olhou fixamente o grão-vizir, que
devia a vida ao príncipe Ahmed, e disse-lhe:

Sei que há aqui uma feiticeira mais inimiga do meu cunhado do

que todos os outros. Ordeno que ma tragam.

O grão-vizir mandou-a chamar imediatamente e, assim que a viu, Schaibar


brandiu mais uma vez a barra e declarou:

- Aqui tens a recompensa dos teus maus conselhos! Depois de a matar,


acrescentou:

- Mas isto ainda não chega. Tratarei toda a cidade da mesma maneira se não
reconhecerem imediatamente o príncipe Ahmed, meu cunhado, como seu sultão e
sultão das índias.

Todos os presentes gritaram repetidamente: «Longa vida tenha o sultão Ahmed!»


e, depois, o jovem foi aclamado soberano por toda a cidade. Schaibar ordenou
que lhe vestissem o traje real e o instalassem no trono, obrigou todos a jurarem-
lhe vassalagem e fidelidade e foi buscar sua irmã Peribanou, que trouxe com toda
a pompa e grandiosidade imagináveis, a quem nomeou sultana das índias.

Quanto ao príncipe Ali e à princesa Nouronnibar, como não haviam colaborado na


conspiração contra o príncipe Ahmed nem sabiam nada a tal respeito, o novo
sultão deu-lhes o governo de uma grande província, onde passaram o resto dos
seus dias.

tm seguida Ahmed mandou um oficial informar o príncipe oussain dos


acontecimentos verificados e oferecer-lhe a província

que mais gostasse. Mas o príncipe sentia-se tão feliz na sua soliao que agradeceu
a lembrança e respondeu desejar apenas continuar a viver em paz no retiro que
escolhera.

sultão Ahmed e a sua sultana Peribanou tiveram vida longa e di-

a e governaram o seu povo com sabedoria e justiça.


ílWJjtoWffi:

Histórias Maravilhosas do Oriente

59

O rei Kojata

Eis uma história grande, vasta como as planícies e montanhas da Rússia e tão

variada como as suas paisagens. Os cavalos faziam parte do ambiente russo, e


nesta

história galopam e percorrem grandes distâncias. Um rei bom, um feiticeiro mau,

um jovem príncipe e uma bonita rapariga - eis os necessários

elementos de terror e beleza, mal e bem.

O enredo é simples, incisivo e claro e apresenta um retrato fiel do temperamento


russo. Claro que tudo acaba bem, pois trata-se de um conto de fadas.

Houve em tempos que já lá vão um rei cuja barba era tão comprida que lhe
passava dos joelhos. Três anos tinham decorrido desde o seu casamento e vivia
muito feliz com a esposa, mas o céu não lhe dava um herdeiro, o que deveras o
magoava. Um dia partiu da sua capital com a intenção de viajar pelo reino.
Demorou-se quase um ano, visitando diversos pontos do seu território, e por fim,
visto tudo quanto havia a ver, encaminhou-se para casa. Como o dia estava
quente e abafado, ordenou aos servidores que armassem tendas na planície e
aguardou aí o fresco da noite. De súbito sentiu uma sede terrível e, como não
visse água nas proximidades, montou a cavalo e percorreu os campos, à procura
de uma nascente. Pouco depois encontrou um poço cheio a transbordar de água
límpida como cristal, em cuja superfície flutuava umjarro de oiro. O rei Kojata
tentou logo apanhá-lo, primeiro com a mão direita e depois com a esquerda, mas
a malfadada vasilha iludia os seus esforços e não se deixava apanhar. Primeiro
com uma das mãos e depois com ambas, tentou o rei agarrá-lo, mas o jarro
escorregava-lhe por entre os dedos como um peixe, desaparecia e voltava a
aparecer noutro ponto qualquer, como se troçasse dele.

Que 0 diabo te leve! - explodiu o rei Kojata. - Posso matar a

sede sem ti!

E debruçando-se sobre o poço, mergulhou o rosto, com a barba e

do’ dentro de água e bebeu sofregamente. Mas quando, acalmada a sede’ quis
levantar a cabeça, não o conseguiu, pois alguém lhe puxava com força a barba,
dentro de água.

Quem está aí? Largue-me!

Mas ninguém lhe respondeu; apenas um rosto hediondo o fitou do fundo do poço,
com dois grandes olhos verdes a brilharem como esmeraldas e uma grande boca
rasgada de orelha a orelha e a mostrar duas fileiras de reluzentes dentes brancos.
E não eram mãos mortais que seguravam a barba do rei Kojata, eram duas
garras.

Por fim, uma voz áspera, soou vinda das profundezas do poço:

- Os teus esforços são todos vãos, rei Kojata; só te largarei com a condição de me
dares uma coisa acerca da qual nada sabes e que encontrarás ao chegar a casa.

O rei não perdeu tempo a reflectir («Que poderá encontrar-se no meu próprio
palácio que eu desconheça?», pensou. «É absurdo!») e respondeu sem demora:

- Está bem, prometo que ta darei!

- Mas fica sabendo que será mau para ti se faltares ao prometido


- advertiu-o a voz áspera, e as garras abriram-se e o rosto desapareceu no fundo
do poço.

O rei retirou o rosto da água e, sacudindo-se como um cão, montou a cavalo e


regressou, pensativo, a casa, seguido do seu séquito. Quando se aproximaram da
capital o povo veio esperá-los com grandes mostras de alegria e muitas
aclamações, enquanto a rainha esperava o rei à porta do palácio. A seu lado
encontrava-se o primeiro-ministro, que segurava nas mãos um bercinho com um
bebé lindo como o dia. O monarca compreendeu, então, tudo, gemeu de
desespero e disse para consigo: «Era isto, pois, que eu ignorava!». As lágrimas
rolaram-lhe pelas faces e os cortesãos reunidos à sua volta ficaram muito
surpreendidos com a dor do rei, mas nenhum ousou perguntar-lhe o motivo dela.
Pegou no menino, beijou-o ternamente, depositou-o de ovo no berço e, resolvido a
dominar as suas emoções, entregou-se aos seus deveres reais.

soberano guardou o seu segredo, mas a sua expressão grave,


Pear! S. Buck

preocupada, não passou despercebida a ninguém. No temor constante de que o


filho lhe fosse tirado, o rei Kojata não descansava de noite nem de dia. O tempo
passou, contudo, e nada aconteceu. O príncipe cresceu, tornou-se um belo rapaz,
e por fim até o rei esqueceu a promessa feita havia tanto tempo.

Um dia, o príncipe foi caçar e, ao perseguir um javali, perdeu-se dos outros


caçadores e encontrou-se sozinho numa escura floresta. As árvores eram tão
densas e pouco espaçadas que era quase impossível ver através delas, mas
mesmo defronte do príncipe estendia-se um estreito carreiro de terra de prado,
cheio de cardos e de ervas daninhas, no centro do qual se erguia um limoeiro. De
súbito, soou uma espécie de roçagar no interior do tronco da árvore e dele saiu
um velho extraordinário, de olhos e queixo verdes.

- Está um belo dia, príncipe Milan - disse a aparição. - Fizeste-me esperar muitos
anos; era tempo de me visitares.

- Quem és tu? - perguntou-lhe o príncipe, cheio de espanto.

- Não tardarás a sabê-lo, mas entretanto faz o que te vou dizer. Saúda o teu pai, o
rei Kojata, em meu nome, e recorda-lhe a sua dívida. Passou há muito o prazo de
pagamento e ele terá de honrá-la agora. Adeus de momento; voltaremos a
encontrar-nos.

O velho desapareceu outra vez na árvore e o príncipe, assustado, regressou a


casa e contou ao pai tudo quanto vira e ouvira. O rei empalideceu, ao ouvir a
história do filho, e disse-lhe:

- Maldito seja eu, meu filho! Chegou a altura de nos separarmos.


- E, com o coração pesado de angústia, contou ao príncipe o que acontecera
quando do seu nascimento.

- Não te atormentes, querido pai - aconselhou-lhe o príncipe Milan - ; as coisas


nunca são tão feias como parecem. Dá-me apenas um cavalo para a viagem e
aposto que em breve me voltarás a ver.

O rei deu-lhe uma espada e um belo corcel, com estribos de oiro, e a rainha
colocou-lhe uma cruzinha ao pescoço. Depois de muitas lágrimas e lamentos, o
príncipe despediu-se dos pais e partiu.
Cavalgou três dias e ao terceiro chegou a um lago tão liso como vidro e tão claro
como cristal. Não soprava uma aragem, não bulia uma folha e reinava um silêncio
de túmulo, mas no seio do lago parado nadavam trinta patos de brilhante
plumagem. Perto da margem, o príncipe viu trinta fatinhos brancos espalhados na
erva e, desmontando,

Histórias Maravilhosos do Oriente

imou-se a coberto dos juncos altos que cresciam em redor do ?^o pegou num dos
vestidos e ocultou-se atrás dos caniços. Os patos H lizaram pelo lago todo,
mergulharam e voltaram à superfície. Por fim cansados de tanta brincadeira,
nadaram para a margem e vinte e ove enfiaram os fatinhos brancos e
transformaram-se imediatamente noutras tantas belas donzelas, que
desapareceram mal acabaram de se vestir Só o trigésimo patinho não podia sair
da água. Nadou perto de terra e soltando um gritinho dilacerante, estendeu
timidamente o pescoço, olhou desesperado à sua volta e mergulhou outra vez. O
príncipe Milan sentiu o coração tão cheio de piedade pelo pobrezinho que saiu do
seu esconderijo nos juncos, para ver se o podia ajudar.

Mal o viu, o patinho gritou, em voz humana:

Querido príncipe Milan, dá-me o meu vestido, por amor do céu,

e ficar-te-ei reconhecidíssima!

O príncipe colocou o vestido na margem, junto dela, e voltou para os caniços.


Poucos segundos depois encontrava-se na sua frente uma bonita rapariga de
vestido branco, tão loura e doce e jovem que não havia palavras que a
descrevessem.

Estendeu a mão ao príncipe e agradeceu-lhe:

- Muito obrigada, príncipe Milan, pela tua delicadeza. Sou filha de um mau
feiticeiro e chamo-me Jacinta. Meu pai tem trinta filhos e é um senhor poderoso do
mundo subterrâneo, possuidor de muitos castelos e grandes riquezas. Espera-te
há muito tempo, mas nada terás a recear se seguires os meus conselhos. Assim
que te encontrares na presença do meu pai, ajoelha-te imediatamente no chão e
aproxima-te dele de joelhos. Não te importes se ele barafustar e praguejar; eu
tratarei do resto. Entretanto... acho melhor partirmos.

Ditas estas palavras, a bela Jacinta bateu com o pezinho no chão, a terra abriu-se
e mergulharam ambos no mundo subterrâneo.

O palácio do feiticeiro era feito de um único rubi e iluminava toda a região


circundante. O príncipe entrou alegremente. O feiticeiro estava sentado num trono,
com uma coroa ofuscante na cabeça, os seus
0 nos coruscavam como um fogo verde e em vez de mãos tinha garras. a entrou,
o príncipe ajoelhou-se. O mágico bateu o pé, furiosamen’ ° seu °lhar despediu
chispas verdes e praguejou tanto que todo o mundo subterrâneo estremeceu. Mas
o príncipe, fiel aos conselhos da ela, não se assustou e aproximou-se do trono
sempre de joelhos.
Pear! S. Buck

Histórias Maravilhosas do Oriente

62

Por fim o mágico riu-se e exclamou:

- Tratante, foste bem aconselhado para me fazeres rir! Nunca mais serei teu
inimigo. Bem-vindo sejas ao mundo subterrâneo! Mesmo assim, para castigo da
tua demora em comparecer, temos de te exigir três serviços. Por hoje podes ir,
mas amanhã terei alguma coisa mais para te dizer.

Dois criados conduziram então o príncipe Milan a um belo quarto onde se deitou
para descansar na cama macia preparada para ele, e não tardou a adormecer.

De manhã muito cedo, o feiticeiro mandou-o chamar e disse-lhe:

- Vejamos agora o que aprendeste. Antes de mais nada, esta noite tens de me
construir um palácio cujo telhado seja do mais puro oiro, as paredes de mármore e
as janelas de cristal. Em redor dele quero um belo jardim, com tanques de peixes
e cascatas artísticas. Se o conseguires, recompensar-te-ei prodigamente, mas se
não o conseguires cortar-te-ei a cabeça.

«Oh, monstro perverso!», pensou o príncipe Milan. «Podias matar-me


imediatamente, que seria o mesmo.»

Regressou, muito triste, ao seu quarto e meditou, de cabeça baixa, no seu cruel
destino, até que a noite chegou. Quando escureceu, uma abelha bateu à janela e
disse-lhe:

- Abre e deixa-me entrar.

Milan apressou-se a abrir a porta e, mal entrou, a abelhinha transformou-se na


bela Jacinta.

- Boas-noites, príncipe Milan. Porque estás tão triste?

- Como não hei-de estar triste? Teu pai ameaçou-me de morte e já me vejo sem
cabeça!
- E que resolveste fazer?

- Não há nada a fazer e, no fim de contas, creio que só se morre

uma vez.

- Não sejas pateta, meu querido príncipe; é inútil desesperares. Deita-te e quando
acordares, amanhã de manhã, o palácio estará construído. Depois poderás
aproximar-te e dar uma pancadinha aqui e outra ali, como se tivesses acabado de
o construir.

Aconteceu tudo como ela prometera. Assim que o dia nasceu, o príncipe Milan
saiu do quarto e deparou com o palácio, uma autêntica obra de arte nos mais
ínfimos pormenores.

63

O próprio feiticeiro ficou surpreendido com a sua beleza.

Não há dúvida de que és um esplêndido artífice - afirmou. -

- sei que és muito talentoso com as tuas mãos, mas agora quero ver se
- também com a cabeça. Tenho em minha casa trinta filhas, todas bonitas
princesas. Amanhã colocá-las-ei numa fila, passarás por elas três vezes, e, à
terceira vez, dir-me-ás qual é a mais nova, a princesa Jacinta. Se não acertares,
perderás a cabeça.

«Desta vez cometeste um erro», pensou o príncipe, dirigindo-se para o quarto e


sentando-se à janela. «Imaginem se me seria possível não reconhecer a bela
Jacinta! Não há nada mais fácil no mundo inteiro!»

Não é tão fácil como imaginas - afirmou a abelhinha, que passava naquele
momento. - Se não viesse ajudar-te, jamais acertarias. Somos trinta irmãs, tão
parecidas que até o nosso pai mal nos pode distinguir.

- Que hei-de fazer, então? - perguntou-lhe o príncipe Milan.

- Escuta: reconhecer-me-ás por uma mosquinha que terei na face esquerda, mas
acautela-te, pois poderás enganar-te facilmente.

No dia seguinte o feiticeiro ordenou outra vez que levassem o príncipe Milan à sua
presença. As filhas estavam todas alinhadas à sua frente, vestidas de igual e com
os olhos no chão.

- Agora, génio, olha três vezes estas beldades e diz-me qual delas é a princesa
Jacinta!

O príncipe Milan percorreu a fila, olhando-as atentamente, mas eram todas tão
semelhantes que dir-se-iam um só rosto reflectido em trinta espelhos. A mosca
notava-se pela ausência. Percorreu segunda vez a fila, mas continuou sem ver
nada. À terceira vez, porém, viu uma mosquinha a descer pela face esquerda de
uma das princesas, agarrou a mão da jovem e exclamou:

- E esta a princesa Jacinta!

Acertaste novamente - declarou o feiticeiro, surpreendido. Mas tenho ainda outra


tarefa para ti. Antes que esta vela se gaste até ao castiçal, tens de me fazer um
par de botas que me dêem pelos joelhos. nâo as fizeres nesse prazo, ficas sem a
cabeça.

príncipe foi para o quarto, desesperado, e a princesa Jacinta mais uma vez o
visitou transformada em abelha e lhe perguntou:

- Porque estás tão triste, príncipe Milan?


PearlS. Buck

64

- Como queres que não esteja triste? Desta vez o teu pai encarregou-me de uma
tarefa impossível: quer que lhe faça um par de botas antes de uma vela arder até
ao castiçal. Que sabe um príncipe da arte de sapateiro? No entanto, se não lhas
fizer, perderei a cabeça...

- E que tencionas fazer? - perguntou-lhe Jacinta.

- Que hei-de fazer? Como não posso cumprir a sua ordem, matar-me-á.

- Não te atormentes, querido! Amo-te e casarás comigo, e se não te salvar a vida


morrerei contigo. Temos de fugir tão depressa quanto pudermos, pois não há
outro remédio.

Após estas palavras respirou para a janela e o seu hálito congelou nos vidros.
Depois conduziu Milan para fora do quarto, fechou a porta e atirou a chave fora.
De mãos dadas, correram para o local por onde tinham descido ao mundo
subterrâneo e não tardaram a alcançar as margens do lago, onde o corcel do
príncipe Milan ainda pastava a erva que crescia perto da água. O cavalo relinchou
de alegria, ao reconhecer o dono, correu para ele e imobilizou-se, enquanto o
príncipe e Jacinta lhe saltavam para cima. Depois partiu como uma seta disparada
de um arco.

Entretanto, o feiticeiro esperava impacientemente pelo príncipe, pois a hora


marcada passara. Enfurecido com a demora, mandou os criados buscá-lo.
Os criados chegaram à porta e, encontrando-a fechada, bateram. O hálito
congelado no vidro da janela respondeu-lhes na voz do príncipe Milan:

- Vou já.

Foram informar o feiticeiro da resposta e, como o príncipe continuasse sem


aparecer, aquele mandou os criados chamá-lo segunda vez. O hálito congelado
continuou a dar a mesma resposta, mas o príncipe continuou a não aparecer. Por
fim o feiticeiro perdeu a paciência por completo e mandou arrombar a porta.
Quando o fizeram, os criados encontraram o quarto deserto e o hálito riu-se deles.
Enlouquecido de raiva, o mágico ordenou que perseguissem o príncipe Milan.

Começou, então, uma perseguição furiosa.

- Ouço tropel de cavalos atrás de nós - disse Jacinta ao príncipe. Milan saltou da
sela, encostou o ouvido ao solo e escutou.

- Sim, perseguem-nos e estão perto.

- Não podemos perder tempo, então - declarou a princesa Ja-

Histórias Maravilhosas do Oriente

65

. e imediatamente se transformou em rio e ao príncipe em ponte de ferro; antes da


ponte a estrada dividia-se em três.

Os criados do feiticeiro correram atrás da pista fresca, mas ao cherem à ponte


hesitaram; não havia mais rastos e não sabiam qual das três estradas seguir.
Temerosos e trémulos, regressaram e informaram o mágico do que acontecera.

O feiticeiro ferveu de cólera, assim que os viu, e vociferou:

Idiotas! O rio e a ponte eram eles! Voltem e tragam-mos imediatamente, se não


querem arrepender-se!

A perseguição recomeçou.

Ouço tropel de cavalos - suspirou Jacinta.

O príncipe desmontou, encostou o ouvido ao chão e comentou:

-Já estão muito perto.

Num momento, a princesa Jacinta transformou-se, a si, ao príncipe e ao corcel,


numa densa floresta onde se cruzavam mil caminhos e estradas. Os seus
perseguidores entraram na floresta, mas procuraram em vão o príncipe Milan e a
noiva. Por fim encontraram-se no ponto de partida e, desesperados, regressaram
mais uma vez de mãos vazias.

- Irei eu próprio atrás dos patifes! - berrou o feiticeiro, ao ouvi-los.


- Tragam imediatamente um cavalo! Não me escaparão!

