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Ágil, divertido e emocionante, Flavia Inglaterra, 1950.

Na mansão Buckshaw,
de Luce e o mistério da torta é o primeiro Flavia de Luce mora com sua excêntrica
volume das aventuras da pequena detetive família: Coronel de Luce, o pai viúvo e
especialista em venenos. Em seu roman- “Eu gostaria de poder dizer taciturno, colecionador obsessivo de se-
ce de estreia, Alan Bradley nos apresen- los, e as duas esnobes irmãs mais velhas,
ta uma das mais singulares e cativantes que meu coração ficou chocado, mas ele Daphne e Ophelia. Há também o esqui-
heroínas da recente ficção. não ficou. Eu gostaria de poder dizer que sito jardineiro Dogger e a mal-humorada
Leitores de mais de 27 países já se ren- cozinheira Sra. Mullet, cujos dotes culi-
deram ao encanto de Flavia de Luce. Você
meu instinto foi sair correndo, mas isso não nários deixam muito a desejar — a torta
certamente também se renderá! seria verdade. Em vez disso, fiquei olhando de creme que ela prepara é comparada
por Flavia a uma arma letal.
maravilhada, saboreando cada detalhe: os dedos Flavia vive num mundo próprio. Refu-
se agitando levemente, a quase imperceptível giada no velho laboratório que perten-
ceu à mãe, diverte-se criando venenos

e o mistério da torta
turvação bronze metálico que aparece sobre a inofensivos — que servem apenas às
pele, como se, diante dos meus próprios olhos, suas pequenas vinganças domésticas —
ela estivesse sendo bafejada pela morte. e aprofundando seus conhecimentos em
química, sua matéria preferida. Afinal,
E, então, a quietude total. após a morte da mãe, a monotonia se ins-
Eu gostaria de poder dizer que fiquei taurou naquele lar.
Certo dia, porém, a rotina da casa é
com medo, mas não fiquei. Muito pelo contrário. assustadoramente abalada. Um pássaro
© by Jeff Basset

Aquela era, de longe, a coisa mais interessante morto com um selo raro espetado no bico
é deixado à porta. Em seguida, o Coronel
que acontecera em toda a minha vida.” de Luce recebe a visita de um estranho,
e uma acalorada discussão entre os dois
Alan Bradley é canadense, formado em deixa todos alarmados. E, para concluir
Engenharia e, no início de sua carreira, tra- a sucessão de eventos bizarros, Flavia en-
balhou com comunicação, em rádio e TV. contra alguém estendido no jardim — o
Ingressou na literatura com divertidas e homem que discutiu com seu pai no dia

ala n b ra dl ey
ousadas histórias para crianças. Presidiu al- anterior — e, ao se aproximar dele, ouve
gumas associações de escritores no Canadá Conheça Flavia de Luce. seu último suspiro.
e foi membro-fundador da The Casebook Uma detetive perfidamente inteligente, Por iniciativa própria, Flavia dire-
of Saskatoon, “sociedade secreta” dedi- ciona seus conhecimentos de química,
cada ao estudo das aventuras de Sherlock
brilhante, imprevisível, inabalável — seu humor sarcástico e seu raciocínio
Holmes. Ganhou, recentemente, o prêmio e com apenas 11 anos. rápido para uma nova tarefa: a inves-
da Crime Writers Association’s, o Debut tigação do crime. Seu pai é o princi-
Dagger 2007 (importante prêmio britâ- pal suspeito, mas ela sabe que, apesar
nico concedido aos escritores de romances do jeito reservado, ele não seria capaz
policiais e de suspense) por Flavia de Luce disso. Então, quem poderia ter sido? A
e o mistério da torta, antes mesmo de o livro ISBN 978- 850209227-3 destemida Flavia inicia sozinha uma
ser publicado. Mora em Kelowna, British jornada para inocentar o pai e descobrir
Columbia, com a mulher e dois gatos. o verdadeiro assassino. Ah, talvez seja
importante dizer que Flavia tem apenas
9 788502 092273 Alan Bradley 11 anos...

