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ENtrevista INTER­view 457

Entrevista: Yves Schwartz

Interview: Yves Schwartz

Re­su­mo Yves Schwartz é membro do Instituto Abstract Yves Schwartz, member of the France
Universitário da França (IUF) e diretor científi- University Institute (IUF) and scientific director
co do Departamento de Ergologia da Université of the Department of Ergology of the Université
de Provence. Entre seus trabalhos, destacamos de Provence. Among his works we point out
Expérience et connaissance du travail (Méssidor: Expérience et connaissance du travail (Méssidor/
Eds. Sociales, 1988), Travail et philosophie: con- Eds. Sociales, 1988), Travail et philosophie: con-
vocations mutuelles (Tolouse, Octarès, 1992) e vocations mutuelles (Tolouse, Octarès, 1992) e
Le paradigme ergologique ou um métier de phi- Le paradigme ergologique ou um métier de philos-
losophe (Tolouse, Octarès, 2000). Desde os anos ophe (Tolouse, Octarès, 2000). Since the 1990’s,
90, desenvolve cooperação com grupos de pes- he develops a cooperation with research groups
quisa na Fiocruz (Pós-graduação em Saúde Pú- at Fiocruz (Post-graduate in Public Health, sub-
blica, subárea Saúde, Trabalho e Ambiente), na area Health, Work and Environment), at UERJ
Uerj (Pós-graduação em Psicologia Social, em (Post-graduate in Social Psychology, in Lit-
Letras e na Faculdade de Engenharia), na UFF erature & Languages and College of Engineer-
(Pós-graduação em Engenharia de Produção e ing), at UFF (Post-graduate in Production En-
em Psicologia), na Unirio, na UFRJ (Pós-gradu- gineering and Psychology), at Unirio, at UFRJ
ação em Engenharia de Produção) e na UFRRJ. (Post-graduate in Production Engineering) and
Esta entrevista foi realizada em outubro de 2005. at UFRRJ. This interview was held on October
Nela, Yves Schwartz discute alguns dos princi- 2005. In it, Yves Schwartz discusses some of
pais conceitos da perspectiva ergológica, além the main concepts of the ergological perspec-
de apontar aspectos históricos e teórico-meto- tive, in addition to pointing out historical and
dológicos relacionados à emergência desta pers- theoretical-methodological aspects related to
pectiva na França dos anos 80. A perspectiva the emergency of this perspective in France in
ergológica desenvolvida através do "dispositivo the 80’s. The ergological perspective developed
dinâmico de três pólos", associa, de forma origi- through the “three-pole dynamic device”, associ-
nal, profissionais de pesquisa a trabalhadores ates, on an original manner, research profession-
na investigação do "mundo do trabalho" e suas als to workers in the investigation of the “world
transformações. Entre outras influências, desta- of work” and its transformations. Among other
ca a colaboração com o grupo de pesquisa-inter- influences, he highlights the collaboration with
venção de Ivar Oddone e a influência da obra de the research-intervention group of Ivar Oddone
Georges Canguilhem1. and the influence of the work of Georges Can-
guilhem.

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Revista Côte d’Azur, uma microscópica experiência de


