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Análise Psicológica (2003), 1 (XXI): 23-30

Aumentar a resiliência das crianças


vítimas de violência

MARIA JOSÉ GONÇALVES (*)

1. INTRODUÇÃO sacradas, 6 milhões foram gravemente feridas e


12 milhões ficaram sem abrigo». O Centro Na-
Quando falamos de violência, a que violência cional para Crianças Expostas à Violência nos
nos referimos? Da violência que sofrem as crian- Estados Unidos da América refere que mais de 4
ças vítimas de guerras, cujas imagens nos che- milhões de adolescentes foram vítimas de vio-
gam quotidianamente? A violência das deporta- lências físicas graves. Destes, metade desenvol-
ções, das condições de vida nos campos de refu- veu sintomas neuro-psiquiátricos conhecidos sob
giados, das separações violentas das famílias? A a designação de síndroma post-traumático (Perry
violência dos ataques bombistas, dos massacres, et al., 1985). Os bebés e as crianças pequenas,
das sequestrações em escolas e creches, actos pela sua imaturidade, são ainda mais vulneráveis
imprevisíveis e completamente irracionais? Evi- a estas situações traumáticas e sofrem conse-
dentemente, mas não só. Existem ainda outras quências igualmente graves.
formas de violência, insidiosa e desconhecida, A influência dos traumatismos no desenvolvi-
que vitimam milhares de crianças em todo o mento psico-afectivo da criança pode dar-se em
mundo, comprometendo a curto e a longo prazo três níveis diferentes (Lévy-Schiff & Rosenthal,
a sua saúde mental e o seu futuro. A Federação 1993):
Mundial de Saúde Mental (WFMH) escolheu
para celebrar o Dia Mundial da Saúde Mental de 1. O impacto directo do traumatismo.
2002, o tema «As consequências dos traumatis- 2. Os mecanismos de adaptação («coping»).
mos e da violência sobre as crianças e sobre os 3. As consequências sobre o desenvolvimento
adolescentes». A Organização Mundial de Saúde e sobre as relações.
(OMS) publica números assustadores: 40 mi-
lhões de crianças, menores de 15 anos, são víti-
mas todos anos de violências e privações. Se- 1.1. Impacto directo
gundo um relatório da UNICEF, «entre 1985 e
O impacto do traumatismo diz respeito às si-
1995, mais de 2 milhões de crianças foram mas-
tuações em que a barreira de protecção contra os
estímulos é rompida de forma abrupta. A barrei-
ra de protecção é constituída pelos mecanismos
de auto-regulação, um sistema de para-excitação
(*) Pedopsiquiatra. interna, e os cuidados maternos que constituem a