Mais uma vez a bela Jacinta murmurou: ’

- Ouço tropel de cavalos muito perto. : E o príncipe respondeu:

- Perseguem-nos com afã e estão muito próximo.

- Estamos perdidos, pois agora é o meu próprio pai quem nos persegue! - afirmou
a princesa. - Mas quando chegarmos à primeira igreja o seu poder cessará e não
poderá seguir-nos mais. Dá-me a tua cruz.

O príncipe tirou do pescoço a cruzinha de oiro que a mãe lhe dera e mal Jacinta
lhe tocou transformou-se numa igreja, a Milan num monge e ao cavalo num
campanário. Quase no mesmo instante, apareceram o feiticeiro e os seus criados.

Não viu ninguém passar a cavalo, reverendo padre? - perguntou ao monge.

Acabam de passar o príncipe Milan e a princesa Jacinta. Pararam ns momentos


na igreja, a rezar, e pediram-me que acendesse esta vela em lntencão do senhor
e lhe desse saudades suas.

tf-
Pear! S. Buck

66

- Gostaria de lhes torcer o pescoço! - gritou o feiticeiro, e regressou


apressadamente ao seu palácio, onde mandou espancar todos os criados quase
até à morte.

O príncipe Milan continuou a viagem com a sua noiva, agora devagar e sem temer
nova perseguição. O Sol punha-se e os seus últimos raios iluminavam uma grande
cidade, ao longe. De súbito, o príncipe sentiu um grande desejo de nela entrar.

- Oh, meu amor - implorou-lhe Jacinta -, rogo-te que não vás! Receio alguma
desgraça.

- Que temes? - perguntou-lhe o príncipe. - Veremos apenas a cidade durante uma


hora e depois continuaremos a nossa viagem para o reino do meu pai.
- Entrar na cidade é fácil, mas sair, difícil - suspirou Jacinta. Seja, porém, como
desejas. Vai, que eu esperarei aqui, mas primeiro transformar-me-ei num marco
branco. Suplico-te que tenhas muito cuidado. O rei e a rainha da cidade virão ao
teu encontro, trazendo consigo uma criança. Aconteça o que acontecer, não beijes
essa criança, pois se o fizeres esquecer-me-ás e a tudo quanto nos aconteceu.
Esperar-te-ei aqui durante três dias.

O príncipe dirigiu-se rapidamente para a cidade e Jacinta ficou na estrada,


disfarçada de marco branco. Passou o primeiro dia, passou o segundo e passou
finalmente o terceiro, mas o príncipe não seguira o conselho de Jacinta e não
voltou. O rei e a rainha tinham ido ao seu encontro, como a princesa dissera,
acompanhados de uma menina encantadora e loura, cujos olhos brilhavam como
duas estrelas. A menina acariciara o jovem que, seduzido pela sua beleza, se
baixara e a beijara na cara. A partir desse momento perdera por completo a
memória e esquecera a bela Jacinta.

Ao ver que o príncipe não voltava, a pobre donzela chorou amargamente e,


transformando-se numa florinha silvestre azul, disse: «Crescerei aqui, na valeta,
até algum transeunte me pisar». E uma lágrima ficou, como uma fulgurante gota
de orvalho, na mimosa florinha azul.

Quis o acaso que, pouco depois, passasse por ali um velho e a visse. Encantado
com a sua beleza, desenraizou-a cuidadosamente e levou-a para casa, colocou-a
num vaso e regou-a com enlevo.

Aconteceu, então, uma coisa extraordinária, pois a partir desse rno-

Histórias Maravilhosas do Oriente

67

to tudo mudou na casa do velho. Quando acordava de manhã, entrava sempre o


quarto arrumado e tão limpo que não se via um rãozinho de poeira que fosse; e
quando, ao meio-dia, regressava a asa encontrava a mesa posta com as mais
deliciosas iguarias e bastava-lhe sentar-se e saboreá-las. Ao princípio sentiu-se
apenas surpreendido e encantado, mas passado algum tempo começou a
preocupar-se e foi aconselhar-se com uma velha feiticeira. Eis o que a bruxa lhe
disse:

Levanta-te antes de o galo cantar e observa atentamente até veres qualquer coisa
mexer-se. Nessa altura, cobre o que for com este pano e verás o que acontece.

O homem não pregou olho toda a noite. Quando os primeiros raios de luz
entraram no quarto, notou que a florinha azul começava a tremer, saltava do vaso
e voava pelo aposento, arrumando tudo, limpando o pó e acendendo o lume. O
velho saltou apressadamente da cama e cobriu a flor com o pano que a velha
bruxa lhe dera, do que resultou surgir na sua frente a bela princesa Jacinta.
- Que fizeste? - perguntou-lhe a donzela, a chorar. - Porque me devolveste à vida
se o meu noivo, o garboso príncipe Milan, me abandonou?

- O príncipe Milan vai casar - respondeu-lhe o velho. - Começaram já os


preparativos para a boda e os convidados acorrem ao palácio vindos de todos os
lados.

A bela Jacinta chorou amargamente ao ouvir a novidade. Depois enxugou as


lágrimas e foi à cidade, vestida de camponesa. Dirigiu-se à cozinha do rei, onde os
cozinheiros, de avental branco, se azafamavam, numa grande confusão,
aproximou-se do cozinheiro-mor e pediu-lhe:

Querido cozinheiro, por favor escuta o meu pedido e deixa-me fazer um bolo de
casamento para o príncipe Milan.

O cozinheiro ia a recusar e a ordenar-lhe que saísse da cozinha, mas as palavras


morreram-lhe nos lábios, quando ao voltar-se viu a linda raPariga, e respondeu-lhe
delicadamente:

Vieste mesmo a tempo, bela donzela. Faz o teu bolo e eu próprio


0 levarei ao príncipe Milan.

bolo não tardou a estar pronto. Os convidados ocupavam já os ugares à mesa


quando o cozinheiro-mor entrou na sala, trazendo
PearlS. Buck

68

numa salva de prata um maravilhoso bolo de casamento, que colocou à frente do


príncipe. Os convidados não esconderam a sua admiração pois o bolo era, na
realidade, uma obra de arte, e o príncipe apressou-se a cortá-lo. Para sua
surpresa, saiu de dentro dele um casal de pombos brancos, um dos quais disse:

- Meu querido companheiro, não me abandones nem me esqueças como o


príncipe Milan esqueceu a sua adorada Jacinta!

Milan soltou um suspiro profundo, ao ouvir as palavras da pomba, levantou-se


bruscamente da mesa e correu para a porta, onde encontrou a esperá-lo a bela
Jacinta. Fora encontrava-se o seu fiel cavalo, que escarvava o solo. Sem hesitar,
o príncipe e Jacinta montaram e galoparam o mais depressa que puderam para o
reino do rei Kojata. Os soberanos receberam-nos com alegria nunca vista e
viveram todos felizes até ao fim da sua vida.

A lenda de Tchi-Niu

Este conto de encantar da velha China fala de um filho tão fiel à memória do seu
defunto pai que se vendeu como escravo, a fim de lhe construir um belo túmulo. O
céu recompensou esse testemunho de amor filial à sua maneira: uma deusa
desceu à

terra, transformou-se em mulher mortal e tornou-se esposa de Tong-Yong. Ao


fazê-lo concedeu-lhe os dois maiores bens da vida: a liberdade e um filho tão belo

como ela própria.

69

Tong-Yong perdeu a mãe quando ainda era criança e aos dezanove anos o pai
morreu-lhe também, deixando-o só no mundo e sem recursos de espécie
nenhuma. Pobre como era, o pai de Tong passara grandes privações para educar
o jovem e não conseguira juntar uma só moeda dos seus ganhos. Tong lamentou
profundamente encontrar-se em tal pobreza que não podia honrar a memória do
seu bom pai com os habituais ritos fúnebres e um túmulo esculpido num lugar
propício. Como só os pobres são amigos dos pobres, entre todos os conhecidos
de Tong não havia ninguém com posses para o ajudar a custear as despesas do
funeral. Só existia uma maneira de obter dinheiro: vender-se como escravo a
algum proprietário rico. Foi o que, finalmente, o jovem decidiu fazer.

Em vão os amigos tentaram dissuadi-lo, chegando até, na esperan-

Ça de adiarem o seu sacrifício, a fazer-lhe propostas enganosas de fu-

o auxílio. Debalde. Tong respondia que preferia vender a sua liber-

cem vezes, se fosse possível, a permitir que a memória do pai não

se onrada, ainda que apenas por uma breve estação. Além disso,

nte na sua juventude e robustez, resolveu exigir preço elevado


PearlS. Buck

70

pela sua servidão - preço que lhe permitiria erigir um belo túmulomas que lhe seria
impossível vir um dia a pagar.

Com esta intenção dirigiu-se para a larga praça pública onde se expunham, para
venda, os escravos e os devedores, e sentou-se num banco de pedra, tendo aos
ombros um letreiro com as condições em que se venderia e uma lista das suas
aptidões de trabalhador. Muitos dos que leram os caracteres do letreiro sorriram
desdenhosamente do preço pedido e passaram adiante, desinteressados; outros
pararam e interrogaram-no movidos por simples curiosidade; alguns elogiaram-no
sem sinceridade e alguns ainda zombaram abertamente da sua generosidade e
riram-se da sua infantil devoção. Assim passaram muitas horas fatigantes e Tong
começava a desesperar de encontrar um amo quando passou a cavalo uma alta
personagem da província, um homem escorreito e grave, senhor de mil escravos e
de extensas propriedades. Puxou as rédeas do seu cavalo tártaro e parou a ler o
letreiro. Não sorriu, nem aconselhou, nem fez perguntas; limitou-se a observar o
preço pedido e as fortes e belas pernas do jovem e a comprá-lo sem dizer palavra,
ordenando apenas ao servo que o acompanhava que pagasse a soma exigida e
tratasse dos documentos necessários.

Tong pôde, assim, realizar o desejo do seu coração, mandando construir um


monumento que, embora pequeno em tamanho, deliciaria os olhos de quantos o
vissem, pois seria idealizado por bons artistas e executado por hábeis escultores.
Observaram-se então os piedosos ritos: colocou-se a moeda de prata na boca do
defunto, penduraram-se lanternas brancas à porta, recitaram-se as preces
sagradas e queimaram-se em fogo consagrado modelos de papel de todas as
coisas de que o morto poderia necessitar na terra dos espíritos para onde partira.
Depois dos geomantes e dos necromantes haverem escolhido um local de
enterramento sobre o qual não pudesse brilhar nenhuma má estrela, um lugar de
repouso que nenhum demónio ou dragão pudesse perturbar, construiu-se o belo
chih. Espalhou-se pelo caminho dinheiro falso, o cortejo fúnebre partiu da morada
do morto e, entre preces e lamentos, os restos mortais do pai de Tong foram
lançados ao túmulo.

Tong entrou então ao serviço do seu senhor, que lhe destinou para morada uma
pequena cabana, para onde o jovem levou as tabuinhas de madeira com os
nomes dos antepassados, diante das quais a devo-

Histórias Maravilhosas do Oriente

71

- filial deve queimar diariamente o incenso da prece e cumprir os Jemos deveres


da adoração familiar.

A Primavera perfumou a terra de flores, três vezes se celebrou o festival dos


mortos, chamado Stu-/an-ti, e três vezes Tong varreu e enfeitou o túmulo do pai e
lhe fez, em quintuplicado, a oferenda de fruta e comida. O período de luto passou,
mas ele não deixou de prantear. Os anos rodaram, com as suas muitas luas, sem
que lhe trouxessem uma hora sequer de alegria, um dia que fosse de feliz
repouso. Mas Tong jamais lamentou a sua servidão ou deixou de praticar os ritos
de adoração ancestral, até que um dia a febre dos campos de arroz o atacou e
não pôde levantar-se da cama. Os companheiros julgaram-no condenado a
morrer; não havia ninguém para o tratar, pois os escravos e os servos andavam
ocupados nas lides caseiras e no trabalho dos campos, começavam a trabalhar
mal o Sol era nado e regressavam, fatigados, só depois de ele se pôr.

Enquanto o jovem enfermo dormitava, numa tarde sufocante, no sono


espasmódico da exaustão, sonhou que uma estranha e bela mulher se encontrava
a seu lado e lhe pousava na testa os dedos compridos e finos da sua bonita mão.
Ao seu contacto fresco, Tong experimentou um doce abalo e todas as suas veias
latejaram, como se lhes houvessem insuflado vida nova. Abriu os olhos, cheio de
espanto, viu debruçada sobre si a encantadora criatura com quem sonhara e não
lhe restaram dúvidas de que a sua mão lhe acariciara, de facto, a fronte
escaldante. O fogo da febre apagou-se, uma frescura deliciosa penetrou todas as
fibras do seu ser e a comoção do que sonhara continuou a vibrar-lhe no sangue.
No mesmo instante os olhos da terna aparição encontraram-se com os seus e
Tong viu que eram singularmente belos, brilhantes como maravilhosas pedras
pretas sob as sobrancelhas arqueadas como asas de andorinha. No entanto, o
seu olhar calmo parecia traspassá-lo como a luz traspassa o cristal. Sentiu-se
possuído por um vago temor e a pergunta que lhe subira aos lábios morreu neles.

Sem deixar de o acariciar, a estranha criatura sorriu-lhe e disse-lhe: Vim para te


restaurar as forças e para ser tua mulher. Levanta-te e ora comigo.

sua voz clara possuía tons melodiosos como o canto das aves,

° seu olhar havia uma força imperiosa a que Tong nã o ousava re-

evantou-se da cama, surpreendido por verificar que as forças


Pear! S. Buck

72

lhe tinham voltado por completo, e a mão esguia e fresca que segurava a sua
arrastou-o tão rapidamente que pouco tempo teve para se admirar. Daria anos de
vida em troca da coragem de lhe confessar a sua miséria, de lhe dizer que não
podia manter uma esposa, mas havia um não sei quê naqueles rasgados olhos
escuros que não o deixava falar.

Como se tivesse adivinhado os seus mais íntimos pensamentos, a mulher disse-


lhe, na mesma voz clara e cristalina:

- Arranjarei o necessário.

Tong corou de vergonha ao pensar no seu miserável aspecto e nas suas roupas
esfarrapadas, mas depois viu que ela também estava pobremente vestida, como
uma mulher do povo, sem enfeites de nenhuma espécie, e que nem sequer trazia
sapatos nos pés. Antes que conseguisse falar-lhe, chegaram junto das tabuinhas
dos antepassados, ajoelharam-se, rezaram e juraram fidelidade com um copo de
vinho trazido nunca ele soube donde. Assim adoraram juntos o Céu e a Terra e
assim ela se tornou sua esposa.

Foi um casamento misterioso, pois nem naquele dia nem em nenhum outro ousou
Tong perguntar à mulher o nome da família ou a terra da sua origem, nem soube
responder às muitas perguntas curiosas que os seus companheiros de trabalho
lhe faziam a respeito dela. A mulher também nunca proferiu palavra a seu
respeito, a não ser para dizer que se chamava Tchi. Contudo, embora a esposa
lhe inspirasse tão respeitoso temor que, se o fitava, se sentia sem vontade própria,
Tong amava-a loucamente e o pensamento da sua servidão deixou de o
atormentar a partir do momento em que a desposou.

Como por magia, a pequena cabana transformou-se, mascarada a sua miséria por
encantadores enfeites de papel e bonitas decorações feitas de nada pela suave
prestidigitação de que só as mulheres conhecem o segredo.

Todas as manhãs o jovem marido encontrava uma refeição abundante e bem


cozinhada, o mesmo acontecendo quando, ao entardecer, regressava a casa, dos
campos. A mulher passava o dia sentada ao tear, a tecer seda de uma maneira
que nunca fora vista naquela província. Enquanto tecia, a seda saía do tear como
uma corrente vagarosa de ouro brilhante, adquiria nas suas ondulações estranhas
formas cor de violeta, carmesim e verde-esmeralda, desenhos de fantásticos
cavaleiros, de carros puxados por dragões e de nuvens. No peito de todos os

Histórias Maravilhosas do Oriente

73

,ragõe^ brilhava uma pérola mística, no capacete de todos os cavaleiros intilav^3


uma pedra preciosa. Tchi tecia diariamente uma grande peça da tal s^da,até que
afama da sua arte se espalhou a outras províncias. De long?e e de perto acorriam
pessoas desejosas de admirar o maravilhoso t*”abalho, mercadores de grandes
cidades mandavam mensageiros pedJlr a Tchi que tecesse para eles e lhes
ensinasse o seu segredo. Ela tecia co*1110 desejavam, em troca das moedas de
prata que lhe pagavam, mas ria--se quando lhe pediam que os ensinasse.

-jí amais poderia ensiná-los, creiam - afirmava -, pois nenhum tem decdos corno
os meus.

De facto, era tão impossível distinguir os seus dedos enquanto tecia comao
observar a vibração das asas de uma abelha a voar. As estações paissaram e
Tong nunca soube o que eram necessidades, tão bem a sua b»ela mulher cumpriu
a sua promessa de que arranjaria o necessário. AAS moedas de brilhante prata
trazidas pelos mercadores acumulavam-se em pilhas cada vez mais altas no
grande armário que Tchi comprara para guarcar as provisões.

Certta manhã em que Tong, acabada a refeição, se dispunha a sair para os;
campos, Tchi pediu-lhe inesperadamente que ficasse. Abriu o grande armário e
tirou e entregou-lhe um documento escrito nos caracteres oficiais chamados li-shu.
Tong, ao olhá-lo, chorou de alegria, pois ers» o certificado da sua manumissão.
Tchi comprara em segredo a libercrJade do marido, com o dinheiro ganho na
venda das suas maravilho:-sas ^das!

^Nlão trabalharás mais para nenhum senhor, mas, sim, apenas para ti -^_ di5S.e-
lhe a mulher. - Comprei também esta casa, com todo

o seu recheio, os campos de chá do sul e as amoreiras que ficam aqui perto. Çi
tudo teu_

^g, fora de si de contentamento e gratidão, quis prostrar-se-lhe

aos pés> em acioração, mas ela não lho consentiu. Assim voltou a ser li-

e f> c*0m a liberdade, veio a prosperidade. Tudo quanto lançava à ter-

, , er^çoada centuplicava, os seus criados amavam-no e bendiziam a

bela Tc: L- -i ,

”hi, tão silenciosa, mas, ao mesmo tempo, tão boa para quantos

r.,, e^vam O tear não tardou a ficar parado, pois Tchi deu à luz um .’ ^m rapaz
tão klo que Tong chorou de alegria quando o viu. A

j , HO seu nascimento, a mulher dedicou-se inteiramente aos cuiuauos e,

MO menino.
PearlS. Buck

74

Não tardou a tornar-se evidente que a criança era tão maravilhosa como a mãe,
pois no terceiro mês de vida já falava, no sétimo sabia repetir de cor os provérbios
dos sábios e recitar as preces sagradas e antes do undécimo mês servia-se com
habilidade do pincel de escrita e copiava em bonitos caracteres os preceitos de
Lao-tsé. Até os sacerdotes dos templos vinham admirá-lo e conversar com ele e
ficavam maravilhados com o seu encanto e com a sabedoria do que dizia.

Abençoavam Tong e afirmavam-lhe:

- Este teu filho é, com certeza, uma dádiva do Senhor do Céu, um sinal de que os
imortais te amam. Que os teus olhos vejam cem felizes primaveras!