Poderia nos falar sobre o contexto histórico, trabalhar com eles sobre seu próprio trabalho4.
socioeconômico, político e acadêmico de surgi-
mento da perspectiva ergológica?
Revista
Yves Schwartz Nessa época, os trabalhadores que participaram
Na verdade, são muitos contextos. Em particu- eram da indústria ou já eram dos serviços?
lar, o contexto socioeconômico das mudanças
do trabalho nos anos 80, na Europa. Um perío- Yves Schwartz
do descrito como de declínio do taylorismo, do Os serviços já eram mais presentes do que a in-
surgimento das novas técnicas e tecnologias, as- dústria. E essa proporção sempre se manteve. A
sim como de redução do tamanho das empresas forte presença das pessoas dos serviços acres-
e fábricas. Um contexto de mudança – do traba- centou informações à evolução da experiência
lho e da sociedade. Na universidade, como pro- e dos conceitos, mas, nessa época, ainda não
fessores, como pesquisadores, entendemos que falávamos em ergologia. Começamos a utilizar
deveríamos integrar essas mudanças ao nosso essa expressão em 1995, ou 1997. Acho que há
ofício, propondo cursos e pesquisas afinados uma continuidade fundamental entre essa mi-
com essas mudanças. A nossa questão, para ser croexperiência inicial e o que fazemos agora e
breve, era: “é verdade que muitas coisas estão também o que se faz aqui no Brasil (nós nunca
mudando no mundo econômico, do trabalho e poderíamos imaginar isso, é incrível)5. Tínha-
social, mas o que está realmente mudando? Se- mos, então, uma intuição sobre a complexida-
rá que sabemos suficientemente bem o que está de da atividade de trabalho, mas era somente
mudando?”. E a partir da discussão das mudan- uma intuição. Todo o movimento foi no sentido
ças do trabalho, surgiu a seguinte questão: “o de desenvolver essa intuição, e agora, olhando
que é o trabalho?”. o passado, as referências teóricas. Porque, ao
Éramos um grupo pequeno de pessoas2, e tive- mesmo tempo, tínhamos a experiência desses
mos o sentimento de que era preciso construir estágios de formação, que nos permitia traba-
um acesso mais profundo e mais rigoroso ao lhar as situações de trabalho com os próprios
mundo do trabalho, ao que era trabalhar, pa- trabalhadores. Isso nos trouxe muitas idéias.
ra avaliar exatamente o que estava mesmo se Mas é verdade que, para que essa experiência
transformando. Porque ao avaliar a transfor- fosse fecunda, tínhamos que levar os elemen-
mação em curso, podia-se concluir coisas gra- tos teóricos aos trabalhadores. Nessa época, foi
ves sobre as competências, a cultura do mundo sempre um vai-e-vem entre os saberes acadêmi-
do trabalho, a obsolescência e o adoecimento. cos sobre o trabalho e os saberes ‘engajados’ pe-
Tudo isso ultrapassava o contexto acadêmico, e los trabalhadores no mundo do trabalho.
nos parecia que a cultura universitária não esta- As referências, de início, foram muitas e, sem
va pronta, não era adequada para responder a dúvida, entre elas, contamos com os aportes
essa questão. Para avaliar o que está mudando, fundamentais da ergonomia de língua francesa,
temos que nos aproximar do trabalho de uma na herança de Alain Wisner, do Conservatoire
maneira mais simples, diferente da forma como National des Arts et Métiers (CNAM) [Conser-
o mundo acadêmico costuma se aproximar. vatório Nacional de Artes e Ofícios]. Jacques
Duraffourg foi o ergonomista que fez a pon-
te com o laboratório de Wisner no CNAM, em
Revista Paris. Duas grandes referências: por um lado, o
Que referenciais teórico-metodológicos influen- aporte dessa ergonomia6 e o de Odonne7 (mais
ciaram na constituição dessa perspectiva? conhecido no Brasil do que na França) nos de-
ram referenciais teóricos e metodológicos essen-
Yves Schwartz ciais; e por outro, e cada vez mais, referências
Na época, início dos anos 80, toda essa expe- filosóficas da filosofia da vida, conforme George
rimentação começou por um estágio – que se Canguilhem8. O primeiro aporte tem uma longa
chama, na França, ‘formação contínua’3 , com tradição, já que esses ergonomistas se apropria-
trabalhadores da própria região de Provence- ram do conceito de ‘atividade’ que vinha da