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barreira de protecção extrema. A rotura desta ou de perseverança, que os conduzem ao insu-
barreira de protecção provoca, no bebé, estados cesso. Depende ainda de factores relacionados
de desorganização afectivo-motora, com agita- com a maturação do S.N.C. como a linguagem, o
ção, choro intenso, seguidos ou não de momen- desenvolvimento psicomotor e a capacidade
tos de apatia e de «congelamento» dos afectos e cognitiva.
ainda perturbações do sono e do apetite. Estas A resiliência depende também de factores
reacções podem atingir um estado crítico com relacionais e vários estudos (Demos, 1989) mos-
episódios em que a criança se mostra assustada e tram que o funcionamento familiar tem uma in-
agitada, por vezes retirada como se estivesse de fluência decisiva, positiva ou negativa, sobre a
novo a ser confrontada com a situação traumáti- qualidade das respostas resilientes da criança.
ca (re-experiência). Demos define a resiliência familiar como um
O aparecimento destes sintomas configura o conjunto de características que incluem a capa-
quadro clínico de Perturbação de Stress Traumá- cidade da família ter um funcionamento flexível
tico (DC: 0-3) e a sua gravidade, de acordo com e uma função de contenção dos problemas, sem
vários estudos, está correlacionada positivamen- os deixar invadir outros domínios do funciona-
te com a presença do sindroma nos pais. Um mento familiar ou interferir no funcionamento da
destes estudos foi efectuado em Israel com cri- criança.
anças com menos de 36 meses, vítimas de bom- Portanto, a capacidade duma criança dar res-
bardeamentos durante a guerra do Golfo e mos- postas adaptadas face à adversidade, sem que es-
trou que os bebés das mães que se sentiram mais ta interfira no seu desenvolvimento, ou seja a re-
assustadas e incapazes de se adaptar à situação siliência individual não é um factor inato, estáti-
tinham sintomas mais intensos e levavam mais co. É um conceito evolutivo e interactivo, que
tempo a recuperar (Lévy-Schiff & Rosenthal, depende em grande parte da qualidade das rela-
1993). ções pais-crianças.
Scheringa e Zeanah (1995) mostraram igual-
mente que as manifestações de stress traumático 1.3. As consequências dos traumatismos sobre
nas crianças com idade inferior a 48 meses eram o desenvolvimento psíquico
mais graves se os pais das crianças fossem igual-
mente atingidos pela violência. Estas consequências podem fazer sentir-se ao
nível do funcionamento cerebral e fazem sempre
1.2. Os mecanismos de adaptação sentir-se ao nível psíquico.
Os bebés estão em constante evolução e inter-
Estes mecanismos correspondem às estraté- acção com o meio ambiente. Quanto mais jovem
gias individuais desenvolvidas para lidar com o é a criança, maior é a plasticidade do seu cérebro
stress. O conjunto dessas estratégias e a sua maior e maior é a sua sensibilidade aos estímulos. As
ou menor eficácia constitui aquilo a que habitu- reacções do cérebro ao stress provocam altera-
almente se chama a resiliência. ções dos neuro-transmissores com a activação de
O termo resiliência é usado na Física e de- estruturas cerebrais. Se essas alterações se desen-
signa a capacidade dum corpo deformado por cadeiam em períodos ditos «sensíveis» da matu-
uma pressão externa retomar a sua forma inicial. ração do S.N.C. ou se prolongam no tempo, ins-
Estendendo-se à Psicologia designa a capacidade crevem-se de forma duradoura no funcionamento
do indivíduo, face à adversidade, de desenvolver cerebral e podem provocar alterações compor-
mecanismos positivos de adaptação (Garmezy, tamentais permanentes (Perry et al., 1995).
1994). O grau de resiliência de cada indivíduo A gravidade das consequências psíquicas dos
depende de vários factores, nomeadamente os traumatismos depende da idade da criança. Até
constitucionais, como por exemplo o tempera- aos 18 meses, a noção de perigo está sobretudo
mento. Com efeito, desde o nascimento muitos ligada à perda ou à ausência das figuras de vin-
bebés têm tendência a mostrar-se activos e per- culação.
sistentes, tentando várias estratégias na procura A partir dos 18 meses, o desenvolvimento da
das soluções para os conflitos, enquanto outros linguagem, da capacidade simbólica, do jogo, as-
tendem a adoptar atitudes passivas, desistentes sim como da retenção mnésica das relações e dos