Chegara o período da undécima lua. As flores tinham murchado, o perfume do


Estio desaparecido, os ventos tornavam-se frios e em casa de Tong já se acendia
a lareira, à tardinha. Marido e mulher estavam sentados havia muito tempo ao
calor, ele a falar sern cessar das suas esperanças e alegrias, do filho que seria um
grande homem e de tantos outros sonhos paternais, e ela pouco faladora, a
escutar as suas palavras e a envolvê-lo naquele seu olhar maravilhoso, com um
sorriso compreensivo. Nunca lhe parecera tão bela e, a olhá-la, Tong nem dava
por que a noite avançava, o clarão do fogo esmorecia e o vento uivava nas
árvores nuas, fora de casa.

De súbito, Tchi levantou-se e, em silêncio, pegou na mão do marido e conduziu-o


docemente, como na estranha manhã do seu casamento, ao berço onde o filho
dormia, a sorrir nos seus sonhos. Nesse momento Tong experimentou o mesmo
estranho medo que sentira quando os olhos de Tchi haviam mergulhado nos seus
pela primeira vez, o vago medo que o amor e a confiança tinham acalmado, mas
que nunca o abandonara por completo, como o medo que se tem dos deuses.
Inconscientemente como se cedesse à pressão de poderosas e invisíveis mãos,
inclinou-se diante dela e ajoelhou como se ajoelhasse diante de uma divindade.
Levantou os olhos para o rosto da mulher, mas logo os cerrou, com temor, pois ela
erguia-se a uma altura nunca atingida por qualquer mulher mortal e dir-se-ia
envolta numa auréola de raios solares, cuja luminosidade lhe desenhava os
membros através das vestes.

A sua doce voz soou com toda a ternura de outras horas, dizendo-lhe:

- Chegou, meu amado, o momento em que te devo abandonar,

Histórias Maravilhosas do Oriente

iem encar-

unca fui de nascimento mortal e os Invisíveis só podem encar^ durante certo


espaço de tempo. Deixo-te, no entanto, o penhor do
113 o amor, este belo filho que será sempre tão fiel e tão afectuoso tu foste. Fica
sabendo, meu amado, que te fui mandada pelo Sehor do Céu, como recompensa
da tua devoção filial, e que devo agora regressar à glória da Sua casa. Sou a
deusa Tchi-Niu.

Quando deixou de falar a auréola desapareceu e Tong, abrindo outra vez os


olhos, compreendeu que ela partira para sempre, misteriosamente como os ventos
do céu, irremediavelmente como a luz de uma chama que se apaga. Contudo,
todas as portas estavam trancadas, todas as janelas fechadas, e o menino
continuava a dormir e a sorrir nos seus sonhos. No exterior, as trevas morriam, o
céu clareava depressa, findava a noite. Majestosamente, o nascente escancarava
as suas altas portas de ouro, para a chegada do Sol, e, iluminadas pela sua vinda,
as neblinas matinais adquiriam formas maravilhosas de cores mutáveis - formas
tão estranhamente belas como os sonhos de seda tecidos no tear de Tchi-Niu.
76

O tigre, o brâmane e o chacal


Os tigres percorrem sorrateiramente os montes e as selvas da índia, e é da índia
que

nos vem esta história. É breve, sem dúvida, mas muito engenhosa e concisa e nas
suas linhas incisivas oculta as bases essenciais da filosofia indiana. É

que os tigres, embora belos e fortes, são também muito estúpidos e deixam-se
apanhar facilmente em jaulas, como o desta história. Além disso, apesar de belos,
não são de fiar, como o bom brâmane da história descobriu. Esse, sim, é bom,
mas

a sua própria bondade o impele a actuar contrariamente ao que a razão lhe

aconselha. A árvore-dos-banianos, o búfalo e a estrada exprimem todos a doutrina

budista do sofrimento em vida, do sofrimento ao serviço alheio, e a sua resignação


a

este destino revela a aceitação indiana da dureza da própria vida. Que poderá,

então, salvar o pobre brâmane? Apenas o mísero chacal, um animal pequeno e

selvagem, sem beleza nem força. Vive de manhas, pois, como ninguém o ajuda,
tem

de se ajudar a si mesmo. Manhosa e velhacamente, persuade o grande tigre a


voltar

à jaula e, triunfante, fecha-o nela. O brâmane segue o seu caminho, mais sensato,
e

o chacal regressa aos antros selvagens. Esta história é uma pedra preciosa - uma

pedra preciosa pequenina, talvez, mas a que não falta o fulgor da inteligência, da

astúcia e da sugestão filosófica.

Era uma vez um tigre que foi apanhado numa armadilha. Tentou em vão sair por
entre as grades, mas rolou no chão e mordeu-se de raiva ao ver que nada
conseguia.

Quis o acaso que passasse por ali um pobre brâmane, a quem a fera suplicou:

- Solta-me desta jaula, ó santo homem!

- Não, meu amigo - respondeu-lhe suavemente o brâmane.


- Se o fizesse eras capaz de me comer.
- De maneira nenhuma! - e o tigre desfez-se em juramentos e

Histórias Maravilhosas do Oriente

77

essas pelo contrário, ficar-te-ia eternamente grato e seria teu

escravo! _

Ao ouvir o tigre soluçar, suspirar, chorar e jurar, o coração piedo-

do brâmane comoveu-se e, por fim, o santo homem resolveu abrir porta da jaula.
O tigre saiu, num ímpeto, agarrou o pobre diabo e

gritou:

que grande idiota me saíste! Quem me impede, agora, de te comer? Depois de


estar fechado tanto tempo, tenho uma fome terrível!

Em vão o brâmane suplicou que lhe poupasse a vida. O mais que conseguiu foi a
promessa de ser aceita a decisão das primeiras três coisas que interrogasse
acerca da justiça da acção do tigre.

Por isso o brâmane perguntou, em primeiro lugar, a uma árvore-dos-banianos o


que pensava do assunto, mas a árvore respondeu-lhe friamente:

- De que te queixas? Não ofereço sombra e abrigo a todos quantos passam e não
me cortam, em troca, os ramos, para alimentar o gado? Não choramingues; sê um
homem!

O brâmane, de coração triste, embrenhou-se mais na floresta e encontrou um


búfalo a puxar à nora, mas não teve melhor sorte. Eis a resposta que obteve:

- És um idiota se esperas gratidão! Olha para mim! Enquanto produzi leite,


alimentaram-me de caroço de algodão e torta de linhaça, mas agora que os meus
úberes secaram jungiram-me aqui e alimentam-me de restos!

Mais triste ainda, o brâmane perguntou à estrada a sua opinião.

- Meu caro - respondeu-lhe a estrada -, que tolo foste em esperar outra coisa! Aqui
onde me vês sou útil a toda a gente, mas todos, ncos e pobres, grandes e
pequenos, se limitam a pisar-me e não me dão nada mais que a cinza dos seus
cachimbos e o folhelho do seu grão!

Ao ouvir tais palavras, o brâmane retrocedeu, desesperado, e no caminho


encontrou um chacal que lhe perguntou:

Que se passa, senhor brâmane? Parece infeliz como um peixe fora de água!

u brâmane contou-lhe tudo o que acontecera e, no fim, o chacal comentou:

Que confuso! Importa-se de me contar tudo outra vez, para ver se percebo?
PearlS. Buck

f8

O brâmane repetiu a história, mas o chacal abanou a cabeça, desalentado, e


continuou sem perceber.

- É muito estranho - confessou, tristemente -, mas as suas palavras parecem


entrar-me por um ouvido e saírem pelo outro! Irei ao local onde o caso se passou
e talvez possa, então, dar o meu parecer.

Regressaram à jaula, fora da qual o tigre aguardava o brâmane, enquanto afiava


os dentes e as garras.

- Demoraste-te muito! - rosnou a fera. - Mas agora comecemos o nosso jantar.

«O nosso jantar!», pensou o infeliz brâmane, com os joelhos a bater um no outro,


de medo. «Que maneira delicada de expor o assunto!»

- Conceda-me cinco minutos, senhor tigre - suplicou -, para que possa explicar o
assunto a este chacal, que é de compreensão um pouco lenta.

O tigre consentiu e o brâmane contou outra vez a história, do princípio, sem


esquecer um pormenor e fazendo render o peixe o mais possível.

- Ai, minha pobre cabeça! - gemeu o chacal, torcendo as patas.

- Ai, minha pobre cabeça! Ora deixem-me ver... Como começou tudo? Você
estava na jaula e o tigre passou...

- Mas que grande idiota me saiu! - verberou-o o tigre. - Eu, eu é que estava na
jaula!

- Com certeza! - concordou o chacal, fingindo tremer de medo.

- Com certeza! Eu estava na jaula... Não, eu não estava na jaula! Meu Deus, meu
Deus, onde está o meu juízo? Ora deixem ver... O tigre estava no brâmane e a
jaula passou... Não, também não é assim! Bem, paciência, comece o seu jantar,
pois está visto que nunca compreenderei.
- Isso é que compreenderás! - rugiu o tigre, enfurecido com a estupidez do chacal.
- Farei com que compreendas! Olha, eu sou o tigre...

- Sim, senhor tigre..

- E este é o brâmane...

- Sim, senhor tigre.

- E isto é a jaula...

- Sim, senhor tigre.

- E eu estava na jaula, compreendes?

- Sim... não... Por favor, senhor tigre...

Histórias Maravilhosas do Oriente

79

£ntão? gritou o tigre, cada vez mais impaciente.

__ Por favor, senhor tigre... Como entrou?

Como? Mas como se entra, está bem de ver!

^j meu senhor, a minha cabeça começou outra vez a andar à

roda! Por favor não se zangue, senhor tigre... mas como é que se entra?

O tigre perdeu por completo a paciência, saltou para dentro da jaula e gritou:

Entra-se assim! Percebes agora como as coisas se passaram?

Perfeitamente! - respondeu o chacal, a sorrir, enquanto fechava, depressa, a


porta. - E, se me permite que lhe diga creio que as coisas continuarão no pé em
que estavam!
80

Iwanich e o anel mágico

Esta é a história de encantar de um filho mais novo e da maneira como encontrou


a princesa dos seus sonhos. É um conto russo, evidentemente. O jovem percorre
a paisagem russa montado num cavalo veloz e atravessa as negras e
intermináveis florestas russas, onde se acoitam animais selvagens. É verdade
que, neste caso, a Rússia pede emprestados leões, tigres e quejandos a climas
mais quentes, mas é igualmente verdade que todos eles se portam como lobos
russos, e como lobos

russos se atiram à comida que o jovem lhes lança, para os demorar. Entre

essa comida conta-se uma lebre viva, mas a lebre é mágica e indica o caminho
para

a princesa. Claro que esta se encontra sob um encanto mau, mas o amor liberta-a.

Trata-se, apenas, de um conto de encantar; porém, o poder do amor para libertar

uma alma do mal é autêntico.

Há muito, muito tempo viveu um rei que tinha três filhos. O mais velho chamava-se
Szabo, o do meio Warsa e o mais novo Iwanich.

Numa bela manhã de Primavera o rei passeava pelos jardins com os três filhos e
observavam, com admiração, as árvores de fruto, algumas cheias de flores e,
outras, carregadas de pomos, vergadas até ao chão. A certa altura chegaram a
um canteiro cercado por uma vedação, onde cresciam três esplêndidas árvores. O
rei olhou-as um momento, abanou tristemente a cabeça e afastou-se em silêncio.

Os filhos, sem compreenderem a sua tristeza, perguntaram-lhe a razão da mesma


e obtiveram a seguinte resposta:

- Estas três árvores, que não posso ver sem mágoa, foram aqui plantadas por mim
quando era um jovem de vinte anos. Um feiticeiro célebre, que dera as sementes
ao meu pai, prometera-lhe que se transformariam nas três mais belas árvores do
mundo. Meu pai não viveu

Histórias Maravilhosas do Oriente

ai

rã ver essas palavras tornarem-se realidade, mas no seu leito de morrecomendou-


me que as transplantasse para aqui e cuidasse delas

om o maior cuidado, o que fiz. Por fim, passados cinco anos, reparei

ue apareciam algumas flores nos ramos e, poucos dias depois, surgiam os pomos
mais maravilhosos que jamais vira. Dei ao meu jardineiro ordens estritas para
vigiar atentamente as árvores, pois o feiticeiro advertira o meu pai de que todos os
frutos apodreceriam se um deles fosse colhido antes de amadurecer. Saberia que
estavam maduros quando adquirissem um tom amarelo-dourado. Todos os dias
admirava as belas maçãs e as via tornarem-se cada vez mais tentadoras, e tinha
de fazer um grande esforço para não desobedecer às ordens do feiticeiro.
«Uma noite sonhei que estavam perfeitamente maduras, que comia algumas e
que eram mais deliciosas do que tudo quanto já saboreara. Assim que acordei,
mandei chamar o jardineiro e perguntei-lhe se os frutos das três árvores não
tinham amadurecido completamente durante a noite. Em vez de me responder, o
homem lançou-se a meus pés e jurou-me que estava inocente, pois apesar de ter
vigiado as árvores toda a noite, os frutos tinham sido todos roubados, como por
magia. Embora penalizado com o roubo, não castiguei o jardineiro, de cuja
fidelidade não duvidava, mas resolvi colher todos os frutos do ano seguinte antes
que amadurecessem, pois já não tinha muita fé na advertência do feiticeiro.

«No ano imediato mandei, de facto, colher todos os frutos, mas quando provei um
achei-o amargo e desagradável e, na manhã seguinte, os outros estavam todos
podres. Depois disso mandei guardar as árvores pelos meus servos mais fiéis,
mas todos os anos, nesta mesma noite, os frutos foram colhidos e roubados por
mão invisível e na manhã seguinte não restava uma só maçã para amostra. Há
algum tempo que não mando, sequer, vigiar as árvores.»

Quando o rei acabou de falar, Szabo, o filho mais velho, observou: Perdoe, meu
pai, mas creio que não procede bem. Tenho a cer-

eza de que há no seu reino muitos homens que podiam proteger estas arvores
das artes manhosas de um feiticeiro ladrão. Eu próprio, como

eu primogénito, reclamo o direito de o fazer antes de todos e, por isso,

ícarei de guarda às árvores esta mesma noite.

rei corisentiu e, quando anoiteceu, Szabo trepou a uma das ar-


PearlS. Buck

82

vores, resolvido a proteger os frutos mesmo que isso lhe custasse a vida. Esteve
atento muitas horas, mas pouco depois da meia-noite sentiu-se invadir por uma
sonolência irresistível e adormeceu profundamente. Era já dia claro quando
acordou e as maçãs tinham desaparecido todas.

No ano seguinte, Warsa, o irmão do meio, tentou a sua sorte, mas com o mesmo
resultado.

Chegou a vez do terceiro e mais novo dos filhos. Iwanich não se sentia
desencorajado pelo insucesso dos irmãos mais velhos, embora fossem, também,
mais fortes que ele. Quando a noite chegou subiu à árvore, como eles tinham
feito. Havia luar e a sua luz suave iluminava as cercanias, permitindo ao príncipe
ver tudo quanto o rodeava.
À meia-noite um suave vento oeste abanou a árvore e, ao mesmo tempo, uma ave
branca como a neve e parecida com um cisne pousou-lhe brandamente no peito.
O príncipe deu-se pressa em agarrar as asas da ave, mas, com grande espanto
seu, verificou que tinha nos braços a mais bela rapariga que jamais vira!

- Não tenhas medo de Militza - disse-lhe a jovem, olhando-o com afecto. - Um


feiticeiro mau condenou-me a voar de noite como uma ave e este encanto só pode
ser quebrado se alguém que me tiver amor descobrir onde vivo. Esse feiticeiro
roubou as sementes de macieira a minha mãe e causou-lhe, assim, a morte. Por
isso, como vês, não tens o direito de possuir este fruto, pois antes de morrer ela
ordenou-me que colhesse as maçãs das árvores, todos os anos, assim que
amadurecessem. Tê-lo-ia feito esta noite, também, se não me houvesses
agarrado com tanta força que quebraste parcialmente o encanto.

Iwanich, que esperava um feiticeiro terrível ou alguma fera nocturna, e nunca uma
encantadora rapariga, apaixonou-se imediata e perdidamente por ela. Passaram o
resto da noite nos braços um do outro, e quando Militza quis partir o príncipe
rogou-lhe que não o deixasse.

- De bom grado ficaria mais tempo contigo - respondeu-lhe Militza -, mas o


feiticeiro cortou-me uma vez um anel de cabelo, como parte do encantamento, e
se ainda aqui me encontrasse de manhã poderia fazer-me mal, e a ti também,
talvez.

Tirou, então, um faiscante anel de diamantes do dedo e entregou-o ao príncipe.

- Guarda este anel como recordação de Militza e pensa nela algu-

Histórias Maravilhosas da Oriente

83

mas vezes

se nunca mais a vires - disse-lhe. - Mas se o teu amor é,

lllaJ * *”~-’ i -i j

Imente, sincero, procura-me no meu reino e liberta-me do encantamento. Não


posso indicar-te o caminho, mas este anel ajudar-te-á a encontrá-lo. Se me tens
amor e coragem suficientes para empreenderes tal viagem, sempre que chegares
a uma encruzilhada olha para este nel antes de decidires o caminho a tomar. Se
os diamantes brilharem com o brilho natural, segue em frente, mas se o seu brilho
diminuir, escolhe outro caminho.

Militza deu um beijo de despedida ao príncipe e, sem lhe dar tempo para falar,
transformou-se outra vez em ave e desapareceu através dos ramos da árvore.
Chegada a manhã, o príncipe desceu da árvore e regressou ao palácio, como se
sonhasse, sem saber, sequer, se as maçãs haviam sido tiradas; todo o seu
espírito estava absorvido no pensamento de Militza e na maneira de a encontrar.
Assim que o jardineiro viu o príncipe dirigir-se para o palácio, correu em direcção
às árvores e, ao vê-las carregadas de frutos maduros, apressou-se a dar a boa-
nova ao rei. Louco de contentamento, o monarca foi ao jardim e ordenou ao
jardineiro que colhesse alguns frutos, provou um e achou-o tão delicioso como os
que comera em sonhos. Procurou imediatamente o príncipe Iwanich e, depois de o
abraçar ternamente e de o cumular de elogios, perguntou-lhe como conseguira
conservar-se acordado e proteger os raros pomos do poder do feiticeiro.

Esta pergunta colocou Iwanich perante um dilema. Como não queria que a
verdadeira história se conhecesse, respondeu que, cerca da meia-noite, uma
enorme vespa voara por entre os ramos e zumbira sem parar à sua volta.
Mantivera-a à distância com a espada e, de manhãzinha, quando começava a
sentir-se extenuado, a vespa desaparecera tão inesperadamente como aparecera.
O rei, sem duvidar da veracidade da história, mandou o filho descansar das
fadigas da noite, mas ordenou festejos em honra da preservação dos
maravilhosos frutos.

O entusiasmo alastrou à cidade inteira e toda a gente compartilhou a alegria do


rei. Só o príncipe não participou nos festejos. Enquanto o Pai se encontrava num
banquete, Iwanich muniu-se de algumas bols de ouro e, montando o cavalo mais
veloz das cavalariças reais, aba-

lou

corno o vento, sem ninguém se aperceber.


Pear/S. Buck

84

Só no dia seguinte deram pela sua falta. O rei ficou muito preocupado com o seu
desaparecimento e mandou-o procurar por todo o reino, mas em vão. Passados
seis meses foi considerado morto, e outros seis meses depois o povo esquecera-o
por completo.

Entretanto, com a ajuda do anel, o príncipe procurava a sua Militza. Ao fim de três
meses chegou à orla de uma floresta que parecia estender-se até ao infinito e dir-
se-ia nunca ter sido pisada por pés humanos. Iwanich ia a entrar por um
carreirinho quando ouviu uma voz gritar-lhe:

- Pára, jovem! Aonde vais?

