frio intenso, seguramente muito abaixo dos zero graus, isto apesar de um céu azul puro. Fernando, sentado num bloco de gelo no topo da falésia, observa o horizonte, lá em baixo, perto da rebentação, três caçadores entre os quais a sua filha Helena esforçam-se por esfolar uma morsa, está satisfeito, o grupo a que pertence, cinco homens, seis mulheres e duas crianças, num total de treze pessoas, terá carne e gordura para mais alguns dias. Olha para baixo e vê Helena a acenar-lhe com a mão sorridente, é uma rapariga forte e saudável na casa dos vinte a vinte e dois anos, não tem a certeza, não pode ter, recorda-se subitamente da primeira vez que a viu, uma garota escanzelada, magra de fome, aninhada a uma mulher jovem deitada no meio de um caminho térreo, seguramente a sua mãe morta há já vários dias, um fio de sangue seco no canto da boca, outro no exterior da orelha, o olhar fixo, vítreo, de quem não se apercebeu que a sua hora chegara, as pessoas, imensas pessoas, mais autómatos que pessoas, passavam e não ligavam, era comum nesses dias, estava-se na fase do cada um por si, queriam era viver,
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sobreviver, andavam, não sabiam para onde,
com que objectivo, parar era morrer. No entanto, Fernando, na altura com vinte e seis anos sentiu que não podia abandonar a pobre criatura à sua sorte, aproximou-se, a miúda ignorou-o, tentou falar-lhe com uma voz meiga, perguntou-lhe o nome, a mesma reacção, apercebeu-se então que a garota estava em choque, não o via, não via ninguém, tentou então puxar-lhe pela mão esperando naturalmente alguma oposição, para sua surpresa a criança deixou-se levar sem opor resistência mantendo sempre o olhar ausente, apesar de dormir e comer normalmente durante dois meses não proferiu uma única palavra e quando o fez foi como se nada tivesse acontecido, agia como se não se recorda-se da sua vida anterior, nem uma palavra sobre a sua mãe, nem uma palavra sobre o seu nome, Fernando percebia perfeitamente que a miúda estava a passar por um período de negação, preferiu não forçar as recordações pois na situação em que se encontravam, tal como toda a gente, não havia tempo para lamentações ou depressões, eram “luxos” do passado, da “era da abundância”, como ele agora gostava de chamar à época anterior ao desastre global que tinha atirado a humanidade para a idade da pedra, sorriu, talvez fosse melhor chamar-lhe idade do gelo. Como a garota tinha de ter um nome, decidiu chamar-lhe Helena em honra da sua educação
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clássica, educação que, nas condições actuais,
não lhe servia rigorosamente para nada. Um rugido longínquo interrompeu-lhe o pensamento, ficou imediatamente alerta, olhou para baixo e percebeu que o resto do grupo também o tinha ouvido, o medo estampou-se- lhes no rosto, se tivessem de enfrentar o predador estariam perdidos, não havia para onde fugir, ele estava mais exposto, se o tigre aparece-se só tinha duas alternativas, servir-lhe de refeição ou enfrentar a gravidade, em qualquer dos casos teria os dias contados. Tigres naquele lugar, se algumas décadas atrás alguém tivesse preconizado que o jogo de vida ou morte com tais felinos faria parte de uma rotina quase diária, seria com certeza dado como louco. Quando se deu o colapso, muitos animais que se encontravam em zoológicos e circos foram deixados à sua sorte, a maior parte morreu de inanição e frio, no entanto alguns conseguiram escapar e adaptaram-se com uma velocidade espantosa às novas condições ambientais, naturalmente a população de lobos expandiu-se de forma quase imediata, os ursos, incluindo os polares, começaram a aparecer em regiões anteriormente temperadas, o melhor amigo do homem também não tardou muito a regressar ao estado selvagem e a organizar-se em matilhas, mas o que se passou com os grandes felinos foi no mínimo surpreendente, poder-se-ia pensar que os leões, com uma tendência inata para trabalharem em equipa,
