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LAPA BYARS

Noveleta sobre dois tipos


Que até se podem ter cruzado
Em diversas ocasiões
Mas que não parece
A perdida despe-se para se despedir e descer
escadas direitinho aos infernos, solteirona ou
casada, despida pelos machitos e marialvas
adjacentes eles mesmos idólatras do modernismo
punheteiro com alvíssaras -fetichistas. Praga
infame de salamaleques! Ela sente-se
sentimentalona e adulterada pelos ossinhos do
ofício (e edulcorada pelo chulo). Alguns clientes
julgam que a encontram esfaqueada ou decepada
num parque municipal? Mas ela está apenas
decepcionada: i. é, encantada de fresco, vestida de
branco, puríssima. No entender de um dos
protagonista os sete anões que seriam os solteiros
são nove, e a casada é a Branca-de-Neve de
Walser filmada pelo César Monteiro mas
novamente animada pelo Walt Disney (embora
tudo se passe quase na escuridão total).

Pirro passa apático ao lado da campa de


Duchamp. Pirro pisca o olho a um Plutão piegas.
Plutão sabe que os mortos gostam de saber dos
vivos e os vivos dos mortos. Mas não há
comunicação possível. Picabia, bastante opiado,
agarra num piassaba e tenta assinar o céu. O céu
não se deixa assinar. Picabia fica deprimido.
Tentará mais tarde fazer implodir o céu mais os
anjos em redor.

Lapa põe-se, embora com modéstia teatral, no


papel de voyeur – de Duchamp no lugar de
solteirona e de ele mesmo, como machito no seu
bando tribal a fazer passar a solteira para casada
no eterno retorno da virgindade e do orgasmo.

Byars retira de Duchamp e da casada a lição do


geómetra, mas desfaz-se das anamorfoses mas
não da malandrice. Byars apercebe-se do carácter
arquétipico da solteirona casada e do fugaz
instante que separa as duas – instante em que a
solteirona-casada não é solteirona nem casada,
mas é passagem sem voyeurismo, toda ela
experiência interior das solteironas-casadas.
Um outro Lapa, que em tudo se parece com um
certo Lapa, sacode o capote e considera que não
há nem últimas, nem antepenúltimas imagens
(todas as imagens são a ganância gasosa do
intermezzo), mas um ostinato veemente funky para
um requiem à memória de jardins selvagens com
Fragonards a coçarem os pentelhos neo-
abjeccionistas atrás de uns arbustos.
Noutros tempos um terceiro Lapa sentia-se muito
chinês, enquanto Byars cantava cavatinas com a
convicção de que o dórico se adequava mais à
perfeição. Lapa escavacava-se em dísticos. Cavava
dali mais colérico. Cultivava um estilo laico de
quem fuma cigarritos e dá cabo do fígado com
alcoóis, mas pretendia-se sacerdote nas horas
vagas. Farejava com perícia as ossadas de fulano
e sicrano, as máscaras cegas pele detrioração da
pele. Ele era o coveiro fantasma, pai de Hamlet
reencarnado parodiando com cigarrinho ao canto
da boca o monólogo shakespeariano. Ao lado da
sua consciência está o paupérrimo Yorick. Na
morte são todos paupérrimos, mesmo os faraós
nas suas pirâmides agarrados a belas imagens. No
seu teatro de esgravatar, recitava discursos sádicos
de príncipes debochados, ou costumes canibais da
Mauritânia, e os finos cabelos de Ofélia, já
devorada pelos vermes, eram sensuais nas suas
mãos calejadas. O testemunho como mistério
sofistico que revela fósseis. As céleres harpas
célticas das Górgonas. As Harpias certas
sopranavam outra vez um “she’s gone” ou um
“kiss my jewel”. Era uma música crepuscular e
frígida. Vinha da menstruação como algo que
macula o universo. Lapa gostava do carácter
impuro e menstrual do mundo. Byars não sabia se
a menstruação era ou não perfeita. Lapa achava
que a menstruação proporcionava uma facilidade
mediúnica. Byars lambusava-se todo com as
perfeitas ancas das lolitas porque eram uma prova
do prazer da matemática. Ismene, vinda de outras
tragédias e comédias, desaprovava em parte a
baba de Lapa e Byars porque nenhum deles sabia
o que é o eterno retorno da menstruação e a
raridade exuberante das lolitas.
Imagino-me roncando ao lado de Lapa e Byars.

Byars não assentava em paisagens, mas todo ele


era Zen a derivar para Zenão. Lapa era um Zé
Não. Os sonhos dos pássaros (dos corvos)
entravam nas visões demenciais de Lapa porque
ele admirava Van Gogh. A fala própria confundia-
se com uma falta de propriedade sobre o que se
dizia. Lapa era oracular. Byars inquisidor. Lapa era
muito existência e desistência. Acentuava o eu com
o chapéu, e punha-se diante das coisas que
pintava com a angústia narcisista de um pintor
enamorado de uma prestigiosa marginalidade e
de todas as fórmulas que libertam do eu, com ou
sem eu a cavalo. A “libertação” é uma palavra de
ordem – o estilo vai-se aproximando dela, mas a
resistência à libertação é uma astuta terrorista.
Lapa, nesse clima, entoava hossanas oceânicos
lembrando-se do “velho oceano” do conde de
Lautreamon. Ou de uma certa Oceânia de Paul
Klee. Gostava de assonâncias, dos barulhos de
mantras corrompidos, do “budismo sonoro”, para
lá dos pequenos e grandes veículos. Byars tinha
uma curiosidade pouco cultivada sobre os
Essênios. O Sopro ateu de divindades
materializáveis batia nas faces dos ambos os
destinos. Lapa achava as mães curativas. Byars
gostava de beijos cegos e do amor de Jocasta por
Édipo, como um amor perfeito e mortal.
O bandolim acompanhava o coro da missa e
vislumbrava-se nela (nessa Antigona moderna que
não se desgrenhava e que até ia ao cabeleireiro!)
a rapariga que fora menina e moça e que agora
se fechava em torres de copas, uma espécie de
Alice já de meia-idade a pensar nos pais com o
ressentimento das psicanalisadas. Também ela
tinha visitado terras a Oriente e a Ocidente e
achara o mundo banal. Sabia que a luz de Lisboa
era incomparável. Ocultos montes híperionicos,
paisagens gregas de Holderlin em que a paixão e
o retorno dos deuses era uma coisa agreste e
ideal. Imaginava os orgasmos de Orestes,
recuperado, resgatado ao abraço das negras
Keres. Lapa reconhecia nas tragédias uma
inclinação forte, mas pedia mais riso, exigia mais
chispalhada joyceana. Byars considerava que o
ouro curava porque a sua estabilidade química é
expansiva. Lapa confessava que Empédocles era
como ele e que o filosofo é um deus, e que as
vulcânicas terras estão ao seu dispor como um
tapete que se estende para a imortalidade. E que,
ó cliché, os espelhos cegam. Nem Lapa nem Byars
saboreiam brumas místicas, a não ser que se
desenrolem com paisagens insonsas e caligrafias
com ar de espontâneo. Mas mesmo os rolos
chineses são eróticos no como são tocados. Byars
gosta de tirar da sua cartola belas paisagens
chinesas, mas prefere escrever em papel de seda
com cores de Barbie. Lapa acha que as imagens se
afinam como alfabetos. As conversas são o
testemunho com o vazio por cenário da sua solar
solidão animal e sexo descaído. Como a nua
identidade da nuca.
No duro canto entrançava serpentes. O timbre
serpentino irradiava algo curativo e abraçante. O
odor meridional da mãe. A tradição fulcral do
negro. A reparação ágil de uma morte acontecida
ou a “a acontecer”. As flautas da terra… que das
raízes soltam o seu suor de comunhão. Ou a
barca de negro de negro construída. A barca em
que nos desnudamos da luz provisória. Teu nervo
hoje é dor. É negrura de cor em tintas de esmalte
sintético. É prisão com Catulo e Propércio e Tito
Lívio. É sombra de Milarepa sobre a neve, como
um nirvana negro. Na lépida mão que remove as
pedras do tempo. Ou: como uma mercadoria que
celebra o seu ofício – liberta. Constrói o
pensamento a partir da côdea. Arranca a mão
com a mesma mão. Morde o dente.
“Tu também, Delalande!” (“toi aussi, pierre!”)
Descem e sobem os elevadores da memória e não
são silenciosos. Tu também, meu filho
abrutalhado! Byars está convencido de que a
extravagância leva ao rigor, a um rigor árido como
o deserto ou decadente como Veneza. Onde
estamos a terra é seca mas há vistas amplas para
o mar. Ver o mar já é passear, é estar mais fora do
que cá dentro – acenava o publicitário serviçal num
gabinete da consciência. É como se estivéssemos
na Arrábida armados em arrábidos. Lapa acha a
prisão propícia para satoris. Leu muito e escreveu
pouco.- A grelha presidiária é a mesma grelha do
neolítico e das grandes religiões agrárias. Para
Byars a grelha é a promessa aventureira de
evasão. A evasão exemplar, como a de Casanova.
A evasão exuberante. “Mas não te livras de
Veneza. Levas a prisão dentro de ti e terás vontade
de um dia vir a ser outro esbirro!”. Byars sabe que
há um livro chamado Marfisa Bizarra de um tal
Gozzi. O Gozzi dá-me gozo. E um título como a
Marfiza é já um prazer, simultaneamente
decadente, excêntrico e aristocrático. Julga que
esse livro está escrito numa majestosa métrica, mas
não o leu. Inclina-se para a rima como se esta não
fosse banal. Faltam regras douradas na prosa –
pensa Byars. Mas depois corrige-se: “a prosa
contém a rosa e o rosa”. O rosa é a cor da aurora,
a cor Homérica, dedilhavel, que anuncia o
dourado disco solar. É como o púrpura
empalidecido. As mãos da aurora pressagiam a
regular cavalgada de Apolo. O ouro por vezes faz
palimpsestos com romances cor-de-rosa. Os fins
dos romances cor-de-rosa são perfeitos.
Empédocles vestia-se, como Byars, com trajes
dourados. Talvez Empédocles se vestisse por vezes
de rosa.
Lapa pensa em macacos que o mordam, mas em
Lapa tudo é anfíbio, um pouco terrestre e aquático.
Lapa exorta-se a si mesmo a fazer quadros
cosmogónicos, sobre o abismo. Só o abismo
possibilita o Buda. Byars considera que o Buda é
uma petrificação, e que este estabeleceu um pacto
com as Gorgónas. As estátuas do Buda são belas e
imperecíveis, mesmo quando destruídas
ritualmente por talibans. Quanto maior e canónica
for a estátua mais consequente é o Buda. Lapa
julga que o Buda é figuração fugidia do transitório,
como um vulto que se escapa. Como a total
ausência de aura. “Mas depois começas a achar
brilhantes as trevas, como na Teologia Mística do
Areopagita”, diz Byars. “Mas tu também gostas de
ser fugidio como um Buda, e apareceres em pontes
e jardins ao crepúsculo”, replica, como um
pelicano, o bom do Lapa.
Os críticos e os amigos pensam que Byars
comunica mesmo alguma coisa, como se
comunicar fosse uma passagem para a morte. Pela
boca, pela mão, pelo acto amoroso e pelo
mastabismo (Lapa acrescenta – “o mastabismo é a
masturbação”). O kairos, enquanto kairos, é um
rito de passagem. A civilização, a natureza e a
exótica biografia coincidem nele. “Então foi por
isso que foste morrer ao Cairo” – disse Lapa. Byars
tinha a lógica das homofonias. Gostava de nomes
acabados em Stein (Wittgenstein, Gertrudes Stein,
Einstein). A entrada nas portas auspiciosas da
morte faz parte da lógica do kairos. Todo o tempo
se despede do tempo. “Todo o tempo é um strip-
tease despropositado para a morte!”. Enganas-te,
Byars, a morte é uma ilusão dos vivos – acrescenta
Thomas, o amigo, abrindo uma garrafa de
champanhe.
Havia o colonialismo e havia uma revolução. Os
revolucionários morrem em territórios bucais e em
buracos no mato árido de diversas partes de
Africa. A revolução é espumosa. A revolução é
espumante, acrescentava o Bravo (o porreiraço!), e
se o espumante for franciú ainda melhor. Bravo dá
conta de que as colónias levaram à revolução. A
guerra colonial foi o segundo grande êxodo dos
portugueses e o primeiro retorno a sério. Sem
glória e com violência. “De repente esta tribo de
bichos lusitanos vê-se metida, sem o querer, numa
novela do Conrad. É o Heart of Darkness com
Kalashnikovs e G3”. “Foi uma coisa entre o turismo
e uma versão menos oriental, e menos pedrada,
do Vietname.” “E depois tudo parece regressar,
como diziam os intelectuais, em pura perda, e os
que regressam não encontram nada de familiar,
não são como Ulisses. Ítaca ficou em Africa.
Portugal não é nem uma ilha nem um lar.”
No intelect, no ardour is redundant! Até se tornar
redundante ou mote de redondilha.
Julgas que ainda és pai, mas não passas de um
badameco! Dizia uma das mães dos filhos dos
artistas (não sabemos se de Lapa se de Byars). É o
ângulo da progenitura, algo triste. A mãe faz
libações. Sente-se em má forma e desesperada.
Quer ir para casa mas está em casa. A casa está
num caos. Ela está num desvario. O desvario é
variável. A mãe tem por alcunha a Ismene
(também a chamam de Irene em homenagem a
Ireneu, um colecionador de heresias). Lembra-se
de Antigona, a indestinada. Lembra-se dos
espelhos e das provas de roupa e da excitação
com a Elle e a Marie Claire. Lembra-se quando
limpavam os copos ou quando estendiam os
lençóis. Lembra-se da arquitectura húmida de
Tebas e de como também havia uma cidade com
esse nome no Egipto, segundo alguns viajantes. E
depois ainda se recordava de idas à praia nas
férias e de terem ficado a observar os corais. Elas
agitavam os abdomens sexys para o futuro. São as
hormonas, dizia Édipo. As hormonas trazem
harmonia, acrescentava Jocasta. Mas só depois,
disse o Corifeu.
Tão fácil como uma Série. Lapa pintava
exposições, isto é, séries que se davam a ver
enquanto se expunham. Séries que variavam &
avariavam. Avariações formais como grandes
flagrantes pornoecológicos. Séries sedativas que
convidavam ao abandono. Não são pintura?
Parece que são só exposições “filosóficas” que
convidam a mudar de vida? Osculando estômagos
por debaixo da pele. Transcorrendo números sem
o prestígio das cadeias áureas e dos Fibonacci.
Não. Nada aí predispõe para o prajna, para a
“sabedoria feita carne”, feita coração, feita
recitação. O prajna é que indispõe para o prajna.
É só na indisposição, na existência que algo se
subtiliza e rebenta. Nem uma baforada de
literatura nos salva, nem a firme transcrição de
textos libertários com cenas eróticas macacas, nem
a altura máxima da tragédia com o seu hino que
escorre para segundo plano e a voz imaginada do
corifeu num grego que se calhar nem era hierático
ou ritmado. Nem as sereias, putas de vanguarda,
prontas a raptar e a dilacerar.
O destino desenrolava-se como a variação de uma
vastidão? Ou como a vastidão de uma variação?

Uma exposição como uma exo-posição, como


quem está de fora. Delalande não escreve, apenas
regista exo-posições.

Delalande filma a seiva e as metáforas em vídeo e


acha pedante a civilização, mas não se escapa a
ela: acaba por ser um artista contemporâneo
flirtando com as suas contradições burguesas. E
tenta avançar com bombas de napalm para as
últimas zonas de cultura onde se vislumbram
cabecinhas de velhos intelectuais decapitadas por
maoístas ferozes com catanas na boca e
metralhadoras ao ombro.
Pierre Delalande acaricia os seus cornos.
Delalande crê ser uma paródia bastante
interessante de Byars. Renato Ornato, que é todo
ele um cozinhado retórico, é de uma forma muito
parecida, mas mais antiga, um pastiche de
Adorno. A Lapa agrada-lhe ler Adorno na praia.
Adorno tem um prazer especial em se ler a si
mesmo na praia. A prosa irritante, snob e
dilacerada de Adorno. Porque detrás da prosa de
Adorno temos os gritos malucos de Artaud. Um
Artaud capaz de mijar numa conferência para
cima de Adorno. Depois Adorno toma banho, acha
Artaud de mau-gosto e superficial, vai ao gira-
disco, mete um disco, senta-se num sofá e escuta
música dodecafónica. Uf! Webern! Sente-se mais
limpo. Será que ele ainda é o que é apesar do
“solipsismo tabu mimético”. É ele um pé-de-boi?
Fede ele a foda? Ornato não se eriça na arte de
manipular a retórica de Adorno. Ornato adora
Adorno porque acha que o Adorno contagiou o
Lapa com a sua “negatividade” estética. Uma
negatividade limpa, passada por agua, enxaguada
e enxuta com um pano bem engomado. E Ornato
sabe que o pai dessa negatividade é Górgias, e
que a coisa de Górgias passa para Hegel, ou vai
parar a Nagarjuna. E Ornato é ciente de que a
negatividade de Nagarjuna chega a Lapa através
dos manhosos manipuladores de sofismos do Zen,
sejam chinocas, japas ou os desbocados e
pretensiosos gajos da Beat Generation. E também
tem a banal certezinha de que a negatividade
hegeliana se infiltra como uma insidiosa serpente
na prosa escarafunchosa de Adorno com muitas
inclemências dialécticas e resíduos poeirentos das
travessuras de Górgias. Thomas ouve a conversa e
diz que sim que o elenkhos de Górgias afina
indirectamente a radical lógica refutativa de
Nagarjuna, que ele até já escreveu sobre isso. E
que Hegel também contaminou Stirner. Ambos
gostavam de cerveja, mas Stirner gostava ainda
mais de cerveja. O Stirner é mais solipsista. O
Hegel é mais tabu mimético. “O que os professores
de filosofia não vêem é o lado profundamente
carnavalesco de Hegel”. Ornato vai mais longe e
acha que Hegel dava uma boa corista, redondinha
carnuda e grosseiramente sexy. Mas Ornato não
gosta de cerveja. Ornato acha que os bebedores
de cerveja são uma tribo boa para inflacionar os
solipsismos. Provavelmente Adorno não bebia
cerveja. Falta-lhe a jovialidade hegeliana, mas
gosta da praia, está quase nu na praia, e Ornato
não vê nem Hegel nem Stirner na praia. Vê Hegel
a flirtar alunas e Stirner a palrar numa taberna e a
pedir mais um pratinho de rojões algures no Porto.
Ornato lembra-se de que Lapa lhe dissera que há
uma altura em que se começa a perceber Kant e
nos damos conta de que todo o esforço foi vão,
porque é de caras. Kant é um tipo que se lê no
cabeleireiro enquanto se espera ou quando o
cabeleireiro se cala. Kant não é para porteiras. As
porteiras preferem Descartes, e se atentarem bem
a conversa das porteiras toda ela é uma soma de
intrigas que conduz sempre à relevância da
criatura porteira, uma criatura que, como todos
sabemos, é relativamente irrelevante. Kant, pelo
contrário, foi feito para os salões de estética e é um
tipo da era dos toucados exagerados. E se
atentarmos bem há algo de eriçadamente capilar
nas três críticas e textos adjacentes.
E os navios passavam obscuros, decadentes, a seu
bel-prazer, no horizonte sem ritmo, vago, alheio. E
os raios de sol não acariciavam absolutamente
nada. O coro diz que a moleza esconde algo – a
doçura, os beijos moles, os cabelos loiros das
crianças, a lividez dos velhos, tudo isso oculta uma
imperiosa necessidade de mudança, o que não é
enigmático. O piquenique é o pronuncio da
guerra. Delalande vê guilhotinas em cada
domingo passado integralmente na cama – Maria
Antonieta é o corpo bíblico do terror
revolucionário. E, depois da conversa anterior,
Maria Antonieta lembrava-lhe e Kant, e de como
há algo adolescente, limpo e perfumado, como os
quadros de Boucher, nas malandras das
antinomias ou na “anatomia da beleza” de certos
contemporâneos do dito cujo filósofo. O
marmoreado rosa das carnes é o belo, decadente
mas com aspecto jovem, o caminho para o
sublime começa nos pentelhos – acrescentou,
babando-se Ornato.
Doce, açucarado Tamisa, segura as bainhas do
meu manto: diz Byars já um pouco bêbado. Byars
ainda não tem banhas. O seu cabelo cai do
chapéu como um índio fascinado com os
ocidentais. Byars despede-se do falso pudor da sua
brancura. Sabe que os seus trajes pouco banais
comentam com desdém e má consciencia a
perfeição da nudez dos índios e que os ocidentais
se vestem como quem disfarça uma centenária
decadência.
Lapa corre para os lavabos e vomita o tinto.
Ornato sente-se sulfúrico. Ismene, a querida sente
que os adjectivos que se ajustam a si são pouco
excelsos e baratos. As suas mamocas, estão com
ela como coisa abraçável. E o luar, refúgio dos
solitários, ninguém lho rouba. Ismene tem um certo
tesão. E o seu sexo está mesmo ali entre as pernas,
graças a Zeus. Mas é pouco. Ela sabe que os
homens em volta dela estão repletos de um cio que
a torna mais luminosa. Os homens pouco mais
têm do que um cio obsceno e um coração
inapropriável. São papagaios estéreis de um
desejo sem precisão. E no entanto Ismene sente-se
veludosa e voluptuosa e volúvel, mas resiste a
tornar-se uma despeitada puta, isto é, o errático
sexo, sagrado porque interminavelmente
profanável. E os homens vegetam a seu lado com
o seu vigor vulnerável.
Dizia Lapa: podemos avacalhar a Forma? A Forma
como uma adolescência, em crescimento,
borbulhosa, em busca de uma adiada e odiada
maturidade? Byars não temia nem a maturidade
formal nem o prestígio museológico, nem as
vitrinas, as luzes baixas, as vozes respeitosas, a
adoração dos crentes e o gang dos comentadores
que gastam as suas oratórias balofas como se
estas já fossem o papel de parede (com alces
cornudos) da posteridade.

Dizia Lapa: para onde se move esta massa de


coisas algo caóticas, de existências desfeitas, de
formas a diferir, de variações alucinadas e fora de
contextos explícitos? É a questão de Motherwell –
que fazer com estas manchas, quando as manchas
dizem a mácula original, a impureza da qual tudo
parece derivar. A hybris é a constância na
degradação universal. Não há justiça, como
imperativo ou lei, que justifique uma compensação
de actos com actos. Aí não sou um budista tardio.
Vejo-me livre e emancipado dos arrepios e da
crueldade do samsara? Ainda não...

Acrescenta Ornato: A esta argila “ontológica” falta


sensibilidade? Género excremento dórico com
divinas proporções a trambolhar?
Byars sente-se um peixe a ser transportado para
um avião. As vidas dos outros entranham-se-lhe
nos dedos, como destinos que deixaram de ser
postiços. Byars beija uma hospedeira italiana ao
entrar no avião. Sente-lhe um sabor a presunto.
“Sabe, colecciono segundos e coloco-os num
museu. Estes segundos serão sempre preciosos.”
Lapa, mais machista e prosaico, acha que o rabo
da hospedeira parece uma abóbora de um conto
de fadas. “Daqui a bocadinho as nádegas da
hospedeira vão-se transformar numa carruagem!”.
Entrar num avião é penetrar num conto de fadas.
“Era um Cristo seco como um cepo, sem pai que o
abandonasse e sem mãe sexualmente virtuosa.” É
a tradição católica: o divino torna-se mais íntimo
depois de avacalhado. Género: um Manitu de
piassaba. Lapa lembra-se do arroto do Bravo no
campo de básquete como uma revelação. Bravo
achava excêntrico isso das vacas sagradas:
resquícios de um tempo em que o sacrífico exigia
substância. “Nós somos do tempo em que a única
coisa sacrificável é a consciência”. “Achas que é
aplicável a Melville?”. “Não sei, mas quando
passeio espero ver baleias aparecerem de uma
forma inesperada. Mesmo no meio do campo. A
baleia é o que precede a separação das águas das
águas. Passeio-me como Milarepa e a paisagem é
uma baleia que também me passeia.”
Na oração há uma imploração sexual. Pede-se aos
santos e aos deuses mais do que aquilo que eles
podem dar. Byars imaginava os santos em versões
Sado-Maso. Só assim é que faz sentido. Mas Byars
também cultivava o amor como forma de
admiração obstinada – escrever cartas como modo
de veneração. Byars escreveu cartas a Beuys como
a um deus que está a morrer. Deslumbrante mago
dos feltros e gorduras. Beuys e Byars tiram dos
respectivos chapéus coelhos alquímicos e leões
verdes.
Lapa cultivava o espólio do grito. Tinha gavetas
cheias de barulhos distintos, de onomatopeias
naturais ou emocionais, de sussurros e ralhetes, de
choradeiras e grunhidos de êxtase.
Não sei se Byars fazia perguntas assim:

1. O excesso resolve-se em subtileza?


2. As totalidades transbordam umas nas outras?
3. Aos partos místicos sobram placentas?
4. A consciência é uma centrifugadora?
5. O corpo é um instrumento que filtra o vazio do
cheio?
6. O que é que é necessário conjugar para algo
emergir?
Taboo sonoro. Isto em forma de canção de coro
alentejano. Alto aí boo! Canibal boo! Taboo tóxico
com enfermeira a chatear porque te apetece fumar
no hospital e tu querias é, ó malandro, apalpar as
pernas depiladas da menina. Horror tubo tabooo.
“Apetece-me arrancar estes tubos todos que me
enfiam pelas guelas adentro!” A trama-taboo dos
livros do Burroughs com a prima a perguntar “o
que é que estás a ler?”, “nada que interesse à tua
baixa estatura de prima curiosa a visitar o primo
doentinho, mais valia que ficasses a aturar o
estúpido do teu marido em casa”. Araras celestes e
vermelhas entram no quarto e desfazem a prima. A
enfermeira aparece nua e tem umas ancas
bíblicas. Nem Lapa nem Byars têm força para a
apalpar. A lubricidade pode leva à melancolia.
A tarde rola com a calma enquanto o avô de Lapa
alveja com a caçadeira rolas. É uma banal
recordação de infância. As irmãs estrelas farejam a
linha do horizonte e o filho-da-mãe do mestre sol
(que deus tem e não tem) desaparece com
naturalidade neste mar pouco nosso, muito
ocidental e sem nada de concreto a imaginar no
outro lado (é a América, ó minha g’anda
bestunça!). Byars nunca se arquitectou como um
homem depois do mar, depois da Europa e depois
da morte. Não é a tua morte que é perfeita, Byars.
É a tua eternidade. E como todas as eternidades é
aborrecida. As araras arejam-se no ar árido da
noite refrescante. “Vai alta a lua na mansão da
morte.” (citação estudantil!) Vai dúbia a eternidade
cambaleante, como uma velha que pragueja
desdentada. E vai a soror marina, já gorda,
abanar as suas mamas quando sacode as colchas
nas janelas do convento. Nenhum cavaleiro a
deseja e já não escreve cartas num arrepiado e
falso francês clássico. Toda o bom macho de Évora
lhe deu a beijar seu orgão imaginário. O seu ouro
clínico. Alcufurada chora madalenamente. E volta
a sacudir mantas, lençóis e toalhas. É bom sacudir!
Do Caderno de Lapa:

Marina era belíssima com um pote na cabeça a


andar descalça indo para a fonte pelas verduras.
Mauritânia era um país com nome de moura, mas
lembrava-lhe a prima Tânia, morenaça e um
pouco patifa. E tinha uma Tina irmã, que era,
logicamente, mais atinada e que bordava com as
tias-avós na soleira da porta. E havia Miriam, uma
ruiva judia, que lia Dostoyevski, e acabou por ir
viver para a Turingia e casar com um fricolé boche.
E a Muriel, que usava umas túnicas que lhe davam
um ar de Antigona, com sobrancelhas espessas e
um olhar severo, sempre inclinado como uma
guilhotina sobre os despropósitos masculinos. E a
Soror, professora, domadora de almas jovens no
Alto Alentejo com chicotes eclesiásticos. E a Maria
que comia tâmaras com um ar alarve debaixo dos
arcos da praça e que parecia que havia de comer
toda a fruta do mundo. E José, o caco, saído de
um quadro do Velásquez, desdentado, mais neo-
realista que os neo-realismos. E o sapateiro de
cócoras trabalhando num andar muito baixo
dando para a rua, com uma grande tesoura a
cortar panos atrás de panos. E a avó sentada na
cozinha. Com o pilão na mão. Migando.
Escortinhando. Misturando baldroegas, lavando
alcachofras, descascando beringelas, estufando
inhames, polvilhando os assados com alecrim.
Exagerava nos alhos e nas cebolas. Fazia uma
horrível sopa de nabos. Cheirava nos aventais a
legumes e nos peitos a carnes secas.
Renato Ornato tinha um Oh! Entalado na
garganta, um espanto que implorava o Riso (“o
espanto é a eminência do riso”). Renato gostava
da forma como Durer desenhava os cabelos
encaracolados descaindo dourados, com uma
ondulação geométrica e ao mesmo tempo natural.
“A beleza é bípede. Precisa de perninhas para
andar”. A afirmação era pouco convincente, mas
Ornato não cultivava o estilo convincente. Também
apreciava os cabelos encaracolados, mais negros e
prostituídos, dos adolescentes de Caravaggio. “Eu
sei que são um cliché gay. Há algo de balcânico
nestes gajos”. Ornato sabia que o Caravaggio
vivera em Malta, mas a pintura dele cheirava-lhe a
mijo romano. Um mijo misto de puta e cardeal.
Uma eminência de perigo na viela. E numa janela
de um segundo andar alguém improvisando num
arquialaúde.
“O caminho não-òptico para o visível”. Todos
sabem que a frase é de Klee. “Não sei onde é que
começam os caminhos não-òpticos, mas onde há
formas os caminhos são òpticos. O Spinoza, que
polia lentes, sabia que todos os caminhos,
filosóficos, pictóricos ou mesmo matemáticos, não
dispensam o òptico”. (observou, muito redondinho
Ornato)

“Sou escravo da minha criatividade” – replicou o


Picasso que estava num cantinho armado em bom.
Mas nem Byars nem Lapa o escutaram a sério.
“As frases visitam-nos, mesmo quando as primas
vão ao hospital, ou até quando o amor é o centro
das nossas existências concisas ou angustiadas.
Parece que as palavras querem ser vestidas de
diversos modos, e então a frase surge como uma
extensão, um capricho do estilista.” Mas Lapa
tencionava ignorar o estilo como força. Nisso
diferia quer do Batarda quer do Herberto. O estilo
nele era quando as coisas caíam das mãos. Uma
deferência, mais do que uma virtude.
Os comentadores chineses pensavam nos deuses
germânicos como posições de transição. Não
compreendiam o clímax que se eleva com as suas
trompetas por cima das brumas em que se snifa o
sublime. Quando Milarepa entrava nos sonhos de
Lapa ele recitava poemas ainda mais altos que as
elevações germânicas. É necessário andar pelos
Himalaias para saborear as altitudes filosóficas e
outras que tais. Byars compreendia melhor a
inclinação dos chineses para tetragramas e
hexagramas, porque cada uma destas variações é
como uma cosmogonia, uma justa obliquidade,
uma exactidão. Os chineses fecham-se dentro dos
seus livros onde as palavras dos mestres zumbem
como moscas. São homens aprisionados pela
vontade de comentar e de venerar as vastas
nádegas do mestre. Sabem que o excesso e a
desordem são temíveis e que neles a solidão é
dolorosa e desfaz as famílias. Os ocidentais
gorgonizam quando inventam cânones para as
estátuas. Na Grécia a estatuária era a gargalhada
paradoxal de quem avança para a morte – o
Kouros é já uma forma de gorgonizar. E depois
veio Górgias, o Sofista, e escreve um tratado sobre
o não-ser. Para Lapa o não-ser é a distância, o
imaginário, o no mans land. Górgias gorgonizou-
se e fizeram-lhe uma estátua em ouro. Paródia
óbvia das vestes de ouro de Empédocles, seu
mestre, discípulo por sua vez de Parménides onde
a esfera que é o Ser só pode ser dourada. Não há
nada para além disso. Um é que é esfera e ouro.
Nem tudo na Grécia é olhar, mas parece que há
uma pulsão em tagarelar sobre o visível. Mesmo
quando se fala de uma harmonia escondida é
como se o olhar vislumbrasse florestas de forças a
lutarem para se fazerem formas, desejosas de se
teatralizarem. Antifonte vai mais longe na
presunção e só tem olhos para o que se dá a ver e
nada mais. É-lhe estranho alguém que corte
prepúcios para celebrar pactos com deuses
invisíveis.
Byars procura cidades sobrepovoadas – Nova
Iorque, Tóquio, o Cairo. São cidades cuja escala
descentra os seus habitantes. As criaturas dessas
metrópoles só encontram compensação na
intimidade, como se as sombras e os sonhos
fossem seus amantes ou a certeza de uma
condição espectral. Nestas cidades somos
supérfluos e haverá rapidamente quem nos
substitua nas minúsculas funções. É difícil dar nas
vistas em cidades assim. Byars consegue esse inútil
feito. Mas essa inutilidade funciona como um
encantamento.

E o dileto dilema dissolver-se-á no lema dilacerado


de eczemas.
Além de Thomas havia Brockman, o velho amigo
de Byars que criou um centro milionário para
perguntas e convive com gente com pipas de
massa. Thomas fazia perguntas derrotistas e
recolhia-se a um cepticismo calculista. Mas Thomas
também é um mestre na arte de ganhar dinheiro
em curadorias. Brockman excitava-se para
perguntas lucrativas. Byars só queria perguntas
poéticas e perfeitas. Os três eram agora velhos
friques que tinham triunfado da indeterminação
“on the road”. Podiam dar-se literalmente ao luxo.
O que conjuga é o que de remanescente renasce.
Os contrários, as antinomias, as
complementaridades existem como um prato forte
na artephysis de forças a colidir ou a integrar, a
anular-se, a respeitar-se e a sensibilizar os actores
que por elas são empurrados para situações em
que a guitarra portuguesa se esgana por reduzir a
meia dúzia de acordes com um acompanhamento
(à “viola”) ainda mais banal.
Byars exilava-se nos duomos, sobretudo
renascentistas, com plantas simétricas, belíssimas
cúpulas e mármore omnipresente. Lapa tinha
colegas de infância que eram fornicadores de
vacas, por necessidade e por desgraça. Depois
oravam em furdas e confessavam essas
atribulações à mãe-terra. Os coelhinhos sabiam
que a mãe-terra é um sítio excelente para pularem
e vislumbrá-la mascarada de branca-de-neve. O
céu também ama essa branca-de-neve e vai ter
com ela assim pró ciumento, vestidinho de
unicórnio. O emparelhamento da branca-de-neve
com o unicórnio só pode ser auspicioso.
Quando principia o fim, ou se finaliza um inicio.
Uf! Lapa sabe que o caos é não só provisório (“do
caos surge sempre uma nova ordem com a
apropriação criminosa do mundo que não tem
dono!”) como propício para mais coisas. A forma
ainda não se encontra fechada, fervilha com uma
agressividade pubretária. É a apetência para a
algazarra, o chinfrim, a sexualidade imatura. Byars
tem a certezinha absoluta que o legado não é
desta fraternidade desordeira, mas dos
construtores de zigurats, dos prescrutadores de
estrelas, e não do dissídio dionisíaco. A pedra de
Meca. Os lingam tantricos. A cidade proibida em
Pequim, e a esfera armilar como aparece nos
Embaixadores de Holbein (algo que está ao lado
da morte anamorfisada). A esfericidade do mundo,
a divisão em hemisférios, paralelos, meridianos e
outras belas designações compensam em
imanência a desmesura dita infinita do resto do
Universo, demasiado inacessível. O resto do
mundo é como um vazio que irrequieta
sublimemente a nossa mediocridade exemplar –
um vazio amplo e escuro, bom para budistas se
aquietarem.
O obsessão do livro esférico, cúbico estrelado e
outros casos de que seremos cativos é em Byars
uma “como que resposta” à atmosfera do livro em
Borges. Quer em Byars quer em Lapa, o caderno,
as notas, os planos, os esboços surgem como
palácios do diagrama – palácios pobres e
efémeros no caso casual de Lapa (palácios
abarracados!), e religiosamente polidos na
arquitectura interrogativa de Byars. “Livra-te do
livro quando te entregas às notas!” Por outro lado
o livro é exacto quando se encerra sobre si mesmo
e sabe emudecer, dilacerado por só haver leitores
inapropriados. O livro em Borges e em Byars é
possibilidade apocalíptica com tendência a
desembaraçar-se do tacanho escoliasta. Mas
Borges é o comentador cego de livros que se vão
tornando mais e mais abstractos. Então invade-os
uma nostalgia das coisas e da visão antiga e
esplendorosa – os planos abstractos e as
possibilidades combinatórias vão-se povoando de
recordações, de metáforas polidas e sugestivas, de
uma vontade de realismo exemplar, sem
intermitências, sem especulações disparatadas à
mistura. Sem as notas que preparam o poema.
Mas em Lapa tudo parece intermitência, caderno,
divagação despropositada. Uma cabana mal-
acabada feita na praia. O importante é apanhar
conchas?
As proezas de Hércules confundem-se com
“flagrantes eróticos” na mente também confusa de
Ornato. Antigona, em contrapartida, sente um
certo horror perante a porneia. Quase lhe prefere
a morte. Fica com o rosto em lágrimas de
comoção quando vê o coro da tragédia ser
sodomizado por uma tribo da canibais polinésia.
Mas mesmo assim o coro ainda solta moralidades
gemebundas. A propósito destas moralidades
Delalande, depois de uma noite muito mal
dormida e com escarafunchosos pesadelos,
apontou as seguintes notas:

a) A África misteriosa de negros “puros” para o


ingénuo antropólogo e estupidez para o mau
colonialista tinha perdido a sua estupidez e
ingenuidade antropológica.
b) Os missionários continuavam a missionar sob o
zumbido dos mísseis.
c) Há frases que não conseguimos reaproveitar por
mais que elas fervilhem de revelações.
d) Ismene pensa em emigrar para a Argólida porque
viu o seu pai enforcar-se em Atenas e os corvos
devorarem o cadáver pendurado.
e) A Hidra dá-se bem com escalas pentatónicas.
f) Ramon Gómez de La Cerna diria que a Hidra é
quando depois de bebermos cidra perdemos o cê.
g) Tinha a chave da arca de Noé no sítio do sexo.
h) Fugira de uma ordem maluca e encontrara o Duffy
Duck a praticar voudu numa encruzilhada de
Acapulco.
i) Confundia a palavra chavala com javali.
j) O autor deste relatório tornou-se prolixo desde o
início porque a quantidade de influências era
demasiado estimulante.
k) Os vasos Micénicos condensam o neolítico e
vociferam a geometria como irmã rítmica dos ritos
funerários. Os cavalos relincham, mas são as
rodas dos carros de combate que marcam a
métrica.
l) O provincianismo vem estimulado sexualmente nas
miudezas mais irritantes.
m) Parece que toda a emotividade é sagrada, mas há
formas de emotividade que são muito degradantes,
assim como há coisas sagradas que são
horripilantes.
n) Branca-de-neve era um travesti. O seu verdadeiro
nome é Bronco-dos-nove.
o) Sabemos que a Fénix se alimenta de carne
humana, mas não sabemos porquê.
p) A monstruosidade é um acepipe dos mosteiros.
q) Byars inventou um medidor de velocidades de
ideias. Isso não satisfez o seu afã inquiridor.
r) Lapa tentava-se libertar das suas ideias com ideias
ainda mais esquisitas que se entranhavam na
carne e lhe faziam ainda mais rugas na sua testa
de ET.
s) A letra tê ergue-se muito totalitária de forma a ter
as outras debaixo dos seus braços.
t) Que Apolo fere de longe todos o sabemos. Que
ele mata os que mais ama também. Byars
compreendeu que a perfeição é uma tímida
devoção apolínea. Ou uma vocação absoluta. A
partir desse momento deixou-se ferir pelo hálito
dourado do deus.
u) Os oráculos são perguntas. Os destinos as
atabalhoadas respostas. Byars concentra-se na voz
trepidante do oracular.
v) Os garanhões jogam póquer e as mulheres fatais
começam a ficar fétidas ou um pouco fumadas.
w) Do alto da torre de Babel jorra para um lado um
rio de leite, e para o outro um rio de mel. Cá em
baixo mulheres diligentes tricotam as barbas dos
santos. Os filhos destes e destas, inconscientes,
entregam-se às atribulações das tauromaquias. Os
mirones de ocasião divulgam, a propósito de
eventos do género, fábulas fresquinhas.
x) A deusa dos seis seios aleita as seis faces do cubo
e os seus subsequentes devotos.
y) Gostava da inquietação terna da Noite órfica,
como algo que se vai aperfeiçoando graças ao seu
inacabamento.
z) Byars apreciava a bola de cristal das videntes, e a
relação desta com os cheques dos clientes. Byars
gostaria de viver num planeta irradiando uma luz
interna e profética, de limpa e polida superfície,
como uma bola de cristal.
Nos seus passeios Lapa vê uma cobra muito
enroscadinha. Apetece-lhe de imediato mijar em
cima, como se um deus, com voz brejeira, lho
ordenasse. Mais à frente encontra uma caveira
humana. Lapa acha giro e leva-a para o atelier. A
mesma cobra aparece-lhe de seguida vinda do
entulho que ele usa para “construir”/pintar os
“cadernos”. Lapa volta a mijar-lhe em cima. Então
a cobra serpenteia, sobe uma perna do Lapa,
entra-lhe pelo ânus e instala-se na coluna. É assim
a vida.
Ornato idealizava a tragédia grega, e em especial
Sófocles, a partir da visão estrutural, cómica e algo
infantil de Paul Klee. O resultado parecia-lhe muito
estimulante, como se texto, rítmico e linear,
adquirisse texturas e timbres novos. Antigona
discordava. Ela lá tinha as suas convicções
bairristas e tradicionalistas no que diz respeito ao
teatro: “Não há que ser amável com a tragédia.
Perde-se o pathos todo e lá se vai a katharsis com
os rodriguinhos. Mensagem limpa e sangue a
rodos é que é!”

Delalande preferia Ésquilo, e com cenografia e


figurinos de Picasso, o tauromaquista. As
picassadas dão sempre tesão no público e
provavelmente também davam tesão no seu
criador (o tesão criativo compensa o metro e meio
de Picasso?). E Eurípedes convinha a De Chirico
com música bastante animada e achincalhante do
seu irmão Savinio. Mas um De Chirico corrigido,
mais transsexual, com brincos nas orelhas e
cabeleiras postiças.
Adão pouco tem a ver com um Adónis. Adão, tal
como Hércules cai em desgraça. Depois
compreendemos que a desgraça de Hércules e de
Adão é o nosso dia a dia, uma banalidade de
tarefas intermináveis. Burroughs defende (nesta
nossa comédia teórica) a tese de que Hércules
matou Mégara e os seus filhos de propósito e de
que Eva sugeriu a Adão que colhesse uma maçã
para a alvejar em cima da sua cabeça. Adão, só
para a contradizer, comeu a maçã. “Burroughs tem
a mania do complexo de Guilherme Tell”: sussurra
Byars.
“O que vocês queriam era escalopes de Adília
Lopes!”, sugeriram Sónia e Sandra da sua
banheira morna com um ar de gracejo cínico.

Assim bailemos carnalmente, ou lambamos


envelopes! Ao diabo as Távolas Redondas e os
castos cavaleiros! Contentemo-nos com catitas
sonhos sáficos, e deixemo-nos de símbolos
sórdidos! - resmunga o narrador na sua
inconstante consciência.
Beuys aparece em cena com um tambor e dá-lhe,
qual velho frique, para batucar com o seu ar de
xamã profissional. Lapa acompanha-o
timidamente com uma pandeireta. E Byars de
fraque, saltitando e tocando castanholas, entrega-
se a uma dança frenética, obscena e exigente. E
acrescenta com um brilho de anúncio dentífrico
nos dentes e mais além: “adoro coisas bizarras!”
Mas que pardo paradoxo este! Deu-nos para estar
agasalhados mas faz uma caloraça enorme. Lapa
sente um arrepio perante pedras que se erguem
bicudas como obeliscos gigantes, por arranha-céus
naturais, destemperados e inclementes. A
misericórdia dos deuses monoteístas protege-nos
de uma solidão ainda mais profunda e disfarça a
existência com submissos diálogos com Deus. A
impiedade sem compensações de determinadas
paisagens atira-nos para as margens da Doxa,
para o lado exterior à glória e às aparências, onde
o desespero se sobrepõe ao eros produtivo do
picollo demiurgo chamado artista.

Byars come uma laranja e declara que esta tem um


sabor a lápis-lazuli! Tem uma acidez subtil a bico
de pirâmide. Lapa enternece-se mais com a
redondez dos mamilos, parenta láctea dos igloos,
sobretudo dos mamilos alvos e redondos das
miniaturas góticas.
O sublime morre de excesso de Turner…
thhhhhhh…aaaahhhhh. Gauguin retira os cinzas
ácidos às cores de Turner e vai pernoitar na acidez
sexual das ilhas do Pacifico. A evasão do velho
continente tem os seus saldos positivos, mas as
ilhas não o livram da angústia. Byars vê Gauguin
como um pioneiro da “questão”, mas Lapa acha
as questões de Gauguin banais e escolásticas.
“São questões de galinheiro, quid, quo, quod,
quáquá! Gauguin é mais um idealista falhado que
foi fazer campismo ao Tahiti. E é mais outro que
apanha sífilis. O romantismo podia escolher entre
a tuberculose, a sífilis ou suicídio com uma pistola.
O suicídio é a escolha aristocrática, nobre e
corajosa. A tuberculose a fatalidade burguesa de
quem se debruça sobre um piano e cospe sangue.
A sífilis tem um gosto proletário e maternal ao
mesmo tempo. Quando ouvimos as ultimas
sonatas de Schubert sobe-nos uma profunda
tristeza maternal e queremos chorar por todos os
poros. Deve haver uma mãe por perto para
consolar. Mas não há. Do mesmo modo se
percebe que Gauguin foi mais forte do que Stirner
que não conseguiu sair da cerveja, procurar um
paraíso sexual nos tristes trópicos, e morrer de uma
tristeza sem nostalgias e de tentativas de suicídio
falhadas.
Heraclito: Lapa dá-se ao trabalho de fazer
variações heraclitianas. “Em Heraclito há algo que
me faz pensar em clítoris, slurp!” És um tarado,
Lapa! Lapa diz que não, que é apenas um maroto
com tendência para chispalhadas de chistes, como
vem no Freud.
Lapa contraíra um modo estranho de insinuação
inquisitiva que poderia agradar a Byars:

1. A – apresentação obscura do assunto como uma


espécie de contra-resposta a algo algures
formulado. B – silêncio preplexo
2. A – Insinuação ambígua. B – esmiuçamento do
assunto
3. A – negação sugestiva. B – negação abstrainte da
negação
4. A – autonegação. B – recuperação do negado
5. A – alusão reticente. B – confirmação enfática
6. A – relato com omissões. B – transformação
fantasiosa do resultado (adptação)
7. A – critica da “adaptação”. B – defesa logicamente
sustentada da “adaptação”
8. A – suspensão do julgamento. B – reforço dos
nexos lógicos
9. Emotividade expressa em sonoridades quer por A
quer por B
10.A – Nova insinuação inquiritiva. B – Interjeição
céptica
11.B – Interpelação irónica. B – confirmação ambigua
12.A – interpelação irada. B – Refutação apática
13.A - síntese e retoma do argumento. B – adição de
sublinhados pertinentes
14.A - paródia da negação B – negação da paródia
as roupas de byars sugerem que ele pode ser uma
concubina, e lapa ousa mesmo afirmar que byars é
a mais autêntica concubina da arte
contemporânea. mas não vamos meter os
galeristas nesta conversa!...
Lapa recita a Nau Catrineta e lembra-se de
Almada Negreiros. “O Almada acha que achou a
fórmula geométrica perfeita. Pode-se servir como
geometria pura, mas quando arrasta outras formas
o Almada mergulha no piroso salazarengo. As
formas platónicas e afins são belas em si mas
quando buscam uma materialidade um pouco
mais viva o mais frequente é incorrerem no kitsch,
isto é, na inadaptação pomposa e na
ornamentalidade bexigosa.”
Durante alguns segundos, ao passear pelo Museu
de Arte Antiga de Lisboa Sónia e Sandra
constataram que quer Lapa quer Byars estão
retratados nos painéis ditos de Nuno Gonçalves. É
uma coisa disparatada eles terem ido encalhar
neste quadro. Byars foi lá parar por causa das
controvérsias idiotas que nada têm a ver com a
pintura – as delirantes hipóteses geométricas de
Almada e as controvérsias de faca e alguidar dos
historiadores do Estado Novo. A ida de Byars para
o quadro é justificada pela necessidade de
modernização e de americanização. Pelo contrário,
Lapa é a contrapartida druídica, a sua face é a
paisagem que lá falta – “há dois tipos de pintura, o
retrato e a paisagem (a natureza-morta não conta!)
– quando pinto paisagens trata-se de auto-
autorretratos, quando pinto retratos trata-se de
passeios literários, de idas e vindas a literaturas
como se transformasse (o autor escreveu
inadvertidamente transflormasse) os seus livros em
esboços, e as suas narrativas em imagens fixas.
Escreve Delalande: Há uma imagem, comentada
por Heraclito, que é perfeita e brutal – a lira. A lira
exige a escuridão, o lamento, o medo, a invernia.
A lira é o instrumento simbólico do poeta e não o
estilete, a pena, a caneta, a esferográfica, o lápiz,
o computador, que em nada explicitam a função
enigmática e assassina – a vontade de vibrar e
variar, de expansão interior a exteriorizar-se. É da
lira que emerge a subjectividade, consignada no
adjectivo lírico. A lira de Homero dá testemunho da
violência através do duplo da lira, o arco,
sobretudo o arco catártico de Ulisses que enche de
sangue as paredes decoradas do palácio. Mas é
em Safo que a lira se torna algo mais nosso: a
violência interna, o ciúme, a paixão, o abandono,
a tentação suicidária, a hipersensibilidade, o eros
lacrimejante, a exaustão, a frieza, o
arrependimento. Safo prepara Antigona. E
Antigona fabrica o filão ético que na pintura passa
por Motherwell – “a pintura como existência”.
Motherwell é parente de Adorno na radical
informalidade da Suite Lírica (uma homenagem a
Alban Berg), borrões “líricos”, musicais, mas que
de algum modo recordam as paredes manchadas
atrás referidas. As suas elegias são uma
alusão/lamento à Guerra Civil de Espanha, onde,
com brutalidade, ecoa no sec. XX a guerra de
Troia. A pintura como existência, como algo
decisivamente lírico é o contrário do poeta
impessoal de Eliot, e de um mundo de simulações.
Lapa é lírico – é o que interessa.
Lapa mostra-se hierático e velho muito antes de ser
velho. Lapa tem um hieratismo de múmia que faz
inveja a Byars. “Há que cultivar a arte de deixar de
ser novo muito cedo – sobretudo as adolescentes
inclinações de revolta pela revolta. Quando nos
tornamos velhos a função da revolta acentua-se
como um arrepio, ou como um dever, ou como um
despropósito em que nos apetece incorrer a correr.
A alegria de viver é uma condição mental porque o
passado é sempre revoluto e o futuro será
devoluto. Há luto a mais nos dois. O luto da
perspectiva negra e o luto da rememoração dos
instantes mortos.”
Lapa ecoa o pintor Batarda no drama da
inteligência que se introduz como exigência
superlativa: a superlativa exigência “paterna” como
eminente censura, mas que não acontece. A
vontade de ser bom, de ser mesmo muito bom. A
excelência torna-se um censor insidioso que
constrói e destrói – o modelo existe graças a uma
artesania faraónica: a arte de preservar o melhor
para sempre. A mastaba, as plumagens piramidais
(ó Gongora!), e finalmente, depois da igreja e do
palácio (moradas espirituais e humanas), o Museu
como destino rápido e omnívoro de uma ansiada
posteridade. Mas as posteridades fabricam-se a
partir de conveniências e interesses estranhos aos
momentos criativos. Os Museus das artes deixaram
de ser um debruçar-se sobre supostas qualidades
dos “antigos”, com o seu legado que não cessa de
espelhar vigilantes poderes e insubmissos desejos
que com eles co-habitam, para ser o polimento
das “vanguardas” – com mais ascese, mais
espaço, mais legitimidade e mais hipocrisia. A
“vanguarda” alimenta os hálitos incendiários da
museologia, desde que Marinetti incentivou a
incendiar museus. Depois a vanguarda recusa
nomear-se como vanguarda, mas é a sua tradição
que impera com um hálito marcial ou,
paradoxalmente, comercial. Finalmente os museus
protegem os turistas do aborrecimento que as
cidades podem suscitar, embora o aborrecimento
ressurja, já sem o ar livre, nas amplas divisórias
climatizadas, como confronto face a face com uma
espécie de exuberante inutilidade.
Por causa disto Lapa designa-se como falhanço. A
designação é irónica e pseudonómica. É no duplo
que somos autênticos e nos salvamos porque
temos direito ao falhanço. É outro critério. Um
critério que se parece com coisas dissemelhantes
como o desprezo, a liberdade e até alguma
inocência. É graças à imaturidade e fraqueza que
desabrochamos, que abrimos as possibilidades há
muito fechadas e nos escapamos por momentos do
fantasma dos labirintos museológicos. A teoria e a
atitude pode ser pedida emprestada a Gombrowicz
– basta pôr de lado o emproamento aristocrático
para ir procurar sexo irresponsável nos subúrbios
onde o campesinato e o proletariado se tornam
apetecíveis... por momentos. É uma variante do
direito de pernada ou das pastoras do rocaille.
Batarda que percebe o drama de Lapa demasiado
bem, provavelmente não leu Gombrowicz –
Batarda pratica essas incursões (“mentais”) como
coisa vergonhosa, ilegíveis private jokes,
palimpsesto sem acesso, algo que se fecha na mais
melancólica solidão sobre si mesmo.
Batarda, que fala de Lapa como eco de si mesmo,
na saída marota da pseudo-heteronomia, nunca
abandona a excelência, a aristocracia e os
sumptuosos pavilhões da “história de arte” – a
impecável técnica, as altas (e as baixas) emoções,
o detectivismo iconológico, a escarafunchosa
sabedoria enciclopédica e os detalhes
pornográficos – (todo o detalhe é pornográfico?
Não é Flaubert? Não é Warburg?). Lapa, que não
é aristocrático e não tem mão ou cabeça para a
técnica, escolhe uma variante menos opressiva e
inventa Abdul Varetti o escritor falhado. Varetti
designa Lapa como “o melhor prático da ocultação
e da histeria”. Varetti, o polígamo siciliano do
“século XIII” desenrola a ocultação de Lapa como
um manto que o desoculta e des-histeriza.
Epitáfios estenográficos de Varetti. Varetti é um
gramático dos recorrentes “flagrantes eróticos.” A
atmosfera de suposta libertinagem de Varetti
parece misturar Sade e Raimundo Lull. Mas Varetti
(não é verdade Varetti?) não é Sade – está
destituído de crueldade e do apetite da
transgressão pela transgressão. Varetti é um frique
generoso que se passeia pelo Algarve e que tem
uns flirts eróticos numas cabanas improvisadas.
Mas está nú na praia. E a sua nobreza é o
aprofundamento dessa nudez na carne e na alma.
A suposta ingenuidade de Varetti é a evasão que
não nos é concedida sem remorso. Varetti, um
bom betnick, tem a legitimidade que a literatura
beat dá. Bourroughs, Ferlinghetti, G. Corso. Situar-
se na Sicília no século XIII é um piscar de olhos a
Frederico II Hohenstaufen. Lapa terá lido ou
folheado Kantorowicz?
Adilia Lopes seguirá a estratégia de Varetti, a do
falhanço voluntário: um poeta mediocre que
conhece Diderot e é enviado pelos pais para
Pondichery onde fará fortuna nunca deixando de
escrever maus poemas e “pensar em Diderot”.
Duvido de que Adilia soubesso ou saiba de Varetti
– mas há o Kafka e o Homem Sem Qualidades... e
gatos que brincam com baratas.
“São demasiados “textos ardentes” que convergem
no nosso amiguinho Lapa, como desejo de mais
liberdade, mais absoluto, mais emotividade, mais
existência, mais arejamento, mais soltura” –
acrescenta Ornato, sempre pomposo. “A beat
generation oferece ocasiões que o calão de
Adorno, tão canalha quanto o de Heidegger,
censura. A imagem excessiva pede cultores. O
acaso pede criaturas que lhe sejam sensíveis.
Adorno espera Godot de uma forma céptica, ainda
mais céptica do que a espera de um Messias por
um ateu (e nisso se distingue de Benjamin que se
dilacera em introvertidos messianismos). Adorno
espera Godot sem esperança nenhuma. Lapa
diverte-se com as concisas (ou obscuras) frases de
Adorno, mas prefere praticar-se a si mesmo, como
impaciência, como deslumbrante transfiguração da
timidez... em pintura.” Mas Lapa não cede a
Ornato: “a utilidade de ler o duro Adorno é que
evitamos os mil e um disparates que resultam da
abordagem de assuntos que Adorno dissecou com
grande clarividência e outros adjectivos laudatórios
que não me ocorrem. Lyotard, Braudillard, Debord,
os americanos, Zizec e companhia, os neo-
heideggerianos – nenhum entra na “estética” como
um praticante integro e negro. Todos querem
escandalizar, contestar e policiar ao mesmo tempo.
Nenhum sabe o sabor acre do negativo.”
Entra-se na noite como num automóvel. Byars
convida Lapa para passear num magnífico carro
descapotável dos anos 50 – o carro é maravilhoso,
e é rosa ou salmão, mas não me lembro da marca
(será um “Oldsmobile”?, pensa Lapa com ar de
ignorante). Está escuro e não temos a certeza.
Byars nasceu em Detroit, a cidade automobilística
por excelência, onde são as sedes da Ford e da
General Motors. Lapa entra timidamente. Está uma
noite mediterrânica de filme italiano. Estamos em
Lagos – há uma vibração agradável no ar,
veraneante, de mulheres algarvias, com a sua fala
rápida desatenta ao sentido das palavras e de
mastroiannis de pacotilha com correntes de ouro
no peito. “O que aqui impera é o “corridinho”, ou
o corropio. É uma energia superficial, de agradável
dispêndio, que não tem nada de germânico. Mas
imagino determinados artistas a germanizarem-se
aqui, com Wagner e tudo. Fechados em casa e a
beberem whiskey e a pensarem que bom, bom é
um choucroute numa taberna da Baviera.” Byars
sorri e pergunta a Lapa onde se podem comer
pizzas. “O Bravo é que deve saber onde é que se
comem pizzas nesta terra.” Ornato, no banco de
trás devora chocolates e sugere uma ida à praia.
Lapa acrescenta que Varetti é um profeta ao lado
dos mecanismos religiosos, é um anarquista que
esqueceu a disciplina e gosta de estar consigo e
com os apedrejadores “algo” modernistas da tribo
– “a experiência mística é exactamente a
musicalidade que se depreende dos objectos,
chega-nos como um veículo destes e torna
maravilhoso, porque banal, o céu estrelado.” Byars
cantarola o “South of the border, down Mexico
way”. Ao que Lapa e Ornato dizem qualquer coisa
e ecoam “and we were so gay”.
Byars exagera o seu lado tendencialmente
veneziano de doge. “Mas um doge que passou por
holywood”, diz em chacota Delalande. “Um doge
com algo de Duffy Duck!”, achincalham de
boquilha Sónia y Sandra. Byars diz que gostava de
ser o Papa como obra de arte. “É irrelevante o lado
dito católico. Tenho uma vontade de ser papa
desde que a infalibilidade deste é um dogma. Não
há nada mais artístico, no sentido convencional e
museológico, do que o dogma. Colecciono
dogmas. Eu sei que os dogmas não são tão
interessantes como as perguntas, mas a seguir às
perguntas os dogmas são algo de deslumbrante.”
A inclinação fálica da torre de Pisa é um pouco
como Shiva debruçando-se sobre os devotos. São
os obeliscos que regressam à terra madrasta. O
declínio da ascese masculina. Os sonhos dos
mortos estão cheios de pizzicatos. Picasso, o pintor
das inclinações fálicas começa a sentir o ocaso da
sua masculinidade e apaga mais um cigarro nas
coxas de uma namorada bastante jovem. Picasso
sabe que Matisse (o rival e amigo), nas suas
colagens polinésicas afaga com mão matreira as
nádegas de uma enfermeira. Sente uma inveja da
sensualidade brejeira de Matisse comparada com
a sua voracidade de predador sexual. Se tens
ganas de foder fode – diz Picasso para si mesmo.
Picasso ouve agora as Ogives de Satie. Tem na
mesa-de-cabeceira uma tradução das Odes de
Pindaro, mas não se dá ao trabalho de cortar as
folhas para ler o estranho grego. Picasso senta-se,
olha para o lado e sente-se um pouco mais
leninista. Baba-se ao ler revistas de moda
femininas. E descobre nelas uma referência a um
jovem pintor yankee chamado Motherwell que
pinta elegias pela república espanhola. Sente-se
um pouco um pai. Legou-lhe o olhar ansioso,
sexual e político. A alegria e angustia de viver.
Byars e Lapa combinam entre si combinarem-se
como afinidades entre hexagramas horaculares.
Byars estabelece-se com a firme disposição de uma
montanha num trigrama em cima. Lapa é como a
água que ferve num trigrama muito por baixo.
Ambos se acertam num texto chamado A VIDA
COMO MUSEU