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Dentro do armário estava tudo escuro como sangue velho. elas


me empurraram para lá e trancaram a porta. Inspirei for-
te, lutando para permanecer calma. Tentei contar até dez a
cada inspiração, e até oito ao liberar o ar lentamente
para dentro das trevas. Para minha sorte, elas tinham pren-
dido a mordaça tão apertado em minha boca aberta que
minhas narinas ficaram desobstruídas, e fui capaz de encher
vagarosa e plenamente o pulmão com o ar viciado e mofado.
Tentei enfiar as unhas por baixo do xale de seda que me
amarrava as mãos atrás das costas, mas como eu sempre as roí
até a carne, não tinha como agarrar o tecido. Sorte eu ter me
lembrado de juntar as pontas dos dedos, usando-as como dez
bases pequenas e firmes para afastar as palmas, quando elas
amarraram fortemente os nós.
Girei os pulsos, apertando um contra o outro até sentir um
pouco de folga. Usei os polegares para puxar a seda para baixo
até os nós ficarem entre minhas palmas e, então, entre meus
dedos. Se elas tivessem sido espertas o bastante para pensar

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em amarrar meus polegares juntos, eu nunca teria conseguido
escapar. Que completas idiotas elas eram.
Com as mãos por fim livres, me desfiz rapidamente da mordaça.
Agora, a porta do armário. Mas, primeiro, para certificar-
-me de que elas não estariam de tocaia me aguardando,
agachei-me e espiei através do buraco da fechadura que estava
livre. Graças aos céus, elas tinham levado a chave. Ninguém à
vista! Com exceção do perpétuo emaranhado de sombras, tras-
tes velhos e deploráveis bugigangas, o comprido sótão estava
vazio. A área estava livre.
Esticando a mão acima da cabeça no armário, desatarraxei
o gancho de um cabide para casaco. Enfiei a parte curva no
buraco da fechadura e usei a outra ponta como alavanca.
Depois de cutucar e futucar um pouco, o mecanismo produziu
um gratificante clique. Foi quase fácil demais. A porta se abriu,
e eu estava livre.

Desci aos pulos a larga escadaria de pedra até o vestíbulo, paran-


do na porta da sala de jantar só o tempo suficiente para jogar
minhas tranças para trás por cima dos ombros, como uso sempre.
O pai ainda insistia em que o jantar fosse servido na hora
exata e comido na maciça mesa de carvalho, exatamente como
quando a mãe ainda estava viva.
— Ophelia e Daphne ainda não desceram, Flavia? — ele per-
guntou em um tom irritado, olhando por cima da última edição
do British Philatelist, aberto ao lado da sua carne com batatas.
— Eu não as vejo há séculos — respondi.
Era verdade. Eu não as via desde que me amordaçaram e me
vendaram, depois me arrastaram com as mãos amarradas pelas
escadas sótão acima e me trancaram no armário.
O pai olhou para mim por cima dos óculos pelos quatro
segundos de sempre antes de voltar a murmurar algo sobre seus
tesouros.
Lancei-lhe um sorriso suficientemente amplo para apre-
sentar-lhe uma boa visão do aparelho que engaiolava meus

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dentes. O pai sempre gostou de ser lembrado de que seu
dinheiro estava sendo bem empregado. Mas desta vez ele estava
preocupado demais para notar.
Levantei a tampa da tigela de porcelana com legumes e, das
profundezas de suas borboletas e framboesas pintadas à mão, pes-
quei uma generosa colherada de ervilhas. Usando a faca como
régua e o garfo como ancinho, organizei as ervilhas para que
formassem meticulosas fileiras e colunas ao longo do meu prato;
fileira após fileira de pequenas esferas verdes, espaçadas com uma
precisão que teria deleitado o coração do mais exigente relojoeiro
suíço. Então, começando da esquerda, espetei a primeira ervilha
com o garfo e a comi.
Foi tudo culpa de Ophelia. Ela, afinal, tinha dezessete anos
e, portanto, esperava-se que possuísse um mínimo de maturida-
de. Que ela se enturmasse com Daphne, que tinha treze, simples-
mente não era justo. Suas idades combinadas totalizavam trinta
anos. Trinta anos! — contra meus onze. Não era apenas antiespor-
tivo, era absolutamente desprezível. E simplesmente clamava
por vingança.

