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A Ciência e a Tecnologia são uma das fontes de mudanças dos valores culturais e da forma
com que o homem vê a si mesmo. Tomemos com exemplo a teoria heliocêntrica e a revolução
estrondosa que ela causou nos séculos XV e XVI (ver páginas 11 a 23, parte I). Naquele tempo a
idéia de uma Terra redonda, girando ao redor do Sol, pareceu um absurdo. Hoje, no entanto, as
crianças aprendem desde muito cedo que o mundo é assim. Nussbaum (1979), em um estudo com
crianças nas primeiras séries escolares, mostrou que elas vão acomodando a concepção de um
mundo plano que observam em sua volta, com a informação recebida na escola, na tv e em
revistas, de que a terra é redonda e gira ao redor do Sol (Figura 1). Como podemos observar dos
estudos de Nussbaum, a teoria heliocêntrica é “absorvida” e entra para o senso-comum sem que as
evidências experimentais, as observações que estiveram por trás de Copérnico a Galileu para
fundar o heliocentrismo, sejam necessárias. Este exemplo nos mostra que a Ciência pode mudar
substancialmente nossa visão de mundo, ainda que não necessariamente conduza a uma “visão
crítica”. Desde muito cedo aprendemos o “heliocentrismo” mas não quer dizer que aprendemos a
pensar “cientificamente” onde estamos.
Figura 1 - Representação esquemática das principais mudanças da concepção de uma visão de mundo das crianças nas primeiras
séries do ensino fundamental. Em (A) as crianças ainda imaginam a terra como plana e as setas apontam o que para elas é a noção
de “para baixo”; em (B) as crianças acomodam em sua visão de mundo visto em (A) a informação recebida de que os grandes
navegadores como Marco Pólo e Colombo deram “ a volta ao mundo”; em (C) as crianças acomodam as informações recebidas
por fotografias de naves espaciais que mostram a terra “redonda”; em (D) a terra já é esférica mas o homem só pode habitar a
parte superior, caso contrário ele “cairia”. Na população estudada, em torno de 9 anos as crianças já desenvolveram uma noção
“heliocêntrica” atual (modificado de Nussbaum, 1979).
Podemos nos perguntar porque tendo passado mais de 150 anos da publicação da “Origem
das espécies” por Darwin, estamos ainda muito longe de uma aceitação popular, mesmo que
“acrítica” de que as espécies mudam no tempo e que temos todos uma origem comum. É
surpreendente ver que mesmo entre pessoas “cultas” é muito comum observarmos um discurso de
que evolução é “apenas uma teoria”. Uma frágil teoria que muito provavelmente é equivocada e
logo chegaremos a uma explicação melhor (Alters e Nelson, 2002).
Seriam as evidências da teoria heliocêntricas mais sólidas ou mais fáceis de entender?
Certamente não. A idéia de evolução é bastante simples e facilmente assimilável. As evidências de
que a evolução ocorreu são inúmeras e de várias fontes como a Genéticas, Paleontologia,
Anatomia e Embriologia comparadas, Biogeografia e de muitas outras áreas. Muitas dessas
evidências, além de muito sólidas, são fáceis de serem compreendidas .
Para a Ciência, a evolução é um fato. No entanto, vemos seguidamente na mídia que a
teoria evolutiva está em crise, ou que a teoria darwiniana está sendo questionada. A teoria
evolutiva, como toda teoria científica está sempre sendo questionada e, também em constante
evolução. A teoria darwiniana original, sofreu contribuições importantes de ciências que foram
desconhecidas de Darwin, como a Genética e surgiu daí o neodarwinismo. O neodarwinismo é
uma teoria que incorpora novos conhecimentos à teoria de Darwin, sem no entanto negar o
darwinismo. É um refinamento da velha teoria, não sua negação. A explosão das pesquisas
biológicas nas últimas décadas, principalmente em áreas como a Biologia Molecular, tem
possibilitado questionar alguns pontos da teoria neodarwiniana. Uma visão mais clara do processo
evolutivo vem emergindo dessas pesquisas, mas novamente, a essência da teoria evolutiva
continua intacta, no entanto, surgem com as novas pesquisas, melhorias a velha teoria. As atuais
fronteiras do conhecimento sobre a origem da vida e evolução, ao contrário de contradizer as
idéias darwinianas, reforçam-nas. Antes porém de apresentarmos as principais idéias referentes às
fronteiras atuais desta área do conhecimento, vamos fazer um breve apanhado histórico com
relação ao desenvolvimento desses conceitos.
A explicação darwiniana
Entre as inúmeras contribuições de Darwin, duas ganham destaque. A primeira pode ser
resumidamente expressa como a noção de que as espécies não são entidades fixas, mas que, ao
contrário, sofrem evolução. Evolução é a descendência como modificações, de diferentes
linhagens a partir de ancestrais comuns. Em sua obra "A origem das espécies", Darwin apresenta a
idéia de afinidade dos seres vivos como sendo representado por uma árvore, em que cada folha ou
botão, nas pontas dos ramos, representa uma espécie existente. As folhas que já caíram, que
estavam presentes em anos passados, representariam as espécies extintas. No passar do tempo,
com o crescimento da árvore, foram surgindo ramos e galhos, mas todos estes galhos estão
ligados no tempo ao surgimento da primeira folha, na germinação da semente. Portanto, todas as
formas de vida estão ligadas a uma origem comum. É isto que nos mostra a árvore da vida.