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acontecimentos abrem caminho à representação São eles:
mental dos afectos dos outros, de si próprio dos
- Capacidade de tentar ultrapassar activa-
acontecimentos. Esta recém-adquirida maturida-
mente a situação traumática, em vez de rea-
de cognitiva e afectiva permite à criança a partir
gir passivamente.
dos 2 anos, reconhecer as situações e começar a
- Competência cognitiva
antecipá-las, nomeadamente as situações de peri-
- Experiências de eficácia própria, de auto-
go real e externo.
-estima positiva e de auto-confiança.
Este reconhecimento do perigo arrasta consi-
go mais reacções de ansiedade e eventualmente - Características do temperamento (activi-
mesmo o aparecimento de sintomas nas crianças dade, persistência, flexibilidade e motiva-
mais velhas, mas também um funcionamento ção).
mais autónomo em relação às figuras parentais, - Relações estáveis pelo menos com um dos
com o desencadear dos processos de internali- dadores de cuidados.
zação e de mentalização. O estudo realizado em - Modelos de comportamento parental e um
Israel e já referido mostrou que, embora as cri- clima educativo aberto e de apoio que en-
anças mais velhas apresentassem mais sintomas, corajem as atitudes positivas face aos pro-
elas recuperavam mais rapidamente que os bebés blemas.
mais pequenos, cujas perturbações eram mais re- - Suporte social fora da família.
sistentes e duradouras. Estes eram sobretudo
vulneráveis às alterações bruscas das rotinas
(por exemplo: durante os alarmes nocturnos, o 2. FORMAS DE VIOLÊNCIA
acordar súbito, a introdução de máscaras e a fuga
para os abrigos em menos de 5 minutos). Tam- A violência comunitária, que aparece de for-
bém as famílias são muito vulneráveis a estes ma brusca, impossível de prever e de evitar é ca-
aspectos em geral associados a uma grande desa- da vez mais visível e reconhecida. Em geral, nos
gregação do tecido social, o que reforça o im- países mais desenvolvidos, tomam-se medidas
pacto dos traumatismos nas crianças. A melhoria para diminuir as suas consequências.
era mais rápida nas crianças que, nos jogos e na Mas existem outra formas de violência, mudas
linguagem, introduziam os temas da guerra. e insidiosas, que se exercem de forma crónica e
Portanto, e em conclusão, podemos dizer que em segredo e que vitimam milhares de crianças
a resiliência imediata e a longo termo das crian- no mundo. Esta violência é exercida muitas ve-
ças vitimas de traumatismos e de violência de- zes pelos adultos que deveriam proteger a crian-
pende da qualidade das relações precoces tam- ça e passa-se quase sempre no interior da família
bém – por um lado da resposta parental ao ou no meio circundante e com a cumplicidade de
stress, sobretudo nos mais pequenos, e por outro quase todos. Reconhecer estas situações é sem-
do desenvolvimento das capacidades simbólicas pre abalar as bases nas quais se funda a família,
e do jogo da própria criança. Aumentar a resili- com um impacto difícil de calcular. E no entanto
ência das crianças nestas circunstâncias implica a gravidade das consequências para a saúde
dar uma atenção especial ao funcionamento das mental e o bem-estar da criança é incalculável e
famílias, através de intervenções específicas, e à a avaliação destes custos para a sociedade ainda
reposição rápida do tecido social, quando é caso está por realizar.
disso. Mas também se torna importante apoiar o A violência, segundo a OMS, consiste «na
funcionamento individual de cada criança, recor- ameaça ou recurso intencional à força física
rendo às psicoterapias e às actividades lúdicas. contra si próprio, outra pessoa ou um grupo, pro-
Gabarino (1993), um investigador americano vocando ferimentos, morte, dano moral, mau de-
ligado ao estudo do desenvolvimento infantil, senvolvimento ou privações. A violência é pro-
reuniu um certo número de factores individuais, vocada por numerosos factores a nível indivi-
relacionais e sociais que protegem o desenvolvi- dual, interpessoal, familiar, comunitário e socie-
mento e melhoram a resiliência da criança qual- tário» (WFMH, 2002).
quer que seja o tipo de violência ao qual esta Mas a violência dos actos que atingem a in-
possa ter sido submetida. tegridade corporal e/ou o funcionamento mental