Na manhã seguinte, eu estava atarefada no meio dos frascos e


vasos do meu laboratório químico, no piso superior da ala leste,
quando Ophelia invadiu o recinto e perguntou:
— Cadê meu colar de pérolas?
Encolhi os ombros e respondi:
— Não sou guardiã das suas bugigangas.
— Eu sei que você pegou. As pastilhas de menta que estavam
na minha gaveta de lingerie também sumiram, e observei que
as pastilhas de menta desaparecidas nesta casa parecem acabar
sempre na mesma boquinha suja.
Ajustei a chama de uma lamparina a álcool que estava esquen-
tando uma proveta de líquido vermelho.
— Se está insinuando que minha higiene pessoal não tem o
mesmo padrão da sua, você pode ir lamber minhas galochas.
— Flavia!

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— Bem, você pode, sim. Estou cansada de ser culpada por
tudo, Felinha.
Mas minha virtuosa indignação foi interrompida brusca-
mente quando Ophelia espiou com olhinhos míopes para
dentro do frasco cor de rubi, que justamente começava
a ferver.
— O que é esta massa grudenta no fundo? — pergun-
tou, dando pancadinhas no vidro com suas unhas compridas e
esmaltadas.
— É um experimento. Cuidado, Felinha, é ácido!
O rosto de Ophelia ficou branco.
— São as minhas pérolas! Pertenciam à mamãe!
Ophelia era a única das filhas de Harriet que se referia a ela
como “mamãe”: a única de nós velha o bastante para ter quais-
quer lembranças reais da mulher de carne e osso que nos car-
regou em seu corpo, fato que ela nunca se cansava de nos lem-
brar. Harriet morrera em um acidente de alpinismo quando eu
tinha apenas um ano, e não se falava muito dela em Buckshaw.
Se eu ficava com inveja das lembranças de Ophelia? Se eu
ficava ressentida com elas? Não, era mais profundo que isso. De
um jeito um tanto estranho, eu desprezava as lembranças dela
sobre nossa mãe.
Ergui os olhos lentamente do meu trabalho para que as len-
tes redondas dos meus óculos relampejassem um brilho de luz
branca e vazia para ela. Eu sabia que, sempre que fazia isso,
Ophelia tinha a horrenda impressão de que estava na presença
de algum cientista louco alemão como num filme em preto e
branco da Gaumont.
— Besta!— vociferou ela.
— Megera! — retruquei. Mas não antes de Ophelia girar nos
calcanhares — impecavelmente, eu achei — e sair pela porta.
A retribuição não demorou a chegar. Aliás, com Ophelia
nunca demorava. Ela não era, como eu, uma planejadora a lon-
go prazo acostumada a deixar a sopa da vingança ferver em
fogo lento até a perfeição.

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De repente, depois do jantar, com o pai seguramente recolhido
ao seu estúdio para examinar sua coleção de cabeças de papel,
seus queridos selos estampados com o perfil da rainha, Ophelia
pôs de lado, em silêncio, a faca de manteiga de prata, na qual,
como um periquito australiano, estivera olhando sua própria
imagem durante o último quarto de hora. Sem preâmbulos,
ela disse:
— Eu não sou realmente sua irmã, você sabe... nem Daphne.
É por isso que somos tão diferentes de você. Suponho que nunca
lhe ocorreu que você foi adotada.
Deixei cair minha colher com barulho.
— Isso não é verdade. Sou a cara de Harriet. É o que todo
mundo diz.
— Ela escolheu você no Lar para Mães Solteiras por causa
da evidente semelhança com ela — disse Ophelia, fazendo uma
cara enojada.
— Como poderia haver semelhança se ela era uma adulta e
eu um bebê? — eu sem dúvida sacava as coisas depressa.
— Porque você a fez lembrar das próprias fotografias de bebê.
Sabe, ela até as carregava com ela para exibi-las ao seu lado para
as pessoas poderem compará-las com você.
Apelei para Daphne, cujo nariz estava enfiado em um exem-
plar encadernado em couro de O castelo de Otranto.
— Isso não é verdade, não é, Dafi?
— Infelizmente é — disse Daphne, virando preguiçosamen-
te uma página do livro. — O pai sempre disse que seria um
choque para você. Fez nós duas jurarmos nunca contar. Ou, pelo
menos, até você fazer onze anos.
— Uma valise verde — disse Ophelia. — Vi com meus
próprios olhos. Vi mamãe enfiar as fotografias dela de bebê em
uma valise verde quando foi até o Lar. Embora eu tivesse só
seis anos na época, quase sete, nunca vou esquecer das mãos
brancas dela... os dedos no fecho de latão.
Saltei da mesa e fugi da sala aos prantos. Na verdade só pen-
sei no veneno na manhã seguinte, no desjejum.