O príncipe voltou-se e viu um homem alto e esquelético, vestido de farrapos,


apoiado a um cajado e sentado debaixo de um carvalho de cor tão semelhante a
ele próprio que não admirava ter o príncipe passado

sem o ver.

- Aonde hei-de ir senão atravessar a floresta?

- Atravessar a floresta?! - repetiu o velho, espantado. - Bem se vê que nada sabes


desta floresta, se corres tão às cegas ao encontro da morte! Escuta-me, antes de
ires mais longe! Fica sabendo que esta floresta oculta no seu interior incontáveis e
ferozes tigres, hienas, lobos, ursos, cobras e outros monstros. Se te cortasse e ao
teu cavalo em bocadinhos e os atirasse às feras, não chegaria um bocado para
cada cem! Aceita o meu conselho e, se desejas salvar a vida, segue outro
caminho.

O príncipe ficou impressionado com as palavras do velho e reflectiu, por instantes,


no que devia fazer. Depois olhou para o anel e, ao ver que brilhava como sempre,
gritou:

- Ainda que nesta floresta se encontrassem feras mais terríveis do que essas, não
teria outro remédio senão atravessá-la!

Esporeou o cavalo e entrou na floresta, mas o velho chamou-o em tal grita que o
príncipe retrocedeu e se aproximou do carvalho.

- Lamento-te sinceramente - afirmou-lhe o homem -, mas se estás, de facto,


resolvido a enfrentar todos esses monstros da floresta, permite ao menos que te
ajude. Leva este saco cheio de migalhas e esta lebre viva; ofereço-tos. Mas deves
deixar o teu cavalo, pois tropeçaria nas árvores caídas ou enredar-se-ia nas urzes
e nos espinhos. Quando tiveres percorrido cerca de cem metros no interior da
floresta, as feras rodear-te-ão. Deves abrir imediatamente o saco e espalhar as
migalhas. Os animais deitar-se-ão a elas com sofreguidão e, lançada a última mi-

Histórias Maravilhosas do Oriente

85

não percas tempo e lança-lhes a lebre. Esta fugirá velozmente, ^ ’m que tocar no
chão, e as feras persegui-la-ão, permitindo-te assim atravessares em segurança a
floresta.

Iwanich agradeceu-lhe, desmontou e, pegando no saco e na lebre, trou na


floresta. Mal deixara de ver o seu esquelético e cinzento ami-

ouviu rugidos numa moita próxima e, de um momento para o utro viu-se rodeado
das mais horríveis criaturas. Num lado, avistou os olhos coruscantes de um tigre;
no outro, os dentes arreganhados de uma grande loba; aqui, um grande urso rugia
ferozmente; ali, uma medonha cobra enroscava-se na erva, a seus pés...

Contudo, Iwanich não esqueceu os conselhos do velho. Meteu a mão no saco,


tirou um punhado de migalhas e começou a atirá-las às feras. O saco foi-se
tornando leve, cada vez mais leve, a última migalha desapareceu e as feras
famintas apertaram o cerco, gulosas de nova presa. Iwanich atirou-lhes, então, a
lebre. Assim que o animalzinho tocou no chão, deitou as orelhas para trás e
lançou-se por entre as árvores como uma flecha, perseguido de perto pelas
bestas.

O príncipe encontrou-se só, olhou para o anel e, ao vê-lo brilhar como sempre,
seguiu a direito através da floresta. Pouca distância percorrera quando viu um
homem de aspecto extraordinário ir ao seu encontro. Não media mais de noventa
centímetros de altura, tinha as pernas tortas e o corpo todo coberto de espinhos
como o de um ouriço. Ladeavam-no dois leões, presos pelas duas pontas da sua
comprida barba.

Mandou parar o príncipe e perguntou-lhe, rispidamente:

-Foste tu que acabaste de dar de comer à minha escolta?

Iwanich sentiu-se tão assustado que não pôde responder, mas o homenzinho
prosseguiu:

- Agradeço muito a tua gentileza. Que te posso dar como recompensa?

Peço apenas permissão para atravessar esta floresta em segurança - disse-lhe


Iwanich.

Com certeza. E, para maior segurança, dar-te-ei um dos meus le°es, que te
protegerá. Mas quando deixares a floresta e chegares a um palácio que não
pertence ao meu domínio, solta o leão, para que não Caia em mãos inimigas que
o matariam.

Em seguida desprendeu o leão da barba e recomendou-lhe que pró-


7

PearlS. Buck

86

87

tegesse bem o jovem. Acompanhado do novo protector, Iwanich continuou a


atravessar a floresta e, embora encontrasse muitos mais lobos hienas, leopardos
e outras feras, mantiveram-se todas a respeitosa distância mal avistaram o
companheiro do príncipe.

Iwanich caminhava o mais depressa que as pernas lhe permitiam As horas


sucediam-se, intermináveis, e nem um campo verde, nem uma habitação humana
surgia no seu caminho. Por fim, já quase à noite, as árvores tornaram-se menos
densas e avistou, entre as ramarias uma larga planície. O leão parou na orla da
floresta e o príncipe deixou-o, depois de lhe agradecer calorosamente a sua
protecção. Como entretanto escurecera, Iwanich teve de esperar pelo dia seguinte
para continuar a sua viagem.

Fez uma cama de erva e folhas, acendeu uma fogueira de ramos secos e dormiu
a sono solto até de manhã. Pôs-se de novo a caminho até avistar, ao longe, um
palácio todo branco. Quando o alcançou abriu a porta e entrou e, de súbito, ouviu-
se um estrondo tremendo, como se mil vidros se houvessem partido. Soaram
sinos e o vulto vago do mágico apareceu louco de raiva, porque o encanto se
quebrara. Não tardou a desfazer-se numa nuvenzinha de fumo e nunca mais se
ouviu falar dele.

O príncipe soltou um grito de alegria ao ver Militza no meio de um grupo de


raparigas que teciam grinaldas de flores e cobriam com elas

a ama.

Assim que viu Iwanich, a donzela correu para ele e abraçou-o ternamente, e,
depois de o príncipe lhe contar todas as suas aventuras, entraram no palácio,
onde os esperava uma sumptuosa refeição. A princesa reuniu então a sua corte e
apresentou Iwanich como seu futuro marido, iniciando-se logo os preparativos
para o casamento, que se realizou com grande pompa e magnificência. Daí em
diante, Iwanich e Militza viveram numa paz e numa felicidade que nada perturbou.

O pardalJerido

A vida no antigo Japão colocava muitas vezes os animais e as aves no mesmo


plano do homem, e como nos contos de encantar a verdade é importante, mas os
factos o

não são, temos neste conto de encantar japonês pardais a dizerem-nos verdades
acerca da vida, dos homens e das mulheres, sem o mínimo respeito pelos factos.
Daí resulta uma enternecedora história de encantar, em miniatura, na qual uma
avezinha

desempenha o papel de um ser humano. O velho, com a sua consideração e

generosidade, é a pessoa boa do conto; a velha, sua mulher, avarenta e irascível,

permite o contraste e é punida como merece pelos pardais.


Viveram, em tempos que já lá vão, um velho e uma velha. Ele, que tinha bom
coração, possuía um pardalito de que gostava ternamente, mas a mulher era
intratável e, um dia, quando o pardal debicou um amido que ela destinava para
engomar a roupa branca, enfureceu-se de tal maneira que bateu no passarito e o
afugentou. Vendo, ao regressar dos montes, que o pardal desaparecera, o marido
perguntou o que sucedera e a velha respondeu-lhe que lhe batera e o afugentara
porque lhe roubara a goma. O velho, ao ouvir tão cruéis palavras, ficou muito
penalizado.

«Ai de mim, para onde terá ido o meu passarinho?», perguntou a si mesmo, com
um suspiro. «Pobrezinho, pobre pardalito ferido! Onde vives agora?»

í>aiu de casa e andou, andou, à procura da avezinha e a chorar.


- Pardal! Pardalinho! Onde estás tu?

Um dia, no sopé de uma alta montanha, encontrou finalmente a ave esaparecida


e, depois de se felicitarem um ao outro pelo encontro mu-
Pear! S. Buck

88

tuo, o pardal conduziu o velho para sua casa, apresentou-lhe a mulher e os


pardalinhos seus filhos, pôs-lhe à frente toda a espécie de iguarias finas e
recebeu-o hospitaleiramente.

- Partilhe a nossa humilde comida, por favor - convidou-o o pardal. - É pobre, mas
oferecida de boa vontade.

- És um pardal muito delicado! - elogiou-o o velhote.

Ficou muito tempo em casa do pardal, como seu hóspede, e foi tratado e
alimentado como um rei. Por fim disse que tinha de se despedir e regressar a
casa. O pardal rogou-lhe que aceitasse, como prenda de despedida, dois cestos
de vime. Um deles era pesado e o outro leve, e o velhote respondeu que, visto ser
fraco e de idade avançada, aceitaria apenas o leve. Pô-lo ao ombro e partiu a
caminho de casa, deixando a família de pardais triste com a separação.

Quando chegou, a mulher ralhou-lhe, furiosa:

- Por onde andaste, todos estes dias? Que bonito, a vadiares nessa idade!

- Não, mulher, fui apenas visitar os pardais, que me deram este cesto de vime,
como prenda de despedida.

Abriram o cesto para verem o que continha e verificaram, estupefactos, que


estava cheio de oiro e prata e outros objectos preciosos. Quando a velha, que era
tão avarenta como má, viu tanta riqueza na sua frente, deixou de ralhar e não
conseguiu dominar a alegria.

- Irei também visitar o pardal - declarou - e trarei um bonito presente.

Perguntou ao marido onde ficava a casa da ave e pôs-se a caminho, até acabar
por a encontrar.

- Que agradável encontro, senhor Pardal! Que agradável encontro! - exclamou. -


Desejava tanto ter o prazer de o ver!

Tentou, com palavras doces e melífluas, lisonjear e conquistar as boas graças do


pardal, que não teve outro remédio senão convidá-la a ficar em sua casa. No
entanto, não se incomodou oferecer-lhe iguarias. Mas a velha não se atrapalhou e
pediu qualquer coisa que levasse consigo, como recordação da sua visita.

O pardal apresentou-lhe dois cestos de vime, como fizera ao mando, e a


gananciosa mulher escolheu o mais pesado dos dois e partiu com ele. Assim,
porém, que o abriu, para ver o que continha, saíram

cv

Histórias Maravilhosas do Oriente

89

de dentro

do cesto duendes e anões que a atormentaram e, por fim,

agarraram e levaram consigo.

n vplho empregou a sua nqueza a adoptar e educar um iilho,

O velho empregou a sua nqueza; nou-se ainda mais rico do que fora.

etor-
90

Os meninos dos cabelos de ouro

Este conto de encantar turco fala de duas crianças de cabelos de ouro, filhas do
paxá e de uma pobre jovem, a mais nova de três irmãs. As duas irmãs mais
velhas tinham sido também levadas para o palácio, depois de os seus desejos
serem escutados, mas

a sua boa fortuna estragou-as e voltaram para a pobre cabana. A mais nova
continuou humilde e boa, mesmo no palácio, e foi ela que deu à luz os meninos
dos

cabelos de ouro. Tão belos eram os pequeninos, que as duas irmãs mais velhas,
invejosas, subornaram uma velha megera para os roubar e se desfazer deles. Mas
um velho e bondoso casal encontrou-os e criou-os com a ajuda de uma cabrinha.
O que

sucedeu às crianças e a maneira como, no fim, o paxá as reencontrou, depois de


muitos acontecimentos estranhos e interessantes, proporciona uma boa história
de

encantar.

Era uma vez uma grande cidade na qual viviam três jovens donzelas, filhas de um
pobre lenhador. Do romper ao pôr do Sol e pela noite fora, não faziam outra coisa
senão coser e bordar. Quando acabavam os bordados, uma delas ia ao mercado
e vendia-os, comprando com o produto obtido o essencial para viverem
pobremente.

Ora sucedeu que, um dia, o paxá da cidade se zangou tanto com o povo que, na
sua cólera, ordenou que durante três dias e três noites ninguém acendesse uma
vela na cidade. Que seria das três pobres irmãs? Não podiam trabalhar às
escuras, mas precisavam de trabalhar. Depois de muito pensarem, cobriram a
janela com uma grande e espessa cortina, acenderam uma velazinha e sentaram-
se a trabalhar, para ganharem o pão de cada dia.

Na terceira noite do castigo, o paxá resolveu percorrer pessoalmente a cidade,


para se certificar de que todos obedeciam à sua ordem.

Histórias Maravilhosas do Oriente

9ÍJ

n ’ o acaso que parasse defronte da casa das três donzelas e, como a

rtina não chegasse bem até ao fundo da janela, visse brilhar luz no

mtenor. As raparigas, sem suspeitarem do perigo que corriam, conti-

uaram a coser e a bordar, enquanto conversavam da sua pobre vida.

5e ao menos o paxá me casasse com o seu cozinheiro-mor, que

tos Deliciosos comeria todos os dias! - dizia a mais velha. - Bordaria, para o paxá,
uma carpete tão grande que caberiam nela, ao mesmo tempo, todos os seus
homens e todos os seus cavalos.
Pois eu - dizia a do meio - gostaria de casar com o encarregado do seu guarda-
roupa. Que belos vestidos teria! E faria ao paxá uma tenda tão grande que
abrigaria todos os seus cavalos e todos os seus homens.

Eu - declarou a mais nova - só me contentaria com o próprio

paxá! Se me tomasse por esposa, dar-lhe-ia dois filhos de cabelos de ouro, um


menino e uma menina. Na testa do menino brilharia uma meia-lua e na da menina
uma estrela!

O paxá ouviu as palavras das três donzelas e, mal a primeira luz matinal
enrubesceu o céu, mandou chamar as três ao palácio, entregou a primogénita ao
encarregado da sua copa, a do meio ao seu camareiro-mor e guardou a mais nova
para si.

Ao princípio tudo correu bem com as três irmãs, mas depois... A mais velha
empanturrou-se com tão bons e suculentos pratos que, chegada a altura de fazer
a prometida carpete, a gordura quase não lhe deixava manejar a agulha e o paxá
recambiou-a para a cabana do lenhador. Quanto à segunda, depois de ataviada e
vestida de ouro e de prata, não se dignou sujar os dedos a fazer tendas e foi fazer
companhia à primeira.

E a mais nova? Passados nove messes e dez dias as duas irmãs mais velhas
foram ao palácio, para verem se a pobre rapariga cumpria a sua palavra e
presenteava o paxá com os dois maravilhosos rebentos. Junto do portão
encontraram uma velha e persuadiram-na, com prendas e Prornessas, a interferir,
no caso de a irmã cumprir a promessa feita. A

ha era a própria filha do demónio e a maldade e a velhacaria eram a sua carne e o


seu vinho. Muniu-se de dois cachorrinhos e levou-os para ° ^uarto da jovem futura
mãe.

A mulher do paxá deu à luz duas crianças lindas como as estrelas,

menino e uma menina. O menino tinha uma meia-lua na testa e a


PearlS. Buck

Histórias Maravilhosas do Oriente

92

93

menina uma estrela, de maneira que as trevas transformavam em luz na sua


presença. Mas a velha trocou-os pelos cãezinhos e disse ao paxá que a mulher os
tivera. O soberano ficou tão furioso que quase teve um ataque, enterrou a pobre
mulher no chão, até à cintura, e mandou apregoar na cidade a notícia de que
quem passasse por ela lhe devia bater com uma pedra na cabeça.

Quanto à bruxa, levou os dois meninos para muito longe da cidade, colocou-os na
margem relvosa de um rio caudaloso e regressou ao palácio muito feliz por se ter
saído tão bem do seu terrível trabalho.

Numa cabana perto do local onde as crianças foram abandonadas morava um


casal idoso. O marido tinha uma cabra que saía de manhã para pastar e
regressava à tarde, para ser mungida, permitindo assim aos velhotes irem
vivendo. Um dia, contudo, a velha surpreendeu-se ao verificar que a cabrinha não
trazia uma gota de leite. Contou o facto ao marido e disse-lhe que seguisse o
animal, para ver se alguém lhes roubava o leite.

No dia seguinte, o velho seguiu a cabra, viu-a ir direita à margem do rio e depois
desaparecer atrás de uma árvore. Seguiu-a outra vez, e que imaginam que viu?
Na relva jaziam duas crianças de cabelos de ouro, a quem a cabra amamentava!
Depois de lhes dar o seu leite balia-lhes docemente e ia pastar. O velho ficou
louco de contentamento ao ver as maravilhosas crianças, pois Alá não o
abençoara com filhos seus. Pegou-lhes, levou-os para a cabana e entregou-os à
mulher. Esta ficou ainda mais alegre que o marido, tomou conta das crianças e
criou-as como se fossem suas. A cabrinha amamentava-as todos os dias e depois
ia para o pasto.

As duas surpreendentes crianças chegaram à idade de correr montes e vales, de


devassar as escuras florestas com a luminosidade dos seus cabelos de ouro.
Caçavam animais selvagens, tratavam do gado e ajudavam os velhotes por
palavras e obras. O tempo passou, as crianças cresceram ainda mais e o bondoso
casal tornou-se muito, muito velho. Enquanto os dos cabelos de ouro se tornavam
mais fortes, os dos cabelos de prata enfraqueciam, até que uma manhã não
acordaram e o irmão e a irmã se encontraram sós. Choraram e carpiram, mas
depressa compreenderam que as lágrimas nada remediavam. Enterraram os
velhos pais e a rapariga ficou em casa com a cabrinha, enquanto o irmão ia caçar
para arranjar comida.

Um dia, quando caçava animais selvagens na floresta, encontrou o

axá mas nem o filho sabia que ele era seu pai, nem o pai reconheceu

o filho. No entanto, no momento em que os seus olhos fitaram o jovem

tão maravilhosamente belo, o paxá desejou ardentemente apertá-lo ao

peito e ordenou aos que o acompanhavam que lhe perguntassem de

onde era.

Um dos cortesãos aproximou-se do rapaz e disse-lhe:


Abateste aqui muita caça, senhor.

Alá também criou muita e há bastante para ti e para mim - respondeu-lhe o moço,
e deixou-o.

O paxá regressou ao palácio cheio de saudades do rapaz, e, quando os cortesãos


lhe perguntaram o que o entristecia, respondeu que vira na floresta um jovem
maravilhoso e que o amava tanto que nunca mais teria descanso. O jovem tinha o
mesmo cabelo de ouro e a mesma fronte radiosa que sua mulher lhe prometera,
acrescentou.

A notícia chegou aos ouvidos da velha bruxa, que ficou cheia de medo. Correu ao
rio, viu a casa, espreitou e deparou com uma encantadora menina, linda como a
Lua. A jovem perguntou-lhe delicadamente o que queria e a velha não esperou
que repetisse a pergunta; mal transpôs o limiar indagou, com palavras doces
como o mel, se vivia sozinha.

- Não, avozinha; tenho um irmão. Anda a caçar, de dia, e regressa à tarde a casa.

- Não te aborreces de passar o dia inteiro sem companhia? - perguntou ainda a


bruxa.

Mesmo que aborrecesse, que poderia fazer? Tenho de ocupar o tempo o melhor
possível.

Diz-me, meu diamantezinho, gostas muito do teu irmão?

- Claro que gosto!

- E ele gosta de ti? Sim, muito.

tntão, minha pequenina, vou dizer-te uma coisa, mas não a re-

s a ninguém. Esta tarde, quando o teu irmão regressar a casa, co-

Ça a chorar e a lamuriar com todas as tuas forças. Perguntar-te-á o

ens e não lhe responderás, perguntar-te-á segunda vez e conti-

as calada, mas quando te perguntar terceira vez dir-lhe-ás que es-

ticar em casa sozinha e que, se gosta de ti, vá ao jardim da


PearlS. Buck

94
rainha dos peris e te traga um ramo encantador, como nunca viste outro igual.

