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A ARCA

Capitulo I

Glaciação

Primavera, provavelmente fins de Março,


frio intenso, seguramente muito abaixo dos zero
graus, isto apesar de um céu azul puro. Fernando,
sentado num bloco de gelo no topo da falésia,
observa o horizonte, lá em baixo, perto da
rebentação, três caçadores entre os quais a sua
filha Helena esforçam-se por esfolar uma
morsa, está satisfeito, o grupo a que pertence,
cinco homens, seis mulheres e duas crianças,
num total de treze pessoas, terá carne e gordura
para mais alguns dias. Olha para baixo e vê
Helena a acenar-lhe com a mão sorridente, é
uma rapariga forte e saudável na casa dos
vinte a vinte e dois anos, não tem a certeza,
não pode ter, recorda-se subitamente da
primeira vez que a viu, uma garota
escanzelada, magra de fome, aninhada a uma
mulher jovem deitada no meio de um caminho
térreo, seguramente a sua mãe morta há já
vários dias, um fio de sangue seco no canto da
boca, outro no exterior da orelha, o olhar fixo,
vítreo, de quem não se apercebeu que a sua
hora chegara, as pessoas, imensas pessoas, mais
autómatos que pessoas, passavam e não
ligavam, era comum nesses dias, estava-se na
fase do cada um por si, queriam era viver,

Paulo Manuel Vieira dos Santos I


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sobreviver, andavam, não sabiam para onde,


com que objectivo, parar era morrer. No entanto,
Fernando, na altura com vinte e seis anos
sentiu que não podia abandonar a pobre
criatura à sua sorte, aproximou-se, a miúda
ignorou-o, tentou falar-lhe com uma voz meiga,
perguntou-lhe o nome, a mesma reacção,
apercebeu-se então que a garota estava em
choque, não o via, não via ninguém, tentou
então puxar-lhe pela mão esperando
naturalmente alguma oposição, para sua surpresa
a criança deixou-se levar sem opor resistência
mantendo sempre o olhar ausente, apesar de
dormir e comer normalmente durante dois meses
não proferiu uma única palavra e quando o fez
foi como se nada tivesse acontecido, agia como
se não se recorda-se da sua vida anterior, nem
uma palavra sobre a sua mãe, nem uma palavra
sobre o seu nome, Fernando percebia
perfeitamente que a miúda estava a passar por
um período de negação, preferiu não forçar as
recordações pois na situação em que se
encontravam, tal como toda a gente, não havia
tempo para lamentações ou depressões, eram
“luxos” do passado, da “era da abundância”,
como ele agora gostava de chamar à época
anterior ao desastre global que tinha atirado a
humanidade para a idade da pedra, sorriu,
talvez fosse melhor chamar-lhe idade do gelo.
Como a garota tinha de ter um nome, decidiu
chamar-lhe Helena em honra da sua educação

Paulo Manuel Vieira dos Santos II


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clássica, educação que, nas condições actuais,


não lhe servia rigorosamente para nada.
Um rugido longínquo interrompeu-lhe o
pensamento, ficou imediatamente alerta, olhou
para baixo e percebeu que o resto do grupo
também o tinha ouvido, o medo estampou-se-
lhes no rosto, se tivessem de enfrentar o
predador estariam perdidos, não havia para onde
fugir, ele estava mais exposto, se o tigre
aparece-se só tinha duas alternativas, servir-lhe
de refeição ou enfrentar a gravidade, em
qualquer dos casos teria os dias contados.
Tigres naquele lugar, se algumas décadas
atrás alguém tivesse preconizado que o jogo de
vida ou morte com tais felinos faria parte de
uma rotina quase diária, seria com certeza dado
como louco. Quando se deu o colapso, muitos
animais que se encontravam em zoológicos e
circos foram deixados à sua sorte, a maior
parte morreu de inanição e frio, no entanto
alguns conseguiram escapar e adaptaram-se com
uma velocidade espantosa às novas condições
ambientais, naturalmente a população de lobos
expandiu-se de forma quase imediata, os ursos,
incluindo os polares, começaram a aparecer em
regiões anteriormente temperadas, o melhor
amigo do homem também não tardou muito a
regressar ao estado selvagem e a organizar-se
em matilhas, mas o que se passou com os
grandes felinos foi no mínimo surpreendente,
poder-se-ia pensar que os leões, com uma
tendência inata para trabalharem em equipa,