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seriam um caso de sucesso, o frio acabou
rapidamente com eles. Com os tigres foi outra história, apesar de serem solitários por natureza, conseguiram resistir ao clima cada vez mais agreste, não só os siberianos, também os de bengala, em alguns anos tinham estabelecido os seus territórios de caça e proliferado, comida não lhes faltava, os humanos outrora no topo da pirâmide alimentar, tinham perdido o seu poder e descido uns bons degraus , os predadores tinham-se transformado em presas, mais do que isso, presas fáceis, naturalmente os tigres engordaram e procriaram, pelo menos assim aconteceu enquanto a carne abundou, agora, até os humanos são escassos. Na falésia instalou-se um silêncio de morte, talvez tivessem uma hipótese, o vento soprava no sentido do oceano, dificilmente o predador os detectaria pelo cheiro. Um novo rugido se ouviu, a Fernando pareceu-lhe mais longínquo, olhou para baixo, Helena e os companheiros pareciam estátuas, não mexiam um músculo, teriam de esperar para saber se estavam fora de perigo, o problema é que não tinham muito tempo, escureceria rapidamente e o abrigo encontrava-se ainda longe, se demorassem muito perder-se-iam na noite e provavelmente não resistiriam ao frio. Enquanto permanecia alerta, lembrou-se da sua infância, ele tinha conhecido este lugar, quando ainda havia tempo para gozar férias, antes do desastre, o sol brilhava e fazia calor, onde agora
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se encontrava Helena, na verdade uns metros
mais acima, ele e os seus pais tinham apanhado mexilhão para o jantar, agora só havia gelo e desolação. Há muito que os especialistas alertavam para o perigo eminente de uma mudança climática brutal e imprevisível, consequência inevitável da actividade industrial humana, apesar das numerosas reuniões e declarações mediáticas dos líderes mundiais, eles e toda a gente ignoraram os alertas, parecia que tudo não passava de uma moda, mais uma, mesmo quando os sinais eram por demais evidentes. Havia indícios de que a corrente termoalina global estava a abrandar como resultado do degelo completo da calote polar norte no Verão e do esboroamento sistemático das plataformas de gelo da Antártida, ninguém ligou. Na Europa, o clima foi-se modificando lentamente, quase que “a medo”, em 2020 o Sena e o Tamisa congelaram, facto inédito, que não acontecia à pelo menos 250 anos, toda a gente achou graça, os noticiários não se cansaram de mostrar parisienses e londrinos aos trambolhões com os seus patins ao tentarem praticar nos rios congelados, mas o Verão foi tórrido, muito mais quente do que o normal. O mesmo aconteceu nos dois anos seguintes, as pessoas começaram a perceber que havia algo de errado com clima, no entanto o mundo globalizado continuou a funcionar, não se verificava escassez de alimentos ou de matérias primas, o consumo
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seguia de vento em popa, o mundo, como
sempre, funcionava. Então, sem aviso, com uma rapidez estonteante e contra todas as previsões dos modelos testados no supercomputadores de todo o mundo deu-se o colapso, a corrente termoalina parou e as suas consequências propagaram-se qual efeito dominó por todo o planeta, num ápice a civilização humana tal como tinha existido até então foi pura e simplesmente varrida da face da Terra. Em 2020, logo no fim do Verão, começou a nevar incessantemente no Hemisfério Norte, as temperaturas caíram a pique e um lençol de gelo começou a avançar a partir do pólo, o solo congelou, as comunicações falharam, as matérias primas e os alimentos escassearam, as escolas fecharam e os sistemas de segurança social estagnaram, as vias de comunicação ficaram intransitáveis por longos períodos e as redes de transporte de energia eléctrica sofreram avarias graves deixando vastas regiões às escuras, para evitar a anarquia os governos da América do Norte, Europa e Ásia, incluindo o antigo bloco soviético tomaram medidas draconianas para manter a ordem e o racionamento foi imposto nos grandes centros urbanos, inevitavelmente a economia mundial afundou-se numa recessão pior do que a do período 2008-2011 a chamada crise do subprime. Toda a gente suspirou desesperadamente pela chegada da Primavera, mas esta chegou muito tarde, nos fins de Maio, apesar do