1. As vidas misturam-se com vidas, tais como as


linhas se combinam com outras linhas. As linhas
ao combinarem com linhas fazem regras. As vidas
quando combinam com vidas fazem o quê?

2. Por detrás da vida há a máquina de baralhar as


vidas. A máquina torna-se uma ideia que faz arte.
E a arte, por sua vez replica-lhe, tornando-se uma
máquina que fabrica ideias.

3. Um museu ao acaso que descolecciona a vida (“a


random museum that uncollects life”).

4. A perfeita descolecção.

5. O critério de um Museu “porreiro” (é assim que


Lapa traduz à moda antiga o “nice” de Byars)
deveria ser o riso, a ternura, a beleza, a surpresa e
não a seriedade, a distância, a frieza e o
aborrecimento.
Os juízos que B. e L. se permitem lançar são algo
ao lado da subjectividade e da objectividade – são
uma espécie de coisa oracular convertida em
intuição prática. Byars dança a dança da morte
agitando as ancas à Elvis. Na dança há uma
eficácia rock & roll. Por vezes L. Fica aborrecido
com exibicionismo de B.. Por sua vez a B., um
maroto, a irritação de L. diverte-o.
JLB tem em grão cuidado que um museu de prazer
puro talvez seja uma boa ideia. O prazer pode ser
onânico, tartufico, gargantuesco, contemplativo,
sádico. Lapa prefere o Museu como iniciação,
como momento de passagem. As pessoas deviam
preparar-se para o Museu, não como para uma
vulgar missa, mas para algo terrível e maravilhoso
que as induz para uma vida nova. JLB está tentado
a aquiescer. Mas sabe que os onzeneiros espreitam
com olhos inclementes nas galerias mais próximas.
JLB diz a Lapa: “Talvez sejamos uns santos para
nós mesmos, mas jamais seremos uns santos para
os outros.”
Byars faz a esfera de rosas fluir num rio de leite.
Lapa floresce sob um signo ao lado do da Rosa
(“talvez lhe devêssemos chamar o signo da não-
Rosa”). Byars sente-se bem na posição deitado.
Lapa prefere a erecta ou a invertida. Dormir é
regredir. “Os budas florescem como morcegos em
posições invertidas, como o sirshasana pendurado
numa corda.”
Nem JLB nem Lapa têm um convicto horror à
actividade simbólica. As ancas de JLB convidam à
proliferação de símbolos como se tratassem de um
jogo de sedução. “É actividade “superiora” (e por
isso mesmo suspeita!) do corpo!” – “os signos são
aquilo que é tribalmente transmissível. Para lá da
tribo começa o equívoco e o sincretismo. O que
não é necessariamente mau.”
Algo minou as profecias – então os destinos
destilam algo plural, em ternos erros.

Maio basta-nos como sinónimo de uma


determinação imensa das coisas voltarem a
germinar. Deixamos de ser crípticos e uterinos.
Perduramos e acá nos vemos face a face, como
Deus ao espelho. Não é Varetti?
E desfrutarei em núpcias ferozes as Ariadnes
abandonadas (nas dunas? nas falésias? num
límpido areal à la Sophia de Mello Breyner?). –
pensa Byars muito bêbado.
DO CADERNO DE VARETTI (1)

- Não há um modo de desistir garantido. Mesmo a


morte inviabiliza a desistência. Há o monólogo de
Hamlet que nos ameaça com algo mais terrível e
que poderemos ver como a tragédia do pai de
Hamlet – a impossibilidade de desistir depois da
morte.
- Não há amadurecimento sem um constante
trabalho de polimento? Ou o amadurecimento é,
como para os santos taoistas, o retorno do
despolido, do imaturo, do impuro, do sincrético, do
contaminado, do alegremente inábil. (Lapa sorri
com os olhos em bico, quase chinoca)
- Não há fecalidade sem empenhamento. Dizia
Artaud que onde há ser cheira a merda. Mas onde
não há ser não cheira. E a merda fertiliza plantas
olorosas e prepara os mais sublimes perfumes.
- Os ossos ficam para serem utilizados por
adivinhos?
- E a posteridade? Não é ela desejável apenas
como um espaço afectivo, como uma perpétua
dádiva sobre os que vão ficando? A influência seria
assim uma recepção retributiva de uma
afectividade que fica suspensa a partir de
retribuições criativas sucessivas.
- A mística é um excesso de afecto que se confunde
com o sagrado.
- A escolha é algo que a consciência destila mesmo
quando escolhemos não escolher e seguimos o
capricho do acaso ou a suposta determinação dos
astros. Podemos escolher a indeterminação como
experiência de estranhamento, ou a determinação
com a sua inevitável serialização – a vidinha e a
decadência dos estilos que somos capazes de
praticar.
Lapa sabe que a arte ou a literatura pode ser uma
deliciosa e emancipante recepção sismográfica.
Action writing (a la Kerouak)? Escrever em acção,
acção escrevente, compulsivamente.
Euforicamente. As imagens retornam. As figuras
volvem com uma ainda maior disponibilidade. O
Herberto, entre tantos, também escreveu sobre isto.
A vanguarda ofereceu a eliminação sistemática da
representação como uma brecha libertária, mas
esqueceu-se que a imagem e a metáfora libertam
imensamente. São um modo infantil e
descondicionado de dizer o essencial sem o
aparato extensíssimo e censório da ascese. Adorno
condensa essa extremidade ascética. Kerouak a
prolixidade embriagante que imita dentro do
possível os batuques xamanicos.
A matéria “pictórica” é para Lapa conjunção feliz
de dois materiais pobres e degradáveis (el señor
Castro Caldas acrescentaria “desagradáveis”!); o
platex e o esmalte. Byars está do lado do rico e do
agradável – os galeristas boches e os seus
coleccionadores gostam porque é algo proibitivo,
moralista e perverso – conjuga a ostentação
jesuítica do material com a ascese protestante das
formas, a folha de ouro como revestimento
simbólico (e pechisbeque) e os sólidos regulares.
Byars consegue conjugar coisas que achamos
kitsch assim como os fundamentos da gramática.
Estamos na gruta genérica e platónica e a luz
vislumbra-nos como uma flecha feroz. Saímos cá
para fora com um saber readquirido e as cidades
levantam-se com uma ansiedade moça que nos
espera. As cidades palpitam ardentemente. E nós
palitamos os dentes. Aí vamos nós!
A minha vida é urina moça que desperta para a
vastidão. É uma pedra sobre outra pedra e há
tantas pedras por aí. É o movimento escarlate, ao
mesmo tempo depois do dilúvio e durante o
apocalipse. O despertar, o despertar. A manhã, a
manhã. Mas a parábola deve ter sido dita por
Cristo e foi repetida de algum modo por Lapa – “o
reino dos céus é como quando um homem mija no
campo e sente uma alegria enorme a invadi-lo e
tem uma vontade ainda maior de oferecer essa
alegria aos que andam pelo mundo”. Cristo
acrescenta agora: “o mesmo se pode dizer do
apetite sexual – a disponibilidade a nos darmos
aos outros, sobretudo na carne, e, quando isso é
impossível, em símbolos mastigáveis.”
Edmond Jabés escreveu um Livro das Questões.
Pablo Neruda também. Os esforços poéticos de
ambos antecedem no tempo os de Byars para
refundar o questionamento. Todos parecem tocar
algo tremendamente arcaico. Com muitos bichos.
Jabés ensaia a possibilidade de um diálogo
rabínico como a cabala – mas é o cântico dos
cânticos que filtra todo o questionamento e que
torna o afã comentador uma matéria erótica.
Questionar como quem deseja com todos os
sentidos. Mas Byars mostra algo catita. Ele entrega-
se à questão da questão como quem vai para um
baile de máscaras apocalíptico.
varetti tem um sonho forte, mas só se lembra desta
frase: passam comboios com ninfas.
Há uma calamidade onanica na sedução que
coincide em praticamente tudo com a canibalidade
cristã da oração e a cordialidade dita xamânica da
visão.

Descerrando céus e terras, vendo por debaixo,


pelo olho do cu: a obscuridade, deslumbrante,
luzindo de verniz herbértico. “Faz com que através
de obscurecimentos sucessivos abandonemos a
obscuridade” – o obscuro pelo mais obscuro de
certa alquimia funciona como propagação barroca
e convite ao canto. E à clandestinidade. E a
clandestinidade dá algum prazer aos clandestinos
– torna-os heróis de uma aventura em que a
dissimulação é a garantia de uma honestidade de
propósitos e uma franqueza interior. Sentir-se
enxuto.
Há muitas vezes esse horror, legítimo, muito da
época (oh Barthes!), à significação. A recusa de
significar. Ou, numa espécie de desvio à linguística
de Saussurre como se via na altura (e que hoje
com a descoberta de velhos “manuscritos” do
“linguista” já não se vê assim), a adopção
temporária do “significante flutuante”(não sei se há
hipocrisia e exibicionismo nesta terminologia!). A
função de “recusa” (ou de “esquesitismo”) que não
é a de “crítica” no sentido imediato (também é de
“crítica”, mas situa-se num terreno mais imaginal,
“nagual” – ai D. Juan, ai Burroughs!) mas que
promete a abertura para um espaço passeável.
Passear é incorrer numa relativa suspensão do
“juízo”, como quando os amorosos se zangam e
choram e procuram a conciliação e a
sensibilização num passeio. O ar fresco. A
natureza. Ai, o campo! Juntinhos... ainda que
melancólicos.
O que se entendia na altura por “arte
experimental”? “Experimentar por experimentar?
Sempre! Ò faternidade das ilações tardias. Tarde
violeta sobre a praia a estremescer!” (o texto é da
responsabilidade do autor – mas é da “época” –
como cliché (“doxa”) da mesma. Era porém um
cliché doce, daqueles que dá vontade de ter
vontades - tão inocente para os dias de hoje).
Foi ao Tarot e saiu-lhe um Rei do Riso. Esta carta
não faz parte do baralho, dizem-lhe os amigos.
Mas não a conseguimos excluir, responde, não se
sabe como emergiu das outras para nos provocar.
É um primo do Louco... mas a sua gargalhada
ostenta sabedoria.
Solicitavam-nos para o beija-mão a todo o tipo de
autoridades. Eles não queriam ir. Lapa retorcia-se
no seu feitio de quem se dá bem de um modo
fechado em ambientes líquidos. “Já o referi muitas
vezes, o meu nome é um pleonasmo. Sou reticente
a qualquer tipo de pavoneamento. Fecho-me como
para uma inconsolável meditação, como Heraclito:
Álvaro é parecido sonoramente com Heraclito. Os
fragmentos de Heraclito recusam-se, como se a
totalidade enunciada como Logos fosse algo
inaceitável. O estreitamente acessível, sem tapetes,
modas, modos. Podem fazer um livrinho tão
obscuro como o do grego com coisas pescadas no
que andei escrevendo. Mas não devemos pôr o pé
no acelerador da recusa. A recusa é uma cortesia
para com o mundo noutras disponibilidades menos
condimentadas. Uma espreitadela a partir da
casca.”
Contenção de punhais. Catulo dorme a sesta e diz
que quer beijar e voltar a beijar a sua amada neste
calor e suor de veraneante. Está nu com incerteza e
algo a que podemos (com reservas alcoólicas e
“ecológicas”) chamar pureza. Os punhais dançam
ao lado do leito e fazem um IO! IO! Muito ritual
muito grego. Cibele sorri malévola como quem faz
uma vénia com a boca. E Àtis que contempla a
cena “surrealista” espera uma ajudinha dos
punhais para se castrar. Mas os punhais não fazem
nada e Catulo (“o triste Catulo”) apenas beija de
um modo infantil o apetitoso “pipi” da sua doce
amada. Os punhais acabam por adormecer atrás
da almofada.
Que infernos prepara ainda a prepotência da
História? Temos inclinações tristes quando damos
com ela. Os queixumes sobre a história e os seus
malefícios e benefícios também já têm a sua
história, rumina Ornato. Delalande não se assusta
com o carácter cada vez mais desmesurado destas
heranças. É acumulação, pois é. Muita tralha...
Mas é no meio desta tralha (“entulhável”?) que
Byars e Lapa se encontram assim como os
exemplos que a partir deles somos conduzidos –
Pitágoras, os diagramas tântricos, as portas e a
multiplicação de duplos dos egípcios para Byars.
Heraclito, Górgias, Nagarjuna, Tchouang-tseu, e o
“informe” que vem da aceleração diluída da
caligrafia chinesa.
A carne assassinadíssima do meu avô pardo, diz
um. Cem divórcios por correspondência, responde
o outro.

O primeiro acrescenta: “O meu avô era um burro


asianico – destilava retórica florida sempre que
zurrava. Fechava-se numa magia de copas.
Empinava-se sobre a antiguidade todo finório. As
tias chiques superlativavam: “Antiquérrimo!” O
meu avô respondia: Deng Xiaoping!”

O segundo contemplava o modo como ao longo


de meses e meses a lua iluminava um muro
bastante degradado. Ele gostava do vago mas não
hipotecava a sua “sobriedade antropomórfica”.

Vêem-se ismos como uma vibração que torna


modernista o modo de vislumbrar o céu. Ornato
luta com esses velhos manifestos orbitantes, como
Jacob com o anjo. O desusado hálito de algo que
comodamente acabamos por chamar “revoluções
artísticas” ainda dura como musa: ora marcial, ora
pitoresca, ora achincalhante.
Byars e Lapa não sabiam o que fazer com o transe.
Podia ser o resultado de uma confusão, de uma
crise, de uma hiperventilação e de um desejo de
sair para fora através de uma repetitividade (“o
batuque, os barcos, a maresia”). A bebida não
ajudava assim tanto senão como parcial
desinibição. Mas ambos invocavam a transe como
uma hipotética consequência do que faziam. Neles
ou nos outros?
Lapa fez a sua arte não para arte mas para estar à
sua maneira no que chamamos mundo – seja um
cantinho a que nos habituamos, seja a gloriosa
intuição de que há algo muito mais do que estes
canteiros e estes passeios, e que, por alguma
carga de água tem qualquer coisa a ver connosco.

Mas na hipotética censura grega abre-se esta


hipótese de um cómico, natural e obsceno quanto
a natureza, no qual a razão se torna mais razoável
e menos esclerosável. O siso de Heraclito é
invertido por Antifonte e pelos megáricos. Não é o
riso ameno da comédia, reservado exclusivamente
para o palco ou para o acantonamento ritual do
teatro, por mais catártico que seja à sombra do
controle político. Por isso o cómico “invade a cena”
e “inverte a hierarquia”. A cena é a interface entre
as subjectivações de um corpo e os envolvimentos
de que estas subjectivações sofrem e se alimentam.

Mas temo os autores que se policiam em vaidade


ética, nos ares autistas de se julgarem condenados
a um limbo elitista. Por isso o cómico é o ético, e o
ético só é exemplar enquanto algo irrecuperável no
domínio do heroísmo.
DO CADERNO DE VARETTI (2)

- Tenho uma irmã muito labiríntica dada a ironias

- A criminalidade é proporcional ao valor – mas


algo faz tremer todos os investimentos feitos de
“puro nada”: como figueiras “fauvistas” sacudidas
por uma manada de elefantes com muitos olhos e
muitos cornos desenhada/ colorida por
apocalíptico iluminador moçárabe. Há uma
inocência da possessividade que os namorados
alimentam, irrigando-a de sangue, violência e
volúpia. O ciúme é a “instabilidade” da
propriedade? É um sentimento dos oprimidos ou
uma fraqueza dos exploradores? Conta ou
desconta nas outras fenomenologias do espírito
que andaram para aí a espirrar?

- Os “anjos” são decisivamente antipáticos ao não


darem tréguas a uma moral mais flexível. Algo
neles alimenta o casamento com o demoníaco e
instiga à má Fé. Mesmo o “anjo” de Benjamin
predispõe ao ressentimento e ao falso altruísmo do
mea culpa (que é uma culpa meã).

- O visceral transparecerá, maravilhoso, absoluto,


“intrínseco”, directo, vulcânico, como se fosso algo
singular ou paradisíaco.

- Ele fazia-se senhor absoluto das suas ordens e


desordens. Havia em si uma paixão desancada à
racha ideológica de Deus.
- As brancas bússolas, as brandas vergonhas, o
Bois de Bologne e as Bransles de Bourgogne.

- Sinto a minha carne a levitar entre personagens


de um poema de Blake. Não sei exactamente
quais.

- A pirâmide é a sublimação da tenda. Israel é um


subúrbio que emigrou do Egipto.

- A laranja é o fruto parmenidiano. O seu interior é


a Doxa. A Terra Prometida é um laranjal.

- A heteronomia vislumbra-se como a exploração


das nossas possibilidades obscuras. Trata-se de
pôr numa certa prática não apenas o Hide que
compensa o Jeckill, mas a multiplicidade de
máscaras shakespeareanas que se deduzem em
acto a partir dos jogos da linguagem. Tornamo-
nos nos animais que florescem nos paralogismos.
Que encontram novas plenitudes nascendo no
pseudos.

- Uma obra é fruto de sucessivas cristalizações, de


aperfeiçoamentos sucessivos e da insatisfação com
a saturação que cada aperfeiçoamento produz.
Esconjura-se por etapas porque se sabe que um
inacabamento a perpassa. Irrealiza-se no quanto
se legitima.
- O despotismo é o que no presente mais nos
ausenta.

- Não desejarás não nascer nem voltar ao ventre. E


perceberás que o futuro pouco mais é do que os
sincretismos aguardados e que tu também és essa
singularidade resultante de uma combinatória
inclemente.

- Compreenderás que o carrossel dos supostos


enigmas depressa se torna aborrecido, e que a
fatalidade pouco mais é do que uma frágil
futilidade.

- Proscénios corais (?).

- Ó frágeis mulheres que galopais ao sol nascente,


sinto as vossas risadas a ruborescer a minha face
vulnerável.

- Encenamos os nossos egos como poços


movediços ou papagaios estáticos. Somos como
caricaturas felizes da sublimação, mas temos os
pés assentes na terra e respiramos com os pulmões
muito cheios.

- Antepassados lambuzáveis.?
Por vezes cedemos ao eflúvio selvagem que faz
desaparecer a vista onanistica da totalidade. Ou o
seu tigre. Compreendemos o carácter convencional
e egoísta de sermos reféns da unidade e de uma
suposta ordem. Por isso achamos que Hegel é um
masturbador. Então vamos para a casa-de-banho
e reparamos na assimetria da face: um lado é
mais velho do que o outro, como se cada lado do
corpo tivesse um tempo distinto para morrer. Há
um lado do corpo que nos assassinará e outro que
ficará inocente? Perdemos praticamente todo o
controle. Mesmo o controle budista que pacifica e
torna aceitável o que mais tememos (a morte, a
velhice, a doença). No entanto há um novo
equilíbrio nesse descontrole que nos torna mais
fortes.

E também há o perigo que é inevitável enfrentar


como uma flauta com demasiados pequenos
buracos. Que é visionado obcessivamente debaixo
da contradicção fulcral do nosso pseudo-destino
(cada destino é um detalhado pastiche de velhas
fábulas). O destinar-se é uma empada mágica. A
magia é sempre empírica.
Sou uma cratera que emerge do espaço, um fulcro
caótico. Mas tento manter o meu caos afinado,
mesmo com glissandos, quartos de tom e outras
“tretas” microtanais.
Ornato afinava a dúvida e palitava os dentes: a
Indeterminação parecia-lhe demasiado organizada
e forçada. É um esforço suplementar. “Na natureza
há alguma indeterminação, mas nunca
encontramos uma indeterminação radical,
poetando contra a tirania do sentido.”

“Aonde o consenso? Não a estrutura que tem o seu


tempo, pela ascensão, auge e decadência, mas o
movimento primordial que preside à formação de
todas as estruturas. Uma forma é apenas uma das
metamorfoses da criação, e por ela se liga a todas
as outras metamorfoses. Como a criação, ela
mesma está em toda a parte.”

1. No adverbiado eco das florestas que declinam


quer os apetites apocalípticos com saladas de
símbolos a acompanhar, quer as íngremes
sublimações.
2. No sussurrado rugido do Verbo que antes de se
fazer carne já é canibalíssimo, retornando ao seu
apetite excêntrico, de algo parecido com o ser que
se diversifica no fingir-se mais que boca devorante.
3. Na bizarra arte da falsa pilhagem: algo entre a
influência, a citação, o pastiche, a paródia e uma
atenta refutação de quem venera.
4. Nos jardins em que o acaso tem forma de
alcachofra – é certo que as alcachofras emergem
como presença arrepiante na Pintura Metafísica.
Mas o que as alcachofras propagam é a
remontagem das perspectivas, como se um espaço
aparentemente unido quisesse fugir para muitos
lados. A alcachofra enuncia o teorema da fuga
múltipla do que se faz passar por objecto.
5. No prepucialíssimo humor petroniano, onde a
química da pintura já designa o quadro dentro do
quadro, o fragmento parvo, o trompe-l’oeil
maroto, a paisagem chinesa antes da “paisagem
chinesa”, mas ainda com algumas cores.
A degradação é uma arte silenciosa? – pergunta
Ornato

A arte é um pastiche do silêncio – diz cantarolando


Jacques P.

