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Diogo de Souza

Abascanto
Abascanto
Abascanto
Abascanto
Abascanto
Abascanto
Abascanto
Abascanto
a sombra dos caídos
Copyright 2008 by Diogo de Souza
Revisão e Preparação: Maria do Carmo Zanini
Projeto gráfico, Diagramação e Capa: Cristiane L. Viana
1ª Edição – 2010
ISBN 978-85-910782-0-2
CDU 823/47

COMMON DEED

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Prólogo — Solstício . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4
I.Vinte e três anos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16
II.  Retorno . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22
III.  Corrida ao pôr do sol . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30
IV.  Encontro no café . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38
V.  Uma conversa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41
VI.  Dois telefonemas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48
VII.  A festa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51
VIII.  Luta no trigésimo quinto andar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56
IX.  Confronto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 64
X.  A espada não forjada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 74
XI.  O dia seguinte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83
XII.  Café-da-manhã . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 90
XIII.  Almoço em família . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97
XIV.  Batismo de fogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 100
XV.  Aula . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 108
XVI.  O visitante . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113
XVII.  A escolha de Aline . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121
XVIII.  O dono do mundo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 129
XIX.  Nenhuma pessoa sincera . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 138
XX.  Revanche . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 144
XXI.  Consequências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149
XXII.  A hora de Sariel . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 156
XXIII.  Confluência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163
Epílogo — Família . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 174
Agradecimentos

Um obrigado especial às pessoas cujas opiniões me proporcionaram ta-


manho prazer ao escrever este livro e uma satisfação tão grande ao vê-lo pronto:

Maria do Carmo Zanini


Luís Américo Nedavaska
Alessandra Pires
Adriana de Oliveira Silva
André Vianco
Lucia Facco
Chico Anes
Maurício Pacheco Chagas
Alfredo Stahl
Hiezza
Hudson Okada
João Cartolano
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Solstício
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Eram 21h59 do dia 21 de junho, o solstício de inverno.


Naquele dia, o mais curto do ano, a manhã surgira nublada, coberta por
uma leve garoa. O sol não brilhara em nenhum momento e se pusera de ma-
neira discreta, deprimida, sem que qualquer pessoa percebesse que ele nem
sequer tinha dado as caras.
O trânsito intenso da cidade se estendera para além das oito da noite e só
se acalmara por volta das oito e meia. O comércio fechava, as casas noturnas
começavam a abrir. Em um certo bairro residencial e próximo ao rio, forrado
de árvores em todas as ruas, as luzes noturnas das janelas denotavam a plena
atividade dos lares.
Aos 36 segundos, todo aquele setor da cidade foi surpreendido por uma
súbita escuridão. As luzes se apagaram, fazendo descer um tapete de trevas,
seguido da constelação das minúsculas velas que se acenderam nos apartamen-
tos. Em uma rua sem saída, um transformador elétrico soltou um ruidoso es-
tampido. Um raio se estendeu até o chão com um forte zumbido e uma breve
luz cintilante.
Um foco luminoso se formou naquele canto esquecido. Cachorros começaram
a latir para o céu. Algumas crianças tiveram o sono perturbado.
Uma luz, surgida em pleno ar, fluiu no meio da rua. Fios cintilantes de uma
massa branca se formaram e começaram a se enrolar uns nos outros. Aquele beco
foi iluminado por uma abertura entre as dimensões, e milhares de pequenos ten-
táculos de uma energia luminosa começaram a fluir para a calçada.
Um vendaval percorreu a rua, e os fios da rede elétrica, mesmo sem força,
trocaram raios com o passeio.
Aquela luz, dobrando-se sobre si mesma milhares de vezes, começou a se
concentrar cada vez mais. Perdeu o brilho e ganhou substância. Aquilo que era
um imenso foco luminoso rapidamente se transformou em uma fumaça esbran-
quiçada. Concentrou-se ainda mais, criando uma espécie de gel, e se solidificou
em três formas físicas.

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Abascanto: a sombra dos caídos

Da luz, três corpos começaram a surgir. Braços, pernas, cabeça, mãos e pés.
Formados a partir do nada, criados naquele mesmo instante, três seres com a
forma humana apareceram no meio da rua.
Ninguém viu esse acontecimento. E, se alguém tivesse visto, não se recordaria.
As três pessoas foram formadas por uma energia que não vinha deste mundo.
Foram criadas pela concentração intensa de centenas de outros seres, dos quais
se separavam pelo abismo que existe entre a realidade objetiva e a subjetiva.
Junto com os corpos, roupas se formaram. As mentes daqueles seres, após
cruzar a ponte para este mundo, se acomodaram em seus novos cérebros, os
preencheram com sensações inteiramente novas.
Não tinham nomes, uma vez que acabavam de surgir, mas eram indivíduos:
de onde vinham, tinham identidades próprias. A cada identidade, a cada uma
daquelas personalidades, correspondia uma vibração, e a cada vibração, um
som. Assim, os sons que traduziam melhor cada uma delas eram Oriniel, Ka-
liel e Daqshael.
Naquele instante, os três não sabiam de nada. Não eram capazes nem sequer
de formular um pensamento: ainda ligados a um mundo onde o tempo e o espaço
quase não tinham significado. Nos minutos que se seguiram, ideias começaram a se
formar. Pensamentos desconexos surgiam conforme seus cérebros recém-criados
se coordenavam em um fluxo incontrolável de informações. Seus colegas etéreos,
do outro lado do abismo, gravavam em suas mentes todo o conhecimento comum
da sociedade. Usos, costumes, línguas: tudo isso se concatenava em suas mentes.
Teria sido agonizante, mas seus corpos ainda estavam se formando e eram
incapazes de sentir dor. Com muda curiosidade, observaram o universo de con-
hecimentos que os assolava. A única indicação de mal-estar veio de Kaliel, ator-
doada com tantas informações, que levou lentamente a mão à cabeça, inspirando
mais fundo que o normal.
Não se pode dizer que se lembravam de algo, porque nunca tinham conhecido
qualquer coisa com aqueles corpos, mas souberam, naquele instante, quem eram,
de onde vinham, onde estavam, o que deveriam fazer e como.
E, então, seu mundo de origem fechou-se definitivamente, e a dimensão
física os acolheu com todas as suas sensações. Milhares de toques gentis lhes
percorreram a pele. Sentiram cada um de seus pelos se arrepiar pela primeira
vez quando tocaram as roupas que usavam. Cada pequeno pedaço de suas faces
quis voar ao ser acariciado pela primeira brisa. Inalaram um mundo de promes-
sas e histórias quando captaram os odores da rua. Foram arrancados dos céus
pelas buzinas dos carros, os latidos dos cachorros e o som de uma folha de jornal
carregada pelo vento.

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Prólogo — Solstício

Haviam sido retirados da imensidão em que viviam. Sentiram seus corações


despedaçarem. Cada uma de suas partes, separadas, foi colocada diante deles e
refletida em seus olhos. Viam a luz como os mortais a veem; e o mundo do qual
agora faziam parte, como algo distante, muito distante.
Estavam sós. Mesmo estando ao lado um do outro, tinham perdido aquele con-
tato íntimo que unia seus espíritos em um corpo maior. Haviam sido jogados nas
trevas. Porém, trevas repletas das mais minúsculas e amplas sensações. Antes, eles
eram parte do universo. Agora, cada um tinha um universo inteiro dentro de si.
Flexionaram os membros, mexeram as mãos, viraram as cabeças e sentiram
os músculos se acomodarem uns sobre os outros. O vento frio, batendo em
seus olhos, os fez chorar, não de prazer, nem de dor, mas simplesmente por
estarem vivos.
Daqshael não conseguia se decidir entre o êxtase e a repulsa. Com os olhos
bem abertos, ele virava a cabeça em todas as direções, sem acreditar muito bem
no que via. Os cheiros o invadiam em ondas doces, quentes, convidativas e repul-
sivas: um tornado de êxtase.
Ao mesmo tempo, sua mente estava na escuridão. Onde estavam os pensa-
mentos de seus amigos? Onde, as emoções de seus colegas? Para que lado ele
deveria se virar, para onde ele precisava correr a fim de se reunir com os espíritos
das árvores e os sonhos das crianças?
Ele, que era fogo, havia se apagado. Observou, com olhos que se recusavam
a fechar, coisas muito estranhas a seu redor: havia uma espécie de massa rosa-
amarelada se mexendo à sua direita. Outra, rosa-esbranquiçada, se movia à sua
esquerda. Levou algum tempo para perceber que aquelas duas coisas tinham
uma coloração energética, uma aura, uma mente que ele podia detectar... Eram
seus amigos! Aquelas coisas estranhas eram Oriniel e Kaliel.
Ele mesmo era uma daquelas coisas. No que é que ele havia se transformado?
Um corpo desajeitado, palitos que saíam de um saco de carne. Uma tosca esfera
amassada que lhe servia de rosto.
Oriniel observava Daqshael e Kaliel com infinita paciência. Já tinha feito
aquela mesma travessia cinco vezes. Kaliel, porém, só havia cruzado os mundos
uma outra vez, e, para Daqshael, tudo era novidade. Oriniel percebeu o espanto
do amigo quando, voltando os olhos para o próprio corpo, ele mesmo não se
reconheceu. Pensou em enviar um pensamento de compreensão, mas achou mel-
hor deixá-lo se acostumar por si mesmo.
Virou-se para Kaliel e aprovou o autocontrole da companheira. Ela teria de
se cuidar se quisesse passar muito tempo naquele mundo. Seus olhos, negros,
pareciam cortar tudo o que viam, dividindo o mundo em dois. Enquanto ela

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Abascanto: a sombra dos caídos

passava as mãos pelo corpo, uma sensualidade natural saía por seus dedos.
Ela não precisaria fazer força para ser atraente, mesmo que seu enorme e reto
nariz lhe desse um ar de águia velha. Os cabelos, acima de tudo, caíam, sedosos,
delineando-lhe o peito; eram inquietos, como se fossem feitos do próprio vento
que os acariciava.
Os dedos de Daqshael não resistiram ao convite da face de Kaliel e passearam
pelo queixo dela como se pisassem em nuvens. Ela abriu um sorriso e tomou
aquela mão entre as suas. Pareciam a Oriniel o perfeito par de amantes: não tin-
ham qualquer intenção, a não ser descobrir um ao outro.
A face de Daqshael, entalhada no feitio de uma estátua grega, era o contra-
ponto da sensualidade óbvia de Kaliel. Sua pele, levemente corada, ressaltava a
palidez da amiga ao tocá-la. A cabeleira amarela e encaracolada queria se en-
roscar na seda de Kaliel e não soltá-la mais. Os olhos verdes penetravam no que
viam sem sequer piscarem.
A mente de Daqshael, ainda correndo selvagem pelos céus, emitiu um forte
pensamento, um grito psíquico que Oriniel e Kaliel ouviram:
Então isto é uma passagem!
Kaliel sorriu abertamente. Oriniel apenas os observou.
Daqshael viu Oriniel e reconheceu naquela expressão a personalidade do
amigo. A mente analítica e resistente vazava pelos olhos dele, percorrendo cada
detalhe à sua volta e capturando todas as silhuetas da noite. Satisfeito, finalmente,
com todo aquele mundo novo, Daqshael virou-se para o lado e conduziu o olhar
dos outros para três objetos caídos no chão.
Lá estavam três lâminas metálicas que nunca haviam sido forjadas. Três espa-
das, criadas ao mesmo tempo que os corpos deles, aguardavam ser tocadas. Eles
não haviam cruzado o véu entre os mundos simplesmente para experimentar as
sensações físicas: eles tinham uma missão, um confronto.
Cada um dos três pegou uma das espadas, e o pensamento de Oriniel soou
claro na mente dos amigos:
Eles já sabem que estamos aqui.
Os três relaxaram a atenção e observaram o fluxo de seus pensamentos. Per-
ceberam uma leve distorção à esquerda. Imaginaram-se observados por outras
duas presenças, imensas como as deles. Sabiam, porém, que essa imaginação não
vinha deles: havia realmente dois seres a esperá-los.
Em suas mentes, aquelas presenças cresceram. Podiam percebê-las clara-
mente apesar da escuridão, porque, para os três, os oponentes eram mais ne-
gros do que as trevas.
Oriniel voltou-se para os amigos e transmitiu-lhes uma mensagem:

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Prólogo — Solstício

Concentrem-se nas pequenas coisas do mundo, criem a seu redor um manto que
seja insignificante para as mentes mortais. Vamos fazer com que nossa presença
aqui seja imperceptível. Vocês sabem fazer isso?
Kaliel se concentrou em uma folha ao vento. Achou que ninguém prestaria
atenção nisso e acomodou aquela imagem à sua própria aura. Daqshael concen-
trou-se na luz de uma vela, que vinha de um apartamento, e revestiu-se da sensa-
ção de ser tão pequeno quanto a chama.
Oriniel pensou em uma pedra caída no chão e mudou sua energia, para que
se assemelhasse a ela. Prestou atenção nas mudanças dos amigos até ter certeza
de que todos estavam bem ocultos.
— Não vamos deixá-los esperando — disse Kaliel. Daqshael virou-se para ela,
levemente intrigado com o som de sua voz.
Oriniel observou Daqshael por um instante e, sem uma palavra mais, os
três partiram, andando pelas ruas da cidade, em direção à batalha que era sua
missão neste mundo.
Seus irmãos haviam se desgarrado, e eles vieram resgatá-los.

Tão logo se puseram a andar, perceberam o movimento das mentes de seus


alvos. A princípio, a cena que eles mantinham na imaginação se turvou e mistur-
ou-se com outros pensamentos.
- Eles estão tentando se esconder de nós — Kaliel afirmou.
Oriniel afastou qualquer outro pensamento da mente e se concentrou nas ima-
gens de seus oponentes. Imaginou-se em um grande vazio, e as únicas outras coisas
que existiam eram seus inimigos. Fixou-os em sua mente e soltou a concentração.
Imediatamente, o foco retornou. A nitidez anterior voltou redobrada, e Orin-
iel pôde ver não apenas os fugitivos, mas também os seus arredores.
Daqshael, atento ao movimento de Oriniel, percebeu o amigo capturando o
rastro mental de seus irmãos e transmitiu para Kaliel a ideia de que ele os reen-
contrara.
Oriniel virou uma esquina. Andava com um propósito claro: sabia em qual
direção seguir.
Tão logo Oriniel reencontrou o rastro, Kaliel e Daqshael sentiram a agitação
de seus irmãos. Sabiam que eles estavam apavorados, com tanta clareza quanto se
estivessem a seu lado. Os desgarrados não queriam voltar. Tinham muito pelo que
responder, e sua antiga Casa, o regresso ao Lar, apenas lhes causava apreensão.
Os três pegaram o rumo de uma avenida e seguiram o fluxo dos carros. Ig-
noravam praticamente tudo, e em troca, eram igualmente desconsiderados pelas
pessoas. A certa altura, chegaram a um enorme cruzamento entre duas avenidas,

11
Abascanto: a sombra dos caídos

marcado pela presença de dois prédios imponentes. À frente, do outro lado da


encruzilhada, um arranha-céu cilíndrico e recoberto de vidro. À entrada, duas
pessoas imóveis os observavam.
O peso daquelas duas mentes, a imponência de suas auras era indiscutível.
Poderiam tê-las identificado em qualquer multidão: quem uma vez conheceu a
Eternidade jamais consegue retornar à mediocridade.
Uma delas tinha a aparência de um senhor já de idade. Talvez com sessenta,
setenta anos. Vestia um sobretudo escuro, sob medida, e por baixo um traje es-
porte fino, de marca. Observava-os com o olhar desprovido de qualquer sen-
timento além da indiferença. Sua aura tinha grandes manchas roxas e escuras
flutuando sobre uma camada amarelada. Bem próximo ao corpo, ela era de uma
grande intensidade esverdeada. Em uma das mãos, o velho empunhava uma
lâmina de comprimento similar ao das armas dos três recém-chegados.
A outra era uma jovem oriental. Os olhos amendoados lhe sublinhavam to-
das as feições, contrastando com as sobrancelhas, finas e negras, em um con-
stante convite sensual. O rosa e o vermelho dominavam sua energia e, perto
dos olhos, dois fachos de luz acinzentada se projetavam. Carregava também
uma espada: uma lâmina reta, com empunhadura discreta, como as usadas em
demonstrações de kung fu.
Assim como Oriniel, Daqshael e Kaliel, a dupla tinha nomes pelos quais se
identificavam. O homem era chamado Neberiah; a mulher, Azra.
Os cinco ficaram se olhando, sem se perder de vista. Nem o enorme cruza-
mento que os separava nem o barulho dos carros os impediam. As pessoas ao
redor não notavam cinco indivíduos segurando armas medievais se encarando
no meio da rua.
Nenhuma comunicação foi transmitida. Nenhuma era necessária. Oriniel,
Kaliel e Daqshael vieram para levá-los de volta. Neberiah e Azra não queriam
voltar. O casal tinha medo, o trio tinha uma certeza. O casal queria continuar a
viver para fazer o que acreditava ser certo. O trio queria que eles retornassem e se
confrontassem com a Verdade do que sabiam ser errado.
Oriniel respeitava aqueles dois, que haviam abdicado de tudo em nome de um
sonho. Kaliel os admirava pelos sacrifícios que fizeram ao longo de suas vidas na
Terra. Daqshael tinha pena do quanto eles já tinham esquecido de seu Lar, da Vida.
Neberiah os desprezava: covardes omissos que não tinham coragem de se sac-
rificar pelo bem maior. Azra os odiava: vinham lhe retirar aquilo que ela mais
apreciava.
Oriniel avançou em direção ao casal, correndo pelo meio da rua em pleno
trânsito. Os motoristas o ignoraram. Contra todas as possibilidades, cruzou a

12
Prólogo — Solstício

distância entre eles em linha reta, sem que qualquer obstáculo o impedisse ou
qualquer acidente ocorresse, sem nem sequer tirar os olhos de Neberiah.
Kaliel e Daqshael o seguiram logo depois, realizando a mesma corrida im-
provável pelo cruzamento. Neberiah, em resposta, ergueu a espada com as
duas mãos e a colocou bem à sua frente, entre ele e Oriniel. Azra ergueu sua
lâmina acima da cabeça com um movimento fluido da mão direita, enquanto
levava a esquerda às costas, preparando um curto punhal que carregava para
manobras de defesa.
A investida de Oriniel terminou com um choque metálico de lâminas: a sua
contra a de Neberiah. Olhos negros e cabelos brancos se confrontaram com uma
aura envelhecida e uma opulência sofisticada. Ele começou com um ataque por
cima, baixando a espada em linha reta sobre o crânio de Neberiah; o oponente
aparou o ataque, jogando a lâmina de Oriniel para o lado. Este, aproveitando o
movimento criado, girou a espada em um corte lateral. Neberiah, com total eco-
nomia de gestos, bloqueou o ataque simplesmente ao mover sua espada alguns
centímetros. Oriniel deu um passo para trás e, girando sua arma rapidamente,
atacou pelo lado oposto, encontrando a mesma resistência.
Azra resolveu aguardar a chegada de Daqshael e Kaliel ao invés de partir em
auxílio de Neberiah. Quando a alcançaram, os dois a atacaram pela esquerda e
pela direita, na tentativa de abrir uma brecha em sua defesa. Azra defendeu os
dois ataques simultaneamente e deu dois passos para trás. Seus cabelos dança-
vam no ar conforme ela se virava, formavam imagens, imitando as de sua espada.
Colocou ambos os atacantes diante de si e interrompeu a investida lateral.
Nenhuma das pessoas que passavam pela rua percebia a luta acontecendo a
seu redor. Golpes de espada eram trocados, os combatentes pulavam uns sobre
os outros, corriam e se digladiavam, e, durante todo esse tempo, as pessoas os
evitavam sem notar a presença deles. Durante toda a batalha, nem a mais leve
estocada chegou a atingir os pedestres.
Ao mesmo tempo em que Neberiah ganhava terreno sobre Oriniel, forçan-
do-o a recuar cada vez mais, Daqshael e Kaliel estavam bem perto de desferir
um golpe fatal em Azra. Estavam equilibrados. O trio recém-chegado não tivera
tempo suficiente para se acostumar com seus novos corpos, nem refinar suas ha-
bilidades de luta, mas a superioridade numérica lhes garantia a vantagem. Orin-
iel lutava para ganhar tempo, para que seus dois amigos pudessem dar conta de
Azra. Se isso acontecesse, sua vitória era certa.
Neberiah investiu contra Oriniel com uma sequência de ataques repetidos,
seguida de variações súbitas, para abrir uma brecha nas defesas do oponente.
Sua aura agigantou-se e engoliu, com cores pálidas, a coruscante luz de Orin-

13
Abascanto: a sombra dos caídos

iel, que teve de retroceder três passos e acabou no meio da rua. Neberiah não
o perdia de vista e, tanto ao atacar quanto ao se defender, achava um jeito de
obrigar Oriniel a recuar.
Kaliel e Daqshael ainda tentavam vencer Azra com um ataque duplo, mas
ela se esquivava de uma e aparava os golpes do outro. Kaliel percebeu que Azra
estava baseando sua defesa em uma movimentação lateral. Quando Daqshael in-
vestiu com três ataques encadeados, Kaliel esperou até Azra completar os aparos
para realizar seu assalto. Azra, sem tempo para se recuperar, recuou dois passos
para evitar um golpe de Kaliel. Daqshael percebeu imediatamente a estratégia da
amiga e, tão logo ela acabou sua investida, ele começou uma nova.
Atacaram-na repetidamente cinco vezes, até que a oponente se viu de costas
para um muro. Nesse momento, Daqshael investiu com uma estocada lateral,
Kaliel a cortou pelo outro lado. Sem ter por onde fugir, Azra conseguiu aparar o
golpe de Daqshael e mover-se um metro para o lado.
Esse metro não foi suficiente. A espada de Kaliel percorreu seu abdome, ras-
gando-lhe a roupa negra e abrindo um caminho em seu fígado. Azra não pôde
evitar um breve grito de dor.
Oriniel investiu contra Neberiah com uma sequencia simples de ataques.
Pretendia fazer com que ele se concentrasse na defesa e, ao dar um passo para
trás, se chocasse com um automóvel. Neberiah manteve sua posição e defen-
deu os ataques de Oriniel, forçando-o a travar espadas com ele. Ficaram cara a
cara: havia menos de cinco centímetros entre seus narizes. Dois pares de olhos
negros se confrontaram em uma luta de intenções, os cabos de suas armas
brigavam para encontrar o centro de gravidade do adversário e empurrá-lo
rua afora.
Neberiah, havia séculos adaptado à vida terrena, concentrou-se nos músculos
do corpo, comandou seus hormônios e enzimas e, em um esforço sobre-humano,
lançou Oriniel mais de quatro metros para trás.
Oriniel retorceu seu corpo no ar como um gato. Esquivou-se, em pleno voo,
de um carro que passava a seu lado e caiu, de pé, a poucos centímetros de um
ônibus em movimento.
Tão logo caiu, porém, viu a ponta de uma lâmina surgir de seu peito. Neberiah
havia corrido atrás dele após tê-lo arremessado rua afora e, assim que Oriniel
pisou no chão, trespassara-o com sua espada.
Oriniel soltou um breve gemido. Sua mente, subitamente arrancada de seu
corpo físico, emitiu um grito etéreo que todos os combatentes sentiram. Daqshael
e Kaliel se viraram na direção dele a tempo de ver o amigo se desfazer, com roupa
e tudo, na mesma luz que os criara havia instantes.

14
Prólogo — Solstício

Sua luz tinha se apagado. Apenas a aura imponente de Neberiah permanecia.


Azra, porém, assustada com os ataques da dupla de oponentes, aproveitou a
distração dos dois para sair correndo pela rua.
Daqshael e Kaliel trocaram um breve olhar. Kaliel disse apenas:
- Vá.
De imediato, ele saiu no encalço de Azra, deixando Kaliel para confrontar
Neberiah.
Kaliel voltou-se para seu novo oponente. Parados no meio da rua, fitavam-se
intensamente. Neberiah disse:
— Não precisa ser assim.
— Não precisa mesmo, Neberiah. Mesmo para você, mesmo agora, ainda há
uma chance.
Neberiah riu.
— Você não entende. Nós estamos lutando pela mesma coisa. Deixe que eu
lhe mostre o que está em jogo: até mesmo você vai concordar comigo.
Por duas respirações, Kaliel considerou a oferta. Não pelas palavras, mas
porque toda a aura dele exalava sinceridade.
— Você conhece as regras, Neberiah. Elas existem por um motivo. Não im-
porta quantas pessoas você salve. Você está acabando justamente com o que quer
salvar.
Neberiah gritou, quase desesperado:
— Mas eles vão se destruir!
Kaliel respondeu, plácida:
— É o direito deles.
Neberiah girou a lâmina em suas mãos. Adotou uma postura ofensiva ao co-
locar a espada por sobre a cabeça e perguntou:
— Por qual nome você atende aqui?
Kaliel inverteu o sentido de sua espada, passando a segurá-la com a lâmina
para baixo em uma postura altamente defensiva. Respondeu:
— Kaliel.
— Então, Kaliel, vamos ver se a força de sua convicção é maior que a de seu
companheiro.
Correram em direção um do outro, se encontraram em um segundo estrondo
metálico.

Daqshael correu por uma série de ruas secundárias, perseguindo Azra. Ferida
e cansada, ela fugia no limite de sua capacidade. Procurava as ruas mais ermas
para despistá-lo, mas as percepções de Daqshael a encontravam a cada esquina.

15
Abascanto: a sombra dos caídos

Ela resolveu mudar a estratégia: virou uma esquina, percebeu uma longa fila
de pessoas em frente a uma parede e um som abafado vindo do lado de dentro de
uma porta. Estava diante de uma balada.
Vamos ver como ele se sai em um outro ambiente.
Entrou pela porta sem que ninguém a percebesse.
Daqshael virou a esquina a tempo de ver Azra entrar na casa noturna. Correu
em seu encalço, passou pela porta livremente e mergulhou no salão escuro.
Foi invadido por uma forte tontura. Apoiou-se na parede para não cair ator-
doado no chão e, confuso, tentou compreender o que estava acontecendo.
Suas percepções mentais, abertas como estavam às sensações de Azra, foram
inundadas por uma tormenta de pensamentos. A quantidade de pessoas abar-
rotadas naquele lugar, as luzes ofuscantes, o cheiro de suor, fumaça, comida, a
própria diversidade das personalidades: tudo isso o atingiu com mais eficácia que
qualquer golpe de Azra.
Teve de se compor, retrair a mente, fechar os olhos de sua imaginação para
poder se aclimatar àquele ambiente.
Meu Deus, que lugar é este?
Até mesmo a visão física era difícil, no meio daquela fumaça e penumbra.
A audição era quase impraticável. A não mais de dez metros dele, um grupo de
jovens gritava aos microfones e sacudia seus instrumentos. Não havia ninguém
ali capaz de existir sem soltar algum uivo desconexo.
Completamente confuso, Daqshael cambaleou até o bar. Com o esforço, seu
escudo mental havia caído, e as pessoas do local o estavam vendo e percebendo
como se ele fosse mais uma delas.
Olhou ao redor. Ela tinha de estar ali. Mesmo incapacitado, ele não podia
deixar de perceber o peso imenso da mente de Azra. Tentou estender suas per-
cepções algumas vezes e se concentrar o suficiente para encontrá-la. O fluxo de
emoções era sempre tão intenso que ele não tinha opção, exceto se retrair.
Foi quando a onda da intenção de Azra o atingiu.
Azra, muito bem adaptada à vida no mundo físico, não tinha o menor prob-
lema com aquele ambiente. Havia subido uma escada e parado em um mezanino.
Observava Daqshael, debruçado sobre o bar, olhando para todos os lados à pro-
cura dela... praticamente indefeso.
Abriu um leve sorriso e expeliu de sua mente, em direção a todas as pessoas
à sua volta, uma única ordem, um único desejo: o próprio Desejo. Ampliou os
hormônios que já pairavam em todo aquele lugar.
Daqshael foi atingido pelo ataque psíquico e caiu ao chão, levando as mãos às têm-
poras. Não só estava completamente atordoado, mas Azra tocara justamente seu pon-

16
Prólogo — Solstício

to fraco. A força opressiva daquele desejo foi tão grande que, mesmo focando toda a
sua atenção, mesmo tentando se desligar dos estímulos externos, não pôde resistir.
Dezenas de pessoas se jogaram sobre ele. Todas as outras abandonaram com-
pletamente a razão ao ceder ao comando de Azra. Daqshael tentou se desvencil-
har da massa humana que o agarrava, mas também havia sido vencido por aquela
influência mental. Não teve força suficiente para dar um passo sequer antes de
perder completamente a razão.
Com um último olhar, viu Azra sorrindo, concentrada nele e nas pessoas
que o sufocavam. Ergueu uma mão em direção a ela, tentou um contra-ataque
psíquico e foi engolido pelas trevas.

Em poucos instantes de luta, Kaliel entendeu claramente que não tinha sido
por sorte que Neberiah vencera Oriniel. Ele atacava com economia e defendia
com a máxima cautela. Estava familiarizado com todos os ataques e contra-
ataques da espada. Era um mestre naquela luta. Kaliel, por sua vez, tinha a seu
favor apenas o vigor físico que acompanhava uma materialização recente. A perí-
cia de Neberiah acabaria se impondo à inexperiência dela.
Kaliel desferiu uma série de seis ataques encadeados, forçando Neberiah a
adotar uma postura defensiva. Tão logo terminou o último, recuou e correu, co-
locando alguns metros de distância entre eles. Neberiah não a seguiu, esperando
alguma artimanha.
Quando cinco metros os separavam, Kaliel se virou subitamente e, concen-
trando sua atenção na espada caída de Oriniel, fez com que ela voasse em sua
direção e pousasse sobre sua mão esquerda.
Neberiah lhe estendeu um leve sorriso:
— Quantidade não é qualidade, Kaliel.
Ergueu a espada em uma posição frontal defensiva. Kaliel levantou as duas
armas, uma em cada mão, colocando uma bem à sua frente e a outra acima da
cabeça. Ela sabia que uma lâmina a mais conferia uma vantagem estratégica na
defesa e nos contra-ataques, mas às custas da força e do controle que ambas as
mãos davam a uma única espada. Ela estaria apenas adiando o inevitável se não
mudasse radicalmente de estratégia.
Disparou pelo meio da rua e, dessa vez, Neberiah veio em seu encalço. Entrou
no corredor que se formava entre os carros. Corria sem se concentrar na veloci-
dade, confiando que a confusão do trânsito forçaria Neberiah a adotar um passo
mais lento. Ocupava sua atenção com o ambiente ao redor: a umidade do ar, as
partículas de poluição, as nuvens que nublavam a noite. Concentrava toda a sua
energia em um único ponto, bem no meio da testa.

17
Abascanto: a sombra dos caídos

Neberiah chegava cada vez mais perto. A certa altura, todos os veículos da rua
pararam, atendendo a um semáforo logo adiante. Aproveitando a oportunidade,
Neberiah pulou sobre o capô de um carro e passou a seguir Kaliel de salto em
salto. A distância entre eles diminuiu, a lâmina de Neberiah pôde tocar a ponta
dos cabelos de Kaliel.
Subitamente, Kaliel deu um salto de mais de três metros para o lado, o que a
colocou no topo de um ônibus. Neberiah, apanhado completamente de surpresa,
deu ainda dois saltos antes de se deter.
Kaliel, após se ver no teto do ônibus, saltou novamente para o lado, e outra vez
ainda, e parou em frente à linha de carros que esperava o semáforo abrir. Colocou
sete metros de distância entre ela e Neberiah.
Virou-se na direção do oponente. Neberiah já aparecia, saltando para o teto
do ônibus. Liberou de uma vez só toda a energia concentrada.
Deu uma única ordem ao ar à sua frente: “Quebre!”.
Atendendo a seu comando, as partículas de pó e poluição se separaram e for-
maram um caminho cilíndrico para cima.
Ela tinha de ser rápida e precisa. A menor falha poderia lhe custar a vida física.
A energia liberada rompeu a resistência natural da atmosfera, venceu a imensa
atração dos para-raios e estendeu, do chão aos céus, um cone de energia psíquica.
Neberiah saltou do ônibus e pousou no teto de um carro bem à frente de Ka-
liel. Em seu último salto, ergueu a espada. Cairia sobre a adversária usando toda
a força da queda para aumentar o impacto.
Quando ele estava em pleno ar, Kaliel transmitiu, não a ele, mas ao ar que o
cercava, uma última dose de energia, um último impulso de força concentrada,
voltado ao céu...

Todas as nuvens são carregadas com a intenção de voltar para a Terra. Sua
leveza, porém, as impede. Às vezes, quando muitas delas se encontram, sua in-
tenção se torna tão forte que elas rompem o ar e descarregam seu desejo no solo.
É assim que se formam os raios.
Ao emitir seu impulso, Kaliel rompeu a resistência do ar no local por onde
Neberiah passava. Com um último comando, ordenou às nuvens do céu que con-
centrassem seu desejo no caminho que ela havia criado.
Um imenso raio elétrico atingiu Neberiah em pleno ar.
O impacto do estrondo foi tão grande que Kaliel foi jogada dois metros para
trás, completamente surda.
A proteção mental que ambos usavam, e que impedia as pessoas de os perceber,
não era forte o suficiente para que um trovão no meio da rua passasse despercebido.

18
Prólogo — Solstício

Imediatamente após o raio, gritos de pavor e susto cercaram Kaliel e Neberiah. As


pessoas saíram de seus carros, de olhos arregalados, tentando acreditar no que viram.
Neberiah perdeu a concentração e o equilíbrio e bateu estrondosamente no
chão. Rolou ainda por vários metros com a roupa em chamas. Cada músculo de
seu corpo gritava de dor. Não era capaz de realizar nenhum movimento coerente.
Nem sequer sabia o que o havia atingido.
Tentou se arrastar para a calçada, mas, quando estava a meio caminho, Kaliel
caiu sobre ele, cravando ambas as espadas em seu tronco.
— O que você me diz agora sobre a força de minhas convicções, Neberiah?
A resposta foi um urro longo, rouco, grave e solitário. As mãos de Kaliel trem-
eram quando o corpo de Neberiah se desenrolou em uma sequencia de liames
luminosos. Adaptado havia séculos à vida física, ele se desfez em uma grande luz
e se decompôs em pó.
Completamente exausta, Kaliel recostou-se em um poste enquanto recom-
punha seu escudo mental. As pernas mal a sustentavam. Sua mente estava es-
gotada. Havia apostado tudo naquele raio e só o que lhe restava era o prazer de
poder continuar respirando.
Alheia à confusão das pessoas, alheia ao congestionamento infernal que se
formava e à orquestra de buzinas, só o que ela queria era poder voltar para Casa.
Esse retorno, porém, teria de esperar. Kaliel sentiu uma forte pressão sobre
seus pensamentos: uma grande carga emocional, uma onda de intenções dire-
cionada a ela.
Era Daqshael, e precisava de ajuda.
Kaliel se ergueu, ainda empunhando as duas espadas, se permitiu um instante
de introspecção, pensando se algum dia encontraria sossego neste mundo carnal.
Inspirou fundo e partiu.

Enquanto caminhava, recebeu de Daqshael as mais diversas e estranhas sen-


sações. De imediato, percebeu medo. Logo depois, confusão. Em seguida, as
emoções começaram a flutuar, enlouquecidas. Ora prazer, ora repulsa. Ora pedia
ajuda, ora procurava se esconder dela. Uma coisa, porém, era clara: Daqshael
estava extremamente enfraquecido. Comparável até mesmo aos mortais. Só isso
já era suficiente para que Kaliel fosse em seu auxílio.
Quando virou a esquina e viu a parede escura da casa noturna, Kaliel sentiu
de imediato o peso de outra mente que procurava se ocultar.
Azra ainda estava ali.
O barulho que antes havia caracterizado aquela casa tinha cessado por com-
pleto. A fila havia se dispersado e, em seu lugar, vários policiais organizavam a

19
Abascanto: a sombra dos caídos

saída das pessoas. Dezenas de jovens eram escoltados para fora, com feições — e
as emoções — as mais controversas. Havia um ar de constrangimento geral. As
mulheres eram as mais assustadas.
Parecia a Kaliel que todos ali haviam sido violentados. Parou à entrada, pro-
curando por Daqshael ou Azra com seus pensamentos.
Achou seu amigo quase imediatamente. Ele ainda estava lá dentro, inconsci-
ente, junto com um bom grupo de pessoas desacordadas.
Quanto a Azra, Kaliel tinha apenas uma sensação genérica sobre a presença
dela. Com as duas espadas em punho, concentrou-se intensamente naquela mul-
her. Procurou identificar ao menos em que direção ela estava.
Kaliel a encontrou. Não com sua mente, mas por causa da porta de vidro da
casa noturna. Refletida na porta estava a imagem de Azra se esgueirando por trás
dela e sentindo o lado direito do abdome. Azra estava de costas.
Não poderia ser mais fácil!
Saltou em direção à adversária. Azra, absorta em sua escapada furtiva, só per-
cebeu o impacto em suas costas e a lâmina que lhe saiu pelo peito.
Caiu, incrédula, no chão. Observou a protuberância metálica que impediria
seu corpo de funcionar em alguns instantes. Com o máximo de concentração, or-
denou que seu corpo se mantivesse ativo. Sustentou seu cérebro unicamente com
a força de seu espírito. Tentou desajeitadamente retirar a lâmina de seu peito.
Kaliel se surpreendeu com o autocontrole que Azra exercia sobre si mesma.
Mas nem mesmo ela poderia ignorar um coração perfurado durante muito tem-
po. Estava quase desmaiada. Lutava para se manter naquele plano de existência.
Kaliel retirou sua espada do peito de Azra e a cravou na cabeça da oponente.
No mesmo instante, Azra se desfez em uma súbita dança de luzes enegrecidas e
pó mais leve que o ar.
Que noite!
Kaliel suspirou e entrou na casa noturna. Alguns médicos acudiam as pessoas,
tentando ainda entender o que havia ocorrido. Encontrou Daqshael deitado em
uma maca. Pegou o amigo pelo ombro, estendendo sua proteção a ele, e o tirou
daquele lugar.
Não voltaria para Casa durante algum tempo ainda, mas certamente merecia
um bom descanso...