A rapariga prometeu que assim faria e a velha foi-se embora. À tardinha, a


donzela começou a chorar e a lamentar-se até ter os olhos vermelhos. Ao chegar
a casa, o irmão ficou surpreendido com o estado de desespero em que a
encontrou e prometeu-lhe toda a relva dos campos e todas as árvores das
florestas se lhe dissesse o que tinha. Depois de a ouvir, o jovem dos cabelos de
ouro prometeu satisfazer o desejo do seu coração e, de manhãzinha, pôs-se a
caminho do jardim da rainha das fadas. Andou, andou, à procura das fronteiras do
reino encantado, atravessou desertos por onde caravana alguma jamais passara,
escalou montanhas que ave alguma jamais sobrevoaria, percorreu vales pelos
quais serpente alguma jamais rastejaria, mas tinha confiança em Alá e continuou a
andar sempre, até que chegou a um imenso deserto que olhos humanos nunca
tinham visto nem pés humanos pisado. No meio dele erguia-se um belo palácio e
na berma da estrada sentava-se a mãe dos demónios, à volta da qual o ar estava
impregnado de enxofre.

O jovem foi direito a ela, abraçou-a, beijou-lhe a mão e saudou-a:

- Bons-dias, mãezinha.

- Bons-dias, filhinho! - respondeu-lhe a mãe dos demónios. Se não me tivesses


chamado mãezinha e não me houvesses beijado a mão, ter-te-ia devorado
imediatamente. Mas dize-me, filhinho, aonde vais?

O rapaz respondeu-lhe desejar um ramo do jardim da rainha dos peris.

- Quem te pôs essas palavras na boca, filhinho? - perguntou-lhe a mulher, cheia


de espanto. - Centenas e centenas de talismãs guardam esse jardim e centenas
de almas já lá pereceram.

Mas o jovem não hesitou:

- Só poderei morrer uma vez.

- Se teimares nesse desejo não tardarás ajuntar-te à tua mãe, inocentemente


enterrada - replicou-lhe a velha, que o mandou sentar ao seu lado, lhe contou o
destino da sua mãe e lhe ensinou o caminho para o jardim encantado: - Parte ao
nascer do dia e não pares enquanto não vires na tua frente um poço e uma
floresta. Dispara as tuas setas para essa floresta e apanha de cinco a dez
pássaros, mas apanha-os vivos. Leva-os ao poço e, depois de recitares duas
vezes uma

Histórias Maravilhosas do Oriente

95
ece mergulha-os no poço e pede, a gritar, uma chave. Do poço lan-

-te-ão imediatamente uma chave, apanha-a e segue o teu caminho, p uco depois
encontrarás uma grande caverna cuja porta abrirás com tua chave e, assim que
entrares, estende o braço direito para as trevas interiores, agarra aquilo em que a
tua mão tocar, puxa-o depressa para fora e atira outra vez a chave. Mas tem
cuidado, nunca olhes para trás, pois se o fizeres Alá não terá piedade da tua alma.

No dia seguinte, quando a aurora enrubescia o céu, o jovem pôs-se a caminho,


apanhou os pássaros na floresta, apoderou-se da chave, abriu a porta da caverna
e - ó Alá! - estendeu a mão direita, agarrou qualquer coisa e, sem olhar uma única
vez para trás, arrastou-a todo o caminho até à cabana da irmã, parando apenas
quando lá chegou. Só então os seus olhos viram o que trouxera: um ramo do
jardim da rainha dos peris. E que ramo! Estava cheio de rebentozinhos, os
rebentozinhos cheios de folhinhas, em cada folhinha havia um passarinho e cada
passarinho trinava a sua melodia. Que música maravilhosa! Toda a cabana se
encheu de alegria.

No dia seguinte o jovem foi caçar, como de costume, e enquanto perseguia as


feras da floresta o paxá voltou a vê-lo. Trocou umas palavras com o jovem e
regressou ao palácio, mais doente que nunca de saudades do filho.

Entretanto, a velha bruxa voltou à cabana e encontrou a donzela com o ramo


mágico na mão.

- Que te disse eu, minha filha? - declarou. - Mas isso ainda não é nada. Se o teu
irmão te trouxesse o espelho da rainha dos peris, Alá sabe que deitarias fora esse
ramo. Não deixes de o atormentar enquanto não to for buscar.

Mal a bruxa saíra, a donzela começou a chorar e a lamentar-se, deixando o irmão


sem saber que fazer para a consolar. A rapariga acabou por lhe falar no espelho e
o jovem procurou imediatamente a mãe dos demónios e suplicou-lhe com tanto
desespero que o ajudasse que ela não teve coragem de lhe recusar o que queria.

Estás decidido a ir para debaixo da terra, fazer companhia à tua mãe,


inocentemente sepultada - declarou -, pois não foram centenas, mas milhares de
almas humanas que pereceram ao tentar obter o que pretendes.

tnsinou-lhe depois que caminho devia seguir e o que devia fazer,


Pear! S. Buck

Histórias Maravilhosas do Oriente

96

97
e o jovem partiu. Muniu-se de um bordão de ferro, calçou sandálias de ferro e
andou, andou, até chegar a duas portas, tal qual como a mãe dos demónios lhe
dissera. Uma das portas estava aberta e a outra fechada. O jovem fechou a aberta
e abriu a fechada, e encontrou à sua frente outra porta. Junto desta encontravam-
se um leão e um carneiro, e o leão tinha erva à sua frente e o carneiro tinha carne.
O moço pegou na carne e pô-la diante do leão e pegou na erva e pô-la diante do
carneiro, e os animais deixaram-no entrar sem lhe fazerem mal. Encontrou ainda
outra porta e junto dela dois fornos, um com lume aceso e outro com cinzas
amodorradas. Apagou o primeiro e espevitou as cinzas do outro, até arderem de
novo, e em seguida transpôs a porta e entrou no jardim dos peris e, daí, no
palácio. Apoderou-se do espelho encantado e apressou-se a fugir com ele, mas
ao chegar aos fornos uma voz estentórea gritou de tal maneira que fez tremer a
terra e o céu.

- Forno aceso, apanha-o, apanha-o! - ordenou a voz.

- Não posso - respondeu o primeiro forno -, pois ele apagou-me!

O outro forno estava agradecido ao rapaz por o ter espertado e, por isso, deixou-o
passar.

- Leão, leão, esfrangalha-o! - gritou a voz poderosa das profundezas do palácio,


quando o moço chegou junto dos dois animais.

- Não o apanho, pois serviu-me uma boa refeição - respondeu o leão.

E o carneiro também não lhe fez mal, pois ele dera-lhe erva.

- Porta aberta, não o deixes passar! - gritou a voz do interior do palácio.

- Isso é que deixo, pois se ele não me tivesse aberto ainda estaria fechada! -
respondeu a porta.

Assim, o rapaz dos cabelos de ouro não tardou a chegar a casa, para grande
alegria da irmã. Esta agarrou no espelho, olhou-o e - louvado seja Alá! - viu nele o
mundo inteiro. A jovem não pensou mais no ramo encantado, pois os seus olhos
estavam presos ao espelho.

De novo o irmão foi caçar e de novo avistou o paxá, mas este terceiro encontro
comoveu tanto o soberano que tiveram de o levar, meio inconsciente, para o
palácio.

A velha bruxa compreendeu muito bem o que se passava, procu-

u a donzela e encheu-lhe a cabecinha tonta com tantas histórias, que convenceu a


não dar descanso ao irmão, nem de noite nem de dia, enquanto não lhe levasse a
própria rainha dos peris.
«Isso perdê-lo-á!», pensou a velha, mas a jovem ficou tão entusiasmada com a
ideia de possuir também a rainha dos peris que, na sua impaciência, mal pôde
esperar pelo regresso do irmão.

Quando este chegou, chorou tanto que mais parecia uma nuvem a verter chuva.
Em vão o moço tentou demonstrar-lhe como era longo e perigoso o caminho que o
pretendia obrigar a percorrer; ela respondia-lhe sempre:

Quero a rainha dos peris e hei-de tê-la!

Mais uma vez o jovem se pôs a caminho e mais uma vez procurou a mãe dos
demónios.

- Oh, minha mãe! - exclamou. - Ajuda-me nesta terrível provação!

A mãe dos demónios ficou surpreendida com a sua coragem e tentou tudo para o
dissuadir do seu propósito, pois todas as almas humanas que empreendiam tal
aventura tinham por força de morrer.

- Morrerei se assim tiver de ser, mãezinha, mas não voltarei sem ela! - afirmou o
rapaz.

Que podia a mãe dos demónios fazer senão ensinar-lhe o caminho?

- Segue pela mesma estrada que te conduziu ao ramo - disse-lhe


- e depois continua até onde encontraste o espelho. Chegarás por fim a um
grande deserto e, a seguir ao deserto, verás duas estradas. Não olhes nem para a
direita nem para a esquerda, segue a direito pelas trevas que ficam entre elas.
Quando começar a clarear um pouco verás um grande bosque de ciprestes e,
nele, um grande túmulo. Nesse túmulo encontram-se, transformados em pedra,
todos aqueles que alguma vez desejaram a rainha dos peris. Não pares, continua
a andar até encontrares o palácio da rainha e chama-a com toda a força dos teus
pulmões. O que te acontecerá depois disso nem eu própria sei.

”o dia seguinte o moço dos cabelos de ouro iniciou a viagem. Orou

junto do poço, abriu todas as portas que encontrou e, sem olhar para

a dlreita nem para a esquerda, seguiu a direito, nas trevas. Pouco de-

POIS começou a clarear e encontrou o grande bosque de ciprestes. As

as das árvores eram de um verde escaldante e as suas copas pen-

entes ocultavam túmulos de uma brancura de neve... Não, não eram


PearlS. Buck
98

túmulos, mas pedras do tamanho de homens... Não, não eram pedras < mas
homens que se haviam transformado em pedra. Não se via homem nem espírito e
não havia ruído nem sopro de brisa, e o jovem sei lou de terror até à medula dos
ossos. No entanto, encheu-se de coral gem e seguiu o seu caminho, sempre a
olhar em frente, com os olhos , quase cegos por uma luz ofuscante. Seria o Sol?

Não se tratava do Sol, mas do palácio da rainha dos peris! O jovem reuniu toda a
força que lhe restava e gritou o seu nome, e ainda as palavras não lhe haviam
morrido nos lábios quando o seu corpo se transformou em pedra até aos joelhos.
Gritou de novo com todas as suas forças e transformou-se em pedra até ao
ventre. Gritou pela última vez e tornou-se pedra primeiro até à garganta e depois
até à cabeça, e acabou por se transformar numa pedra tumular, como os outros.

A rainha dos peris desceu então ao jardim. Tinha sandálias de prata nos pés e um
prato de ouro na mão, tirou água de uma fonte de diamantes e espargiu com ela o
jovem transformado em pedra, devolvendo-lhe vida e movimento.

- Não te chegou levares-me o meu ramo e o meu espelho encantado, tiveste de te


arriscar uma terceira vez? - perguntou-lhe. - Partilharás o destino da tua mãe
inocentemente sepultada, em pedra te tornarás e pedra continuarás. Porque
vieste? Fala!

- Vim buscar-te - respondeu-lhe o jovem, corajosamente.

- Bem, como o teu amor por mim é tão extraordinário, nenhum mal te acontecerá e
partiremos juntos.

O jovem suplicou-lhe então que se compadecesse de todos os homens que


transformara em pedra e os devolvesse à vida. A rainha regressou ao palácio,
reuniu a bagagem, que era pequena em peso, mas de valor incalculável, encheu o
prato de ouro de água, salpicou com ela todas as pedras e todas se
transformaram em homens. Montaram por fim a cavalo e quando partiram do reino
encantado a terra e o céu tremeram, como se sete mundos e sete céus se
fundissem, e o jovem teria morrido de medo se a rainha não estivesse a seu lado.
Sem olharem uma única vez para trás, galoparam até chegarem a casa da irmã do
moço dos cabelos de ouro, e foi tão grande a alegria do reencontro que mal
tiveram tempo de pensar na rainha dos peris. Mas agora o jovem não tinha muito
desejo de sair de casa para caçar, pois dera o coração à encantadora rainha dos
peris e ela era sua e ele seu.

Histórias Maravilhosas do Oriente

99
Uma manhã, depois de ouvir a história dos irmãos e dos seus pais doptivos e o
destino da sua inocente mãe, a rainha das fadas disse ao

rapaz:

yai caçar na floresta, onde encontrarás o paxá. A pnmeira coisa

nue ele fará será convidar-te para o palácio, mas não aceites o convite.

E assim aconteceu, de facto. Mal chegara à floresta, o paxá apareceu-lhe na


frente e, palavra puxa palavra, convidou o jovem a visitar o seu palácio, mas ele
recusou.

Na manhã seguinte, muito cedo, a rainha dos peris acordou e pediu aos irmãos
que chamassem o seu conselheiro. Os jovens bateram palmas e imediatamente
surgiu na sua frente um enorme génio, tão grande que um dos seus lábios tocava
no céu e o outro na terra.

Que desejas de mim, minha sultana? - gritou o génio.

- Traz-me aqui o cavalo de meu pai - ordenou-lhe a fada.

O génio desapareceu como um furacão e, pouco depois, surgiu um cavalo como


não podia haver no mundo outro igual. O jovem saltou-lhe para a garupa e
encontrou a esplêndida comitiva do paxá a esperá-lo na estrada. Antes de partir, a
rainha dos peris dissera-lhe que prestasse atenção enquanto estivesse no palácio
do paxá e se apressasse a regressar assim que ouvisse o cavalo relinchar.

O jovem foi, pois, visitar o paxá no seu corcel com rédeas de diamantes, seguido
de alegre e luzido séquito. Saudou o povo para a direita e para a esquerda,
durante todo o caminho, e, no palácio receberam-no com uma pompa nunca vista.
Comeram, beberam e divertiram-se tanto que o paxá não cabia em si de feliz, mas
de súbito o cavalo relinchou e o jovem levantou-se e nada o convenceu a não
partir imediatamente. Montou, convidou o paxá a visitá-lo no dia seguinte e
regressou para junto da fada e da irmã.

Entretanto, a rainha dos peris desenterrou a mãe dos jovens e, graÇas às suas
artes mágicas, devolveu-a à vida, tal como era na sua juventude. Mas a rainha dos
peris não disse à mãe uma palavra acerca dos filhos nem aos filhos uma palavra
acerca da mãe.

Na manhã em que receberiam o paxá, levantou-se cedo e ordenou

que no lugar da cabana se erguesse um palácio como nunca se vira

outro assim e no qual se amontoariam tantas pedras preciosas como as


existentes em todo o reino. E o jardim que cercava o palácio? Oh, ma-

avuha! Havia inúmeras flores, todas maravilhosamente belas, e em


Pear! S. Buck

100

cada flor uma ave canora cujas penas refulgiam de luz, de tão grande beleza que
todos a admiravam de boca aberta e suspiravam. Quanto ao palácio, estava cheio
de gente para tudo o que era preciso: escravas do harém, jovens cativos,
bailarinas, cantoras e tocadoras de instrumentos de corda - enfim, um nunca mais
acabar. Não há palavras que exprimam o esplendor do séquito que foi receber o
paxá.

«Estes jovens não são de nascimento mortal!», pensou o soberano quando viu
tantas maravilhas. «Ou, se são, uma fada os deve ter ajudado.»

O paxá foi conduzido ao melhor aposento do palácio, as criadas serviram-lhe café


e sumos de frutas e depois falou-lhe a voz da música e o canto das aves, um
canto tão maravilhoso que apeteceria ficar a ouvi-lo a vida inteira. Serviram-lhe a
seguir ricas carnes em pratos preciosos e raros, e bailarinas, e ilusionistas
divertiram-no até cair a noite.

Depois surgiram servos que se curvaram diante do paxá e lhe dis-

seram:

- A paz seja contigo, meu senhor! Esperam-te no harém.

O paxá entrou no harém e viu o jovem dos cabelos de ouro e bela meia-lua a
brilhar-lhe na fronte, com a sua noiva, a rainha dos peris, assim como a sua
própria esposa, a sultana, que estivera enterrada todos aqueles anos, e a seu lado
uma donzela de cabelos de ouro, com uma estrela a brilhar na testa. O paxá ficou
petrificado, mas a esposa correu para ele e beijou-lhe a fímbria do manto, e a
rainha dos peris começou a contar-lhe como tudo acontecera.

O monarca julgou morrer de alegria, quase incapaz de acreditar nos seus sentidos
ao apertar a mulher ao peito e ao abraçar os seus dois belos filhos e a rainha dos
peris. Perdoou às irmãs da sultana, mas a velha bruxa foi impiedosamente
destruída.

O paxá, a sultana, o filho, a filha e a rainha dos peris sentaram-se à mesa de um


grande banquete e divertiram-se muito. Festejaram durante quarenta dias e
quarenta noites e a bênção de Alá caiu sobre eles.

O grande sino
Há muitos contos de encantar chineses que fakm do fabrico de grandes sinos, e
este é um deles. Relaciona-se com Yong-Lo, o mais famoso imperador da famosa
dinastia

Ming, que um dia sentiu o desejo de possuir um sino perfeito, o sino mais

maravilhoso que jamais se houvesse fabricado, um sino de som tão excelente e


ao

mesmo tempo tão forte que, quando tocasse, todos quantos viviam na sua capital,
a

cidade de Pequim, ouvissem a sua voz. Após muitos malogros, o sino fez-se,

finalmente, e era de facto como o imperador sonhara. Mas uma rapariga dera a
vida

para que se atingisse tal perfeição. Como foi isso possível? A história responde à

pergunta.

101

Há quase seiscentos anos, Yong-Lo, o Celestialmente Augusto, o Filho do Céu, da


dinastia «Ilustre», ou Ming, ordenou ao digno oficial Kouan-Yu que mandasse
fazer um sino de tal tamanho que o som do mesmo se ouvisse a uma distância de
cem lis1. Ordenou ainda que a voz do sino fosse fortalecida com bronze,
intensificada com ouro e suavizada com prata, que na face e nos grandes
rebordos se gravassem dizeres dos livros sagrados e que fosse pendurado no
centro da capital do Império, para que a sua voz se ouvisse em toda a cidade de
Pequim.

O digno mandarim Kouan-Yu reuniu os mestres moldadores, os sineiros de


renome do Império e todos os homens de grande reputação e perícia no trabalho
de fundição.

Calcularam as quantidades dos materiais necessários para a liga e anipularam-


nos com arte, prepararam os moldes, o fogo, os ins-

•L”: medida ii

itinerária chinesa equivalente a cerca de 576 metros. (N. da T.)


PearlS. Buck

102
trumentos e o gigantesco depósito para o metal fundido. Trabalharam como
gigantes, esquecidos do repouso, do sono e dos confortos da vida, sem parar de
noite nem de dia, em obediência a Kouan-Yu, e esforçaram-se de todas as
maneiras possíveis para satisfazer os desejos do Filho do Céu.

Mas, lançado o metal fundido no molde de barro e separado, depois, deste,


verificou-se que, apesar do trabalho extenuante e dos incessantes cuidados, o
resultado era lamentável. Os metais haviam-se, por assim dizer, rebelado uns
contra os outros, desdenhando o ouro fundir-se com o bronze e não querendo a
prata misturar-se com o ferro fundido. Foi preciso preparar novos moldes,
reacender o fogo, voltar a fundir os metais e repetir, enfadonha e laboriosamente,
todo o trabalho.