James Jauss acrescenta – a arte é a pastilha que


torna suportável o silêncio (o não-ser, a distância,
a recepção delirante?)

Arte sem silêncio degrada. Silêncio sem arte


desagrada – cochicha Delalande

A arte é uma agradável solicitação do silêncio –


dizem agradadas uma da outra Sandra y Sónia –
gostamos de convites irrecusáveis para desfrutar
silenciosamente da “arte” dando a mão
ternamente a raparigas macias.

A arte é a reciclagem do ruído. O museu é a


consolidação do silêncio. A arte é a estrepitosa
gargalhada que defronta o Museu – remata Varetti.

“Quando a arte degrada o silêncio restitui o ruído


(a barulheira). É uma lição de Cage. O silêncio é o
que se não mostra e tem dias e aproximações e há
um espaçamento que dá lugar a um rumor feito de
restos de som. Por outro lado o silêncio é a
refutação levada a múltiplos extremos – não se
trata de uma recusa simples (a recusa da
sonoridade, a recusa do ruído aparatoso da
“glória”, da Doxa), mas do resultado auto-
escarafunchoso de refutações de refutações de
refutações e por aí adiante – por isso o vazio, o
silêncio, é de uma extrema impureza – o resíduo
aparente de uma inconsistente posição de
percepção – há que ler, como uma arrogante peça
de teatro, os tratados negros de Nagarjuna” (Lapa)
Ornato – “Lapa não se vê como um percursor da
Homeostética porque não olha para o lado
(prefere vociferar de costas). Não é percursor de
ninguém, ou outros é que são percursores.
Desconfia. Acha-os irritantes. Mas nos
homeostéticos cumpre-se o que em Varetti é
profecia. E parece fácil e “natural”, apesar do
espampanante. Lapa também não se dá conta que
a homeostética se livra em boa parte das aporias e
antinomias da “estética”. Lêem o vocabulário de
Adorno como fruto de uma arte combinatória e de
uma oleada máquina de guerrilha em que este é
um mestre algo velhaco – eles sentem-se
demasiado livres e inocentes, e também passam
ao lado da pateta competição artística, assim como
do pomposo campo de legitimação que se faz
passar por um exercício filosófico – embora em
muito se pareçam com “artistas” e namorem com o
art world. Tal como hindus e budistas encaram a
arte e a estéticas sem ilusões, como uma “doxa”
que não se pode levar a sério, e participam
alegremente no que lhes diz respeito, deixando que
os carreiristas se esfaqueiem uns aos outros e
tenham retrospectivas lúgubres com champanhe e
coleccionadores ignorantes”.

(o narrador, que é um homeostético,


envergonhado com o que acabou de escrever,
esconde-se do outro lado da folha – ele sabe que
Ornato não passa de um “personagem” (Ornato
rosna furioso, como Orlando – mas na
imaginação), tal como este Lapa não é o Lapa
verdadeiro – é a possível e admiradora imitação
rasca
... mais uma vez o batuque, agora sem os barcos.
Lapa ainda teve Paris como modelo, ali, ao longe,
a Paris onde se via “cinema”, o que os Cahiers do
Cinema aconselhavam, os japoneses, Dryer, o
Orson Wells, o Jonh Ford. Byars observa que o
formato dos quadrinhos de Lapa é um
Cinemascope doméstico: “Olhando não se parece
nem com as paisagens chinesas nem com o
formato “paisagem”, embora seja quase o mesmo,
deitado. É um sublime portátil. Para um yankee
como eu é tacanho.” “É um sublime inferior,
despretensioso, sem ser extremamente
despovoado, sem nuvens, sem a obrigação ou o
mérito de ser sublime... é um sublime que
consegue ser enunciado em histórias aos
quadradinhos...”
OS FALSOS CADERNOS DE LAPA ENQUANTO
FALSIFICAÇÃO SOBERANA DE SI MESMO
ATRAVÉS DE TANTOS OUTROS

“Odisseus descobre, da sua baixa perspectiva as


tíbias de Nausícaa, e advinha-lhes a beleza e os
óvulos e o púbis. A dor de Ulisses encontra-se com
a dor de Nausícaa. Essa dor, no banquete dos
Feáces revela-se como uma dor dionisíaca. A
ebriedade do vinho é a mesma das ninfas e ambas
levam ao pudor. Então Odisseus, melancólico,
chora. É a beleza de Nausícaa que lhe provoca
nostalgia, como se o seu acesso fosse por si
mesmo vedado.” (dos “cadernos de Homero”)

“Há um furor elíptico em Odisseus. Ao contrário de


Hamlet este pensa em Ofélia como uma
possibilidade “burguesa” de vida. Em Hamlet a
elipse é um método de expansão que conduz ao
“infinito”. Em Odisseus Penélope representa a
contração do Apeiron num corpo específico. Aqui é
a expansão das fábulas que é elidida.” (dos
“cadernos de Joyce”)

“Labirinto! Luz eterna, que se aguenta em si, que te


encanita e engrandece na solidão que renova o
medo ou o desanuvia, e com estes a puta obscura
que há em nós.” (dos cadernos de Henry Miller)

“O “vazio do vazio”, uma coisa parecida com a


plenitude, mas onde a fresca sombra da recusa
parece “quase” enegrecer: paiol prestes a estourar
por necessidade de emergência, por ausência de
vazio, mas consentida por este.” (do caderno de G.
Corso)

“A dialéctica que se autodetermina em dissolução,


que se refuta dialecticamente como método, que se
torna o dileto dialecto antidialéctico. Mas o dialecto
é só a solidão de um eu a afirmar-se deslaçado da
tribo. A mais literal das autodeterminações.” (do
caderno de Gombrowicz)
“A formiga surgiu no festim e invocou Petrónio.
Apareceu um punk e fez uma inscrição violenta. As
siamesas abriram seguidamente o livro como se se
preparassem para enlouquecer. Mas para a
loucura ser substancial tem que ser confrontada
com a demente subserviência das formigas e com
a falsa revolta do punk: o livro acabou por
enlouquecer com as siamesas. As siamesas
enlouqueceram porque o livro enlouqueceu. O
punk socegou e transformou-se em bancário e a
formiga morreu de perguiça.” (do caderno de
Freud)
Antes de interrogar as perguntas passo uma
esponja sedosa no ponto de interrogação, limpo-o
muito bem até ficar muito brilhante e interrogo-o
com uma frieza antártica. (Byars)

O leitor torna-se instantaneamente uma obra de


arte após ler esta frase. Não que ele tenha vontade
disso. O leitor também sabe que tornar-se uma
obra de arte até pode ser vulgar. Vários artistas já
tinham reclamado a autoria do leitor que me está
lendo. Mas, sendo eu um artista mais consistente
sem ser um banal “original”, considero que és tu e
mais nenhum outro leitor, que és a obra-prima de
que o mundo tem estado à espera. (Byars)

A unidade, o fogo e o som são o mesmo. (Byars)

O meu único desejo é espicassar tudo. (Byars)


“Existo para divergir, mas sem esforço. (Ornato)”

A esfinge interroga a Grécia, e a Grécia é uma


interrogação que nos continua a interrogar – não
há nem haverá resposta adequada, só variantes do
modo de interrogar esfíngico. O enigma é a
impureza de que tanto necessitamos, porque é ela
que nos faz divinos e consequentemente humanos.
(do caderno de Freud)

“Mais uma taça de azeitonas”, pedem na sua


banheira morna Sandra e Sónia. “Azeitonas e
martinis!”

“Irmã, que te debruças sobre os labirintos, perdeste


a meada de Teseu? Teseu perdeu o tesão no
labirinto e abandona Ariadne e Medeia porque se
tornou um canastrão de meia-idade. É um
palerma!” (caderno de Sónia y Sandra)
“Minotauro, com uns cornos que chegam ao céu e
ferem as nuvens, encontra num prado obviamente
minoico a ratinha Minnie. “Estás estupidamente
sexy!” Diz-lhe o semibovino com imprudência.
Minnie responde-lhe num tom cortante “apetecia-
me bifes de vaca”. “Tenho uns bem bons lá no
meu labirinto!”. “Prefiro grelhados que engorda
menos”. “Não te preocupes que eu faço a teu
gosto”.” (caderno de Kafka)

“A função do labirinto era espectacular – havia


espectadores com lugares marcados em cada
divisão. Com o passar dos anos passou a ser uma
casa-de-passe de subúrbio. Hoje foi reabilitado e é
um parque de estacionamento de um centro
comercial.” (caderno de Kafka)
O silêncio tagarela por todo o lado, invade como
uma longa pontuação as páginas, como se a
respiração tomasse o lugar das palavras. Depois
há o silêncio enorme da morte que se confunde
com um sonho do Buda, tranquilo, silencioso,
como um falo esborrachado. Lapa pinta duas
montanhas comentando o Buda sonhando com a
morte. As montanhas gracejam. “Olha um Buda
todo meditabundo dentro de um quadrado muito
imperfeito”. O Buda, muito sentadinho interrompe
a sua interminável sessão de meditação e com
alguma ira responde “eu não sou um Buda, sou
uma mancha negra”. As montanhas desatam a rir.

“Há que descrer o invisível.” – diz Ornato tentando


com argumentos líquidos convencer Byars. Mas
Byars sabe que o invisível é que aperfeiçoa o
visível, como se este fosse uma força explosiva que
vem alugar determinadas formas.
Num certo sonho Sandra y Sónia (que tentam
partilhar, não se sabe como a sua substância
onirica) estão em Espanha num Museu de
Presuntos e pavoneiam-se, òbviamente, com uns
esplêndidos biquinis. “Isto parece-se com a arte
contemporânea, mas é mais comestível!” . “Eu já
falei deste cliché com alguém!”. Encontram o
Minotauro à porta (é um velho porteiro conhecido
que trabalhou em inúmeros bares). Montam no seu
dorso e chegam a uma praça italiana crepuscular
e descobrem Byars enforcado num campanário. O
seu corpo é o badalo do sino. No centro da praça
há uma reunião de surrealistas a comerem pasteis-
de-nata. No céu passa um avião cheio de
directores de museus. Acordam as duas muito
suadas e começam a lamber os ombros uma da
outra. Nessa manhã apetece-lhes (“com muita
força”) açorda alentejana ao pequeno-almoço.
Byars toca à campainha. Elas abrem. Ele sorri e
diz: “esta é a minha refeição preferida”.
Jerónimo é um tradutor. Começa por citar/traduzir
anónimos. Acha que Joshua é húmido (“se não vos
fizerdes húmus nunca entrareis no sublime”). Tem
de Miriam a noção de que ela é um esplêndido
animal, bela como Leda, sedenta de ser pintada
por Leonardo, criatura de boa casta. Jerónimo tem
um pálido abdómen. “É no abdómen que nasce o
místico. E onde nasce o místico nasce o misto.”
Joshua é doce como as criaturas afectivas de que
fala Safo. É mais uma amante que não se resigna
e que teima em amar do que um papá que
fulmina. Jerónimo traduz epistolas como se as
aplainasse, as martelasse e as pregasse. “Traduzir
tantos livros é como fazer uma cidade em
carpintaria.” As sonoridades do trabalho de
Jerónimo acabaram por entrar nas nossas vidas,
como torrões de açúcar, como uma vibração que
mostra o mundo mais explosivo e emotivo e
assimétrico.
A emoção corrige a emoção, a razão corrige a
razão, tal como o sim corrige o sim e o não corrige
o não: mas o incorrigível subsiste mesmo nas
erratas da razão e da emoção, cada vez mais
emotivo, diversificado e relativamente racional.
Não sim. Sim não.
No país dos salmos tudo era exaltante, e havia
harpas nas mãos de cada cidadão. E as crianças
eram esborrachadas em metáforas (“com
pedragulhos”) por salmodistas sedentos de
vingança. Mas a exegese passava ao lado nas suas
caravanas cheias de amor e coros alentejanos.
Qual é o maior número de ideias que podemos ter
ao mesmo tempo?
Perseu tem medo. Medeia tem manias e mata-se.
Urraca chora, sente-se muito abalada (e tu leitora,
sentes-te abalada?). Urraca abana-se e abana um
leque com histórias antigas – a história de Perseu o
decapitador da Medusa e a história de uma mãe
maga que mata filhos. De manhã semeia flores
para sentir-se menos triste. As Parcas, muito azuis,
vão-lhe transmitindo que não se preocupe. As
Parcas são toda uma escola. Não se sabe se o
saber é conclusivo. Urraca à tarde sacode o sono
amarelo e resiste a dormir a sesta e pela noite
apascenta os seus bichos vermelhos que fazem
barulhos estrambólicos. Byars está no pátio, ou no
claustro mental de um palácio muito ascético.
Escuta os gritos medonhos de Urraca. Vê
escorpiões saírem debaixo de uma pedra e
procurarem um poço. Byars olha a lua como se
esta fosse um livro no qual todos os dias pode ler
frases clássicas e concisas sem deixarem de ser
inquietantes.
O poiso de Uruborus: o mundo é um anel que se
recicla? Sónia sai da banheira e quer ir apanhar ar
fresco. E está mesmo fresco cá fora. Sandra é mais
lenta e neste momento está ruiva e sardenta.

A paixão prospera em terras estéreis? Sónia e


Sandra davam sinais exteriores de riqueza
passional. Ambas se mostravam exuberantes em
tudo e delicadas em cada acto. Mudavam de
biquini constantemente e liam, com má pronuncia,
Gertrude Stein. “Um martini é um martini e é mais
um martini!”. Mas também gostavam de estar
sóbrias, não só sóbrias, mas extremamente
sóbrias. Sónia tinha o projecto de verter para latim
a Stein. “Fica melhor mas não sei se dá com
aquele sarilho das declinações”).
Violas-da-gamba encharcando de som enxuto o
oceano sonoro onde prosperam lavagantes. Os
meus pensamentos sintáticos sabiam que o amor
não se ajusta a metáforas enormes, mas segue no
embalo da ondulação da tromba.
Volúveis os sinais. Byars e Lapa não se olham ao
espelho como para descobrir as rugas da
transgressão. “A transgressão é o desejo das
cortesãs. Nenhum capricho as pode satisfazer. É o
diabólico ou a inclinação para a possibilidade
degradante. Antes havia uma provocacional
mania. Como uma comichão adolescente. Uma
irritação de fundo, primaveril, irresponsável e em
nada didática. Depois as mãos continuavam
vazias. Nós queriamos ir para a floresta e ser
surpreendidos por beijos inesperados”. Isso
continua a ser adolescente – acrescenta o autor.
Ou “senil”, corrigem os personagens.
Os hálitos do touro são quentes no meu corpo
vulnerável. A brevidade é incompreensivel. O
tanger é-me difícil numa Tânger fácil onde o sexo
aborrece. Os personagens desta história já se
autodestruiram há muito. Mas regressam como
uma imponderada ambição. E que ambição!
“Vaso fui. E as minhas elegias me calcam.” – Diz
Varetti com a sua ironia siciliana cheia de molho.

Olha o olho: um olho que urina.


Um olho com patas, diria Kafka.
Baixo como olho-do-cú, achincalha Varetti.

As mídicas irreflexões. A essas!…


ANEXOS

O autor sabe que estes textos nada têm de


romanesco. Eles estão aqui apenas como
testemunho da actividade múltipla de um dos
protagonistas. Lê-los pode ser dispensável ou não.
Depende de quem.
DOCUMENTÁRIO DE UM “COMENTÁRIO”

A pintura como repetida desinência não-verbal. A


fisicalidade extrema-se através dela e gera uma
ironia de aparência alegórica. Mas um domínio
alegórico flutuante e às avessas. Acampamento
“alegórico” junto às urbanidades da linguagem. A
pintura como “aquilo” que se faz representável na
“contra-representação”.

Excursões anfíbias às intermitências a/significantes.


A a/significância é o espaço, o momento de
perplexidade, manobra, afasia, excitabilidade,
inércia, entre a significação e o insignificável.

A pintura anormaliza os conhecimentos que


instituem e que instituímos, restituindo a vacilação
do corpo a querer pôr-se em voz e em “barulheira”
(gritos, rumores, musicas e outras manifestações
do dominio “pânico”).

São os degraus (para os Parnasos Múltiplos) dos


cepticismos que afinam a confiança (filha do sabor
oculto – a fruta – do entusiasmo) e semeiam as
eclosões celebrantes.

A arte arrasta-nos para uma experiência: concreta


porque desintimidante.
As obras de arte mascaram o silêncio para se
oporem ao inominável – seria equívoco negar que
acima de tudo as obras de arte falam (“barulham”
ou mesmo baralham) numa auto-recompensa do
autor e numa eterna estranheza com que os
espectadores se vão familiarizando.

Quem tenta fintar a questão do “não-ser” não


compreende a sua utilidade e alegria “destrutiva”
que inviabiliza todas as séries legitimadoras (ver
Górgias, Nagarjuna, os do Zen) – a inevitabilidade
lógica do “não-ser” deslegitima, devolve a
“autenticidade” e aproxima-nos de todas as
distâncias – há nisso alguma “densidade
patafísica”.

A alegria e a tragédia são o sumo da arte. Essa


pulsão que existia como um rio negro e
subterrâneo nos gregos saiu há luz e foi
consideravelmente constituída como um cânone
em carne de Holderlin aos nossos dias. Há na
alegria e na tragédia uma alergia ao puramente
simbólico – o simbólico orienta-se segundo uma
eficácia utilitária, a arte, pelo contrário, inviabiliza
as útilidades para além da “saúde”.

A Natureza é solipsista na sua generosidade. O


narcisismo da artephysis não a consegue desviar
das incontornáveis utilidades “biológicas”. Tudo é
recuperável e reciclável.
Os nossos limites criaram-se enquanto “limites” –
cada limite é apenas uma fase (ou frase) do
crescimento, uma etapa virtuosa na ilimitada arte
amatória.

As elites são claques demasiado próximas e


restritas – não são tão cegas quanto as outras
claques, e o seu número incomoda menos. Os
artistas querem ser adorados, ou admirados como
deuses? Confiam demasiado na coqueterie das
elites dos que os adulam?

É a sobreabundância da artephysis que nos atira


para condições cada vez mais oblíquas. Cada
condição obliqua é geradora de ubiquidades
fragmentárias, intermitências celeradas que
conjuntam não-totalidades.

O que se pretende pintar é o carácter intoxicante


da artephysis – as “coisas” constituem-se como
soma (ou ebriedade) das maquinações da Forma
(software biológico, através do qual as formas se
extenuam e se biodegradam) e da Retórica. Ou da
fuga a ambas.

Não procuramos um público ideal, mas um


publico que des-idealize, e que através da
desidealização aumente, no seu peito, o estado
vertiginoso de encantamento.

As obras excepcionais não aplicam conhecimentos,


não citam expressamente (embora gerem citações
e alusões), mas fazem fluir o que nos
conhecimentos é estrato metamórfico.

O efeito de uma obra é o afecto que lhe sobra –


mas sem “patetismo” (sentimentalisses de
consumo).

Uma teoria é sobretudo uma imprudência com que


envergonhadamente me identifico em dados
momentos.

Teorias são curiosidades produtivas que utilizam o


artifício da generalização para consumar abusos
de linguagem aliciantes. A teoria sem a garantia
fascizante da “generalidade” é, por tradição,
sofística e opinativa.

A nossa excitabilidade teórica é algo tântrica, no


sentido em que alia uma prática mágica (e sexual)
e as técnicas meditativas (que seriam supostamente
ascéticas) a um fulgor produtivo (e artístico). A boa
sabedoria só pode ser arte. Se respondemos a algo
é indirectamente porque suspeitamos da aura das
“liberdades” que se julga que se tomam. Só nos
conseguimos revelar a nós próprios na ebriedade
dos disfarce – não no cabotinismo das sempre
falsificadas sinceridades.

Somos autodidactas de algo imberbe – é a


fidelidade flexível a algo que continuadamente
julgamos acreditar que nos torna algo
inconsequentes.
Há, é certo, um programa de evasão (“É fugindo
que nos encontramos” segundo M.V.), mas não há
um onde, interior ou exterior para consumar os
escapanços.

Já nem a condição (confidente ou inconfidente) de


exilado é possível – asilamo-nos cada vez mais nas
nossas vulnerabilidades. A vulnerabilidade não é
algo que seja dado: é um trabalho de
investigação, duríssimo, exigente e negligente ao
mesmo tempo. Investigação? Num sentido
demasiado nosso, sem ser jogo de linguagem,
como em Wittgenstein, mas aperfeiçoamento das
sensibilidades do corpo nas suas relações com as
linguagens.
O RISO COMO RAZÃO PRÁTICA (fragmento)

Somos prudentes nas imprudências com que


teorizamos (e nelas nos identificamos aos poucos,
pesem embora alguns desentendimentos) –
tornamo-nos vulneráveis ao admitir que as teorias
latejam imberbes e que arrastam com elas os
nossos sentidos. Pintamos porque a pintura nos
retira toda a sensação de invulnerabilidade que as
legitimações nos parecem querer oferecer. Ad R.
Insistiu no museu como caminho primordial e na
perfeição como repetição de uma finalidade
lógica. Nós passeamos no museu (ou ao seu lado)
e não compreendemos as finalidades lógicas
senão como uma armadilha da linguagem que
cozinha as tautologias para fins muito pobres.

Também generalizamos, e até nos desgastamos


nesse vício – mas a arte de generalizar cria
enunciados que são docemente singulares – eu
diria “curiosidades”... acrescento “rebaixas”,
opiniões, passeatas. A consciência procura os seus
comícios, consigo e com outras consciências. Os
conhecimentos, e as ignorâncias doutas ou
brejeiras que com eles fornicam, ajuntam-se para
nos encaminhar no que sempre foi óbvio: uma
liberalidade extrema com muitos picos de êxtase.
Perguntaria, como que dando sem querer um novo
fulgor aos antigos sofistas: “A teoria sem
generalidade é opinião?” Isto é: quando
sacudimos os artificios da generalidade
encontramos a Doxa? Antifonte foi exímio em
assinalar quão artificial é a enunciação do Logos.
Não podemos recolher tudo no mesmo cesto.

Não damos respostas enquanto respostas, mas


respondemos responsavelmente com inúmeras
“irresponsabilidades”, no sentido em que estas
afinam a imagem dos outros ao não serem a sua
repetição devota, mas o seu eco disforme.

Não são as obras ou os autores que provocam


eminentes consequências – mas na pintura investe-
se, mais do que nos pasteis que são as
intencionalidades, em que o outro desperte para
generosidade e autonomia. Não me basta
reconhecer livre no meu cantinho – a minha
liberdade não se despega das opressões alheias.
Além de que a doce “liberalidade” é uma pulsão
erótica demasiado difusa que nos ultrapassa. A
empatia, que existe na natureza como formigação
incontornável, é libidinosa e procura estabelecer
continuidades entre formações. Também um
impulso contrário e amargo arrasta consigo todas
as formas, esclerosando-as, aperfeiçoando-as,
tornando-as clássicas e depois cancerígenas. A
cartografia das formas é útil para produzir
programas e não para fidelizar a estereótipos. Os
catálogos do sedutor são testemunhos da
apetência pela diversidade morfológica. As
amantes mantém-se vivas como comparação e
doce memória, mas o apetite formal fá-las parecer
descartáveis.
A pintura como sabotagem das convicções?... A
crença e a descrença em si própria dá-lhe a
ocasião para fecundas exercitações. Teatralizamos
as auto-justificações, menos pela má consciência
que incita à justificação, e mais pelo prazer de
forjar tais hipóteses, mesmo que estas sejam pouco
adequadas, como um fato dois números acima.
Mesmo uma discussão é um fogo-de-artifício em
que o improvável reconhecimento recíproco de
factos se parece afundar na violência prazenteira
dos argumentos improvisados.

“Nas obras de arte encontramos: o fausto, a


ruptura, a amizade, as emoções pela Natureza, o
inominável e a mão que dispõe.” (?) – tudo isto
chega para justificar o termo “obras de arte”, se
conseguirmos perceber que nessas obras isto é
partilhável. Não confundamos o inominável com
Deus ou o seu fantasma. O inominável também
não é o silêncio ou uma emoção mais pura. Antes
uma emoção forte mas impura que não tem a
tentação, sempre imprudente, de designar. A
consciência, ao realizar as suas risonhas pulsões,
recompensa-se. As obras de arte são recompensas
para os que nelas se aventuram muito antes de
chegarem a ser exposições, porque foram
experiência, em capítulos, de um romance de
fabrico.

A alegria não é a satisfação de idealizadas


medidas, mas a vertigem de uma gargalhada
sacrificial que procura presas para os seus desejos.
Na alegria é a expansão que se torna corpo, e
como tal uma virtude. Tudo menos uma
virtualidade.

Górgias e, mais tarde, Nagarjuna introduziram o


não-ser como noção desestruturante dos
silogismos mais fiáveis. Górgias limitou-se a
assinalar, de um modo humorista (mas
criticamente responsável), a impossibilidade
comunicacional ou a do Ser (antecipando as
impossibilidades de Kafka). Nagarjuna foi mais
sistemático ao tornar explícito, passo a passo, que
todas as situações, do ponto de vista lógico, são
insustentáveis. Algures adiantei: “Quem não
considera o não-ser compreende a arte sem
distância. O não-ser corresponde à imaginação
que trabalha e ao animal.” O “não-ser”
desdomestica e animaliza – devolve a graciosidade
e a necessária proximidade/distância (a
paisagem). O trabalho da imaginação é a
produção de dissimulacros. São estes dissimulacros
que nos dão dicas sobre o que é que é a eventual
“realidade”.

Faltaria e faltará sempre um público ideal, que


seria descontinuo e que se estenderia ao longo de
séculos, se os séculos humanamente acontecerem.
Forjamos um publico, menos ideal mas mais rico
em opiniões que as que apenas se limitassem a
acolher os nossos benévolos efeitos ou a reproduzir
as nossas carismáticas (ou cariadas) opiniões.
Acolhemos a simpatia dos que connosco
simpatizam, mas desconfiamos da hipótese
grupista de claque, a aplaudir ao menor vómito de
chispalhada. Também não nos fechamos no
purismo elitista senão como desconversa
presunçosa entre diferentes – desconversa essa que
pode muito bem ser amorosa. E mesmo em
questões de amor somos amadores, por maior que
seja o virtuosismo e outras competências técnicas.
“Trabalhamos em ultrapassar os nossos limites ou
trabalhamos em amar”(idem). Retiraria o termo
“trabalho”. Falaria antes de de uma
disponibilidade exercitativa como desejo de nos
superarmos naquilo que somos e de partilharmos
esses hálitos superativos.

A ilegibilidade não existe, e a dificuldade é uma


falta de hábito. A simpatia da pintura é imediata. A
sua acessibilidade pode precisar de alguns
requisitos, e o seu ar misterioso pode ser
esclarecido por alguma informação adicional. A
pintura é um lugar que se parece de encontro e
onde pretendemos falar de tudo e onde muitas
vezes não falamos de nada concreto. O que
acontece acontece por ansiedade dos tais hálitos
superativos, mesmo que nos inferiorizemos em
resultados medíocres.

A pintura não nos é vocação porque lhe é anterior,


nascendo nos partos e-vocativos: quer arrastar
antepassados através da inflamação de um dom
que poderia ser de outro tipo.
Não é apenas o olhar sexualizado que faz o pintor,
porque a sexualização é-nos dada mesmo na
cegueira e muito antes de pinturices, mas antes a
intensidade da sexualização que se torna
preponderante no olhar mas que arrasta o corpo
todo. O olhar incendeia as atracções, e ao
sexualizar os olhares, não só os do pintor, mas
também os que se alimentam da sua pintura, torna
a sedução reanimadora duma vontade de
conhecer o que ainda não se conhece. É a
aventura que vem prometida na pintura.
O Mundo interstícial

Como é que aparecem e desaparecem (inclinando-


se como devorante monstruosidade) as
famigeradas forças da Forma?