20
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MOLORES
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anos
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DOLENTEM
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TATE CONESTRUM

Vinte e três anos se passaram.


Era o dia vinte e nove de março. O sol passeava distraído sobre a cidade, dis-
tribuindo seus raios igualmente a todos: os fracos e fortes, os honestos e crimi-
nosos, altruístas e egoístas. Poucos lhe retribuíam sequer um olhar; viviam suas
vidas sem se dar conta da imparcialidade da natureza. O astro já havia passado
seu apogeu e estava a meio caminho em sua descida inevitável rumo à escuridão.
Érico caminhava devagar, subindo uma rua em direção à estação do metrô.
Como sempre, estava exausto, mas tranquilo. Assoviava baixinho para si mes-
mo uma música instrumental que havia aprendido com um videogame. A mo-
chila alongada o incomodava um pouco: parecia estar levando nas costas toda
uma barraca de acampamento. A cada dez metros, mais ou menos, ajeitava os
cabelos para que não se enroscassem nas várias alças de metal, como costuma-
vam se enroscar em qualquer coisa. Seus tênis, apesar de bem usados, ainda
pareciam botas de astronauta: brancos e cheios de linhas aerodinâmicas. Com
a mão direita dentro do bolso, contava o dinheiro que tinha sem reparar no
que fazia. Queria saber se, antes de pegar o metrô, ainda poderia passar em
uma lanchonete.
Distraído, pensava no que ia fazer de sua vida. Alguns meses antes, havia ter-
minado a faculdade de jornalismo, e sua formatura tinha marcado a passagem
cruel da alegre vida de estudante à triste categoria de desempregado. Depois de
dedicar mais da metade de sua vida a treinar kung-fu, tinha técnica suficiente
para abrir uma academia própria, mas ninguém aceitaria aulas de um instrutor
tão jovem. Mesmo assim, quem sabe ele não conseguisse lugar como professor
auxiliar? Seu mestre, Kong, certamente o usava para dar aulas aos iniciantes bem
mais de três vezes por semana...
Chegando em casa, vou mandar mais um e-mail pro pai pedindo dinheiro. Não,
e-mail, não; um telefonema é melhor. Papai sempre foi chegado a um contato pes-
soal mais íntimo. Ele detesta essas maravilhas tecnológicas... O telefone da casa dele
ainda usa um disco de plástico para chamar os números.

21
Abascanto: a sombra dos caídos

Ou, melhor ainda, vou esperar que ele me ligue hoje. Afinal, é meu aniversário,
ele sempre me liga ou aparece no apartamento para um programa de última hora.
Quem sabe, se eu voltasse para Americana... Mas o prospecto de morar nova-
mente com seu pai não lhe agradava: já estava acostumado demais a ter as coisas
do seu próprio jeito, sair à hora que quisesse e chegar à hora que fosse. Ainda
tentaria achar emprego em um dos jornais da capital antes de voltar para sua
cidade de infância.
Parou por alguns instantes para ajeitar a mochila. Naquele saco de couro ver-
tical, onde ele parecia carregar uma meia dúzia de guarda-chuvas, as lâminas
de aço inox de suas diversas espadas e armas mais exóticas incomodavam suas
costas. Quando voltou a andar, havia se decidido. Não vou parar em nenhuma
lanchonete. Chega de comida podre esta semana: preciso de alguma substância.
Aquele restaurante de massas que ficava em frente a seu prédio já o estava convi-
dando para um canelone à bolonhesa desde o meio-dia.
Ia atravessando a cidade enquanto sua mente fazia o possível para apagar as
imagens das crianças nos faróis, dos tipinhos mal-encarados e de toda a miséria
evidente e a violência implícita das ruas. Érico não gostava de andar pela cidade:
às vezes, tinha a forte sensação de que podia sentir a desgraça da vida das pessoas
só ao olhar nos olhos delas. Nunca acreditou que ele, sozinho, pudesse fazer algo
a respeito, e o não-fazer lhe corroía a alma mais do que o sofrimento alheio. Mes-
mo durante seu trabalho voluntário em creches e orfanatos, ou quando saía nas
noites de Natal para distribuir sopa aos moradores de rua, o tempo todo ele tinha
uma ideia que não lhe saía da cabeça: você é só um, e o mundo é grande demais.
Saber que ele fazia o possível e que, mesmo assim, isso não era suficiente, não
lhe servia de consolo algum.
Então ele tentava ignorar o mundo quando estava cuidando da própria vida.
Fechar-se para a dor alheia.
Se sua vida fosse ligeiramente diferente, poderia ser ele a pedir esmolas na
rua. Quase não tinha família, exceto por seu pai e sua tia. Nunca conheceu a mãe,
que morrera ao dá-lo à luz, e, desse lado da família, nada sabia. Se perdesse o pai
e a tia, não teria nem sequer onde dormir. E, ainda assim, não era capaz de ajudar
realmente nem mesmo uma daquelas pessoas.
Amigos, tinha poucos, e os que tinha não duravam. Nos últimos anos, espe-
cialmente na faculdade, havia conseguido se controlar a ponto de estabelecer
relações mais duradouras. Antes disso, sua vida tinha sido uma sucessão de
relações cortadas. A primeira namorada, perdeu logo no primeiro beijo: quando
deram por si, estavam ambos flutuando a um metro do solo. O maior amigo de
infância, perdera-o depois de ter lhe dito que sonhara com a separação dos pais

22
Vinte e três anos

dele, o que de fato ocorreu duas semanas depois. Certa vez, uma garota mostrou
interesse por ele no ensino médio. Ele explicou que não queria namorá-la porque
ela iria morrer em breve... Ninguém mais falou com ele depois que ela se foi.
Se não fosse o apoio do pai e da tia, ele tinha certeza de que já teria enlouque-
cido. Assim, Érico construiu um sistema muito eficaz para lidar com sua forte in-
tuição: ele a ignorava. E, desde que passou a fazer isso, conseguia conviver muito
bem com as outras pessoas.
Sem que percebesse, estava fazendo todo um balanço de sua vida até aquele
momento.
Não pôde deixar, porém, de perceber um outro movimento na rua, à sua direita.
Como é comum diante de uma situação completamente inesperada, a
princípio ele não registrou o fato com toda a sua atenção. Pareceu-lhe, de su-
petão, que se tratava de uma alucinação, uma cena irreal que ele sonhava acor-
dado e que logo iria se dissipar.
Havia duas pessoas correndo avenida afora, carregando espadas. Estavam se
digladiando e lutando acirradamente no meio do movimento dos carros.
Érico parou por alguns instantes, intrigado com o que via, e registrou uma
série de pequenos detalhes.
Um dos combatentes portava duas espadas retilíneas, com lâminas de mais ou
menos um metro de comprimento, armas que ele conhecia bem: eram chamadas
“espadas tai chi”, porque seu uso era ensinado como uma técnica avançada de
uma arte marcial denominada tai chi chuan. É uma arte muito usada como forma
de relaxamento e concentração, porque se baseia na repetição de movimentos
bem lentos. Apenas alunos graduados a empregavam de maneira efetiva como
uma arte de defesa pessoal, e o tai chi, em si, era muito mais apropriado à defesa
do que ao ataque.
Mesmo assim, aquele indivíduo atacava com as espadas de uma maneira ex-
tremamente fluida. Érico notou uma série de movimentos das formas do tai chi
que ele mesmo havia praticado várias vezes, e, pela naturalidade com que aquele
homem se movia, sabia que estava olhando para um mestre em ação. Sem uma
dedicação intensa do aluno, nem mesmo décadas de treino poderiam resultar
naquele grau de habilidade.
O homem, porém, estava vestido como um magnata da indústria. Um alinha-
do terno de seda escura e sapatos de couro combinando. Tinha cabelos castanhos
e ondulados, e olhos tão claros que pareciam duas joias incrustadas em sua face.
Foi então que Érico teve a ideia. É uma demonstração! Vão abrir alguma aca-
demia aqui perto e os instrutores devem estar demonstrando as técnicas para as
pessoas. Mestre Kong não vai gostar nada de saber disso...

23
Abascanto: a sombra dos caídos

O oponente daquele homem era igualmente improvável. Vestia esporte fino,


em tons beges e brancos, e segurava com ambas as mãos uma lâmina pesada
e imponente, lembrando as espadas dos cruzados medievais. Seus movimen-
tos eram muito mais duros que os do espadachim de olhos claros, mas também
fortes. Cada golpe daquela espada exigia que seu oponente desse um passo para
trás, porque aparar uma arma com aquele peso usando uma espada tai chi era
impossível: ela se quebraria na hora.
Quando as lâminas se cruzaram e um ruído metálico rompeu o burburinho
dos carros, Érico percebeu claramente:
Meu Deus! Eles estão lutando com armas de verdade!
Arregalou os olhos, sem se dar conta, e agora estava completamente atento
àquela luta. Para ele, era claro quem iria ganhar o confronto: uma habilidade
daquelas no tai chi não seria vencida apenas pela força bruta, por mais habilidoso
que fosse o outro lutador. Mas as outras pessoas não sabiam disso. Para elas, a
demonstração deveria estar totalmente equilibrada.
Foi então que notou: ele era a única pessoa atenta àquela luta. Todas as outras
passavam pela rua sem dedicar um olhar, breve que fosse, aos dois combatentes.
Pior do que isso: os carros dançavam entre eles sem se desviar de seu caminho,
sem buzinar, sem nem ao menos diminuir a velocidade, e aqueles dois estavam se
digladiando ferozmente no meio da avenida!
Esse foi o primeiro sinal de que havia algo errado.
Isso não é uma demonstração normal... E agora seus olhos procuravam mais
alguém, uma pessoa que fosse, e que também estivesse prestando atenção naquilo.
Ninguém... só ele. Só ele via aquela luta.
Será que estou alucinando? Mas não... Aquilo era real demais para ser uma
alucinação... Estava acontecendo, sim. Diante de seus olhos. Aliás, parecia ser
apenas diante deles e de mais ninguém.
Com um movimento rápido e fluido, o lutador de olhos claros se agachou
para se esquivar de um golpe alto, entrou por baixo das defesas do oponente e
ficou cara a cara com ele. Dez centímetros separavam as faces de um e outro, e
as espadas do primeiro atravessaram todo o tronco do lutador de traje esporte.
Esse foi o segundo sinal de que havia algo errado.
A primeira reação de Érico foi de descrença total. Não... não pode ser! É um
truque qualquer. Ele não cortou o cara ao meio de verdade.
Mas o oponente atingido soltou a pesada espada e caiu no chão, enfraquecido.
O de olhos claros observou-o, impassível, fixando seu olhar no moribundo.
E então, em pouquíssimos instantes, o lutador vencido sumiu. Desapareceu
completamente. Seu corpo se iluminou de dentro para fora e pareceu se desfazer

24
Vinte e três anos

no ar, como se fosse um tecido que se desfiasse para cima, uma roupa de luz con-
centrada que se desenrolasse de si mesma. Depois de emitir um brilho contínuo,
foi reduzido a nada.
Agora não eram só os olhos de Érico que estavam arregalados: não havia
força humana capaz de fechar também sua boca. Ele tinha de sair correndo dali
naquele instante! Mas não conseguia. Estava preso por uma força muito maior: a
confrontação com o impossível.
E as pessoas continuavam passando a seu redor, como se nada estivesse
acontecendo.
O vencedor se aproximou lentamente do chão onde estavam suas espadas e as
recuperou. Érico agora olhava selvagemente para todos os lados. Não é possível
que ninguém mais esteja vendo isso! Mas que loucura!
E, mesmo assim, o vencedor acomodou as espadas em duas bainhas que
carregava nas costas, dentro de seu terno, e relaxou. Soltou um longo suspiro
levando a mão à testa. Érico o via claramente: dois grandes olhos azuis, quase
brancos, entalhados em uma face de mármore, marcada pela idade, mas igual-
mente dura. Suas roupas eram justas, não porque gostasse delas assim, mas
provavelmente porque, ao comprá-las, seus músculos não deveriam ser tão
proeminentes.
Érico viu aqueles olhos com grande detalhamento, porque, naquele instante,
o homem também olhou em sua direção.
Um mestre do tai chi... Matou uma pessoa na minha frente! O corpo desapare-
ceu! E ninguém mais viu isso...
Ninguém mais viu... Mas ele está olhando diretamente para mim.
Esse foi o terceiro sinal de que havia algo errado. E, com esse sinal, veio um
alarme muito forte de dentro do seu senso de autopreservação.
Ninguém mais viu, exceto eu. E ele está olhando para mim. Ele sabe que eu o
estou vendo quando ninguém mais deveria estar. Eu vi demais.
É, Érico... Você deveria ter fugido quando teve a chance...
Um ônibus cruzou a linha de visão dos dois. Quando o contato visual foi
rompido, e Érico voltou a perceber que havia um mundo a seu redor, não pensou
meia palavra antes de, apavorado, sair correndo rua afora.
Foi uma atitude lúcida, como poucas na vida. Correu sem o menor conflito.
Nenhuma parte de sua mente achava que ele deveria ficar: ele tinha, sim, de colo-
car o máximo de distância entre ele e aquele... o que quer que fosse o tal homem.
Logo à sua frente, viu a entrada e as escadas rolantes que levavam ao metrô.
Sem nem ao menos pensar no motivo, entrou pelo portão e desceu as escadas
com saltos largos, três degraus por vez.

25
Abascanto: a sombra dos caídos

Àquela altura, havia se esquecido de que estava com fome, cansado, e que
tinha dois metros de mochila nas costas. Quando terminou de descer as escadas
e quase tropeçou com o impacto do equipamento nas costas, seu corpo o relem-
brou de tudo isso muito bem.
Cada músculo de suas pernas estava exausto. Tentou regular a respiração, mas
ela vinha ofegante. Dava passos mais duros do que seria normal, sentia a força
sair pelos braços em direção ao chão...
Apesar do movimento do metrô ser pequeno àquela hora, todo mundo se
virou para ver o garoto correndo, afoito.Eles podem me ver correndo, mas não de
quem estou correndo.
Quando entrou em um amplo corredor que levava à bilheteria do metrô, ar-
riscou um olhar de relance para trás.
Lá estava o lutador dos olhos claros, correndo atrás dele.
Meu Deus, ele está vindo atrás de mim!
Quase perdeu o fôlego com esse pensamento. Concentrou-se na fuga. Pre-
cisava ficar acordado, precisava fugir! De onde ele retirava tanta energia para
aquela escapada? Nunca saberia dizer.
Com a maior destreza de sua vida, retirou do bolso um bilhete de metrô e
passou rapidamente pela catraca. Suas armas bateram umas nas outras, com um
grande estrondo metálico, quando ele espremeu a mochila para passar. Perdeu,
com isso, uns dois segundos e, quando se pôs a correr em direção às escadas para
os níveis inferiores, viu que seu perseguidor havia pulado por cima das catracas
com um único salto.
Começou a descer mais uma escada rolante. Com o canto do olho, viu que
seu perseguidor, ao invés de segui-lo pela escada, saltou diretamente para o
andar inferior.
Esta é minha chance!
Virou-se rapidamente, e subiu pela escada rolante que estava descendo. O
homem, ao cair no chão, correu em direção ao fim da escada para esperar a
chegada de Érico, que não estava mais lá. O estranho perdeu ainda alguns in-
stantes olhando para os lados até entender o que tinha acontecido. Érico já estava
novamente no andar superior, distante dali. Enquanto corria, viu ao longe as
placas que indicavam outra linha do metrô e partiu naquela direção.
Érico não sabia por quanto tempo conseguiria manter aquela fuga. Precisava
correr, mas só queria descansar, implorava silenciosamente aos céus por uma pausa.
Quando chegou a mais um grupo de escadas rolantes, voltou o rosto rapi-
damente e viu, no final do amplo corredor, seu perseguidor terminar de subir
as escadas.

26
Vinte e três anos

Érico ouviu o apito sonoro anunciando o fechamento das portas do trem.


Saltou para o lado da escada rolante e a desceu toda escorregando pela lateral de
metal do corrimão emborrachado. Usou sua mochila como anteparo e desceu em
cima dela. Amassou bem umas três lâminas de inox. Quando chegou ao chão, viu
um trem prestes a partir e correu desesperadamente em sua direção.
Viu a porta começar a se fechar na sua frente. Tudo parecia acontecer lenta-
mente.
Tem um assassino atrás de mim! Se eu não pego este trem, eu sou a próxima
vítima!
No último instante, com o final do fôlego, Érico se jogou pela porta do trem,
caiu sonoramente no chão, esmagado pela mochila.
O estrondo fez com que todos se virassem na direção dele. Vários comentários
foram sussurrados a seu redor. Ergueu-se, dolorido. Uma de suas espadas havia
rompido a sacola e arranhado-lhe as costas. Ele torceu o pé e todo o seu lado
direito latejava.
Viu, pelo vidro da porta, seu perseguidor descer as escadas rolantes, varrer o
saguão com os olhos e pousá-los sobre ele no momento em que o trem começou
a andar. Aquele homem ainda arriscou outra perseguição: saiu correndo na di-
reção de Érico como se quisesse alcançar o trem, mas a cada passo ficava mais
distante de sua presa e, em poucos segundos, abandonou a corrida.
Estava salvo... por enquanto.
Sob os olhares curiosos dos outros passageiros, Érico deslizou para um dos
bancos do metrô e se sentou. Cada respiração lhe doía. As mãos tremiam ao
segurar a mochila.
Mas que diabos está acontecendo?
Era só o que conseguia pensar...

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Sariel cruzava as ruas da cidade absorto em seus próprios pensamentos


naquela tarde. A vizinhança do prédio de seu sogro era sempre movimentada,
o que, às vezes, o obrigava a estacionar o carro longe da entrada. Poderia facil-
mente dispor de um motorista, se quisesse, mas dirigir era um de seus prazeres
pessoais. Ademais, havia coisas que ele discutia em seu carro que era melhor
ninguém escutar, por mais confiável que fosse.
A essas alturas, sua esposa Aline já deveria ter chegado com Belial, sua irmã.
Ele certamente havia perdido o almoço, mas ainda poderia passar algumas horas
com a esposa antes de sair novamente. O dia estava muito mais agitado do que
ele havia planejado, e Sariel sabia que ainda haveria pelo menos uma outra cor-
reria antes do final.
Ajeitava o cabelo com as mãos conforme se aproximava do portão duplo que
era a entrada para o condomínio de Edgar Gomes Carvalho, seu sogro. Revia em
sua cabeça os últimos relatórios das instalações de suas empresas e o andamento
do cronograma que regia a transferência de sua central de pesquisa e desenvolvi-
mento para a filial de Sorocaba. Desejaria ouvir com mais detalhes o que Belial
tinha a lhe dizer sobre isso, mas já estava satisfeito com o progresso. Se tudo
corresse bem, esperava conseguir alguns grandes avanços nas semanas seguintes,
o que poderia significar o resultado de um plano de trinta anos.
Estava para apertar o interfone e falar com o porteiro do prédio quando foi in-
vadido por uma série de pensamentos novos. Imaginou toda uma história, uma
vida de sofrimentos.
Imaginou como seria nascer em uma família sem condições de sustentá-lo, pas-
sar uma infância entre a fome e a sede, ter de trabalhar desde bem cedo para poder
comer. Imaginou-se valorizando os prazeres mais simples e vendo-se frustrado por
não poder nem sequer satisfazer necessidades básicas. Imaginou a emoção de se
mudar para uma grande cidade, em busca de oportunidades. A tristeza de não
conseguir encontrar um emprego fixo. O desespero de estar rodeado de opulência,
sem ter uma pessoa que fosse para ajudá-lo. Imaginou o assassinato da própria

28
Retorno

esperança. A entrega a uma vida sem futuro. Imaginou-se incapaz de continuar,


incapaz sequer de cometer o suicídio: inutilizado pela crueldade.
Imaginou tudo isso como se tivesse acontecido com ele. Como se recordasse
sua própria vida. Foi atingido por esse sofrimento infindável. Controlou-se para
não gritar ali mesmo.
Sua mão não chegou ao interfone. Ele estava paralisado pela sensação, repen-
tina demais para que a pudesse impedir.
Olhou para o lado. A uns dez metros dele, uma senhora sentada na rua pedia
esmolas.
Foi o choque de nossas auras. Eu estava tão preocupado comigo mesmo, que
não pude evitar captar o desespero desta pessoa.
Aproximou-se dela. Como imaginou, ela lhe pediu algo “pra comer, pelo
amor de Deus”. Sariel lhe disse:
— Minha senhora, eu preciso de alguém para limpar meu escritório. A sen-
hora sabe lavar?
Em instantes, toda a aura daquela mulher foi subitamente invadida por uma
onda de sentimento quase morto. Permitiu-se, por alguns instantes, sonhar. Sari-
el escreveu algo em um papel e o entregou a ela, dizendo:
— Amanhã, vá a este endereço e peça para falar com Carlos Bartoli. O nome
está escrito. Diga que foi Sandro Asternach quem a mandou. E aqui tem uma
coisa para você comprar uma roupa boa para amanhã.
E, sem pensar, entregou-lhe o que tinha de dinheiro na carteira.
Era difícil determinar a idade da mulher, porque ela nunca tivera o viço da
vida. Foi espiritualmente quebrada pelo sofrimento e se tornou incapaz de sor-
rir. Mesmo assim, segurou as mãos de Sariel entre as suas como se fossem feitas
de ouro, e só não o abraçou por medo de que ele sumisse de vista. Sariel viu, no
fundo daqueles olhos, uma antiga luz surgir. Um ânimo havia muito esquecido
tomou corpo, e a mulher lhe disse:
— Obrigada, doutor!
O peso de uma vida inteira sublinhou aquela frase. Sariel a ergueu. Ela
ainda não havia largado as mãos dele. Queria se certificar de que era real,
aquele homem que havia lhe entregado dinheiro suficiente para alimentá-la
por um ano.
— Até amanhã, Suzana.
— Até amanhã, doutor!

Sariel suspirou fundo ao ver a mulher se afastar. De vez em quando, ela se


voltava para trás para ter certeza de que aquele homem continuava ali. Carlos, o

29
Abascanto: a sombra dos caídos

vice-presidente da empresa, iria lhe dar outro sermão sobre “cachorros perdidos”
e “nós já estamos limpos demais com todas essas faxineiras que você arranja”,
mas Sariel sabia que, no fim das contas, o executivo cumpriria suas ordens.
Sariel era, afinal, sócio presidente de um dos maiores conglomerados
farmacêuticos do mundo.
Quando voltou a olhar o prédio, todas as suas preocupações anteriores pare-
ciam mais tênues. Entrou pelo portão, sob o olhar admirado do porteiro, e pegou
o elevador com uma ausência total de pensamentos.
Teve de se concentrar para não se desfazer ali mesmo. Precisava de uma
boa bebida.
Tocou a campainha e centralizou a mente. Precisava mais uma vez assumir a
persona de Sandro Asternach. Antes de a porta daquele apartamento triplex se
abrir, a voz de sua esposa já podia ser ouvida desde o elevador.
Edgar lhe abriu a porta. Sariel mal teve tempo de cumprimentá-lo. Tão logo
ele entrou, Aline, sua esposa, projetou-se em sua direção.
— San! Querido!
Envolveu-o em um abraço e um beijo dignos de uma despedida de guerra.
Na sala também estava Bella Asternach, o nome atual de Belial, irmã de Sariel.
Sentada no sofá, ela mal ergueu o olhar quando ele entrou. Calças jeans colantes,
uma camiseta sem estampas e tênis esportivos. Estava tão à vontade a ponto de
ser um descaso. Mesmo assim, os dedos que brincavam com a taça de vinho exib-
iam uma breve insinuação sensual. Os olhos passeavam marotos pelos músculos
do irmão, ela estava sempre às raias de um suspiro, e metade de sua boca sorria
para cada um com quem falava. Belial havia passado séculos inteiros fazendo do
trivial a fundação de sua beleza.
Com ela, não houve abraços. Nem sequer sorriram um para o outro. Havia
entre eles uma ligação muito mais profunda do que qualquer cumprimento.
Compreendiam-se inteiramente. Eram quase como uma pessoa só.— Você aca-
bou de perder a sobremesa, Sandro.
— Mas a gente guardou um pouquinho pra você, amor.
Aline Gomes Carvalho, que agora assinava Aline Carvalho Asternach, deix-
ou-se cair suntuosamente em um sofá branco-neve. Reclinou a cabeça para trás
e soltou um longo suspiro ensaiado.
O som de copos anunciou que Sariel havia se dirigido ao bar no canto da sala
e se servia de uma pequena dose de uísque.
Edgar se sentou à frente da filha. Tinha a face de todos os anos da Terra, os
olhos retirados do fundo do mar e os cabelos do topo do Everest. Um homem a
quem ela sempre chamou de “pai” e lhe ensinou tudo o que sabia.

30
Retorno

Exceto um ou outro detalhe que Sariel havia preenchido.


Edgar exalava um contentamento infinito com a filha. Olhava-a pelo prazer
de poder vê-la. Procurava em cada traço da cabecinha loira mais um motivo para
ampliar seu sorriso. Não achou que precisasse dizer alguma coisa.
Aline, imediatamente, continuou a atolar o pai com as novidades de sua
lua-de-mel:
— Pai, você tem que conhecer Praga! Meu Deus, mas que cidade linda! E
Colônia, nossa, o que é aquela catedral! Você nem imagina, pai! Você vai ver nas
fotos! Nossa, a gente lotou o notebook do Sandro com fotos! Não é, San? Mas, pai,
você não sabe! A gente assistiu à filarmônica de Berlim tocar toda a Ópera do
Novo Mundo de Dvörak. Nossa! Que liiiindo...
Belial aproximou-se de Sariel e este lhe ofereceu um drinque, virando seu
copo milímetros na direção dela. Belial recusou com o menor dos acenos de
cabeça. Os dois irmãos se olharam, sem uma expressão clara, perdidos em enig-
mas. Tinham outra forma de matar a saudade. Em suas mentes, nunca estiveram
muito separados.
— Ficou tudo bem por aqui?
— Sem maiores problemas, Sá. Tem uma pilha de relatórios na sua mesa, no
escritório, mas eu já filtrei as besteiras pra você. Onde você estava? Que problema
foi esse que você teve que resolver?
— Já, já falamos sobre isso, Bel.
Sariel abraçou a esposa e lhe deu um brevíssimo beijo no pescoço, sem que ela
sequer interrompesse a narração de sua viagem pela Europa. Enquanto Aline fa-
lava, sua mão esquerda subiu tateando pelo tronco do marido, percorrendo cada
um dos músculos dele, e terminou em um leve carinho no queixo.
Edgar não poderia ter interrompido a filha nem que quisesse. Como poderia
explicar que o som da voz dela lhe era mais caro do que qualquer coisa que dis-
sesse? Talvez nem precisasse explicar. Havia entre ele e a filha uma espécie de
pacto silencioso, um contrato invisível que os unia acima de qualquer circun-
stância. Sariel teria ficado com inveja se não tivesse mais de sete mil anos de
experiência neste mundo.
Parecem mesmo pai e filha. Ninguém diria que ela foi adotada.
Entre uma e outra respiração de Aline, Sariel achava uma brecha para um
breve comentário.
— ... e o Louvre estava fechado para reformas, ninguém estava entrando,
mas o San falou com o curador do museu e não deu nem... O que, amor? Cinco
minutos?
— Uma meia hora, querida...

31
Abascanto: a sombra dos caídos

— E a gente estava lá dentro! Nossa, e a gente nem precisou de guia! O San sabia
tudo sobre todas aquelas pinturas! Pai, você tinha que ver! Todas aquelas obras, e
só a gente andando por lá! Parecia que todas elas tinham sido pintadas pra mim...
E lá se foi ela... Aquela saudade era uma força da natureza. Sariel a deixava
contar as novidades enquanto pegava um pequeno prato com uma fatia de bolo
de nozes.
Belial aproximou-se do trio com uma furtividade sensual e se sentou ao lado
de Edgar. Passou o braço pelo encosto do sofá como se fosse abraçá-lo e cruzou
as pernas, inclinando-as na direção dele. Sariel notou que a esposa parou de falar
por dois segundos quando isso aconteceu.
Ela tem ciúmes do pai até com quem parece ter um terço da idade dele.
Se bem que... Com Belial, ela tem razão em ter ciúmes... Essa minha irmã é
insaciável...
A hora foi se estendendo com o som da voz de Aline. Edgar, de vez em quan-
do, tocava o queixo, contemplativo. Belial olhava ora para Aline, ora para Sariel.
Seus olhos não diziam nada, mas a boca dava leves dicas de concordar com uma
coisa, discordar de outra.
Aline era só mãos. Falava com as pontas de cada um dos dedos e criava ima-
gens, tentando desenhar com os braços as formas de todos os lugares pelos quais
passou. Nunca tinha viajado pela Europa antes e, em cada lugar onde estivera,
conheceu uma vida inteira pelos olhos de Sariel.
Porque ele, sim, viveu várias vidas na Europa. Conhecia aquelas cidades como
a palma das mãos: vivenciou toda a história registrada pela humanidade, e além.
Era óbvio que ele seria o guia perfeito.
— Filha, você não precisava ter terminado sua viagem tão cedo, sabe?
Aline soltou um suspiro de contentamento ao esboçar um sorriso:
— Ah, pai, eu nunca passei um aniversário longe dos meus amigos. E depois,
a Europa ainda vai continuar lá, mas eu queria que todo mundo estivesse junto
hoje, e o Sandro também.
— Mas, filha, é sua lua-de-mel.
— Ai, pai. Um mês na Europa já foi lua-de-mel bastante pra qualquer um. Foi
muito legal, mas eu já estava mesmo com saudades de casa.
— Aline, você e Sandro já decidiram onde vão morar?
— Não sei, Bella. Eu realmente queria ficar aqui. Sei lá, não é a melhor das ci-
dades, sabe, tem todos os problemas do mundo, mas todos que conheço moram
aqui... O San me levou pra um castelo que ele tem na Bolonha, ficamos lá uns dias
e... — colocou a mão no peito do marido e trocou com ele um olhar cúmplice. —
Nossa... Que lugar... Mas acho que não gostaria de morar lá. Ele falou também de

32
Retorno

a gente se mudar pra Viena, mas não sei... Eu acho que teria que aprender umas
seis línguas pra poder viver em todos os lugares aonde ele vai.
Belial sorriu levemente. Aline completou:
— Vocês dois sabem falar línguas pra caramba, não é, Bella?
— É... Nossa criação foi muito eclética. E a gente também tem viajado muito
desde que nasceu.
— Eu fiquei pasma com a quantidade de coisas que o San conhece. Te juro... A
história parece que sai viva da boca dele. Ele contava uns casos que nem os guias
dos lugares conheciam. E o que ele sabe de arte... Eu não conhecia esse lado dele.
— É... O Sandro tem mesmo muitas e muitas facetas...
Edgar se levantou, colocando as duas mãos nos joelhos, e disse:
— Bom, eu acho que vou tirar um cochilo, filha. Você e Sandro fiquem à von-
tade. A festa só começa às oito, então você tem aí um bom tempo pra descansar
e se arrumar.
Aline piscou um olho e levou um dos ombros levemente para a frente en-
quanto respondia:
— Pai... Qual é a graça de uma festa se você não se atrasa umas horinhas?
Edgar apenas sorriu, passou a mão pelo ombro da filha e se retirou.
Aline deixou na mesa o copo de refrigerante diet que bebia e foi para a sacada.
Sariel e Belial trocaram um olhar de “logo nós conversamos”. Aline abriu as per-
sianas e as portas de vidro e se deteve, contemplando a vista. À sua frente, um
pequeno mar de copas de árvores, margeado de prédios no limite do horizonte,
a cumprimentava. Era uma ilha urbana: um reduto de verde no meio da cidade.
O sol brilhava inclinado sobre a vegetação e fazia com que as sombras, umas
sobre as outras, dessem às árvores a sensação de serem mais profundas e maiores
do que o normal. À luz daquela tarde, e àquela distância, todos os prédios eram
impecavelmente brancos.
Sentiu uma mão forte tocar seu ombro, um peito cujos músculos eram uma
fortaleza de vigor. Virou ligeiramente para seu marido e ficou um tempo imer-
sa naqueles olhos impossivelmente claros que, desde o primeiro dia em que se
encontraram, queriam engoli-la inteira. Um verde-água que a natureza jamais
poderia igualar.
— Problemas hoje, amor?
— Nada demais, querida. Uma das fábricas teve um pequeno atraso no paga-
mento e alguns pesquisadores ameaçaram sair. Mas eu já cuidei disso. Não é nada.
Aline reclinou a cabeça sobre o peito dele e o abraçou de leve.
— Li, por que você não vai descansar um pouco e depois se arrumar pra ir
pra festa?

33
Abascanto: a sombra dos caídos

— Boa ideia. Você vem?


— Num instante.
— Não demore.
Ela saiu, caminhando em direção ao quarto. Uma das mãos de Aline demor-
ou a segui-la, querendo prolongar o contato com Sariel até que não pudesse
mais mantê-lo.
Belial se aproximou de Sariel e ficou observando Aline até que esta tivesse
saído da sala... E não pudesse ouvi-los.
— Ela sabe, Sá?
Um suspiro.
— Não, ainda não.
— Sá, uma hora ou outra você vai ter que contar. Melhor que seja logo.
— Eu sei, Belial. — Os dois ainda olhavam para o ponto onde Aline havia
saído da sala. — Edgar também queria que eu já tivesse contado tudo a ela. Mas
deixe que ela curta pelo menos o aniversário em paz. Depois de hoje, quem sabe,
quando eu achar um momento apropriado, eu conto tudo.
— Você é quem sabe, maninho, mas o tempo passa... O que é que aconteceu?
Sariel se virou diretamente para a irmã. Toda a sua fisionomia mudada. Re-
spondeu de dentro de um mar de seriedade:
— Eu fui atacado por um grigori.
Belial abriu levemente os dois olhos: era o máximo de surpresa que podia
demonstrar.
— Mas o que foi que você fez pra merecer isso?
— Um dos nossos pesquisadores-chefe estava a ponto de contar tudo pra imp-
rensa. Tinha recolhido dados, recortes, provas, tudo. Eu descobri e resolvi apagar
a mente dele.
Belial se virou para a sacada, desgostosa:
— O que é que você tinha na cabeça, Sariel? Essa é a desculpa de que eles pre-
cisavam para ficar no seu pé! Não dava pra ter sido mais sutil? Você não podia
simplesmente ter causado um acidente?
— Eu não queria perder o pesquisador, Bê. Você sabe como essas pessoas são
difíceis de encontrar. E eu achei que estava sendo bastante discreto, não imagi-
nava que eles estariam de olho justamente naquele momento.
Belial suspirou, resignada.
— Mas que droga! Os grigori não vão mais descansar até terem te levado
de volta! Eles sabem que estamos armando alguma coisa! Você acha que Edgar
desconfia de algo?

34
Retorno

— Não sei... Acho que não. Ele não demonstrou nada, e ninguém se comu-
nicou com ele sobre isso.
— Muito cuidado, Sariel. Esse cara é muito esperto, e você está correndo um
risco trazendo a operação para tão perto dele. Se ele tiver a menor suspeita, nosso
plano já era.
— Pode ser... Por isso a gente vai ter que acelerar um pouco nosso crono-
grama... Tem outra coisa.
Belial virou apenas a face para o irmão.— Outra? Tem mais?
— Sim. Um garoto com abascanto presenciou a luta e me viu matar aquele
grigori.
— Como é? Um garoto com abascanto?
— Sim.
— Como era?
— Parecia ter uns vinte anos. Alto, da minha altura. Loiro, cabelos longos, ca-
cheados. Estava carregando armas de treino. Parece que sabe lutar, e com certeza
sabe correr.
— Um nephilim?
— Não sei. É provável. Em todos esses anos, quantas pessoas com abascanto
natural nós encontramos? Umas dez? Mas, se ele for um nephilim... De quem?
Belial se voltou para a sacada novamente, absorta.
— Você quer que eu o encontre pra você, Sá?
— Não, Bê. Deixe que eu cuide disso. Eu tenho um tempo antes da festa da Li.
— E, enquanto isso, os grigori vêm à sua caça?
Sariel abaixou a voz para falar. Um grande cansaço sublinhou as palavras.
— Calma, Bê. Só mais um pouco. Só mais alguns meses e tudo isso vai termi-
nar. Em alguns meses, nenhum Grigori, de nenhum mundo, vai importar.
— Novidades sobre Deucalion?
Sariel deu uma vista de olhos pela sala antes de responder.
— Eu recebi um relatório hoje. É mutante. Quando a gente soltar essa coisa, só
vai sobrar quem a gente quiser mesmo.
Belial baixou levemente a cabeça, um sorriso de satisfação.
— Foi um trabalho muito rápido. Eu não esperava um resultado desses em
menos de um ano. Qual é a estimativa de mortes?
— Noventa e nove vírgula nove por cento. Sobrarão por volta de cinco mil-
hões de pessoas no mundo.
— E você tem certeza de que vai ser indolor? Os testes confirmam isso?
Sariel ainda olhou por alguns instantes para a irmã. Os cantos dos olhos caíam
um pouco. O tom de voz era grave.

35
Abascanto: a sombra dos caídos

— Bom, há o dano psicológico. Não temos como impedir isso. Consegui-


mos reduzir o tempo de manifestação dos sintomas para dois dias, mas, no
geral, vai ser bem indolor, sim. Nos testes, os alvos ficavam levemente entor-
pecidos antes da morte. Há uma grande liberação de endorfinas. Vai ser uma
morte bastante prazerosa.
— Qual é o problema, Sariel? Dúvidas? A esse ponto?
— Eu ainda gostaria que houvesse outro jeito, Belial... Uma outra forma.
— Nós já tivemos essa conversa, irmão.
— É só um desejo. O plano continua. Ainda assim... tantas mortes... Se hou-
vesse outra forma...
Belial colocou as duas mãos no parapeito da sacada. Inalou o ar da cidade, que
sempre a deixava enojada, e disse:
— Eu vou gostar de ver toda essa sujeira limpa, Sá. Por mim, a gente matava
todo mundo agora mesmo.
Sariel pousou a mão no ombro da irmã. Só mais um pouco... Mais alguns meses...