O Filho do Céu teve conhecimento do sucedido, ficou furioso, mas não disse nada.

Segunda vez se lançou o metal em brasa no molde, mas o resultado foi ainda pior.
Os metais continuavam a recusar, obstinadamente, misturarem-se uns com os
outros, o sino não tinha uniformidade, os lados estavam estalados e fendidos e os
rebordos escoriados e sem graça. Em resumo, mais uma vez foi preciso
recomeçar, com grande desespero de Kouan-Yu.

Quando o Filho do Céu teve conhecimento do sucedido, ficou mais irritado ainda e
mandou um mensageiro levar a Kouan-Yu uma carta escrita em seda cor de limão
e selada com o sinete do Dragão, na qual dizia:

«Do Poderoso Yong-Lo, o Sublime Tait-Sung, o Celestial e Augusto, cujo reino se


chama Ming, a Kouan-Yu, o Fuh-yin: duas vezes traíste a confiança que
graciosamente nos dignáramos depositar em ti. Se ainda uma terceira vez não
cumprires a nossa ordem, a tua cabeça será separada do pescoço. Treme e
obedece!»

Kouan-Yu tinha uma filha de estonteante beleza, cujo nome, KoNgai, andava
sempre na boca dos poetas e cujo coração era ainda mais belo que o seu rosto.
Ko-Ngai amava tanto o pai que recusara cem óptimos pretendentes só para não
desolar com a sua ausência a morada do progenitor. Ao ver a terrível missiva
amarela selada com o sinete do Dragão, desfaleceu de medo, só de pensar no
que podia acontecer ao pai. Quando recuperou os sentidos e as forças, não
conseguiu dormir

Histórias Maravilhosas do Oriente

103

nem ter descanso, tanto a atormentava o perigo que o pai corria. Vendeu em
segredo algumas jóias e, com o dinheiro obtido, apressouse a consultar um
astrólogo, ao qual pediu, a troco de grande soma, nue a aconselhasse acerca da
maneira de salvar o pai da desgraça iminente.

O astrólogo observou o céu e o aspecto do Rio de Prata, a que nós chamamos Via
Láctea, examinou os signos do zodíaco, o Hwang-tao ou Estrada Amarela, e
consultou as tabelas dos Cinco Hin, ou Princípios do Universo, e os livros místicos
dos alquimistas.

Após um longo silêncio, respondeu:

O ouro e o bronze jamais se unirão em matrimónio e a prata e o

ferro jamais se abraçarão enquanto a carne de uma donzela não se derreter no


crisol e o sangue de uma virgem não se misturar com os metais em fusão.

Ko-Ngai regressou a casa de coração triste, mas guardou segredo do que ouvira e
não disse a ninguém o que fizera.

Por fim chegou o dia terrível em que se efectuaria o terceiro e derradeiro esforço
para moldar o grande sino. Ko-Ngai acompanhou o pai à fundição, juntamente
com a sua aia, e instalaram-se num estrado, de onde avistavam o trabalho dos
fundidores e o lago de metal liquefeito. Os operários trabalhavam em silêncio e o
único som que se ouvia era o crepitar do fogo. O crepitar aumentou,
transformando-se num rugido semelhante ao berro do tufão, e o lago de metal cor
de sangue iluminou-se lentamente, assemelhou-se ao vermelho do Sol a nascer, o
vermelho adquiriu o clarão radioso do ouro e o ouro embranqueceu, tornou-se
ofuscante, como a face prateada da Lua. Os trabalhadores deixaram então de
alimentar as chamas vorazes, pousaram os olhos nos olhos de Kouan-Yu e este
preparou-se para dar o sinal de moldar.

Antes que levantasse a mão, porém, um grito fê-lo voltar a cabeça e ouviu a voz
de Ko-Ngai, pungentemente doce como o canto de uma ave, erguer-se acima da
grande trovoada do fogo:

- Por amor de ti, ó meu pai!

Enquanto gritava, lançou-se no rio branco do metal fundido, a lava do forno rugiu
ao recebê-la, atirou monstruosas línguas de chamas até ao telhado, transbordou
da cratera de barro, moldou uma turbilhonante fonte de fogos multicores e
acalmou-se, trémula, com relâmpagos e trovões e murmúrios.
Pear! S. Buck

104

O pai de Ko-Ngai, louco de dor, quis lançar-se também no lago ardente, mas
braços fortes seguraram-no e prenderam-no até desmaiar e poder ser
transportado para casa como morto. Quanto à aia de Ko-Ngai estonteada e muda
de dor, olhava para o forno e segurava um sapato,
um sapatinho pequeno e elegante, com bordados de pérolas e flores

o sapato da sua linda menina. Tentara agarrar Ko-Ngai por um pé quando ela
saltara, mas agarrara-lhe apenas no sapato e ficara com ele na mão. Continuou a
fitá-lo, como se tivesse enlouquecido.

Mas, apesar da tragédia, a ordem do Celestial e Augusto, do Filho do Céu, tinha


de ser cumprida e o trabalho dos moldadores efectuado, por desastroso que o
resultado pudesse ser. No entanto, o brilho do metal parecia mais puro e mais
branco que antes e não mostrava vestígios do belo corpo que nele se sepultara.
Procedeu-se à moldagem e, quando o metal arrefeceu, o sino surgiu, belo, perfeito
e de uma cor maravilhosa, superior em tudo a todos os outros sinos; mas
continuaram a não aparecer vestígios do corpo de Ko-Ngai, o qual fora totalmente
absorvido pela preciosa liga e misturado ao bronze e ao ouro e à prata e ao ferro.

Quando tocou, a voz do sino soou mais profunda, mais suave e mais potente que
a de qualquer outro sino, ouviu-se, até, mais longe que os cem lis pretendidos. Era
como um ribombo de trovoada estival, como uma voz colossal a proferir um nome
- um nome de mulher vezes sem conta: Ko-Ngai!... Ko-Ngai!... Ko-Ngai!...

105

A história do califa cegonha l

i!

4 ••}

t,

Esta alegre e graciosa história da Arábia é contada com leveza e espírito. Destina-
se a

provocar o riso e as duas aves escolhidas para inspirarem esse estado de espirito
-a

cegonha e o mocho - integram-se bem no seu papel. O diálogo é alegre, não há

notas trágicas de mágoa e as relações humanas entre califa e vizir são divertidas
e,

implicitamente, prazenteiras. Na verdade, toda a história decorre no ritmo de uma


«F
representação musical. *

Numa bela tarde, o califa Chasid de Bagdade descansava confortavelmente no


seu divã. Fumava por um longo cachimbo e, de vez em quando, sorvia um pouco
de café, que um escravo lhe estendia, e depois de cada gole afagava a comprida
barba, com ar feliz. Em resumo, bastava olhar para ele para se compreender que
estava com excelente disposição. Na realidade, aquele era o momento do dia
mais propício para tratar com ele, pois encontrava-se sempre bem disposto, o que
explicava que a visita diária do grão-vizir Mansor se efectuasse a essa hora.

Naquela tarde chegou, como de costume; mas, contrariamente ao que era


habitual, trazia uma expressão perturbada.

- Porque vem com um ar tão preocupado, grão-vizir? - perguntou-lhe o califa,


tirando o cachimbo da boca.

Mansor cruzou os braços no peito e curvou-se profundamente diante do amo,


enquanto respondia:

Oh, meu senhor, não sei se venho com ar preocupado, mas sei que, no pátio do
palácio, se encontra um bufarinheiro com tão belas coisas que, mesmo que não
queira, não posso deixar de entristecer por Possuir tão pouco dinheiro.
Pearls. Buck

106

O califa, que desejava havia algum tempo oferecer um presente ao seu grão-vizir,
ordenou ao escravo que trouxesse imediatamente o bufarinheiro à sua presença.
O escravo obedeceu e, pouco depois, trazia o bufarinheiro, um homem baixo e
atarracado, de cara morena e vestido de farrapos. Transportava uma caixa com
toda a espécie de mercadorias: colares de pérolas, anéis, pistolas ricamente
adornadas, taças e pentes. O califa e o vizir examinaram tudo e aquele escolheu
umas belas pistolas para si e para Mansor e um pente cravejado de pedras
preciosas para a mulher deste. Quando o bufarinheiro ia a fechar a caixa, o califa
reparou numa gavetinha e perguntou-lhe se não continha nada para venda. O
homem abriu a gaveta e mostrou-lhes uma caixa com um pó preto e um
pergaminho cheio de estranhos caracteres que nem o califa nem o seu vizir
perceberam.

- Comprei estes dois artigos a um mercador que os encontrou numa rua de Meca -
respondeu o bufarinheiro. - Ignoro qual seja o seu valor, mas, como não me
servem para nada, de bom grado lhos venderei por uma bagatela.

O califa, que gostava de ter antigos manuscritos na sua biblioteca, embora não os
soubesse ler, comprou o manuscrito e a caixa e mandou embora o vendedor.
Depois, sentindo curiosidade de saber o que diriam os estranhos caracteres,
perguntou ao vizir se conhecia alguém capaz de os decifrar.
- Muito gracioso senhor e amo - respondeu Mansor -, perto da Grande Mesquita
vive um homem chamado Selim, o Sábio, que conhece todas as línguas existentes
debaixo do Sol. Mande-o chamar, pois talvez saiba decifrar estes misteriosos
caracteres.

O sábio Selim foi imediatamente chamado.

- Selim-disse-lhe o califa -, sei que és um sábio. Olha bem para este manuscrito e
vê se o consegues ler. Se conseguires, oferecer-te-ei um traje de honra, mas se
não conseguires ordenarei que te dêem doze palmadas nas faces e vinte e cinco
nas solas dos pés, pois falsamente te intitulas Selim, o Sábio.

Selim prosternou-se e respondeu:

- Seja de acordo com a tua vontade, senhor! - Depois olhou durante muito tempo
para o manuscrito e, de súbito, exclamou:

- Eu morra, ó meu senhor, se não é latim!

- Bem, se é latim, ouçamos o que diz - replicou o califa.

Histórias Maravilhosas do Oriente

107

Selim começou a traduzir:

«Tu que achastes estes objectos, louva Alá pela sua misericórdia.

Todo aquele que aspirar o pó desta caixa e pronunciar, ao mesmo tempo, a


palavra Mutabor, transformar-se-á em qualquer criatura que deseje e
compreenderá a fala de todos os animais. Quando desejar reassumir a forma
humana, bastar-lhe-á curvar-se três vezes na direcção do Oriente e repetir a
mesma palavra. Contudo, quando adquirir a forma de animal ou ave, deve ter o
cuidado de não se rir, pois se o fizer esquecerá com certeza a palavra mágica e
ficará para sempre animal.»

Depois de Selim, o Sábio, ler o pergaminho, o califa sentiu-se encantado. Obrigou


o letrado a jurar que não contaria o caso a ninguém, ofereceu-lhe um traje
esplêndido e mandou-o embora.

- É a isto que chamo um bom negócio, Mansor - disse, quando ficou só com o
vizir. - Anseio pelo momento em que poderei transformar-me num animal. Espero-
o cedo, amanhã de manhã; iremos para o campo, aspiraremos o pó da caixinha e
ouviremos o que se diz no ar, na terra e no mar!
Na manhã seguinte, mal o califa Chasid acabou de se vestir e de tomar o pequeno
almoço, o grão-vizir apareceu, de acordo com as ordens recebidas, para o
acompanhar na sua expedição. O califa meteu a caixinha no cinto e, depois de
ordenar aos criados que ficassem no palácio, pôs-se a caminho, na companhia de
Mansor. Atravessaram primeiro os jardins do palácio, mas procuraram em vão
uma criatura que os tentasse a servirem-se do pó mágico. Por fim o vizir sugeriu
que andassem um pouco mais, até um tanque que ficava fora da cidade e onde
vira muitas vezes diversas criaturas, sobretudo cegonhas, cuja aspecto grave e
digno e constante palrice lhe despertara a atenção.

O califa assentiu e dirigiram-se para o referido tanque.

Assim que chegaram viram uma cegonha a passear de um lado para o outro, com
um ar imponente, a caçar rãs e, de vez em quando, a murmurar - assim parecia,
pelo menos! - qualquer coisa. Viram tam-

bém

outra cegonha, mas esta a voar muito alto, no céu, e a dirigir-se

Para o mesmo local.

Apostaria a minha barba, gracioso amo - disse o grão-vizir -, em corno estas duas
pernaltas vão travar uma boa conversa! Que tal se n°s transformássemos em
cegonhas?

~- Bem dito! - exclamou o califa. - Mas, primeiro, lembremo-nos


Pearls. Buck

108

cuidadosamente do que precisaremos de fazer para voltarmos a ser homens.


Inclinamo-nos três vezes na direcção do Oriente, dizemos Mutabor! e eu serei
outra vez o califa e você o meu grão-vizir. Mas, pelo amor de Alá, não se ria, pois
de contrário estaremos perdidos!

Enquanto falava, o califa viu a cegonha que voava descrever um círculo sobre a
sua cabeça e descer gradualmente. Sem perda de tempo, tirou a caixa do cinto,
deu uma boa fungadela, ofereceu outra a Mansor e gritaram juntos:

- Mutabor!

Acto contínuo, as suas pernas ressequiram-se e tornaram-se finas e vermelhas,


os seus belos sapatos amarelos transformaram-se em toscas patas de cegonha,
os braços em asas e o pescoço começou a alongar-se-lhes entre os ombros, ao
mesmo tempo que as barbas lhes desapareciam e os seus corpos se cobriam de
penas.
- Tem um belo bico comprido, vizir! - exclamou o califa, após um longo momento
de espanto. - Pelas barbas do Profeta, nunca vi uma coisa assim na minha vida!

- Os meus muito humildes agradecimentos - respondeu o vizir, arqueando o


comprido pescoço -, mas se vossa alteza me permite, acho-o ainda mais perfeito
como cegonha do que como califa! Se assim deseja, aproximemo-nos dos nossos
camaradas e certifiquemo-nos se compreendemos, de facto, a sua fala.

Entretanto, a cegonha que voava pousara. Primeiro raspou o bico com a pata e
alisou as penas, e depois aproximou-se da outra cegonha. As duas novas
cegonhas aproximaram-se também e, surpreendidas, ouviram a seguinte
conversa:

- Bons-dias, dona Pernalta. Esta manhã saiu muito cedo!

- É verdade, meu caro Bico-Tagarela! Vim procurar o pequeno almoço. É servido


de uma articulação de lagarto ou de uma coxa de rã?

- Muitíssimo obrigado, mas esta manhã não tenho apetite. Estou aqui com um
objectivo muito diferente. Hoje terei de dançar para os convidados do meu pai e,
por isso, vim até cá, para me treinar um pouco, sossegadamente.

E a cegonha começou a executar passos maravilhosos. O califa e Mansor


observaram-na, surpreendidos, e quando, no fim, a ave se equilibrou numa perna,
numa atitude pitoresca, e bateu graciosamente as asas, não puderam conter-se
mais: soltaram uma prolonga-

Histórias Maravilhosas do Oriente

109

da gargalhada e só passado algum tempo conseguiram recuperar a compostura.

O califa foi o primeiro a serenar e confessou:

Nunca na minha vida vi coisa mais engraçada! Foi uma pena o

nosso riso ter assustado as estúpidas criaturas, pois provavelmente acabariam por
cantar também!

De súbito, porém, o vizir lembrou-se de que o pergaminho recomendava


expressamente que não rissem enquanto estivessem transformados e apressou-
se a comunicar os seus receios ao califa.

- Por Meca e Medina! - exclamou o califa. - Seria uma brincadeira de muito mau
gosto se tivesse de continuar cegonha até ao fim dos meus dias! Tente recordar a
estúpida palavra, pois passou-me por completo.

- Devemos inclinar-nos três vezes na direcção do Oriente e dizer Mu... mu... mu...

Viraram-se para oriente e começaram a curvar-se até tocarem no chão com os


bicos, mas, oh, horror! A palavra mágica sumira-se-lhes da memória. Por muito
que o califa se curvasse e o seu vizir gaguejasse lamentosamente Mu... mu...
mu..., não se lembravam do resto e continuavam cegonhas.

As duas aves encantadas vaguearam tristemente pelos prados, sem saberem que
fazer. Não conseguiam libertar-se da sua nova forma! Seria inútil regressarem à
cidade e dizerem quem eram, pois ninguém acreditaria numa cegonha que
dissesse ser um califa... E, mesmo que acreditassem, consentiria o povo de
Bagdade que uma cegonha o governasse?

Vaguearam assim vários dias, enganando a fome com frutos que tinham certa
dificuldade em comer com o longo bico e sem conseguirem habituar-se às rãs e
aos lagartos. O seu único consolo, na triste situação em que se encontravam, era
a faculdade de voarem, o que lhes permitia sobrevoarem com frequência os
telhados de Bagdade, para verem como corriam as coisas por lá.

Nos primeiros dias notaram, nas ruas, sinais de muita inquietação, mas no quarto
dia, quando se encontravam empoleirados no telhado

palácio, viram passar, na rua, um luzido cortejo. Soavam tambores e trornt>etas e


um homem de manto escarlate bordado a ouro montava Um cayalo ricamente
ajaezado, rodeado de escravos muito bem vestios. Meia Bagdade comprimia-se
atrás dele e gritava:
PearlS. Buck

110

- Viva Mirza, senhor de Bagdade!

As duas cegonhas empoleiradas no telhado entreolharam-se e o califa Chasid


disse:

- Compreende agora, grão-vizir, porque fui encantado? Este Mirza é filho do meu
mortal inimigo, o poderoso mágico Kaschnur, que num momento de cólera jurou
vingar-se de mim. Mas não desesperarei! Vem comigo, meu fiel amigo; iremos ao
túmulo do Profeta e talvez, naquele local sagrado, o encanto se quebre.

Levantaram voo do telhado do palácio, abriram as asas e puseram-se a caminho


de Medina.

Mas voar não era tarefa fácil, pois as duas cegonhas tinham pouca prática, e
passadas duas horas o vizir declarou, ofegante:
- Oh, meu senhor, não posso ir mais longe! Voa depressa de mais para mim e,
além disso, anoitece e não seria má ideia procurarmos um lugar para passarmos a
noite.

Chasid concordou com a sugestão do seu vizir e, vendo no vale que sobrevoavam
umas ruínas que pareciam capazes de os abrigar, começaram a descer. O edifício
onde se propunham passar a noite parecia ter sido, em tempos, um castelo. Viam-
se ainda algumas belas colunas, entre as ruínas, e vários quartos razoavelmente
conservados testemunhavam antigo esplendor. Chasid e o companheiro
percorreram os corredores, à procura de um lugar seco, mas de súbito Mansor
estacou.

- Meu amo e senhor, se não fosse absurdo um grão-vizir - e ainda mais uma
cegonha! - ter medo de fantasmas, sentir-me-ia nervosíssimo, pois alguém ou
alguma coisa acaba de suspirar e gemer perto de mim.