O que é que nos trai e atrai? O que é que nos


apela à pele ou a repele?

Em que incêndios nos deixamos incensar? que


tragédias nos apetece temer?

A Forma torna-se aparato nas parecenças


patéticas/paródicas do homem. A sua estranheza
supostamente inquietante é uma inclinação para os
rios do riso que a faz deslizar de aparição em
aparição sem que uma ilusão final, apocalíptica ou
nirvânica, pontue definitivamente.

O homem é uma criatura que se auto-cria gerindo


famílias de formas todas elas falsas, porque mais
antigas que as ideias dos arquétipos. Todas as
formas são a fatalidade de o já terem acontecido e
acamparem connosco. A sua inevitabilidade faz
com que os outros estejam demasiado presentes
como presenças incómodas. A proeminência e a
capacidade de propagação das formas são a
apetência da prova ( que se desprova?). Dão-nos a
entender que um erro e um desejo de errância as
habitam. Qualquer justificação seja teleológica,
ontológica, ateia ou simplesmente desbocada é a
insistência na glória de um erro fecundo.

O meu aparecimento é o desaparecimento de


muitos outros. Mesmo a minha involuntária
presença lança laços tentaculares sobre tantos que
ignoro. São as comédias do reconhecimento que
engendram as relações de poder que fazem com
que os outros sejam outros e que eu me queira em
cabana, seja solipsista, seja em suposto desafago
de desapego. Somos absolutos no que temos de
mais privado. Somos, não por direito, mas porque
nos falta qualquer direito ou uma razão que nos dê
garantias de nos garantir.

Assentamos arraiais nas taras que nos


singularizam.

Os imprevistos que ele constitui na sua solidão


tornam-no eventualmente mais consciente ou se
calhar não. A lucidez, que chacina
impiedosamente as aparições com razões cada vez
menos soberanas, é porventura o contrário da
iluminação, com a sua simpatia indeterminada que
assenta nalguma cosmética e em bastante folclore.

Queremos emigrar das nossas manias hábeis para


uma revolução que nos revogue e que destitua os
hábitos que nos fazem e refazem, que nos «fugam»
e nos refugam. Julgamo-nos quando fugimos às
brasas das sardinhas de qualquer juízo. Somos
apesar de tudo intensos mesmo nos prefácios às
intencionalidades.
Só me dou a entender com alguma imposição,
mesmo que esta venha mascarada da mais doce
simpatia. Modifico-vos mesmo na indeterminação
que o registo das formas propaga. Determino-me
na minha indeterminação e indetermino-me na
fancaria das formas que vou formando –
acompanho-vos como aterrorizante empatia.

Os mimetismos são a radiação de qualquer


entendimento, com ou sem linguagem por cima ou
por baixo. A mimificação é prelúdio à
mumificação. O mimetismo é um misticismo sem
mistificação. As modificações são alheias ao
sujeito, mas o sujeito deixa-se encarnar pela
atracção das coreografadas variantes. As mutações
surpreendem-nos antes que tomemos consciência
do anquilosamento.

A ebriedade é a consequência de qualquer


influência. Quando nos deixamos influenciar a
alegria sacode-nos como um demónio, até que
caímos para o lado e nos dá uma vontade
simpática de chorar.

Nem sempre nos apetece enxotar os que nos


procuram e nos adulam com a sua simpatia
carnívora. Tememos a magia da adoração que
procura gurus de palha para sacrificar em altar
seboso. A verdadeira beatitude é tudo menos limpa
e seráfica – está nas antípodas de toda a curvatura
lombar. É o peito que se abre, mesmo que acolha
as vindouras confusões.

Não nos salvamos porque nos assustamos com os


sustos. As últimas vontades procuram prolongar-
nos no tempo mas efectivamente negam-nos a
saciedade.

O jogo das formas anula-nos, mas se as formas


não contarem connosco anulam o seu jogo e a
própria Forma. Colaboramos num engodo, que é
o tempo. Nada há para salvar senão o delicioso
formigamento das ilusões.

GONE GORGONA

(outono 2003/primavera 2009/outono 2010)


Mário meats Maria

M.C.V. cruza-se com M. V. C.


Por diversos acasos e ângulos obtusos
E cruza-se idem aspas com muitas Antigonas metidas pelo
meio
E um Ismeno entre parênteses
Ou ainda (ora! ora!)
Ensaio sobre as negadas virtudes
Do fazer-se ao bife romanesco
Um, ou o capitulo que não capitulou de o ser

Subdividido em tantas partes quanto as requisitadas


Como aliás o restante livrito

O sofá proporciona-nos mitologias e torna-nos


moles, reflexivas (cochicham uma para a outra Sónia
e Sandra) – o suave assentar das nádegas desperta
no outro lado inconsolado do corpo o espírito de
guerrilha. Recordamo-nos de alguém que morreu à
muito muito tempo como de uma imaturidade a
solicitar alguma justiça. É a inadequação da Forma e
das fórmulas – somos intrigantes (mas não
intriguistas) nos modos como construímos e
trituramos esta estranha alegria...
FÁBULA – OU OS PERSONAGENS A LIMPAR O PÓ

O homem que não é homem é mais do que homem


e encontra-se num adequado recanto barroco com
uma mulher que é menos homem, que é a
deformação rococó do que fora um ânus – cu a
fazer-se cona ou se pretenderem vice-versa. Sentam-
se os dois na mesma cadeira para desfazerem os
romances. “Queremos que a posteridade se foda”,
exclamam ambos com um ponto de exclamação
muito seguro entre as pernas (o joelho de Mário
comprime-o e as coxas juntinhas de Maria enlaçam-
no). Será que querem mesmo que a posteridade se
foda?

O homem chama-se Mário tal e qual a parte de um


armário. Mário prolonga a idade do armário como
se fosse uma noite eterna que se arma para esconder
os homens da necessidade de se andarem aí tão
submissos, tão policiados por si mesmos, tão coitados
de odiados da consciência que se fazem habitar.
Mário confessa que o que lhe interessa é o ar para lá
do Mário: “A palavra armário, tem ar duas vezes,
mas na segunda leva acento como se lhe tivesse
caído uma diagonal ascendente em cima.”

Já Maria que se encontra com Mário quando este sai


fora do armário, se sente como um sufixo, um sufixo
algo comprido que se adapta a uns tanto ou quanto
verbos. O lado quase negador e prudente desta
sufixação faz nascer o muito querer nas criaturas ao
lado, mas por outro lado “-maria” é o desejo
instalado em todas as partes da linguagem,
sobretudo aquelas que dizem sexualmente o palrar,
como um grande arvoredo. Sónia e Sandra fazem-se
a si mesmas como uma espécie de “-maria” em
processo. Começam por soletrar as Orquideias
Atópicas tal e qual uma missa antes das albas, uma
antiguidade que se despede da noite e se preparara
para vários amanheceres. As Orquideias Atópicas
ainda estão ensonadas e bastante em jejum. Sónia e
Sandra cruzaram-se num recente texto com Byars
porque este prefere pequenos-almoços e papoilas.
Elas também. Muitas vezes estes pequenos-almoços
são um prelúdio para se deitarem, para sestas
carneiras. As sestas matinais caem-lhes no goto com
paladar a longuíssimas noites. Mas Sónia e Sandra
são alentejanas, e não sendo manas, são
manipuladoras dos desejos recíprocos.

Mário, Maria, Sónia e Sandra falam de Antigona,


porque Antigona já cá estava no meio das rendas-de-
bilros de uma certa prosa de que devemos
desconfiar. Sandra: “Toda a noite é vegetal, e gosta
de ser percorrida por caracóis”. Maria não se
esquece da sua admiração pela Gabriela também
“Maria”, justa ou injustamente chamada La Dame
aux Escargots pelo presente narrador. Quando chega
a noite os caracóis abandonam Gabriela, atravessam
diligentemente a casa e instalam-se muito
devagarinho debaixo de uma figueira que não é uma
árvore bela mas para os caracóis é uma parte tão
agradável da noite. Nos sonhos dos caracóis um tal
All Hallaj come romãs e destila filosofias que não
agradam as diligentes teólogos sunitas.
As vontades primeiras de Sóniantónia e de
Sandralexandra foram as de pôr dois acentos no
mesmo nome da primeira e deixar tal e qual sem
acentos o nome da segunda mas muito pegadinho. E
as segundas as de serem umas artistas como se
fossem conceptuais ou post-conceptuais, como a Ana
Mendieta que coitada tão cedo morreu, as Guerrilla,
ou Gorila Girls, ou lá como elas se chamam, ou um
Gilbert & George na versão Gilberta e Georgina em
que a vida delas dá em escultura, por vezes até
social, ou inútil dandismo, ou brejeirisse, ou conversa
de velha a falar ao longe sobre quem aí vem
coitadinha. As terceiras vontades são as de amar
furiosamente. Para isso citam acho que o Manuel
João Vieira : “sempre com o paraíso na tola”. É das
coisas mais bonitas de se dizer e sentir: ir para a vida
com o paraíso sempre na tola. E Sóniantónia e
Sandralexandra não se esquecem disso e dizem-no à
Rosa Herberta Vasconcelos Davida – é o Paraíso isto
– e também está sempre na tola. E depois ficam com
uma vontade enorme de se apaixonarem uma pela
outra de modo a que seja uma paixoneta mexicana,
ou italiana, sem a densidade insuportável dos filmes
do Bergman, ou como o Monte dos Vendavais, mas
depois ficam-se pelas intenções ficcionais, procuram
Gertrude Stein na prateleira e uma lê a Autobiografia
da Alice Toklas e a outra lê How to Write e ambas se
aborrecem recitando numa mesma banheira
bebendo sangria e comendo pikles ou bebendo
champanhe barato e mordiscando umas orelhas de
coentrada que a mãe alentejana de uma delas deixou
de propósito no frigorífico. Uma delas diz que isto é
como os domingos mas melhor porque a espuma da
banheira é afrodisíaca embora a banheira seja a
forma mais adequada do universo, a enorme sopa
de galáxias e planetas onde o eterno retorno, muito
nu e sem adereços platónicos e nietzchianos ocorre
sempre. Sóniantónia adianta que o tédio do
Demiurgo deve ser enorme e Sandralexandra
acrescenta que o tédio sem Demiurgo ainda é maior
porque evita a dramaturgia que é o imaginar os
deuses como molho à mistura – é como um chicharro
sem molho à espanhola. Mas o Universo é assim, um
descomunal domingo negro, frio, ou uma banheira
morna com literatura a fazer-se cubista e repetitiva
num idioma simples com uma dona de casa a tentar
fazer tricot mental como as memórias fresca das
brejeiras vanguardas mas ninguém se livra da pose e
elas ficam a posar uma para outra, tiram e põe
óculos escuros e temos a certeza que cenas deste
género se vão repetir de agora em diante.
“She was gone! Ela fora-se, findara-se e por aí
adiante, sem telefonemas ou últimos e-mails! Nós
nem sequer tínhamos reparado na sua morte,
estávamos demasiado entretidas com as subespécies
de glórias privadas, como paquidermes acomodados
às lamúrias da lama, ou a pizzas baratas. Tínhamos
constatado isso ao ler o jornal, e as recordações dela
sublinhavam as nossas mortes vindouras, mas
também as memórias que serão um dia apagadas,
sem hipótese de reprodução. Ela era tudo menos
uma deusa ou mesmo uma heroína. Eu recordava-a
no seu azedume revolucionário, no seu justo direito
de estar contra que me impressionava porque sabia
ler nas entrelinhas dos injustos governantes as suas
justas razões e um desejo sincero de levar avante um
bom governo. Eu distanciava-me dos prós e dos
contras na minha perplexidade cívica, um pouco mais
mole do que estes activos actores, mas menos sábia,
mais redundante que as conturbadas justiças-
injustiças que eles levavam à prática. Mas o que é
certo é que a recordava como se um verso
shakespeareano surgisse do passado e entrasse na
minha vida para me engasgar como uma espinha. E
enganar. (Shakespeare sabe a palitos e é bom para
citar com tapas.)” – é o que vem no caderno amarelo
de Rosa Davida a propósito de Antigona.

Rosa Davida lera certamente o Eclesiastes para filmar


mentalmente os gregos. Começava por psalmodiar
interiormente o Vaidade de Vaidade tudo é vaidade e
descobrira, como detectiva bíblica que sabia fazer
nas horas matutinas que a sombra tutelar de Abel se
espalhava como um sopro frágil sobre o moralista
que escrevera com uma inteligência afinada o
Eclesiastes, uma inteligência, diga-se de passagem,
quase ateia, muito seca. Também a morte é uma
vaidade, sobretudo na sua variante suicidária e a
opção para Rosa estava entre a festividade hedonista
com cautelas ou excessos e a renúncia mais ou
menos budista em fazer desta vida uma tranquilidade
muito justificada com o prazer da leitura em
Schopehnauer ou umas odes muito limpinhas e algo
maldosas de Horácio. Mas Rosa Davida sabe que a
boa mesa é boa companheira seja em qualquer das
duas opções e sabe que Buda apreciava um bom
ensopado de borrego e que morrer com a barriga
atestada de uma coisa assim é uma morte mais
benigna do que a de um asceta que se fina com as
tripas ressequidas.

“A sua morte ao mesmo tempo tumultuava-me e


arejava-me. Tornava os instantes com vastas vistas
para as coisas. Isto é, uma jocosa atmosfera poética
instalara-se mesmo nas coisas mais pardas. Os
ciprestes viam-se claramente da janela mesmo com
nevoeiro. E ela parecia-me agora única, inesquecível,
para lá de todo o choro ou nervodsas gargalhadas.
Via-a como uma Isolda genovesa, numa barca, entre
reflexos salpicados. Via-a no cabeleireiro, pensando
nos amantes e no dinheiro.” (idem aspas)

“Dir-se-ia uma tumultuosa ária para uma pavana


defunta de infanta. Pancadas simpáticas a bater a
sério no piano a querer magoá-lo pouco, com a voz
a sussurrar-lhe algo, porque o piano é um luto
perpétuo, e os pianistas sacodem esse som mortal,
procuram-no batalhando com esses dentes planos,
esse sorriso de calavera cínica de bodegon hispânico
- a natureza está morta, mas não se cala.” (do
mesmíssimo caderno, mas agora num registo a
resvalar para a vala)

“E sobra-nos por enquanto o tempo. Encadernamos a


fatalidade na fraternidade. O gosto do freguês
azeda. Mas a frota dos tempos cruza-se nas núpcias
de Atum com Nun. Ou de Henry com Nin. Ou ainda
de Mário com Maria. Há um tempo piramidal de
enigmas mortos e enxotados por plumas de avestruz
velho – como um parêntesis encenado, congelado,
sem mortos para o contemplarem.” (sic)
MARIA FALA DE ANTIGONA COMO SE ANTIGONA
FOSSE A CASCA DO ROMANESCO A DESCASCAR
COMO ERVILHAS NOVAS

Ária do tudo ou nada, que fizeste? Passaste-me por


cima como um herói (ou bruxo) esdrúxulo, e eu cá
pensei com as minhas botânicas, o Mário é o que
põe as coisas a dar pancadas na água muito fria e
incita ao riso romanesco. E quando eu me vejo como
uma tenebrosa crítica da moleza que por aí se
publica a fazer histórias muito carochinhas dão-me
uns achaques e uns conhaques e demonstro com as
vivas matemáticas de que sou feita que o romanesco
é a soma completa de duas coisas muito negras e
temidas – o PARADISUM e o riso.

Faz-nos medo o romanesco mais do que a morte?


Disparate! A maioria prefere a pátria ao riso, e a
verdade é que é mais fácil (e estúpido!) morrer pela
pátria do que morrer de riso. E o medo está aí,
porque o riso não mata a língua, mas dá cabo da
pátria, e a língua (a que mingua) dita portuguesa é
tudo menos uma pátria de um só – mas pode ser o
riso singular desse dito cujo, como expressão
façanhuda de uma comunhão e de uma solidão.

Antigona é a casca, dura até dizer chega. É um ovo


de uma ova, a chamar-lhe um figo Órfico, de onde
se desentranha uma noite muito incompleta, que já lá
estava sem princípio ou fim ou outras pontas pelas
quais se pegam as coisas e os touros. Antigona herda
a merda, porque toda a herança é merdança, e
mudando emudecemos para húmus. A casa dórica
faz-se feérica, antigorgonica (gona gona) no
plutónico choro que se demora e dá nas moradas
namoradas da morte. É uma chatice que se obscura e
uma obscuridade que se embrasa. A palaciana
placenta de quem faz de todo o mundo sua casa.
Tempo que se dissolve em contradictar os factos que
são velhacos através das comarcas cegas dos mitos –
as fábulas levantam-se de zonas cegas, e tornam o
canalha sublime.

Levanta-se a heroína com leves argúcias, como uma


venús verbal, e lépida arde em madre galanteante,
em galateiamante gelatinando o imperfeito demiurgo
que obstinadamente lhe deu corpo. A perfeita
criatura desfaz-se das velhas mãos que
moldantemente a ânsearam. Do escultórico e
fabricante de fábulas a favas. Porco mas leão. Entre
verde e vermelho : rosapálido.

Antigona é antiga? Antigona é “anti”, contestatária


de todos os ângulos de visão – é o elegkhos mais
radical, aquele que não deixa nenhuma hipótese em
aberto, raiva sem saída, autodestruição adolescente
por causa da injustiça que governa todos os aspectos
da natureza e os mandamentos vindos dos deuses ou
as amargamente licorosas leis que são assignadas
aos homens. Antigona é assim a expressão mais
quente desse tremor ácido que destrói. Antigona é a
inclemência de algo borbulhoso que antecede a
estupidez da prudência.
“Eu conheci imensas Antigonas em diferentes escolas,
cada uma mais fatal que a outra, mas todas tinham
tido as suas barbies. Muitas dessas Antigonas
copiavam o estilo de Maria, como um
desmerecimento. Metiam folhas na máquina de
escrever como quem ia para a cama com outros
papás literários, mas não percebiam nada das
clandestinidades e dos urinóis do Mário.
Acrescentavam ais postiços para dar ares de
indignação de criadita, e depois iam ter com a
avozinha, muito lobas más, a serem servidas de
papinhas maizenas.” (do caderno capuchinho
vermelho de Rosa Davida)
A criação move a sua condição lagarta na direcção
da pluralidade com corceis de carroceis de feira e de
modo nehnum na da pandega dissolução?

Avança Maria com as suas inquirições de quem se


empina como uma cabra numa ermo monte e fero e
de certo modo austero. “Essa é uma pluralidade
conspurcada, e em boa parte organizada, dentro dos
arrumos possíveis que lutam com os outros arrumos
que nos desarrumam – é um processo muito
mulherengo-a-dias.

Esse é o fluvial mito que se co-agita debaixo das


terras: águas madrastas vindas do pseudo-primordial
pranto (como um paramento nagual!) vertendo-se
sobre uma vida que sobra aos rios rápidos das
angustias.”
Aguenta-se Maria em Antigona como numa moradia
arfante. A casa ratoeira de Orestes e a casa
escancarada de Creonte. De Knossos o bifronte
bisonte dialoga com a ébria híbrida tebana: esfinge
versus Minotauro, coloquialmente, sem chás, cafés ou
cafunés. E como colidem e coligam no insulto
ambulatório os participantes no familiar holocausto
oracular! Os possantes bramanes agitam
védicamente os versos cornudos das orgulhosas
vacas que pastam cerimonialmente com o divino leite
a acenar para sacrifício prometido. As suas tetas têm
um poder que é o garante dos governantes. Boas
pastagens! Maria (esteja atento a esta frase o
descuidado leitor) transforma-se amadamente nas
Antigonas de que falaremos mas nem sempre.
Assopra-se na simpatia inclinada a politicas de varoa.
Persegue-a como eventual personagem a incarnar,
saboreando-lhe o mistério e os desvairados impulsos.
Outras vezes recua muito para fora do personagem
como para um cantinho numa tenda a tresandar a
especiarias do cântico dos cânticos.
Mário é um gato gaiteiro que saiu de um quadro da
Vieira da Silva e encontrou uns arredores no labirinto
(“no qual todo eu me pinto”). Os arredores eram
varredores de rua e gostavam de literatura má,
mesmo má, com heróis maus que curtem assar
sardinhas nos intervalos da maldade. Mário achou
estes tipos labirínticos, insuspeitos agentes de uma
alquimia algo depravada, dada a coincidências
supositórias. Ou como ele dizia: “hálito de habitar
vocativamente o fogo ou uma floresta que faz arder
longe os arredondados arredores & as arreliantes
reboleiras”. Mário não se quer confundir com fundos
de garrafas e Cargaleiros à espera da tinta de Vieira
que fica a secar ao lado para como pobres ratinhos.
Há uma fome de fama e há a fome de génio. Cada
uma roça o seu cu pela sua parede. O génio mata
mais que a fama. Mário confunde o génio com os
supositórios e mete meia dúzia deles a ver se o
surrealismo salta alto graças a bons pitons. Mas a
pitoniza é uma arruaceira e arrelia meia Madragoa.
Mário é um gato sem cauda porque a cortou e a
colou num quadro e baptizou esse quadro de Harrar
para que todos e todas se lembrassem de Rimbaud,
muito depois de se despir e despedir infernalmente.
Além disso todos sabem que Harrar é um horror e
Mário vê-se como um Rimbaud que também fez o seu
adeus português, sem dramatismos, mas também
sem saloiadas, à poesia. A pintura é o substituto
eventualmente paradisíaco dos exílios. A arte, dizia o
Michaux com outro paleio, é o que nos desenrasca
da inércia. A inércia pode ser o tomar drogas ou dar
cabo do fígado. A arte está ao lado da inércia como
uma possibilidade de um tipo se safar e em última
análise se aburguesar um pouco. Mas a pintura não
esquece depressa o beco infernal em que a poesia se
meteu. É uma das saídas, como o romanesco. A
poesia procura o suicídio com as mesmas razões,
acima assinaladas, das Antigonas. Por isso Mário se
faz gato a provocar miando outros gatos pseudo-
rimbaldianos e Michaux, bem longe do Mário
também mia, contra a inércia, e apesar de tudo
muito metido nela.
Apolo dorme com a pila dorida (e um pouco dórica).
Andou metido com rapazes, fez-lhes cantorias e
tornou-os um pouco mais morenaços.

Apolo é obviamente um louro, olímpicamente


oxigenado, que enlouquece divinamente quem o
adora. Uma devoção que não cura nem leva à
libertação mas que proporciona um prazer
desmesurado. Muitos confundem o ouro com o
pechisbeque, ou a obra-prima com uma nhanha.
Cuidado com os comissários das artes!

Apolo faz-me pensar em Apoladoro e por uma


associação estúpida qualquer na Hipneromaquia
poliphilia(?).

Apolo é o poleiro de onde podemos vislumbrar


Ovídeo sem ser em vídeo, mas como um escape dito
mitológico que já nos sexualiza em farmacológica
fábula desde Ur. Que o diga o Mário com os olhos
posto fremosa na cintura de Gilgamesh.
O insulto é algo animal e que existe muito antes do
homem e da arte – e eu (e tu, burlesco leitor!) penso
na insensatez futurista, dadaísta e todas essas doces
rebeldias como uma sequela sempre adolescente do
insulto que já vagueava nas aragens pré-históricas.
Mas o insulto só se tornou desonesto muito depois de
Rabelais quando se reduziu a essa vontade de futurar
e incendiar hipotéticamente os museus. Os futuristas
que morreram na primeira guerra salvaram-se da
suspeita de virem a ser fascistas. Quanto aos outros,
houve os que desertaram das fileiras, os que
lamberam delicadamente as merdosas botas do Duce
e os que se tentaram desenrascar nessas trapalhadas.

Já não é necessário insultar o público ou o perigo –


ambos se insultam a si mesmos.

O Barão Cigano sentiu-se interiormente arreliado


porque as querelas com o Mário passavam por aí. E
o Mário gostava olá se gostava de querelas como de
esparrelas. O caso do Barão Cigano foi a
oportunidade de denunciar o pudim “estruturalista”
que expropria os autores do sua voz no que diz
respeito ao que lhes saiu em grito. “É bonito ver
como os comentadores de domingo tornam
respeitáveis e politicamente úteis as suas homilias
quando o poeta (surrealista, e porque não?) quer é
ser ele a urrar à sua maneira. Certas colagens de
sentido, sobretudo algumas que se querem
revolucionariamente respeitáveis, são em muitas
coisas parecidas com as fotomontagens hitlerianas e
estalinistas que fazem aparecer e desaparecer
pessoas nas fotografias.”

Pois, balelas, amarelas como os grevistas acossados


de ictrícia.
Depois há quem diga que o poetastro se limita a
tentar reproduzir, ditirambicamente ou com
deslavados classicismos os espasmos concretos do
parto deste mundo (ou de outro, tão hiperreal quanto
este!). E acodem as proclamações ou ultimados
fadistas das peixarias que antigamente vendiam o seu
peixe na rua, com uma fé que falta aos mercadores
da cultura (idolatras de culatra). Sim «vender o seu
peixe», escamar dogmas, na rua, longe dos
escrúpulos das cúpulas e das papas de sarrabulho
dos papados.

O insulto nunca é abolido no indulto, e o acaso


abolirá um dia os dados que o imitam limitadamente.

Mário vai então para casa com o quotidiano na


manga e despinta-se a si mesmo a partir das sete
repartidas pelas quais se vai ao mundo as ditas cujas
devemos repetir pelo menos três vezes como recitativo
religioso: “sete e sete são catorze, com mais sete são
vinte e um, tenho sete namorados e não gosto de
nenhum.”
Não vamos no cortejo modernista a enterrar e orar
pelas vítimas do fraternal didactismo. Porque a sopa
modernista sempre nos quis ensinar como devíamos
ser asseadamente modernos, e a mim também me
gusta com ganas em castelo muita da antigualha, e
as suas excentricidades, e os lúbricos poetas
escalabitanos e as coloridas casas onde se
pintalgavam deuses cornudos e os faustos floridos
das várias índias. Mário mostra por A mais B que as
modernices a que nos vêm habituando há pelo
menos quinhentos anos os que sabem bem escrever
fazem feder o que linguejamos – latrinas latinas com
regras peregrinas – vulgatas para pôr todos a
escrever igual e a pensar igual – esquecem-se que os
gatos incomunicantes são vasos palrantes. Dura e olá
se dura o policiamento da linguagem dos de baixo,
dos que se ortografam a seu bel-prazer, dos que não
são da castrada casta dos escribas a contabilizarem
com hieróglifos de fachada as riquezas faraónicas.
Mário não pede contos, mas que descontemos certos
mitos, como a omnipresença do que quer que se
seja.
MEMORANDO DE MARIA?

É certo que tem (e sabe a) uma certa graça proclamar


com desempoeirada voz e dar grandes gargalhadas
de altas janelas com um certo desdém pelo que se
tornou rapidamente obsoleto – a relevância é uma
intermitência muitas vezes juvenil, embora também
possa aterrar na senilidade graças a afadigadas
claques e rebuscadas quecas (surfar no arfar).