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psicologia soviética, em que Vigotski e Leontiev se refere ao valor de uso, ele designa o proces-
são as referências. Esta [a atividade], por sua so de fabricação de um valor de uso. Trabalho
vez, vinha de Marx, que também retrabalhou concreto designa trabalho para criar valor de
a herança de Hegel e Kant, toda uma tradição uso. Mas, do ponto de vista da ergonomia, eu
envolvendo o conceito de atividade. A ergolo- diria que, para um mesmo valor de uso, para
gia conseguiu juntar a história do conceito de um mesmo trabalho concreto, podemos encon-
atividade, de um lado, com os ergonomistas e, trar muitas formas de trabalho real, referindo-se
de outro, com a herança da filosofia da vida de a circunstâncias singulares, como, por exemplo,
Georges Canguilhem. as de fabricação de um prédio. Os ergonomistas
sempre situam a atividade em torno da necessi-
dade de gerir as variabilidades de um processo
Revista de trabalho. É claro que o mesmo trabalho con-
De que forma, nesta perspectiva ergológica, creto, que supõe os mesmos objetos de trabalho
pode-se compreender os conceitos de trabalho, e as mesmas ferramentas, sofre muitas variabili-
trabalho concreto, trabalho abstrato? dades, que criam diferenças entre os trabalhos
reais para um mesmo trabalho concreto. Não é
Yves Schwartz exatamente a mesma noção, é parecida.
Abordamos o conceito de trabalho através do Segundo ponto: acho que, para Marx, a distin-
conceito de ‘atividade industriosa’. Para resu- ção entre trabalho concreto e trabalho abstra-
mir, quero dizer que qualquer atividade indus- to tem como objetivo chamar a atenção sobre
triosa envolve sempre algo como um ‘debate de o que para ele é essencial – o trabalho abstra-
normas’. Através dessa noção, podemos regis- to. Porque o âmago da exploração capitalista é
trar uma ampliação da diferença entre o ‘traba- o trabalho abstrato, e é a partir dele, e não do
lho prescrito’ e o ‘trabalho real’, considerando a trabalho concreto, que podemos definir os con-
formulação dos ergonomistas. Ampliamos mui- ceitos de mais-valia e de exploração. Por isso,
to essa noção de trabalho real com a noção de penso que para ele a noção de trabalho concreto
‘normas antecedentes’, com base na herança de não é tão essencial. O tempo social de trabalho
Canguilhem, a propósito da tendência de cada é o que permite definir o valor de troca, que
um sempre renormatizar seu meio de vida e seu ultrapassa toda a experiência de trabalho con-
meio de trabalho. Comecei a definir atividade creto. Em contrapartida, penso que o movimen-
industriosa como um debate de normas que ul- to operário trata com indiferença os aspectos
trapassa o meio de trabalho, mas que se situa concretos do trabalho, além de tudo que está
dentro do meio de trabalho. em jogo dentro do trabalho real. Quando Marx
É assim que tratamos do conceito de trabalho, demonstra sua indiferença em relação a todas as
e através dessas normas podemos encontrar as formas de trabalho concreto para se apropriar
dimensões econômicas, da gestão, da renda, do da noção de trabalho abstrato, há o risco da in-
salário e das normas jurídicas. A partir do tra- diferença do movimento operário para com os
balho como atividade industriosa, reencontra- problemas do trabalho real. Agora, se Marx foi
mos todas as diferentes dimensões do trabalho. indiferente às questões do trabalho real, esta é
Diversas ciências têm como ponto de partida o uma questão aberta em sua obra e que eu gosta-
trabalhador assalariado, ficando mais próximas ria muito de discutir.
das normas antecedentes – o que é um pouco
diferente. Mas temos que reencontrar todas
essas normas, porque o trabalho é pleno, inde- Revista
pendente do fato de ser assalariado, formal ou Nesse sentido, o conceito de trabalho concreto
informal, doméstico ou mercantil. Esse é o pon- se aproximaria mais da compreensão da ergolo-
to de partida. gia sobre a atividade humana?
Em relação ao trabalho abstrato e concreto, essa
é uma questão freqüentemente colocada. É uma Yves Schwartz
forte referência ao marxismo. Primeiramente, Penso que sim, efetivamente sim. Se nos aproxi-
eu diria que o trabalho concreto não é o traba- marmos dos problemas do trabalho unicamente
lho real dos ergonomistas. Entendo que Marx a partir do trabalho abstrato, não chegaremos à

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perspectiva da ergologia. Isso tampouco vai nos


conduzir à ergonomia da atividade. Por isso, a
idéia de pensarmos algo como uma ‘dialética do
trabalho concreto e do trabalho abstrato’ pode-
ria nos conduzir melhor às questões tratadas
pela ergologia, mas também pela ergonomia.
Mas [esta] me parece uma noção insuficiente. E
não sei se para o próprio Marx havia mesmo to-
da essa dialética que nós exprimimos claramen-
te. Não sei se foi através dessa dialética que ele
pensou as mutilações do trabalho e da acumula-