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do indivíduo também deve ser considerada em confirmação. Isto porque o diagnóstico de violên-
função da maturidade física e psíquica da pessoa cia evoca sentimentos de culpa no profissional
que sofre essa violência e não em si mesma ou que são difíceis de gerir. Esta culpabilidade, que é
em função apenas da sua intensidade. simultaneamente consciente e inconsciente, é
Na realidade, o desenvolvimento da criança muitas vezes consciente em relação ao adulto que
pequena é marcado por uma grande dependência se acusa. A violência e os maus-tratos implicam
física e emocional do adulto, bem como por for- sempre a existência de um potencial abusador, de
mas de pensamento, de verbalização e modos de quem se faz um juízo profundamente negativo e
defesa primitivos, tornando-a mais vulnerável a que desencadeia zanga e indignação.
formas de violência mais subtis mas invasivas, A culpabilidade inconsciente está ligada à
como por exemplo a omissão de cuidados, de ambivalência que todos trazemos em nós contra
protecção, de apoio emocional ou ainda a expo- os objectos internos, nomeadamente o objecto
sição a actos violentos ou abusivos. materno e os seus bebés potenciais.
Num estudo realizado em Portugal junto de Estas situações evocam e actualizam essa am-
instituições, quer de saúde quer de solidariedade bivalência, que com tanto esforço conseguimos
social que se ocupam de crianças, foram descri- recalcar e desencadeiam atitudes contra-transfe-
tas várias formas de maus-tratos que configuram renciais por parte dos profissionais, que nem
este tipo de violência (Almeida et al., 1995). As sempre são adequadas aos casos. Esta é uma das
autoras encontraram uma elevada percentagem razões porque este trabalho exige equipas multi-
de casos de abandono (34,8%), exposição à vio- disciplinares formadas por profissionais compe-
lência (25,4%) e abuso emocional (16,5%). tentes e com experiência, que possam beneficiar
Na nossa experiência clínica, esta forma de de supervisão.
violência é muito difícil de identificar. Nas
consultas de pediatria, a presença de lesões físi-
cas facilita o diagnóstico, mas este torna-se mais 3. ASPECTOS CLÍNICOS
difícil quando as manifestações têm um carácter
predominantemente psicológico e as vítimas não Do ponto de vista clínico, a violência que se
se queixam ou porque não têm ainda acesso à exerce no seio da família, de forma silenciosa e
linguagem ou porque, tendo-o, não se imaginam pervasiva, é, para as equipas de saúde mental,
a queixar-se dos adultos de quem dependem e um dos problemas mais preocupantes e mais
temem a perda do seu amor. Na realidade uma difíceis de resolver. De acordo com o estudo an-
das necessidades básicas do ser humano é o esta- teriormente referido (Almeida et al., 1995) esta
belecimento de relações de vinculação com figu- forma de violência é frequente e exerce-se sobre
ras de referência, que dão afecto e protecção e o as crianças mais pequenas. Assim, em 39,7% dos
medo da perda do amor das figuras de vincula- casos tratava-se de crianças com idades inferio-
ção sobrepõe-se à dor física ou à dor psíquica. res a 3 anos (inclusive) e em 43,7% dos casos ti-
Por outro lado, motivações conscientes e in- nham idades entre os 4 e os 9 anos. Este tipo de
conscientes dos profissionais dificultam essa maus-tratos que pode não se traduzir em mani-
identificação. festações clínicas muito evidentes, é difícil de
Em primeiro lugar são actos contra-natura definir, sobretudo nas crianças mais pequenas.
que só é possível imaginar violentando-se a si Durante as consultas, o que se torna mais evi-
próprio. A defesa da espécie é um princípio bio- dente é a instalação de um desconforto crescente
lógico que se opõe à agressividade contra os ele- e inexplicável no observador. A origem deste
mentos da mesma espécie e deveria impedi-la. desconforto reside provavelmente na frequente
Em segundo lugar, a suspeita de violência dissociação entre a narrativa dos pais, ou seja a
provoca sempre um primeiro movimento de história familiar e pessoal, a descrição que fazem
rejeição do facto, que vai necessitar de posterior da criança e a narrativa da criança, ou seja a
confirmação. No espirito do observador nasce a forma como a criança se nos apresenta à obser-
dúvida, que depois é rebatida e só a existência de vação. Comecemos pela narrativa dos pais que,
novos factos a traz de novo para primeiro plano. em geral enviados por terceiros, apresentam um
E nem sempre existe uma procura consciente de discurso coerente mas pobre no que respeita ao