A segunda importante contribuição de Darwin foi fornecer um mecanismo para o
surgimento de novas espécies. Apontou ele a "seleção natural" como a força motriz para a
evolução. Basicamente a seleção natural funciona da seguinte maneira: a) os organismos de uma
população possuem diferenças e algumas dessas diferenças são hereditárias (transmissíveis à
prole); b) a capacidade reprodutiva dos organismos é maior que a capacidade do ambiente em
fornecer os recursos necessários para mantê-los; c) necessariamente haverá uma seleção, os mais
adaptados ao ambiente sobrevivem e deixam mais descendentes. Assim, os portadores das
características mais adaptadas ao meio tornam-se mais e mais predominantes na população. Este
mecanismo, posto em marcha, principalmente pensando em longos períodos de tempo, pode
explicar como os organismos vão mudando e novas formas de vida vão surgindo, pela seleção de
“pequenas vantagens”. O mecanismo explica o "crescimento da árvore da vida".
Figura 2 - A árvore da vida de Haeckel - Ernst Haeckel (1834-1919) foi o primeiro a descrever as relações entre os seres vivos
como uma analogia a uma árvore e postulou a origem comum a todas as formas de vida.
Atuais fronteiras
Figura 3 – Seqüência de DNA de um mesmo gene presente em humanos, ratos, sapos, peixes, moscas e
bactérias. Note que quanto mais afastados evolutivamente são os organismos, maior as diferenças na seqüência dos genes.
Com o decorrer do tempo novos genes são estudados e a seqüência de suas “quatro letras”
vão sendo determinada, essas seqüências são depositadas em bancos públicos de seqüências, como
por exemplo no GENEBANK - http://www.ncbi.nlm.nih.gov.
O acúmulo de seqüências de DNA dos mais variados tipos de organismos, nos bancos de
seqüências, permitiu que se chegasse a algumas valiosas conclusões. Por exemplo, nos genes mais
importantes geralmente a taxa de mudanças é muito pequena. Já em genes menos importantes
essa taxa é um pouco maior. Isto ocorre porque nos genes importantes poucas mudanças são
possíveis sem comprometer o bom funcionamento do organismo. No entanto, em muitos
organismos a maior parte do DNA não corresponde a nenhum gene, ou seja não é responsável por
nenhuma característica ou função, sendo chamado por muitos de DNA lixo. Por exemplo, 95%
do genoma humano é composto por esse tipo de DNA. O “DNA lixo” muda muito mais
rapidamente que o DNA que corresponde a genes. Porém, mais do que variar em uma taxa maior,
este tipo de seqüência muda a uma taxa constante no tempo, que corresponde a aproximadamente
1,5% por milhão de anos. Assim, se compararmos uma região de "DNA lixo" com 100
nucleotídeos de duas espécies que se separaram a um milhão de anos, vamos encontrar algo como
3 nucleotídeos diferentes (1,5% para cada espécie). Como esta taxa é constante no tempo,
podemos comparar o número de diferenças no DNA de duas espécies que, pela ausência de
fósseis, não temos informação de quando divergiram, e assim determinar o tempo em que elas se
separaram. Por isso, este método é chamado de relógio molecular.
A árvore darwiniana já não pode mais ser vista como nos pintou Darwin, com um tronco
único se bifurcando em galhos cada vez menores até chegar as folhas nas pontas dos galhos, que
seriam as espécies. A árvore darwiniana “atual” mostra galhos que se anastomosam, que emitem
pequenos galhos e se unem com outros. A evolução é reticulada. Isto não corresponde a tirar
méritos da genialidade de Darwin. Somente agora, com o uso de ferramentas poderosas
conseguimos ver esse detalhe do processo.
O avanço fantástico ocorrido em várias áreas das Ciências Biológicas, no final do século
XX e que prossegue no início desse século, permite que se entenda cada vez melhor como ocorreu
e ocorre o processo evolutivo. Durante muito tempo este conhecimento teve sua importância
apenas para saciar a nossa curiosidade sobre nossa origem (se é que isto é pouco). Atualmente,
entretanto, o conhecimento evolutivo tem se tornado de fundamental importância prática em
várias áreas do conhecimento humano, como na medicina, farmacologia, psicologia, agricultura,
entre outros. Para exemplificar este ponto, podemos lembrar que para o entendimento de
fenômenos como a evolução da resistência bacteriana a antibióticos ou de vetores de doenças as
drogas usadas em seu controle, precisamos empregar o enfoque darwiniano. Além disso, o
entendimento do processo de evolução molecular tem permitido a busca, em organismos modelo
como o rato, de proteínas alvo para criar drogas específicas contra determinadas enfermidades. A
sociedade brasileira de Genética, mantém em seu site um excelente livro on line discutindo estes
assuntos (http://www.sbg.org.br/EvCiSo.pdf).