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para nós uma idéia fantástica. Com o livro11 relação ao termo ‘científico’, como poderíamos
de Oddone e de seus companheiros italianos retrabalhar o conceito de ciência? Enfim, como
Alessandra Re e Gianni Brianti, Redécouvrir compreender o que chamamos ‘dispositivo di-
l’expérience ouvrière, estávamos começando a nâmico de três pólos’, qual é a idéia essencial
imaginar um dispositivo novo para nos aproxi- nele presente? Entendemos que, se algo como
mar do trabalhador de uma maneira diferente. atividade existe, isso quer dizer que uma si-
Estávamos tentando imaginar, mas sem modelo, tuação de trabalho (em parte, mas não inteira-
e a leitura desse livro foi fantástica. Fantástica mente singular) é sempre, em parte, ‘ressingu-
porque nos parecia exatamente o que estávamos larizada’. Essa idéia vem da herança dos ergo-
pensando em fazer. Durante este tempo, conhe- nomistas, de Oddone e de Canguilhem.
ci Ivar Oddone. Aliás, no ano passado [2004], Se isso é verdade, como fazer para conhecer
nós o convidamos para um evento na univer- as situações de trabalho? Claro que temos
sidade, Tâches du Présent [Tarefas do Presen- que trabalhar juntos os saberes que chamarei
te], sobre os médicos, em que também estavam ‘engajados’ e aqueles ‘desengajados’ de uma
presentes sua companheira Alessandra Re e os situação singular, neste caso os saberes con-
brasileiros Jussara Brito e Milton Athayde. Para ceituais, gerais, fecundos porque gerais, mas
nós, esse reencontro com Oddone foi uma gran- insuficientes. Por que são gerais? Porque, em
de emoção. Por isso, não sei se é uma questão de qualquer situação, a atividade sempre se de-
superação, porque o que ele fez nessa época foi senvolve enfrentando a necessidade de gerir a
algo fantástico. singularidade da dramática do uso de si. En-
O que tratamos de fazer com esse modelo? Ex- tão, temos que fazer circular, fazer esse vai-e-
ploramos duas dimensões um pouco diferentes. vem entre a riqueza dos saberes envolvendo
A primeira, considerando que sua experiência as normas antecedentes – que estão na nossa
era bem singular, foi o proveito tirado desse vida, no social e no trabalho – e tudo que será
dispositivo, no interior das 150 horas de traba- recriado pela atividade, em uma situação sem-
lho anual conquistadas pelo movimento operá- pre, em parte, singular. Mas essa segunda par-
rio e dedicadas à formação – sob controle dos te não pode ser antecipada. Com nossos con-
sindicatos –, para compensar as deficiências ceitos e saberes desengajados, não podemos
da escola daquele país. Quando assinalo que a antecipar nem entender exatamente que jogo
comunidade cientifica ampliada foi uma expe- de valores pesa sobre as dramáticas do uso de
rimentação em um contexto histórico singular, si, sempre singulares. Ora, os saberes trabalha-
me remeto ao fato de que os operários da Fiat dos através dessas dramáticas do uso de si são,
italiana (sua base inicial) tinham uma coope- ao contrário, engajados na história concreta
ração muito forte com o pessoal dos sindicatos do meu trabalho, dos encontros que fazemos
(dentro e fora da Fiat) e da universidade. Consi- entre homens e mulheres e o meio de trabalho
dero que Oddone desenvolveu isso a partir de técnico e organizacional, que tem sempre uma
um organismo que denominamos, na França, singularidade. Claro que a questão científi-
Bourse du Travail, na cidade de Turim. Enfim, ca ou epistemológica é que há, por um lado,
encontravam-se aí diferentes aspectos, mergu- homogeneidade entre estes dois saberes, da-
lhados na história do mundo do trabalho e da do que são todos eles saberes, e por outro, há
luta de classes. A nossa idéia era inserir uma diferenças entre os saberes desengajados que
coisa como essa nos centros de aprendizagem, ensinamos (nós, professores) e os saberes enga-
de difusão do saber, na universidade. Tentamos jados que se enraízam, que se ancoram, inclu-
instituir esse novo modo de produzir saberes sive, no que chamamos ‘corpo-si’. Temos aqui
dentro do contexto acadêmico. É um desafio uma complexidade científica e epistemológica,
introduzir essa idéia que Oddone chama comu- e por tudo isso é que nos confrontamos com
nidade científica ampliada neste tipo de lugar, o conceito de comunidade científica ampliada.
porque a universidade não funciona assim. O Havia necessidade de melhor trabalhar esse
que tentamos implementar era uma espécie de conceito de saber, envolvendo a homogenei-
prolongamento da idéia de Oddone. dade e a diferença. Parecia-me que essa ques-
A segunda dimensão, a partir dessa idéia de co- tão estava aberta em Oddone e que tínhamos a
munidade científica ampliada, é a seguinte: em obrigação de desenvolvê-la.