O califa parou, também, e ouviu distintamente uma espécie de choro abafado, que
parecia mais de ser humano que de animal. Cheio de curiosidade, ia a correr para
o local de onde lhe parecera vir o som, mas o vizir segurou-lhe numa asa com o
bico e suplicou-lhe que não se expusesse a novos e desconhecidos perigos. O
califa, porém, sob cujo peito de cegonha batia um coração valente, soltou-se,
perdendo algumas penas, e seguiu apressadamente por um corredor escuro, até
encontrar uma porta entreaberta, através da qual ouviu, com a maior clareza,
suspiros misturados com soluços. Empurrou a porta com o bico, mas ficou no
limiar, espantado com o que viu. No chão do quarto em ruínas, frouxamente
iluminado por uma janelinha gradeada, encon-

Histórias Maravilhosas do Oriente

111

trava-se uma grande coruja. Enormes lágrimas rolavam-lhe dos grandes olhos
redondos e o bico arqueado proferia, em voz rouca, tristes aueixas. Assim que viu
o califa e o vizir, que entretanto se acercara também, a coruja soltou um grito de
alegria, limpou delicadamente as lágrimas, com as asas castanhas sarapintadas,
e, com grande surpresa dos recém-chegados, dirigiu-se-lhes em bom e humano
árabe:

Bem-vindas, cegonhas! São um bom sinal da minha liberação,

pois foi-me profetizado que me aconteceria uma coisa boa por intermédio de uma
cegonha.

Quando se refez da surpresa, o califa ergueu um pé, numa atitude graciosa,


curvou o comprido pescoço e disse:
- Oh, coruja, deduzo das tuas palavras que encontrámos em ti uma companheira
de infortúnio! Mas, ai de nós! A tua esperança de alcançares a libertação por
nosso intermédio é vã. Compreenderás a nossa impotência quando ouvires a
nossa história...

A coruja pediu-lhe que a contasse e o califa disse-lhe o que já sabemos.

Ouvida a história, a coruja agradeceu-lhe e disse-lhes:

- Ouçam a minha história e ficarão a saber que não sou menos infortunada que
vocês. Meu pai é o rei das índias e eu sou Lusa, a sua única filha. O mágico
Kaschnur que os encantou, foi também a causa das minhas desventuras. Um dia
procurou o meu pai e pediu-lhe a minha mão para o seu filho Mirza. O meu pai,
que é um pouco impetuoso, ordenou que o atirassem pela escada abaixo.
Passado pouco tempo, o malvado conseguiu aproximar-se de mim, sob outra
forma. Um dia, quando me encontrava no jardim e pedi um refresco, transformou-
se em escravo e trouxe-me uma bebida que me transformou imediatamente nesta
feia ave. Desmaiei de terror e ele transportou-me para aqui e gritou-me, na sua
voz terrível: «Ficarás aqui, sozinha e hedionda, desprezada até pelos brutos, até
ao fim dos nossos dias ou até que alguém, de sua livre vontade, te peça que sejas
sua esposa! Assim me vingo de ti e do teu orgulhoso pai!». Depois disso, muitos
meses passaram. Triste e sozinha, para aqui tenho vivido como uma eremita,
dentro destas paredes, evitada pelo mundo e um terror até mesmo para os
animais. As belezas da natureza estão-me vedadas, pois de dia sou cega e só
quando a Lua ilumina este lugar com a sua pálida luz o véu cai dos meus olhos e
volto a ver.
Pear! S. Buck

112

A coruja calou-se e limpou de novo os olhos com a asa, pois o relato dos seus
tormentos arrancara-lhe mais lágrimas.

O califa mergulhou em profundo cogitar, ao ouvir tal história, e pouco depois


declarou:

- Ou me engano muito ou existe uma relação misteriosa entre os nossos


infortúnios. A dificuldade reside em encontrar a chave da charada.

- Sou da mesma opinião, meu senhor, pois em menina uma mulher de virtude
vaticinou-me que uma cegonha me traria grande felicidade... E creio poder dizer-
lhe como poderemos salvar-nos.

Surpreendido, o califa perguntou-lhe o que significavam as suas palavras.

- O mágico vem uma vez por mês a estas ruínas. Não longe deste quarto existe
um grande salão onde costuma banquetear-se com os seus companheiros.
Tenho-os observado muitas vezes. Contam uns aos outros as suas patifarias e é
muito possível que a palavra mágica que vocês esqueceram seja mencionada.

- Oh, queridíssima princesa! - exclamou o califa. - Quando é que ele vem e onde
fica o tal salão?

A coruja hesitou, antes de responder:

- Não me julguem antipática, mas só posso satisfazer esse desejo com uma
condição.

- Fala, fala! - pediu-lhe Chasid. - Pede, e de boa vontade satisfarei o teu desejo.

- Bem, gostaria igualmente de ser livre, mas isso só acontecerá se um de vocês


me oferecer a sua mão de esposo...

As cegonhas pareceram desanimadas com a sugestão e o califa fez sinal ao seu


vizir para se afastar e conferenciar com ele. Fora da porta, o califa disse:

- Que caso complicado, grão-vizir! Mas pode ficar com ela...

- Deveras? Para a minha mulher me arrancar os olhos, quando voltar para casa?
Além disso, sou velho, ao passo que vossa alteza ainda é jovem, solteiro e um
partido melhor para uma princesa moça e encantadora.

- Tem razão - concordou o califa, com um suspiro, deixando pender tristemente as


asas. - Mas como sabe que ela é jovem e encantadora? Chamo a isto comprar
nabos em saco.

Histórias Maravilhosas do Oriente

113

Argumentaram durante algum tempo, mas por fim, quando o califa compreendeu
que o seu vizir preferiria continuar cegonha até ao fim da vida a desposar a coruja,
resolveu comprometer-se e cumprir a condição exigida. A coruja ficou encantada e
afirmou que não podiam ter chegado em melhor altura, pois era muito provável
que os mágicos se reunissem naquela mesma noite.

Conduziu então as duas cegonhas ao referido salão. Passaram por um corredor


escuro e comprido até encontrarem, finalmente, um raio de luz, que se coava
pelas fendas de uma parede meio arruinada. A coruja recomendou-lhes, então,
silêncio. Pela fresta, junto da qual se encontravam, viam facilmente todo o grande
salão, adornado com belas colunas esculpidas e diversas lanternas coloridas, que
substituíam a luz do dia. No meio do aposento via-se uma mesa redonda, cheia de
iguarias, e junto da mesa um divã no qual estavam sentados oito homens. As duas
cegonhas reconheceram num deles o bufarinheiro que vendera o pó mágico ao
califa. O que se encontrava sentado a seu lado pediu-lhe que contasse os seus
últimos feitos, e entre eles o bufarinheiro referiu a história do califa e do seu vizir.

- E que palavra lhes deu? - perguntou um velho feiticeiro.

- Uma palavra latina muito difícil: Mutabor.

Ao ouvirem tal palavra, as cegonhas ficaram fora de si de contentamento e


correram tão depressa para a porta do castelo em ruínas que a coruja teve
dificuldade em as apanhar. Ao chegar, o califa voltou-se para ela e disse-lhe muito
comovido:

- Salvadora do meu amigo e de mini próprio, como prova da minha eterna


gratidão, aceita-me por marido.

Voltaram-se em seguida para o Oriente, curvaram três vezes o comprido pescoço


numa vénia ao Sol, que nascia naquele momento, exclamaram ao mesmo tempo
Mutabor! e transformaram-se imediatamente.

No êxtase de voltarem a ser o que eram, amo e servo caíram nos braÇos um do
outro, a rir e a chorar. Como descrever a sua surpresa quando, ao voltarem-se de
novo, viram na sua frente uma linda senhora, maravilhosamente vestida?

- Não reconhece a sua coruja? - perguntou ao califa, estendendo-lhe a mão.

Era ela! O califa ficou tão encantado com a sua graça e beleza que
PearlS. Buck

114

afirmou ter sido, afinal, uma grande sorte haver sido transformado em cegonha!
Nunca na vida lhe acontecera nada melhor!

Partiram imediatamente para Bagdade e, felizmente, o califa encontrou no cinto


não só a caixa do pó mágico, mas também a sua bolsa, o que lhe permitiu
comprar na cidade mais próxima tudo quanto precisavam para a viagem.

Chegaram por fim às portas da cidade de Bagdade, onde a presença do califa


causou grande sensação. Haviam-no declarado morto e o povo ficou
contentíssimo ao rever o seu amado chefe e proporcionalmente furioso com o
usurpador Mirza. Correram ao palácio e aprisionaram o feiticeiro e o filho, e depois
o califa ordenou que levassem o primeiro para o quarto onde a princesa vivera
transformada em coruja e o enforcassem. Mas como o filho ignorava os actos do
pai, o califa deu-lhe a escolher entre a morte e uma fungadela do pó mágico. O
jovem escolheu a última hipótese e o vizir estendeu-lhe a caixa. Uma boa
fungadela e a palavra mágica e ei-lo feito cegonha! Chasid mandou-o fechar numa
gaiola de ferro e colocar no jardim do palácio.
O califa viveu muito tempo feliz com sua mulher, a princesa Lusa, e os seus
momentos mais divertidos eram aqueles em que o vizir o visitava, à tarde. Quando
o califa se sentia excepcionalmente bem disposto, condescendia em imitar
Mansor-cegonha. Andava pela sala muito direito, aos saltinhos, a tagarelar e a
demonstrar como o seu vizir se voltara para o Oriente, se inclinara em vão e
murmurara «Mu... mu...». A mulher e os filhos achavam sempre muita graça à
imitação, mas quando o califa exagerava e dizia «Mu... mu...» mais vezes que a
conta, o vizir ameaçava, a rir, contar à esposa do amo o assunto de certa
conversa travada uma noite à porta do quarto da princesa-coruja...

•sá

•**••

O vizinho invejoso

Este conto de encantar do antigo Japão relaciona-se com um bom cão. É raro (
encontrar um cão assim na Ásia, mesmo numa história, pois os cães asiáticos têm
uma certa tendência para serem ariscos e maus. Talvez isso se deva ao facto de
não serem tratados como animais de estimação. Usam-nos como guardas,
sobretudo nas; aldeias, e fazem-nos passar fome, para que desempenhem bem
essa missão. Nesta p história, contudo, um cãozinho dá sorte a um velho casal
que o trata como a um t filho. Claro que, visto tratar-se de um conto de fadas, o
cão é encantado e castiga o mal e recompensa o bem.

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Há muito, muito tempo vivia numa aldeia um velho casal que, visto não ter filhos a
quem amar e cuidar, dedicava todo o seu afecto a um cãozinho. Era um
animalzinho bonito que, em vez de se tornar mimado ou mau quando não obtinha
o que queria - como às vezes acontece, até, com as crianças-, se mostrava grato
aos donos pela sua bondade e nunca os deixava, quer estivessem em casa, quer
fora dela.

Um dia o velho trabalhava no jardim e, como de costume, o cão fazia-lhe


companhia. A manhã estava quente e, a certa altura, o homem largou a enxada e
enxugou a testa, notando ao mesmo tempo que o animal farejava e escarvava a
terra com as patas, a pouca distância. Não havia nada de estranho nisso, pois
todos os cães gostam de arranhar a terra, e o velho continuou a cavar,
tranquilamente. De súbito o cão correu para ele, a ladrar, e voltou ao local onde
estivera, repetindo várias vezes tal procedimento. Admirado, o homem pegou na
enxada e seguiu-o. O cão estava tão contente com o seu êxito, que não parava de
PearlS. Buck
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ladrar e saltar e o barulho que fazia atraiu a velhota, que saiu de casa para ver o
que acontecera.

Com curiosidade de saber se o animal encontrara, na realidade, alguma coisa, o


marido começou a cavar e a enxada não tardou a bater em qualquer coisa.
Baixou-se e retirou do buraco uma grande caixa cheia de reluzentes moedas de
ouro. A caixa era tão pesada que a velha teve de o ajudar a transportá-la para
casa, e podeis imaginar o rico jantar que o cão teve naquela noite! Agora que os
tornara ricos, todos os dias os donos lhe davam tudo quanto um cão gosta de
comer e o deitavam em almofadas dignas de um príncipe.

A história do cão e do tesouro depressa se espalhou, e um vizinho cuja horta


ficava pegada à dos velhotes teve tanta inveja que não podia comer nem dormir.
Como o cão descobrira um tesouro, o idiota pensou que podia descobrir mais e
rogou ao casal que lhe emprestasse o animal por uns tempos, para enriquecer
também.

- Como se atreve a pedir semelhante coisa? - perguntou-lhe o velho, indignado. -


Sabe quanto gostamos do cão e que nunca o perdemos de vista nem cinco
minutos.

Mas o invejoso vizinho não fez caso das suas palavras e todos os dias vinha com
o mesmo pedido, até que os velhotes, que não gostavam de dizer «não» a
ninguém, prometeram emprestar-lhe o animalzinho só por uma noite ou duas.
Assim que se apanhou com ele soltou-o na horta, mas o cão limitou-se a correr de
lado para lado e o homem não teve outro remédio senão esperar com a paciência
que pôde arranjar. À noite levou-o para casa.

Na manhã seguinte abriu-lhe a porta e o cão saltou alegremente para a horta,


correu para uma árvore e começou a cavar desembaraçadamente. O homem
gritou à mulher que trouxesse uma pá e correu atrás do cão, ansioso por entrever
os primeiros fulgores do desejado tesouro. Mas, depois de cavar no local indicado,
que julgais que encontrou? Apenas um embrulho de velhos ossos, dos quais se
desprendia tal fedor que não pôde suportá-lo.

Sentiu tanta cólera contra o cão que assim o enganara que pegou numa picareta e
o matou, sem saber o que fazia. Quando se lembrou de que teria de dar uma
explicação ao velho casal, ficou aterrorizado, mas como não ganharia nada
calando-se, arvorou uma expressão muito triste e dirigiu-se à horta do vizinho.

Histórias Maravilhosas do Oriente

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O vosso cão morreu de repente - informou, fingindo chorar -,


embora tivesse tomado bem conta dele e lhe desse tudo quanto podia desejar.
Achei melhor vir informá-los...

Chorando amargamente, o velho foi buscar o corpo do animalzinho e enterrou-o


sob a figueira onde ele achara o tesouro. De manhã à noite ele e a mulher
choraram a sua perda, sem que nada os consolasse. Por fim, uma noite, o velhote
sonhou que o cão lhe aparecia e lhe dizia que abatesse a figueira junto da qual
estava a sua campa e da madeira fizesse um almofariz. Mas quando acordou e
recordou o seu sonho, não se sentiu muito inclinado a derrubar uma árvore que
todos os anos dava abundantes frutos e, por isso, consultou a mulher. Esta não
hesitou um momento sequer. Depois do que acontecera, disse, o conselho do cão
devia ser seguido. Portanto, a árvore foi derrubada e feito dela um belo almofariz.

Quando chegou a altura de colher o arroz, o almofariz foi tirado da prateleira e


meteram-se-lhe dentro os bagos de arroz, para serem pisados. Mas, maravilha!,
num abrir e fechar de olhos transformaram-se em moedas de ouro! Ao verem
tanta riqueza, o coração dos velhos alegrou-se e mais uma vez abençoaram o seu
fiel cão.

A história não tardou a chegar aos ouvidos do vizinho invejoso, o qual se apressou
a ir perguntar, ao casal se tinha um almofariz que lhe emprestasse. O velho não
gostou muito de emprestar o seu precioso tesouro, mas como não sabia dizer que
não o vizinho levou-o.

Mal chegou a casa, pegou num grande punhado de arroz e começou a descascá-
lo, ajudado pela mulher, mas em vez das moedas de ouro que esperavam o arroz
transformou-se em sementes tão malcheirosas que tiveram de fugir, mas só
depois de, furiosos, partirem o almofariz e deitarem fogo aos bocados.

Os velhotes ficaram, como é natural, muito contrariados ao saberem o que


acontecera ao seu almofariz, e não os confortou nada as explicações e desculpas
apresentadas pelo vizinho.

Mas nessa noite o cão apareceu outra vez em sonhos ao dono e disse-lhe que
fosse buscar as cinzas do almofariz e as levasse para casa. Quando o grande
Manchu a quem aquela parte do território pertencia tosse à capital, o velho devia
levar as cinzas à estrada pela qual o coreJ° Passar ia e, assim que o visse surgir,
subir a todas as cerejeiras, uma
Pear! S. Buck

por uma, e espalhar nelas as cinzas. As árvores não tardariam a florir como jamais
haviam florido.

Desta vez o velho não precisou de consultar a mulher para saber se devia fazer o
que o cão lhe dissera. Assim que se levantou foi a casa do vizinho, recolheu as
cinzas do almofariz, guardou-as num vaso de porcelana e levou-as para a estrada,
em cuja berma se sentou à espera da passagem do Manchu. As cerejeiras
estavam nuas, pois era a estação em que costumavam vender-se rebentos
envasados às pessoas ricas, para que os tivessem em casa, onde
desabrochariam e enfeitariam os aposentos. Quanto às árvores que ladeavam a
estrada, ninguém se lembraria de procurar nelas um botão que fosse antes que
decorresse pelo menos um mês.

Não esperava havia muito tempo quando viu, ao longe, uma nuvem de poeira e
calculou que fosse o cortejo do Manchu. Era, de facto. Os homens que o
compunham vestiam os mais belos fatos e a multidão que enchia a estrada
curvava-se até ao chão, à passagem do séquito. Só o velho não se curvou, facto
que não passou despercebido ao grande senhor. Este ordenou a um dos
cortesãos que lhe perguntasse porque desobedecera aos antigos costumes, mas,
antes que o mensageiro o alcançasse, o velho trepara à árvore mais próxima e
espalhara as cinzas, num gesto largo. As flores brancas desabrocharam, num
instante, e o Manchu rejubilou, cumulou o velho de presentes e convidou-o para o
seu palácio.

Claro que o vizinho invejoso não tardou a saber também essa novidade e o
coração quase lhe estoirou de inveja. Apressou-se a ir ao local onde queimara o
almofariz e a recolher um resto de cinzas que o velho deixara, as quais levou para
a estrada, na esperança de que a sua sorte fosse tão boa, ou mesmo melhor, que
a do vizinho.

O coração saltou-lhe de prazer quando avistou os primeiros sinais da aproximação


do cortejo, e preparou-se para o grande momento. Ao ver o Manchu, atirou um
punhado de cinzas para as árvores, mas do seu gesto não nasceram botões nem
desabrocharam flores. Em vez disso, o vento atirou as cinzas para os olhos do
Manchu e dos seus guerreiros, que gritaram de dor. Irritado, o Manchu ordenou
que capturassem o atrevido e o metessem numa prisão, onde ficou muitos meses.

Quando o libertaram toda a gente da aldeia descobrira a sua maldade e não lhe
permitiram que lá continuasse a viver. Como não se emendou, foi de mal a pior e
teve um fim desgraçado.

O príncipe e os três destinos

No mundo oriental, sobretudo em climas tropicais, os três inimigos são o crocodilo,


que se oculta nas águas dos rios preguiçosos; a serpente, que suspende o seu
longo corpo mortífero de alguma árvore ou espera na poeira do chão que um pé
descalço pise o seu dente venenoso, e o cão esfomeado e selvagem, que
enraivece e ataca os seres humanos. São estes, na realidade, os três destinos, e
nesta história egípcia do «Príncipe e os Três Destinos» o rei, que também era pai,
tinha motivos para querer proteger o seu filho. Mas a nota de bondade é dada pela
atitude enternecedora de um cãozinho e de um rapazinho, embora este seja
príncipe, e é isso que dá ao conto
o seu encanto.

Era uma vez um menino filho de um rei que governava um grande país através do
qual passava um largo rio, O rei ficou quase louco de alegria quando o menino
nasceu, pois sempre desejara um filho para lhe herdar a coroa, e convidou as
fadas mais poderosas para verem o maravilhoso bebé. Passada uma hora ou
duas eram tantas as fadas que cercavam o berço que o infantezinho parecia
correr o perigo de morrer asfixiado. O rei, que as observava ansiosamente, ficou
preocupado ao ver o seu ar grave.

- Aconteceu alguma coisa? - perguntou inquieto.