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bebé e aos afectos que este desencadeia neles. nagem-chave do passado da mãe, sentido como
Apresentam dados concretos, factuais e trazem- perseguidor e que o ódio infantil da mãe (ou do
-nos a descrição de um bebé cujos problemas pai) dirigido a essa figura era deslocado para o
não os inquieta, mesmo quando descrevem sinto- bebé, que se tornava um alvo preferencial da
mas de alguma gravidade, nomeadamente na agressividade parental. Na mesma linha, Lebo-
área alimentar, por vezes com atrasos de cresci- vici desenvolveu o conceito de interacção fantas-
mento, da linguagem ou queixas de agitação e mática e de transmissão fantasmática transgera-
agressividade. cional para descrever o processo de passagem,
A tentativa de encontrar um sentido, uma de pais para filhos, de atitudes, mitos e fantas-
motivação, uma preocupação não encontra eco mas familiares.
nestes pais, que se apresentam como pais quase Também os estudos sobre a vinculação mos-
perfeitos e que têm sempre uma explicação ra- tram de forma clara não só correlações entre o
cional para qualquer dúvida que surja a propó- tipo de vinculação materna e o da criança, mas
sito do seu relacionamento com a criança. No também algumas relações interessantes entre a
observador fica a ideia do não-dito que envolve a vinculação e a resiliência. Assim, verificou-se
criança e que não é possível abordar, a ideia de uma relação positiva entre a sensibilidade e a
que existe um segredo familiar. capacidade de compreensão maternas dos esta-
Vejamos agora o bebé. Pela sua apresentação, dos emocionais da criança e o desenvolvimento
a narrativa que ele nos traz é oposta à dos pais. de uma relação de vinculação de tipo seguro
Somos então confrontados com um bebé com- (Fonagy et al., 1991).
pletamente diferente daquele que nos tinha sido Por seu lado, os trabalhos longitudinais de
descrito. Aparece-nos um bebé triste ou siderado Erickson (Erickson et al., 1985) mostram que os
nas suas manifestações afectivas, «congelado» bebés, que entre os 21 e os 18 meses apresenta-
para utilizar as palavras de Selma Fraiberg, sem vam comportamentos de vinculação de tipo se-
interesse pelo que o rodeia, sem apetência pelo guro, desenvolviam aos 42 meses, características
jogo, com actividades monótonas e repetitivas: de maior «ego-resiliência», ou seja uma maior
um bebé esgotado pelo esforço de sobrevivência. persistência e entusiasmo em resolver proble-
Ou, então uma criança agitada, às vezes impará- mas, uma maior autonomia e uma maior capaci-
vel, com um contacto indiferenciado, com pou- dade interactiva. Aos 6 anos, estas crianças ti-
cos limites, pouco investido nas suas manifesta- nham uma maior capacidade de exprimir os seus
ções e necessidades, que investe pouco a relação sentimentos, melhores competências cognitivas e
e em que o jogo, se existe, tem um carácter de sociais no grupo de pares do que o grupo de cri-
colagem à realidade. anças com uma vinculação de tipo inseguro.
A história de negligência ou de abuso, que a Também Fonagy (Fonagy et al., 1991) considera
criança conta pelo seu comportamento e pelo seu que há evidência empírica que a qualidade da
contacto, não condiz com a descrição dos pais e vinculação influencia a adaptação social, a regu-
não corresponde nem à representação mental que lação dos afectos, as competências cognitivas e o
eles têm dos filhos nem deles próprios como desenvolvimento do self, componentes impor-
pais. Corresponde, em nosso entender, às re- tantes da resiliência individual. Bowlby (1988)
presentações que eles têm de si próprios como afirma: «O grau de resiliência duma criança aos
filhos e da relação com os seus próprios pais, acontecimentos que provocam stress é determi-
porque em geral estes pais viveram eles próprios nado muito significativamente pelo modelo rela-
situações de negligência, de separações ou foram cional desenvolvido durante os primeiros anos
vítimas de maus-tratos, às quais se referem de de vida.»
forma afectivamente distanciada. A utilização do questionário «Adult Attach-
A origem transgeracional da violência é hoje ment Interview» (Main et al., 1985), permitiu
admitida por grande número de autores e foi comparar os modelos de vinculação maternal
confirmada pelos trabalhos de S. Fraiberg com com os da criança e mostrou uma correlação
jovens mães maltratantes. Esta autora verificou significativa entre as características dos modelos
que em muitos casos de maus-tratos e de negli- de vinculação evocadas pelos pais na infância e
gência materna, o bebé representava uma perso- os da criança. Também Bretherton (1980) de-