Figura 5- O fluxo de informação genética dentro da célula. Para fazer as proteínas, a informação contida no DNA é copiada no
RNA e posteriormente traduzida para as proteínas. São as proteínas que vão fazer a célula funcionar, inclusive copiar o DNA para
RNA e duplicar o próprio DNA.
A questão do ovo e da galinha não tem solução se ficarmos restrito a um tempo curto de
análise. Para resolvê-lo precisamos colocar um longo vetor de tempo. Assim, veremos que a
resposta pode ser: os répteis e olhando melhor no tempo passaremos pelos anfíbios, peixes,
bactérias, primeiras células.... O ovo e a galinha fazem parte de uma longa história evolutiva, que
só fazem sentido quando analisada como um todo (Figura 6).
Figura 6 - O paradoxo de quem veio primeiro, o ovo ou a galinha, deixa até mesmo as galinhas tontas sem ver uma solução. No
entanto se olharmos com uma janela de tempo suficientemente grande, veremos que não há paradoxo algum. Vieram antes os
répteis que já se reproduziam por ovos, e os anfíbios que tinham ovos mais simples e ...
O mundo de RNA
O paradoxo de quem veio primeiro, o DNA ou a Proteína é portanto respondido: O RNA.
Sabemos hoje que o RNA tem capacidade catalítica e é uma molécula muito mais dinâmica do
que o monótono DNA. O RNA tem a capacidade de adotar diversas formas tridimensionais e até
hoje, nas células, executam diversas funções decorrentes de sua forma, como transportar
aminoácidos e mesmo algumas funções catalíticas, através das ribozimas, que são enzimas feitas
de RNA. O RNA tem capacidade também de replicação, ou seja, de ser molde para fazer outra
molécula igual a si própria. Assim, o RNA possui as características presentes no DNA e nas
proteínas reunidas em uma única molécula. Vários estudos têm mostrado a versatilidade do RNA
para exercer diversas funções hoje desempenhadas pelas proteínas.
O biólogo molecular Walter Gilbert, em 1986 criou o termo “mundo de RNA” para
designar esta fase da origem da vida em que as propriedades hoje desempenhadas pelo DNA e
proteínas eram feitas pelo RNA. Segundo Gilbert, nos primeiros estágios da origem da vida, as
moléculas do RNA evoluíram para um padrão de auto-replicação e usando a recombinação e a
mutação, começaram a explorar novos nichos, desenvolvendo um amplo espectro de atividades
enzimáticas. No próximo passo o RNA começou a sintetizar proteínas, primeiro por desenvolver
adaptadores de RNA que podiam ligar-se a aminoácidos ativados e posteriormente arranjando-os
de acordo com um molde de RNA. Este processo levou ao surgimento das primeiras proteínas a
serem sintetizadas seguindo um código de um genoma. Após esta etapa, uma membrana envolveu
estes componentes e surgiu uma protocélula. Depois disso o RNA vai gradualmente passando as
atividades funcionais para as proteínas que ele “sabe” como sintetizar. Posteriormente uma nova
molécula muito mais estável, O DNA, entra em cena. Através de um mecanismo hoje bem
compreendido, a transcrição reversa, a informação de como fazer as proteínas que estava no
RNA, vai sendo transferido para o DNA. Surgiam assim as primeiras células. Na Figura 7
podemos visualizar os principais passos da origem da vida.
Figura 7 - Principais passos da origem da vida. Os componentes básicos para a formação das macromoléculas
biológicas foram sintetizados por ação da temperatura e descargas elétricas na atmosfera primitiva. Sofreram um
processo de polimerização e assim surgem moléculas auto-replicantes de RNA. No mundo de RNA, estas moléculas
são separadas por membranas lipídicas, junto com polipeptídeos rudimentares, formando as protocélulas. A evolução
darwiniana dos replicadores de RNA leva a transferência da atividade funcional para as proteínas e posteriormente
transfere a atividade de informação genética para o DNA . Surge a célula moderna.
Passaram-se 4,5 bilhões de anos desde a formação da Terra (ver Figura 8). Este é um
espaço de tempo longo demais para ser facilmente assimilável por nossa experiência cotidiana por
termos nosso cérebro programado para pensar e sentir em unidades de tempo bem mais curtas
como minutos, horas, dias... Este período é longo o suficiente para permitir a origem da vida e
sua diversificação. Estima-se que hoje tenhamos algo em torno de 3,6 a 100 milhões de espécies
no planeta*. Esta é uma história fantástica, rica em detalhes e cada um que tenta desvendar um
desses detalhes acaba por descobrir outros, geralmente ainda mais encantadores. E por ser
História, ajuda a entender, ao menos um pouco, o que somos e como chegamos a ser quem somos.
*Dessas, 1,9 bilhões foram formalmente descritas É surpreendente que em pleno Século XXI nossas estimativas de
biodiversidade sejam ainda tão pouco precisas. (Para uma discussão deste tema, ver Wilson, 2002)
Figura 8 - Principais momentos da evolução, da formação da Terra a 4,5 bilhões de anos passados até o presente em
que temos milhões de espécies presentes no planeta. (modificado de Joyce, 2002).
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