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Como acontece com todos os grandes planos, esse era bem
simples.

Buckshaw foi o lar da nossa família, os De Luce, desde tem-


pos imemoriais. A atual casa georgiana foi construída para subs-
tituir a original elisabetana, totalmente queimada por aldeões
que suspeitavam que os De Luce tinham simpatia pelos Orange,
os protestantes irlandeses.
O fato de termos sido católicos fervorosos por quatrocentos
anos, e permanecido assim, não significava nada para os infla-
mados cidadãos de Bishop’s Lacey. A “Casa Velha”, como era
chamada, fora destruída pelas chamas, e a casa nova que a subs-
tituiu já estava em seu terceiro século.
Dois ancestrais mais recentes dos De Luce, Antony e William
de Luce, que discordavam acerca da Guerra da Crimeia, estra-
garam as linhas arquitetônicas da estrutura original. Cada um
deles acrescentara à casa uma ala: William, a ala leste, e Antony,
a oeste.
Cada um tornou-se recluso em seu próprio domínio, e cada
qual proibiu o outro de pôr os pés além da linha preta que
mandaram pintar bem no centro do vestíbulo que passava pela
entrada e ia até a toalete do mordomo, atrás das escadas do fun-
do. Seus dois anexos de tijolos amarelos, terrivelmente vitoria-
nos, voltavam-se para trás como as asas cortadas de um anjo de
cemitério. Aos meus olhos, eles davam às janelas altas e às vene-
zianas da fachada georgiana de Buckshaw a aparência emperti-
gada de uma solteirona cujo coque está apertado demais.
Um De Luce posterior, Tarquin — ou Tar, como era cha-
mado —, na esteira de um colapso mental, arruinou o que
prometia ser uma carreira brilhante em química e foi expulso
de Oxford no verão do Jubileu de Prata da Rainha Vitória.
O indulgente pai de Tar, preocupado com a saúde instável
do rapaz, não poupou despesas ao equipar um laboratório no
andar superior da ala leste de Buckshaw. Era repleto de vidra-
ria alemã, microscópios alemães e um espectroscópio alemão,

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balanças químicas de latão de Lucerna e um tubo de Geisler de
vidro soprado, com formato complexo, ao qual Tar podia aco-
plar bobinas elétricas para estudar o modo como diversos gases
fluorescem.
Sobre uma mesa junto das janelas havia um microscópio
Leitz, cujo latão ainda brilhava com o mesmo luxo cálido do dia
em que fora trazido de charrete do trem em Buckshaw Halt. O
ângulo do seu espelho podia ser ajustado para captar os primei-
ros raios pálidos do sol matinal. Para dias nublados ou depois de
escurecer, ele era equipado com uma lamparina a parafina para
microscópios feita pela Davidson & Co., de Londres.
Havia até mesmo um esqueleto humano articulado, disposto
sobre uma plataforma com rodas, que fora dado a Tar quan-
do ele tinha apenas doze anos pelo grande naturalista Frank
Buckland, cujo pai comera o coração mumificado do Rei
Luís XIV.
Três paredes dessa sala eram forradas do piso ao teto por
armários com frente envidraçada, dois deles repletos, fileira
após fileira, de produtos químicos em potes de vidro de boti-
cário, cada qual etiquetado na meticulosa caligrafia de Tar de
Luce que, no fim, frustrou o destino e sobreviveu a todos eles.
Ele morreu em 1928, com sessenta anos, no meio de seu rei-
no químico, onde foi encontrado certa manhã pela governan-
ta, um dos olhos mortos ainda olhando cegamente através do
seu adorado Leitz. Correram boatos de que ele estava estudando
a decomposição de primeira ordem do pentóxido de nitrogê-
nio. Se isso era verdade, foi a primeira pesquisa registrada de
uma reação que eventualmente levaria ao desenvolvimento da
bomba atômica.
O laboratório do tio Tar foi trancado e preservado em silêncio
ao longo de muitos e poeirentos anos, até que aquilo que o pai
chamava de meus “estranhos talentos” começou a se manifes-
tar, e fui capaz de reivindicá-lo para mim.
Eu estremecia de alegria sempre que pensava no dia chuvoso
de outono em que a química chegou em minha vida.