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monstrou a importância dos efeitos nefastos das ao apoio da relação mãe-criança e ser iniciadas
experiências de rejeição e de negligência, vivi- precocemente.
das pelos pais na infância, na construção dos Na Unidade da Primeira Infância1, nos casos
seus próprios modelos de vinculação, vindo a de risco que nos são assinalados ou em que a si-
comprometer, secundariamente, o desenvolvi- tuação de negligência ou abuso está instalada, a
mento de uma vinculação segura nos seus bebés. primeira preocupação é tentar estabelecer com os
Verifica-se clinicamente que as experiências pais uma relação de confiança e desenvolver
traumáticas não resolvidas da infância tornam o uma aliança terapêutica, em que o principal ob-
comportamento dos pais intrusivo e pouco sensí- jectivo comum é o bem-estar da criança. A ava-
vel ao estado de espírito dos filhos, passando ra- liação da capacidade de mudança das famílias e
pidamente ao acto e que as mães nestes casos de adaptação à criança é essencial, porque quan-
não se tornam objecto de vinculação segura por do as situações têm tendência a eternizar-se,
parte dos filhos. Estudos estatísticos mostram provocam prejuízos gravíssimos para a saúde
que 65% das crianças maltratadas apresentam mental destas crianças.
uma vinculação insegura, enquanto na população Após os primeiros contactos no serviço, as
normal só 35% apresentam este tipo de vincula- sessões terapêuticas são, de preferência, domici-
ção. liárias e semanais. Privilegiamos a escuta atenta
e empática das mães, das suas dificuldades e dos
seus problemas, por vezes bem concretos, e que
4. AUMENTAR A RESILIÊNCIA se referem quase sempre ao isolamento e a senti-
mentos de abandono e solidão. Em muitos casos,
Uma das formas de proteger as crianças e de o terapeuta ajuda na solução desses problemas,
evitar os efeitos nefastos da violência é ajudá-las nomeadamente, como intermediário junto dos
a desenvolver os seus próprios mecanismos de serviços de saúde ou da comunidade, ou a en-
resiliência. contrar soluções para a guarda do bebé, etc.. O
O primeiro nível de intervenção é proteger a objectivo é aliviar as mães do peso do quotidiano
relação mãe-filho. Como vimos, é no interior da e ajudá-las a organizarem-se. Durante as sessões
interacção mãe-criança que se constróem os me- e enquanto ouve a mãe, o terapeuta mantém-se
canismos psicológicos que favorecem as estraté- atento ao bebé, respondendo às suas iniciativas
gias de auto-protecção do indivíduo e que se de- interactivas, mostrando-as à mãe, ajudando-a a
senvolve a resiliência. O apoio à relação precoce dar-lhes significado e a responder-lhe de forma
constitui assim a primeira linha de prevenção contingente. Trata-se por vezes de uma verdadei-
dos maus-tratos. Fonagy (1998), num importante ra maternalização das mães, que por esta via e
artigo de revisão sobre a prevenção em saúde por se sentirem protegidas, progressivamente
mental, refere que é na área dos abusos e da ne- começam a estar mais atentas e sensíveis às
gligência que os dados clínicos são mais expres- manifestações da criança e às suas necessidades.
sivos estatisticamente e provam que as interven- Com este tipo de trabalho, melhoramos as com-
ções precoces de tipo preventivo diminuem petências maternas e a relação mãe-criança. As
significativamente essas situações. Este autor mães tornam-se mais confiantes e ao mesmo
mostra ainda que só as intervenções intensivas, tempo mais capazes de reconhecer as suas limi-
multidisciplinares e de longa duração são verda- tações e de pedir ajuda, reduzindo muito o risco
deiramente eficazes. Um primeiro passo consiste de maus-tratos. Aumentando a sensibilidade e a
na detecção das famílias em risco e na imple- disponibilidade das mães há um reforço do vín-
mentação de medidas concretas e dirigidas a ris- culo mãe-criança e dos factores protectores do
cos específicos. Dada a importância, já referida, desenvolvimento e por isso não só a probabili-
da sensibilidade materna para o estabelecimento
de uma relação de vinculação segura, determi-
nante no desenvolvimento do self e da resiliên-
cia, consideramos que, nos casos de maus-tratos, 1
Departamento de Psiquiatria da Infância e da Ado-
as intervenções devem dirigir-se especificamente lescência, Hospital de D. Estefânia, Lisboa.