Várias camadas historicizáveis achacam-nos como


uma remediamento nesse entressentido. Agarramo-
nos a convicções como a edulcorados gurús.
Tornamos bendito o modo como somos reciclados
pelo destino e até achamos pouco. Convertemo-nos
a uma embaciada clarividência e depois lá vamos
cravando os dentes na nossa própria carne. Mas
acima de tudo tememos as garras muito ordinárias
da burocracia que noutros tempos se esmerou com a
caligrafia e que agora se desmazela em hálitos
cibernéticos, rápidos, nauseantes. Lembramo-nos que
havia e ainda há graça em determinados gestos e
sorrisos e que não é encontrá-la nas donzelas e em
certos animais.
O golfe é um desporto (se for um desporto...) soft
porno bom para porky pigs e presidentes das
repúblicas. Por isso uma mãe ou uma irmã têm
cabeleiras postiças à disposição. E as lavadeiras
estendem nos riachos as suas roupas indiferentes ao
que dita el rei, porque a pátria foi feita por quem
para si se dispôs a tal gana, e muitos homens
seguiram tal soberano, e outros, mais brandos e
desajeitados, adoptaram seus preceitos, e diz a
Dama dos Caracóis, este espaço que dizemos
“pátria” é uma bilha partida, como se nenhum céu,
nem nenhuma terra, nem nenhum de outros
elementos que queiramos ter por excelsos,
convergissem no que quer que fosse, e as lavadeiras
olham para a nossa Gabriela (a santa!) que não leva
nenhuma bilha na cabeça, as pátrias levam-lhes os
homens das suas dominações ledas para dominações
mais frias que lhes atiçam a morte e os excitam para
a guerra e na guerra se fazerem uns brutos que
entram pelas casas e se assenhoram dos corpos que
lhes muito bem apetece – então os presidentes da
república, que são como filhos de reis e participam
na mesma ilusão de bilhas partidas, continuam o seu
jogo de pôr bolinhas nos buracos, com uma
disposição muito zen e serviçais apanhando-lhes as
bolas.
“A ti a entoação da graciosidade possível, ó perigosa
irmã!”, diz Mário como se bisbilhotasse a propósito
da Madalena de Jesus. Mário compreende Jesus a
partir “desse prostituto afeminado pelo qual o Senhor
se deixa amar. Jesus, belo barbudo, machão, viril,
como um pescador rodeado de diligentes
marinheiros nas aguas da galileia, bom orador,
morenaço, com os pelos do peito à mostra, mais
cigano que ariano” – pensa Mário.

Maria escreve sobre Madalena como uma variante de


Isis, mas não se dá conta, nem através de Virgínia
Woulf de que toda a escrevente é uma Madalena que
finge, com convicção, não ser Isis.

“E se digere Isis? Ou só a mastigamos como


polifónica pastilha-elástica? Salvé Osiris, deus da
atonalidade e do fatigante serialismo!” – arrebata
Mário.

P.S.

Nas rimas Mário confunde Isis com iscas, que dá


para rimar com ariscas ou arriscas. Maria aproveita a
sugestão e apetece-lhe mesmo a sério a sério é uma
Isis de cebolada.
MARIA FAZ UM BALANCETE DAS CONQUISTAS

Temos tendência a resumir mal e porcamente as


directrizes pedagógicas dos nossos papás e outros
selectos educadores: é nosso dever trair
afectivamente os antepassados, mas seguimos-lhes
as rabugentas pisadas genéticas muito para além da
fatal mímica. O pai severo que se deixa morrer pelas
circunstâncias e não deixa em herança nenhum
afecto, e a mãe balanceando entre a aprovação e a
desaprovação, mas sempre com os paninhos quentes
das conveniências, são os arquétipos de várias
gerações que não as novas, porque nestas os pais
porreiros e as mães fixes perdem o controlo da
consola rápidamente.

Meninas bem de Lisboa, das que frequentaram


missas com acutilante consciência, sem refilar, e que
descobriram no Estado Novo a possibilidade de se
evadirem das famílias pequeno-burguesas com seus
dramas de desonra, que é feito de vós? Estais
acantonadas nas vossas solidões de emancipação?
Estais velhas ou mortas, como se a libertação, o amor
livre e a promessas revolucionárias vos tenham
deixado o corpo desiludido e a mente sempre
inquieta?

E somos magnetisadas por muitas coisas de um só


sopro, o que quer dizer que tudo nos atrai, mesmo
que isso pareça circunstancial e que um pudor
disfarce os enervantes atractivos. Mas com o tempo, e
(não podia deixar de ser) os consumos, perdemos o
respeito pelas dicas, divos, glórias passadas e
palitativos presentes. O nosso apetite donjuanesco
não se desencanta facilmente, mas as antigas
cândidas belezas do mundo já sabem a sopa velha, e
nem uma resumida meretriz ou um giraço gigolô
pode dar a corda ao fulgor das imaturidades. Ou
será que pode? Se calhar uma imbecil vontade de
devir juvenil desemboca nas nossas almas como um
meteorito pouco cavalheiresco, e nós cuspimos a
nossa artrite velhaca e ficamos embasbacadas e
abismadamente surpreendidas com as belezas novas,
venham estas da cultura ou da gesticulação ambígua
dos que acabaram de se safar da adolescência.
Porque a teologia é romanesca e meteorológica ao
mesmo tempo. E cai nas nossas ficções ateias como
música de intermezzo.
Antigona percorre o campo de batalha com uma
navalha na mão porque quer barbear (ou castrar?)
belos mortos. Os ex-habitantes dos cadáveres já
fumam charutos havanos no Hades. Um
escafandrista situacionista cruza-se com este cenário
épico em busca de mais um hábil non-sense. Está um
fim-de-tarde digno de um quadro de Claude Lorrain
e o ogre come umas batatinhas novas e lê Holderlin
numa edição bilingue. Ele podia aproveitar para
comer os cadáveres, mas prefere batatinhas
salteadas.

A paixão faz-se febril porque perdulária. Nenhum


troféu, nenhuma garantia, nenhuma acumulação
amorosa, nenhuma antepenúltima vanguarda –
desperdício sem banca ou mais-valias. E depois
Antigona pensa como se tratasse de uma abstinência.
Falham-lhe as guturais, sobram-lhe sons de língua
molhada. Há nela algo de balhelhas. Está só a
arrumar o mundo antes de se despir da vida. As
roupas dela parecem-se com camisas de noite de
burguesas americanas de meia-idade nos filmes dos
anos 50. Mas não tem rolos nos cabelos.
O campo de batalha é um cemitério de bagatelas.
Alguém irá nele plantar favas e chegarão homens
com cornamusas que as soprarão como quem assoa
um nariz gigante. Zéfiro afina os sons da brisa do
crepúsculo. Há amantes que se beijam num caverna
ao lado. Populaças plebiscitam. A plebe aplaude as
plumas. O crepúsculo demora e doura os bicos de
papagaios. Ismene sente-se emproada e empolada.

Ai, intrincado tumulto céltico, inferninho de


ornamentos, anti-deserto!
LAS MENINAS, MUY MOSCOVITAS

A infanta descasca uma banana couraçada e tem


uma epifania com as escadarias de Odessa. Há nos
bons realizadores de cinema a ânsia retorcida dos
sátiros. São caprinos e gostam de fazer travellings
como se fornicassem antecipadamente com os
espectadores. (Ravel à revelia, rebeldes sem calças).

A outra infanta arranca-se cabelos numa emanação


malévola de heroína teatral encenada por um
marroquino dissidente. Tem intolerância (na tola) ao
canto dos rouxinóis. Senta-se perto da côr rosa. Sabe
que as letras têm cores que perfumam as nossas
ambivalências. E também sabe que os romances
oitocentistas tentam ser meticulosos na descrição da
epiderme do mundo, como um atento cientista que
põe adjectivos ao que vê no microscópio.

Diz a primeira infanta: “Tenho alguma intolerância


perante o laranja-pálido. Mas distingo-o com
franqueza do salmão-acizentado. E também gosto da
multiplicidade de cores que subtilizam nos quadros
de Chardin, com muitos gatinhos à mistura.

A outra mesma infanta apaixonadamente


monta/mente/petrifica o marido (que tá sofrego de
calores sexuais) e o amante (ao mesmo tempo?)
medusando através das partes baixas. O marido e o
amante tomam consciência de que fazem parte de
um trio errado e arbitrário que se compraz a ser
musicado por tangos desmazeladamente
piazzolanos.
Aquilo a que chamamos Kolossos pouco mais é do
que um orquídolo – os testículos/clítoris como
aparição embriagante do divino – as orquídeas raras
que levam no seu puro encontro ao êxtase há muito
anunciado nas gazetas filosóficas e nas notas de
rodapé dos entomologistas.

"A culpa do Kolossos é dos gregos", diz Mário. "Prefiro


tudo o que não é letrado, controlado, legislado. A
linguagem escrita, isto não o disse Platão nem os que
o seguem em fila indiana a cheirar-lhe o cú, tem o
defeito de ir multiplicando as leis e os decretos ao
deus dará. Tirem a escrita e ganha-se em
liberdadezinhas. É certo que eu sou tanbém da
escrita, mas escrevo na cabeça, repito-me, recito-me
muito interiormente e um bocadinho exteriormente,
quando estou no banho, dou comida aos tarecos ou
rego os cactos. Só escrevo quando a coisa está polida
dentro da carne. Hoje, os poetas, caso os haja,
escrevem demasiado fora. Quando sai um verso vem
hipotecado, e com muitos juros a pagar. Prefiro, por
isso mesmo, o que nos chega, ainda que
perigosamente transcrito por recolhedores antigos ou
os timidos antropófagos que se dão por uma coisa
parecida com profissão que é o antropólogo."

"Depois despertamos a fêmea inerente à subincisão:


Kali jagunça que vagueia aboriginalmente, face
múltipla, androginia demasiado sexuada, sem frieza
angélica, Janus cavalgando Eros e Thanatos, doçura
cromática, suave odor." - diz um amigo muito culto
de Mário

"Concupiscência wagneriano-motimovida com muito


calo de ficar à espera com a conversa da vizinha
sobre as suas safadas cifoses (coitadinha da
corcundinha da vizinha!). Zenão levado a música e
libretto, aguardentando a agonia brejeira de os
heróis irem para uma decepcionante cama que
desfaz os afagos fatais do absoluto. É sempre a
mesma amargura de um heroísmo de pensão e a
tristeza de voltar para o café literário com os pides a
serem fintados. Aliás, o prazer do café literário é dar
literatura oral a pides, bastante melhor que os peidos
poeticos dos manifestos e antologias. Será que há
algum pide escrupuloso que tenha anotado com rigor
as larachas que nos saíam entre a bica e as
bolachas? Um grande involuntário escritor graças à
bufice? Mas os pides têm o condão de uma estupidez
à prova de bala!"
Lá vem o Almada a passear a sua cadela Perséfona,
Deusa dos Proletários, Vénus dos subúrbios peludos.
É uma cadela que morde, como a glória, e que não
ladra, como a crítica literária. O Almada hoje está de
mitologias, o que não é o seu forte. "O menino
almadinha, no que respeita a mitologias, ainda está
no bê-A-bá", diz o Mário para a malta com um ar
pernalta. Mas uma cadela com este nome assusta,
até os surrealistas, que são, sem excepção, todos
burgueses, e deliram, quando lhes dá para isso, com
as carnes tenras das criadas das primas. Os senhores
surrealistas também são meninos, embora um pouco
estrambelhados, dizem as idem aspas criadas velhas
das suas mamãs.

Os bafos de Perséfona sentem-se no sabor das raízes


e na preciosidade das graínhas – frutos como pérolas
cadentes. Por isso de pouco importam os tesouros
que albergam os mundos subterrâneos. O autêntico
ouro sobra aos raios solares e ao olhar matador de
Apolo.

Almada ia para Bicesse a tentar acertar com as


geometrias. Ficava lá, muitas vezes nu, sem que
ninguém o visse, sem que o visitassem. Almada tinha
a desculpa da geometria para o pergiçar. É o òcio, a
antinomia sagrada do negócio. Almada adoptou
alguma bicharada do campo. A Perséfona, pois
claro, uma gata velha chamada Atena, um ratinho a
que chamou Hermes, 9 catatuas todas Musas, etc.
Tanta adopção dá-me vontade de chorar.

E depois vinha à cidade ver a mulher e os filhos, com


saudades elegantes de passear com boas roupas,
quer na baixa quer nas avenidas novas. A cidade é
um inferno polifónico e enciclopédico– as cidades
saboreiam a sua auto-degradação como algo
encadernável, mundo admirável na sua perfeição
geométrica e na sua deterioração matérica,
voluptuoso hibrído de avacalhada graça. Almada lia
as proporções e as relações nos edifícios a ver o que
lhe saía na rifa. Depois ia com a sua cadelinha para
o Museu de Arte Antiga a farejar os painéis do Nuno
Gonçalves. Os funcionários eram simpáticos e
ficavam com a cadela, enquanto o Almada se
comovia e choramingava diante dos tais painéis.
Depois vinha para o jardim e ficava a ver os navios
cá de cima, a sentir-se muito milenar, enquanto
Perséfona, uma cadela rigorosamente salsicha,
urinava nos canteiros.
E todos sabemos que a poesia é a tradução desse
fluxo que vem das gargantas infernais e que quer
subir como incenso a uma narina demiurgica - diz o
papagaio depois de recitar uns versos de Villon.

Traduzimos com pouca sensatez o sufrágio das


necrópoles - diz um segundo meio descomposto.

E há quem ponha os parâmetros acima dos estertores


poéticos - acrescenta o cágado Confúcio.

Sabemos de antemão que o universo estrebucha em


shlokas, em ritmos polígamos, e também em
escapadelas de Ulisses pelas caladas das Calypsos -
arrebata o macaco Homero.

Mário tira o capachino ao fatal fadista. Este,


amedrontado resvala para um cantinho e desata em
sonoros meteorismos. Ai estes bacanos de
escapadinhas!

Falhamos historicamente, depois de alguns sucessos


circunstânciais, porque é mais confortável falhar, e
viver aqui é acumular falhanços e mandá-los cantar
ao ceguinho.

A história é maneta. Dá-nos lições de opereta. Põe-se


umas pitadas, exageradas, de comoção poética e
acabamos em ecxemplos, consequentes, de
decepções.
Este gajo que se faz passar por autor sabe que não
calha bem juntar o Mário com a Maria. Primeiro
porque o Mário não está cá para lhe dar porrada
verbal, lhe refinfar, e ser devidamente achincalhado,
e depois a Maria vem de um planeta mais terrestre e
menos uraniano – os compromissos que compram
missas não lhe passam ao lado. Maria não namora o
absoluto, mas bate com as cabeças que
herberticamente menstruam nas paredes
incendiárias. Além do mais Maria (e um tal Nuno
ainda mais) gosta de citar o Mário como um motor
que em pequeninas frases incendeia o seu
romancear. A conjunção muito opinativa que estes
dois malandros geram é confusa nas cabecinhas de
Sónia e Sandra. A gourmandise literária de ambas
vislumbra um nó paradisíaco, como se fossem as
duas vestidas de marinheiras para uma pensão no
cais do sodré e sodomizassem (o Mário? Òmessa!)
com um godmiché assinado por Duchamp e
baptizado (sic) por Breton.
A ruína é a essência, o fragmento a escória. Não se
deve olhar para ruinas com olhar piegas, porque nas
ruínas tudo trai a pieguice, como se fosse uma
devoração indecorosa. Há uma babelização como
dádiva que mascara o reconhecimento anterior às
linguas – a mudez pré-oracular onde os deuses
estrugem com incenso.

Maria dá-lhe para fazer bifes. Com batatas fritas,


òbviamente. Sente-se uma burguesinha. recorda os
quadros do Pietro Longhi: interiores venezianos com
as familias janotas, conversáveis. Não se sente nesses
quadro o cheiro a bifes. Mas as cores da pintura
fazem-lhe pensar em sopas com massas, e até em
especiarias. Maria apetece-lhe imediatamente uma
chávena de chocolate quente, bem espesso. Logo a
seguir aos bifes não rima. Mas apetites são apetites.

Mário, pelo contrário lembra-se de estranhas cuecas


de velhas rameiras onde seria belo escrever com
caligrafia gótica traduções brejeiras de Luciano de
Samosata. Mário leu os diálogos do Luciano em
tradução francesa. Quis combiná-los com
Gilgamesh, mas saíu mal. Depois tentou com o
Rimbaud, e também saíu mal. Mas as cuecas dão o
tom do maravilhoso desejável, como se um conto
cheio de anões e matulões saísse dessa visão e
trepasse até certos mundos que andam por aí a
prometer muita coisa. Mário, que pescava em àguas
surrealistas percebia a tentação egipcia com os
cordeirinhos herméticos, mas acabava sempre em
pastilha satírica, algo picaresca, em folhetins de mal-
dicência, sem pôr de parte quer os mancos quer as
tamancas.

Letreiros deteriorados em tabernas espanholas do


século XVII, pulgosas, tristes e adeptas de um Baco
neo-realista com remeniscências oleosas de
Velasquez. São sitios para se morrer de bêbado, a
jogar dominó, com senhoras gordas que se deixam
apalpar nas mamas. É uma tristeza mesmo para
chorar, er onde se sente o cheiro, nem por isso
desagradável, do carvão, do petróleo e do bagaço.
Mário entra na pele de Ismene e torna-se um Ismeno
– escreve-lhe o diário “ameno”. Há algo rudimentar
no como canibalizamos as pessoas que se passeiam
pelas nossas frentes. Mário gosta de ser irmã
confidente, mas no masculino. Ser noiva? Talvez. Mas
noiva da noite que se desentranha de si mesma em
novelos de Novalis.
Bandeiras abandonadas revivem a sua coerência no
espólio invicto da revolucionária reformada, com
autocolantes na gaveta e posters do MFA. As citações
grunhem porque se sentem bem referenciadas. A
metáfora é o coração tenebroso do Transmutante
(Mamutante). Um fluxo de associações circulam
esfomeadamente e os cossacos uivam. Matisse afaga
um caniche. Cunhal dá instruções clandestinas em
Peniche.

Maria fecha a gavetas da revolução e o Barão, num


quarto de uma casa ao lado espreita nas gaveta da
vanguarda. Estão todas muito cheias. Com sorte os
balbuciantes pensamentos irão parar à Biblioteca
Nacional. Moscas posam nos copos que estão quase
vazios de cerveja em cima da mesa. Há quem
consiga mijar debaixo do vulcão.

O Zero potencializa-se pavoneando-se. O Barão


segura no zero com a mão e compara-o a um pavão
e não vê semelhanças, mas vê na hesitação entre a
igualdade a comparação a um caminho intermédio e
alternativo: o Zero é um pavão como alternativa a si
mesmo. Habita-o como limite a mais disparatada das
contradições revolucionárias. O Barão rebola-se a rir
como se isto fosse mais uma performance.

(consequências burlescas por causa das ginásticas


suecas da pipi-das-meias-altas – descodificação de
serviços secretos que sobra às museologias bárbaras,
atravessando depois, e ao pé-cochinho, as Coéforas,
e continuando de altifalante em altifalante até aos
pavilhões auriculares & chineses em que Cesário
Verde é musicado por um Varése alfacinha)
Ela prepara gulash para o tolo do marido enquanto o
amante se diverte numa cervejaria com outras tipas!
Maria é amiga da mulher cozinhadora e das
pândegas amigas. Mário é amigo de comer tripas.
Vão os dois num Fiat 126 ao Porto por estradas
secundárias por causa de outros amigos bastante
principais. Mário toma nota de certos números de
telefone que vêm nas casas-de-banho dos
restaurantes de camionistas. Desviam-se pelo
Ribatejo. Vão à Golegã ver os campinos e a Rio
Maior relembrar as mocas. Entretém-se com o vento
no Entroncamento. Desviam-se de Fátima como do
Demo e recusam-se a pés juntos a dar um saltinho à
Figueira da Foz. Param em Aveiro e dão-se a ovos-
moles. Metem moedas em slot-machines em Espinho
e ganham sem quererem uma pipa da massa. Mário
acha que Dadá é tão bom como Gagá – “os lares de
terceira-idade estão cheios de dadaístas dos quais
não há história nem epitáfio.” Maria dá-se a
anuências. “Depois da síncope cardíaca é-se o
inconveniente que mina a sanidade da família.”
Chegam ao Porto. Diz Mário que gosta muito de ir ao
Porto porque foi ali que ele fez o primeiro e o
segundo aborto (o primeiro é nascer-se, o segundo...
adivinhem...), mas que Coimbra é o vampirismo das
Universidades – tudo aquilo lhe cheira a senhor
doutor. Entretanto em Lisboa o marido da amiga (e
das suas amigas) come gulash e sente-se feliz porque
andou a ler um certo livro comprado num alfarrabista
chique das três Marias. Mário pergunta por fim a
Maria como quem não quer a coisa: “vai uma bulha
no Bulhão?”. Acabam aos trambolhões nuns rojões.
O ANÃO ORNATO REFLECTE EM CÔRO COM O
AUTOR

Um certo senhor (através do seu ventríloquo


personagem) refere o salto que instantaneamente nos
mantém altos (a nós os “baixos”), tão altos ou mais
altos que os altos de outra maneira. Não nos revela
que esses dons são concedidos ou se exercitam: a
arte de bem saltar, e a capacidade de permanecer
um bom tempo no ar – a leveza. Dois atributos que
nos agradam e que só podem ser eventualmente
superados pela suposta capacidade de levitar.

"Os saltos altos são como os saltos baixos, o sublime


é como o vil, tudo está em tudo até ao entrudo",
assevera nos entretantos Maria.

Esse tal senhor anda-nos a roubar ideias a que só


agora temos acesso. Chegamos atrasados (até
mentais), mas não nos importamos. Costumamos
chegar adiantados, porque é o tempo que se atrasa.
Neste caso o tempo do dele adiantou-se porque o
nosso tempo estava distraído a olhar para outras
coisas. Há coisas que pedem muito tempo e nós
importamo-nos com as coisas e damos-lhes o nosso
míudo tempo.

Esse mesmo senhor é a prova dos nove da


canibalização e de como o pastiche, se praticado em
muitas direcções, é fixe. Tiremos-lhe o chapéu como
se tivéssemos admiração ou inveja. Na verdade
temos-lhe é estima, pelo menos para já.

Maria e Mário acham que é mais difícil ser pequenino


e baixo, mas em milhentos de sentidos vantajoso.
Aprender a rastejar, ser o húmus dos que se
humilham, ou, com mais exactidão, fazer-se passar
numa cáfila pelo buraco de uma agulha. Há um
mundo que os altos estão tão à espera que não se
aperceberam que têm que diminuir o tamanho dos
membros (sabe-se lá através de que cirurgias!),
sopretudo os sexuais, para saborearem a
pequeninisse.
“Leda é antiga porque as suas curvas encontram
adeptos para cismos. Subtis teólogos cheiram as
escatológicas entranhas do Apocalipse e fixam-se por
consequência em parábolas fecais. A deterioração é
certa! Leda vai à taberna pedir uma caneca de vinho
para dar aos meninos. Também compra gasosa,
porque a gasosa é boa para ler Kafka, depois de
misturada com um vinho baratucho. Quando
entramos nos buracos de Kafka e damos com a
apocalíptica luz do dia achamos essas cores tão
paradisíacas. Por sua vez Kafka não fica por aqui e
exige uma boa sangria, com canela e um leve e
áspero sotaque castelhano.” (do caderno leonardo de
Maria, com muita anatomia e amor)
“John Cage puxou dos revólveres do silêncio e disse
com alguma frequência que o camarada Mao era
fixe – podemos condená-lo por ter sido um
circunstancial simpatizante de um dos mais atrozes
ditadores de sempre? E as saudações de Picasso a
Estaline? O radicalismo dos que se acomodam em
sofás de anátemas também gostam dos bigodes da
música do silêncio? Pitigrilli denunciou outros judeus
como ele para salvar a pele? Savinio namoriscou por
momentos o regime fascista? Heidegger não era
Hitler... Mas era um patêgo que gostava de barrar o
pão com rançosa manteiga pré-socrática. É certo que
não curtia sofistas, e era um tipo demasiado sério
para desfrutar as frivolidades agri-doces do
romanesco. Não entremos nestas cavernas
maniqueístas!!! A violência dos double-binds com que
se costura a política tornam os artistas e pensadores
ainda mais inábeis. Dou-lhes o benefício da
inocência.”

“Eu acho que o Cage usava boxers com ratos


mickeys”, desboca Sónia. “Será que ele empregava o
I ching para escolher a roupa”, reboca Sandra. “A
indeterminação é fixe quanto ao toucador?” –
acrescenta a airosa Davida enquanto arranca com a
pinça um pelo semi-branco da sobrancelha.
“Cinzas deixadas pelas instigações de Ares. Vento a
urrar para lá dos desastres guerreiros. Mas as lendas
amassam-se com signos. E gostam de chamar à
baila, com excitação e tremor, as pastilhas épicas
deveras elásticas.” (do caderno apócrifo de Sófocles)

Holderlin lê estas linhas com cara de tradutor. Acha


que o autor desta estória se esqueceu do fantasma de
Édipo que sussurra com uma máscara em cada
pensamento de Antigona. A presença arrepiante do
pai na estória faz parte do jogo paterno. Antigona
também se queixa do pai, porque se vê como uma
“bengala mamalhuda” da sua cegueira. Édipo é
como um elefante que perdeu a pata. Ismeno
consegue confundi-lo com um deus do vale do Indo,
Ganesha, mas ainda não percebemos porquê.
Holderlin aprova a ideia e pensa em encenar o Édipo
Tirano com uma cabeça de elefante no lugar da
cara. Édipo acaricia com a sua tromba as nádegas e
as costas de Jocasta. Esta sente um frémito divino
nessas carícias. Antigona recorda a cumplicidade
entre Ganesha e o rei cego do Mahabharata – “a
cegueira é uma arte de escutar estórias ou uma
mania de predizer factos”, acrescenta Holderlin, “e
nós participamos nessas estórias como partes
subdivididas do divino”. Antigona escreve a sua vida
para ajustar contas com o seu pai, sobretudo com o
horror dessa tromba eminente, e que lhe faz
balancear os pensamentos.
O fatigado violador entrou pela Amazona adentro
como se a guerra fosse um pau em riste rapidamente
murchável depois de ridiculamente esfregado em
flexível antro. Mas os machos insistem em medir a
sua relevância por palmos e violências. O seu poder
é só pimba. Não é, menina Agustina?
Estrume onde o filósofo se equívoca na cura – as
curas fazem-se entre o lixo e o asseio, entre o insonso
e o venenoso, entre a acção repousante e o repouso
activante.

Ornato quer escrever um artigo sobre o Mário para


uma revista especializada. Pensa em associar Mário a
Nietzche e inventa um diálogo num note a caminho
das ilhas Berlengas com os dois a vomitar. Nietzsche
arranca o bigode e tenta impingi-lo ao Mário. Lutam.
Queixam-se quer de Bismark, quer da NATO, quer
da AICA. O bigode, no meio da luta é arrastado pelo
vento e vai parar como uma mosca, ao paraíso.
Aliás, assenta como uma luva na Virgem Maria. Deus
fica maravilhado e decide rapar a barba. A partir de
agora usará um bigode nietszchiano, e recomendá-
lo-á a todos os seus auxiliares, começando por S.
Pedro. Nietszche cai borda fora. Afoga-se. Chega ao
paraíso e...
Horror dos horrores, mas com molho inglês. Hera,
vetusta deusa que se enrosca como planta
ornamental nos deveres conjugais e nas conjunções
dos verbos.