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Revista para retrabalhar as normas, em função das re-


Em um local de trabalho, na prática, seria pos- normatizações sempre presentes.
sível pensar em mecanismos ou dispositivos
práticos de gestão que ‘resgatassem’ o sentido
do trabalho? Ou seja, na experiência acumula- Revista
da por seu grupo em tantos locais de trabalho, E até para a conquista da saúde, não?
quais dispositivos de gestão ou modos de gerir
o trabalho prescrito poderiam propiciar um es- Yves Schwartz
paço maior ao indivíduo? Em certo sentido, se- É claro. Por exemplo, a questão da saúde po-
ria o caso de se discutir a possibilidade de que de parecer um pouco menos ligada à escala de
as dramáticas do uso de si e do uso de si pelo valores do lucro, é verdade. Mas as normas, o
outro fossem menos tensas? ritmo de produção, os objetivos a serem cum-
pridos para a rentabilidade do investimento es-
Yves Schwartz tão muito ligados à questão do lucro. Qual seria
Caso estejamos convencidos de que sempre a conseqüência dessa idéia de atividade consi-
existe, para todo mundo, a dramática do uso de derando-se a questão da prevenção, da saúde?
si, convencidos de que não podemos trabalhar Trata-se de saber se o trabalho real implica a
individual e coletivamente sem um debate de execução estrita das normas antecedentes ou se,
normas, isso deve implicar outro olhar sobre a de fato, o trabalho real é uma espécie de nego-
maneira de gerir o trabalho. Além disso, cada ciação entre as normas antecedentes e a tendên-
situação tem suas características. cia à renormatização, em função do fato de as
pessoas serem singulares, em relação ao coleti-
vo. O trabalho real, na verdade, é o resultado
Revista das renormatizações, não da estrita aplicação
Mas só isso já parece um desafio. Porque, mui- e execução das normas. Ou melhor, é a ‘execu-
tas vezes, temos a sensação de que as pessoas ção’ das normas através das renormatizações.
não querem considerar isso. Parece mesmo Daí concluirmos que os riscos para a saúde não
que alguns trabalhadores talvez queiram ser podem ser antecipados somente a partir da aná-
só ‘recursos humanos’. É difícil que os espa- lise das normas antecedentes, mas a partir do
ços organizacionais discutam ou considerem que se faz efetivamente com todas as normas
essas dramáticas. sociais que pesam sobre o trabalho. Por exem-
plo, se existe amianto no ambiente de trabalho,
Yves Schwartz isto já pode ser antecipado sem a participação
Claro que é um desafio. Porque as organizações dos trabalhadores. Sabemos o suficiente sobre
do nosso mundo assumem inteiramente os valo- isso, é algo que já faz parte do nosso patrimô-
res de mercado, funcionam com autoritarismo, nio, um tipo de risco profissional que pode ser
com uma idéia de hierarquia e de imposição de antecipado antes mesmo de qualquer atividade
normas um pouco coerentes com a idéia de nor- de trabalho. Mas existem riscos à saúde que são
matizar previamente o máximo possível, o que é efeitos das formas de organização do trabalho.
coerente com o poder, com os poderes. O fato de É o caso do trabalho de teleatendimento. É um
deixar de (re)pensar e (re)trabalhar as formas de trabalho sempre muito difícil, ‘retaylorizado’,
organização do trabalho leva à idéia de que temos com muitas prescrições, com riscos para a saú-
que normatizar ao máximo. É claro que precisa- de que resultam das escolhas feitas pelas pesso-
mos de normas antecedentes, porque elas tam- as frente às chamadas do tele-atendimento. As
bém são patrimônio universal. Se pensarmos, pessoas podem escolher entre o que se chama
por exemplo, nas normas científicas e técnicas, ‘driblar’ a supervisão, ser atento, adivinhar
tudo isso se mistura. De modo que temos que com jeito quando a supervisão não controla,
trabalhar juntos, temos que propor normas ocupando o tempo para melhor informar o usu-
antecedentes e compartilhar esse conceito de ário. Essa é uma escolha pessoal, porque ela po-
atividade. É preciso normatizar, claro, mas te- de ‘driblar’ a supervisão e fazer o que para ela
mos que conseguir formas de organização ou é um trabalho melhor. É uma dramática do uso
de normatização que deixem sempre um espaço de si com debate de normas. Mas isso implica