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ACCUSTIS
Corrida
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por
por TdoE ES-
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DOLENTEM
DOLENTEM
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DOLENTEM
sol
sol
DELES-
AECATAMUS,
TATE CONESTRUM

Guilherme tinha se sentado havia pouco na frente de seu micro para checar e-
mails e navegar pela internet quando Érico entrou afoito no apartamento que di-
vidiam. A televisão exibia para ninguém um programa qualquer da tarde, enquanto
ele controlava com o ouvido a hora de tirar do fogo o molho que estava preparando.
Tinha acabado de ler uma notícia recebida por e-mail: um grupo de cientistas
havia identificado uma região do cérebro, o “sulco superior temporal posterior”,
que era especificamente ativada quando uma pessoa realizava atos de caridade
ou ajuda. A reportagem avaliava que, teoricamente, por meio de exames, seria
possível prever se uma pessoa tinha tendência ao altruísmo.
O som da porta batendo rompeu aquela rotina vespertina. Quando Guilherme
se virou para ver o que tinha acontecido, deu de cara com um Érico esbaforido,
sujo e com o ombro ralado. Uma bolsa rasgada no ombro. Tinha um pouco de
sangue na camisa.
— Nossa, Érico, o que foi que aconteceu?
Érico tinha entrado na casa e olhava para um ponto vago através da janela.
Quando Guilherme falou, foi chamado de volta. Percebeu que havia outro ser
humano à sua frente, que alguma explicação ele teria de dar.
Sem saber exatamente o que pensar, sem pensar exatamente no que falar, aca-
bou dizendo:
— Eu vi um cara morrer, Gui! Eu vi um cara morrer na minha frente!
Guilherme parou a uns dois metros de Érico. Não estava esperando ouvir uma
notícia daquelas.
— Nossa...
Estendeu uma mão, convidando o amigo a se sentar. Érico foi levado até o
pequeno sofá do apartamento e se sentou por pura inércia.
Quando se ajeitou, foi como se um imenso peso desabasse sobre sua cabeça.
Largou a mochila no chão e enterrou a cara nas mãos. Estava tremendo. Foi per-
corrido por um calafrio, sentiu o corpo ficar mole.
Guilherme ia se sentar à frente dele, mas percebeu que o molho estava para
ferver e foi apagar o fogo. O cheiro de tomate desceu pelas narinas de Érico, pas-

37
Abascanto: a sombra dos caídos

sou para seu estômago e o revirou do avesso. O nó que sentia desde que havia
presenciado aquele assassinato subitamente encontrou uma saída para sua re-
volta. Foi correndo ao banheiro, vomitar.
Quando saiu, apoiando uma das mãos no batente da porta, Guilherme perguntou:
— Mas como é que isso aconteceu?
Érico abriu a boca e levou o queixo levemente para frente: ia começar a despe-
jar uma narração interminável, mas impediu-se. Um alarme tocou na sua cabeça,
o mesmo que tinha lhe dito, três vezes antes, que havia algo errado. O mesmo que
ele havia lutado para ignorar durante toda a adolescência:
Não conte!
Guilherme, vendo que Érico estava para dizer algo, havia se virado para ele e
aguardava, atento. Érico tinha de dizer alguma coisa. Falou de improviso.
— Eu vi... Bom, ele... Um cara foi cortado na minha frente, Gui.
— Cortado... A facadas!?
— É... Mais ou menos... Era uma faca bem grande...
— Caramba, Érico! Onde foi isso?
— Foi... perto da estação Ana Rosa. Eu estava saindo da academia.
— Mas o que aconteceu, Érico? Pegaram o cara? Ele fugiu?
— Ele veio atrás de mim.
— Atrás de você? Mas por quê?
— Porque...
Porque ele é invisível e só eu o vi!
— Porque só eu vi aquilo. Foi meio escondido.
— Caramba, Érico! Você tem que ir à polícia!
Eu não posso ir à polícia, cara. O cadáver sumiu num facho de luz.
— Não, Gui...
— Como não, Érico? Um cara foi assassinado! Você é testemunha! Você tem
que fazer um B.O.!
Érico andou lentamente até a sala e pegou sua mochila. Estava toda rasgada.
— Eu não quero, Gui. Caramba, o sujeito matou uma pessoa e veio atrás de mim!
— E você escapou como?
— Eu corri feito um condenado, foi assim que eu escapei! Eu entrei na última
hora num metrô que estava saindo e deixei ele me olhando na estação.
— Você deu uma boa olhada nele?
— Sim...
— Então você pode reconhecê-lo.
— Cara, eu reconheceria aquele sujeito até pintado de azul.
— Como é que ele é?

38
Corrida ao pôr do sol

— Tipo, Alto. Quase da minha altura. Tem um cabelo castanho, ondulado. Pa-
rece ter uns trinta, quarenta anos. Tava usando um terno escuro, sabe, tipo bem
caro. E tinha dois olhos muito, mas muito claros mesmo. Eram quase brancos. E
era forte pra caramba.
— E esse cara... Ele te viu também?
— Putz... Com certeza.
Ficaram se olhando. Dava pra entender por que Érico não queria fazer um B.O.
— Brother, você tá todo ralado. Vai dar um jeito nesses machucados.
Érico concordou com a cabeça e foi para o quarto.
Mal podia acreditar no que havia acontecido, mas tinha as marcas para pr-
ovar, para si mesmo, que não estava louco.
Quando abriu a mochila na cama, percebeu que havia perdido duas de suas
armas de treino: um san jie gun, um bastão com três partes ligadas por uma cor-
rente, e um dao, uma espécie de facão largo.
Ainda mais essa...
Demorou-se no banho. Não conseguia pôr a cabeça em ordem. O que é que eu
vou fazer? Para onde eu vou agora? Será que é melhor esquecer tudo? Ou investi-
gar? E por que eu? Por que só eu, no meio de tanta gente, vi aquilo?
Eu estou no escuro. Não tenho nem com quem conversar sobre isso. Ninguém
nunca vai acreditar em mim.
Exceto, talvez, meu pai.
Lembrou-se de um incidente quando tinha dez anos. Estava saindo da escola
e na sua frente estavam uns garotos de uma série mais avançada, gente que ele
não conhecia direito. Um pouco antes de eles chegarem a uma esquina, Érico viu
na sua mente, com toda a clareza, a imagem dos três atropelados na calçada. Foi
uma imagem mental, uma forte imaginação ou um sonho acordado, mas muito
intenso: quase real. Parou por alguns instantes e viu que aquelas crianças ainda
estavam bem. Haviam combinado algo entre si e começavam a correr, provavel-
mente em direção a algum lugar aonde queriam chegar logo.
Érico tentou chamá-los, mas não sabia seus nomes. Sabia que eles iam morrer.
Tinha certeza disso! Apavorado, pegou seu estojo e o arremessou neles. Atingiu
um garoto na cabeça.
No mesmo instante em que aqueles três garotos pararam e se viraram para ver
de onde tinha vindo aquele projétil, um carro atravessou o sinal vermelho a plena
velocidade. Passou rente à esquina, bem perto da calçada, e seguiu rua afora.
Certamente os teria esmagado.

39
Abascanto: a sombra dos caídos

Os garotos não haviam percebido nada. Correram para cima de Érico e


começaram a ensiná-lo a não arremessar coisas nos outros, devolvendo-lhe to-
dos os itens do estojo, atirando-os um a um sobre a cabeça dele.
Quando chegou em casa e contou o que tinha acontecido para o pai, ouviu
simplesmente:
— Muito bem, filho! É isso mesmo. Você fez muito bem. Você só tem que ter
cuidado daqui pra frente, pra que as pessoas não percebam quando você vê essas
coisas. Elas podem ficar com medo e não entender. Tome cuidado.
Érico havia quase se esquecido daquele fato. Era um entre tantos... Mas sem-
pre, em todos eles, o apoio do pai. Se havia uma pessoa, em toda a sua vida, que
não se apavorava com a sua intuição, era seu pai.
Deve ser por isso que eu não quis contar para o Guilherme o que eu vi.
Mas papai, sim, vai me ouvir. Pode não me ajudar em nada, mas vai me
ouvir.
Puxa, pai, como eu queria que você estivesse aqui agora...
Mas ele não estava, e Érico havia crescido e teria que cuidar de si mesmo.
Passou mercurocromo na ferida do braço e esperou secar sem cobri-la, não
haviam comprado curativos para o apartamento. Trocou de roupa e voltou para
a sala. Guilherme estava colocando o molho que havia preparado em vários
potes de plástico.
— Está melhor?
— Um pouco.
— Quer comer alguma coisa?
— Agora que você falou... Eu estou morrendo de fome... Tem alguma coisa
pronta pra acompanhar esse molho?
— Vamos pegar uma massa aqui em frente. Me dá uns cinco minutinhos que
eu te acompanho.
— Valeu.

La Cucina era uma espécie de loja e restaurante de massas. Vendia massas e


molhos prontos de todos os tipos, de fabricação própria. Tinha o preço muito
em conta, quando se comprava as massas prontas para preparar em casa. Essa
era a ideia dos dois quando entraram, mas Érico passou os olhos no cardá-
pio do dia e, de última hora, atendendo a um impulso, resolveu se sentar para
comer lá mesmo.
Guilherme, que sempre controlava o dinheiro mais do que o amigo, queria
apenas acompanhá-lo. Érico insistiu tanto que o convenceu a pedir também o
canelone à bolonhesa.

40
Corrida ao pôr do sol

— Não se preocupe, eu ainda estou te devendo o dinheiro da entrada do cin-


ema de domingo passado — disse ele, embora aquela refeição fosse obviamente
mais cara do que o cinema.
Conversaram por uma hora. Falaram da vida, dos seus planos, das mulheres que
iam pegar na balada naquela noite, das entrevistas de emprego que estavam fazendo.
Ambos tiveram muito tato para evitar qualquer assunto que mencionasse
morte, facas ou crimes em geral.
O assunto, porém, não os evitou da mesma forma.
Guilherme percebeu que Érico, após comer um petit-gateau de sobremesa,
arregalou os olhos e ficou bem uns cinco segundos sem falar nada.
— Gui... É ele...
— O quê? Quem? Onde?
— Ali. Saindo do carro. Na frente do nosso prédio! É o assassino de hoje à tarde!
Guilherme se virou para trás e pôde ver o tal assassino pela janela do restaurante.
Estava mesmo usando um terno caro. Tinha os olhos mais claros que ele já
havia visto, tanto que, daquela distância, pareciam não ter pupilas. Havia saído
de um BMW que estacionara em frente ao prédio. Ele apertou o chaveiro na mão,
o carro apitou duas vezes e se fechou.
Andou calmamente para a entrada do prédio, parou por um breve instante em
frente ao porteiro eletrônico e entrou.
Como é que ele abriu a porta? Quem abriu a porta para ele?
— Gui, ele me achou!
— Calma! Peraí que eu dou um jeito nisso.
— Você? Como?
— Relaxa, Érico. Eu vou entrar lá e falar pra ele que eu moro sozinho.
— Cara, você não está me entendendo! Esse sujeito cortou um homem no
meio hoje mesmo! Eu vi! Você não conversa com um cara desses, você foge!
Como é que agora as pessoas estão vendo esse cara?
— Brother, fica frio. Ele não tem como saber. Vai dar tudo certo.
Guilherme se levantou. Érico o agarrou pelo braço.
— Não faz isso, cara. Você não sabe do que esse sujeito é capaz.
— Que é isso, Érico? Fica frio! Ele nem vai desconfiar. Deixa que o ator aqui
sou eu!
Érico viu o amigo sair pela porta do restaurante e seguir o assassino edifício
adentro.
Isso não vai acabar bem...
Pediu a conta. Olhava para a janela, aprisionado pela imagem da porta de
entrada do seu edifício. Segundos se passaram.

41
Abascanto: a sombra dos caídos

Alguma coisa vai dar errado... Eu não devia ter deixado ele ir...
Tempo... A conta veio. Pagou com o seu cartão de débito. Nada acontecia.
A certa altura, sua tensão atingiu algum limite indefinível, e ele ouviu, nova-
mente, a própria consciência:
É isso, Érico. É hora de ir embora.
Mas ele não se mexia. Seu amigo havia entrado. Não podia abandoná-lo.
Deixa disso, garoto! Caia fora daí!
Mas como? Para onde iria? O que faria?
Érico! Levanta daí e corre!
A ordem não foi uma simples reflexão. Foi um comando, claro e simples. Vindo
da parcela de razão dele que sabia o que estava falando. Não teve como resisti-lo.
Ergueu-se, devagar no começo. Andou até a entrada do restaurante sem tirar os
olhos do seu prédio. Parou na frente. Ainda não queria deixar o amigo para trás.
Corra! Corra agora!
Aquele homem apareceu na porta.
Érico começou a correr como nunca antes na sua vida. Não sabia nem para
onde ia, só que tinha de sair dali imediatamente.
Quando chegou à porta do apartamento de Érico, Sariel tocou a campainha
três vezes até aceitar o fato de que ele não estava lá.
Pelo menos eu já sei onde ele mora. Só o que tenho a fazer é esperar que ele volte.
Foi quando apareceu atrás dele outro rapaz, quase da mesma idade.
— Posso te ajudar?
Sariel abriu um sorriso triunfante. Não poderia ser mais fácil...
— Claro. Eu estou procurando por Érico Gildor Armoni.
— Quem?
— Ele mora aqui, não é?
— Desculpe, senhor, mas aqui só moro eu, e eu não me chamo Érico.
— Tem certeza? Olha, eu vi ele correndo hoje de tarde, e ele deixou cair isto
— e mostrou para Guilherme uma das armas de treino de Érico, um facão. — E
eu percebi que é uma arma de kung fu, então eu visitei uma academia próxima, e
eles me falaram onde encontrar Érico, me deram este endereço.
Guilherme pegou o facão. No cabo estava pirografado: “Érico”.
— Olha, deve ter havido algum engano. Eu aluguei este apartamento há pouco
tempo, e não sei quem estava aqui antes.
Naquele instante, tudo o que Guilherme queria era despistar Sariel: não reve-
lar a ele onde Érico estava. Por isso mesmo, aquela informação era a mais pre-
sente em sua mente. O tempo todo ele estava pensando em Érico, para poder se
conter e não falar nada.

42
Corrida ao pôr do sol

Basta querer não pensar em algo, e só o que vem à mente é esse algo.
A atuação de Guilherme teria sido totalmente convincente. Estava completa-
mente imbuído do personagem. Mas Sariel via com olhos diferentes dos das demais
pessoas: as ações e as palavras ditas eram apenas metade da informação para ele.
Ao redor de Guilherme, com os olhos de sua mente, Sariel via com toda a
clareza os pensamentos superficiais do rapaz formando um nimbo, uma aura.
Flutuavam acima da cabeça dele como formas coloridas e simbólicas: formas e
símbolos que sabia interpretar havia tempos.
Com aquele breve instante de observação, soube que Érico estava no restau-
rante ali em frente, esperando por Guilherme.
Sariel tocou levemente no ombro de Guilherme e disse:
— Muito obrigado pela sua ajuda, meu jovem.
E desceu as escadas cantarolando.
Isso não foi difícil... Érico se preocupou à toa. Imagine só, achar que alguma
coisa poderia dar errado...
Guilherme ficou muito satisfeito consigo mesmo.

Érico havia percorrido metade do quarteirão quando ouviu uma voz, ao


longe, chamar por ele:
— Érico! Espera, garoto!
Era aquele homem. Era o assassino dos olhos claros.
Meu Deus, mas como foi que ele me encontrou!? Tão rápido!
Virou a esquina. Esperava ouvir o som do carro daquele homem dando a par-
tida, mas seu perseguidor havia decidido correr atrás dele.
Dessa vez, porém, Érico estava descansado, e o pavor inicial havia passado.
Tinha confiança de que, sendo mais jovem e estando em plena forma, con-
seguiria despistar aquele sujeito, mas quem quer que ele fosse, estava em tão boa
forma quanto Érico: a distância entre eles apenas diminuía.
Percorreu pelo menos três quarteirões, correndo desesperado, até ter uma
ideia. Àquela altura, estava começando a ofegar, mas ainda podia sustentar a cor-
rida por muito mais tempo.
Chegou a um quarteirão com um vasto parque à direita, repleto de árvores.
Deu um salto acrobático e agarrou o topo da cerca com uma das mãos. Impulsio-
nou-se para cima e entrou no parque.
Isso deve me dar uma boa distância, pensou.
Mal começou a correr entre as árvores, viu o homem repetir seu feito com a
mesma facilidade.
Mas que droga!

43
Abascanto: a sombra dos caídos

Viu um parquinho para crianças que, entre outros brinquedos, tinha uma
pequena casinha colorida em cima de um tanque de areia. Correu naquela di-
reção. Pretendia se esconder na casinha. Mal entrou no parquinho, viu que o
homem já o tinha visto. Rolou na areia e ergueu-se, de frente para ele.
Olharam-se por dois segundos. Érico podia sentir o pescoço inteiro pulsando
com o coração. Nunca antes, em nenhum treino ou competição, ele tinha en-
trado em um estado tão alerta, tão consciente dos próprios movimentos.
Correu em direção àquele homem com os punhos cerrados. Sua intenção era
clara, e ele o viu assumir uma postura defensiva.
Ele realmente sabe lutar tai chi...
Érico investiu com um soco no abdome. Foi aparado. Outro soco nos olhos,
e foi aparado também.
Esperava por isso. Um mestre de tai chi conseguiria se defender de quase
qualquer golpe. Mas, nos punhos cerrados, Érico trazia areia e, quando o golpe
desferido contra a face do oponente foi aparado, o rapaz abriu a mão e despejou
os grãos nos olhos do homem.
Imediatamente, ele deu dois passos para trás e falou alguma coisa, provavel-
mente um palavrão qualquer, em uma língua que Érico não reconheceu.
Érico saiu correndo no mesmo instante. Não pôde deixar de notar, quando
passou pelo homem, que carregava as espadas por baixo do terno.
Quanto tempo eu ganhei com isso? Não sei! Isso só vai atrasá-lo! Meu Deus, eu
preciso me esconder!
Saltou novamente a cerca do parque e, pelo jeito como caiu no chão, percebeu
que já estava bem exausto.
Um carro freou bem à sua frente.
Esporte. Azul marinho, importado. Tinha o vidro dianteiro direito abaixado.
Dentro do automóvel Érico viu o motorista: um homem de uns trinta e cinco
anos. Usava roupa esporte. Tinha um rosto jovem, uma boca fina e discreta, e um
nariz grego completava sua fisionomia estatuária.
— Érico, entra aqui, garoto!
Érico conhecia muito bem aquele carro e aquele homem: era seu pai.
Por três segundos, Érico ficou pasmo. Toda a sua cabeça pulsava junto com o
sangue. Seu pai abriu a porta e insistiu:
— Entra!
Tão logo Érico se sentou no banco, antes de fechar a porta, o carro partiu
cantando os pneus.
Ainda pôde ver o assassino aparecer, de dentro do parque, e mais uma vez
assistir à sua escapada.

44
Corrida ao pôr do sol

— Aperte o cinto, filho.


— Pai, caramba! Tem um cara atrás de mim!
— Eu sei, filho, eu vi.
— Mas como é que você me achou, pai? De onde você apareceu?
— Você me chamou, filho.
— Eu te chamei?
— É.
— Mas como... Quando?
— Hoje à tarde. Mais ou menos há uma hora e meia. Você chamou por mim.
Eu vim.
Érico respirou fundo. Apoiou a cabeça nas mãos. Deus, o mundo está en-
louquecendo!
— Mas quando? Eu estava no banho nessa hora.
Seu pai respondia tudo com calma. Estava atento: olhava para os retrovisores
com concentração e pisava fundo no acelerador. Respondia com a maior tran-
quilidade.
— Não sei onde você estava, filho. Você me chamou. Mentalmente. Eu ouvi
e vim.
Pausa.
— Nada mais faz sentido...
Por mais um tempo, ninguém falou nada.
— Aonde a gente está indo?
— Pra casa da sua tia.
— A tia Ká tem uma casa aqui na cidade?
Seu pai fez que sim com a cabeça.
— Mas por que vocês nunca me contaram?
Seu pai ficou pensativo por um tempo. Quando falou, parecia estar pedindo
desculpas:
— Você vai ver, filho, que tem um monte de coisas que a sua tia e eu nunca te
contamos.
Érico pressentia o que estava por vir. Em sua cabeça, ele ouvia: Ele sabe! Ele
sabe o que está acontecendo!
Seu pai se virou para ele e disse ainda:
— Tá na hora de a gente ter uma conversa...
Sem saber mais o que pensar, o que esperar — suspeitando, agora, da própria
vida —, Érico se reclinou no banco do carro e tentou relaxar.
Deixou que seu pai, que se chamava Daqshael, o levasse à casa de sua tia, que
se chamava Kaliel.

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A noite acabava de cair sobre a praça. O movimento das pessoas, porém, não
diminuía nem aumentava. Nunca se alterava naquele lugar. Parecia a Kaliel que
o mundo inteiro convergia para que todos pudessem, ao menos uma vez na vida,
pousar os olhos sobre o Arco do Triunfo, em Paris.
Sentada, tomando calmamente um café, ela observava com serenidade o
mar multicolorido das auras das pessoas a seu redor, cada uma contando uma
história diferente. Aqui uma verde preocupação pelo filho que poderia ou não
assumir a paternidade da criança esperada pela namorada grávida; ali um ama-
relado interesse pelas últimas cotações da Nasdaq. Passando ao longe, um gru-
po rosado de intenções puramente sensuais emanava de um grupo de turistas.
À sua esquerda, a mãe com dois filhos, envolta em um nimbo cinza, tentava
esquecer que aquela viagem a havia deixado com a conta bancária negativa.
Kaliel não via o tempo passar. No céu, as nuvens assumiam um tom amarelo-
dourado com o fim do pôr do sol, contrastando com o azul profundo da imen-
sidão que havia além.
Deu uma tragada no cigarro e deixou a fumaça sair tranquila pela boca. Com
a outra mão, ajeitou desnecessariamente os cabelos, para que caíssem um pouco
à frente dos ombros.
— Isso ainda vai matar você, sabia?
Ao seu lado havia aparecido um homem alto, sério, emanando uma ácida
ironia alaranjada. Tinha os olhos muito puxados, mas seu queixo fino e nariz
diminuto não caracterizavam qualquer etnia atual: tinha uma fisionomia ímpar,
indefinível, porque pertencia a um povo que havia muito fora extinto. Tinha um
cuidado óbvio com a aparência e, para Kaliel, parecia ser exageradamente vaido-
so. Falava um francês perfeito.
Kaliel gesticulou para que se sentasse. O homem colocou uma pasta sobre a
mesa e a empurrou para perto dela.
— Eu gostaria de saber que problema vocês, grigori, têm com o trabalho
em equipe.

46
Encontro no café

Kaliel ergueu uma sobrancelha.


— Algumas horas atrás eu telefonei para Gadriel e lhe expliquei o que eu
havia descoberto sobre Sariel. Coisa pesada. O suficiente para levá-lo de volta.
Parece que ele apagou a memória de um dos seus empregados. Eu, na minha
santa inocência, ainda achei que ele ia conversar com vocês, sabe... Coordenar
esforços, tentar pegar Sariel desprevenido. Mas não, imagine, Ele foi enfrentar o
homem cara a cara!
Kaliel suspirou, resignada, e apagou o cigarro no cinzeiro.
— O que aconteceu?
— Aconteceu, minha cara Kaliel, que seu irmão foi sumariamente executado.
Ele lutou por alguns minutos com Sariel e foi morto.
Kaliel baixou o olhar. Péssimas notícias... Sem Gadriel, ela e Daqshael eram
apenas dois contra Sariel e Belial... Ele não poderia ter escolhido uma hora pior
para ir embora deste mundo. Tomou um gole de seu café e disse:
— Eu tenho que voltar. Antes que o Daqshael cometa alguma loucura. Gadriel
havia me telefonado e dito que você lhe entregou algumas informações compro-
metedoras... Mas não mencionou um conflito. Esse não é o estilo dele... Ele deve
ter sido provocado.
Seu companheiro levantou uma sobrancelha irônica e falou, com o canto da
boca erguido:
— O que é isso, Kaliel? Nem uma palavra de tristeza? Nem um suspiro de dor?
Nem um pensamento de luto pelo seu amigo?
Kaliel puxou outro cigarro do maço enquanto olhava quase fria para aquele
rosto de escárnio.
— Não me venha com seus sentimentalismos.
— Sentimentalismos? Ora, ora... E quem é você para falar? Você é mais pare-
cida conosco do que pensa!
— E o objetivo desse comentário é exatamente qual?
— Não se faça de desentendida, Kaliel. Você trata Érico com mais apego que
a maioria das mães humanas. Você o mima até!
A resposta de Kaliel veio sublinhada com um tom de indignação que nem ela
conseguiu esconder:
— Eu não faço isso! É claro que eu gosto do garoto, mas ele é um mortal!
— Então seu jeitinho todo meloso com ele é só uma fachada?
— Eu não sou melosa!
— Claro que não. Afinal, é um sentimento sincero!
Kaliel fez questão de soprar a fumaça da boca na cara do indivíduo.
— Você é um canalha dos mais irritantes, sabia?

47
Abascanto: a sombra dos caídos

— Correção, querida, eu sou um canalha que adora irritar você. Ah, Kaliel...
Eu ainda vou ver você por uns duzentos anos aqui neste mundo.
— Você acha que eu vou cair por causa de Érico?
— Olhe nos meus olhos, mulher, e diga que você não o trata melhor do que
aos outros humanos.
Kaliel sublinhou um segundo com um frio polar vindo dos olhos:
— Eu admito que tenho um forte sentimento por ele.
Seu interlocutor se reclinou na cadeira, satisfeito.
— Eu sabia! Você adora esses pequenos vícios humanos!
— E você, por acaso, está rindo da própria desgraça, é?
— Não dá pra viver nem três séculos neste mundo sem aprender a rir das
próprias desgraças... — Mudou sua expressão para um tom mais sério e pas-
sou uma pasta a Kaliel — Aqui está tudo o que eu tenho sobre Sariel até agora.
Foi confirmado que ele mudou toda a central de pesquisa e desenvolvimento
dele para algum lugar no Brasil, mas ainda não sei onde. Tenho indícios de que
os pesquisadores dele estão bastante agitados por causa de uma coisa que eles
chamam de “Deucalion”. — Riu. — Parece o nome de um projeto.
— Qual é a graça?
— Você não sabe, Kaliel? Deucalion era o nome de um dos filhos de Sariel.
Antes da primeira república grega. Esse saudosismo piegas é bem a cara dele.
Kaliel pegou a pasta e deu uma breve olhada no conteúdo.
— Isso é muito bom. Ótimo trabalho. Você tem nos ajudado muito desde que
chegamos aqui. Nós lhe devemos mais uma.
Mais uma risada irônica.
— Sua gratidão é imaterial para mim, mulher. Pouco me importa o que você
pensa ou deseja, e eu bem sei quanto isso vai me servir no futuro. Sariel também
ajudou muito vocês quando houve aquela confusão com Napoleão... Isso não o
impede de ser o alvo da vez dos grigori.
— Nós não temos...
— Não se justifique para mim, Kaliel. Sariel também é uma pedra no meu
sapato, e eu tenho tanto interesse quanto vocês em vê-lo fora do meu mundo. Só
o que eu quero é que vocês terminem o que vieram fazer e deem o fora do meu
planeta.
Olharam-se por um instante. Nunca tinha sido possível uma conversa com
aquele indivíduo sem uma ou outra troca de insultos... O desgosto dele pelos
grigori era palpável. Mas era da natureza de Kaliel tentar conciliar diferenças.
Talvez ela pudesse provar a ele que ela, ainda que só ela, era diferente...
— Quais são os seus planos?

48
Encontro no café

— Eu também preciso dar uma passada no Brasil para continuar o meu lado
da investigação. Eu entro em contato quando souber de mais coisas.
— Você vai continuar em contato com Sariel?
— O mínimo possível. Não posso levantar suspeitas agora. No mínimo tenho
de avisar que vou passar um tempo próximo à casa dele, mas tenho propriedades
suficientes para justificar essa viagem.
— Vocês levam a sério esse territorialismo todo, não?
— É como nós mantemos a ordem, Kaliel. Preocupe-se em mandar Sariel e
Belial de volta para casa, que eu me ocupo de cuidar dos meus pupilos, sim?
Kaliel consentiu. O homem se ergueu e ajeitou o casaco. Fez uma leve mesura
no estilo oriental e disse:
— Até a próxima, minha cara.
— Até a próxima, Satanael.

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conversa
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A casa era grande. Ficava nos arredores da cidade, em um bairro residencial


repleto de árvores e seguranças nas ruas. Da entrada, podia-se ver no horizonte
o contorno dos prédios da cidade.
Era a cara de sua tia: tudo lá dentro estava em seu lugar. Tudo em tons pastéis.
Os objetos dispostos milimetricamente na mesinha de centro.
Érico nunca se esqueceria da organização da tia, da imensa paciência que ela
tinha com a desorganização alheia. Até seus quinze anos, vivera na casa mais
arrumada de Americana. Nunca teve de desfazer nenhuma de suas inúmeras
bagunças: Kaliel sempre vinha atrás dele, calma, colocando tudo de volta no
lugar exato.
Preparando a casa para ele desarrumá-la novamente.
Exceto seu quarto, claro. No quarto de Érico, Kaliel exigia ordem, e era ele
quem tinha de dá-la. E não importava quantas vezes arrumasse o lugar... Se ele
enrolava todas as meias e as colocava nas gavetas, lá vinha Kaliel com sua voz
mansa, dizendo:
— Não, querido, você tem que colocar as meias uma do ladinho da outra, assim...
Arrumava um par para ele ver e se punha a supervisionar o resto.
Se ele pegava todas as roupas do chão e as colocava no armário, lá vinha Kaliel
com a maior naturalidade, dizendo:
— Não, meu bem. Você tem que colocar todas as camisas de um lado, e as
calças de outro. E têm que estar ordenadas pela cor, querido, senão como você
vai saber que roupa usar?
— Ah, tia! Eu pego qualquer uma!
— É por isso que você está sempre desarrumado, querido. Deixa eu te mostrar,
olha só...
E lá ia ela arrumar um par de roupas e deixar que ele fizesse o resto.
Ninguém podia acusar Kaliel de não ser uma tia extremosa.
Hoje, quando Érico arrumava as meias na gaveta e via que todas estavam uma
do ladinho da outra, ria para si mesmo e lembrava-se da tia.

50
Uma conversa

Esse era o espírito da casa em que ele havia entrado. Não pôde conter uma
brevíssima gargalhada.
Parou no centro da sala, percorrendo-a com o olhar. Estava permeado de
emoções controversas sobre aquilo tudo. Quando ouviu o barulho da porta se
fechando atrás dele, voltou-se para seu pai.
Daqshael trancou a entrada da casa e encarou o filho. Observou-o por alguns
segundos antes de se mover para um dos sofás beges no canto da sala.
Érico não estava com humor para se sentar. Disse apenas:
— Então?
Daqshael sentou-se sob o olhar intenso do filho. Calmamente, começou a falar:
— Você deve ter várias per...
— Por que é que vocês nunca me contaram que a tia Ká tinha uma casa na cidade?
Daqshael não respondeu de início. Pensava em uma resposta apropriada
quando ouviu outra acusação:
— Eu poderia ter vindo pra cá quando entrei na faculdade! Olha só pra esse lugar!
— Filho...
— E como é que você me achou correndo no meio da noite? Eu te “avisei”?
Como é isso?
— Érico...
— O que é que está acontecendo, pai? O que diabos está acontecendo?
Daqshael fixou a imagem do filho na mente. Queria responder, mas não sabia
como. Não imaginava por onde começar.
— Fala alguma coisa, caramba!
— Quieto, Érico!
Érico podia contar nos dedos de uma mão quantas vezes na vida o pai tinha
levantado a voz para ele. O pai e a tia sempre resolviam as coisas com a maior
placidez. Suas broncas eram serenas. Quando ficava bravo, seu Daqshael tinha
mais propensão para amaciar a voz do que para erguê-la.
Quando aquele grito soou na sala, Érico o sentiu fundo. Calou-se imedi-
atamente. Não achou que o pai estivesse bravo — não era o estilo dele —, mas
nervoso, sem dúvida. Érico percebeu que Daqshael era uma represa de auto-
controle a ponto de romper.
Sentou-se. Não tirava os olhos do pai. Perguntou novamente, mais calmo:
— O que é que está acontecendo, pai? Eu vi uma pessoa morrer hoje!
Daqshael inspirou fundo.
— Mas ela não morreu de forma normal, não é, filho? Essa pessoa sumiu em
um foco de luz, não é?
Érico arregalou os olhos. Então ele sabe mesmo! Apenas assentiu com a cabeça.

51
Abascanto: a sombra dos caídos

— Filho... Essa pessoa que você viu morrer, por assim dizer, não era humana.
Era um ser de outra dimensão chamado “grigori”.
— Outra dimensão?
— Eles podem se materializar neste mundo e passar despercebidos das pessoas.
— Então você também pode vê-los?
Daqshael acenou com a cabeça:
— Sim, eu também posso vê-los.
Érico reclinou-se, atônito.
— Desde quando?
— Desde que eu nasci, filho.
— Mas... Por que você nunca me disse? Por que eu nunca soube disso?
— E o que é que eu ia te dizer, Érico? Como é que eu podia te contar isso?
“Oi, filho, tudo bem? A propósito, tem um bando de seres se matando nas ruas,
ninguém pode ver, mas está tudo bem.”
— Mas, pai... Eles me viram! O cara que estava correndo atrás de mim me viu
na rua!
— Eu notei.
— E agora? O que é que esses caras querem comigo?
— Eu não sei exatamente o que eles querem com você, mas só o fato de você
poder vê-los te torna muito importante pra eles. Pode ser que eles queiram con-
versar com você, pode ser que queiram te matar. Eu não sei.
Érico levantou-se, levado por uma ansiedade incontrolável. Colocou as mãos
na nuca, como se apoiasse a cabeça para não cair, e disse:
— Putz! O que é que eu vou fazer agora?
— Você tem que se esconder, filho. Ficar quieto num canto por um tempo.
Deixe que esse assunto morra.
— E por acaso dá pra se esconder deles?
Érico apoiou as mãos em uma mesa de vidro. Estava tremendo.
— Você pode se esconder deles melhor do que ninguém, filho. Só tome cuidado
para não pensar naquele homem com intensidade, e ele não poderá te encontrar.
Érico ligou os pontos. Minutos atrás, seu pai havia lhe dito que ele o havia
chamado com o pensamento, e agora dizia que aqueles seres, aqueles grigori,
poderiam achá-lo se ele pensasse intensamente neles.
Érico virou-se lentamente para o pai.
— Você é um deles!
Daqshael ergueu as sobrancelhas, levantou-se do sofá, deu dois passos em
direção ao filho, estendendo a mão esquerda, mas Érico correu automaticamente
para o outro lado da mesa.

52
Uma conversa

— Você é um deles!
— Érico...
— Não chega perto!
Por instinto, pegou um ferro de atiçar lareira que estava preso na parede e
o apontou para o pai. Quando falou, não sabia se fazia uma pergunta ou uma
acusação:
— Quem é você!?
Daqshael assumiu uma expressão gélida e disse, com calma:
— Eu sou seu pai e estou mandando você parar com essa cena! Não seja
criança, Érico!
Érico olhou de relance para a sala onde estava. Confuso, sentou-se à mesa,
numa cadeira próxima ao pai. Se meu pai é um deles, não importa o que eu faça...
Eu não tenho como fugir disso...
Mergulhou a cara nas mãos e entregou-se a um estado de desorientação tão
grande que beirava o desespero. Imaginou seu pai matando uma pessoa diante
de seus olhos, como aquele homem tinha feito. Imaginou-o correndo atrás dele
pelas ruas. Imaginou que, quando o pai morresse, ele também desapareceria sem
deixar um corpo. E ele sempre tinha sido assim. Toda a sua vida, Érico convivera
com ele e nunca havia suspeitado.
Em retrospecto, existiam várias pistas de que havia alguma coisa estranha
com seu pai. Pequenas coisas entravam nos eixos: a calma aceitação à sua
forte intuição, seu empenho em fazer com que Érico treinasse artes marciais
desde cedo, o fato de Daqshael nunca ter ficado doente, de ele treinar esgrima
quase todo o dia, embora nunca entrasse em uma competição, até mesmo
sua relutância em aceitar que o filho viesse morar na capital, por nenhuma
razão...
Érico nunca havia suspeitado de nada.
— Toda a minha vida...
Daqshael continuava esperando.
— Toda a minha vida, isso tem acontecido, e eu nunca soube de nada!
— O que é que eu poderia lhe dizer, filho?
— A verdade!
— Você percebe, filho, que teria sido pior assim?
— Pior? Pior! Pior do que não conseguir ter amigos por mais de seis meses
e nunca saber por quê? Pior do que passar a infância inteira achando que tinha
alguma coisa errada comigo? Pior do que passar o tempo todo com medo do
que eu poderia fazer com os outros, porque eu nem sabia o que é que acontecia
comigo? Pior do que isso?