“É uma deusa de gajas, ciumenta e vingativa, que


não te deixa marinhar, boa para mães, menos boa
para irmãs, e perfeita para primas.” – adivinhem
quem disse...
Ops & Ops

Ralação da Ductílissima ciência


de encastrado can-can
que nos traveste a alma
esticando a perna antes do pernil
ou (prodígio dos prodígios)
Gorgonaletheia
verdade que medusa e nos «amusa»
que mata pelo olhar
as caras ânsias icáricas.
Taurina Gorgonapigmaleia
Guliverada que se finda verde e vera
numa distinta e cupiscênte displicência
Fino atino
Sibilina saloiada & outros ardores!
A palavra decassílaba-se pindérica
por virtude de certas defeciências poéticas
Ops & Heia
Ao que se segue o capitulo dois, pois, pois, onde se
emparelham novos temas dando-se os protagonistas
a tentarem desaparecer nas tentativas de se
encontrarem, ao luar, e com sonatas apropriadas,
uns com os outros

Imagino-a como uma punk de subúrbios a partir a


mesa de sala de jantar numa discussão com a sua
velha. Imagino-a regurgitando tangos ou rumbando
tangas em encanitadas ruelas vanguardistas. Imagino
também Maria, como uma maruja mais antiga que
as antigas mulheres que esperavam os marinheiros
que morriam nas águas do golfo pérsico e que
ouviam falar dos zigurates de uruk e de estórias
diluvianas.
De Jocasta molesta-me o pensar como se destinou a
ser mãe de netos. Mas caíu-lhe uma oraculite aguda
em cima, tal como a outros que também sofrem de
apolinisses agudas. Os deuses entram nas veias e por
vezes abrem os apetites. Depois oferecemos-lhe
sangue romanescamente e sem pactos à mistura. Os
deuses participam na mais vampiresca e
vanguardista teatralização das forças do mundo –
são a nossa insensata vontade de continuar a viver
com um pouco de gasolina madrasta à mistura.

Apoplexia erótica de orquideias mobiladas com


carinho post-colonial.

Nota isto Maria à parte e em caligrafia – há na


caligrafia uma réstia de impudor (de pornografia)
que as letras do computador amputam, mesmo as
mais belas.
Pateada à Patuleia : a ingerente grama do gemido
das Marias das Fontes com os Zés dos Telhados a
beber bagaço na taberna ao lado, e elas com
vontade de verter lágrimas crocodilas a ler Corins
Tellados.
A paz apregoada pelo aurato percorria as pérgolas e
chegava à galante gola de uma matrona depilada. A
matrona punha os filhos a pentearem-se para mais
uma vez ver se piolhos os havia. Os filhos, nos
desacatos dos entretantos, descobriam no dicionário,
por um acaso enteado do crepúsculo, a palavra
melancolia. A matrona estava casada, segundo a sua
prole, com uma poltrona, e era, seguindo uma
ordem silogística a que não é estranho o som, uma
mandona.
“Vamos converter as mais insignes partituras ao
credo cínico – musicalidade, mas sem olhares
espasmódicos de pitagórico a entronizar
interiormente soberanos celestes.”

“Ditadura do sem sentido ou do senso comum?


Também não! Não sejamos rebuscados acólitos de
palhaço Breton nem badamecos de amolecida
prudência.” – resmunga Ornato com desafinação
liliputiana.
O mastabismo é onde o morto se masturba no reino
das sombras, de formas à beira de uma dissolução
total, exibindo-se imortalmente para outros
masturbadores – e no fundo a teoria museológica é
essa vontade de perpétuar erecções eternas a
pretexto de meditação e de conservação, em formol,
da memória. Maria não sabe quem é o mastabista
mor mas nós decerto o sabemos (é Augusto Barata,
mestre, no que diz respeito a artes muito plásticas, na
técnica do minete – pintura obsessivamente lambida
até causar a impressão de que o não é – na
posteridade vaca). A ambição da perfeição também
se aprimora em virtudes neuróticas no pintar
quadrados deveras negros. Esse gajo faz parte das
minhas conaissances.
Imagino o baque da bunda que bufa o big-bang –
resmunga o astrofísico que há em Mário.

Lapa, que adora com um pudor muito pintado de


negro, a liberdade incursiva de Mário, povoa os
inícios com pedras que parecem acabar em bicos –
obeliscos naturais que incendeiam os passeios
genésicos, vozeações de não-ser, suspensão de
“significação” – mas sente-se na pele, e o que se
sente é um recuo “meditativo” ao ruído (“futurista”)
dos ínicios, e ao silêncio que o desenrola como um
papiro.

Maria está-se nas tintas para os supostos ínicios –


prefere os partos concretos arvorados em beleza –
Diotimas de Platão a parir a carne da revolução – a
criança que vem é já uma não-inocência, e embora
frágil como uma planta de luxo, traz um furor que
nos perturba as audições.
Cabia tudo lá dentro. Era um livro em que os outros
iam morar. Subalugavam-no. Eram perfeitos
inquilinos. Depois deixavam de pagar a renda.
Encontrei muitos deles como pedintes, na famosa rua
da amargura. É uma pena.

Mário tinha o onanismo em conta, mas não pagava


o que ficava a dever. Achava mesmo que nunca se
fica a dever. Depois de mortos são outros os que
pagam as contas.

O dá cá aquela palha. Maria dava, mas não dava


aos pobres, que são os que mais merecem. Só dá
aos amigos. Os pobres que se revoltem para
conquistarem aquilo a que têm direito. Certas vezes
Maria oferecia aos amigos o melhor que se pode
oferecer: mais amigos.

E os pobres, também precisam de amigos?


Marginalia - obstetricismo e estética neo-canibal (cura
à base de manifestos).

Ismeno curava-se numa espécie de manifesto que


não era manifesto mas rimas a fazer de lengalenga –
o manifesto andava à procura do tema, mas
sobravam suspeitas policiais de que os indicies
setecentistas vinham para ficar como uma salada
imperfeita – o que era uma forma de espremer a
borbulha de uma evidência temática em erupção.
Ismeno punha-se cócoras a modos que aguardando
Gongora. Como quem não quer a coisa apareciam
uns tipos cabeludos que iam para o campo fazer
piqueniques artísticos. Sentiam que as influências
eram umas trapalhadas que lhes punham os
membros a mexer de uma forma ainda não lá muito
ajeitada. Colocavam azeite na comida. Ismeno ficava
de fora como invectivando e inventando outras
formas de ser elegante. Os cavalos relinchavam e os
táxis passavam. Holderlin tentava montar num deles
porque queria exercitar o entusiasmo guerreiro. Mas
depois apanhava um táxi e ia a uma cinemateca ver
o Monte dos Vendavais na versão Buñuel. Holderlin
não percebia porque é que os surrealistas o
apreciavam, assim como aqueles que caíram na
loucura. Holderlin lamentava qualquer loucura e os
rebordos, húmidos como uma rata lasciva, do
inconsciente. Lia com uma régua a Íliada e tentava
caminhar a três patas como Édipo. Holderlin beberia
vinho certamente, mas não iria à noite para os copos.
Beberia vinho numa tarde de Agosto e sentar-se-ia,
com um cão, a olhar para as parvas das nuvens, já
um pouco tocado, e para a paisagem árida de uma
Grécia tal e qual. Depois virar-se-ia para Ismeno e
diria com as lágrimas a verterem-se que desde os
tempos de estudante lhe têm faltado conversadores
em grego, tagarelas perfeitos, como os havia quando
Sócrates ia, com vontade de provocar, pelas ruelas
fétidas de Atenas, ou no diálogo de Fedro, à beira do
Ilissus. Holderlin é o intelectual típico com o qual não
nos apetece ir para a pândega.
ALGUMAS HISTÓRIAS SUMÉRIAS E OUTROS
CREPÚSCULOS

Enkidu subia o corpo de Gilgamesh como se


amarfanhasse por um alto cedro. Enkidu tinha (não
se sabe por que linhas tortas) a visão de Noé na
Anadia a embebedar-se todo o dia. Enkidu também
bebia e lia (com “ironia”) a Nana de Zola. Ele
conhecera o sabor das cortesãs como um animal
ébrio de sexo e vira a sua força enfraquecer nas
mãos de uma Nana iraquiana de tempos mais
antigos que as antiguidades. Enkidu tinha a
certezinha absoluta que uma Nana, como a grande
maioria das coisas no essencial é e será exactamente
o mesmo desde o seu tempo “muita antes e despois”
deste tempo deveras ruim, em que tu, empoleirado
leitor, me vais lendo. Enkidu também lera qualquer
coisa mais incerta e hermética sobre o édito de
Nantes e comia por isso um chouriço com uma
anona que lhe dera uma amiga anã. Enkidu sabia
que um dia morreria e que as buscas da imortalidade
são a redundância dos heróis que têm a ilusão de
que há uma evasão ou uma busca. A morte é bera.
Nana está nua na morte à sua espera? Nã. E o
nirvana?
Ele estava perdido no ocaso, com cenário de pintura
melancólica e navios ao fundo, a passarem. Por isso
Mário ia passar certas tardes à Gare Marítima da
Rocha Conde de Òbidos (ás vezes dizia "cão de
òbitos"), onde havia umas picassadas do Almada. Os
navios eram bonitos, mais bonitos que os da Ode
Marítima do Àlvaro de Campos. Ficava sentado com
o outono em cima dos joelhos. E acenava para os
marinheiros. Isso era no tempo em que ele era bonito
e não lhe faltavam dentes. Apesar do outono.

Do entulho da Mnésis (entre a Ménis e a Métis) e da


velhacaria pressionante das citações o que é que se
pode retirar? Um Homero mais parecido com Ulisses,
com belos peitorais? É o fluxo das imagens a
êssencia da vida ou apenas uma instância balnear
para fundar uma arqueologia logológicamente
bárbara?

Maria fechava a Odisseia corria a cortina e olhava


para o rio. Desatava a chorar como se as cebolas a
tivessem descascado. Ah! A Penélope era tão parva!
Caminha-se num lodaçal fastamagórico, numa
floresta fecal com meia dúzia de Dantes em pijama?
Ou há uma alternativa além de «passar», de sêr o
passageiro estéril e insatisfeito de uma vida
etiquetada de breve com epitáfio ou presépio a fazer
render o culto, e os reis magos a fumarem drogas na
cabaninha do menino Jesus? No fundo, «o que é o
essa cena de realizar e onde é que está o sumo da
porra da puta da vida?» - papagueamos como quem
segue a lógica de um prelúdio musical e voltamos a
encontrar o Lopes-Graça a comer pasteis de nata na
Versailles.
A conta que Deus fez passará muito depressa do
capitulo três, onde o desfecho não se abre com
fechos eclairs e tudo nos prepara para uma apoteose
menos simpática nos capítulos que se hão de vir

A ambição bíblica fizera-a ambulante, deslocalizada,


enamorada do andar como quem não quer a coisa a
espreitar por vielas e coisas feias que “i” se fazem.
Maria descrevia, em cartas algo sádicas, uma
Antigona em vésperas de se assumir como libertina,
senhora da sua consciência, dissecadora de
minotauromaquias que só perpetuam o chicote
macho. Mas Maria não gostava do Sade que há em
Sade, nem do sadismo como militância da crueldade
a partir da sexualidade que se destina a abismos
cada vez mais abjectos e frios. Maria queimava os
seus chicotes mentais, e Antigona fazia-se ainda mais
liberta para os seus imperativos, para a sua
consciência cada vez mais meticulosa em que
desfruta cada acto. Maria despia as categorias
kantianas ainda mais e estas revelavam um sublime
muito piloso. Antigona, através desta acção
desconsiderava os prestígios da antiguidade, esse
arvoredo de coisas comichosas. Maria invertia a
teoria de Marx segundo a qual cada acto da história
é cada vez mais uma má paródia de tragédias
passadas – “as tragédias é que são más paródias,
com a sua incipiente e infantil seriedade, das
comédias em que nos vamos safando – a história
repete-se, mas ao contrário – a memória propõe
ciclos de dissidência quanto às vivências singulares
que são só nossas – depois temos as nossas várias
versões do que as coisas foram, género Proust, com
longos tempos em que nos desencostávamos de
chaises-longues e mamãs irritantes a chamarem para
o jantar – a memória burguesa está cheia de coisas,
é como os romances de Flaubert, cuidadosa nos
detalhes, exacta nas aflições, psicológica no
mobiliário e anedótica nas trágicas consequências – a
memória dos pobres, sobretudo os proletas, é panos
enxarcados nas trombas...”
Dava-se o caso de Antigona estar secretamente
entregue a uma gravidez que errante se proclamava
sitiada na esfera feroz da incomunicabilidade (entre
os post-its do Ser e os e-mails do Não-Ser), como se
o que tivesse para comunicar em excesso de excesso
fosse resolvido em pseudo-mudez e laceramento dito
interior.

Ismeno achava aquilo tudo muito dor de corno.

Gravidez de mortevida atrevida – Aletheia que


gorgoniza e gargareja as desveladas coisas como um
fim absolutamente consumado – mas sempre postiço,
como as cabeleiras kundalinicas das medusas.

Maria tinha por modelo revolucionário os momentos


catárticos de que fala Aristóteles, mas Maria não ia à
bola com Aristóteles, sabe-se lá porquê. Clubismos...
Almada olhava para o Ecce Uomo do Museu de Arte
Antiga, mas pensava ao mesmo tempo no Ecce
Uomo de Nietszche, onde ele se faz mais retratado
que nunca. Um dia Almada , depois de tanto Ecce
Uomo, cortou tudo, sobrancelhas, cabelo, pelos do
peito, unhas das mãos e dos pés e jurou a pés juntos
(e diz-se também que fez jurar outros) que ali havia
gato e que ele seria um Édipo à altura de tal Esfinge.

As geometrias precisam de cuidados paliativos.

Uma Nação não pode ficar muito tempo de roupão.

Tachos, panelinhas, e meninas, pequenas como as


sardinhas lindas - haverá fado mais fado do que este
fado canalha.

Almada punha Antigona a berrar deixo do nosso sol


nacional português, mesmo à saída da porta de
entrada do Museu de Arte Antiga.

"Deixem-na berrar. Há-de-se calar! Não tarda dá


numa bela varina!"
Mas a Antigona faltam-lhe os troncos varonis que
recordam pilastras. Chega um Creonte no seu
mercedes tão pretinho. Põe uns tipos a abrir portas.
Tenta sentar a Antigona ao colo. Ela está muito
singular, muito emocional, ainda é capaz de fazer
alguma asneira. Ouve-se um tiro. Jaz o cadáver
burocrático de Creonte ali mesmo defronte do Museu
de Arte Antiga naquele belo chafariz, julgo que
setecentista. Antigona rói as unhas. Os gatos sobem
às estátuas. Os senhores que fecham as portas dos
mercedes fecham as portas dos mercedes. E
desaparecem. Antigona fica para ali com a lógica
dedutiva, um cadáver, às contas com a legalidade e
com um gato que sobretudo gosta de mijar em
estátuas.
Antigona reverenciava a dúvida como quem aprende
a respirar fundo e devagarinho. Mas não aguentava
nem mais um minuto a clausura imposta pelo luto
oficial. Ia dar gritos de pânico para o exíguo quintal.
Havia quem os ouvisse no outro lado da cidade.

Escrutinava o que muitos chamam de pecado


(picadinho, coitadinho), pseudónimo de uma
transgressão pouca que só se saboreia na esperança
demoníaca de outros limites impingidos por alheios
ou por uma consciência contida. Pensava em cortar
pulsos, mas depois ficava a ver concursos televisivos.

E absorvia o suco proveniente do desespero


entendido como galante «experiência constante», sem
inorgânico fetichista e outros substitutos que deglutem
com ferocidade de detergente de roupa. Certas
tardes fazia companhia à criada quando esta
passava a roupa a ferro. Não falava quase nada. Por
vezes perguntava: "sempre te vais casar com o
Manel?", ou "já tens o teu vestido?".

Entendia, por fim, o nexo caosmológico, como uma


divina profanação com cauda de pavão. O
arrebitado princípio, como um príncipe demasiado
infante & ignorante das manigâncias dos
antepassados, julgava que gerava e que se satisfazia
na consciência de gerar e contemplar o gerado como
uma ambição (missão) acabada. Mas era o acabas...
Os sarilhos têm filhos e mais filhos.

O engenho disto é que a cauda das coisas se escapa


furtiva às tiranias demiurgicas, como algo que
consuma e satisfaz mais plenamente a vontade de
independência implícita nas sempre imperfeitas
demiurgias.

Havia um dom alimentar em Cristo, porque ele


queria ser muito comido dominicalmente. Que ele
era Carne, bem mais Carne do que Logos, é coisa
incontroversa. Por causa disso Antigona, nesta
versão, resolve modificar o final e entra para um
convento de carmelitas descalças. Amén.
Antigona deu em pintora. Gostava quer do Miró,
quer da Josefa de Òbidos. Havia em ambos qualquer
coisa de ingenuidade prolongada. O Miró dava um
empurrão surrealista à Josefa de Óbidos e esta ficava
zonza até ir ao sítio. O Miró que Antigona imaginava
era na realidade uma velha bruxa que cozinhava
gatos. A Josefa punha a mistela no frasquinho de
compota.

O que faz as transmutações duradouras é não ter


pressas de taxista. Mas Antigona, com os azeites e os
òleos de rícino não aguentava mais.

Consciência é flexibilidade & coerência? Diz Maria.


Pois sim, assim-assim, ora coisa e tal. Ajunta
Antigona.

Tal como a água corrói a pedra


lentamente como intemperada
escultura que a amacia ou a
convida a quebrar-se, este ir-se
desfazendo aos bocadinhos se
estende, com os seus duendes, aos
lentos espasmos da natura e
refinados arrabaldes. A obstinação
(qualquer tipo de voto, voluntário
ou imposto, de castidade,
clandestinidade, ímpeto
revolucionário ou fidelidade moral
e outros modos de ser íntegro afins)
é a pior inimiga da bicharada
chamada homem.

(do livro de receitas pictóricas de Antigona)

Creonte, decerto, não ponderara estas palavras.

Temos uma certa simpatia pela autonomia da


criatura mas não nos peçam para ir aos saldos com
ela! - exclamam Sónia e Sandra.

"O que elas querem, o que elas querem, é


transplantes de transmutação orgânica." - diz o
chungita da esquina.
Cadeias itinerantes de coisas que se propõem a si
mesmo vegetarianizar-se.

Aparece em cena o ajudante do autor, um tal


Jacques Pastiche, escritor promissor e crítico
presunçoso. Acha que as cadeias itenerantes ajudam
a estruturar o corpinho narrativo (“o carinho
corporativo da narratividade, ainda que com as
fraldas a cheirar mal”). “O propósito não é venerar a
citação mas abatê-la com citações postiças, mais
acariciáveis, jocosas e travessas. É um acto romântico
com estudos de Chopin como ambiente sonoro –
difíceis para mãos alheias. Mas piscam-nos os olhos
com propostas vindas dessa discreta elisão – das
cinzas negadas do elidido surge algo caprichoso mas
elementar – quer o sussurro, que as palavras e a
escrita seguem, quer os imperativos retóricos, as
falhas, a deslexia, os nexos associativos, as tentações
sibilinas, o pseudo-primitivismo, o pedante estilo
barroco, as injúrias de um povo cujo linguarejar
sumiu, o neologismo diletante e a alegre comicheira
do caprichoso.” Pastiche tem apetite sexual impúdico
por Sóniantónia e Sandralexandra e gosta de
pornografia dura. Acha divinas a nádegas de ambas
– quase lácteas. Pastiche tem um olhar ainda meio
impressionista, porque elas o impressionam, porque
são volumosas dentro da tradição corporal que vai de
Courbet a Léger, passando òbviamente por Renoir e
as banhista de Cézanne, e, com algum consolo de
amante, também o Picasso do Marie Thérese Walter.
O facto de Pastiche se babar facilmente é a prova de
que a “cultura” funciona como uma janela de
excitação em boa parte sexual uma vez que a
“porneia” é um rio que deu origem à melhor pintura
(“mas não à melhor filosofia”, acrescenta Pastiche) e
que se tornou muito claro na Origem de Courbet que
é em si um manifesto sobre a absoluta imanência.
Pastiche sabe que o Mário discordará, mas o Mário é
um profissional da discórdia e nem sequer está tão
virado como ele para a “imanência”. Para Pastiche a
Origem é a resposta mais lúcida aos lacaios de
Hegel. Pastiche tem a firme convicção de que “em
quanto há cona há arte”, e como “não se vislumbra o
desaparecimento da cona é estúpido falar da
obsolescência da arte – mesmo quando a cona for
substituída ou igualada por coisas afins, fetichisáveis
ou não”.
Uma côdea abandonada na mesa. Uma formiga
passa e sobe para a orelha do herói entrando-lhe nos
recônditos para ouvir as modulações da alma. A
curiosidade das formigas pelos heróis parece ser
nova, mas a função da formiga é levar a notícia à
sua rainha. O herói, ao que parece, tem uma alma
muito decidida, daqueles que dão tudo a perder. A
formiga vai-se confusa e um lobo, por acidente
espezinha-a. La Fontaine anda a procura de uma
participação especial nesta fábula. Ele tem o mérito
de ser uma raposa que esperou muito tempo. Mário
repara que é noite de são João. Maria faz o
trocadilho fácil que é o de dizer que a raposa é uma
rapaza. Mário completa a frase: “uma raposa rapaza
é muito bem capaza”.

Modelação para as coisas mais ambicionáveis na


singularidade de um corpo ambíguo e transitivo?
Dizer é travestir?
Segue-se-lhe o quatro capitulo a capitular em
capilares capitulares (que adoram beber capilé),
como um quarto onde entra muita gente em busca
da barulheira que lá não há

Maria quando adolescente ia em excursões com


feiras barbudas para colónias de férias metidas nuns
autocarros que demoravam mais do que tempos. Aí,
as freiras bebiam desavergonhadamente e muitas
vezes iam para a cama com Deus e com as outras.
Convidavam circunstancialmente algumas meninas a
participar. Se não queriam açoitavam-nas
caritativamente e riam de modo a que se lhes visse os
aguçados caninos. Havia também a ida, obrigatória
a Fátima e o fatídico cantarolar o Avé, Avé, Avé
Mariaaaaa... É claro que as batatinhas, mesmo
cozidas, sabiam deliciosamente. E faziam-se amigas
para toda a vida.

As freiras iam também com Mariae o seu


subconsciente ver a Praia, mais precisamente, a Foz
do Arelho. As meninas ficavam paradas a olhar para
as ondas e a apanhar um vento húmido na cara. Era
bom! Mas também era aborrecido.

As freiras ensinavam sobretudo caligrafia e bordados.


Não há nada melhor do que a caligrafia para
bordar.

Maria queria detonar as freiras em férias. Maria


também bebia vinho às escondidas com outras
meninas. Maria jurou que excursões destas nunca
mais. Maria, se voltasse a aturar freiras, matá-las-ia
com magia.
Menina e moça de casa de meus pais me levaram
com grande bruteza, muitos estalos, olhos negros,
caneladas, e outras primorosas contusões, para
longes terras. Disseram-me que era por causa do
Santo Graal. Não os levei a mal. Mas sentia-me toda
escavacada.

Recuperei. Pus-me toda pipocas. Arranjei-me tanto na


beleza como em esmerada sintaxe. Mas os pais não
perdoaram. Fizeram-me mendiga. Puseram-me a
render, a pedinchar, feta pele-e-osso. Andei pelos
cais. Conheci marinheiros, agiotas, ricaços e velhas
forretas. Deram-me beijos e pérolas. Também me
deram forte pancada, tanto no corpo como na alma.

Fiz-me ao mar. Conheci as ilhas e os canibais.


Entristeci. A minha alma ainda estava virtuosa,
embora eu me sentisse confusa e amassada como
uma bola de papel.

Sempre que voltava era enxotada, mandada às


urtigas e outras expressões afins. Atiraram-me até de
escadas. Partiram-me ossos, maxilares incluídos.
Jejuei. Fui explorada sentimentalmente por padres
jesuítas. Rezei, humilhei-me, dediquei os meus mais
secretos pensamentos a Deus. Limpei santinhas.
Repeti e repeti ladaínhas. Cresceram-me voluptuosas
maminhas. Fiz-me rija que nem um pneu. Os
magalas recitavam-me piropos. Os padres
recomendavam-me pudor e saias compridas para
disfarçar as formas. Respondi-lhes que não era
nenhuma puta. Eles disseram em coro uma ova.

E orgulhava-me das linhas vanguardistas da minha


Sorte. Era uma rapariga retinta e meditava em como
a mundaneidade retinia na retina. Os meus pais já
tinham medo de me bater. Ameaçavam mas
fraquejam. Faltava-lhes, diziam, a força. Ou a forca?

Um ardeu-lhes e ficaram em cinzas. Nunca mais


ninguém me levantou a mão.
Menos menina e já a deixar de ser moça (mas ainda
com uma candura e uma férrea vontade de
autarquia) me elevei para altas moradias e outras
humilhações ideais.

Os meus pais espirituais e outros que tais diziam-se


em lânguidas pastagens. E o Senhor, lá onde estão
os Séculos dos Séculos, me abençoou como quem
cobre uma égua. E eu sentia-me uma esposa do
Cântico dos Cânticos nesta era aparentemente árida
& ávida de complexidades e de precisão genética.

Destinava-me a uma vasta vida vertente – saíam-me


lágrimas para me desembaraçar das angustias, ou
me saíam obras como confissões diferidas,
sublimações onde a carne se faz mais carne e o
corpo mais corpo e a inteligência que nas carnes e
nos corpos se forja ainda mais inteligência ciente de
si mesma e de se ser corpo cada vez mais plural,
porque um corpo quer a sua aumentação, e
aumentar-se é multiplicar em si as consciências, e o
multiplicar as consciências multiplica os corpos.
Eleonora, uma pastora amiga que era nora de Éolo,
caminhava pelos caudais e consolava-me e dizia que
as mágoas são uma orografia circunstâncial. Eu
dizia-lhe que não era mágoas que tinha, mas uma
sobreabundância de corpos. E que esse excesso ao
principio é como uma dor como em todas as
mudanças, que não é outra coisa senão uma
adaptação a maiores contentamentos aborrecida do
reino dos céus. Mas os jardins edénicos são
demasiado caros neste miúdo mundo.
De maneira nenhuma Menina, e muito menos moça,
de casa de meus filhos para baixas terras me
levaram, e as terras eram mesmo baixas e um tanto
ou quanto pantanosas.

Os meus filhos eram mesmo maus e também me


batiam, e punham cães a morder-me e arrancavam-
me cabelos e brincavam muito contentes às torturas.

E plantaram um pinhal para disfarçar a baixeza das


terras lá para os lados de Leiria. Com os pinheiros se
fizeram naus e se subjugaram povos muito
descobertos.

Os meus filhos chamavam-me puta, besta, palerma,


canalha, fessureira e outros belos nomes. Ficaram-
me as palavras baixas como se gostasse de as engolir
em infernal gozo nesses pantanos de merda.

Órfã? Viuva! Flor? Espinho? Pinheiro?

Para altas terras me levaram outra vez. Levei menos


porrada. Eles cresceram. Foram à vidinha. Tiveram
filhos, e agora nem uma carta me escrevem!...
Ingratos do caneco!

As janelas da minha agonia debruçavam-se


novamente sobre as trevas osculadas pelas jesuítas
defuntos.

Tinha fome de mais geografia. Era furtiva. Ia de vez


em quando a Angola.

Quem sabe o que o futuro me reserva?


Os gatos miam nas varandas e perseguem com suas
patas borboletas que também são filósofos chineses
que não sabem se são filósofos chineses se a madre
Teresa de Calcutá.