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uma espécie de tensão, que pode significar ris- autoridade ao trabalhador. Mas suas formas de
cos para a saúde da pessoa. Isto é, um risco que antecipar as doenças revelam-se, neste caso,
não pode ser antecipado ao trabalho da pessoa. completamente insuficientes.
É um risco diretamente ligado à maneira pela
qual a pessoa renormatiza o seu trabalho.
Revista
No entanto, em algumas situações, poderíamos
Revista pensar o renormatizar como algo que contraria a
Isso não é algo puramente individual, é uma forma como os próprios trabalhadores interpre-
construção social. No fundo, estamos procuran- tam o seu trabalho e as normas antecedentes?
do compreender melhor o que ocorre ‘entre’ o No exemplo anterior, a busca por eficiência, por
trabalhador e seu trabalho. Essa relação, essas um atendimento mais rápido e barato pode le-
escolhas não devem ser entendidas como estri- var ao adoecimento do profissional. Pensando,
tamente individuais, não é? por exemplo, nas normas de segurança do tra-
balho, concebidas, em princípio, para assegurar
Yves Schwartz a saúde. Para muitos trabalhadores, essas nor-
Isso aponta para o que eu chamo de ‘entidade mas de proteção são contrárias ao modo como
coletiva relativamente pertinente’, e é com ela eles tradicionalmente organizam e interpretam
que se cria, que se pode criar. Mas isso não a sua atividade de trabalho. Elas não são valori-
pode ser antecipado. Pode-se criar, mas sem- zadas como proteção ao trabalhador, mas como
pre há uma história. Pode-se criar uma entida- algo que interfere em sua liberdade. Além de
de como essa de que falei, no caso do teleaten- tudo, alguns dispositivos, particularmente os
dimento, e favorecer a idéia de não driblar o equipamentos de proteção individual, embora
usuário, mas isto pode não acontecer. Sempre possam trazer segurança, são desconfortáveis,
existe uma história parcialmente singular. Por fragilizando a própria segurança pretendida. Há
exemplo, podemos tentar discutir a questão uma forte tensão neste ponto. Neste caso, como
da organização da prevenção. Porque, nesse podemos renegociar a gestão do trabalho?
exemplo do trabalho de teleatendimento, era
uma questão de LER/DORT [lesão por esforços Yves Schwartz
repetitivos/distúrbios osteomusculares rela- Sim, instituir a proteção de uma maneira in-
cionados ao trabalho], algo que custa muito a teiramente objetiva – sem considerar como
todos e que também pode custar diretamente se pode desenvolver o trabalho com um cer-
à empresa, e depende da execução das leis. Po- to conforto, sem que seja mais um constran-
de-se discutir com os dirigentes: "se eles qui- gimento – é uma forma de ignorar o que é a
serem diminuir os acidentes, os transtornos, atividade humana. Ontem, em Belo Horizonte
então terão que ficar atentos ao que chama- a mesma questão foi colocada. É uma questão
mos de renormatizações das regras impostas. que teria que ser negociada. Ela deveria ser
Se quiserem ser eficazes do ponto de vista da desenvolvida ou trabalhada no campo da en-
prevenção de saúde, serão obrigados a olhar genharia de produção. Os engenheiros nunca
a atividade real, que sempre implicará em re- deveriam conceber um sistema, uma maneira
normatizações". É uma escolha a fazer. Claro de trabalho, de proteção do trabalho, sem in-
que os responsáveis oficiais pela organização, terrogar os trabalhadores, as pessoas que irão
os dirigentes, não querem fazer essa escolha, usar o sistema. Porque a atividade nunca será
porque ela tem conseqüências sobre a nor- a pura execução de quaisquer normas. Claro
malidade das coisas. Trata-se da obrigação de que precisamos de um engenheiro que conheça
reconhecer que as normas não são suficientes o funcionamento do sistema, que possa ante-
para se fazer um trabalho coletivo. Claro que cipar os riscos. Mas o trabalho não é isso. Não
isso conduz a outra maneira de gerir o traba- se pode concluir a partir disso. É por isso que
lho. É uma escolha do dirigente aceitar ou não há uma luta dentro da empresa, mas também
a necessidade de olhar a atividade para dimi- dentro das instituições de saber. E não se tem
nuir os gastos com as LER/DORT, dado que é considerado suficientemente esse ponto, pois,
um desafio com relação à maneira de impor a para falar em prevenção, ensino, gerenciamen-