As fadas abanaram todas a cabeça, ao mesmo tempo, e responderam:

- É um bonito rapaz e é uma grande pena, mas o que tem de acontecer


acontecerá. Está escrito nos livros do destino que morrerá vítima de um crocodilo,
de uma serpente ou de um cão. Se o pudéssemos salvar, salvá-lo-íamos, mas o
nosso poder não chega para tanto. - E desapareceram.

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Histórias Maravilhosas do Oriente

Durante momentos o rei ficou imóvel, horrorizado com o que ouvira, mas como era
um homem que não perdia facilmente a esperança, começou logo a inventar
planos para poupar ao príncipe o terrível destino que lhe fora vaticinado. Mandou
chamar o seu mestre construtor e encarregou-o de erigir uma fortaleza no pico de
uma montanha, a qual seria mobilada com os objectos mais preciosos daquele
palácio e toda a espécie de brinquedos com que uma criança pudesse sonhar.
Deu ainda ordens estritas para que uma guarda percorresse o castelo noite e dia.

Durante quatro ou cinco anos o principezinho viveu sozinho no castelo com as


suas amas, tomando ar nos vastos terraços rodeados de muralhas com fossos e
apenas uma ponte levadiça para os ligar ao mundo exterior.

Um dia, quando já tinha idade suficiente para correr sozinho pelos terraços, olhou
para o outro lado do fosso e viu um cãozinho que era uma verdadeira bola de pêlo
a saltar e a brincar. Ora o garoto nunca vira um cão, pois estes animais tinham
sido afastados dele para evitar que a profecia das fadas se cumprisse. Voltou-se
para o pajem que o acompanhava e perguntou-lhe:

- Que bichinho engraçado é aquele, que corre além?


- É um cão, príncipe - respondeu-lhe o pajem.

- Traz-me um igual, para vermos qual corre mais depressa. - E continuou a


observar o animalzínho, até ele desaparecer numa volta do caminho.

O pajem ficou sem saber que fazer. Tinha ordens severas para não recusar nada
ao príncipe, mas lembrava-se da profecia e achava o assunto muito sério. Por fim
achou conveniente contar tudo ao rei e deixá-lo decidir a ele.

- Dá-lhe o cão, se ele o deseja - respondeu-lhe o monarca. - Se não lhe


fizéssemos a vontade nunca mais se calaria.

Arranjou-se, por isso, um cachorrinho, tão igual ao outro como se fossem gémeos
- e talvez fossem.

Os anos passaram e o rapaz e o cão brincaram juntos, até aquele se tornar alto e
forte. A certa altura escreveu ao pai a seguinte mensagem:

«Porque me conservas aqui fechado, sem fazer nada? Estou ao corrente da


profecia feita quando nasci, mas crê que prefiro ser morto imediatamente a viver
aqui uma vida ociosa e inútil. Por isso, dá-me armas e deixa-me partir, suplico-te,
como meu cão». HI.

Mais uma vez o rei satisfez os seus desejos e o moço e o cão partiram num barco
para a outra margem do rio, naquele ponto tão largo que quase podia ser um mar.
Esperava-o um cavalo preto, amarrado a uma árvore, e o príncipe montou e
cavalgou até onde a fantasia o levou sempre seguido pelo cão. Nunca houvera
príncipe tão feliz como ele. Por fim avistou um palácio real.

O rei que nele vivia não estava para se maçar a governar bem o seu país nem se
importava que o povo vivesse, ou não, alegre e feliz. Passava o tempo a fazer
charadas e a inventar projectos em que mais valeria não se ocupar. Quando o
jovem príncipe chegou ao reino, acabava o rei de completar uma maravilhosa
casa para a sua única filha. A casa tinha setenta janelas, todas a setenta pés do
chão, e o rei mandou o arauto real anunciar nas fronteiras dos reinos vizinhos que
daria a filha como esposa a quem conseguisse trepar pelas paredes até à janela
onde ela se encontrava.

A fama da beleza da jovem era grande e, por isso, não faltaram príncipes
dispostos a tentar a sua sorte. O palácio devia parecer muito engraçado, todas as
manhãs, com os príncipes de fatos coloridos a treparem pelas paredes de
mármore branco. Mas embora alguns conseguissem ir mais longe que outros,
nenhum conseguira ainda chegar ao cimo. Desciam e na manhã seguinte
tornavam a tentar.

Haviam decorrido já vários dias em tão fúteis tentativas quando o jovem príncipe
chegou. Como era simpático e delicado, os outros príncipes receberam-no com
agrado na casa que fora posta à sua disposição e mandaram-lhe preparar um
banho convenientemente perfumado, para repousar da longa viagem.

- Donde vens? - perguntaram-lhe por fim. - E de quem és filho?

O jovem príncipe tinha motivos para guardar segredo quanto à sua identidade e,
por isso, mentiu:

- Meu pai era o estribeíro-mor do rei do meu país, enviuvou e voltou a casar. Ao
princípio tudo correu bem, mas assim que a minha madrasta teve filhos seus,
começou a odiar-me e eu fugi para que não me acontecesse nenhum mal.

Os jovens comoveram-se com a história e fizeram tudo quanto puderam para o


ajudar a esquecer os seus passados desgostos.

- Que estão aqui a fazer? - perguntou-lhes um dia o moço príncipe. .-u-:”-, v ;


Pear! S. Buck

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- Passamos o tempo todo a trepar pelas paredes do palácio, na esperança de


chegarmos à janela da princesa - respondeu-lhe um deles. - Mas, até agora,
ninguém chegou sequer a três metros dela.

- Deixem-me tentar também! - pediu o príncipe. - Mas, antes de começar, quero


ver como vocês fazem.

No dia seguinte viu os jovens subirem pelas paredes e fixou os pontos que
pareciam mais difíceis, resolvido a subir de outra maneira, quando chegasse a sua
vez. Dia após dia observou as tentativas dos pretendentes, até adquirir a certeza
de que conhecia de cor o plano das paredes. Tentou, então, graças ao que
aprendera com os malogros dos outros, conseguiu agarrar-se a uma pequena
saliência após outra e chegou, com grande inveja dos seus amigos, ao parapeito
da janela da princesa. De baixo, os jovens viram a mão branca da donzela
estender-se para o puxar para dentro.

Um deles correu então ao palácio do rei e gritou:

- A parede foi escalada e o prémio ganho!

- Por quem? - perguntou o rei, soerguendo-se do trono. - A qual dos príncipes


posso chamar genro?

- O rapaz que conseguiu chegar à janela da princesa nem sequer é príncipe! É


filho do estribeiro-mor do grande rei que vive na outra margem do rio e fugiu do
seu país para escapar ao ódio da madrasta.
Estas notícias enfureceram o rei, pois não lhe passara pela cabeça que alguém
que não fosse príncipe tentasse conquistar a sua filha.

- Ele que volte para a sua terra! - gritou, colérico. - Esperará que dê a minha filha a
um exilado?

E, na sua fúria, começou a partir as taças. O jovem que lhe trouxera a novidade
ficou tão assustado que voltou para junto dos amigos e contou o que o rei dissera.

A princesa, que estava à janela, ouviu as suas palavras e pediu ao mensageiro


que fosse informar o pai de que fizera um voto de nunca mais comer nem beber
se o jovem lhe fosse tirado. O rei ficou ainda mais furioso e ordenou aos guardas
que fossem ao palácio e matassem o pretendente bem sucedido. Mas a princesa
colocou-se entre ele e os seus assassinos e gritou-lhes:

- Toquem-lhe com um dedo e estarei morta antes de o Sol se pôr!


Compreendendo que a ameaça era sincera, os guardas regressaram

ao palácio e repetiram-na ao monarca.

Histórias Maravilhosas do Oriente

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Entretanto, a cólera do rei acalmara e ele começava a considerar o que diria o


povo de si se quebrasse a promessa. Ordenou pois que trouxessem a princesa e
o jovem, e quando entraram na sala do trono ficou tão bem impressionado com o
ar nobre do vencedor que a sua cólera se desfez por completo. Correu para ele,
abraçou-o e pediu:

- Diz-me quem és, pois jamais acreditarei que não te corre sangue real nas veias.

Mas o príncipe ainda tinha as suas razões para guardar segredo e repetiu a
mesma história. O rei tomara-se de tal simpatia por ele que não insistiu. O
casamento efectuou-se no dia seguinte e o jovem casal recebeu como presente
de noivado grandes manadas de gado e uma enorme propriedade.

Decorridas várias semanas o príncipe disse à mulher: -A minha vida está nas
mãos de três criaturas: um crocodilo, uma serpente e um cão.

- Que temerário és! - exclamou a princesa, abraçando-o.

- Se sabes isso, porque trazes contigo aquele imundo animal? Darei ordens para o
matarem imediatamente!

Mas o príncipe nem quis ouvir falar em tal coisa:


- Matar o meu querido cãozinho, que foi meu companheiro de brinquedos desde
cachorrinho? Oh, jamais o consentirei!

O mais que a princesa conseguiu que lhe prometesse foi que usaria sempre uma
espada e iria sempre acompanhado de alguém quando saísse do palácio.

Poucos meses depois do seu casamento, o príncipe soube que o pai estava velho
e doente e desejava ter o filho a seu lado. O jovem não pôde ficar surdo a
semelhante mensagem, despediu-se ternamente da mulher e iniciou a viagem de
regresso. Como a distância era grande, foi obrigado a descansar muitas vezes na
estrada e sucedeu que, quando certa noite dormia numa cidade na margem de um
grande rio, um enorme crocodilo saiu da água e se dirigiu, silenciosamente, em
direcção ao quarto do príncipe. Por sorte um dos guardas acordou no momento
em que a fera tentava passar, sorrateira, e fechou-o num grande átrio, guardado
por um gigante que só o abandonava de noite, quando o crocodilo dormia. Assim
continuou durante mais de um mês, pois quando o príncipe pensou que seria
pouco provável que pudesse abandonar outra vez o reino do pai, mandou chamar
a mulher e
PearlS. Buck

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recomendou ao mensageiro lhe dissesse que aguardaria o seu regresso na cidade


da margem do grande rio. Quanto mais tempo permanecesse na cidade, maior
seria o perigo de, um dia, o crocodilo o comer. Nas semanas que se seguiram o
príncipe entreteve-se o melhor que pôde, embora contasse os minutos que
faltavam para a chegada da mulher. Mal ela chegou, iniciou os preparativos para
seguirem para a corte. Naquela noite, contudo, enquanto o marido dormia, a
princesa viu uma mancha negra a um canto do quarto, uma mancha que parecia
tornar-se cada vez mais comprida e aproximar-se lentamente das almofadas onde
o príncipe repousava. Estremeceu de terror e o que quer que era devia ter ouvido
o levíssimo ruído, pois ergueu a cabeça. A jovem viu então tratar-se da cabeça
comprida e achatada de uma serpente e lembrou-se da profecia. Saiu da cama
sem acordar o marido, pegou numa pesada vasilha de leite que se encontrava em
cima de uma mesa e colocou-a no chão, no caminho do réptil, pois sabia que
nenhuma serpente do mundo pode resistir ao leite. Susteve a respiração ao vê-la
aproximar-se e erguer outra vez a cabeça, como se cheirasse alguma coisa
deliciosa, enquanto a língua bifurcada lhe saltava gulosamente da boca. Por fim os
seus olhos depararam com o leite e começou a lambê-lo tão depressa que foi um
milagre não se asfixiar, pois não tirou a cabeça de dentro da vasilha enquanto nela
restou uma gota de leite. Depois caiu no chão e adormeceu pesadamente. Fora
isso mesmo que a princesa esperara, pois muniu-se da espada do marido e
separou-lhe a cabeça do corpo.

Na manhã seguinte a esta aventura o príncipe e a princesa partiram para o palácio


do rei, mas quando chegaram já o encontraram morto e fizeram-lhe um funeral
magnificente. Depois disso o príncipe teve de examinar as novas leis decretadas
na sua ausência e de tratar de tantos negócios de estado que acabou por adoecer
de fadiga e ser obrigado a ir para um dos seus palácios nas margens do rio, a fim
de descansar. Depressa recuperou a saúde e recomeçou a caçar e a matar patos
selvagens com o seu arco, sempre acompanhado pelo seu cão, agora já muito
velho.

Uma manhã o príncipe e o cão caçavam, como de costume, e ao perseguirem


uma presa aproximaram-se da margem do rio. O príncipe corria velozmente atrás
do cão quando quase caiu sobre qualquer coisa que se atravessava no seu
caminho e parecia um tronco. Para sua

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surpresa, uma voz falou-lhe e o jovem viu tratar-se de um crocodilo o que tomara
por um tronco.

- Não podes escapar-me - ouviu a fera dizer, quando se refez da surpresa. - Sou o
teu destino e vás para onde fores e faças o que fizeres, encontrar-me-ás sempre à
tua frente. Há apenas uma maneira de te libertares do meu poder: se conseguires
abrir na areia seca uma cova que permaneça cheia de água, o meu encanto
quebrar-se-á; se não conseguires, morrerás depressa. Dou-te essa oportunidade.
Agora vai.

O jovem afastou-se tristemente e, ao chegar ao palácio, fechou-se no seu quarto e


recusou-se a ver fosse quem fosse durante o resto do dia, até mesmo a esposa.
Ao pôr do Sol, porém, vendo que continuava a não sair qualquer ruído do quarto
do marido, a princesa assustou-se e fez tal alarido que o príncipe foi obrigado a
retirar a tranca da porta e a deixá-la entrar.

- Como estás pálido! - exclamou, preocupada. - Estás ferido? Conta-me, suplico-


te, o que te atormenta, pois talvez eu possa ajudar-te!

O príncipe contou-lhe tudo, incluindo a tarefa impossível de que o crocodilo o


incumbira.

- Como pode um buraco na areia permanecer cheio de água? perguntou por fim. -
Claro que se escoará toda! O crocodilo chamou-lhe uma «oportunidade», mas
bem podia ter-me logo arrastado para o rio. Razão teve ao dizer que não lhe
posso escapar.

- Se isso é tudo - respondeu a princesa -, eu própria te posso libertar, pois a fada


minha madrinha ensinou-me a conhecer o uso das plantas e no deserto, não longe
daqui, existe uma ervazinha de quatro folhas capaz de conservar a água na cova
durante um ano inteiro. Irei apanhá-la de madrugada e tu poderás começar a abrir
a cova assim que quiseres.

A princesa falara despreocupada e alegremente para tranquilizar o marido, mas


sabia que não tinha uma tarefa fácil na sua frente. No entanto, era corajosa e
enérgica e estava decidida a que, de uma maneira ou de outra, o marido se
salvasse. As estrelas brilhavam ainda quando saiu do palácio num burro branco
de neve e se afastou do rio em direcção ao oeste. Durante muito tempo nada mais
viu que uma extensa vastidão de areia que se tornava mais quente à medida que
o sol subia. Apoderou-se dela e do burro uma sede terrível, mas não havia nenhu-
Pear! S. Buck

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ma nascente onde pudessem saciá-la e, mesmo que houvesse, não teria tempo
para se deter, pois ainda tinha muito caminho que percorrer e devia regressar ao
palácio antes de anoitecer, não fosse o crocodilo declarar que o príncipe não
cumprira as condições estipuladas. Disse palavras animadoras ao burrinho, que
zurrou em resposta, e continuaram a avançar firmemente. Que contentes se
sentiram ambos quando avistaram, ao longe, uma rocha escarpada! Esqueceram
que tinham sede e que o sol estava quente e o chão pareceu voar debaixo deles,
até que o burro parou, por iniciativa própria, à sombra fresca. Mas embora o burro
pudesse descansar, a princesa não podia, pois a planta que procurava crescia no
cimo da rocha, em redor de cuja base havia uma larga fenda. Felizmente trouxera
consigo uma corda e, dando-lhe um nó corredio numa ponta, atirou-a para o outro
lado, com todas as suas forças. Na primeira tentativa a corda escorregou para o
fosso e ela teve de a puxar e atirar de novo, mas por fim o nó prendeu-se em
qualquer coisa - não podia ver o quê - e a jovem confiou todo o peso do seu corpo
à precária ponte, que podia partir-se de um momento para o outro e provocar a
sua queda entre as rochas. Se assim acontecesse, a sua morte seria tão certa
como a do príncipe.

Mas tal não aconteceu e a princesa chegou, sã e salva, ao outro lado. Faltava a
parte pior da sua tarefa. Assim que pisou uma saliência da rocha, a pedra partiu-
se debaixo dos seus pés e deixou-a no mesmo lugar. Entretanto, as horas
passavam e era quase meio-dia. O coração da pobre princesa estava cheio de
desespero, mas ela não desistia da luta. Olhou à sua volta e encontrou, um pouco
acima, uma pedra pequena, que parecia mais resistente que as outras, e,
apoiando-se muito ao de leve nas que ficavam de permeio, conseguiu, à custa de
tremendo esforço e com as mãos feridas e a sangrar, chegar ao cimo do rochedo.
Mas aí soprava um vento tão forte que a poeira levantada quase a cegava e teve
de se deitar no chão e procurar a preciosa erva às apalpadelas.

Durante momentos terríveis pensou que a rocha era árida e que a sua viagem fora
inútil, pois por muito que tacteasse só encontrava cascalho e pedras. De súbito, os
seus dedos tocaram algo macio, numa fenda. Era uma planta, sem dúvida, mas
seria a que procurava? Não podia ver, pois o vento soprava cada vez com mais
força, mas deixou-se ficar onde estava e contou as folhas. Uma, duas, três... sim,
sim, eram quatro! Agarrando um punhado de plantas, arrancou-as e con-

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servou-as bem seguras na mão, enquanto se virava, quase arrastada pelo vento,
para descer a rocha.

Quando se encontrou na encosta o vento parou imediatamente e a jovem desceu


do rochedo tão depressa que pareceu um milagre não cair no abismo. Teve a
sorte, porém, de ir parar perto da corda e depressa chegou ao outro lado. O burro
zurrou alegremente ao vê-la e partiu para casa o mais depressa que pôde, nem
parecendo aperceber-se de que o solo que pisava estava tão quente como o Sol.

Parou na margem do grande rio e a princesa correu ao local onde o príncipe se


encontrava, junto da cova que abrira na areia seca, com um enorme recipiente de
água a seu lado. A pouca distância, o crocodilo piscava os olhos ao sol, com as
fauces branco-amarelas escancaradas e a mostrar os dentes aguçados.

A um sinal da princesa, o príncipe despejou a água na cova e, quando esta ficou


cheia até acima, a jovem atirou-lhe para dentro a planta de quatro folhas.
Resultaria o encanto ou a água esgotar-se-ia lentamente, através da areia, e o
príncipe morreria, vítima do horrível monstro? Durante meia hora não desviaram
os olhos da água, mas a cova permanecia tão cheia como no princípio, com a
florinha verde a flutuar na superfície. O príncipe voltou-se, então, com um grito de
triunfo e o crocodilo mergulhou, furioso, no rio.

O príncipe libertara-se para sempre do segundo dos seus três destinos! Ficou a
ver o crocodilo desaparecer, feliz por estar livre, quando lhe chamou a atenção um
pato selvagem que voou perto deles, a procurar abrigo entre os caniços da
margem. Logo a seguir o cão surgiu, disparado, a perseguir a ave, e chocou
violentamente com as pernas do dono. O príncipe cambaleou, desequilibrou-se e
caiu de costas no rio, onde a lama e os juncos o prenderam. Gritou por socorro e a
mulher acorreu, trazendo, felizmente, a corda consigo. O pobre e velho cão
morreu afogado, mas o príncipe foi puxado para terra.

- A minha mulher - declarou - foi mais forte que o meu destino!

FIM

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