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dade da criança ser submetida a abusos diminui, REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
como aumenta a sua capacidade de desenvolver
um self mais diferenciado e de se tornar mais Almeida, A. N., André, I. M., & Almeida, H. N. (1995).
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The relationship between the quality of attachment
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sobretudos nos casos graves de patologia de ca- Development, 50, 147-166.
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Fonagy, P. (1998). Prevention, The appropriate target of
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Em conclusão, poder-se-á dizer que a violên- nal, 19, 124-150.
cia e os maus-tratos são situações que apresen- Gabarino, J. (1993). Children’s response to community
tam formas clínicas diversas, com uma etiopa- violence. What do we know? Infant Mental Health
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terapêutica.

RESUMO
ABSTRACT
A violência é um fenómeno social cada vez mais
generalizado num número cada vez maior de crianças, Violence is spread all over the world and the num-
cada vez mais jovens. O impacto directo do trauma- ber of children, which are victims increase every day.
The direct impact of the trauma, its influence on deve-
tismo, a sua influência sobre o desenvolvimento psico-
lopment and the coping mechanisms are different le-
afectivo da criança e as estratégias de adaptação utili-
vels of the consequences of the violence upon chil-
zadas são áreas nas quais se fazem sentir as conse-
dren. Resilience is described as a very important
quências dos traumatismos. A resiliência é descrita co- factor that determines how children and families react
mo sendo um factor muito importante que determina a to traumas. Based on her clinical experience in Unida-
forma como a criança e a família reagem ao trauma- de da Primeira Infância, the author analyses more sys-
tismo. A autora analisa de uma forma mais sistemática tematically the maltreatment inside the family. She
os maus-tratos que se exercem sobre as crianças pe- describes some of diagnostic difficulties, the transge-
quenas, no seio da família. Baseada na experiência clí- rational character of the situation and the therapeutic
nica da Unidade da Primeira Infância, descreve alguns interventions that protect children and help them to
aspectos clínicos que vão desde as dificuldades do develop their mechanisms of resiliency.
diagnóstico destas situações, até à sua transmissão Key words: Violence, resilience, therapeutic inter-
transgeracional e finalmente as intervenções terapêu- ventions.

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