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to, competência, sempre temos que retomar as ções, seria possível aplicar essa tecnologia em
coisas a partir da atividade, envolvendo o de- todos os lugares?
bate de normas.
Yves Schwartz
Desde que existe a atividade humana, sempre
Revista houve uma dimensão de ressingularização e
Mas isso não envolveria uma rediscussão do história. Temos que conceber toda criação so-
projeto tecnológico? Porque a tecnologia traz cial, técnica, econômica, política levando em
uma carga normativa e de valores que pode, de conta o fato de que sempre teremos que rea-
algum modo, comprometer a negociação local. prender a singularidade relativa do funciona-
Pensar a atividade não implicaria lidar com uma mento concreto dessa criação com o dispositivo
tecnologia situada? de três pólos. Teremos sempre o que eu chamo
de ‘dupla antecipação’, em que os engenheiros
Yves Schwartz podem antecipar a concepção de uma fábrica,
Sim, mas por quê? Porque a tecnologia utiliza as por exemplo. A primeira antecipação é o pro-
leis científicas e as leis da natureza, e cria uma jeto de construção, é fazer a arquitetura, uma
espécie de agregação entre a ambição de toda atividade muito complexa do seu campo de sa-
pessoa que quer impor a sua autoridade para ber, e cooperar com mecânicos e com todos os
governar o trabalho e apresentar as suas nor- envolvidos. Mas claro que ocorrerão algumas
mas como leis, como leis da natureza, como algo renormatizações dos técnicos, dos operários, de
que não pode ser discutido. Ora, você não vai todos num lugar, para assegurar que esse pro-
discutir a lei da gravidade dos corpos. É uma jeto seja implantado. Por isso, uma boa concep-
lei da natureza que não pode ser transgredida. ção da técnica da ergonomia, do gerenciamento,
Claro que os sistemas técnicos misturam de ma- seria sempre recuperar todas essas renormatiza-
neira complexa o uso de leis da natureza e de ções para reinjetá-las nos saberes dos engenhei-
leis científicas e implicam maneira de fazer fun- ros. Como os operários têm que aprender o fun-
cionar esse sistema, uma maneira de antecipar cionamento normal, os perigos do sistema, eles
a organização do trabalho. Mas não podemos têm que aprender como a atividade coletiva re-
identificar tudo como leis da natureza, o que é normatiza o funcionamento e conhecer as trans-
diferente. Claro que, com a força das leis cien- ferências de tecnologia. Qualquer aplicação téc-
tíficas, as tecnologias exercem essa fascinação, nica é sempre uma maneira de transferência de
e se impõem por causa disso. Temos que ajudar tecnologia, de recriação. Sempre há uma parte,
os engenheiros a compreender que a engenha- mesmo que mínima, de recriação. Creio que es-
ria tem uma racionalidade puramente técnica, tudar as relações sociais é um desafio constante,
mas que, em cada situação de trabalho, essa ra- não se pode parar. Porque a história é sempre
cionalidade não basta; para implementar o sis- contínua, e cada normatização cria história, cria
tema concebido, é preciso considerar sempre as um evento novo, mesmo que ínfimo.
racionalidades da atividade.