Paulo Manuel Vieira dos Santos III


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seriam um caso de sucesso, o frio acabou


rapidamente com eles. Com os tigres foi outra
história, apesar de serem solitários por natureza,
conseguiram resistir ao clima cada vez mais
agreste, não só os siberianos, também os de
bengala, em alguns anos tinham estabelecido os
seus territórios de caça e proliferado, comida
não lhes faltava, os humanos outrora no topo da
pirâmide alimentar, tinham perdido o seu poder
e descido uns bons degraus , os predadores
tinham-se transformado em presas, mais do que
isso, presas fáceis, naturalmente os tigres
engordaram e procriaram, pelo menos assim
aconteceu enquanto a carne abundou, agora, até
os humanos são escassos.
Na falésia instalou-se um silêncio de
morte, talvez tivessem uma hipótese, o vento
soprava no sentido do oceano, dificilmente o
predador os detectaria pelo cheiro. Um novo
rugido se ouviu, a Fernando pareceu-lhe mais
longínquo, olhou para baixo, Helena e os
companheiros pareciam estátuas, não mexiam
um músculo, teriam de esperar para saber se
estavam fora de perigo, o problema é que não
tinham muito tempo, escureceria rapidamente e
o abrigo encontrava-se ainda longe, se
demorassem muito perder-se-iam na noite e
provavelmente não resistiriam ao frio.
Enquanto permanecia alerta, lembrou-se da sua
infância, ele tinha conhecido este lugar, quando
ainda havia tempo para gozar férias, antes do
desastre, o sol brilhava e fazia calor, onde agora

Paulo Manuel Vieira dos Santos IV


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se encontrava Helena, na verdade uns metros


mais acima, ele e os seus pais tinham
apanhado mexilhão para o jantar, agora só
havia gelo e desolação.
Há muito que os especialistas alertavam
para o perigo eminente de uma mudança
climática brutal e imprevisível, consequência
inevitável da actividade industrial humana,
apesar das numerosas reuniões e declarações
mediáticas dos líderes mundiais, eles e toda a
gente ignoraram os alertas, parecia que tudo
não passava de uma moda, mais uma, mesmo
quando os sinais eram por demais evidentes.
Havia indícios de que a corrente termoalina
global estava a abrandar como resultado do
degelo completo da calote polar norte no Verão
e do esboroamento sistemático das plataformas
de gelo da Antártida, ninguém ligou. Na
Europa, o clima foi-se modificando lentamente,
quase que “a medo”, em 2020 o Sena e o
Tamisa congelaram, facto inédito, que não
acontecia à pelo menos 250 anos, toda a gente
achou graça, os noticiários não se cansaram de
mostrar parisienses e londrinos aos trambolhões
com os seus patins ao tentarem praticar nos rios
congelados, mas o Verão foi tórrido, muito mais
quente do que o normal. O mesmo aconteceu
nos dois anos seguintes, as pessoas começaram
a perceber que havia algo de errado com clima,
no entanto o mundo globalizado continuou a
funcionar, não se verificava escassez de
alimentos ou de matérias primas, o consumo

Paulo Manuel Vieira dos Santos V


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seguia de vento em popa, o mundo, como


sempre, funcionava. Então, sem aviso, com uma
rapidez estonteante e contra todas as previsões
dos modelos testados no supercomputadores de
todo o mundo deu-se o colapso, a corrente
termoalina parou e as suas consequências
propagaram-se qual efeito dominó por todo o
planeta, num ápice a civilização humana tal
como tinha existido até então foi pura e
simplesmente varrida da face da Terra. Em
2020, logo no fim do Verão, começou a nevar
incessantemente no Hemisfério Norte, as
temperaturas caíram a pique e um lençol de
gelo começou a avançar a partir do pólo, o solo
congelou, as comunicações falharam, as
matérias primas e os alimentos escassearam, as
escolas fecharam e os sistemas de segurança
social estagnaram, as vias de comunicação
ficaram intransitáveis por longos períodos e as
redes de transporte de energia eléctrica
sofreram avarias graves deixando vastas regiões
às escuras, para evitar a anarquia os governos
da América do Norte, Europa e Ásia, incluindo
o antigo bloco soviético tomaram medidas
draconianas para manter a ordem e o
racionamento foi imposto nos grandes centros
urbanos, inevitavelmente a economia mundial
afundou-se numa recessão pior do que a do
período 2008-2011 a chamada crise do subprime.
Toda a gente suspirou desesperadamente
pela chegada da Primavera, mas esta chegou
muito tarde, nos fins de Maio, apesar do