Os tigres por seu lado estão muito contentes por


terem uma ira que lhes é própria, uma ira muito
poderosa. Alguém disse que são mais sábios que os
cavalos de instrução.
Meu Querido Cadáver Esquisitão

Dizes que há uma Partilha Histórica dos «pontos de


criatividade», não apenas como emblemas de um
esforço com pernas futebolisticamente dialécticas,
mas na ruminação de uma comunidade auroral e
entre-autoral. Não sei se vou nessa... Será que essa
partilha de candura hilariante e revolucionária sobe
até à Chama Suprema dos Abismos Atónitos? Onde
para uns está o vazio, há para outros plateias com
figuras douradas chamadas deuses, ou o grande
deus sem mais coisa nenhuma, e uns outros ainda
uma espécie de figura filosófica polivalente e por
vezes indeterminada chamada (pomposamente) Ser.
E havia os que se saciavam nos Labirintos Platónicos,
com muitas figuras intermédias, espetadas suculentas
de arquétipos, e havia-os que nada disso, dava-lhes
para celebrar uma espécie de deus da Coragem
Agrária. E também se contavam entre estas gentes os
devotos de Himeneu: faziam núpcias a torto e a
direito entre a lógica eléctrica do inferno e a candura
dops campos elíseos.
tua

Lili Antigona
Eleonora, essa prima comum a Mário e Maria,
assoprava com suas tubas turvas a partir das turbinas
interiores, uma espécie de orgão genital em prótese
muito plástica. Era um sopro ao rubro e fazia arder e
atiçar as tristes águas onde ruminavam as vozes
descascadas dos mortos e as vozes por descascar dos
vivos. Água ardendo sem alcoól à mistura. Harpa de
água com forma de Orfeu punheteiro. Lira de água
com as cordas muito pitagóricas fazendo ressoar a
violência ondulante dos mundos. Sonho de água com
cocktails de inconsciente à mistura e psicanalista a
aspirar o sofá no intervalo. Destina, assina, assassina
e depois desculpa-se mais uma vez com o “s”
solitário da sina. Num breve mesmo breve espaço de
tempo Eleonora mudou-se para os lados da ponte
Mirabeau, onde as gélidas águas do Sena emudecem
a Casa dos Mortos. Abdul e Bedum eram agora os
seus vizinhos e tinham bigodes de quem é senhor de
uma machesa anacrónica. Passados anos Eleonora
fartou-se de ser uma porteira porreira em Paris e foi
para missionária em Harar armar-se em parteira.
Releu Rimbaud e fez broches a adolescentes etíopes.
Veio a reformar-se depressa, mas manteve a fé
intacta. Morreu septuagenária em Bruxelas depois da
missa, no meio da rua, com um saco cheio de
hortaliças.
E eu, a escriba, que entre tantas promessas narro
com afiada navalha a interconexão rogante e
arrogante dos espaços plurais e dos tempos
recorrentes em que o “eterno retorno” é o retorno das
sequências por abrir e reabrir para novas sequências,
sei que não há repetição rigorosa mas antes
encaminhamento da novidade ornamentante do que
vem ao mundo. É certo que há uma fulgurante elipse,
como uma espécie de sofá (bom para levar ou dar
sovas) onde cultivamos a sonolência e o aparente
esquecimento. Sei que o esquecimento é desaguisada
mística, com o dom de não haver nada mais do que
um ponto onde se concentram em uníssono as
vulnerabilidades e as invulnerabilidades (as
habilidades babélicas de ambas).
A Medida sem Medida era a forma comedida da
angústia de Antigona. Gostava das palavras
aromatizadas que lhe enviavam amigas das
sinagogas longínquas de Hespanha com caligrafias
um tanto ou quanto arabizadas. Para os Umbrais da
Loucura me empurram, responde-lhes Antigona com
a sua secura grega anterior a tanto estoicismo. A
desmesura seca-me o gosto de gostar de tudo –
repetia a filha de Édipo. “E uma vida sem geometria
faz chegar às minhas margens os desgostos da
espécie. A morte de meus irmãos um no outro é a
consequência da epidemia revolucionária. A
revolução fratricida depois da de depostas as tiranias
e as profecias. A metáfora fraternal feita poder
impartilhável e responsabilidade cínica. Gémeos de
um outrora aurora no Corpo dos Nomes, filhos de
uma esperança sem atenção aos preceitos e da
vontade de um generoso despotismo ao serviço de
todos.
Vertentemente se foi. Foi-se pelos baços caminhos de
uma noite amarelada a ficar devagarinho da cor
iluminada das escuridões citadinas. Desceu do cavalo
a baixo, sentou-se na beira da estrada e lembrou-se
de seu pai e senhor, e de como lhe lia em grego
muito antigo o romance do meu Cid e depois o
repetia em velho castelhano. E lhe falava da tristeza
da lealdade traída pelos suseranos. Paisagens
poeirentas de Burgos. Lanças mouras e estandartes,
como alcatifas penduradas em paus. As mulas cheias
de mantimentos e haveres. Um demónio paciente
seguia-a como uma sombra que brilhava na noite
perfumada. E o vento foi abanando as figueiras, e
sacudindo os deliciosos figos maduros para o chão. E
no roseiral reapareceram as folhas mortas para os
poetas delas se assenhorarem com acédia. E
Antigona não percebia se se podia conjugar a Fénix,
o perpétuo renascer, com o coração que bate intacto
quando tristemente surge o Crisântemo, e os
esteticismos chineses e a vontade de com ele fazer
um cházinho. Mas ainda era Setembro...
E a espécie viu o firmamento ser o espelho
anamorfoseante de antigos firmamentos, e as Águas
de agora serem quase as mesmas Águas separadas
de águas como as águas de outrora. E vieram à tona
monstruosidades tais que Ismeno foi para as
bibliotecas enamorar-se do monstruoso do antes,
bastante encadernado e com as folhas deveras
manchadas. E achou vistosos os monstros para uma
monstruosa compilação.

E Antigona sentiu na face os ventos quentes e secos


dessa noite de Verão e a maravilha de habitar este
pomar que a destinara a tantos sofrimentos. E leu,
com desinteresse e piedade as monstruosidades que
Ismeno andara a compilar.
Trocava-se a si mesma na interioridade: viajava por
pura deslexia e sabia que esse modo trocado de
conhecimento lhe dava acesso a uma epistemologia
muito singular. Confundia os tempos como se os
refutasse. Comia arroz de cabidela. Era acronológica
em boa parte, como se aspirasse à imortalidade
através da morte. Estendia a noção de fraternidade a
algo mais do que um desígnio masculino. Da
fidelidade à irmandade fizera-se a destruição dessa
irmandade de uma forma mais fatal que a guerra e
mais injusta que a lei. Antigona desejava a injustiça
como nutriente. Enamorara-se de tudo quanto é
cavernoso e comichante. Bebia muito para tornar a
escrita mais ríspida, mais directa, como o Álvaro de
Campos do fim, claro como vodka, lúcido, tão lúcido
como o “merda sou lúcido!”.
Mário fazia-se passar por Sulamite, colocava perucas,
besuntava-se de azeite escurecido com um pouco de
pigmento (“terra de sena queimada”) comprado na
casa Varela e sentia-se jovem e bela correndo como
uma corça desvairada no recitativo com uma espécie
de baixo continuo – os versos do Cântico dos
Cânticos ajustam-se ao modus diciendi barroco que
pede escuridão erótica e êxtase patético nos gestos –
acompanhavam-no músicos ditos profissionais,
violas-da-gamba, cravo, trompas de caça e guitarra
elétrica – e Mário partia desaforado pelos campos a
fora, fugitivo, perseguido por um eventual Salomão e
ofegava e quase desfalecia e sentia os seus seios
como cachos mordiscáveis de uma fruta tropical, e as
suas depiladas pernas de gazela, e arfava e parecia
desfalecer perdido no delírio báquico dos versos
bíblicos.

Do cântico dos cânticos passava Mário para o papel


de Isolda em versão prelúdio, palavras mortas,
histeria manuseável. O estômago ofegava, o ventre
comprimia-se e descontraía-se, tornando-se mais
receptivo: o corpo ia-se libertando aos poucos e
poucos em curvas e agilidades ditas lânguidas até
quase desfalecer. Mário oferecia-se como num
sacrifício antigo e havia na melosa escuridão desses
ares um inefável deveras afável.

Aparecia em cena, não um Tristão, mas dois, ou


melhor, duas tristonas – Sónia e Sandra lacrimejando
de início e a consolorem Isolda, como se unindo a ela
em busca de um Uno a três. “O uno só pode ser
vislumbrado (e imediatamente experimentado!) na
transgressão”, dissera-nos um dia Mário. “É a
transgressão que nos abre para um sagrado mais
vasto que devora todo o espaço profano. Já não se
pode profanar a profanação porque tudo, mas
mesmo tudo, é sagrado! Mas podemos fingir que
ainda há muitíssimo por transgredir e deixarmo-nos
morrer um pouco nessa apoteose transgressiva”

Sónia, Sandra e Mário são o próprio Caosmos


autoengendrando-se, encurvando-se para além do
Logos e do Pathos (porque o Logos, a vibração que
aglutinando se dispersa, é também a emotividade
que faz tremer e desejar as coisas nas coisas),
circunvulsionando-se “artístico”, teatral, erótico.
E assim era nesses tempos de então.
Antigona escrevia verbetes para dicionários de teatro.
Averbava. Desaparecia entre sentimentalismos
barrocos. Tinha uma voz rouca. O som do seu canto
sabia a giestas floridas. Esculápiamente.

Ismeno apercebera-se que a literatura o curava


porque o insultava como um pouco burguês. Os
russos tanto insultaram o burguês por dentro e por
fora (desde pelo menos Dostoievsky!), tanto se viram
livres das palavras e das metáforas que caíram nessa
melancólica e obra-prima da crueldade que foi o
estado estalinista. Por isso Ismeno mantinha vivo o
apetite pelo objecto, pelo insólito, pelos prazeres
fugitivos, pela transgressão brejeira, tudo coisas que
sabe bem e que vale a pena posar para a fotografia
com cigarro sem dinheiro e dinheiro sem cigarro. A
indignação séria de Antigona ainda é filha das
convenções e Ismeno acha que todas as convenções
são teatrais – são a fachada cénica que permite o
possesso estrebuchar e soltar gemidos poéticos, ou
insólita poesia sonora. Por isso Ismeno não seguia
Antigona na sua atracção por marchas fúnebres com
orquestras wagnerianas a tentarem arrancar do idílio
de Isolda para um triste samba.
“As boas cópias são as que fazem ver os belos
defeitos dos maus originais!”, diz mais ou menos um
imitador de La Rochefoucauld. Maria acha esta tarefa
elevada, a de converter os altos objectos de
admiração, copiáveis, em maus, mas belos, originais.
“Desembaraçarmo-nos da veneração pateta pelos
clássicos convertendo-os em algo a copiar bem, não
no sentido de estar bem copiado, mas no sentido de
lhes mostrar os defeitos”. “Resta saber se as boas
cópias são possíveis”, retorque Mário ciciando.
“Provavelmente só nos safamos com cabalas
fonéticas e palhaçadas afins”.

“Podemos encarar a história da literatura como a de


cópias sofríveis, nem boas nem más, ou algo boas e
em grande parte insatisfatórias – copiamos
inconscientemente, ou conscientemente, adulteramos
o adulterável, e nesse adultério de irmos para a cama
com os nossos modelos, percebemos que os mais
velhos livros, os que foram anotados algures na
Suméria e no Egipto, já se escrevem sobre outros
livros muito orais, já misturam demais, já são uma
consumada arte narrativa que vem sendo soprada ao
longo de uns tantos milénios.”
Antigona não era morena nem loura nem ruiva. A
sua pele era pálida (de alabastro, diz-me o meu
assistente literário com o escopro na mão) e o seu
cabelo entre o louro e ruivo (“louranja”?) descaindo
ondulado. As nádegas e as mamas bem hirtas, o
crânio esférico, a boca devoradora, as suas
proporções canónicas. Nua num prado dava uma
bela aguarela burguesa. Vestida, com peplum,
lembrava no olhar vazio e na segurança a deusa
Atena, como se alvejasse friamente uma assembleia
de cidadãos querelando. Pela descrição parecia pré-
rafaelita mas não era.

Mário está-se a ralar para esta seriedade. Toda a


seriedade é tanática. O riso dos príncipes e dos
mendigos livra-nos desta treta toda. Antigona vem
com os ritos apropriados e antigos. Conhece os
lobbys mas prefere ser frontal. Não é materna. Mário
prefere o Zhuangzi. É a natureza que nos tratará
sempre com o seu alegre abraço e a sua jovialidade,
mesmo quando apodrecemos. É o sol, a lua, as
estrelas, a terra, a chuva, as pequenas e grandes
criaturas que nos tratam do corpo vivo ou morto. Os
verdadeiros rituais, as consolantes transmutações
entre vivos e mortos estão a seu cargo, não são
rituais urbanos, mas uma alquímia muito mais
magna.
"De bruscas cronologias falemos. Podemos escolher
datas num manual e caminhar ao pé coxinho com
uma heresia, ou amarmo-nos como reis Alanos!".
Folgo muito em saber isso, diz Maria. Maria gosta de
citar as leis das Sesmarias como exemplo, mas não
sei muito bem de quê. Alegra-se com certas
crueldades, como alguns martírios. Bispos antigos a
serem devorados por cães ou ratazanas. A
determinação heroica com que se partia para a
morte com Deus a legitimar. É para a industria das
reliquias. Ou palermas patrioteiros. Maria não é de
saudades. Está-se bem nas cidades, sente-se a cada
esquina o súor dos operários. São muitas vozes.
Mesmo no silêncio e nos domingos, as pedras das
cidades fazem uma enorme companhia.
Vamos começar a falar de Perseu como quem escova
os dentes, para cima, para baixo, para os lados, lá
no fundinho, com movimentos circulares, etc.. Perseu
deslo-coloca-se-colado. É a pastilha modernista que
permite o pastiche post-modernista. nas espinhais
caracteristicas carrásquicas, percursor anedótico da
guilhotina e revisor-chefe em assuntos do destino -
somos um mar cercado de ilhas. Elas devoram-nos os
assuntos com a brancura. Até o direito à morte.

E o gelo cativa as luzes mais esparsas. Concentra-as


entre teus dedos de porco sob o teu rosto de prata.

Perseu é a onda lógica onde assentamos a fronha


que nos permite vislumbrar por espelhos e em
enigmas a gorgónica máscara em que Deus se
desnuda como serpentinamento regelante, e Icaro é o
seu parceiro lunar (dentro de uma caixa osculada
tardiamente pelos abdomens mortos-nossos). À
sombra da Grande-Sombra-Fiada de Mário de Sã
Carneiro (o Múmia Gorda!) o canto destituímos
(intuído-ramificado-preso: como àgil e ùnico -
substântivo (articulado e defenido).
Lapa (o amigo de Byars) fala do Barão como de um
“detonador” O Barão dava empurrões, fazia
avançar, mas não fazia explodir, no sentido de deitar
abaixo. No entanto não posso deixar de imaginar o
Barão a detonar bombas como nos desenhos
animados – como na tradição futurista fazendo
estátuas e “academias” em estilhaços. Herdámos a
vontade de detonar imaginariamente, com um
grande BUM a encher o ecrã.

Lapa também pensa, outra vez, em escrever uma tese


sobre o surrealismo cá desta terra – mas o
surrealismo foge a sete pés, mais os pés do Mário, o
que dá nove. Lapa tem-lhe receios. O Barão tem-lhe
polémicas. O Mário continua a assoprar aguarelas –
belas aguarelas que bem podem abolir os traques e
as diarreias das vanguardas de opereta do Barão.
“Caímos nesta sua vanguarda como numa esparrela,
porque fomos tirar a prova dos 69”.
A ironia pediu a reforma antecepida, com metade do
que teria direito. Mas nem assim lha deram.

Mário tem medo da senhora Moral. Não sai de dia.


Anda de noite com três gabardines uma em cima das
outras. Come ervilhas com ovos escalfados, porque
estes lhe parecem, sinceramente, indecentes. Fica
sózinho no Rossio a olhar para os pombos estúpidos.
Aparece-lhe um turista. Mário cospe-lhe na máquina.
O turista fica preplexo. Vai-se embora. Mário não
chega a rir, mas atira uma beata para o chão.
Detesta ficar com beatas na mão. Mário gosta de
ruas com escadinhas, de pequenos becos, de
canteiros. Não gosta de meias furadas, de corvina
grelhada nem de salada russa. Põe poemas nos
vários bolsos das gabardines. Mas continua a ter
medo da senhora Moral. O que é que se pode
fazer...

O tempo mexe no modo como as cabeças


chamuscam.
“E oh, a menstruação corria com a sua obscuridade
pelos homens dentro. E ah as suas cabeças impuras
deixavam-se arder!” – soletra Rosa Herberta
Vasconcellos Davida.

Mário sai a caçar o sol logo pela manhã, com muito


tesão e um arco e flecha em punho. A cabeça de
Mário também é impura e arde, mas são inúteis as
flechas com que alveja o Sol. A revolução Surrealista
é uma busca da clandestinidade, uma vadiagem
solitária para além do Fim da Noite. O Fim da Noite
beija-lhe o sexo, mas Mário continua inconsolável,
porque isso faz parte do seu pedigree. Não há
milagres, apesar de desordens várias e do exemplo,
ambíguo, imprudente e contundente de Rimbaud.
O génio Impar vem com outros números à mistura.
Surge o Almada muito enamorado do seu "d" que
sobe e às vezes enrola-se nas coisas ao lado, como
se as linhas tivessem garras. O Mário inveja-lhe o
não ter uma letra do género. Mas o Mário põe-se a
miar a miar e a miar. O Almada tapa os ouvidos e
estica-se nas suas sobrancelhas. Anda com a
geometria às costas, embora diga que ela se agita
como uma grande gibóia, ingénuamente, no
corpinho. E o corpo é que sabe. O Mário cochicha-
lhe ao ouvido como um baixo silvo: "Vieira da Silva".
O Almada fica tinto. Responde Eros e Psique e que há
uma tradução do Apuleio em lingua daqui. "Andas a
aprontá-las" diz-lhe o Mário. O Mário gosta de
burricos. Era uma vez uma Idade do Burro de Ouro,
quando as bruxas andavam por aí e os homens se
metamorfoseavam em bichinhos. Almada arranca
com uma pinça pelos do nariz. Depois enrola a
geometria muito bem enroladinha num canudo, tira a
tampa da cabeça, e guarda-a lá. Diz o Mário: "esse
truque pitagórico é do caraças!"
Maria não dá um tostão pela questão do tabú.
Prefere Shakespeare a Maiakovsky. Acha os
primitivismos escuros ou mesmo obscurantistas. E os
futurismos, mesmo soviéticos, um engodo que nos
distrai das vestutas dialéticas da história. Um dia
Maria encontrou o Almada a passear na Direcção
Proíbida. "Onde vais ó Almada que não te esperava
ver nestas encrencas das direcções proibídas". O
Almada, que era muito senhor das suas respostas,
diz-lhe: "estava com ganas de andar ao revés das
minhas certezas, deu-me para isto porque fiquei
muito sózinho com elas, por mais que as estrelas me
acenassem no sentido contrário e me fizessem uma
manhosa companhia". "Ai Almada, que me arrelias!",
disse Maria, "por este andar ainda vais acabar
obscuro". Almada riu-se, deu meia volta, olhou para
os olhos de Maria, com uma menina muito menina
com outra menina ainda mais menina lá dentro, e
acabou por confessar: "à parte da geometria perdi
qualquer sentido de direcção única... afinal o bom é
andar a vadiar...", e lá voltou ele para a sua direcção
única que já não o era, contente de ser o inimigo
máximo da reciprocidade mínima.
“Símbolos caíam como meteoritos na cidade de
Ismeno. Os gatos estavam em chamas, mas ainda
tinham tempo de dizer nomes de deuses bárbaros.
Ismeno, que vivia num prédio alto via os simbolos a
ficar esborrachados no asfalto e pensava "coitadinhos
dos gatos!". Tinha razão.

Um dia Ismeno teve uma insónia muito ensonsa.


Sentiu-se solteiro. Foi ao médico. Queixou-se de uma
amigdalite e de Édipo também. E dos escritores de
Tragédias que só dão importância a Antigona. O
médico receitou-lhe filhos. "É como se me receitasse
cobras". Ismeno saíu do consultório e foi fazer greves
frente ao espelho. Depois fartou-se e foi beber uns
copos com as Górgonas. Elas também não gostam
de espelhos.

As imagens insurrectas são as que se autopenetram,


pensa Ismeno. O melhor é apanhar boleia, pode ser
que encontre algumas metáforas à deriva.
Tinha por companhia um leão sábio que comia
Cinderelas no jardim dos unicórnios. Uma orquídea
mordida por um coelhinho algo pipó. Uma varina
com um pipi muito sardinha.
Nas libações empáticas do manto o místico abre
janelas para ver o rio em que Deus e u é corre – mas
o rio parece-lhe satânico e feito de onduladíssimos
versículos apócrifos. Correm mulheres muito
embriagadas de cerveja patrocinada junto às
discotecas da moda. Ismeno lambe uma estatueta de
santo antónio e afaga com a mão dois manjericos.
Depois pinta o dito cujo santo com cornos dionisíacos
e uma fuça algo de bode, embora mantenha o
menino Jesus, gordo como um Buda, ao colo. Não se
sente herético. Ele acha que os santos procuram as
franjas do divino em micro-transgressões.
Assenhoram-se de Deus como o devoto o faz sem o
saber – é na consciência que se “reduz” em oferta,
disponibilidade, que o divino se faz nele divindade.
Somos aquilo que pintamos? O senhor e o servo ao
mesmo tempo? O garatujante imaginário e a sopa
de beldroegas?
Tira-se o luxo da cartola. Mário pintalga por cima de
Goyas reproduzidos e encontra uma bota que chega
pelo mar para dar testemunho de antigos romances
ingleses, com muita pirataria à mistura. Mário
suspeita, por causa disso, das datas de Rimbaud – o
surrealismo prefere sempre a escolha (cronológica e
afectiva?) do inferno ao sentar-se sobre a calma. De
qualquer maneira a voluptuosidade vem sempre ter
com connosco. Ou, há uma maneira de se deixar ser
punido.
O que se faz conselho faz-se coelho.
“Irmã, tens livros voltados para o curare,
procuras fórmulas em cavidades inclementes, e
percorres os vales como uma mulher muito
negra e impura. Nos teus olhos a amizade é
uma aflição, uma dificuldade, um dilúvio de
lágrimas. Porém deslizam serpentes em toda a
tua maravilha. Deixa-me apalpar-te a bilha! “
(do Caderno de Ismeno”)

“Houvera de partir duras loiças nas fuças dos


nossos governantes e escancarar-lhes a cara e
esfregar a merda que os mortos trazem nas
tripas pelo seu corpo suave e pálido. E que os
cães se lhes atirem às pernas, como quando
arrancam ossadas aos cadáveres insepultos.”
(do Caderno de Antigona”)
VERDE COMO A VANGUARDA EM QUE O TEU PAI
NAMORA (manecas, vamos embora!)

(Do Livro Verde da Camarada Rosa Herberta


Vasconcellos Davida)

Verve verde, estilo Art Deco, com mulheres elegantes


e incipientes a frequentarem bordeis cheios de
homens com bigodes escarlates e vestidos à princesa
oriental.

Esmago o verde porque o verde me lembra o outro


livro verde do Khadafi e eu sou uma mulher muito
bela que não vive em tendas mas gosto dos camelos
que estacionam em frente do mercado.

Havia um verde que era tão verde que apetecia


pintar tudo de encarnado Benfica. (fala de um
“adepto”)
Verde de erva de determinada arvore onde o pássaro
põe ovo que a víbora depressa devora e a paisagem
é tão verde que me dá nauseas.

Dá-me para o verde como para abrir veias. Há coisas


verdes que são feias. Como: o ranho, vírus, diarreias,
vomitado, vermes, etc.

“Havia um verde que corria muito pelo verde dentro.”

Há quem diga, com desprezo, que o esparregado é


uma “coisa verde”.

Verde, pois és a cor do livro de capa verde que te


deu o avô Pico de Mirandola a guardar, com teses
sobre teses (um milhão de tesões no mínimo)
anotadas por Ubu e um abutre, ou parodiadas nas
marginálias por um tal Gargantua. Mas todos
sabemos que o irmão do De Chirico deu uma
ajudinha.

Verde operário e verde magala... guarda lá a G3 na


sala.
E o zero estava outra vez grávido de um certo mundo.
Sónia e Sandra estão também grávidas de idênticos
esplendorosos zeros, o que dá gravidezes no mínimo
ao quadrado. Esplendorosas e dolorosas. É a verdura
a armar-se em formosuras. Maria fotografa-as
porque tem no goto a frase de que “a literatura oscila
entre a usura e a formusura” – é certo que não é
usura no sentido de aproveitar a modos que
confortavelmente as descobertas alheias: “diríamos
melhor se o disséssemos ab-usura – abuso
(“misinterpretation”?) como algo que não se adapta à
contemplativa interpretação (“há na interpretação, e
nas exegeses e hermenêuticas um tom algo nojento a
bajulação!”). Mário instala-se nu na mesma banheira
que S. e S. e elas afastam-se para o lado. “Literatura
também é “ordura” – ordem, desordem e gordura”
Ele manipula com cada uma das mãos uma
dentadura postiça- uma dentadura chamada
Paracelso e outra chamada Villon. Mário acha que
está grávido outra vez mas não é de zeros poderosos
e excessivos como elas – “já me confundiram com a
virgem Maria, mas não é por nunca ter fodido a
preceito”.
Ismeno faz-se dedicar a várias coisas. Hoje está de
simpatias com o quarto crescente, amanhã lavará o
rabinho com água de malvas a aguardar a lua cheia.
Tem uma centopeia no bidé, mas não lhe mete
medo. É um bicharoco parecido com um romance do
Max Ernst. Abeira-se do piano e vê o Diabo a querer
tocar “estudos a quatro mãos”. O Diabo tem
saudade dos velhos tempos da santíssima Inquisição,
do sangue inchando os olhos zelosos dos
Inquisidores. Depois vai comprar tabaco ali à Basílica
da estrela e vê os magalas a entrar e a sair do
Hospital Militar e outros a namorar com as criadinhas
nos bancos pintados de fresco do Jardim da Estrela,
roliças, com chitas, roupinhas bordadas e tricotadas,
e um sorriso que destila gorduras sexuais. A Ismeno
agrada-lhe os odores que vêm daquelas roupas com
gente lá dentro.

Dedicatória num Insigne Banco de Jardim

Ao trevo de três folhas.


Às iluminuras rústicas de cavaleiros andantes.
Ao verde fosco e maroto do gafanhoto.
Ao louva-a-deus devorando escaravelhos sobre a
vidraça.
E a criada mija para a vasilha onde está o vinho do
seu senhor que tanto a gosta de conhecer
biblicamente quando ela menos o quer. É vingança
pouca para tanto dano. As Marias, em medusante
conversa do troca o olho aprovam, mas pouco, o
gesto da criada. “A vingança da libertina foi adiada
nos romances, mesmo no Sade da Juliette – havia de
haver uma libertina que humilhasse vigorosamente
estes senhores com raiva revolucionária sem ter que
ser fatal ou acabar mal.”
“Irmã, és como azeite virgem (puríssimo?) que da
nascente de uma deusa extremamente branca aflui
ao paraíso dos Inúmeros Sexos onde se banham
vários romances pornográficos com os seus autores
muito vaidosos a procurem maquilhar-se no Espelho
da Maldição.” (Caderno Apócrifo de Sófocles)

Mário faz a barba. Abre a gaveta e conta 13


dentaduras postiças, todas inadequadas, assim como
uma barata que, diz ela (a baratinha!), está a
escrever à máquina. Mário não acredita no que vê e
telefona a Maria. Ele diz que a barata deve ser o
"caca do Kafka", mas ela acha que não. Mario
zanga-se e grita: "achas que é a inspectora
Lispector?". Depois desliga. "Qual é coisa qual é ela,
mais desmesurada que o homem, que ao cheirar
uma sopa, cai na panela?", pensa. Depois o grilo,
saído de um lavagante, falante segreda-lhe ao
ouvido: "é a Joana Ratona!"

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