53
Abascanto: a sombra dos caídos

— Filho...
— Toda a minha vida eu estava no escuro, pai! E você podia ter explicado
tudo! A qualquer hora! Caramba, houve vezes em que eu achei que era melhor
sumir do que arriscar falar alguma coisa que fosse machucar alguém! Você está
me entendendo?
Pai e filho se encararam por longos segundos. Érico desejava qualquer coisa,
qualquer reação do pai, exceto aquela plácida expressão de indiferença. Olhava
para seu pai e não o reconhecia mais. Pela primeira vez na vida sentiu que estava
completamente sozinho.
Daqshael ergueu-se lentamente, dizendo:
— Meu filho...
— Suma da minha frente!
Érico gritou com um desespero franco, uma solidão invencível.
— Saia da minha frente, pai! Deixe-me em paz!
Ergueu-se da cadeira e deu dois passos para trás. Acabou encostando-se à
parede e deixou-se cair ao chão, desnorteado o suficiente para não conseguir
mais ficar em pé.
Daqshael nunca tinha se acostumado inteiramente à gama de emoções hu-
manas. As sensações mais pesadas eram um mistério para ele. Transparecia uma
tranquilidade e uma serenidade que beiravam a indiferença.
Internamente, porém, estava mortificado. Seu filho havia dito a verdade. Sa-
bia que era a verdade. Até aquele momento, acreditara ter feito a coisa certa.
Não havia imaginado que o próprio filho tivesse passado por aquele sofrimento
de forma solitária. Não se culpava pelas decisões que tomara, porque realmente
acreditara estar fazendo o melhor, mas se compadecia da tristeza de Érico. De-
sejava poder invadir seu espírito e expurgar toda aquela raiva. Se não fosse o
abascanto de Érico, Daqshael teria feito exatamente aquilo e rompido com todas
as leis que o distinguiam de Sariel.
Mas a mente de Érico era inatingível, inacessível para Daqshael. Ele tinha de
se contentar em observá-la a distância, tão transtornado quanto o filho. Érico:
por ter sido enganado, por lhe terem negado a verdade. Daqshael: por não saber
o que fazer para consolar o rapaz.
Quando falou, Érico estava cansado de tanta raiva.
— O que é que eu sou?
Essa era a pergunta. Ele merecia uma resposta. Mas o que é que Daqshael
poderia lhe dizer? Nós somos o que nos tornamos por virtude de nossas ações. Não
importa o passado, a herança genética, a infância... Nós escolhemos o que vamos
ser a cada instante.

54
Uma conversa

Mas as pessoas neste mundo parecem convictas de que, sem conhecer seu pas-
sado, é impossível estabelecer uma identidade. Apegam-se aos acontecimentos de
outrora e se deixam definir por um rótulo. Não percebem a imensa liberdade de que
gozam a cada instante: a chance de ser o que quiserem.
Quando Érico perguntou: “O que é que eu sou?”, Daqshael sabia que o que o
filho queria, na verdade, era saber de seu passado, de sua formação, seus limites.
Queria se conhecer pelo relato do pai, porque, mesmo já sendo um jovem adulto,
definia-se sempre em comparação ao pai.
Daqshael inspirou. Tentaria ser sucinto. Sentou-se no chão em frente ao filho,
de costas para a outra parede.
— Você é meu filho. O filho de um grigori, eu, com uma humana mortal.
Existe um nome para isso: nephilim.
Ficaram se olhando. Érico estava à beira do desespero.
— E o que diabos significa isso?
— Você não é totalmente deste mundo, filho, e não é totalmente do outro,
de onde eu vim. Você transita nos dois. Fisicamente, você é humano, mas tem
capacidades que vão muito além. A sua forte intuição, por exemplo, é uma das
manifestações do seu poder inato.
— Meu poder inato?
— Você é muito forte, Érico. Não tanto quanto eu, que sou um grigori, mas
com certeza muito mais do que qualquer humano normal.
Érico olhou para o chão. Viu seu tênis e percebeu que o cadarço estava desa-
marrado. Ficou um bom tempo quieto.
— Custava ter me dito isso, pai?
— Filho... Existem muitas coisas acontecendo no mundo que podem colocar
você em imenso perigo. Existem vários grigori que querem ficar aqui, nesta di-
mensão, e fazer o que bem entendem. Aquele assassino que você viu, Sariel, é um
deles. Eles têm grupos, eles formam sociedades e maquinam o destino de países
inteiros. Eles jogam um jogo muito complexo, filho, e extremamente perigoso. Se
você começasse a procurar por essas pessoas, por outros nephilim, você poderia
facilmente se perder nas tramas deles.
Érico não estava convencido. Daqshael achou que o filho iria ter outra ex-
plosão de raiva, mas o rapaz se conteve: não tinha mais forças para se irritar.
Daqshael achou melhor usar o silêncio e se explicar mais.
— Você não sabe como essa gente é perigosa, filho. E, para eles, você seria
um peão a ser manipulado, mas um peão de ouro. Eles iriam fazer de tudo para
abusar da sua condição, ganhar sua confiança, te manipular, usar...
— Por quê? Que condição, pai?

55
Abascanto: a sombra dos caídos

— Sendo meu filho, sendo um nephilim, você nasceu com uma coisa chama-
da “abascanto”. É uma imunidade aos nossos poderes. Nenhum grigori pode te
afetar diretamente: ler sua mente, dirigir seus pensamentos, te jogar longe, se
ocultar de você, nada disso funciona. É por isso que você pôde ver a briga de
Sariel com Gadriel, quando ninguém mais viu. Isso te torna o espião perfeito
para os grigori, permite que eles se metam nos assuntos uns dos outros... E pes-
soas com abascanto são muito raras...
Érico baixou a cabeça, olhando levemente para o lado. Estava ponderando um
mar de pensamentos e emoções. Daqshael via um tornado de cores e emoções
na aura do filho. Sabia que eram questões que o jovem deveria responder por si
mesmo, mas a tentação, a vontade de lhe entregar todas as respostas era muito
grande... Ele mesmo nunca havia passado por aquilo, mas compreendia o estado
de Érico. Se ao menos ele pudesse dar ao filho uma resposta legítima, alguma
tranquilidade verdadeira... Mas, se não passasse pessoalmente por aquilo, Éri-
co não obteria nenhum resultado real com a experiência, e nenhum desejo de
Daqshael poderia lhe tirar isso.
Tudo é difícil neste mundo... Em que as almas não estão integradas, em que é
preciso se explicar com palavras, em que o tempo e o espaço são tão rígidos...
Resolveu complementar o silêncio do filho com uma nova explicação. Quem
sabe... Se ele compreender meus motivos, poderá aceitar melhor a situação...
— Érico, este não era o ambiente no qual eu queria que você crescesse. Eu
tentei te dar uma vida normal, filho. Tentei te dar uma família, uma boa criação.
Daqshael estendeu a mão para tocar Érico, mas este se ergueu, repelido pelo
ato. Cruzou os braços, como se estivesse abraçando a si mesmo, e andou até o
meio da sala. Havia dado as costas ao pai.
Mais uma vez, Daqshael desejou poder enfiar um pouco de serenidade goela
abaixo do filho. Érico tinha muito que digerir. Precisava de um tempo a sós.
Levantou-se e se virou calmamente em direção à porta. Érico, em um rom-
pante, perguntou:
— Aonde você vai?
Daqshael se voltou para o filho, mas não disse nada.
— Você vai enfrentar aquele outro grigori, Sariel, não vai?
Daqshael apenas acenou com a cabeça e continuou a se mover em direção à
porta.
Imensos transtornos dilaceravam a alma de Érico. Queria ficar a sós, queria
que o pai fosse embora dali, mas não queria que ele fosse confrontar um opo-
nente tão forte.
Engoliu o orgulho quando Daqshael virou o trinco da fechadura.

56
Uma conversa

— Não vai!
Daqshael suspirou.
— Eu tenho de ir, Érico. Sariel me viu com você. Ele pode me localizar muito
mais facilmente do que a você. Se eu der tempo a ele, você vai correr um perigo
maior ainda. Eu preciso agir antes que ele possa armar suas defesas.
Érico respirou duas vezes antes de continuar:
— Ele é muito bom, pai. Ele é um mestre do tai chi.
— Eu também sei me defender, filho.
Daqshael virou-se novamente para a porta. Érico deu três passos rápidos em
direção ao pai e agarrou-lhe o ombro.
— Não!
Daqshael observou a mão do filho por um segundo. Pousou sua própria mão
no ombro dele e disse:
— Proteja-se, filho. Espere por mim. Se eu não voltar, Kaliel vai chegar aqui
amanhã de manhã.
Havia um tom tão fatal na frase de Daqshael, que toda a energia escapou à
mão de Érico, agarrada ferozmente ao ombro do casaco do pai. Olhando-o nos
olhos, Daqshael ainda disse:
— E enquanto você pensa em sua vida, saiba que, de minha parte, eu peço
desculpas por não ter contado antes.
E saiu.
Daqshael sabia muito bem qual era o sentimento do filho naquela hora. Ainda
que não penetrasse em sua mente, viu-o na aura do rapaz com clareza absoluta.
Era corroído pelo desejo de dizer algo, de fazer algo que aliviasse aquele mo-
mento para o garoto, mas acreditava que também naquilo o filho tinha razão:
Érico precisava de um tempo.
Várias vezes antes ele já havia saído de sua casa rumo a uma missão que pode-
ria lhe custar a vida. Várias vezes, à noite, ele já havia deixado o filho dormindo e
partido para confrontar um oponente até a morte. Nunca antes, porém, ele o ha-
via feito com total conhecimento do filho, e nunca antes ele pudera dizer a Érico,
talvez não com palavras, mas com aquele pungente silêncio de determinação,
que era por ele que lutava.
Ainda que não fosse por mais nada, aquela conversa tinha valido a pena. Ele
ia ao encontro de Sariel, mas ao menos Érico sabia que Daqshael pensava nele
a cada instante.

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telefonemas
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Pensar na minha vida! Na minha vida! Era só o que faltava! Papai não pode
ter falado sério! Ele acabou de sair pra lutar com um sujeito que matou outro na
minha frente! A sangue frio! Acabou de me falar que veio de outra dimensão! Que
eu nem sou humano por completo!
Não... Ele só saiu por aquela porta porque eu estava abobado demais pra fazer
qualquer coisa... Caramba... Tem tanta coisa que ele não me disse! E eu deixei
ele ir embora!
Isso não vai dar certo... Alguma coisa vai acontecer hoje... Esse confronto dos
dois não vai acabar bem! Meu pai pode morrer hoje! Eu tenho que fazer alguma
coisa!
Me esconder... Ficar quieto... Pensar na minha vida... Claro...
Claro que não!
Mas, Érico... Centraliza, cara! O que é que você pode fazer contra esses sujeitos,
esses... sei lá... grigori? Quero dizer... Os caras são invisíveis! Entram onde querem,
fazem o que querem! Eles se matam no meio da rua sem a menor piedade!
Eles vêm de outra dimensão!
E não é só meu pai... Putz, minha tia também! Ela sabe de tudo!
Tá certo que eles tentaram me proteger. Tá bem... vá lá... eles vivem num mundo
bem diferente... Mas o que é que eu posso fazer? Como é que eu posso ignorar isso?
Será que meu pai ficou louco? Ele acha que vai sair pra se matar lutando com outro
sujeito desses, me falar pra ficar quieto e tudo bem?
Mas eu nem sei direito o que eu posso fazer! Até onde eu posso ir? Será que eu
posso ficar invisível também? Bom, ele mesmo falou que eu sou bem forte... Ou será
que tentar fazer essas coisas pode ser perigoso demais? Será que eu posso ficar louco
com isso? Caramba... eu não sei de nada!
Tá bom, Érico... Você não sabe de nada... Tudo bem... Tá tudo muito estranho
ainda, mas eu vou fazer alguma coisa, certo? Eu não vou deixar meu pai correr
para a morte sem estar do lado dele, certo?
Certo!

58
Dois telefonemas

Muito bem. Então, o que é que eu vou fazer?


Fez, então, a única coisa que poderia ter feito. Fez por puro costume, porque
era o que fazia quando precisava falar com alguém.
Ligou para a tia.
Kaliel atendeu no segundo toque.
— Alô?
— Oi, tia Ká.
— Érico, meu anjo! Feliz aniversário! Como você está?
E, com essas duas frases, ele já podia dizer: Aconteceu alguma coisa com ela
também.
— Tia... Aconteceu uma coisa...
— O que foi, querido?
— Tia... Eu vi umas pessoas se matando no meio da rua... E depois eu encon-
trei com o pai... E ele me contou...
Silêncio... Kaliel demorou a responder.
— Contou o que, Érico?
Érico também não sabia o que dizer. Queria falar com alguém sobre isso. Pois
bem, estava falando. Agora, o que diria?
Disse o que lhe veio à cabeça:
— Ele me contou tudo, tia. Contou sobre os grigori, os nephilim... Sobre
mim... Tudo...
Nunca antes Érico tivera a sensação de ter pegado a tia de surpresa. Putz... Ela
não esperava por isso... Kaliel, do outro lado, não dizia nada. Seguiu-se um silên-
cio inusitado. Quando ela finalmente abriu a boca, Érico ouviu uma das poucas
expressões de espanto que ela jamais soltou:
— Oh, céus...
E ficou muda. Pelo menos somos dois confusos aqui... Alguns segundos foram
suficientes para que Kaliel se recompusesse.
— Érico, querido, onde você está agora?
— Na sua casa, tia. A que eu nem sabia que você tinha.
— Érico, meu bem, eu estou voltando para o Brasil agora mesmo. Eu estou
em Paris, mas estou voando de volta. Assim que eu chegar, vou falar com você,
meu anjo.
— Vocês podem voar?
— De avião, Érico...
— Tia... O pai saiu... Ele foi enfrentar Sariel.
Mais uma expressão surpresa de Kaliel.
— Ele foi o quê?

59
Abascanto: a sombra dos caídos

Certo... por essa ela realmente não esperava...


— Sariel nos viu juntos. O pai falou que, se ele não o confrontasse agora,
seria pior...
Mais do que qualquer coisa que havia sido dita, a frase seguinte de Kaliel mar-
caria Érico por toda a vida:
— Ele deve ter ido para a festa da sua irmã...
Da minha irmã???
Será que ouvi direito?
Será que não há limites para as surpresas de um único dia?
Uma irmã! Eu tenho uma irmã!
E eles nunca me disseram! Eu sou filho de um cara de outra dimensão, eu sou
alvo de seres superpoderosos, e eu tenho uma irmã!
A tia Kaliel, a companheira Kaliel, a protetora Kaliel... Todas elas desaparece-
ram na mesma hora!
Uma irmã!
— Minha irmã?!
Novamente, silêncio de Kaliel.
— Érico... Meu Deus, querido...
Não houve mais conversa... Não depois daquilo. Não queria mais ouvir a voz
da tia por um tempo. Deixou que o nojo que sentia por toda aquela situação lhe
subisse pela garganta, guiasse seu braço, desligasse o telefone na cara de Kaliel.
Logo, seu telefone começou a tocar de novo, mas desligou o aparelho e o jo-
gou em um sofá distante. Mergulhou a cabeça nas mãos, talvez para ver se assim
conseguia colocar alguma ordem naquilo tudo.
O que mais falta acontecer hoje?
Mas falta. Falta alguma coisa acontecer, sim. Meu pai está indo matar um
cara... Na festa da minha irmã!
Agora! Isso está acontecendo agora! E eu tenho uma irmã!
Érico andava compulsivamente pela sala da casa. Não conseguia achar mais
nenhuma posição confortável.
Foi quando viu sobre uma cômoda, ao lado de outros objetos pessoais, o ce-
lular do pai.
Ele o deixou na casa de propósito ou o esqueceu no meio da tensão? Curioso,
já encadeando um plano, abriu o aparelho e verificou as últimas ligações feitas e
recebidas.
Muitas eram para telefones conhecidos. As duas últimas eram para um tal
de Edgar Gomes Carvalho. Pelo horário, a mais recente tinha sido feita havia
poucos minutos.

60
Dois telefonemas

Formulou uma desculpa. Um blefe. Mentir nunca tinha sido sua especiali-
dade, mas quem sabe... Não custava nada tentar e, mais confuso do que ele es-
tava, não poderia ficar.
Ligou para Edgar. Em poucos toques, o homem atendeu:
— Daqshael?
— Edgar, aqui quem está falando é Érico, eu sou o filho de Daqshael.
— Ah, certo. Daqshael me contou sobre você.
Claro... Só a mim ele não contou nada...
Érico inspirou fundo. Não sabia muito bem o que dizer, mas tinha que dizê-lo
logo. Não poderia transparecer hesitação.
— Meu pai está indo para a festa da minha irmã...
— Ah... Ótimo. E já não é sem tempo, eu digo.
— Ele só me pediu para confirmar o endereço.
É agora... Houve certa hesitação do outro lado, mas a resposta veio prontamente:
— É no Terraço Itália, Érico, na avenida Ipiranga, 344, 41o andar.
Ele hesitou... Será que percebeu meu jogo? Será que ele sacou que eu tentei enro-
lar ele, mas mesmo assim resolveu me falar onde é? Quem será esse cara?
Não importa... eu já tenho o que preciso...
— Érico... Se você está vindo, eu vou deixar seu nome na lista de convidados.
Ele está deliberadamente querendo me ajudar...
— Certo. Então, tá. Obrigado.
— Até mais, Érico.
Era isso. Tinha o endereço. Uma festa no Terraço Itália...
Partiu imediatamente. Não sabia muito bem o que iria fazer quando chegasse,
mas pensaria em algo até lá...

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DOLENTEM
CONSE DELES-
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Nas grandes cidades, já faz um tempo que as estrelas se cansaram de ficar gi-
rando no firmamento. Talvez por inveja, curiosidade, ou até por pena, elas saíram
de seu repouso eterno e resolveram descer. Hoje, ao olhar para o céu noturno em
uma grande cidade, não se veem mais estrelas. Só uma ou duas sobraram. Todas
foram se alojar nos prédios, nos faróis dos carros, nos postes das ruas.
As estrelas caíram... E ninguém percebeu.
Aos olhos de Sariel, Aline parecia deslizar por cima do céu. Caminhando con-
tra o fundo da parede de vidro do salão, ela pisava como se não tivesse peso so-
bre o tapete de estrelas formado pelas minúsculas luzes dos prédios abaixo. Seus
braços, sempre tão agitados, estavam se movendo de forma fluida. O rosto mo-
strava uma expressão de contentamento talhada a partir de seu espírito. Os olhos
brilhavam a cada convidado que cumprimentava, a cada presente que recebia.
Havia feito questão de uma decoração em branco para a festa, para ressaltar
as cores dos vestidos das amigas. Sariel pensou que ela mesmo usaria preto ou
vermelho, cores que sempre lhe caíram muito bem. Em vez disso, usava um ves-
tido também branco, com uma saia justa e um decote em V que deixava as costas
à mostra. Suas únicas joias eram dois brincos de brilhante — herança da mãe —,
um colar de ouro com pérolas — presente de noivado — e a aliança.
Mesclava-se ao fundo da decoração, o que apenas ressaltava o que tinha de
natural. Desprovida de cores berrantes, tinha o rosto como maior enfeite e o
sorriso como maior joia. Sariel não conseguia tirar os olhos da esposa. Aline, de
vez em quando, retribuía-lhe uma piscadela cúmplice e, mesmo separados pelo
salão, sentiam-se o tempo todo ao lado um do outro.
Aline acabava de cumprimentar sua prima, Carol, que havia chegado com o
namorado. Recebia os presentes com a maior naturalidade.
— Querida, parabéns! Espero que você goste. Eu e o Adriano ficamos a tarde
toda escolhendo um pra você!
— Ai, Carol, não precisava! Com certeza vou amar!
Caixa pequena, retangular, grossa... é perfume. Deus, eu estou cheia deles!

62
A festa

Quando o presente deixou as mãos de Carol, Aline virou-se de costas para


esconder o desgosto. Carol ajeitou o cabelo com as mãos enquanto estampava
um sorriso na sua fachada. Falou o que veio à cabeça:
— A festa já está pegando, hein?
Aline respondeu, olhando ao redor:
— E a banda, hein? Está atrasada!
— Seu pai me disse que eles tiveram um problema na estrada, mas chegam
logo. Você poderia começar a servir o jantar daqui a pouco para ocupar o pes-
soal.
— Acho que não. Há um certo charme em deixar as pessoas esperando. —
Piscou, marota, para a amiga.
— Pelo menos você não precisa se preocupar com isso por um tempo: parece
que todo mundo está se divertindo em uma ou outra rodinha até agora.
— Menos aqueles dois — Aline apontou Sariel e Belial, que conversavam,
sérios, em um canto da sala. — Eu te juro, Carol, eu ainda acho que meu marido
vai se matar de tanto trabalhar.
Carol olhou para onde a prima apontava, mas voltou-se novamente quando
Aline terminou o comentário, e disse:
— Quem, Aline?
— Sandro. Sandro e Bella — e apontou mais uma vez na direção deles.
Carol franziu a testa.
— Desculpe, Aline, mas não estou vendo eles. Onde estão?
— Ali, Carol, olha lá!
Carol olhava exatamente na direção que Aline apontava.
— Li, eles não estão lá...
— Como não? Ali, logo entre aquele sofá e aquele vaso.
Carol virou-se para ela com uma expressão enigmática. Parecia estar queren-
do forçar o riso, mas sem entender muito bem por quê.
— Li... Isso é uma piada? Eles não estão lá!
Aline arregalou os olhos. A dupla não poderia estar mais visível! Não havia
ninguém impedindo a visão de Carol. Sariel e Belial estavam conversando, sérios,
bem próximos um do outro...
Aline colocou a mão no ombro da prima, apontou precisamente naquela mes-
ma direção e disse:
— Ali, olha lá!
Carol passou um tempo com os olhos semicerrados, depois disse, sem virar o
rosto:
— É... Parece que tem alguém ali... Mas eu não tinha notado...

63
Abascanto: a sombra dos caídos

E, imediatamente, virou-se para a prima com uma expressão completamente


diferente, distraída:
— Bom, eu vou dar uma volta por aí. Até mais.
Saiu.
Aline ficou olhando a prima pelas costas, com um leve pensamento de preo-
cupação.
Meu Deus, o que é que aconteceu com ela? Ela estava brincando comigo? Por
que é que ela fingiu que não estava vendo Sandro e Bella?
É alguma brincadeira? Alguma peça de mau gosto? Tem alguém falando mal
de mim aqui?
Levou uma taça de espumante à boca. Não queria uma preocupação daquelas,
mas havia ficado muito confusa com o comportamento da prima... Procurou
pelo pai, mas não o achou. Como alternativa, resolveu conversar com seu marido.
Quando se virou para ele, viu-o saindo rapidamente do salão. Foi falar com
Belial, sua cunhada.
Espero que Sandro também esteja bem...

Sariel transitava calmamente pelo salão quando resolveu conversar com sua
irmã. Tinha se separado havia pouco de Aline, e ainda se admirava com o brilho
da esposa naquela noite. Uma qualidade superior a coroava: sua aura inteira bri-
lhava com uma luz coruscante, emanando, por onde passava, todas as virtudes de
sua personalidade.
Um quê de inocência estava sempre presente em sua esposa, uma certa can-
dura sincera que não se encontra mais neste mundo, que transcende camadas
sociais: uma coloração totalmente branca que permeava sua aura, especialmente
na cabeça. Aline era apaixonada pela vida. Admirava-se, aos vinte e três anos,
com as coisas mais simples: um sorvete gelado no verão, uma guerra de traves-
seiros à noite, contar estrelas no campo. Aquela criança reensinava Sariel a gostar
da vida a cada dia que compartilhavam. Havia encontrado na esposa exatamente
a pureza de propósito que o tinha feito ficar neste planeta por tanto tempo.
Encontrou Belial praticamente se atirando sobre um dos amigos de Aline, um
garoto de uns vinte anos, filho do dono de uma grande rede de farmácias.
Mas é incorrigível mesmo...
Belial rapidamente interrompeu a conversa quando o viu se aproximar. Tra-
java uma camisa branca e calça social marrom. Coisa que se compra em qualquer
esquina, mas os cabelos eram um rio de fogo desaguando em seus seios. A cara,
com o queixo levemente erguido, convidava avanços com um sorriso que, de tão
sutil, era subliminar.

64
A festa

Aos olhos de Sariel, era uma obscenidade.


— Eu vou te dizer, Bê, eu preferia você na corte de Luís XV. Seus modos não
eram tão...
— Francos?
— Descarados.
Belial sorriu.
— Sinais dos tempos, maninho. A gente precisa dançar conforme a música.
Você está bem esta noite.
— São noites como esta, Bê, que me relembram por que eu gosto deste lugar.
Percebeu, de súbito, que toda a aura da irmã mudou. Alterou sua caracter-
ística, sua forma, sua cor. Tornou-se muito parecida com a aura de uma gota
de chuva.
Belial havia erguido seu escudo. Não queria ser ouvida. Sariel acompanhou-a
e revestiu-se da insignificância de um grão de pó.
— Eu me preocupo com você, Sariel.
— Por que, minha cara?
— Por causa dessa sua conversa de “queria que houvesse um outro meio”, meu
irmão. Em breve, todas essas pessoas que você está vendo vão estar mortas e, se
você não começar a se afastar delas logo, vai sofrer mais do que qualquer um
quando nós soltarmos Deucalion.
Sariel apoiou uma das mãos em um dos pilares da parede de vidro ao seu lado.
— Isso não será um problema, Belial.
— Como você pode garantir que não, Sá?
— Porque, minha irmã, nós vamos viver para soltar Deucalion, mas não va-
mos viver para ver todos os seus efeitos. Os grigori jamais nos perdoarão por isso.
Os outros caídos também não vão nos deixar sair impunes. Nós seremos alvos
eternos. No instante em que soltarmos Deucalion, teremos as horas contadas.
Belial virou o rosto, em silêncio.
— Você sabia disso, Belial. Você sempre soube. Não venha agora querer tentar
remediar a situação. Esse passo já foi dado.
— Sariel...
— Belial, eu não tenho problemas com nosso objetivo, porque não sou eu
quem está tentando evitar as consequencias. Encare os fatos, Bê. Esta sempre foi
uma missão suicida. Não é por nós que estamos fazendo isto, é pelo mundo, é
pelo futuro deste planeta que nós mesmos não vamos chegar a ver.
Por um instante, Sariel achou que a irmã fosse chorar. Mas Belial voltou-se
novamente em sua direção, mais controlada do que ele supunha.
— Tem razão!

65
Abascanto: a sombra dos caídos

Observaram-se, quietos, por alguns segundos.


— Eu tive uma ideia, Sá. Acho que vai ser uma boa eu passar um tempo coor-
denando os cientistas em Sorocaba.
— Se você quiser, é claro que pode, mas por quê?
— Eu pensei, Sá... Eu estava estudando todos os relatórios sobre o funcio-
namento do cérebro que mapeamos ao longo desses anos... Tive uma ideia.
Muito simples. Na verdade, eu nem sei por que não pensei nisso antes. Acho
que posso influenciar uma mente de forma muito específica, para intensificar
as associações e a criatividade...
— Com que objetivo?
— Com o objetivo de aumentar o intelecto.
Sariel ergueu as sobrancelhas, com sincero espanto.
— Você acha que pode aumentar a inteligência dos mortais?
— Sim... Bastante. Andei fazendo isso com a minha secretária nesse último
mês, e o resultado foi muito bom mesmo.
— Hum... E você acha que pode fazer isso com todos os nossos pesquisadores
ao mesmo tempo?
— Não é um número muito grande... Eu tenho certeza de que posso manter
essa influência por alguns meses. E nem estaria infringindo nenhuma regra. Não
há nada que diga que não possamos melhorar os humanos com nossos poderes.
Sá... Se o tempo é o nosso imperativo aqui, temos que tentar.
— É, tem razão, Bê. Pegue o carro e...
Foram subitamente interrompidos por uma sensação, um sentimento que ap-
enas eles perceberam. Viraram repentinamente seus rostos para o mesmo lado,
como se alguém houvesse entrado na sala.
Foi como se acordassem no meio da noite com o som de alguém invadindo
a casa. Uma sensação de incômodo íntimo, como quando alguém faz uma per-
gunta indiscreta.
Alguém havia acabado de entrar na sua zona de influência... Um grigori estava
se aproximando.
— Só pode ser Daqshael.
— Eu vou pegá-lo.
— Você não tem chance, Belial. Ele é bom demais pra você. Eu vou, você fica
aqui tomando conta da Aline.
— Você trouxe suas espadas?
— Nestes dias, minha irmã, eu não saio de casa sem elas.
E não deu mais chance para conversa. Sem olhar para ela, saiu pela porta do
salão, em direção ao elevador.

66
A festa

Belial ficou olhando a saída de Sariel, preocupada, até que foi surpreendida
por uma pergunta de Aline, ao seu lado:
— Bella, aonde o Sandro está indo?
— Ah... Ele se lembrou de que havia deixado o celular no carro e foi pegar,
querida.
— Certo...
Olharam-se por um instante. Aline franzia a testa muito levemente.
— Algo errado?
— Você e o Sandro são muito discretos, sabia? Agora mesmo, a Carol quase
nem notou que vocês estavam conversando à vista de todos.
Que descuido...
Belial ergueu a sobrancelha esquerda dois milímetros e baixou seu escudo,
expondo sua presença à percepção dos mortais. No momento em que fez isso,
Aline franziu a testa.
— O que houve, Aline?
— Eu achei que... Deixa pra lá...
— Não, me diga!
— Por um instante, me pareceu que alguém tinha acendido mais uma luz
atrás de você.
Droga... Ela me percebeu baixando o escudo.
Belial abriu um sorriso.
— Eu acho melhor você cortar o espumante por um tempo, querida.
Aline sorriu.
— Tem razão... — e deixou a taça em uma mesa ao lado. Saiu para conver-
sar em uma roda de amigas, e Belial ficou a sós, preocupada com o irmão e a
cunhada.

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ACCUSTIS
Luta no
ACCUSTIS
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N
trigésimo
CULPA
DICIDIT T EES-
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DOLENTEM
quinto
DOLENTEM
DOLENTEM
CONSE andar
DELES-
AECATAMUS,
TATE CONESTRUM

Sariel pegou suas duas espadas, que ele havia deixado na chapelaria, como se
fossem um guarda chuva, andou até o elevador e apertou o botão.
Que besteira, eu não precisava ter apertado nada.
Concentrou-se em sua imaginação, nos olhos que sua mente abria apenas du-
rante os sonhos. Viu, como se fosse um produto da sua criatividade, que Daqshael
estava dentro do elevador que chegava.
Se ele chegar a este andar, eu e ele teremos de nos enfrentar na frente de
Aline... Isso não vai ser nada, nada bom.
Eu tenho que pará-lo, mas como? Abriu a mão em frente à porta do elevador e
focalizou sua atenção no mecanismo lá dentro. Imaginou todos aqueles componen-
tes mecânicos, que tinha estudado vinte anos antes, e deu-lhes um único comando:
Abram!
A porta deslizou para o lado, revelando o poço escuro do elevador. Sariel de-
sembainhou as espadas e pulou.
Caiu trinta metros até se chocar, sonoramente, com o teto do elevador.
Com a atenção ainda voltada para os mecanismos da porta que havia aberto,
ordenou-lhes que a fechassem. Uma porta de elevador aberta é sempre um perigo.
Começou a investir contra as cordas do elevador com suas espadas.
Daqshael havia entrado no prédio com a maior facilidade. Já teria sido simples
se fosse um prédio comum. Aquele, além do mais, estava aberto para a recepção
dos convidados: ele não precisou nem arrombar a porta. Nenhum dos guardas
ou recepcionistas notou sua entrada.
Quando apertou o botão do elevador, sentiu claramente que sua presença ha-
via sido percebida por Sariel, e que ele não estava só. Conforme o elevador subia,
percebeu a proximidade cada vez maior do oponente.
Quando passava pelo trigésimo segundo andar, o elevador todo tremeu. Al-
guém havia caído em cima dele.
Sariel vai tentar cortar a corda do elevador... Isso é péssimo, ele vai abrir o teto
e acabar comigo por cima.

68
Luta no trigésimo quinto andar

Com a maior calma, apertou o botão para o trigésimo quinto andar e esperou
o elevador parar sua subida e abrir a porta.
Tinha nas mãos duas espadas retas, com mais ou menos um metro e vinte de
lâminas prateadas. O cabo, com uma empunhadura que seguia o formato dos
dedos, era protegido por uma guarda em forma de V, de cor clara.
Saiu do elevador e deu com o pequeno hall de uma empresa, àquela hora
com o expediente já encerrado. Passou a mão próximo à fechadura de alumínio,
e a imensa porta de vidro deslizou para o lado. Entrou e caminhou calmamente
pelo lugar.
Uma sala ampla, com dezenas de estações de trabalho divididas por paredes
que chegavam à altura da cabeça, baias feitas de fórmica e espuma. Em cada
estação, via-se uma mesa em ângulo de noventa graus, abarrotada de objetos:
computadores, arquivos de alumínio, papéis, canetas, grampeadores, impres-
soras e mais um infinidade de outras pequenas coisas. Era um labirinto corpo-
rativo, e os curtos corredores da sala serpenteavam pelo lugar, como se nunca
tivessem sido planejados.
Ouviu o barulho distante de alguém caindo no piso do elevador. Virou-se
lentamente para a entrada do escritório. Deu de cara com Sariel que entrava.
Sariel estendeu a mão levemente e as luzes do local se acenderam.
Olharam-se os dois, armados, cada qual avaliando o oponente, esperando
uma abertura. Ambos, porém, eram mestres em sua própria arte: Sariel no tai
chi; Daqshael, em um estilo de kung fu chamado “Espada Dragão”. Nenhum deles
fez um avanço óbvio. Simplesmente pela postura um do outro, podiam perceber
a dificuldade da luta.
Daqshael tentou ainda uma abordagem diplomática:
— Desista, Sariel.
— Desculpe, Daqshael, mas eu não posso fazer isso.
— Ainda há uma chance, Sariel.
— Há mesmo? Por acaso você vai deixar passar a minha luta com Gadriel?
— Sua luta com Gadriel não é o problema. O problema é que você apagou a
mente de um mortal. Isso é proibido.
— Poupe-me da hipocrisia, Daqshael. Araquiel também apagou a mente de
um mortal no século XVI e vocês a deixaram viver. Não é por isso que você
veio me enfrentar.
Daqshael retrucou com silêncio. Sariel falou, divertindo-se com a própria ironia:
— Vocês acham que eu tenho um plano secreto. E acham que, me destruindo,
quando eu chegar do outro lado, não terei mais opção a não ser revelar tudo.
Toda essa história de “você apagou a mente de um mortal” é só um pretexto.

69
Abascanto: a sombra dos caídos

— O caso de Araquiel foi bem diferente, Sariel, você sabe disso. Clemente ia
expor os caídos e os grigori ao mundo. Ela apagou a mente dele para proteger
toda a sociedade.
— Proteger! Proteger? Não seja idiota, Daqshael. Proteger de quê? Se a hu-
manidade precisa ser protegida, é de si mesma! Olha só o que o homem fez
com a sua preciosa liberdade! Você acha mesmo que nos expor ao mundo seria
tão ruim assim?
— Eu concordo que o ser humano em geral precisa de uma correção de curso,
Sariel, mas não nos cabe esse papel! Eles conquistaram o direito de escolher o
próprio destino, mesmo que seja a sua destruição.
— Então... Você gosta tanto deles que vai deixar que eles se matem? Não te
parece contraditório?
— E você por acaso gosta tanto deles que quer lhes tirar a liberdade?
— Eles precisam ser impedidos, Daqshael!
— Aí é que você se engana, Sariel. Eles precisam é da nossa confiança. Ou você
já passou tanto tempo aqui que não pode esperar mais mil anos para ver como
essa situação toda irá se resolver?
Sariel baixou a cabeça sem tirar os olhos de Daqshael. Seu olhar assumiu uma
força glacial. Não gostava de ser relembrado dos preceitos que tinha abandonado
havia tanto tempo.
Daqshael ainda não havia terminado.
— Então... Não é sua imensa compreensão, Sariel, é a sua impaciência que
está por trás disso. Não é o seu desejo de ajudar, é a sua própria falta de respeito...
— Isso é tudo o que você tem a me dizer, Daqshael?
— Não tudo... Tem mais uma coisa.
Sariel espremeu os olhos. Suspeitava de algo. Daqshael preparou sua última
cartada, na tentativa de chegar a uma solução diplomática.
— Ela é minha filha, Sariel. Aline é minha filha.
Sariel baixou completamente a guarda quando ouviu aquilo. Esqueceu-se da
batalha iminente e ainda deu um passo adiante.
— Como é?
Se eu quisesse, poderia vencê-lo aqui mesmo, com essa surpresa.
— É o que você ouviu. Ela é minha filha. Quando eu descobri que ela tinha
nascido, já havia sido adotada pelos Gomes Carvalho.
Sariel abriu bem os olhos. Retomou lentamente sua posição de luta e disse:
— Ora, vejam só...
Droga! Não vai ser tão fácil! O que é que eu tinha na cabeça para achar que,
quando descobrisse isso, ele ia repensar seu plano?