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Eu estava escalando as estantes de livros na biblioteca, fazen-
do de conta que era uma famosa alpinista, quando meu pé
escorregou e um livro pesado foi ao chão. Quando o peguei para
alisar suas páginas amarrotadas, vi que ele estava repleto não
apenas de palavras, mas de dúzias de desenhos também. Em
alguns deles, mãos sem corpo despejavam líquidos em curiosos
recipientes de vidro, que pareciam instrumentos musicais de
outro mundo.
O título do livro era Um estudo elementar de química, e em
minutos ele me ensinou que a palavra iodo vem de um termo
que significa “violeta”, e que o nome bromo deriva de uma
palavra grega que significa “mau cheiro”. Isso era o tipo de
curiosidade que eu precisava saber! Enfiei o grosso volume ver-
melho embaixo do meu suéter e o levei para cima. Só mais
tarde reparei no nome H. de Luce escrito na folha de rosto. O
livro pertencera a Harriet.
Logo passei a estudar atentamente suas páginas em todos
os momentos livres. Havia noites em que eu mal podia esperar
pela hora de ir para a cama. O livro de Harriet se transformara
no meu amigo secreto.
Nele estavam detalhados todos os metais alcalinos: alguns
com nomes fabulosos, como lítio e rubídio; os terrosos, como
estrôncio, bário e rádio. Vibrei em voz alta quando li que uma
mulher, Madame Curie, descobrira o rádio.
E então havia os gases venenosos: fosfina, arsina (do qual
se sabe que uma única bolha pode ser letal), peróxido de
nitrogênio, ácido hidrossulfúrico... as listas continuavam e
continuavam. Quando descobri que eram fornecidas instru-
ções precisas para formular aqueles compostos, fui ao céu.
Depois que aprendi a ver sentido em equações químicas
como K4FeC6N6 + 2 K = 6KCN + Fe (a qual descreve o que
acontece quando o prussiato amarelo de potassa é aquecido
com potássio para produzir cianureto de potássio), o universo
se abriu diante de mim: era como ter topado com um livro
de receitas que antes pertencera à bruxa da floresta.

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O que me intrigou mais que qualquer outra coisa foi
descobrir o modo como tudo, toda a criação era mantida coe-
sa por laços químicos invisíveis. Encontrei um estranho e
inexplicável conforto em saber que em algum lugar, muito
embora não pudéssemos vê-la em nosso próprio mundo, havia
uma estabilidade real.
De início não fiz a conexão óbvia entre o livro e o labo-
ratório abandonado que eu descobrira quando criança. Mas
quando consegui ligar as coisas, minha vida acordou para a
vida — se é que isso faz algum sentido.
Aqui no laboratório do tio Tar, fileira sobre fileira, estavam
os livros de química que ele tão amorosamente reunira, e logo
descobri que, com um pequeno esforço, a maioria deles não
estava assim tão além da minha compreensão.
Os experimentos simples vieram na sequência, e tentei me
lembrar de seguir as instruções ao pé da letra. Não vou dizer
que não aconteceram umas poucas e fedidas explosões, mas
quanto menos for dito sobre isso, melhor.
Com o passar do tempo, meus cadernos de anotações foram
ficando mais gordos. Meu trabalho se tornava cada vez mais
sofisticado à medida que os mistérios da química orgânica
se revelavam para mim, e me regozijei com o conhecimento
recém-adquirido daquilo que podia tão facilmente ser extraí-
do da natureza.
Minha paixão especial — venenos.
Saí golpeando a folhagem com uma bengala de bambu
surrupiada de um porta-guarda-chuvas do vestíbulo da fren-
te. Ali atrás, no jardim da cozinha, os muros altos de tijolos
vermelhos ainda não tinham deixado entrar o sol acalenta-
dor; ainda estava tudo encharcado da chuva que caíra durante
a noite.
Abrindo caminho por entre os restos da grama não aparada
do ano passado, fui cutucando ao longo da parte de baixo do
muro até encontrar o que estava procurando: um macinho de
folhas brilhantes cujo tom escarlate tornava seus ramos