Revista
Revista Compreendendo a atividade de trabalho como
Mas essa questão é muito específica, assim co- gestão, podemos considerar que os trabalha-
mo a análise ergonômica. Nós fazemos uma aná- dores portariam a potência de gerir, de criar
lise ergonômica em uma determinada empresa, sobre o trabalho empregando neste movimento
mas não podemos generalizar os resultados pa- o uso de si. Este não compreenderia também a
ra todas as empresas, porque precisamos con- autogestão? Ou microprocessos autogestioná-
siderar sempre a particularidade de cada uma. rios? Em caso afirmativo, os trabalhadores não
Vamos supor que um engenheiro esteja cons- estariam sob o constante dilema de se movi-
truindo uma tecnologia considerando o saber mentar na autogestão ao mesmo tempo em que
dos trabalhadores para desenvolvê-la. Ela vai estamos todos mergulhados em processos de
funcionar para essa organização. Caso se pense heterogestão? De que forma isto repercutiria
nos trabalhadores como o centro das organiza- na saúde?

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Interview: Yves Schwartz 465

Yves Schwartz gestionário enquanto todos os que o cercam


Essa formulação é muito pertinente. O que vo- pautam-se pela concorrência, pela competitivi-
cês chamam de ‘grupos de autogestão’ eu prefi- dade entre seres humanos − há uma contradi-
ro chamar de ‘entidades coletivas relativamente ção. Não tentamos dar uma solução. A ergologia
pertinentes’. Claro que não podemos nos desen- não tem mesmo nenhuma solução a oferecer.
volver de uma maneira confortável se o mun- Sinalizamos um esforço para mudar um pouco
do social faz exatamente o contrário. Por isso, o olhar sobre todas essas questões e dar visibili-
a questão do que chamo ‘ergo-engajamento’ si- dade às dramáticas do uso de si, o que exige in-
tua-se tanto no nível mais singular, no ínfimo venção, recriação permanente. Não se pode dar
das coisas, quanto no nível mais global. Claro solução − nem política, nem econômica −, mas
que, assim sendo, essa questão é tão macropo- sabemos que, na ausência desse tipo de olhar,
lítica quanto microscópica. Impossível ser auto- haverá crises, doenças, infinitas doenças.

Notas

1 Convidamos para a realização da entrevista as pesquisadoras Luciana Gomes e Ana Lúcia Abrahão
(Laboratório de Educação Profissional em Gestão em Saúde), e Mônica Vieira (Laboratório de Trabalho e
Educação Profissional em Saúde) da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (Fundação Oswaldo
Cruz). Agradecemos aos pesquisadores Jussara Brito (ENSP) e Milton Athayde (UERJ) pela discussão
prévia do roteiro de entrevistas e revisão final do texto.

2 Os três professores do departamento diretamente envolvidos eram, além de Schwartz, o lingüista


Daniel Faïta e o sociólogo Bernard Vuillon. De fora, destaca-se o ergonomista Jaques Duraffourg.

3 Estágio então denominado “Cultura profissional, saber-fazer, mutações tecnológicas”.

4 Ver Y. Schwartz e D. Faïta (orgs.). L´homme producteur: autour des mutations du travail et des
savoirs. Méssidor/ Sociales, 1985.

5 Referencia as inúmeras colaborações com grupos de pesquisa no Brasil.

6 Ver em português: F. Guérin, A. Laville, J. Duraffourg & A. Kerguelen. Compreender o trabalho


para transformá-lo. São Paulo, Edgard Blücher, 2001.

7 Ivar Odonne, médico e psicólogo do trabalho, uma das principais referências do chamado ‘movi-
mento operário italiano de luta pela saúde’ (MOI).

8 No que tange ao trabalho, ver Canguilhem. Meio e normas do homem no trabalho. Pro-posições,
v. 12, n.

9 Ver em português: Trabalho e uso de si. Pro-posições, n. 32, 2000

10 Ver em português: Ergonomia, filosofia e exterritorialidade. In: F. Daniellou (org.). A ergonomia


em busca de seus princípios: debates epistemológicos. São Paulo, Edgard Blücher, 2004, p. 141-180; Y.
Schwartz e L. Durrive (orgs.). Trabalho e ergologia: conversas sobre o trabalho. Rio de Janeiro, DP&A,
no prelo.

11 Oddone, Ivar; Re Alessandra e Brianti, Gianni. 1981. Redécouvrir l’expérience ouvrière: vers
une autre psychologie du travail? Paris: Sociales.

Trabalho, Educação e Saúde, v. 4 n. 2, p. 457-466, 2006

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