70
Luta no trigésimo quinto andar

— E como você acha que sua filha vai se sentir quando souber que o pai matou
o marido dela?
— Não pior do que ao saber que o marido matou o pai. Se você a ama mesmo,
conte tudo a ela, e depois venha comigo. Não deixe que nenhum de nós mate o
outro: venha voluntariamente.
Por um instante, uma certa luz passou pelos olhos de Sariel.
Ele tem razão... Ela nunca vai se recuperar disso... A minha Aline vai sofrer mais
do que ninguém...
Abandonar a humanidade pela minha esposa? Deixar que o mundo inteiro se
mate... para eu poder ficar com ela?
Não seria ruim... Não seria ruim mesmo... Se também não fosse hipócrita. Ele
vem aqui e me fala de respeito, e dá as costas justamente a quem ele diz que quer
proteger! Não. Ficar com minha esposa e deixar o mundo se destruir... Isso é só mais
uma forma de egoísmo! Mesmo por ela, mesmo pela minha Aline... Não posso.
Talvez eu não a ame tanto assim, afinal... Mas não desvio do caminho.
Quando os olhares dos dois oponentes novamente se cruzaram, toda a dis-
cussão havia se encerrado. Daqshael leu o espírito por trás do olhar de Sariel e
compreendeu que o combate era, no final das contas, inevitável.
Pelo menos eu tentei.
Correram por um segundo, um em direção ao outro. Se encontraram no
corredor da empresa em uma nuvem de estampidos metálicos. Atacavam e de-
fendiam com ambas as mãos e procuravam ferozmente por uma abertura na
defesa do oponente.
Esse sempre foi o estilo de Sariel. Ataques tímidos, para medir a força do in-
imigo, e subitamente um único golpe certeiro. Daqshael havia se preparado para
aquela luta durante várias décadas, e Sariel não treinava com afinco havia bem
uns trinta anos. Eu não posso dar a ele a chance de avaliar a minha reação.
Daqshael investiu com uma sequencia de ataques encadeados, com mais rapi-
dez do que Sariel podia acompanhar. Suas espadas tornaram-se um borrão de
lâminas frenéticas. Sariel defendeu-se dos golpes por puro instinto, porque sentia
o movimento pouco antes da lâmina chegar a ele. No último ataque, deu uma
cambalhota em pleno ar e passou por cima de Daqshael.
Daqshael ainda tentou acertá-lo antes que chegasse ao chão, mas Sariel de-
fendeu o golpe no meio do salto. Quando caiu, rolou pelo carpete e deu mais um
pulo, que o colocou de pé sobre uma das divisórias entre as mesas de trabalho.
Daqshael havia corrido em seu encalço e não lhe ofereceu nem uma respira-
ção de descanso. Não poderia deixar que ele tivesse tempo para analisar sua téc-
nica de luta. Atacou antes que Sariel se recuperasse de sua última sua manobra:

71
Abascanto: a sombra dos caídos

outro encadeamento de golpes vindos de baixo. Sariel saltou para trás, pousando
em outra divisória. Daqshael também pulou em sua direção.
Correram, lado a lado, por cima das divisórias do escritório, trocando golpes
de espadas. Um deles teria de cair logo e, quando isso acontecesse, o outro teria
a vantagem.
Daqshael está desesperado! Eu nunca lutei com um grigori que me atacasse de
forma tão apaixonada. Parece um dos caídos lutando.
Percebeu, então:
Ele está protegendo alguém! Ou então ele realmente se importa com a própria
vida!
Será que ele ama tanto assim a humanidade, a ponto de se desesperar por ela?
Não, não parece... Há algo de muito pessoal nos ataques de Daqshael, mas o quê?
Quando estavam próximos à parede, Daqshael subitamente parou de cor-
rer. Sariel ainda deu dois passos antes de perceber que não era mais perseguido.
Quando se voltou para Daqshael, este saltou diretamente em sua direção, com as
espadas esticadas à frente. Sariel agachou-se para escapar da investida, mas, en-
quanto se esquivava do ataque, Daqshael contorceu o corpo todo e aplicou mais
um golpe — em pleno ar. Sariel saltou para trás, para escapar do ataque, e acabou
caindo no chão entre quatro estações de trabalho.
Daqshael caiu sobre ele com as espadas invertidas nas mãos. Ele vai me espetar
no chão! Sariel deu uma cambalhota para trás e ergueu-se no mesmo instante em
que Daqshael atacou o piso à sua frente e se recompôs da queda.
Estavam cara a cara. Um metro os separava, ambos desesperados. Sariel havia
lutado tempo suficiente para se apavorar com o oponente. Está há apenas vinte e
três anos na Terra, mas não é alguém para se subestimar...
Sariel realizou um ataque em falso por cima e um ataque-surpresa pelo lado.
Daqshael ignorou a finta e defendeu o ataque lateral com uma de suas espadas.
A outra, projetou-a em direção ao coração do adversário. Sariel virou o tronco
no último instante e sentiu o frio da lâmina de Daqshael lhe cortando o terno e
arranhando a pele.
Um ferimento! Depois de sete mil anos, eu encontrei um oponente à altura.
Talvez até mesmo melhor do que eu. Vou ter de usar algum subterfúgio para
conseguir a vantagem.
Algum truque sujo.
Quando Daqshael voltou a atacá-lo, uma saraivada de ataques repetidos, Sariel
saltou alto, agarrou um pedaço do teto e projetou-se para longe. Caiu no meio de
outras quatro baias vazias, separado de Daqshael por um labirinto de corredores.
Tempo, eu preciso de tempo para pensar!

72
Luta no trigésimo quinto andar

Daqshael estava se cansando. Não fisicamente, mas estava perdendo a paciên-


cia: não havia treinado para lutar em um ambiente tão poluído por paredes,
cadeiras e objetos em geral. Sariel usava o terreno irregular do escritório para
escapar de seus melhores golpes.
Precisava abrir espaço: equalizar o terreno.
No instante seguinte, todas as divisórias, arquivos, mesas e computadores que
os separavam voaram para o lado. Um caminho foi aberto à força entre eles. A
sala subitamente se transformou em entulho de materiais para escritório. Faíscas
saltaram de todos os cantos e estampidos foram ouvidos.
Sariel olhou para Daqshael, sem crer que um grigori causaria toda aquela
destruição para chegar a ele.
Não tem a menor classe...
Mas... Já que há agora duas pilhas de lixo na sala, melhor usá-las a meu favor.
Deu rapidamente três largos passos para trás, tentando se afastar de Daqshael,
que voltava a correr em sua direção.
Sariel esperou um segundo e fechou as mãos diante de si. Concentrou-
se em todo o material à sua volta, revestiu-se da sensação de que eles eram
uma extensão de seu corpo e ordenou que todos se projetassem em direção
a Daqshael. De repente, todos os escombros foram novamente puxados para
o centro da sala. Voaram na direção do grigori como se quisessem se vingar.
Daqshael foi soterrado por divisórias, mesas, computadores, arquivos e papéis.
Sariel só interrompeu seu esforço de concentração quando toda a sala formou
uma pequena montanha sobre o oponente.
Aquilo não bastaria para detê-lo. Debaixo daquela bagunça toda, Daqshael
estava são e salvo, dentro de um pequeno campo de proteção. Sariel, contudo,
não pretendia esmagá-lo. Com seu antagonista soterrado por um escritório
moderno, começou a empurrar mentalmente toda a pilha de lixo para a parede:
através da janela.
Vamos ver se ele sobrevive a isto!
Cercado como estava por ferragens retorcidas, alguma delas iria irremediavel-
mente perfurar seu corpo.
Três janelas do Edifício Itália explodiram com uma enxurrada de pedaços de
escritório. Sariel manteve a concentração durante todo o tempo, empurrando
todo e qualquer objeto a seu redor janela afora, até se ver em uma sala vazia.
Alice Caldas deu a partida em seu carro, pensando no que faria para o jantar
ao chegar em casa. Seu ex-marido finalmente havia assinado os papéis do divór-
cio. Fazia três anos que ela não queria mais olhar para a cara do sujeito e, mesmo
assim, tivera de aguentar os telefonemas, as perseguições, os pedidos de descul-

73
Abascanto: a sombra dos caídos

pas... Toda uma ladainha calculada para que ele pudesse aplicar mais uma de suas
chantagens emocionais. Por duas vezes ela havia lhe dado outra chance, mas não
cometeria mais o mesmo erro. Uma hora é preciso dizer chega.
Notou mais uma vez que a luz do indicador de combustível estava acesa, sinal-
izando um tanque vazio. Estava quebrado. Ela havia acabado de colocar gasolina
no carro. Deveria mandar consertar logo aquilo, porque, qualquer dia desses,
acabaria parando no meio da rua. Mas, se juntasse o problema aos pequenos
barulhos que o carro fazia, a dificuldade de engatar a terceira marcha, os seis ou
sete amassos na lataria... A conta do mecânico sairia bastante gorda. Precisava,
antes, terminar de pagar as prestações do carro.
Pensava no trabalho que teria de realizar no dia seguinte quando foi fechada
por um ônibus que disparou na sua frente ao abrir do farol. Por pouco evitou
mais um arranhão na pintura.
A princípio, quando ouviu o primeiro estrondo, não entendeu direito o que
era. Parecia um rojão estourando bem próximo, um fogo de artifício. Poderia ser
uma batida de carros, mas não houve freada alguma.
Nos estrondos que se seguiram, percebeu que alguma coisa estava errada. Mas
ainda não podia dizer o que era.
Um segundo depois, toda a encruzilhada à sua frente foi bombardeada por
escombros. O ônibus que segundos antes a havia fechado foi atingido por uma
sequencia de paredes de gesso e cadeiras, e dobrou-se com o impacto. Alice viu
as faces confusas das pessoas dentro do coletivo, sem saber o que acontecia, apa-
voradas com o teto que descia sobre elas.
A seu lado, um carro foi atingido por uma cadeira caída do céu. O vidro fron-
tal foi completamente estraçalhado; do motorista, ela nada viu.
Freou instintivamente seu carrinho econômico enquanto, a seu redor, outros
veículos eram vítimas de uma chuva de objetos de escritório. Gritou, sem pensar
no que acontecia ou no que faria. Seu grito foi uma chave que acionou a histeria
das pessoas a seu redor.
Agora, uma dezena de carros estava freando. Mais material de escritório caía
naquele cruzamento. Um veículo importado, à sua frente, foi pego em cheio por
um monitor de computador, uma divisória de alumínio e ferragens.
No outro lado do cruzamento, as pessoas corriam desesperadas. Uma mulher,
agarrando a bolsa irracionalmente, foi soterrada por um conjunto de cadeiras e
mesas.
Não saberia dizer com precisão quando começou a chorar convulsivamente.
Não podia acreditar no que via. Não poderia nem mesmo descrever o que estava
acontecendo quando a polícia chegasse mais tarde. Era testemunha do impossível.

74
Luta no trigésimo quinto andar

Lembrou-se de um panfleto distribuído nos aviões, no qual aparecem pas-


sageiros abraçando as próprias pernas, indicando uma posição segura em caso de
acidente. Porque não tinha mais nenhuma outra ideia do que fazer, agachou-se
no banco e colocou a cabeça entre as coxas.
Ouviu ainda vários estrondos, gritos e sons de coisas sendo esmagadas, coisas
nas quais ela não queria mais pensar. Não sabia o que fazer além de chorar.
O teto de seu carro envergou com um forte impacto, e ela sentiu todo o veí-
culo pender para o lado. Se não estivesse agachada, não teria mais cabeça.
Então... Silêncio. Ouviu, calada, choros que lhe pareceram distantes. Mesmo
os gritos desesperados vindos de fora de seu carro eram muito abafados perto do
som dos impactos de poucos segundos antes.
Tateou a porta e descobriu, surpresa, que ainda era possível abri-la. Esgueir-
ou-se para fora do carro, tremendo.
Estava em uma zona de guerra. Um ônibus tombado à sua frente. Carros
destroçados, escombros por todos os lados. Pessoas saíam dos veículos, atônitas,
incapazes de agir.
Alice olhou para cima, tentando entender o que tinha acontecido, de onde
vieram todos aqueles equipamentos, mas nada via. Na escuridão da noite, nem
mesmo a janela quebrada do trigésimo quinto andar era visível do chão.
Nunca entenderia direito o que ocorreu. Sonharia com aquela noite ainda por
vários anos. Com o horror daquela cena, com o impacto na vida daquelas pessoas.
Lembraria daquele momento como um dos principais pontos de virada de
sua vida, porque, no meio de toda aquela histeria, entre os mortos, feridos e
chocados, Alice foi tomada por uma determinação inteiramente nova. Sem nem
mesmo saber o que fazia, para onde ir, como agir, lembrou-se de seu curso de
enfermagem, nunca terminado, e correu em direção ao ferido mais próximo.
Mergulhou em um trabalho desprovido de pensamentos: havia apenas ela e
pessoas a serem ajudadas. Chegaria em casa apenas na manhã seguinte. Não co-
meria nada por várias horas. Naquela noite, não foi apenas seu carro o atingido:
foi um pedaço de sua alma. Uma lente que havia em seus olhos, escurecida pela
amargura, foi despedaçada. Quebraram-se internamente mais de sete anos de
uma vida desprovida de clareza. Foi remetida aos propósitos da adolescência, os
quais nunca mais largaria.
Quando acabou de esvaziar o escritório, Sariel correu para as janelas escan-
caradas, na tentativa de ver o corpo de Daqshael se desfazendo em luz. Viu o lixo,
carros, pessoas correndo e gritando, mas nenhum sinal do seu oponente.
Mas ele ainda está aqui! Eu o sinto! Ele não está morto! Está até bem perto.
Onde ele está?

75
Abascanto: a sombra dos caídos

Teve a presença de espírito de olhar para cima e viu Daqshael escalando o


edifício por fora!
O maluco está indo para a cobertura, para a festa de Aline...
Não poderia escalar o edifício atrás dele. Isso o colocaria em uma posição
totalmente vulnerável quando chegasse ao topo, onde seu oponente estaria espe-
rando. Precisava subir ao terraço pelas escadas.
Vai ser impossível explicar isto para Aline...
Érico havia chegado ao Edifício Itália poucos segundos depois de seu pai en-
trar no elevador. Quando estava a caminho, o taxista que o levava havia resolvido
parar em um sinal que acabara de ficar amarelo, ao invés de se apressar e passar
no último instante. Só por isso os dois não se encontraram no saguão.
Quando chegou aos elevadores, viu que um deles já estava subindo, passando
pelo vigésimo andar.
Meu pai está ali.
Érico estava chegando ao último andar quando a janela do trigésimo quinto
explodiu e todo aquele entulho caiu no chão.
Nunca entenderia direito o que havia acontecido naquela encruzilhada en-
quanto estava na festa da irmã...

76
DDOO LL
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DOLENTEM
Confronto
DOLENTEM
DOLENTEM
CONSE DELES-
AECATAMUS,
TATE CONESTRUM

As poucas pessoas que notaram a entrada de Érico na festa pensaram que se


tratava de mais um garçom que chegava para o trabalho. Nunca antes ele havia
entrado em uma festa daquelas, onde o que qualquer uma das garotas usava nas
orelhas e nos dedos custava mais do que a casa de seu pai juntos.
Mauricinhos e patricinhas... É aqui que minha irmã está? Os convidados o
mediam de cima a baixo. Revidava os olhares encarando cada um deles com uma
revolta incontida. Tinham dinheiro, ele não. Podiam gastar uma fábula em um
brinco, ele tinha que trabalhar o mês todo por bem menos.
Havia chegado. Muito bem, e agora?
Antes que pudesse dar na vista, procurou um canto reservado da sala e pegou
o celular do pai. Ligou novamente para Edgar.
— Sim?
Quando Érico o ouviu atender a ligação, começou a correr os olhos pelo salão
em busca de uma pessoa que estivesse usando o celular.
— Edgar, sou eu, Érico.
— Érico, você chegou antes de seu pai.
Ali estava ele. Perto de uma parede. Aparentava sessenta anos, usava um
terno cinza, tinha cabelos e olhos negros e parecia estar em forma. Pode-
ria ser qualquer pessoa da festa: nada de mais o destacava. Era até mesmo
modesto, perto dos outros convidados. Edgar também começou a procurar
por Érico no salão, mas, quando percebeu isso, Érico retraiu-se um pouco
mais em seu canto.
— Eu vim falar com a minha irmã.
— Isso não é uma boa ideia, Érico...
Talvez não fosse... Mas, quando disse isso, Edgar não conseguiu deixar
de olhar em direção à filha. Érico seguiu sua expressão até ver sua irmã pela
primeira vez.
Deveria tê-la reconhecido imediatamente! Era a sua cara! Ali estava sua
própria imagem, na versão feminina.

77
Abascanto: a sombra dos caídos

Desligou o telefone, sem prestar muita atenção, enquanto contemplava a irmã


por alguns segundos. Loira, tinha longos cabelos ondulados que, obviamente, ela
devia ter herdado da mãe. Também tinha olhos verdes, o mesmo tom de pele,
sorria como Daqshael e se movia como o próprio Érico. Quando ela ajeitou o ca-
belo com uma das mãos, ele percebeu que até mesmo esse trejeito era igual neles.
Sorria com naturalidade, andava com suavidade, falava com maciez.
Ela é minha irmã! Ela é a vida inteira que eu nunca soube que tinha!
Érico correu em sua direção. Aline, cercada de três amigas, foi surpreendida
quando ele tocou em seu ombro. Toda a conversa daquela rodinha parou, e Érico
viu-se no centro das atenções.
Só tinha olhos para Aline. Sua irmã virou-se para ele, surpresa, avaliando-o
com curiosidade, e disse:
— Sim?
Érico hesitou por alguns segundos. Mediu-a de cima a baixo e nem percebeu.
Não pensou para falar:
— Meu nome é Érico. Eu sou seu irmão. Seu irmão de verdade.
A taça de Aline quebrou-se no chão. Todo o ambiente silenciou para ela. Um
abismo se formou em seu peito. Sua boca se entreabriu em um meio suspiro
interrompido que ela nem percebeu exalar. Acendeu-se em seus olhos um fogo,
uma gana que ela nunca imaginou ter.
Todas aquelas perguntas que jamais foram feitas, todas as respostas que ela
tinha tomado tanto cuidado para achar irrelevantes... Toda a vida que poderia
ter levado se não tivesse sido adotada... Tudo isso veio à tona em três segundos.
As expressões dos irmãos eram praticamente o espelho uma da outra.
Aline levou a mão à boca sem se dar conta disso.
Só naquele instante... Só ali ela percebeu o imenso vácuo de identidade que se
preenchia. Vinte e três anos ela vivera sem saber de onde vinha, de quem descen-
dia, o que tinha havia herdado. Vinte e três anos sob a sombra de pais que não
a amaram o bastante. Vinte e três anos debaixo de uma história subliminar que
nunca seria contada. Vinte e três anos nas trevas, e ela nunca havia percebido.
Havia aprendido a amar Edgar, o homem que a tinha criado, como seu ver-
dadeiro pai. Havia adorado Luzia, a falecida esposa de Edgar, como se fosse
realmente sua mãe biológica. Em seu coração, adorava aquelas duas pessoas
mais do que quaisquer outras. Ao longo do tempo, havia acreditado que isso
lhe bastava.
Tinha escondido de si mesma a incerteza de sua origem, abafado o vazio
daqueles pais que a deixaram escapar e construído para si um mundo no qual
eles não tinham mais importância.

78
Confronto

Esse mundo implodiu naquele instante.


Meu irmão! Eu tenho um irmão!
Não passou pela sua cabeça que aquilo pudesse ser uma mentira. Não lhe
ocorreu interrogar aquele rapaz que a tomava pelo braço. Aceitou o que Érico
tinha dito como verdade, sem jamais questioná-la.
Ela também via em Érico a mesma semelhança.
Só o que pôde fazer em seu estado atônito foi tocar a face do irmão e dizer:
— Oh, Deus!
Sem o menor pudor, sem a menor restrição, chorou silenciosamente ali mesmo.
Érico, porém, foi arrancado do contato com a irmã por uma mão bem mais
pesada que a dela. Edgar o havia puxado.
— O que você acha que está fazendo, garoto?
Uma outra voz firme e sedosa se ergueu:
— O que é que está acontecendo aqui?
Uma mulher alta, cabelos longos e lisos, que lhe caíam até o peito, se inter-
pôs entre o trio. Poderia passar por um garçom, pela roupa que usava, mas cada
curva daquele corpo exalava uma sensualidade contida, uma promessa erótica
bastante subentendida. Seus olhos amendoados penetraram Érico como se o de-
vorassem, curiosos e intensos, convidativos e fatais.
Aline reconheceu Belial na hora.
— Quem é você, rapaz? O que é isto?
Belial e Edgar olhavam para Aline e Érico. Aline só via Érico. Érico não sabia
mais o que fazer. Repetiu o que dissera:
— Eu sou Érico. Eu sou o irmão dela!
Belial pendeu a cabeça para o lado, emanando uma surpresa controlada. Ed-
gar levou a mão ao rosto em clara desaprovação.
Os quatro foram surpreendidos por Sariel. Entrou na sala correndo, carre-
gando suas espadas, com a camisa cortada e ensanguentada pelo golpe recebido.
Correu pelo salão. Não percebeu Érico: andou obstinadamente em direção a uma
das lâminas de vidro da parede e, quando se aproximou, estendeu a mão. O vidro
explodiu para fora, e ele saltou para o terraço.
Aline reconheceu o esposo. Belial reconheceu o irmão. Edgar reconheceu o
genro. Érico reconheceu o assassino.
Ninguém mais o viu.
Quando viu Sariel saltar de uma parede que aparentemente havia se quebrado
sozinha, Aline deu dois passos para trás.
— Ah!
Belial não conteve seu desgosto:

79
Abascanto: a sombra dos caídos

— Ah, droga!
Edgar fez de conta que não tinha visto nada. Érico se desvencilhou dele, indo
em direção à parede de vidro quebrado.
Logo abaixo, no terraço do edifício, Sariel e Daqshael observavam um ao
outro com concentração total.
Aline chegou, colocando-se ao lado de Érico. Vendo a cena, disse:
— Sandro!
Érico acompanhou aquela emoção:
— Pai!
— Pai?
— Aquele homem é meu... É nosso pai!
Aline arregalou os olhos e não conseguiu mais tirá-los da cena. Seu marido e
seu pai, ambos portando espadas, prestes a lutar. Agarrou a mão de Érico, e ele se
assustou mais com aquele toque firme, pequeno e macio, do que com o encontro
de seu pai e Sariel. Virou-se rapidamente para Aline e, por um instante, os dois
cruzaram olhares. Érico segurou a mão da irmã entre as suas e disse:
— Não se preocupe. Papai sabe lutar muito bem.
Os olhos de Aline cresceram até engolirem todo o seu rosto.
— Mas ele... Aquele homem é meu marido.
— O quê?
Minha irmã é casada com o assassino!?
Nenhum deles deu pela ausência de Belial.
Os convidados olharam para a parede quebrada e soltaram comentários de
surpresa. Quando Aline e um garoto estranho correram para a borda: expressões
de espanto. Todos se afastaram do local sem entender direito o que havia aconte-
cido. Ninguém sabia dizer como a janela tinha se quebrado.
Daqshael olhou de relance para a parede de vidro e, ao ver os dois filhos, jun-
tos, soltou um furioso:
— Érico!
Sariel percebeu qual era o motivo do desespero de Daqshael. Quem ele estava
tentando proteger. Seus filhos... Seus dois filhos.
Quem diria... esse garoto é filho dele...
Daqshael olhava o casal de filhos, absorto pela visão dos dois juntos, com a
guarda totalmente aberta. Sariel, aproveitando sua distração, investiu contra ele.
Deu dois passos para trás, aparando vários ataques seguidos. No último instante,
usou a ponta da espada para empurrar a arma de Sariel para o lado e passou pela
lateral do oponente, revidou com um ataque fluido pelas costas. Sariel, sem ver
o ataque, girou uma de suas espadas por cima da cabeça e defendeu o golpe por

80
Confronto

instinto. Virou-se na direção de Daqshael, encadeando dois aparos para evitar


mais uma investida.
Aline não se conteve:
— Ai... Não!
Se Érico não a estivesse segurando, ela teria se jogado no terraço.
Sariel abaixou todo o seu corpo e se projetou para dentro da zona de defesa
de Daqshael. Atacou-o de baixo para cima, tentando estocar-lhe o peito com
suas espadas.
Foi a mesma manobra que Érico o vira realizar contra Gadriel. Foi como ele
o vira matar. O rapaz só teve tempo de abrir a boca e tentar um grito de aviso.
Daqshael escapou dos dois ataques de Sariel com um simples passo para trás.
As espadas do inimigo se cruzaram a poucos centímetros de seu corpo. Os dois
ficaram cara a cara, separados por menos de um palmo. Daqshael investiu contra
Sariel com duas estocadas que chegaram bem perto. Sariel foi obrigado a se des-
vencilhar do combate corpo-a-corpo para se esquivar do ataque.
Edgar, vendo a filha parada ali, tão próxima à janela quebrada, ignorou o fluxo
de pessoas que saía da sala e correu em sua direção.
Aline sentiu a mão do pai pegando a sua.
— Aline, querida, saia daí!
Aline virou-se para o pai e disse, à beira do descontrole:
— Pai, pelo amor de Deus, faz alguma coisa!
— Vamos, Aline, é perigoso ficar aí. Estão abrindo um outro salão para os
convidados.
Edgar olhou de relance para a dupla que lutava. Fitou a filha. Aline, confusa,
ainda apontou para a luta e disse:
— Pai, eles vão se matar!
Edgar não tirou os olhos dela. Prendeu sua atenção com o mesmo olhar que a
capturava quando ele lhe dava uma bronca.
— Querida, é perigoso ficar aqui, vamos sair.
Érico os interrompeu:
— Ele não pode ver nada. Ninguém pode ver essa luta. Só nós! Porque nós
somos filhos dele.
Aline olhava ora para Edgar, ora para a luta, ora para Érico, já completa-
mente perdida.
À sua frente, Daqshael investia ferozmente contra Sariel, forçando-o a as-
sumir uma posição cada vez mais defensiva. Obrigou-o a dar três passos para
trás e evitar uma nova investida. Sariel procurava, com ataques simulados, al-
guma abertura na defesa do adversário. Sentiu que havia chegado ao parapeito

81
Abascanto: a sombra dos caídos

do terraço, e mesmo assim Daqshael avançava, forçando-o a ficar no limite de


uma queda vertiginosa.
Aline perdeu a força nas pernas. Apenas o abraço do pai a sustentou. Estendeu
as duas mãos em direção à luta e repetiu:
— Eles vão se matar...
O próximo ataque de Daqshael teria sido fatal, mas Sariel saltou por cima de
suas espadas e percorreu quatro metros em pleno ar antes de cair bem atrás dele.
Érico já mal podia acreditar na luta. Nunca tinha visto acrobacias tão impossíveis.
Aline estava paralisada. Edgar tentava levá-la para dentro da sala, mas ela se
agarrou à beirada da janela. Tinha de presenciar aquilo. Eram seu marido e seu
pai! Sabia que deveria ter corrido, mas não conseguia tirar os olhos de cima deles.
Repentinamente, passou pelo casal de irmãos uma outra pessoa, que saltou
impulsivamente para o terraço. Belial, carregando também uma espada.
Daqshael agora tinha dois oponentes à sua frente. Sariel não escondeu uma
expressão de desgosto e disse:
— Saia daqui, Belial! Não se meta! Se eu morrer aqui, você vai ter de salvar
Deucalion.
Belial, sem tirar os olhos de Daqshael, respondeu:
— Você precisa de mim, Sariel. Sozinho, nem você pode com ele.
Daqshael posicionou-se entre os dois oponentes de modo que apenas um o
pudesse atacar por vez. Estava atento. Érico percebeu que a entrada de Belial na
luta não tinha abalado a postura do grigori: Apenas intensificou sua concentra-
ção.
Por um brevíssimo instante, pai e filho se olharam.
Desde que Daqshael descobrira que tinha um filho, vinte e dois anos antes,
uma grande dúvida sempre o tomava. Desde a primeira vez que havia segurado
Érico no colo, quando o ser de outra dimensão sentiu o que todo o pai deste
mundo sente, quando percebeu que faria qualquer coisa para proteger aquele
pequeno ser, desde então havia uma grande questão em sua vida.
Seria ele capaz de sacrificar Érico para salvar sua missão? Ou seria capaz de
sacrificar sua missão para salvar Érico?
E nunca soubera a resposta. A preocupação corroía seu espírito. Tinha acom-
panhado o crescimento do filho sem jamais deixá-la transparecer. Havia sorrido
com ele, chorado com ele, levado-o aos jogos da escola e estudado geografia com
ele, para que não repetisse de ano, e o tempo todo, a dúvida era o ponto central
de sua vida.
Uma preocupação que o acompanhara todos os dias de sua vida nos últimos
vinte e dois anos.

82
Confronto

Era um dos principais motivos de ter ocultado a verdade do filho. Não queria
ter de optar. Não queria ter de encarar o fato de que talvez fosse necessário sacri-
ficar Érico por um bem maior.
Quando ele viu Érico e Aline juntos, seu olhar já bastou para que o filho per-
cebesse a ordem clara:
Saia daqui!
Mas Érico não pôde. Seu olhar também respondeu o do pai:
Sozinho eu não saio.
Edgar ainda abraçava Aline. Tentava levá-la para dentro da sala, mas um im-
pulso muito maior a impedia. Desvencilhou-se dele e, desesperada, agarrou o
braço do irmão e implorou:
— Ai, faz alguma coisa!
E esse pedido era tudo de que Érico precisava.
Meu pai não vai conseguir lutar contra dois oponentes destes!
Não sabia o que poderia fazer, mas não iria ficar apenas olhando. Ajudar seu
pai subitamente havia se tornado mais importante do que qualquer pensamento
em relação a sua própria segurança.
Olhou ao redor, para ver se havia algo que pudesse utilizar para ajudá-lo. No
salão, as pessoas se retiravam do recinto, comentando em tons baixos como a
parede havia quebrado. Entre todos os figurões que estavam na festa, percebeu
a presença discreta de um ou outro segurança que auxiliava os patrões a sair
do local.
Um deles, Érico viu, tinha uma arma no coldre.
Belial e Sariel saltaram em direção a Daqshael em um duplo ataque frontal: ao
mesmo tempo, por cima e pelos flancos.
Daqshael contorceu o corpo em meio à investida dos dois e, enquanto as lâmi-
nas inimigas passavam rentes a seu corpo, tirando pedaços de sua roupa, suas
duas espadas encontraram os oponentes, atingindo-os em cheio.
Érico correu em direção a um dos seguranças. Não pensou duas vezes no que
ia fazer: formulou em sua mente um plano de ação e o pôs em prática.
Nenhum dos golpes de Daqshael foi fatal. Sua posição incômoda impediu um
ataque com força suficiente para atingir um órgão vital, mas Sariel e Belial senti-
ram as estocadas e foram surpreendidos ao ver que seu inimigo, sozinho, poderia
ser páreo para os dois juntos.
Érico chegou ao seu alvo pelo lado e surpreendeu-o completamente. Aplicou-
lhe no pescoço um soco que deslocou a traqueia do homem e o nocauteou ime-
diatamente. As pessoas ao redor, percebendo aquela violência, começaram a se
afastar do rapaz. Outros seguranças se aproximaram dele.

83
Abascanto: a sombra dos caídos

Érico foi rápido: antes que sua vítima caísse ao chão, abriu o coldre por dentro
do casaco do homem e retirou a arma. Sem prestar a menor atenção aos outros
seguranças, correu novamente em direção à janela.
Daqshael acabara de se desvencilhar de outro ataque conjunto da dupla de
oponentes. Antes, quando lutara apenas com Sariel, o caído estivera totalmente
concentrado na defesa. Com Belial para ajudá-lo, Sariel estava mais confiante.
Havia agora várias aberturas em seu ataque, que Daqshael começava a explorar,
e pouco a pouco ia ganhando terreno contra ambos.
Érico ignorou completamente os gritos de “Parado!”, “Solte a arma!”, “Peguem
ele!”, proferidos às suas costas. Quando chegou à janela, saltou para o andar abaixo.
Parecia um salto tão simples quando executado por Sariel ou Belial... Érico,
porém, caiu com grande impacto no terraço de concreto e sentiu que deslocou o
pé, arranhou a perna e o braço no chão. Por pura sorte não caiu em nenhum dos
cacos de vidro que povoavam o local.
Ergueu-se com dificuldade, seu corpo todo doía, sentiu a perna esquerda,
mas ainda encontrou concentração suficiente para destravar a arma e apontá-la
mais ou menos na direção da luta. Estava a cinco metros do combatente mais
próximo. Belial.
Quando viu Érico apontar a arma para Belial, Daqshael gritou:
— Érico, não!
Érico atirou uma vez contra Belial, que estava totalmente de costas para ele.
Errou o tiro e, com o estrondo, os três lutadores lhe dedicaram um breve olhar.
Sariel e Daqshael imediatamente tornaram a se encarar, mas Belial continuou a
encará-lo de frente.
Atirou mais três vezes na direção dela. Errou os três tiros. Viu um vaso atrás
de Belial se partir com uma bala que deveria ter passado muito rente ao corpo
da mulher.
Aline gritava:
— Não! Não! Parem! Alguém! Pelo amor de Deus! Faz alguma coisa!
E parecia que ninguém mais a estava ouvindo. Todos a ignoravam agora. Ed-
gar havia saído dali quando ela se desvencilhara dele, e Aline não mais o via por
perto. Meu Deus! Será que estou louca? Isto não pode estar acontecendo!
Sariel atacou novamente, mas Daqshael saltou por cima dele e colocou-se en-
tre ele e a irmã. Érico descarregou a arma em Belial.
Nenhum tiro a atingiu.
Não é possível! Eu não posso ser tão ruim assim! Foram pelo menos oito tiros
naquela mulher, e nenhum deles sequer tinha lhe rasgado a roupa. Belial abriu
um sorriso triunfal e correu em direção a Érico. Ergueu uma espada medieval,

84
Confronto

empunhada com as duas mãos. Érico, instintivamente, colocou-se em posição


de defesa.
Contra um oponente usando uma arma branca, lutar desarmado é quase sem-
pre a derrota certa. Érico viu que poderia muito bem morrer ali!
Daqshael cessou todos os ataques e assumiu uma postura totalmente defen-
siva. Sariel, acreditando que Daqshael se sentia em desvantagem, envolveu-o em
uma núvem de lâminas e cortes no ar. Daqshael aparou os ataques de forma
mecânica, enquanto concentrava sua energia em um ponto no meio do peito. Fo-
calizou toda a força que tinha, toda a sua intenção e poder no meio dos pulmões.
Belial investiu sobre Érico com um ataque, cortando de cima para baixo. Érico
reagiu por instinto, dando um passo para o lado. Quando a espada de Belial, com
um silvo, cortou o ar próximo ao ouvido dele, Érico acertou-lhe um soco no lado
esquerdo da virilha. Concatenou um segundo soco, que a acertou na nuca, e um
terceiro no queixo.
Um ataque como aquele seria suficiente para nocautear a imensa maioria das
pessoas. Havia mirado e acertado onde pretendia. Belial, porém, deu apenas um
passo para trás, colocando-se novamente à frente dele. Parecia não ter sentido
nada.
A mulher é de ferro!
Sariel percebeu o fluxo de energia de Daqshael tarde demais. Após seu último
ataque, quando estava a um metro do oponente, tinha visto um grande foco de
luz ocupar a aura de Daqshael na altura do coração e explodir em sua direção.
Foi jogado quatro metros para trás por um forte impacto psíquico. Voou ter-
raço afora e passou por cima do parapeito. Agarrou-se à beirada com uma das
mãos e evitou a queda no último instante. Viu uma de suas espadas cair prédio
abaixo.
Eu não esperava por essa. Esse grigori é forte demais!
Daqshael caiu ao chão com a intensidade do ataque. Usou tanto de sua
própria força que, por alguns instantes, ficou completamente vulnerável a um
ataque de Belial.
Belial, porém, estava completamente envolvida na luta com Érico. Mais cau-
telosa, girou sua espada em um ataque em falso por cima, concatenando um
golpe surpresa pelo lado. Érico não percebeu a artimanha, mas, no momento
em que o primeiro ataque foi feito, agachou-se e passou por baixo do segundo
ataque. Usou contra ela a mesma manobra de Sariel, e agarrou o cabo da espada
com as mãos. Tentava desarmá-la com força bruta.
Além de ser de ferro, ela era um urso. Érico nunca tinha visto uma força daquelas
em uma mulher. Lutando com ela pela posse da espada, sentia que estava tentando

85
Abascanto: a sombra dos caídos

quebrar uma rocha a socos. Ele a havia impedido de realizar um novo ataque, mas
não conseguia vencer a força com que ela se aferrava ao cabo da arma.
Enquanto Daqshael se erguia e recompunha sua força, Érico e Belial manti-
veram por alguns segundos um confronto de pura força física. A espada não ia a
lugar algum. Érico, porém, sentiu que alguma coisa acontecia com Belial. Teve a
sensação de que ela estava inspirando, puxando fôlego, concentrando alguma coisa
invisível dentro dela, como se ele pudesse sentir o fluxo dessa coisa através dele.
Não saberia dizer como percebeu o que ela estava fazendo, ou como se defen-
deu. Agiu, como sempre fazia, por instinto.
Belial projetou uma imensa força ao redor de Érico: para os cacos de vidro que
o circundavam. Em uma fração de segundo, Érico sentiu que eles começavam a
se mover. Soltou subitamente o cabo da espada de Belial e rolou para trás.
O local onde estivera havia um segundo foi percorrido por dezenas de cacos.
Teria sido fatiado ao meio se tivesse ficado ali. Nem mesmo sua manobra o de-
fendeu totalmente do ataque de Belial: quatro vezes foi cortado por pedaços de
vidro que cruzaram seu caminho. Caiu no chão, a dois metros de Belial, sang-
rando, corroído de dor, segurando um berro de agonia, certo da derrota.
À sua frente, Belial inverteu a espada, apontando a lâmina para baixo, e deu
um passo em sua direção.
Ela vai me empalar vivo! É o fim!
Quando conseguiu se recompor, Daqshael viu Sariel de volta ao terraço à sua
frente. Viu, com o canto do olho, a manobra que Belial estava realizando. Perce-
beu que seu filho estava indefeso.
Sariel estava vulnerável. Poderia dar dois passos e cravar a espada no peito
dele. Se Daqshael fizesse isso, Belial chegaria a seu filho e o empalaria vivo. Se
atacasse Belial, daria as costas a Sariel, e o caído lutava bem demais para deixar
passar uma oportunidade como aquela.
Tinha de optar. Sariel ou Érico.
Era o pior que podia lhe acontecer. O clímax de seu maior medo. O momento
que ele nunca tinha esperado viver, e, mesmo assim, quando a hora finalmente
chegou, quando a opção apareceu diante dele, não houve mais conflito. Não
houve a menor dúvida.
Ele finalmente tinha sua resposta.
Daqshael deu as costas a Sariel e, com um salto de três metros, projetou-se
para cima de Belial.
Um segundo a mais e ela teria acabado com Érico. Belial pressentiu o ataque
de Daqshael no último instante. Érico, caído, impotente, viu o salto do pai em
direção a Belial, que se virou , felina, para defender o golpe.