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cenário se ter repetido no Hemisfério Sul o
lençol de gelo só afectou a pouco habitada Patagónia e alguns arquipélagos isolados, a Austrália estava demasiado próxima do Equador para sofrer com as alterações catastróficas do clima. No norte o Verão foi frio e começou logo a nevar no início de Outubro, alguns suspeitaram do que lhes vinha em cima e tinham razão, as coisas começaram logo a correr mal, muito mal, em Novembro as temperaturas caíram em picado para os vinte graus negativos de forma persistente. Foi o fim de tudo, as bases da civilização do século XXI, a electrónica e as telecomunicações, desmoronaram-se como um baralho de cartas, de repente o mundo ficou mudo e escuro, em poucas semanas colapsaram os sistemas de produção e transporte de energia e as vias de comunicação deixaram simplesmente de existir, enterradas debaixo de metros de neve e gelo, os combustíveis congelaram nos depósitos dos veículos e os pipelines não resistiram ao frio, os centros urbanos ficaram isolados e pouco tempo depois a população não tinha mantimentos, a hecatombe não tardou, as reservas estratégicas de alimentos na Europa, previstas para três meses não duraram três semanas e as pessoas começaram a morrer de fome e de frio, ironicamente não faltava material combustível, mas ninguém dominava a tecnologia do fogo, essa arte, velha de quatrocentos mil anos e transmitida de geração
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em geração desde o Homo Erectus, tinha-se
perdido após a primeira revolução industrial, agora, esses “milagres” da industria tinham-se esgotado ou pura e simplesmente não funcionavam em temperaturas tão baixas, a calote polar expandiu-se para as baixas latitudes e engrossou, a terra que não foi engolida transformou-se em permafrost, foi a debandada geral das cidades, não se tinha assistido a nada igual ou semelhante desde a queda do Império Romano, nações inteiras desapareceram debaixo do gelo. Os que puderam tentaram fugir para a linha do Equador e para a Austrália, foi um desastre, esses países viram-se de repente a braços com um tsunami humano de proporções bíblicas, demasiada gente para um espaço tão exíguo e recursos tão escassos, vieram imediatamente ao de cima as noções de espaço vital e soberania territorial concebidas para um mundo que já não existia, a violência e a brutalidade não tardaram, depressa as armas falaram mais alto, as forças em confronto usaram de tudo, armas convencionais, químicas e biológicas, até armas nucleares tácticas, as poucas que se tinham salvado. A carnificina, o genocídio, a contaminação radioactiva e a pandemia transformaram aquilo que deveria ser uma solução num inferno inabitável, a humanidade estava agora reduzida a uns escassos milhões, na sua maior parte os sortudos que
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tinham sido abandonados à fome e ao frio,
Fernando era um desses sortudos.
O Sol aproximava-se rapidamente do
horizonte, Fernando tinha de tomar uma decisão, ponderou um pouco e acenou ao grupo lá em baixo, era hora de regressar, ajudou a içar a caça, após a sua distribuição todos tomaram o trilho que conheciam tão bem, esperava-os o conforto do fogo permanente no abrigo situado nas ruínas do farol que agora apelidavam de “lar “. Helena de súbito parou, virou-se e apreciou uma última vez a maravilhosa e desoladora paisagem que se apresentava a sua frente, as ilhas antigamente conhecidas como Berlengas erguiam-se imponentes no seu manto branco e lá ao longe, perto do Pôr do Sol, depois de um interregno de trinta e cinco mil anos, os Icebergs brilhavam como diamantes flutuando tranquilamente ao largo da terra a que outrora se chamou Peniche.