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de três folhas fáceis de localizar entre as outras trepadeiras.
Puxando um par de luvas de jardinagem de algodão que esta-
vam enfiadas no meu cinto, dei início a uma ruidosa versão
assobiada de Bibbidi-Bobbidi-Boo e comecei a trabalhar.
Mais tarde, na segurança do meu sanctum sanctorum, meu
Santo dos Santos — eu topara com essa deliciosa expressão em
uma biografia de Thomas Jefferson e adotei-a como minha —,
enfiei as folhas coloridas em uma retorta de vidro, tomando o
cuidado de não remover as luvas até que a lustrosa folhagem esti-
vesse seguramente tampada. Agora vinha a parte que eu adorava.
Arrolhando a retorta, conectei-a de um lado a um frasco no
qual a água já estava fervendo e, de outro, a um tubo de vidro
espiralado cuja ponta aberta ficava suspensa sobre uma cuba
vazia. Com a água borbulhando furiosamente, observei o vapor
encontrar seu caminho através do tubo e escapar para dentro
do frasco por entre as folhas. Elas já começavam a se enroscar
e amaciar, enquanto o vapor abria pequeninas bolsas entre suas
células, liberando os óleos que eram a essência da planta viva.
Esse era o modo como os antigos alquimistas praticavam sua
arte: fogo e vapor, vapor e fogo. Destilação.
Como eu amava esse trabalho.
Destilação. Eu pronunciei em voz alta. — Des-ti-la-ção!
Fiquei olhando maravilhada como o vapor esfriava e se con-
densava na serpentina e torci as mãos em êxtase quando a pri-
meira gota de líquido pairou suspensa e depois caiu com um
barulhinho no receptáculo que a aguardava. Plop!
Depois que a água evaporou até o fim e a operação estava
completa, apaguei a chama, apoiei o rosto entre as mãos para
observar com fascínio o fluido se depositando na cuba em duas
camadas distintas: a água destilada clara no fundo, flutuando
sobre um líquido de tom amarelo claro. Era o óleo essencial das
folhas. Era chamado urushiol e usado, entre outras coisas, na
manufatura do verniz.
Enfiei a mão no bolso e extraí de lá um tubo dourado bri-
lhante. Removi a tampa e não pude deixar de sorrir quando se

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revelou uma ponta vermelha. O batom de Ophelia, surrupia-
do da gaveta de sua cômoda, juntamente com as pérolas e as
pastilhas de menta. E Felinha — Miss Lenço Sujo de Meleca
— ainda nem notara que ele se fora.
Lembrando-me das pastilhas de menta, joguei uma na
boca, esmagando a bala ruidosamente entre os molares.
O batom saiu com facilidade do tubo, e reacendi a lampari-
na a álcool. Era preciso apenas um calor suave para reduzir o
material a uma massa de cera. Se Felinha ao menos soubesse
que batom era feito de escamas de peixe, ela poderia ficar um
pouco menos ávida por besuntar a boca inteira com aquilo.
Precisava me lembrar de contar a ela. Sorri arreganhando os
dentes. Mais tarde.
Com uma pipeta, extraí alguns milímetros do óleo destila-
do que flutuava na cuba e então, gota a gota, pinguei-o delica-
damente na massa de batom derretido, dando à mistura uma
vigorosa mexida com uma espátula de madeira.
Fino demais, pensei. Baixei um pote e acrescentei uma
boa porção de cera de abelhas para restaurar a consistência
anterior.
Hora de usar as luvas de novo — e o molde de projéteis de
ferro, que eu surrupiara do — bastante decente — museu de
armas de fogo de Buckshaw.
Estranho, não é mesmo, que um batom seja precisamente
do mesmo tamanho que uma bala calibre .45? Só uma peque-
na informação útil. Eu teria de pensar em suas ramificações
esta noite, quando estivesse seguramente acomodada em
minha cama. Naquele momento, estava ocupada demais.
Extraído do molde e resfriado sob água corrente, o batom
vermelho reformulado encaixou perfeitamente de volta em
seu recipiente dourado.
Testei várias vezes para me certificar de que estava fun-
cionando direito. Então recoloquei a tampa. Felinha havia
dormido até tarde e ainda estaria embromando no café da
manhã.