86
Confronto

O impacto do aparo foi tão grande que Belial foi jogada um metro para o lado
e rolou no chão. Pai e filho se encararam mais uma vez.
Érico começou a erguer uma das mãos em direção ao pai. Iniciou um grito
sem palavras. Não teve tempo de fazer mais nada.
Quando Daqshael atacou Belial, Sariel saltou sobre o grigori. Quando pai e
filho se olharam, ele caiu a dois metros de Daqshael. Érico viu o pai salvar sua
vida e a ponta de uma espada aparecer no peito dele.
— Pai!
Aline sentiu o golpe como se fosse em si mesma. O pai que nunca tinha con-
hecido... Morto. Um vazio sem fim apertou-lhe o ventre e foi expelido pela sua
boca:
— Não!
Daqshael ajoelhou-se com o impacto. Érico o agarrou pelo ombro. Trocaram
ainda um último olhar. Daqshael não podia mais falar. Usava agora toda a sua
concentração para manter seu corpo coeso. Tocou a face do filho com uma das
mãos e já sentia a substância de seu corpo se desfazendo.
— Pai... não!
Agarrou a mão do pai. Tocou-lhe a face. Nenhum pensamento lhe ocorria.
Gravou em sua mente o momento do qual demoraria muito tempo para se lib-
ertar.
Uma luz surgiu do fundo dos olhos de Daqshael. Todo o seu corpo pareceu se
iluminar por dentro. Sua aura imediatamente tornou-se visível para Érico e Aline.
A luz de seu corpo foi puxada, suave, para cima. Erguia-se como se fosse ar
quente, desfazendo-se diante dos olhos deles. Érico sentiu o corpo do pai perder
densidade. Iluminando-se cada vez mais. Pareceu-lhe que Daqshael chorava. Te-
ria sido a primeira e última vez.
Érico sentiu a energia que compunha o corpo do pai percorrer seus braços,
fluindo por dentro e por fora deles em direção ao alto. Foi atingido por um
choque elétrico, mas sem dor.
E então... Ele estava só. Seu pai o havia deixado, para sempre.
Os olhos de Érico faiscaram com uma raiva e um ódio que fizeram sua coluna
estremecer. À sua frente, o alvo: Sariel. Seu peito se contraiu com um arrepio que
lhe percorreu todo o corpo, tirando-lhe a razão. Via apenas o assassino do pai.
Nada mais desejava além de destrui-lo.
Soltou um grito incoerente, cego de fúria, projetou-se em direção a Sariel,
com as mãos erguidas. Iria estrangulá-lo.
Foi pego por trás. Caiu ao chão, imobilizado por uma chave de braço aplicada
por Belial. Gritava incontrolavelmente. Gritava de ódio, gritava de dor, gritava

87
Abascanto: a sombra dos caídos

de tristeza e arrependimento. Gritava porque, naquele instante, não era capaz de


mais nada.
Belial e Sariel se entreolharam. Sariel disse, absolutamente controlado:
— Leve-o a uma sala e o prenda. Eu tenho outros problemas agora.
E voltou o olhar para o andar superior, onde sua esposa chorava. Só então
percebeu que Belial havia estendido seu escudo a Aline e Érico. Ninguém na festa
tinha percebido nada.
Os olhos de Aline se abriram de terror. Quando cruzaram com os de Sariel,
ela ainda encontrou forças para se erguer, de supetão, e dar dois passos para trás.
Como eu devo estar diferente para ela. Acabo de matar seu pai... Devo estar
parecendo mesmo com o monstro que ela está vendo...
Érico gritava e se debatia, mas Belial o mantinha preso ao chão. Sariel con-
centrou sua vontade e baniu de seu peito toda a agitação, a intensidade, o horror
da cena anterior. Ajeitou a camisa e, de repente, parecia apenas mais uma pessoa
comum. Aline percebeu a mudança clara no marido, mas não conseguia parar
de chorar, não conseguia mais tirar as mãos da frente da boca, como se o nó que
sentia fosse forçá-la a vomitar o coração fora.
Meu Deus... Ele é louco... Meu marido é louco...
Sariel suspirou, triste, enquanto ele e a esposa se olhavam.
Ela nunca vai me perdoar por isso...

88
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MOLORES
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TVOLUP-
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ACCUSTIS
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ACCUSTIS CONESTRUM
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MOLUPTATUR,
espada
ACCUSTIS
CULPA
DICIDIT EASN
nao T EES-
M
VOL-
DOLENTEM
forjada
DOLENTEM
DOLENTEM
CONSE DELES-
AECATAMUS,
TATE CONESTRUM

Érico se debatia e gritava a plenos pulmões. Não poupava energias, usava até
mesmo as que não tinha para se desvencilhar de Belial.
— Me solta! Assassinos! Assassinos! Vocês mataram meu pai! Meu pai!!!
Após tentar erguer Érico algumas vezes, até se dar conta de que o garoto não
iria parar quieto por nada, Belial se sentou em cima das costas dele e prendeu-lhe
as duas mãos usando apenas uma das suas. Mirou bem o golpe que daria, para
não quebrar nada: a cabeça era uma região delicada.
Com um único soco, ela o nocauteou.
Sariel e Aline não tiravam os olhos um do outro. Ele andou em direção à espo-
sa, ela foi se afastando para dentro do salão. Seus olhos, abertos, expunham toda
a confusão pela qual ela passava. Sariel via que ela estava à beira de um colapso.
Qualquer pessoa normal já teria perdido o controle. Teria desmaiado ou entra-
do em choque. Minha esposa aguentou tudo, viu tudo, fez questão de testemunhar.
Ela nem sabe a força que tem...
Com um salto, cobriu uma altura de dois metros até chegar ao andar do salão.
Aline viu o marido aparecer em frente à janela quebrada e soltou um breve “Ah!”.
Três metros de salão vazio os separavam. Olharam-se. Sariel parecia exata-
mente o homem com quem ela se casara. Todos os pelos de Aline tremiam com
ela. Sua própria alma estava abalada.
Sariel deu dois passos.
— Para! Não chega perto!
Ele parou. Aline mal pôde crer na expressão de pena do marido.
Quem é esse cara? Quem é o meu marido???
Sariel parecia estar esperando algo dela. Aline afastou-se sem perceber e aca-
bou encostando na parede do salão.
Sua voz saiu tremida:
— O que foi que aconteceu?
Sariel não respondeu. Pensava no que dizer. Aline insistiu, gritando:
— O que foi que aconteceu!

89
Abascanto: a sombra dos caídos

— Me perdoe.
Me perdoe? Me perdoe!? O que é que ele quer dizer com isso?
Olhou de relance ao seu redor.
Meu pai... Meu verdadeiro pai... Morto! Minha festa, arruinada! Meu casamen-
to... Meu Deus... O que é que sobrou da minha vida?
Ela não tremia mais. Havia passado do ponto do terror. Sentiu a espinha gelar.
O brilho sumiu de seus olhos. Cerrou os dentes.
— Explique-se! O — que — foi — que — aconteceu?
— Eu lutei com um ser de outra dimensão, Aline.
Ela piscou duas vezes. Nem notou.
— Como é?
— Eu lutei com um...
— Eu sei o que você disse!
Sariel inspirou fundo. Não tinha a menor tensão nos ombros. Sua voz parecia
a de um homem derrotado:
— Aquele homem que você viu lutar comigo não era humano, Aline. Ele
tinha a forma humana, a aparência humana, um corpo até bem parecido, mas
não era humano.
Aline andava margeando a parede da sala, buscando com o tato uma posição
mais afastada de Sariel.
— E o que ele era?
— Um ser feito de energia pura que veio de uma outra dimensão, Aline... Foi
legítima defesa.
— Eu vi o que foi!
Aline não sabia por quanto tempo mais conseguiria manter seu coração baten-
do... Quanto tempo até perder as forças das pernas... Sariel tentou se aproximar
mais uma vez.
— Aline...
— Eu disse pra não chegar perto!
Meu Deus... Eu estou histérica!
Chegou, por fim, à beira de um sofá encostado na parede. Tateou o encosto e sen-
tiu-se repentinamente esgotada. Acabaram-se suas forças para chorar. Acabaram-
se suas forças para o pavor. Foi tomada por um cansaço absoluto. Sentou-se.
Sariel deu mais um passo em sua direção, mas Aline fez um gesto para
que parasse ali mesmo. Passou as mãos pelo rosto — não paravam quietas
—, soltou um suspiro desconsolado e tentou arranjar o que lhe sobrava de
lucidez.
— Aquela coisa que você matou...

90
A espada não forjada

— O nome é grigori...
— Não me importa! Érico disse que ele era meu pai biológico.
Sariel continuou a encará-la com a mesma expressão.
— Isso é verdade?
— Não sei, Aline. É bem possível. Ele me disse que era.
— Então você não sabia.
— Antes de hoje, não.
— Mas, quando você o matou, você sabia que ele era eu pai!
— Amor, eu te juro, foi em legítima...
— Cala a boca! Meu pai, Sandro! Ele era meu pai! Eu nunca o vi na vida, e
quando eu o encontro, você o tira de mim!
— Eu não tive escolha!
— Você sempre tem escolha!
Ela estava de pé agora. Quando é que eu me levantei mesmo? Mas enfrentava
o marido, a quem ela vira lutar como um leão não mais de cinco minutos antes,
e se deu conta de que, mesmo depois de tudo o que tinha visto, apesar do medo
que lhe esfriava o coração, ainda podia se impor.
Ela também teve uma escolha... escolheu não ser mais uma vítima. Enfren-
taria o marido em pé de igualdade, fosse quem ele fosse, porque o que ele tinha
feito era errado, e nada a impediria de lutar contra aquilo.
Encontrou um chão. Um ponto de apoio que não imaginava ter: ela mesma. E
sentia-se firme, pisando em terreno sólido e seguro.
Quando falou, tinha um fio cortante na voz, mas um tom calmo, decidido:
— Você sempre tem escolha, Sandro.
Sariel percebeu a mudança na esposa. Toda a sua aura mudou de cor. Em
um pequeno instante, ela mudou sua forma de pensar. Diante de um abismo,
ela preferiu se atirar no desconhecido a fugir dele. Isso é coragem. Minha esposa
mudou neste exato instante, diante dos meus olhos.
— E Érico? E o meu irmão? O que é que vai ser dele?
— Não sei, Aline. Ele está muito agitado... Com toda a razão. Belial vai levá-lo
para...
— Quem?
Sariel parou por um instante. Mas que gafe! Justo agora...
— Belial é o nome verdadeiro de minha irmã. Bella Asternach é só um
pseudônimo que ela usa.
Aline endireitou o queixo, enrijeceu a coluna e cruzou os braços:
— E você, Sandro, também tem um “nome verdadeiro”?
Sariel respondeu baixando o rosto, mas sem tirar os olhos da esposa.

91
Abascanto: a sombra dos caídos

— Sim, Aline... Eu tenho. Meu nome é Sariel.


— Por que isso, Sandro? Por que toda essa farsa? Por que você escondeu todas
essas coisas de mim?
Já imaginava a resposta.
— Porque eu e Belial temos mais de sete mil anos de idade, Aline. Nós tam-
bém somos seres de outra dimensão.
Por alguns segundos Aline não moveu nem um músculo do corpo. Exceto os
olhos. Os olhos se abriram ao máximo. Trouxeram com eles um vazio que desceu
até a base da sua espinha. Sentiu que começava a tremer de novo.
Meu Deus... Com o que foi que eu me casei?
Controle-se, Aline! Seja dona de si mesma. Não mostre medo. Mantenha a pose,
mulher! Pelo menos até sair desta sala. Ah, meu Deus, como eu quero ir embora daqui!
— Deus, Sandro, isso é loucura... Loucura completa! Eu não sei se você é com-
pletamente insano, ou se eu é que estou ficando louca. Mas eu sei o que eu vi! E
ninguém mais viu! Ninguém mais queria nem olhar para a luta de vocês! Vocês
brigaram na frente de todo mundo, quebraram a parede... ninguém percebeu! E
você nunca me contou nada?
— Eu ia te contar, Aline.
— “Ia me contar” não é o bastante, Sandro. Você não contou! E eu tive que
descobrir assim!
Andava de um lado para o outro... Deus, eu preciso pensar...
— O que é que você vai fazer agora?
Aline parou e olhou diretamente para ele, ajeitou seu vestido e disse, muito
lentamente:
— Agora eu vou para casa, Sandro. Eu preciso de um tempo... Muito tempo
para pensar em muita coisa...
Caminhou lentamente pela sala. Quando passava ao lado de Sariel, falou sem
virar o rosto:
— Eu não quero mais te ver hoje, Sandro.
Sariel, de costas, ouviu Aline parar perto da porta da sala. Seus sapatos se vi-
raram no chão, e ele percebeu que ela havia se voltado para ele. Tornou a olhá-la.
— Me diga uma coisa, Sandro.
Sariel esperou. Não tinha emoção no olhar. Não pretendia esconder nada,
mas também sabia ser inútil demonstrar afeto quando Aline estava decidida. Ela
nunca foi de cair em chantagens emocionais.
— Nós, o que nós temos... Isso é real?
Ele, por sua vez, não conseguiu se segurar, deixou a fala sair com uma pontada
de apelo e desilusão:

92
A espada não forjada

— Não diga isso, Aline. Você vale mais do que tudo neste mundo para mim.
Cada vez que você ri, eu fico mais feliz. Cada vez que você chora, eu fico mais
triste. Olha, me perdoe se você puder. Odeie-me, se não puder, mas que você é
maior que o mundo para mim, não duvide disso.
Aline endireitou o vestido rapidamente. Uma tensão sutilíssima deixou seus
ombros, a lâmina afiada do seu olhar se embotou um pouco. Sariel soube na hora
que havia tocado fundo nela.
— Amanhã, Aline, nós vamos nos falar?
A voz de Aline foi gélida:
— É bom você ter uma ótima explicação para tudo isso.
Virou as costas e saiu.
Meu casamento está salvo!

Edgar viu Belial atravessar o corredor do salão, carregando Érico. Ela pas-
sou por umas cinco pessoas sem que nenhuma delas lhe desse a menor atenção.
Edgar também fingiu ignorá-la, mas a acompanhou com o canto do olho e a viu
deixar Érico em uma sala fechada no andar inferior.
Se eu quero salvar o garoto, eu tenho que fazer alguma coisa agora!
Foi por pura sorte que eles não perceberam que eu também estava vendo a luta.
Eu deveria ter contado para Aline antes. Agora está tudo de pernas para o ar... E
ele matou Daqshael!
Não há dúvida que eles estão escondendo alguma coisa. Alguma coisa grave. Eu
tenho que manter meu disfarce enquanto puder. Isso quer dizer que Aline vai ter de
continuar achando que eu não sei de nada.
Antes que Belial ou Sariel se deem conta, eu preciso pegar as espadas de Daqshael.
Chegou ao terraço em poucos instantes e encontrou as espadas caídas no local
onde o grigori tinha se desintegrado. Voltou para o salão e dirigiu-se à sala onde
Érico estava. No meio do caminho, percebeu que Belial se aproximava. Entrou na
primeira porta à direita e esperou ela passar antes de seguir seu caminho.
Encontrou Érico em uma sala de manutenção, algemado a uma cadeira. Es-
tava inconsciente e sangrava em vários pontos. Por sorte, não precisava da chave
para desalgemá-lo. Com dois golpes de espada, cortou as algemas ao meio e saiu
dali por uma porta dos fundos.
Minutos depois, saía do edifício levando Érico em seu carro. Conseguiu evitar toda
a confusão de guardas e bombeiros que já povoava o cruzamento em frente ao prédio.

Érico voltou a si, e logo sentiu toda a cabeça latejando com o golpe de Belial.
Tudo se mexia a seu redor. Parecia que estava em um carro em movimento. Ai-

93
Abascanto: a sombra dos caídos

nda não enxergava bem, tudo era um borrão. Desorientado, perguntou:


— Onde estou?
— Você está no meu carro, garoto.
— Meu pai...
Edgar olhou de relance para Érico, ferido, derrotado, deprimido. Suavizou a
voz o máximo que pôde:
— Sim, Érico, eu sei.
— Meu pai foi morto...
Edgar continuou concentrado no trânsito. Precisava chegar à casa de Kaliel
e voltar o mais rápido possível. Não sabia o que estava acontecendo com a filha
naquele instante. Percebeu que a próxima fala de Érico soou quebrada, sentida,
com a promessa de um soluço e uma profunda tristeza:
— Meu pai morreu...
Edgar tomou fôlego para falar:
— Escute muito bem o que eu vou lhe dizer agora, rapaz.
Érico virou-se para ele. Olhava incrédulo para os seus ferimentos, sem se lem-
brar direito como os tinha arranjado.
— Eu sei que o que acabou de acontecer foi uma tragédia. Pode acreditar que
eu sei pelo que você está passando agora. Ele era uma pessoa boa demais para se
perder e só queria o seu bem todos os dias da vida dele. Eu sei que só o que você
quer é deitar na sua cama e esquecer que esta noite aconteceu. É justo que você
tenha o seu luto. Mas ouça bem. Você não tem esse luxo. Você chamou a atenção
de dois seres extremamente perigosos, e eles não vão te deixar escapar assim.
Você precisa ser mais forte do que tudo isso. Você precisa pedir pra Kaliel treinar
você. Você precisa aprender a se controlar.
Parou o carro e olhou para o garoto antes de continuar:
— Senão, Érico, você também vai morrer. Não deixe que a morte do seu pai
seja em vão. Não desperdice sua vida se atirando numa luta irracional contra es-
ses seres, porque você vai perder. Aprenda a se controlar. Treine. Se desenvolva.
Você precisa ser melhor do que isso!
Érico virou o rosto furiosamente para o outro lado. Apertou as mãos como se
fosse arrancar sangue delas. Edgar o ouviu lutar contra um gemido de puro deses-
pero. Quando parecia que todos os seus músculos estavam tensos, Érico gritou:
— Não é justo! Não é justo! Eles mataram meu pai!
Afundou a cabeça nas mãos. Tentou se controlar, mas perdeu a luta.
— Eles mataram meu pai...
Deixou escapar toda a sua angústia, toda a tensão daquela noite, todo o
desastre da luta — que ele mesmo havia precipitado. A cena que não lhe saía

94
A espada não forjada

dos olhos, seu pai se desfazendo em luz à sua frente, turvou-lhe a vista. Não
se importava mais com seus cortes. Ignorava que cada um de seus ossos estava
urrando de dor. Tinha uma dor maior no peito, infinita: uma angústia da qual
não conseguia se livrar.
Seu pai, seu grande companheiro, a pessoa que ele sempre tinha visto acima
de todas as outras, havia partido. Sentiu o peito rachando, um buraco na alma, e
nem todo o luto do mundo, nem todo o choro ou todo tempo poderiam fechá-lo.
Havia perdido uma parte de si mesmo. Havia perdido seu maior amigo.
Nunca mais o veria. Pelo resto de sua vida, seria perseguido por uma saudade
sem fim, um desejo frustrado de olhar para ele pelo menos uma vez mais, diz-
er-lhe algo pelo menos uma vez mais, poder falar, ao vivo, aquelas palavras que
sempre pareciam desnecessárias:
Pai, eu te amo.
E que agora nunca mais teria a chance de dizer...
Érico chorou.
Não percebeu quando o carro parou. Não queria perceber mais nada. Edgar
colocou a mão no seu ombro. Érico se virou para ele, viu-lhe a face e reconheceu
o muro da casa de Kaliel. Edgar havia saído do carro e aberto a porta para ele.
Saiu lentamente. Foi andando até a porta até Edgar chamá-lo.
— Érico.
Virou-se. Ainda tinha uma expressão contorcida. Sentiu tudo girar, os limites
de seu campo visual começaram a sumir. Achou que ia desmaiar, mas se apoiou
na porta e se manteve de pé.
Edgar lhe apresentou duas espadas prateadas. Estavam impecavelmente lim-
pas. Pareciam ser novas.
— Érico, estas são as espadas de seu pai. Você precisa guardá-las.
Érico pegou as espadas com extremo vagar. Imaginou-se tocando com as
próprias mãos a saudade que sentia de Daqshael. Eram leves. Leves demais para
duas lâminas daquela resistência.
Por um instante, achou ter visto refletida na lâmina a face do pai, mas perce-
beu que tinha sido um truque da luz, do cansaço, da visão turva.
— Cuide bem delas, Érico. Estas duas lâminas nunca foram forjadas. Elas
surgiram neste mundo junto com seu pai. Foram feitas para ele. São extensões
do corpo que ele usou. São mais resistentes do que qualquer outra espada deste
mundo e carregam dentro delas a energia de Daqshael. Essas espadas costumam
desaparecer alguns dias depois da morte do dono. Mas, se você cuidar bem delas,
se você respeitá-las, se você for fiel ao ideal de seu pai, talvez elas o aceitem como
seu novo mestre, e aceitem ficar neste mundo por mais um tempo.

95
Abascanto: a sombra dos caídos

Érico olhou para as lâminas e as segurou como se fossem o próprio coração


do pai, como se dessa vez pudesse impedi-lo de desaparecer. Não se conteve e,
quando olhou novamente para Edgar, já tinha a visão turva novamente.
— Obrigado.
Foi só o que conseguiu dizer.
Edgar o segurou pelos ombros e disse:
— Cuide logo desses ferimentos, rapaz. Nós voltaremos a nos falar.
Partiu.
Érico entrou na casa, vazio de sentimentos. Sentia-se oco. Estava acabado.
Sentou-se no sofá, porque queria pensar no que tinha acontecido naquela noite,
queria reviver seu pai na memória por mais tempo, mas o corpo falou mais alto
e, antes que percebesse, dormiu.

Sonhou que estava novamente na sala de aula, aos onze anos. Era dezembro, e ele
ainda se digladiava com uma prova de recuperação de geografia. Como era difícil
aquela prova! Como ele queria já ter saído de férias para brincar com seus amigos. Foi
seu pai quem o obrigara a ficar noites a fio estudando para passar na prova.
E mesmo assim... Que difícil! Érico olhava para as perguntas da prova, mas
não conseguia entender nenhuma delas. Cada vez que ele as relia, elas mudavam!
De repente, sabia a resposta de uma pergunta. Uma, pelo menos! Já não tiraria
zero. Respondeu-a antes que ela também mudasse. E ali, outra! E outra! De re-
pente, ele se lembrava do que andara estudando e sabia responder todas!
Quando respondeu umas quatro, viu que não havia mais perguntas na folha.
Tinha terminado! Podia ir embora!
Não esperou nem a hora da prova acabar. Levantou-se da carteira e saiu cor-
rendo. Logo atrás da porta, seu pai o esperava.
— Consegui, pai! Acabei a prova!
Ele apenas o abraçou. Estava muito quieto, mas Érico não prestou atenção.
Saiu correndo da escola trazendo Daqshael pela mão.
Entraram em um parque de diversões. O sol estava imenso no céu, e todos os
balões pareciam vermelhos demais. Érico viu a roda gigante e sentiu que, se desse
só um pulo, poderia chegar até o topo. Várias pessoas passavam a seu redor, mas
ele caminhava grudado no pai. Notou que, como ele, várias crianças estavam no
parque. Pensou em procurar por seus amigos, que estavam de férias, mas sabia
que eles não deviam estar naquele parque.
Porque neste parque, eu só posso entrar junto com o meu pai.
De repente, eles estavam sentados em um banco de madeira, e Érico estava
se sujando todo, comendo um algodão doce. Daqshael se ergueu e foi falar com

96
A espada não forjada

uma moça jovem que estava vindo em sua direção.


Érico não conseguia ouvir o que eles diziam, apesar de estarem bem perto
dele. Parecia que eles eram mudos, mas mesmo assim estavam mexendo as bocas.
Seu pai estava triste, mas a moça sorria de leve, apontava para Érico e fa-
zia que sim com a cabeça. Ela parecia estranhamente familiar, talvez ele devesse
reconhecê-la, mas não sabia quem era.
Mesmo assim... Eu já a vi antes...
Ela veio em sua direção e se ajoelhou para falar com ele.
— Oi, Érico.
— Oi, moça.
Ela sorriu. Érico não sabia bem o que fazer. Ela o abraçou intensamente, e
Érico sentiu um suave cheiro de perfume. Quando se separaram, viu que ela
estava toda suja de algodão doce, e riu dela.
Ela perguntou algo a Daqshael, que respondeu naquela voz silenciosa, mas
Érico pôde ouvir um “mais do que o normal” no meio da resposta do pai.
Sentaram-se os dois a seu lado e ficaram olhando para o céu, recoberto das
mais diversas cores e luzes. Abraçaram-se e envolveram Érico, e ele tentou abra-
çar os dois ao mesmo tempo, mas seus braços eram muito pequenos.
Ele era muito pequeno perto deles.
Olhavam para o céu, e viam todas aquelas cores mudando lentamente...
Até que um grande som abalou o banco em que estavam sentados. Tudo tremeu.
Um som metálico, repetitivo, alto e alarmante, e toda a cena se quebrou como vidro...

Érico acordou num sobressalto. Estava em uma posição completamente


desconfortável e viu que havia um pouco de sangue no chão.
A porta da casa se abriu. Pela janela, viu que ainda era de madrugada.
Murmurou um “pai...” e estendeu a mão, sonolento, tentando agarrar seu son-
ho um pouco mais.
Já era apenas uma memória.
Apenas o cheiro de perfume ficou com ele, uma fragrância suave, floral, car-
regada de nuances. Ele se lembraria daquele perfume pelo resto de sua vida. Se-
ria uma chave que ele sempre usaria para recordar aquele sonho, tão real, tão
intenso: um sinal para relembrar o momento em que seu pai havia se encontrado
com aquela mulher tão bela, tão jovem, tão familiar...
De pé na porta de entrada da casa estava uma mulher alta, com longos cabelos
castanhos que caíam em largas ondas até seu peito. O nariz predominava em seu
rosto, e dois olhos negros lhe davam a presença imponente de uma águia, um
qualquer coisa de autoridade. Carregava duas grandes malas e olhava para Érico

97
Abascanto: a sombra dos caídos

com a expressão contorcida de pena e dor.


Sua tia, Kaliel.
Ele a olhou, caído no sofá, pálido e sonolento, e não teve forças nem mesmo
para se erguer.
Kaliel abriu as mãos, deixou cair as malas no chão e correu para ele, envolven-
do-o em um abraço suave, meigo. Sustentou-o com tal gentileza que até mesmo
sua dor pareceu passar.
— Oh... Érico! Ah, meu querido! Minha criança!
Érico ainda murmurou:
— Ele estava aqui, tia... Papai estava aqui... Ele e uma moça... Mas ele se foi...
Érico achava que não tinha mais forças para chorar. Achava que havia es-
gotado seu peito, esvaziado seu luto e terminado com a dor, mas o abraço da tia
trouxe de volta as memórias, a dor, a saudade...
Lentamente, Érico abraçou Kaliel com força. Cerrou os punhos às costas da
tia e grudou-se ao peito dela, tentando impedir que ela também desaparecesse.
Pediu que ela ficasse com um breve gemido, mas, achando que ela não o tivesse
ouvido direito, gemeu mais alto, e mais alto, até sua garganta protestar contra
aquele abuso e trancar os gemidos em soluços. Como eles continuavam, seus
olhos entraram na briga e tentaram impedi-los com lágrimas.
Urrava de ódio e de saudade.
— Meu pai! Meu pai! Eles mataram meu pai, tia! Mataram meu pai!
E Kaliel, condoída, suave, abraçava Érico.
— Eu sei, meu anjo... Eu sei...
Ficaram assim por várias horas...
Raios de sol raspavam a cara de Aline, rasgando o canto dos seus olhos com
sulcos. O céu ia clareando e, a cada minuto, a pele dela ficava mais pesada. Sentia
as batidas do coração na testa.
Estendeu a mão para pegar um pedaço de bolo, mas o viu escorregar de volta
ao prato, enquanto seus dedos comandavam, como maestros trêmulos, a orques-
tra das suas lágrimas.
Levou a mão à boca e, mais uma vez, viu à sua frente a imagem do pai desapa-
recendo, do marido empunhando uma espada, da cunhada esmurrando o irmão.
Soluços e soluços em uma noite interminável, e ela ainda não sabia como re-
agir a tudo aquilo.
Tentara dormir, mas não conseguira parar de pensar na noite anterior.
Havia se levantado da cama. Resolveu tomar um banho para se acalmar. Sem-
pre se sentia melhor após passar uma boa loção hidratante. Mal ligou o chuveiro,
se deixou cair no chão do boxe, chorando, histérica.

98
DDOO LL
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DOLENTEM
seguinte
DOLENTEM
DOLENTEM
CONSE DELES-
AECATAMUS,
TATE CONESTRUM

Estava sozinha. Pela primeira vez, completamente desamparada. Ninguém, a


não ser ela mesma, poderia ajudá-la.
E sempre, a voz de seu marido falando: “Eu tenho mais de sete mil anos... eu
sou de outra dimensão”.
Deus! Me ajude! O que é que está acontecendo com a minha vida?!
Onde está aquele homem com quem eu me casei? Quem era aquela pessoa com
quem eu noivei por dois anos?
Era o mesmo que matou outro homem na minha frente hoje? Era o mesmo que
disse que tem sete mil anos?
Ele escondeu isso de mim até agora? Desde o começo?
Esse mesmo homem havia lhe dito: “Você vale mais do que tudo neste mun-
do para mim”.
Quem é esse homem? Essa coisa?
Eu o conheço há cinco anos!
Cinco anos antes... Aline não tinha nada o que fazer naquela noite. Seu pai se
arrumava para ir a um jantar de negócios, e ela pediu para ir junto. Um impulso.
Não porque quisesse conhecer melhor o trabalho do pai, mas porque, desde o fa-
lecimento da mãe havia poucos meses, o apartamento tinha se tornado silencioso
demais, grande demais para ela.
Naquela noite, entrou no restaurante ao lado do pai. Conheceu diretores, ge-
rentes da empresa e seus familiares. Entre eles, um certo senhor, Sandro Astern-
ach, dono de um conglomerado farmacêutico, que havia acabado de comprar as
empresas de Edgar.
Sandro... Desde a primeira vez, ela não havia tirado os olhos dele da memória.
Aqueles olhos... E como ele olhou para ela naquela noite! De perto, de longe,
sempre olhando com suavidade... Uma expressão contemplativa de que Aline
nunca tinha sido alvo.
Não via nela um alvo a conquistar, não via nela uma bela adolescente: via uma
mulher. Naquela noite, pela primeira vez, Aline soube o que era ser desejada. Não

99
Abascanto: a sombra dos caídos

pelo sexo, mas por inteiro. Por ser quem era. Sandro a conquistou com o olhar.
Ganhou-a com o toque.
Um leve toque no braço. Foi o bastante. Havia alguma energia naquele
homem, alguma força invencível que lhe levantara cada pelo do braço,
descera-lhe pela espinha e a tomara por inteiro. Ela poderia ter tido um or-
gasmo ali mesmo.
Aline não se lembraria do que conversaram: iria se lembrar apenas dos olhos
e do primeiro toque.
Ele nunca havia deixado de tocá-la com aquela paixão serena, ou de olhá-la com
aquele olhar intenso. Nunca pedira nada além do que ela era. Sempre a aceitara.
Sempre a desejara. Com o tempo, Aline também tinha aprendido o que o excitava.
Brincavam com isso. Ela soltava um sorriso maroto. Ele lançava uma pis-
cadela. Ela soprava um beijo irreverente que atravessava a sala. Ele pegava um
copo vazio. Ela o enchia com uma dose de bebida... E sempre o olhar fixo,
toques furtivos.
Quantas vezes eles se pegaram naquele jogo mudo de reconquista? Em todo o
lugar, a toda hora, eles flertavam. Sariel orquestrava a situação para que sempre
fosse diferente. Sempre uma surpresa para Aline. Ela ansiava pela novidade. Não
conseguia esperar para ver o que o marido havia lhe preparado.
Viviam assim...
O homem que a acariciava pegara uma espada e matara outro homem. O
olhar que a havia conquistado tirou uma vida sem hesitar.
Não deve nem ter sido a primeira!
Quem é ele? Quantas pessoas ele já matou? Quantas mulheres ele já teve? E o
que sou eu para ele?
O que é que existe entre nós no final das contas?
Nada?
Mas a imagem de Sandro, olhando fixo para ela e dizendo “Você vale mais do
que tudo neste mundo para mim” também não lhe saía da cabeça.
Ele é louco! Eu me casei com um louco! Uma hora ele mata uma pessoa a sangue
frio, e dois minutos depois ele me solta uma dessas!
Do que é que ele é capaz!?
Não percebeu a noite passar. Não contou o tempo entre os acessos de choro e
as idas ao banheiro para vomitar.
Meu Deus... Eu estou acabada!
Sentara-se no terraço, ao lado da piscina, porque queria ver o Sol nascer. Sem-
pre se acalmava vendo o Sol nascer, e precisava de todos os calmantes disponíveis.
Eu não sei o que fazer!

100
O dia seguinte

Em uma cadeira ao lado da piscina, tremia sob os edredons. Uma caixa vazia
de lenços de papel, olhos vermelhos.
Mesmo assim, não estava com sono. Sentia o corpo pesado. Tudo se movia em
câmera lenta, mas sabia que, se deitasse, não conseguiria dormir.
Quando o cozinheiro chegou, pediu-lhe que servisse o café da manhã ali
mesmo.
Duas horas depois, estava sentada diante de garrafas de chá, café, leite e choco-
late quente. Tinha à sua frente bandejas com nós de mozzarela de búfala, fatias
de queijo emmenthal, brie e prima donna. Pão integral e pão fresco, geleias de
morango, uva e cereja, manteiga fresca com e sem sal. Ovos mexidos, bolos de
cenoura e chocolate, brioches e croissants.
Não comia nada. Não conseguia apreciar o desjejum que lhe fora preparado.
Só tremia.
Foi quando deu de cara com Sariel na porta do terraço.
Levantou-se, devagar, encarando-o com um olhar gélido. Sentia o mesmo
calafrio, o mesmo pavor da noite anterior.
Fez o possível para manter uma cara impassível. Perderia a sanidade, mas não
perderia a pose. Mesmo assim, falou rápido demais para uma pessoa calma:
— Deus do céu, você não perde tempo mesmo, não é?
— Aline...
Sariel deu um passo em sua direção, ela deu outro para trás. Trouxe os cober-
tores consigo, porque sem eles estaria tremendo visivelmente.
— O que é que você está fazendo aqui? Eu não disse que não queria te ver?
— Meu bem...
Outro passo. Aline recuou mais uma vez.
— Sem “meu bem” comigo! Fora daqui! Fora daqui, Sandro!
— Eu não vou embora.
A resolução do marido quase a fez desabar ali mesmo. Segurou o fôlego,
porque, se o soltasse, suas pernas perderiam as forças.
Sariel se ajoelhou.
— Me perdoe, Aline!
Aline segurou uma onda de raiva que subiu do seu estômago e quase a
tomou por completo. De repente, apenas uma coisa lhe pareceu importante
naquele momento:
— Diga-me uma coisa, Sandro.
— O quê?
— Se você soubesse que aquele homem era meu pai biológico... Se você já
soubesse disso, Sandro... Você o teria poupado ontem?

101
Abascanto: a sombra dos caídos

Sariel juntou as sobrancelhas e falou com a voz pesada, condoída:


— Sim. Sim, Aline, eu teria. Não haveria como evitar a nossa luta. Ele ainda
teria tentado me matar... Mas eu teria reagido de outra forma. Eu teria me pre-
parado para isso de outra forma, Aline, e ele ainda estaria aqui.
Aline controlou o corpo para que não movesse nem um músculo. Esforçou-se
para continuar fuzilando o marido com o olhar, mas a umidade em seus olhos a
traiu. Uma gota rebelde lhe correu pelo rosto.
Sariel levantou-se subitamente e disse:
— Meu amor...
Aline deu mais um passo para trás. Agarrou-se às cobertas. Percebia que sua
boca tremia fora de controle.
Sariel não tirava os olhos dela. Estava completamente relaxado.
— Eu não matei seu pai, Aline. Ele ainda está bem vivo, pode acreditar. Só que
em uma outra dimensão.
— Eu nunca mais vou vê-lo, Sandro. Eu nunca vou poder saber se me pareço
com ele. Quem foi a minha mãe... Por que ele me abandonou... De onde eu vim...
Você tirou isso de mim.
Aline notou que não havia acusação, apenas tristeza na sua voz. Um peso
imenso a puxava para baixo, derrubava seu espírito e lhe roubava as esperanças.
— A minha vida inteira, eu passei sem saber quem ele era... E agora nunca
mais vou ter essa chance, Sandro.
— Ele pode voltar, Aline.
Aline piscou duas vezes, bem rapidamente.
— Assim como ele veio uma vez, ele pode vir outra.
Sariel estendeu um braço em direção à Aline. Ela inclinou o corpo para trás,
sem se afastar. Sua mão estava aberta; seus dedos, estendidos. Havia um convite
sublinhando cada gesto.
Sete mil anos... Essa mão tem sete mil anos...
Sentia novamente a carícia do esposo. A memória era quase insuportável.
Ela precisava daquela mão. Queria-a toda. Queria também esmagá-la: a mes-
ma mão que assassinou seu pai. Queria odiá-la. Queria apenas um pretexto
para detestar seu marido. Pelo menos assim ela poderia abandoná-lo sem
remorso.
Trocaram olhares. Aline recuou.
— Você tem mesmo sete mil anos?
— Sim.
— Qual você disse que é mesmo o seu nome?
— Sariel.