Paulo Manuel Vieira dos Santos VI


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cenário se ter repetido no Hemisfério Sul o


lençol de gelo só afectou a pouco habitada
Patagónia e alguns arquipélagos isolados, a
Austrália estava demasiado próxima do Equador
para sofrer com as alterações catastróficas do
clima. No norte o Verão foi frio e começou
logo a nevar no início de Outubro, alguns
suspeitaram do que lhes vinha em cima e
tinham razão, as coisas começaram logo a
correr mal, muito mal, em Novembro as
temperaturas caíram em picado para os vinte
graus negativos de forma persistente. Foi o fim
de tudo, as bases da civilização do século XXI,
a electrónica e as telecomunicações,
desmoronaram-se como um baralho de cartas,
de repente o mundo ficou mudo e escuro, em
poucas semanas colapsaram os sistemas de
produção e transporte de energia e as vias de
comunicação deixaram simplesmente de existir,
enterradas debaixo de metros de neve e gelo, os
combustíveis congelaram nos depósitos dos
veículos e os pipelines não resistiram ao frio,
os centros urbanos ficaram isolados e pouco
tempo depois a população não tinha
mantimentos, a hecatombe não tardou, as
reservas estratégicas de alimentos na Europa,
previstas para três meses não duraram três
semanas e as pessoas começaram a morrer de
fome e de frio, ironicamente não faltava
material combustível, mas ninguém dominava a
tecnologia do fogo, essa arte, velha de
quatrocentos mil anos e transmitida de geração

Paulo Manuel Vieira dos Santos VII


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em geração desde o Homo Erectus, tinha-se


perdido após a primeira revolução industrial,
agora, esses “milagres” da industria tinham-se
esgotado ou pura e simplesmente não
funcionavam em temperaturas tão baixas, a
calote polar expandiu-se para as baixas latitudes
e engrossou, a terra que não foi engolida
transformou-se em permafrost, foi a debandada
geral das cidades, não se tinha assistido a nada
igual ou semelhante desde a queda do Império
Romano, nações inteiras desapareceram debaixo
do gelo.
Os que puderam tentaram fugir para a
linha do Equador e para a Austrália, foi um
desastre, esses países viram-se de repente a
braços com um tsunami humano de proporções
bíblicas, demasiada gente para um espaço tão
exíguo e recursos tão escassos, vieram
imediatamente ao de cima as noções de espaço
vital e soberania territorial concebidas para um
mundo que já não existia, a violência e a
brutalidade não tardaram, depressa as armas
falaram mais alto, as forças em confronto
usaram de tudo, armas convencionais, químicas
e biológicas, até armas nucleares tácticas, as
poucas que se tinham salvado. A carnificina, o
genocídio, a contaminação radioactiva e a
pandemia transformaram aquilo que deveria ser
uma solução num inferno inabitável, a
humanidade estava agora reduzida a uns escassos
milhões, na sua maior parte os sortudos que

Paulo Manuel Vieira dos Santos VIII


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tinham sido abandonados à fome e ao frio,


Fernando era um desses sortudos.

O Sol aproximava-se rapidamente do


horizonte, Fernando tinha de tomar uma
decisão, ponderou um pouco e acenou ao
grupo lá em baixo, era hora de regressar,
ajudou a içar a caça, após a sua distribuição
todos tomaram o trilho que conheciam tão bem,
esperava-os o conforto do fogo permanente no
abrigo situado nas ruínas do farol que agora
apelidavam de “lar “.
Helena de súbito parou, virou-se e apreciou
uma última vez a maravilhosa e desoladora
paisagem que se apresentava a sua frente, as
ilhas antigamente conhecidas como Berlengas
erguiam-se imponentes no seu manto branco e
lá ao longe, perto do Pôr do Sol, depois de um
interregno de trinta e cinco mil anos, os
Icebergs brilhavam como diamantes flutuando
tranquilamente ao largo da terra a que outrora
se chamou Peniche.

Paulo Manuel Vieira dos Santos IX

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