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— Onde está meu batom, sua porquinha? O que você fez
com ele?
— Está na sua gaveta — eu disse. — Reparei nele quando
surrupiei suas pérolas.
Em minha breve vida, espremida entre duas irmãs, eu tinha
necessidade de me tornar mestra da língua afiada.
— Não está na minha gaveta. Acabei de olhar e não está lá.
— Você pôs os óculos? — indaguei com um sorriso forçado.
Muito embora o pai tivesse equipado todas nós com óculos,
Felinha se recusava a usar os dela. Os meus continham pouco
mais que vidro de janela. Eu os usava somente no laboratório
para proteger os olhos, ou quando queria ganhar simpatia.
Felinha bateu forte com as palmas das mãos na mesa e saiu
da sala tempestuosamente.
Voltei a sondar as profundezas de minha segunda tigela de
cereais.
Depois, escrevi em meu caderno:

Sexta-feira, 2 de junho de 1950, 9h42.


Aparência da cobaia normal, porém mal-humorada.
(Ela não está sempre assim?)
O ataque pode variar entre 12 e 72 horas,

Eu podia esperar.

A sra. Mullet, que era baixa, cinzenta e redonda como uma pedra
de moinho e que, tenho certeza, via a si mesma como uma perso-
nagem de um poema de A. A. Milne, estava na cozinha preparan-
do uma de suas tortas de creme que mais pareciam ser recheadas
com pus. Como de costume, estava lutando com o enorme fogão
que dominava a pequena e entulhada cozinha.
— Oh, srta. Flavia! Venha cá, ajude-me com o forno, querida.
Mas, antes que eu pudesse pensar em uma resposta adequa-
da, o pai apareceu atrás de mim.
— Flavia, uma palavrinha. — Sua voz estava pesada

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como o chumbo nas botas de um mergulhador de águas
profundas.
Relanceei para a sra. Mullet, para ver como ela estava acei-
tando aquilo. Ela sempre fugia ao menor sinal de desconforto.
Certa vez, quando o pai ergueu a voz, ela se enrolou em um
tapete e se recusou a sair até que mandassem chamar seu marido.
Ela fechou cuidadosamente a tampa do forno como se fosse
feita de cristal.
— Preciso sair — disse ela. — O almoço está no réchaud.
— Obrigado, sra. Mullet — falou o pai. — Nós nos arranjamos.
Nós estávamos sempre nos arranjando.
Ela abriu a porta da cozinha — e deixou escapar um grito
repentino, como um texugo acuado.
— Oh, meu bom Deus! Com seu perdão, Coronel De Luce,
mas oh, meu bom Deus!
O pai e eu tivemos de empurrá-la um pouco para ver.
Era um pássaro, um jack snipe — ou bico-de-ferro — morto.
Estava caído de costas na soleira da porta, as asas rígidas esten-
didas como um pequeno pterodátilo, os olhos desagradavelmen-
te velados, o longo bico negro de agulha apontando para cima.
Alguma coisa espetada nele se movia com a brisa matinal —
um pequenino pedaço de papel.
Não, não um pedaço de papel, mas um selo postal.
O pai se curvou para olhar mais de perto, então deu um
pequeno suspiro. E de repente estava agarrando a garganta, suas
mãos tremendo como folhas de álamo no outono, o rosto da cor
de cinzas quando molhadas.

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