102
O dia seguinte

— Como é que eu posso saber, “Sariel”, se o que a gente tem é real? Meu Deus,
sete mil anos! Eu nem consigo imaginar isso... Como é que você pode saber,
Sariel? Olha a diferença que existe entre nós!
— É real, Aline, porque toda a minha felicidade é sua. Quando você fala,
só existe a sua voz. Eu sei, Aline, justamente porque eu tenho sete mil anos.
Porque às vezes, uma vez a cada mil anos... aparece uma pessoa que é “aquela”
pessoa. Uma mente que é a mais bela, um espírito que é o mais livre. Às vezes
surge uma mulher tão pura e tão forte, que faz mil anos de espera valer a pena.
O tempo se condensa, e um minuto ao seu lado vale mais do que uma eter-
nidade de solidão. Uma alma rara. Imensa. Uma nova estrela no céu.... Essa
pessoa, Aline, é você.
O gelo deixou os ombros de Aline. Os cantos dos olhos brilharam levemente.
Com um andar felino, Sariel agarrou-a pelo braço. Ela tentou dar dois passos
para trás, mas estava presa àquele homem. Abriu a boca para gritar, para chamar
pelos empregados, para mandá-lo embora, mas nem um som aceitou sair. Aquele
toque a fez quebrar por inteiro. Tentou se desvencilhar, mas aqueles olhos paral-
isavam seus pés. O mais leve contato a capturou por inteiro.
Seu peito se tornou um mar revolto, subindo e descendo com o ar frio. Todo
o seu corpo se rebelou contra ela. Apenas aquela mão era quente. Aqueles de-
dos a invadiam com tesão.
Com a mão livre, meteu-lhe um tapa no rosto. Queria que fosse um soco, mas
sua mão, revoltada, abriu-se no último instante. Voltou a estapeá-lo. Queria um
soco, porque queria que ele a odiasse. Queria uma única reação de raiva. Queria
ao menos um motivo para poder agredi-lo.
Suas cobertas caíram. Apenas o roupão a vestia. Finalmente achou forças para
socar o peito de Sariel. Encheu a mão e esmurrou o marido com toda a energia.
Ele não a puxava, não a soltava. Aline o esbofeteou como pôde. Duas lágrimas
voaram para cima dele e lhe causaram mais dor do que qualquer golpe dela.
Soltou-a. Aline se afastou, sem tirar os olhos de Sariel. Nem sequer piscava.
Sentiu o estômago revirar e o fel lhe subir à garganta.
— Pelo amor de Deus, Sandro, você matou meu pai! Você nem mesmo me
disse quem você era! E acha que agora pode voltar para casa, pedir perdão e con-
tinuar como se nada tivesse acontecido?
Sariel não se moveu.
— Não como se nada tivesse acontecido, Aline. Nunca como se nada tivesse
acontecido.
— Então o que é que você está fazendo aqui?
Sandro ergueu o queixo um milímetro. Endireitou as costas, agigantou-se.

103
Abascanto: a sombra dos caídos

— Eu quero saber, Aline, se, apesar de tudo o que aconteceu, você ainda quer
passar o resto da sua vida comigo. Se você ainda quer rir comigo, chorar comigo,
viver e morrer ao meu lado.
Aline desviou os olhos. Não sabia se era capaz de perdoá-lo. Se passaria um
dia da sua vida em que ela não olharia para o marido sem pensar na morte do pai.
Mas eu não posso viver sem ele... Deus me perdoe, eu preciso desse homem...
— Dividir minha vida com você... Sariel. Como você dividiu a sua comigo?
— Eu também posso cometer erros, Aline.
— Mas com certeza!
O olhar que o casal trocou engoliu tudo o mais que existia. Sariel acolheu
Aline com seus olhos e renovou em silêncio todas as promessas que havia lhe
feito desde que se conheceram.
Até dois dias atrás, ele era tudo para mim... e agora...
Agora ele ainda é tudo para mim. Eu não consigo parar de pensar nele...
— Você mentiu para mim, Sandro.
— Não, Aline.
— Como não?
— Eu escondi de você uma parte da minha vida, Aline. Isso, sim. Eu não te
preparei para tudo isso, e, por causa do meu erro, você me viu matar seu pai e
descobriu tudo da pior forma possível. Eu não menti, mas te causei mal, eu te fiz
sofrer. É por isso que eu te digo, meu amor, se você puder, me perdoe.
Se eu pudesse... eu te perdoaria. Se eu pudesse, eu te mataria. Se eu pudesse, eu
te abraçava e não soltava mais. Se eu pudesse, eu nunca mais te olhava na cara. Ah,
Sandro... o que é que eu vou fazer com você?
— Você disse que meu pai pode voltar?
— Sim.
— Quando eu vou poder vê-lo de novo?
— É difícil dizer, Aline. O momento que permite uma passagem entre as di-
mensões, nós o chamamos de “janela”: uma janela é um evento muito raro neste
planeta. Podem se passar alguns anos até que ele consiga retornar à Terra, ou até
mesmo décadas.
Aline levou uma mão à testa e fechou os olhos. Inspirou fundo. O ar fez cada
osso pesar toneladas.
Quando ela abriu os olhos, Sandro estava na mesma posição. Encarou-o com
um cansaço visceral.
— Eu não vou te mandar embora, se é isso que você está pensando.
Era a melhor resposta que pôde lhe dar. Nem um sim, nem um não. Ele que
entendesse o que quisesse.

104
O dia seguinte

Um sorriso discreto foi entalhado no rosto de Sariel. Aline achou que ele es-
tava prestes a dar um passo e beijá-la. Se ele o fizesse, ela sabia que o mandaria
embora, a despeito do que havia dito.
Em vez disso, ele abriu levemente a boca. Formou a intenção da primeira
sílaba de um “obrigado”.
Cerrou os olhos e contorceu o rosto. Levou uma mão à face e fechou a boca
com grande esforço. Ajoelhou-se.
Aline assustou-se. Pareceu-lhe que Sariel estava passando muito mal.
— O que foi?
Sariel demorou um pouco a responder. Respirava pesado. Rangeu os dentes.
— Sa...?
— Calma... Aline...
Demorou um tempo até voltar a uma expressão tranquila. Inspirou fundo.
— O que houve? O que foi isso?
— Isso foi Érico.
— Meu irmão?
— Ele mesmo. Está acordado, e está pensando em mim. Ele me odeia. Ele
quer que eu morra e está voltando todo seu ódio para cima de mim. Sem saber, o
garoto me lançou um ataque psíquico.
— Ele pode fazer isso?
— Ele também tem poder, Aline. Ele tem muita força. E Daqshael, o pai de
vocês, é forte mesmo entre os grigori. Por sorte, o rapaz não sabe controlar essa
energia. Não deve nem saber o que acabou de fazer... Ele vai ter que aprender a
se conter logo...
— Isso... Esse ataque dele... Isso pode te ferir, Sariel?
— Ferir? Não... Mas se ele me pegasse de jeito, poderia me forçar a voltar para
Casa... desfazer meu corpo. Mas, para isso, ele precisaria de muito exercício. O
que ele fez agora foi jogar um sentimento bruto para cima de mim. Eu me de-
fendo facilmente disso. É um problema maior para ele mesmo.
Aline franziu a testa.
— Não se esqueça de que a mente dele é muito forte. A sua também. A raiva
é um sentimento muito intenso, mas ela tem uma irmã gêmea: a culpa. A raiva é
para fora, e a culpa é para dentro. Enquanto Érico estiver com raiva de mim, eu
me defendo dele sem problemas, mas, se ele começar a sentir culpa pela morte
do pai, quem irá protegê-lo? Se tudo correr bem, ele vai aprender a se controlar a
tempo. Por enquanto, ele não pode me atingir seriamente...
Sariel falou com propriedade. Falou com calma e decisão. Falou para tran-
quilizar a esposa.

105
Abascanto: a sombra dos caídos

Porque ele sabia muito bem que a coisa não era daquele jeito. A força do
ataque tinha sido grande demais. Todo aquele desejo concentrado, aquela von-
tade de destruí-lo...
Mesmo sem treino... Eu tive que ficar absolutamente concentrado para impedir
o ataque... Esse garoto é forte demais... Demais para um mortal... Ele ainda vai me
causar sérios problemas...

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CULPA
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Café-da-manha
DOLENTEM
DOLENTEM
CONSE DELES-
AECATAMUS,
TATE CONESTRUM

Érico acordou, cansado e enfaixado. Não sabia como tinha ido parar naquela
cama, nem como seus ferimentos foram tratados. Ouviu o barulho da tia prepa-
rando o café-da-manhã e sentiu escapar aqueles doces momentos de desorientação
do despertar, quando ainda não se separa o mundo em vigília das experiências
oníricas. Ficou novamente com as memórias da noite anterior, da morte de seu pai.
Ao seu lado, embrulhadas em um pano escuro, estavam as duas espadas de
Daqshael. Um fogo lhe corroeu o peito, uma dor muda e incansável. Tocou no
cabo de uma delas e sussurrou:
— Você está vivo, pai.
Eu vou vingá-lo.
Teve a sensação de que elas responderam. Talvez tivesse apenas imaginado,
mas Érico poderia jurar que elas haviam brilhado de maneira diferente: parecia
que tinham se acomodado melhor no pano que as envolvia, satisfeitas, respon-
dendo em silêncio:
Sim!
Quando desceu para a cozinha, levou-as consigo.
Kaliel era o tipo de pessoa que se arrumava até para fazer o café-da-man-
hã. Érico achava que já acordava toda arrumada. Usava o cabelo preso em um
coque e um roupão por cima da camisola. A combinação de cores e a forma com
que o laço do roupão foi dado apenas ressaltavam suas curvas. Não as tinha em
abundância, mas sabia valorizá-las. Como sempre, estava fumando.
— Bom dia, meu anjo.
Érico se sentou à mesa, afundou o rosto nas mãos. Havia dormido muito,
mas seus olhos continuavam vermelhos. A cara, contraída o tempo todo. As so-
brancelhas queriam se juntar, forçando a testa.
Não conseguia tirar o pai da cabeça. Não queria tirá-lo da cabeça. Ainda o via
desaparecer na sua frente, e aquele homem por trás, o assassino... Sariel.
Kaliel subitamente virou-se para Érico. Tinha um olhar preocupado. Sentou-
se à sua frente.

107
Abascanto: a sombra dos caídos

— Meu querido, como você está?


Um aperto no peito. Viu a cozinha dançar à sua frente, os olhos pesaram
ainda mais.
Controle-se!
Inspirou fundo. Engoliu a garganta. Ela queria sair a qualquer custo pela boca.
Olhou fixamente para a tia.
— Eu quero saber tudo. Tudo. Tudo o que ele não me contou.
Kaliel olhou subitamente para as espadas de Daqshael sobre a mesa.
Será que ela pode ouvi-lo? Será que ela pode se comunicar com meu pai pelas
espadas?
Foi só por um instante, mas quando ela olhou novamente para o sobrinho,
tinha algo diferente na expressão. Uma espécie de decisão.
— Tenho muita coisa pra te contar, Érico. O que você quer saber?
— Que história é essa que eu tenho uma irmã? Por que vocês nunca me contaram?
Kaliel se reclinou na cadeira. O cheiro de ovo fritando enchia a cozinha. Ela
acenou vagamente com uma das mãos, e o fogão se apagou. Érico abriu os olhos
até onde pôde.
Ela fez isso mesmo? Ela apagou o fogão sem tocá-lo?
Mas Kaliel tinha a mesma expressão no olhar. Não parecia ter se importado
com o que fizera. Deu outra tragada antes de responder.
— Quando seu pai e eu viemos para este mundo, minutos depois de termos
nos manifestado fisicamente, nós entramos em um combate com alguns caídos.
Os caídos são como nós, grigori, seres de outra dimensão, mas gostam de ficar
e viver aqui. Uma caída, chamada Azra, levou seu pai a uma armadilha. Ela o
induziu a entrar em uma casa noturna e, lá dentro, ordenou mentalmente a todas
as pessoas que se jogassem sobre ele. Seu pai também foi apanhado em cheio pelo
ataque mental dela e desmaiou por alguns instantes. Acontece que a ordem não
foi um comando verbal: ela não era muito boa com comandos verbais. O que ela
fez foi provocar em todo mundo um imenso desejo erótico direcionado a seu pai.
O que aconteceu ali foi uma verdadeira orgia.
Érico se sentiu corar de leve.
— Uma daquelas jovens estava em seu período fértil... Você e sua irmã
foram concebidos naquele dia. Nós não soubemos de início, porque Daqshael
estava desacordado.
Kaliel olhava Érico fixamente. Parecia perfurar-lhe o sentimento, tentando
desatar o nó que dava toda a sua face.
— Foi só um ano mais tarde que soubemos que vocês haviam nascido. Sua
mãe havia falecido no parto. A família dela nunca soube da gravidez. Vocês dois

108
Café-da-manhã

foram abandonados ao nascer e entregues a um orfanato. Quando nós te en-


contramos... Você nem deve se lembrar disso... Já estava falando e andando. Sua
irmã, por pura sorte, havia sido adotada meses antes por um casal que não podia
ter filhos. Nós investigamos o casal. Eram Edgar e Luzia Gomes Carvalho. Donos
de um laboratório farmacêutico, e muito, muito ricos. Sua irmã teria uma vida
normal, Érico. Pais que a amariam de verdade, uma educação normal, amigas,
enfim... Tudo o que nós não podíamos oferecer... Porque nós somos seres de
outra dimensão. Nossa vida tem objetivos bem diferentes dos normais. Foi assim
que vocês foram separados ao nascer, querido. E por isso nós nunca contamos.
Seu pai e eu sempre soubemos que, mais cedo ou mais tarde, teríamos de reve-
lar a verdade, mas, pelos mesmos motivos, esperávamos que fosse mais tarde.
Olharam-se por um instante. Kaliel o observava com calma, tranquilidade.
Érico desviou o olhar. As espadas do pai estavam quietas sobre a mesa... Também
esperavam por sua reação. Murmurou:
— Eu entendo...
Um breve sorriso de Kaliel. Eles eram muito raros.
— Que bom, meu bem.
Levantou-se fluidamente e começou a preparar os pratos para o café.
— E como é que ela foi se casar com Sariel?
De costas, Kaliel suspirou. Respondeu enquanto preparava os pratos.
— Chame de sorte, ou azar, se preferir. Destino, talvez. Acaso, quem sabe.
Sariel comprou as empresas do pai de Aline e, quando se encontraram, foi amor
à primeira vista.
Kaliel se virou para Érico com um prato de refeição nas mãos. Começava a
colocar o desjejum na mesa, item por item. Muito lentamente, mas sempre o
prato, o talher ou a xícara de Érico primeiro. Movia-se como se fosse mais um
dia comum na sua vida, como se Érico tivesse novamente treze anos e estivesse
prestes a ir para a escola.
— Até onde seu pai e eu sabemos, eles realmente se amam... Pelo menos tanto
quanto Sariel é capaz de amar alguém. Parece que ele não a envolveu em seus
planos; ela não sabe de nada... Ou, pelo menos, não sabia.
— Quem te contou o que aconteceu?
— Edgar, por telefone, depois que você foi dormir.
— O que ele tem a ver com isso?
— Edgar também tem Abascanto. Ao contrário de você ou Aline, ele não
é um nephilim, mas nasceu assim naturalmente. Isso é muito raro, mas pode
acontecer. Na verdade, ele não adotou Aline a esmo. Quando a encontrou, tam-
bém percebeu o Abascanto dela. Na época, ele não sabia de quem era filha e

109
Abascanto: a sombra dos caídos

decidiu adotá-la para poder cuidar melhor dela. Seu pai e eu o encontramos
pouco depois, e ele tem sido nosso amigo desde então. Ele nos mantém a par
de tudo o que Sariel faz.
— E Sariel nunca desconfiou dele?
— Existem meios, meu anjo, de enganar a percepção de um caído com o seu
Abascanto. Edgar é muito, muito bem treinado nisso. Eu mesma o ensinei.
Kaliel não precisava ter perguntado o que Érico queria para o café-da-manhã:
desde os dez anos do sobrinho, ela o sabia de cor. O prato que ela colocou à frente
dele tinha um brioche com manteiga salgada, mozzarela de búfala, ovos mexidos
e um chocolate quente: tudo o que ele mais gostava para o desjejum. Teria sido o
suficiente para arrancar um sorriso dele.
Ela está se esforçando para me animar. Está mesmo...
Mas seu peito estava apertado demais para engolir qualquer coisa. Sentiu
a garganta dar um nó, que logo lhe chegaria ao olhos, e aí ele não conseguiria
mais se conter.
Controle-se!
Não engoliu o café da manhã, engoliu a angústia.
— Eu quero que você me treine, tia — disse, olhando fixamente para ela, sério,
resoluto.— Eu quero que você me ensine a lutar contra os caídos.
Kaliel ergueu os cantos da boca. O que era aquilo?... Pena ou satisfação? Érico
não sabia. Não se importava. A resposta da tia foi um acenar silencioso com a
cabeça.
— Me explica por que é que eu descarreguei um revólver naquela mulher e
ela não morreu.
— Por causa do escudo dela, Érico. Nós o chamamos de Aegis. Nós, os grigori
e os caídos, podemos alterar a energia do nosso próprio corpo de modo a con-
trolar a sorte e o azar a nosso favor. Isso cria um escudo ao nosso redor que faz
com que ocorram apenas coisas favoráveis. Com isso, mortais e pessoas inocen-
tes não detectam nossa presença. Eles até nos enxergam, mas os cérebros deles
nos ignoram, como se fôssemos insignificantes. É por isso que podemos lutar na
frente de todo mundo sem problemas. E, como o acaso está do nosso lado, nossos
golpes nunca vão afetar um mortal enquanto o Aegis estiver ativo, porque isso
não nos seria favorável. Você nos enxerga quando nosso Aegis está ativo porque
ele não o afeta, por causa do seu Abascanto. Mas, quando você atira com um
revólver, o Aegis também protege o dono. Balas, tiros ou qualquer coisa arremes-
sada não nos atingem. Passam bem perto, mas não é o suficiente. A única chance
é entrar em combate corpo-a-corpo, no qual o acaso não tem muita influência.
— Por isso vocês lutam com espadas...

110
Café-da-manhã

— Sim... Espadas ou outras armas brancas. Quando estamos lutando próxi-


mos um ao outro, os nossos Aegis se neutralizam, e vence quem tiver a melhor
habilidade.
— Eu posso aprender a usar esse Aegis?
— Não, querido. Seu corpo é feito de matéria deste mundo, e não é tão maleáv-
el quanto o nosso. Nós somos feitos de energia pura: a mesma energia que você
pode aprender a manipular, e que nós manipulamos. Por isso, nós conseguimos
alterar a natureza da nossa própria constituição. Pra fazer um Aegis, você teria
que mudar o seu próprio corpo; mas, como não é feito de energia, como o nosso,
ele resiste, ele quer continuar do jeito que está. Então, por mais forte que seja,
você nunca vai conseguir fazer isso.
Érico olhou novamente para o prato à sua frente.
— Teria sido bom saber disso antes...
— Tudo aconteceu muito rápido, meu bem. Se o confronto entre Sariel e seu
pai tivesse ocorrido depois que eu cheguei ao Brasil...
Kaliel parou de falar. A menção da luta que custou a vida do pai foi demais
para Érico. Mais uma vez, aquele aperto fez força para sair. Ele soluçou involun-
tariamente. Sentiu que ia chorar de novo.
Controle-se! Controle-se! Você precisa aprender a se controlar!
Com muito esforço, bem devagar, Érico engoliu a dor mais uma vez.
Kaliel suspirou devagar.
— Ah, meu anjo... Existe uma diferença muito grande entre aprender a se con-
trolar e não demonstrar sentimentos. Não tem nada de errado na tristeza, querido...
Droga, tia... Porque é que você tinha que dizer isso...
Parecia que a sua angústia só estava esperando um convite de Kaliel para
vencer a luta secreta. Érico não conseguiu se conter novamente. Foi tomado pela
memória da noite anterior. Estava outra vez no terraço. Olhava mais uma vez
para seu pai desaparecendo.
Sariel surgindo logo atrás.
Não conseguiu se conter. Tentou, mas não conseguiu. Agora, só via Sariel. O
rosto dele. A expressão resoluta, desprovida de sentimentos.
O assassino do seu pai. A pessoa que arruinara sua vida.
Érico se levantou de repente e lágrimas voaram pela cozinha. Gritou, deses-
perado. Pegou a cadeira e, sem pensar no que fazia, atirou-a longe. Urrou quando
ela atingiu a parede e quebrou a porta de vidro de um armário.
Kaliel se assustou com a reação violenta do sobrinho, por puro instinto, er-
gueu seu Aegis.
— Maldito! — ele urrava. — Desgraçado!

111
Abascanto: a sombra dos caídos

Esmurrou a parede. Sentiu seus ferimentos se abrirem.


— Desgraçado!!!!
Kaliel andou na direção dele. Érico tinha as mãos vermelhas e pintava a parede
com sangue. Kaliel lhe tocou o ombro, e ele se jogou em um abraço incontido.
Apertou a tia contra o peito como se fosse esmagá-la.
— Eu acabo com ele! Eu vou acabar com ele! Desgraçado!!! Matou meu pai!
Eu acabo com ele, tia!
— Shhhh... Eu sei, meu anjo... Eu sei...
— Eu acabo com ele! Eu juro que acabo, tia! Com aquelas espadas! Eu juro!
Érico olhava as espadas sobre a mesa quando as lágrimas permitiam, e lhe
parecia que, em meio a sua visão turva, elas brilhavam com uma única resposta:
Sim! Vingança!
Horas depois, Érico estava sentado na sala da casa, esperando Kaliel para
sua primeira lição. Quando a tia apareceu, Érico percebeu uma leve pontada de
tristeza no olhar dela.
É comigo que ela está triste... Não pelo meu pai...
— Tia...
— O que foi, querido?
— Você está triste comigo?
— Sim...
Érico não perguntou por quê. Achava que sabia.
— Meu anjo, você precisa superar isso logo...
A reação dele foi violenta.
— Superar? Tia! Ele matou meu pai! Meu pai!!
Kaliel se sentou ao lado dela.
— Ah, meu anjo. Eu sei. Eu não estou dizendo que vai ser fácil... Mas é perigo-
so... Para você. Todo esse ódio, toda essa raiva, meu bem, podem acabar sendo
seus inimigos... Eu preferia que você lidasse com isso de outra forma.
— Outra forma? Outra forma!? Tia! Como? Qual outra forma? Você não está
triste também? Seu irmão morreu!
Kaliel não se mexeu quando falou, mas Érico sentiu a suavidade da fala en-
volvê-lo com mais força do que qualquer abraço. Sentiu-se acolhido só pelo tom
de voz da tia.
— Ah, meu querido... Ele não morreu. Ele ainda está vivo. Seu pai está muito
bem! Ele agora está livre deste mundo e flutua pela imensidão do espaço. Ele
voltou para nossa dimensão de origem e está agora muito além do tempo. Está
vivo. Vivo no infinito da existência pura, no reino eterno da Paz.
Érico desviou o olhar. Queria evitar outra cena.

112
Café-da-manhã

— É... Mas ele não está aqui.


Kaliel suspirou.
— Se você não aprova o que eu sinto, por que é que concordou em me treinar?
A tia pousou a mão no ombro dele. O toque algemou seu olhar ao dela.
— Érico. Eu acho que você deveria lidar com isso de outra forma, meu anjo.
Encontrar em você a força para perdoar Sariel. Isso o colocaria muito acima dele.
Isso, sim, iria libertá-lo. A vingança, Érico, só vai abrir outro buraco no seu es-
pírito. Ela não preenche nada. Ela é só mais uma ilusão. Mas, meu querido, eu
nunca te abandonei na vida. Eu nunca te deixei sozinho antes. Eu não concordo
com você, mas eu vou estar com você. Eu vou te ajudar, Érico, porque, se você
não for mais forte do que essa situação, se você cair no abismo da vingança, meu
anjo, eu vou ter que estar do teu lado pra te dar a mão.
Érico teve de se controlar mais uma vez. Engasgou quando disse:
— Obrigado.
Kaliel sorriu e concordou com a cabeça.
— Agora, meu bem, quanto é quinze mais vinte e três?
Érico estranhou a pergunta.
— Trinta e oito?
— E quatro vezes dezessete?
— Sessenta e oito?
— E doze vezes cento e treze?
Érico pensou um pouco:
— Mil trezentos e cinquenta e seis. Tia, o que é que...
— Escute bem. Eu vou te ensinar a bloquear o poder dos grigori e caídos.
Eu vou te ensinar a usar sua energia para impedir que eles possam usar a deles,
entendeu? Eu vou ligar a televisão e te fazer várias perguntas como essas. Você
vai ter que responder todas em, no máximo, cinco segundos. Quando você con-
seguir responder tudo sem errar, vai ter conseguido bloquear a interferência da
televisão. É assim que você impede outro grigori de usar seus poderes, entendeu?
Franziu a testa.
— Como assim?
— Você vai ter que se concentrar nas perguntas e nas respostas, Érico, mesmo
com o barulho da televisão. Vai ser confuso no início. Você tem que separar uma
coisa da outra na sua mente. Aprender a pensar claramente, mesmo com uma
grande interferência externa: bloquear esse barulho todo. Quando você se con-
centra em outra pessoa, estabelece uma ligação com ela. Se você mantém essa
concentração e se isola do resto do ambiente, você também isola a pessoa.
Érico ergueu as sobrancelhas.

113
Abascanto: a sombra dos caídos

— E aí ela deixa de afetar o ambiente também! É isso?


Kaliel fez que sim. Ergueu a mão e a televisão foi imediatamente ligada no
volume máximo. O som fez as janelas tremerem. Os tímpanos de Érico rever-
beraram.
Ela não me disse que ia ser tão alto!
— Então, Érico querido, quanto é dezessete vezes oitenta e nove?

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Almoço
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VOL-
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família
DOLENTEM
DOLENTEM
CONSE DELES-
AECATAMUS,
TATE CONESTRUM

Os pães eram recheados de ansiedade. Os patês, uma pasta de expectativa.


As manteigas, um processado de esperança. As torradas, pequenos pedaços de
pavor.
Assim era o couvert de Aline.
Cada coisa que colocava na boca descia ao estômago e explodia mais uma
dinamite de tensão. Se pudesse voltar atrás, nunca teria marcado aquele almoço.
Era tarde demais. Precisava vê-lo, afinal de contas.
Mesmo depois de vinte e três anos, precisava vê-lo.
Mesmo que por um minuto, precisava vê-lo.
Mesmo que eles brigassem e nunca mais se falassem, precisava vê-lo.
Mesmo que ele odiasse seu marido, precisava vê-lo.
Precisava tanto que a cabeça latejava. Nenhuma posição era confortável. Tudo
o que comia a enjoava.
Deus, eu tenho um irmão! E nunca soube disso! Eu tinha um pai!
Se ela se levantasse dali, sabia que sairia correndo e não voltaria mais. Se ela
terminasse o couvert, sabia que pediria a conta.
Sua cabeça não parava de se virar para a entrada do restaurante.
Érico caminhava calmamente quando apareceu à porta. Era a pessoa mais alta
ali, ao lado da recepcionista, um gigante.
Aline se ergueu. Não porque quisesse, mas porque o coração a expulsara da
cadeira. Abriu as mãos com força quando percebeu que estava agarrando o peito.
Segurou um gemido que trouxe consigo o impulso de toda uma vida que ela
nunca havia conhecido, e tantas outras com a qual tinha sonhado.
Ele é forte! Uma montanha!
Sentiu que, só com o olhar, ele poderia quebrá-la ao meio.
Quando a recepcionista apontou em sua direção, e Érico a viu, foi exatamente
o que aconteceu.
Componha-se, garota! Você o chamou aqui! Mostre um pouco de segurança.
Olha como ele é forte! Mostre que pelo menos alguma força você tem também!

115
Abascanto: a sombra dos caídos

Cada passo que ele dava calava um pensamento em Aline. Quando ele chegou
à sua mesa, ela era silêncio.
Érico olhou furtivamente para a mesa, baixou o olhar por um instante e coçou
a cabeça. Ela tinha o mesmo costume! Aline não pôde evitar levar às mãos à boca
e deixar a visão marear.
Antes da respiração seguinte, estavam se abraçando. Aline apertava as costas
do irmão como se, esmagando-o, ela também esmagasse todas as noites em que
havia desejado uma família “de verdade”. Sentiu o cabelo que lhe caía pelos om-
bros, afagou-lhe o rosto com as mãos. Deixou que ele retribuísse, desajeitado, o
abraço, e só conseguia pensar em uma coisa:
Ele está aqui! Eu tenho um irmão! Isso está realmente acontecendo!
Quando se sentaram, o restaurante inteiro os olhava de soslaio.
Danem-se!
Havia ao redor uma aura só deles. Estavam em um mundo à parte. Aline lim-
pava os olhos com o guardanapo, e Érico não se decidia entre o riso e o sorriso.
Foi ela quem começou:
— Érico, é? Érico de quê? Qual é o seu... o nosso sobrenome?
— Gildor Armoni. Érico Gildor Armoni.
Aline se reclinou.
— Meu Deus, Érico. Eu quero saber de tudo! Tudo!
Érico olhou para o lado. O sorriso ainda lhe sublinhava o rosto, mas uma
sombra passou por sua expressão:
— Ele... Ele sabe que você está aqui?
Um eclipse na sua manhã, e Aline sentiu as torradas lhe sussurrando ameaças.
Ele quer saber de Sariel. Só o que ele quer saber é de Sariel! Por que é que ele não
pode aproveitar o momento?
— O San, não... Ele não sabe, não. Ele pediu para eu não entrar em contato
com você. Disse que ainda era muito cedo.
— Então por que você me chamou?
A descrença de Aline engoliu Érico em seco quando os dois se olharam. A
resposta lhe travou a garganta e parou por um instante para lhe esfaquear o peito.
— Porque toda a minha vida eu sonhei com você! Quem eram meus pais... Se
eu tinha irmãos, tios, tias. Nada nunca me faltou, mas à noite, quando eu estava
sozinha, eu sempre me perguntava, eu pensava... como é que seria? E agora você
está aqui! Como é que eu poderia não te chamar?
Érico se encostou na cadeira e pareceu descansar pela primeira vez.
— Eu nunca soube que tinha uma irmã... Mas, quando descobri... Eu também
quis saber, Aline. O Edgar parece ser um cara muito legal. Eu não...

116
Café-da-manhã

Érico inspirou. Seu rosto se contorceu de esforço. Engoliu uma torrada com
patê quase sem mastigá-la. A voz saiu oprimida:
— Eu nunca tive uma mãe, sabe. Você tem uma tia, Kaliel. Foi ela quem
ajudou meu pai a me criar, mas eu também me perguntava... às vezes... como
é que seria...
— Então me conta tudo, Érico. Quem era meu pai?
Érico olhou para a mesa... para o casal ao lado... para cima... para todo o lugar,
menos para Aline. Inspirou fundo. Concentrou-se. E só então Aline percebeu.
Ah, meu Deus! O que foi que eu disse!
Mas era tarde demais: Érico havia começado.
— Ele era a melhor pessoa que eu conheci. — A pergunta de Aline estrangu-
lava aos poucos sua resposta. — Ele sempre me ajudou. Ele sempre me ouviu. —
Uma enchente de memórias quebrava sua voz. — Ele nunca me bateu, sabe! Ele
me dava broncas, mas era só. Ele me ensinou a lutar e...
Aline estendeu a mão e tocou-lhe o ombro. A sombra do erro lhe estrangulava
o rosto e a impedia de respirar.
Érico enterrou o rosto em uma das mãos. A outra se fechou, tentando
parar de tremer. Uma ânsia visceral o percorreu por inteiro e lhe endureceu
o corpo.
Bateu na mesa, e toda a conversa do restaurante cessou. Sussurros esguios se
ergueram, acusando os dois em cada sombra. Aline sentiu a batida no próprio
coração, e os olhares dos garçons e clientes a desnudaram.
Quando Érico olhou para ela, Aline poderia jurar ter visto um halo de fogo
ao redor do irmão.
— Ele vai pagar por isso, Aline.
Uma única frase, e todas as esperanças foram despedaçadas. Sangravam
promessas, gemiam tristeza.
Aline teria se erguido e saído do restaurante, mas o olhar de Érico a prendia
no lugar.
— Não me importa que ele tenha sete mil anos ou o quê! Eu vou matá-lo,
Aline! Eu vou acabar com esse cara!
Facadas e facadas, ele lhe dava. Aline as sentia, frias e agudas. Uma atravessou
a mão com que ela agarrava o peito. Outra cortou-lhe a garganta, transformando
sua réplica em um gemido incoerente. Uma terceira separou-lhe a coluna e a pôs
inteira a tremer.
— Fala isso pra ele quando você o encontrar da próxima vez! Fala que ele é
meu! Kaliel está me treinando! Eu vou aca...
— Para!

117
Abascanto: a sombra dos caídos

Uma frase tímida. Inaudível, a não ser para os dois. Atingiu Érico exatamente
na garganta. Ele se engasgou com todas as ameaças que não chegou a fazer e
levou-as todas aos olhos, nos quais ardia a memória da última noite de Daqshael.
— Para, pelo amor de Deus, cala a merda dessa boca!
O silêncio afagou os irmãos, caiu fino sobre a mesa, soterrou o fogo de Érico
e as feridas de Aline. Deixou cinza o mundo ao redor deles, cortou um precipício
entre os dois, baixou um muro de certezas sobre cada um e mostrou-lhes, mais
uma vez, seus motivos no espelho da memória.
Somente Érico ouviu Aline:
— Eu o amo, Érico.
Érico respirou pesadamente antes de responder:
— Ele matou meu pai, Aline.
— Então você vai matar meu marido? É assim?
Érico olhou para baixo e cerrou os punhos. Aline se preparou para outra por-
rada na mesa, mas, em vez disso, Érico se ergueu devagar. Cortou-a em dois
quando a transfixou com seus olhos.
— Diga a ele, Aline. Diga que seus sete mil anos acabam comigo.
Não esperou resposta e não deu a ela mais chances. Afastou uma cortina de
olhares ao caminhar. Levou consigo as noites em que Aline pensara em sua famí-
lia, seus pais biológicos, na vida que nunca tivera. Saiu do restaurante, saiu das
esperanças da irmã, saiu de todas as chances que ela poderia lhe dar...

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Vários dias se passaram.


Érico hesitou.
Como será que o Guilherme vai me receber? Caramba, eu fiquei mais de uma
semana fora. Ele deve ter se preocupado pacas... E agora eu vim pegar minhas coi-
sas para sair de vez do apartamento. Ele vai ficar chateado...
Bom... Que venha o que vier. Eu tenho que fazer isso mesmo, estou sentindo
falta dos meus instrumentos de treino.
Poderia ter usado a chave, mas resolveu tocar a campainha.
Guilherme abriu a porta e ficou uns dez segundos parado, olhando para Érico.
— Ora, ora... Quem é vivo...
Érico sorriu, sem jeito. Mal olhou nos olhos do amigo.
— E aí? Vai ficar parado aí ou vai me explicar o que foi que aconteceu?
— Oi, Guilherme... Eu te falei que ia passar aqui para...
— Pegar suas coisas... É... Você me falou. Caramba, Érico. Você some por uma
semana e depois só liga pra falar “estou indo aí pegar as minhas coisas”? O que
foi que aconteceu, cara?
Guilherme abriu espaço para Érico entrar. Érico ainda não sabia o que contar
ao amigo...
— Eu... tive uns problemas, Guilherme...
— Não me diga! Primeiro você fala que viu um assassino na rua; depois ele
aparece aqui e você sai correndo... O que é que está acontecendo, Érico?
Érico suspirou. Virou-se para Guilherme.
— É complicado, Guilherme... Meu pai...
Nao posso contar para ele... Não posso contar nem mesmo que meu pai morreu...
— Meu pai se envolveu com as pessoas erradas, e agora eu tenho que ir
embora...
Guilherme arregalou os olhos.
— Sério? Mas... está tudo bem? Você vai ficar bem? Como assim?
— Eu não posso falar mais, Guilherme... Me desculpe...

119
Abascanto: a sombra dos caídos

Os dois olharam para o chão. Segundos de silêncio se abriram entre eles, for-
mando um abismo que não se fecharia mais.
Érico entrou naquele apartamento que, pouco tempo antes, também era seu.
Sentiu uma breve nostalgia. Quantas noitadas os dois tiveram naquela sala...
Quantas vezes os vizinhos já haviam ligado para o zelador reclamando do barul-
ho de madrugada? Quantas peças pregaram, quantas noites em claro passaram
fazendo trabalhos de faculdade...
Tudo aquilo pertencia a uma vida passada agora. Uma vida prosaica, co-
mum. Sem grigori e caídos, sem Abascanto e Aegis. Uma vida que ele jamais
teria novamente.
Foi com saudade que ele olhou para o apartamento.
Guilherme lhe entregou um conjunto de pen-drives.
— Eu separei aqui todos os seus arquivos do micro.
Érico os aceitou, mudo.
— Eu também já separei a maioria das coisas no seu quarto.
— Obrigado.
— Ligaram da sua academia. Queriam saber por que você não foi treinar na
semana passada.
— E o que é que você disse?
— O que eu disse? Que não tinha ideia. Que não sabia de nada. Você não
achou que eu ia dizer que você saiu correndo no dia do aniversário depois que
viu um assassino na rua?!
Érico concordou. Virou-se para o amigo e teve um repentino pensamento,
uma imagem intrusa na mente. Viu seu amigo parado no meio de uma sala em
chamas. Sabia que estava assistindo à morte dele.
Deu um passo involuntário para trás.
— Caramba, o que foi agora? Você é muito estranho, sabia?
O que é que eu faço? Eu vi a morte dele na minha frente!
Tentou se concentrar na imagem, como Kaliel o havia ensinado. Prendeu-a na
mente e soltou a imaginação em seguida, mas não viu mais nada. Até a imagem
que via já estava sumindo em meio aos pensamentos normais.
— Premonições são muito traiçoeiras — ela o havia ensinado. — Elas vêm
sem que você as espere, e quanto mais você tenta mantê-las, mais rapidamente
elas desaparecem. O truque é entrar em um estado de passividade completa.
Forçar uma premonição é o jeito mais simples de evitá-la, ou de acabar com
uma que você teve.
Érico tentou limpar a mente. Afastar qualquer pensamento intruso e silen-
ciar, deixar a imagem correr seu curso natural. Mas ele realmente queria aquela

120
Batismo de fogo

premonição: desejava saber mais. Tão rápido quando veio, ela se foi, e Érico não
soube de mais detalhes.
— Droga! — disse, irritado.
— Mas qual é o seu problema, cara?
E agora? O que eu digo para ele?
— Érico...
— O quê?
— Você não está se drogando, né?
Érico riu.
— Não... Nada disso...
— Sei... Bom, você ainda sabe onde é o quarto, não?
— Sim...
No seu antigo quarto, colocou as malas que havia trazido no chão e começou
a esvaziar o armário, colocando as roupas sobre a cama. Ia também separando
suas armas de treino.
Minha vida está de ponta cabeça... Eu nem posso falar pra ele da morte do meu
pai... Caramba, eu não posso falar pra ninguém! E a minha irmã, casada com
Sariel. Eu preciso aparecer na academia. Mestre Kong deve estar preocupado tam-
bém. E o que é que eu vou dizer? Que confusão...
Arrumava as malas de forma automática. Não imaginara que em três anos
tivesse acumulado tanto lixo. Papéis e mais papéis inúteis apareciam. Apostilas
da faculdade, trabalhos, revistas. Antigas agendas. Recibos de cartão de crédito
com mais de um ano... A pilha de lixo não parava de crescer.
Vou precisar voltar aqui várias vezes até dar conta de tudo.
Ouviu a porta abrir, achou que era Guilherme saindo para fazer alguma
coisa.

Belial entrou pela porta do apartamento, ainda aberta. Passou pela cozinha e
pela sala. Viu Guilherme ligando a televisão e se sentando no sofá. Estava a um
braço dele, e o rapaz não a via.
Esse garoto pode ser um problema.
Concentrou-se ligeiramente nele e enviou uma única ordem a seu cérebro.
Durma!
Guilherme caiu no sono ali mesmo. Belial abriu o mais breve dos sorrisos.
Érico continuava sua arrumação quando foi surpreendido por uma voz suave
vinda da porta do quarto:
— Ora, ora... Quem voltou para casa?
Virou-se subitamente.

121
Abascanto: a sombra dos caídos

Parada à porta, recostada no umbral, Belial lançou-lhe um olhar negro e fixo.


Tinha uma boca carnuda e convidativa. Longos cabelos negros caíam pelas suas
costas. Seus dedos brincavam marotos com o batente. Estava usando uma jaqu-
eta de couro e uma calça folgada.
Érico a reconheceu na hora. Jamais esqueceria aquela mulher.
— Eu sabia que, se ficasse esperando, mais cedo ou mais tarde você iria acabar
voltando para cá.
Érico engoliu em seco. Teria dado um passo para trás, se já não estivesse en-
costado na parede. Detestava aquela mulher. Ela participara da morte de seu pai,
vencera-o de forma humilhante. Queria vê-la cortada em pedaços. Ela, que o
havia nocauteado com um soco apenas.
Mesmo assim, recoberto de raiva como estava, sentia algo mais. Uma sensa-
ção inesperada. Conhecida e surpreendente.
Sentia que estava diante de uma pessoa que poderia facilmente derrotá-lo.
Sentia que um movimento em falso poderia lhe custar a vida, e que Belial tinha
pleno controle da situação.
Estava com medo. Sentia-se indefeso.
Não esperava por aquilo. Não achara que se renderia tão facilmente quando
a reencontrasse.
Belial soltou uma risada breve e caminhou lentamente na direção dele.
— Você não está entendendo, garoto. Eu não vim para brigar. Não estou ar-
mada — e abriu os braços para mostrá-lo. A roupa ressaltava todas as suas for-
mas. Andava bem devagar, não tirava os olhos dele, e molhava a boca com a
língua. — Eu só vim conversar.
— A gente não tem o que falar — engasgou ele.
Apenas a cama os separava.
— Não mesmo? Bom... Então, tudo bem. Mas seja racional, Érico... Você acha
mesmo que pode, sozinho, desafiar a mim ou Sariel? Garoto... Eu tenho sete mil
anos de vida. Sabe por quanto tempo eu treinei a espada? — Contornou a cama,
reclinou-se sobre o armário que Érico havia aberto. — Érico... Ponha a mão na
consciência... Você não tem a menor chance... — Mais um passo, e Érico sentiu
seu perfume.
Havia algo naquele andar, na maciez da sua voz, no seu olhar. Uma espécie de
convite. Algo parecido com um chamado que envolveu Érico, e do qual ele não
conseguia se soltar.
— Por que lutar contra nós, Érico? O que aconteceu foi um acidente. Se
o que você quer são desculpas... Eu não tinha a intenção de te machucar,
rapaz...

122
Batismo de fogo

Se erguesse as mãos, Érico poderia tocá-la. Retraiu um movimento e perce-


beu, horrorizado, que queria segurá-la.
Belial ergueu uma das mãos e roçou o queixo dele muito levemente. Com a
outra, começou a abrir a jaqueta.
Não tinha nada por baixo.
Érico estava atento. Enraivecido, amedrontado, atento. Se ela fizesse a menor
menção de usar seus poderes — se Érico sentisse que ela estava concentrando
energia —, ele a teria impedido no mesmo instante. Havia treinado para isso.
Não estava preparado para o que ela fez.
Sentiu seu hálito: perfumado.
— Por que lutar, garoto?
A jaqueta de Belial caiu ao chão e, com um leve toque, a calça a seguiu. Os
olhos de Érico dançaram pelos seios dela, por seu ventre, por toda ela. Belial
afagava o próprio peito, acariciava a si mesma.
Sua mão agarrou os genitais do rapaz. Érico sentiu um calor subir-lhe pelo
corpo. Não conseguiu impedir uma ereção.
— Quando podemos ter tanta coisa a mais!
Com a outra mão, acariciou-lhe o queixo. Érico abriu a boca levemente. Em
parte pasmo, e em parte atendendo àquela sensação que o dominava. Belial não o
deixou falar e puxou-lhe o rosto, envolvendo-o em um violento beijo. Devorava-
o, sugando-lhe a garganta e procurando a língua dele com voracidade.
Érico ficou completamente sem ação.
Belial o jogou na cama e caiu por cima dele. Érico tentou afastá-la, mas ela o
envolveu em um abraço, que ele, sem saber por que, só pôde retribuir.
Sentiu a mão dela entrar-lhe por baixo da camisa e acariciar seu peito. A outra
mão procurava um caminho para afagar sua virilha; sentiu-a massagear seu membro.
E ela sabia muito bem como massageá-lo.
Belial suspirou no ouvido dele um suspiro visceral. Todos os pelos de Érico
se eriçaram.
Ela desabotoou-lhe as calças. A camisa já estava arriada até os ombros, e o
envolvia em outro beijo. Érico sentia os mamilos dela roçarem os seus. Uma das
mãos acariciava-lhe a nuca, enquanto a outra o masturbava.
Havia sido aprisionado por aquela mulher. Não havia nada de outra dimen-
são no que ela estava fazendo. Érico respirava pesadamente. Ela o havia der-
rotado nas artes marciais, e agora o derrotava no sexo. Ela o dominava por
completo.
Tentou protestar, mas só conseguiu gemer de prazer.
Ele queria ser dominado.

123
Abascanto: a sombra dos caídos

Belial beijou e lambeu o pescoço dele. Por um instante, ela afastou a cabeça e
os dois trocaram um olhar. Preparava-se para beijá-lo novamente.
Trocaram um olhar.
Érico a viu bem de perto. A mesma face que havia lutado contra ele no ter-
raço. A mesma mulher que o imobilizara no chão. A mesma pessoa que, dias
antes, quisera matá-lo, e o teria feito, não fosse o sacrifício de seu pai. Mais uma
vez, em um flash, viu Daqshael se desfazendo na sua frente.
Um breve momento de lucidez.
Talvez fosse o último.
— Fica comigo, garoto. Sou toda sua!
Uma das mãos de Érico, estendida sobre a cama, encontrou uma de suas ar-
mas de treino. Uma faca. Sem corte, mas com ponta afiada.
Antes que deixasse de ver a imagem do pai na memória, antes que se entre-
gasse por completo a Belial, colocou toda a força que lhe restava no braço, toda
a razão que ainda conseguia usar. Cravou a faca nas costas daquela mulher. A
lâmina passou à direita da coluna, atingindo o fígado por trás.
Belial arqueou as costas com um urro selvagem. Érico se levantou rapidam-
ente, jogando-a no chão. Enquanto ele fechava as calças, Belial se ergueu e arran-
cou a faca. Uma ira assassina nos olhos.
Érico já a tinha visto daquele jeito. Estava decidida a matá-lo.
A faca deixara o corpo de Belial sujo de sangue, mas Érico viu que aquele sangue
se desfazia em pleno ar. Um leve brilho envolveu a faca, e ela estava limpa novamente.
Apenas a cama os separava. Belial respirava pesadamente. Seus olhos eram
uma explosão.
— Seu pirralho malcriado!
— Sua piranha vagabunda!
Aquilo a surpreendeu. Achava estar dominando a situação por completo. Não
esperava que Érico conseguisse se concentrar o suficiente para enfrentá-la.
— Nunca! Eu nunca vou ficar com você, sua vaca! Você e o seu irmãozinho
podem contar seus dias! Eu sou a morte de vocês!
Belial soltou uma gargalhada de desprezo. Não disse mais nada.
Érico achou que ela estava inspirando fundo, que um vento passara por ele,
em direção a Belial.
Ela está concentrando energia. Vai tentar um ataque mental.
Lembrou-se de seu treino com Kaliel. De como ele tinha conseguido dar as
respostas com a televisão no volume máximo. Bloqueou toda a distração. Con-
centrou-se em Belial. Imaginou que ela era a pergunta, e todo o mundo ao seu
redor era o barulho do televisor.

124
Batismo de fogo

Érico sentiu que Belial soprava. Estava projetando a energia para fora, com
violência, mas o bloqueio de Érico segurou todo o impacto. Estavam em um cabo
de guerra. Ela empurrava a energia para fora, ele tentava contê-la. Imaginou-se
segurando uma bomba que explodia, forçando a explosão para dentro.
Depois de uma semana inteira de treino, acreditava estar preparado para um
confronto como aquele, mas Belial havia treinado por milênios: a pressão dela
era enorme. Érico prendeu a respiração sem perceber. Apertou as mãos. Concen-
trou-se ao máximo. Nada escaparia.
Belial levou as mãos à cabeça. Não tirava Érico da frente.
Ela também está com problemas.
De repente, ele percebeu:
Eu estou conseguindo! Estou enfrentando esta mulher naquilo que ela faz mel-
hor, e estou vencendo! Eu posso conseguir! Eu sou páreo para ela!!
Uma onda de animação o atingiu. Sentiu-se reforçado. Eu vou vencê-la! E di-
recionou mais atenção a ela. Jogou para cima de Belial uma potência que não
sabia dizer de onde tinha vindo.
Belial se ajoelhou. Soltou outro gemido, dessa vez de esforço. Entre eles, uma
barreira de energia se formava. As intenções conflitantes de ambos estavam ali-
mentando a si mesmas. Toda a energia liberada começava a afetar o ambiente.
O quarto se aqueceu. Érico começou a suar. Estava mantendo a concentração
havia quanto tempo? Um minuto? Dois? Belial ainda lançava sua energia contra ele.
A impressão que Érico teve foi de que tinha uma represa nas mãos.
A certa altura, a barragem rachou.
Foi como um balão estourando. Érico não conseguiu mais bloquear a energia
de Belial e, quando ela conseguiu escapar por algum lado, toda a barreira ruiu
de uma vez só.
No último instante, quando percebeu que não iria mais conseguir impedi-la,
Érico ainda teve o reflexo de recobrir a si mesmo com uma outra proteção. Re-
tirou seu bloqueio de cima de Belial e revestiu-se com ele.
O quarto explodiu.
Na rua, várias pessoas que passeavam pela calçada do prédio foram surpreen-
didas pelo estrondo. Uma imensa labareda surgiu pela janela do quarto de Érico,
alguns pedaços de móveis voaram prédio abaixo.
Diriam as testemunhas que foi como se uma bomba tivesse explodido.
Érico foi jogado contra a parede. As chamas da explosão passaram a poucos
centímetros dele, mas a onda de choque o atingiu em cheio. Quando ele bateu na
parede, toda a energia que havia concentrado se dissipou. Perdeu completamente
o fôlego. Até seus ossos pareceram pesados demais.

125
Abascanto: a sombra dos caídos

Caiu semiconsciente no chão. Tonto como estava, ainda podia ouvir as laba-
redas crescendo a seu redor. A fumaça estava se concentrando, tudo estava rubro
ou cinza.
Quando a visão clareou, por alguns instantes achou que havia entrado no inferno.
Tentou se levantar, mas, enfraquecido, não saiu do chão.
Meu Deus, eu preciso sair daqui!
Nenhum sinal de Belial.
Arrastou-se pelo chão. Não tinha forças para mais nada. Chegou à porta e
tentou usá-la para se erguer, mas ela estava quente demais. A sala também estava
em chamas. O apartamento inteiro.
Deus do céu, eu vou morrer aqui!
Eu TENHO que me levantar. Pelo menos engatinhar.
Com muito esforço, ficou de quatro. Não conseguia se mover mais rápido.
Ainda estava tonto e começara a tossir.
Ouviu, à sua frente, a cozinha explodir.
Engatinhou pelo apartamento. Tossia sem parar. Quando passou pela sala, em
direção à porta, viu no canto oposto Guilherme caído no sofá. Chamas comiam,
de um lado, uma cortina, e do outro, uma estante de madeira, e começavam a
subir pelas roupas dele. Estava desacordado.
A porta do apartamento estava aberta.
Sair... Eu preciso sair daqui. Mas Guilherme... Meu Deus.
Tentou se erguer. Cada músculo doía. Quase desmaiou.
Eu tenho que salvá-lo!
Ergueu-se. Deu um passo na direção dele. Percebeu que ele começava a se
mexer e tossia fracamente.
A estante de madeira, repleta de labaredas, caiu sobre seu amigo. Guilherme
acordou imediatamente com o impacto e, ainda desnorteado, percebeu que
estava preso em um incêndio.
Olharam-se.
— Guilherme!
— Érico! Socorro!
Érico cambaleou para o lado e caiu no chão da sala. O calor era insuportável.
Guilherme começou a gritar. Debatia-se sob a estante, apavorado, sem forças
para erguê-la.
— Érico! Érico!
Tonto, Érico virou o rosto. Nunca se sentira tão fraco. Mal conseguia engatinhar.
As roupas de Guilherme estavam em chamas. Seu rosto, envolto em labaredas.
Gritava, desesperado. Não conseguia mais falar. Apenas dava vazão à dor.

126
Batismo de fogo

Érico não conseguiu nem sequer se levantar. Com uma das mãos, encostou na
estante caída, mas ela estava quente demais.
Tossiu. Colocou-se de quatro novamente.
Cada grito de Guilherme lhe cortava um pedaço do espírito. Cravavam em
sua memória um lugar de onde nunca sairiam.
Não! Guilherme!
A cortina caiu ao chão.
Guilherme não gritava mais. Érico sentiu o cheiro de carne queimada. Vomi-
tou. Era seu amigo. Era a carne de seu amigo que ele farejava.
Não, não!
Olhou ao redor. Fumaça por todo o lado. Chamas envolviam o lugar.
Tentou gritar, mas perdeu o fôlego. Mais uma vez, tentou se erguer e não
conseguiu.
Usou todo a força que lhe restava para engatinhar para fora, antes que ele tam-
bém perdesse a consciência e morresse. Quando chegou ao hall do elevador, um
dos vizinhos, que já corria em direção à escada de incêndio, o ajudou a se erguer.
Érico juntou o que restara da sua concentração. Tentou ordenar seus pensa-
mentos uma última vez. Pensou na tia, Kaliel. Fixou a imagem dela na mente.
Quando achou que, se continuasse, iria acabar desmaiando, mandou-lhe um
único pensamento:
Tia! Me ajude! Estou no meu antigo apartamento!
Foi a primeira vez que mandou uma mensagem mental de forma consciente.
Depois disso, apagou.

127
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M
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DOLENTEM
DOLENTEM
DOLENTEM
CONSE DELES-
AECATAMUS,
TATE CONESTRUM

Sariel explicava para Aline:


— É tudo uma questão de equilíbrio, amor. As coisas não saem do lugar
porque estão equilibradas. As forças nelas se anulam. Para mover um objeto a
distância, você precisa causar um desequilíbrio nas forças dele. Então, fixe-o
muito bem na sua mente. Concentre-se nele. Faça isso até sentir que ele é uma
parte sua, até sentir que ele é uma extensão do seu corpo. Quando você chegar
nesse ponto, o segredo é não tentar mover o objeto, mas tentar mover a si mesma
na direção oposta. Já que você e o objeto são um, essa intenção vai agir no objeto
também. Só que ele está equilibrado com você. Então, para compensar, ele vai se
mover na direção contrária. E aí, ele flutua.
Sariel abriu os braços. Sobre os cobertores, à frente deles, o controle remoto
do televisor ergueu-se em pleno ar com a maior naturalidade.
Aline ergueu as sobrancelhas.
— Entendeu?
— Acho que sim.
— Então, tente você.
Aline fitou o controle atentamente.
— Não, não o controle, amor. Eu acabei de levitá-lo, e ele está cheio da
minha energia. Vai ser muito mais difícil você agir sobre ele. Tente com outra
coisa.
— Tá bem.
Alcançou com a mão uma caneta em sua cômoda e a colocou à sua frente.
Sariel via a energia da esposa estendendo-se de sua aura em direção à caneta,
envolvendo-a.
Ela está fazendo tudo errado. Está pensando na caneta, ao invés de se concen-
trar nela. A energia fica envolvendo o objeto e não se integra. Mas não posso falar
isso. Aline funciona muito melhor com estímulos positivos do que negativos. Tenho
é que esperar que ela faça algo certo e encorajá-la com isso.
Acompanhava o progresso da esposa. Em certos intervalos, dizia:

128
Aula

— Muito bem, amor. Por um instante, você realmente se uniu com a caneta,
mas a deixou escapar. Se concentra nesse sentimento, querida, porque você es-
tava indo muito bem.
Aline inspirava fundo e tentava de novo.
Interessante... Todo mortal, quando começa a treinar telecinese, acha que tem a
ver com respiração... Eles inspiram para concentrar energia, mesmo que uma coisa
não precise da outra.
Estava atento às tentativas de Aline quando ouviu a voz de Belial. Clara, ou-
viu-a logo atrás da nuca, como se Belial estivesse a um passo dele.
Uma comunicação mental.
Sariel!
Sariel teve de voltar sua atenção para a irmã e deixar a esposa treinar por
si mesma.
— O que foi, Belial? Por que é que você está me contatando por telepatia? Você
sabe como isso cansa.
— Eu não tinha opção, Sariel. Eu tive um encontro com Érico.
— Você o quê? O que é que te deu na cabeça para fazer isso?
— Eu tentei recrutá-lo.
— Pelos sete infernos de Kali, irmã! Eu não te disse que ele nos odeia? Vira e
mexe ele ainda me manda um ataque psíquico completamente desordenado. Ele
não consegue deixar de pensar em mim com ódio mortal!
— Eu tentei apelar para o lado masculino dele.
— Má ideia...
— Eu percebi. Apesar de tudo, ele resistiu.
— Ele está vivo?
— Sim, mas eu acabei incinerando o apartamento dele.
— Como é? Você bebeu? Não tem nada mais incompetente que você tenha
feito hoje?
— Tá bem! Então eu errei. Estamos quites. Você apagou a mente do seu pesqui-
sador, e eu tentei seduzir o garoto.
— Isso só vai fazer com que ele nos odeie mais, Belial.
— Eu sei, Sariel. Mas eu tinha que tentar. Nós tivemos uma luta mental, Sariel,
e ele está muito bem treinado. Te juro que desde Napoleão eu não encontrava um
nephilim tão forte.
— Mas que ótimo, caríssima irmã! E agora ele está com raiva de você também!
— Precisamos cuidar disso, Sariel.
— Precisamos? Como?
— Vamos até a casa de Kaliel pegá-lo.

129
Abascanto: a sombra dos caídos

— Qual é o seu problema, Belial? Ele é deste mundo. Não, não podemos simples-
mente atacá-lo sem infringir a regra. Você quer dar a Kaliel o pretexto de que ela
precisa para vir atrás de nós? Esqueça isso, irmã. Ele é só um moleque com Abascanto.
Sariel passou a mão na testa e fechou os olhos. Já sentia uma leve pontada
na nuca.
— O que nós precisamos fazer, Belial, é ganhar tempo. Eu recebi um relatório
de Sorocaba que diz que eles estão muito próximos de confirmar a versão final de
Deucalion. Aliás, por que é que você não está lá?
— Eu queria conversar com Érico, Sariel. Eu achava que podia convencê-lo.
— Esqueça isso. Concentre-se em Deucalion. Em breve, Érico não vai significar
mais nada. Nós estamos tão próximos, Belial, faltam apenas alguns dias. Vá para
Sorocaba e deixe-me descansar.
Quando Sariel abriu os olhos, a caneta flutuava a meio metro de altura.
Aline se concentrava nela atentamente. Quando viu que Sariel a observava,
abriu um largo sorriso e disse:
— Sá, consegui!
A caneta caiu.
Sariel sorriu.
— Parabéns, querida. Agora só trabalhe para mantê-la no ar. É preciso con-
centração constante.
Aline se ajeitou ao lado dele na cama e o abraçou.
— É fantástico, amor! Eu nunca imaginei que estaria fazendo isso!
Sariel lhe acariciou a face.
— Você vai ter que se acostumar a poder fazer muitas coisas novas, querida.
Isso é como a caixa de Pandora. Quando você começa a se desenvolver, não
para mais.
Aline suspirou e se acomodou sobre o peito dele. Desde aquele dia, na pi-
scina, ela estava lentamente se acostumando à ideia de ter se casado com um
caído. Estava reaprendendo a conviver com ele, mas Sariel percebia, em um
olhar rápido ou gesto hesitante, que ela não o havia perdoado. Aceitava, mas
não perdoava.
— O que são vocês, Sariel? Na sua dimensão?
— Nós também temos nossas próprias vidas. Interagimos, estudamos, temos
conflitos e amizades, aprendemos com a vida. Nós também temos um corpo,
uma mente e um espírito. Só que o nosso corpo não é feito da mesma matéria que
o seu. Ele é feito de energia. É uma energia bastante real, mas os aparelhos deste
mundo ainda não conseguem detectá-la.
Aline suspirou.

130
Aula

— Sete mil anos... Quem diria... Como é que um homem de sete mil anos
vê a vida?
— A vida, Aline... A vida é um dos presentes mais preciosos que a humanidade
recebeu e que teima em não aproveitar. É verdade que eu já vi muita gente nascer
e morrer, Aline... Muitas dessas pessoas eram bem próximas a mim. Mas a morte
e a vida são dois lados da mesma moeda: a moeda da existência, que é eterna e
indestrutível. Neste mundo de vocês, a morte é o que dá razão à vida. Sem a morte,
suas vidas não teriam o mesmo sabor. Vocês não aprenderiam tanto, nem em tão
pouco tempo. Tudo neste mundo tem ciclos, estações. E todas elas vêm e vão. Tudo
o que começa, acaba. Nada dura para sempre. Morrer é preciso, Aline. Sem esse
passo, toda a jornada da alma, que se estende para muito além de infinitos infinitos,
iria cessar.
Os mortais sempre têm problemas para aceitar a nossa existência. Aline ain-
da foi excepcionalmente aberta à ideia... Levando em conta a situação... Quando
minha última mulher descobriu, por pouco não cometeu suicídio.
— Mas Sá... você vai viver para sempre... e eu não. Eu vou envelhecer e mor-
rer... e você vai continuar sempre assim.
Sariel lavou as preocupações da esposa com o olhar. O ar que expirava era
suficiente para acalmá-la.
— Sim, eu vou. E você acha que vou te amar menos no futuro? Você acha
mesmo que eu me casei com o seu corpo, e não com o seu sorriso? Com esse
brilho inocente que você tem nos olhos? Com a força desse seu coração, que, se
pudesse, ia bater no peito do mundo todo?
Aline acariciou a face do marido enquanto recuperava o fôlego. Inspirou lon-
gamente, com um sorriso.
— É que... deve ser tão solitário para vocês...
Aline podia jurar que uma pequena constelação se acendeu no fundo dos
olhos de Sariel.
— Não menospreze o poder da memória, meu anjo. A eternidade não é uma
coisa que acontece uma hora, e daí para frente é tudo igual. Ela está aqui, neste
instante, e todos fazemos parte dela. Você nunca vai me deixar, porque os mo-
mentos que passamos juntos estão gravados na mente do Universo. Cada emoção
que nós vivermos vai ecoar pelos confins do cosmos para sempre. Eu sempre vou
te amar, Aline. Hoje, amanhã, daqui a mil anos... porque eu te amo agora.
Não havia como resistir a um convite tão simples para o beijo mais longo que
trocaram. Aline não queria mais nada. Não queria nem mesmo a si: ela era toda
uma vontade de se entregar completamente ao marido.
Quando terminaram, ficou delineando o peito de Sariel com o dedo.

131
Abascanto: a sombra dos caídos

— Como é que vocês vêm para cá? Por quê?


— Por muitos motivos, amor. Na maioria das vezes, para tentar ajudar. A gente
sente que a coisa vai mal e manda um grupo de grigori pra tentar aconselhar os
líderes, ou mostrar um novo caminho pras pessoas, ou até servir como inspira-
ção para um filósofo ou poeta... Sempre na tentativa de ajudá-los a transformar
este mundo em um lugar mais digno.
— Então por que vocês brigam entre si?
— Muitas vezes, porque a gente discorda sobre a maneira exata de ajudar. Na
maioria dos casos, é uma briga entre grigori e caídos.
— Entre quem?
— Quando a gente vem para cá, nosso corpo energético é muito poderoso.
Tão forte que ele não adoece nem envelhece. Nós não precisamos voltar para
Casa imediatamente, para a nossa dimensão. Se nós quisermos, podemos ficar
andando por aqui pelo tempo que for. Os que vem para cá para fazer uma missão
são chamados de grigori. Quando essa missão acaba, os que resolvem ficar aqui
e não voltam para Casa são chamados de caídos.
— Então os caídos e os grigori... Quando têm uma discussão qualquer eles
brigam até a morte? É assim?
— Não é bem assim. É que existem regras, Aline, e eu infringi uma delas. E
quando essas regras são infringidas, os grigori vêm para cá para levar o caído de
volta para Casa.
— Regras? Que regras?
— Eu já te disse que nós somos muito poderosos, não é? Nós podemos influ-
enciar o ambiente à nossa volta, e até a mente das pessoas. Eu, em especial, sou
muito bom em mexer com pensamentos e memórias. Então, devido ao nosso
poder, foi estabelecida uma regra há muito tempo: Nós podemos fazer o que
quisermos aqui, desde que sempre preservemos a liberdade de escolha das pes-
soas. Se eu usar meu poder para compelir uma pessoa a fazer algo que ela não
queira, ou para impedir que ela faça algo que queira, estarei impondo minha
vontade sobre a dela, tirando dela o direito de viver sua própria escolha, e isso é
um crime gravíssimo para os grigori.
Aline franziu a testa.
— E quando foi que você infringiu essa regra, Sá?
— Eu apaguei a mente de um dos meus melhores pesquisadores.
— Como é? Apagou a mente? Você eliminou as memórias dele?
— Não foi a mente inteira. Ele estava descontente com o serviço e queria se
demitir. Eu eliminei da mente dele as memórias desagradáveis.
Aline se afastou para melhor olhá-lo nos olhos.

132
Aula

— Por que você fez isso, Sá?


— Eu não queria perdê-lo, Aline. Esse homem é uma mente rara, um verda-
deiro gênio. Caramba... Foi um erro. Eu agi mal, eu sei. Foi um ato imprudente...
Mas eu fiz. Taí. Não sou perfeito.
— Mas e agora, Sá? Os grigori vão ficar te atacando até te levarem de uma vez
por todas?
— Bom... sim. Mas não se preocupe com isso ainda. Como eu disse, uma
janela é um evento muito raro. Podem se passar vários anos até eles voltarem. E
eu não sou tão fácil assim de se pegar.
— Então... A gente vai viver assim, sem saber quando um deles vai aparecer
de novo?
Sariel trouxe a esposa para mais perto, abraçando-a e passando a mão pelo
seu ombro.
— Calma, querida. Tem tempo até isso. Atualmente, há só mais uma grigori
na Terra, e ela pode demorar um bom tempo até tentar um ataque frontal. Deixa
que eu cuido disso, tudo bem?
— Isso não me deixa mais tranquila, Sariel...
Aline o abraçou com mais força.
Fique tranquila, meu amor... Fique bem tranquila... Daqui a alguns dias, a hu-
manidade inteira estará condenada, e você não vai ter mais nada a temer...
Ela vai sofrer muito com a minha morte... Talvez eu devesse adiar meus planos
por um tempo, pelo menos até ela morrer de velhice...
Não... Se eu esperar mais, em breve não haverá nada para salvar. É preciso agir
enquanto ainda há esperança. Acabar com a humanidade... para salvá-la.

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DOLENTEM
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TATE CONESTRUM

Érico treinava todos os dias, a toda hora.


Quando Kaliel o encontrou após o incidente com Guilherme, os bombeiros já
haviam chegado e os policiais faziam perguntas. Foi só graças a seu Aegis que ela
o retirou de lá sem que ninguém notasse.
Quando Érico voltou a si, estava tomado de uma determinação inabalável.
O confronto com Belial havia lhe mostrado que tinha condições de enfrentar
um grigori, mas ainda precisava de muito treino. Ao mesmo tempo, além da
imagem do pai desaparecendo, foi gravada em sua memória a de Guilherme,
gritando, consumido pelas chamas. A soma daquelas duas mortes o preencheu
com uma certeza bastante clara:
Estes seres não merecem viver!
Seres tão poderosos e com tão pouco respeito pela vida devem ser destruídos!
Eles não têm lugar nesta sociedade, e parece que sou em quem deve expulsá-los.
Treinava a todo instante. Treinava todo o dia. Desenvolvia seus poderes com a tia
de manhã e treinava luta à tarde. Antes, tomado pelo desejo de vingar a morte do pai,
seria capaz de levar em conta a sua própria segurança: fugir para lutar de novo. Ago-
ra, isso não existia mais. Treinava porque acabar com Sariel e Belial era a coisa certa
a fazer. Treinava porque havia percebido que, quando confrontasse Sariel, se parasse
um instante para considerar a própria vida, era nesse instante que seria vencido.
Era preciso enfrentá-los atirando-se à própria morte.
Kaliel lhe explicava cada vez mais sobre as regras que envolviam os grigori e
os caídos. Explicou-lhe sobre a lei de não interferência e contou que todo grigori
ou caído só podia se manifestar por meio de uma coisa chamada “âncora”. Um
prazer material que os prendia neste mundo. Era a âncora de um grigori ou caído
que mantinha seu corpo coeso, porque, caso contrário, eles precisariam ficar se
concentrando o tempo todo em se manter vivos, e nem mesmo eles tinham tanta
concentração assim.
Para Kaliel, a âncora era o fumo. Por isso Érico sempre a via com um cigarro
na mão. A âncora de Belial era o prazer sensual, o que ele descobrira em primeira

134
O visitante

mão, e a de Sariel era a bebida. Era esse prazer que os sustentava através dos
séculos, e não mudava nunca.
Se eu soubesse disso, teria agido de forma diferente com Belial. Ela tentou me
seduzir, mas esse também é o seu ponto fraco. Eu poderia tê-la vencido...
Nem... Eu estava assustado demais para fazer qualquer coisa. Ela me pegou de jei-
to. O sexo pode ser um prazer imenso para ela, mas, com certeza, ela sabe dominá-lo...
Não importa. Eu a enfrentei e a coloquei de joelhos. Da próxima vez, ela não
me escapa!
Eles não merecem viver.
Treinava. Da janela, Kaliel o observava se exercitar no quintal, e se preocupa-
va. Érico sabia da opinião da tia. Podia ler aquela preocupação na voz dela sem-
pre que conversavam. Sabia que parecia estar decidido demais. Quase fanático.
Sabia como soava quando falava em seu pai, em Guilherme, Sariel ou Belial,
mas não se importava.
Ela só quer o meu bem. Mas eu não me importo se eles me matarem, desde que
morram fazendo isso. Ela quer o meu bem, eu quero o bem de todos.
Estava convencido de que sua causa era nobre. Mesmo sabendo, naqueles mo-
mentos de silêncio, de reflexão necessária, que também queria vingança. Tam-
bém era por ódio que ele treinava.
Uma vez pegou a tia chorando a sós. Nunca soube se era por ele ou pelo seu
pai. Ou pela família que ela via se desintegrar. Não conversou a respeito, e ela
nunca tocou no assunto.
Kaliel lhe ensinou várias outras técnicas. Aprofundou sua capacidade de
bloqueio, o ensinou a distrair uma pessoa de modo que ela não o percebesse, a
conjurar a chuva ou afastar as nuvens. Mostrou a ele como poderia perceber a
emoção das pessoas se se concentrasse nelas de uma certa forma. Ensinou-o a
expandir seu Abascanto para proteger outras pessoas, e como enganar um caído
para que ele não percebesse o que Érico era.
Érico aprendia tudo com velocidade espantosa. Dedicava-se a todas as lições
dia a dia.
Certa vez, Kaliel lhe disse:
— Érico, meu anjo, antes de você aprender mais coisas, é melhor sedimentar
bem o que já sabe.
— Não, tia! Eu quero mais! Eles são fortes, e eu preciso estar à altura!
— Mas, meu bem... É importante que, nessas técnicas, você não vá rápido
demais; você pode acabar se prejudicando.
— Não me importa! Eu preciso aprender mais. Me mostre como eu posso
fazer para atordoar uma pessoa!

135
Abascanto: a sombra dos caídos

Essas discussões eram cada vez mais frequentes. Cada vez mais calorosas. Três
dias antes, Kaliel havia dado um basta:
— Não, Érico. Eu não vou te ensinar mais nada até você me provar que sabe
usar o que aprendeu com juízo.
— Não! Mas eu preciso saber, tia! Eles são muito poderosos! Eles têm sete mil
anos!
— Não, Érico. Isso é para o seu bem!
— Você está me abandonando! Você está é com medo de mim!
Lágrimas vinham a Kaliel.
— Não diga isso, meu anjo! Eu te adoro!
Ele evadia seus abraços e saía da sala.
Parecia que, nos últimos dias, ele havia descoberto várias maneiras de fazer
sua tia chorar.
Ontem mesmo, na janta, Kaliel estava quieta demais, triste. Érico perguntou:
— O que foi, tia?
E ela respondeu com a voz desconsolada:
— Você deixou o ódio te dominar, meu querido... Você deixou ele te enven-
enar e corroer o seu coração...
Érico saiu abruptamente da mesa e ainda ouviu Kaliel falando:
— Perdoe Sariel, Érico!
Perdoar Sariel!
Se a minha tia já esqueceu que ele matou meu pai, eu não esqueço. Eu nunca
vou esquecer! Eu nunca vou perdoá-lo!
Porque as espadas de papai não sumiram, como o Edgar disse. Elas ainda estão
aqui. Isso só pode ser porque ele aprova. Meu pai quer que eu vingue a sua morte!
As sessões de treino ficavam cada vez mais intensas, mais frequentes. Ele des-
cansava cada vez menos. Percebia o abismo que se formava entre ele e a tia, mas
escolhia ignorá-lo.
Quando Sariel estiver morto, eu vou pedir desculpas para ela.
Vou pedir para Kaliel o perdão que eu não dei...
Érico podia jurar que as espadas de Daqshael estavam cada dia mais afiadas.

Naquele dia ele estava particularmente cansado. Treinava desde o almoço sem
parar. Com suor pingando pela roupa, resolveu que era melhor dar um pulo na
cozinha para beber algo, antes de continuar os exercícios.
Só um gole de água...
Kaliel estava sentada à mesa da sala, pernas cruzadas, um cigarro aceso, ol-
hando para uma série de papéis e relatórios. À sua frente estava um desconhe-

136
O visitante

cido: uma fisionomia diferente de qualquer outra que Érico já havia visto: olhos
puxados e claros, cabelos castanhos e ondulados. A pele, levemente avermelhada.
Parecia ter um pouco de cada etnia da Terra.
Mesmo assim, era claramente uma combinação equilibrada. O homem se ves-
tia com elegância. Sentava-se com propriedade e tinha uma boca irônica que
parecia rir do mundo à sua volta.
Quando se viram, o homem se ergueu. Érico parou ao ver o casal, esperando
as apresentações.
Kaliel não se levantou da cadeira.
— Érico, este é Saito Tamura. Saito, este é Érico.
Saito fez uma reverência no mais perfeito estilo japonês. Érico retribuiu à altura.
— Saito tem me ajudado muito com Sariel.
— Então... você é o famoso Érico... Filho de Daqshael.
Érico semicerrou os olhos. Olhou para um ponto vago logo acima do om-
bro de Saito e foi invadido por uma sensação de imensidão. Reconheceu-a de
imediato:
— Você também é um grigori.
— Um dos caídos, na verdade.
Érico começou a erguer as espadas, em prontidão, mas viu que Saito e a tia
estavam absolutamente calmos.
Baixou a guarda.
— E você tem ajudado a tia?
Saito ergueu levemente a sobrancelha quando Érico disse “tia”. Por que será? O
que é que Kaliel contou para ele?
Saito fez que sim com a cabeça.
— E qual é o seu nome verdadeiro, Saito Tamura?
Saito riu.
— Eu uso Saito Tamura há tantos séculos que esse nome é mais verdadeiro
do que o seu, rapaz. Agora, se você quer saber o meu nome original, é Satanael.
Érico ergueu as sobrancelhas.
— Satanael?
— Isso mesmo. Agora, Érico, meu rapaz, por que você não vai pegar a sua
água e nos deixa conversar um pouco, hein?
Sem nem perceber por que, Érico continuou andando em direção à cozinha.
Um caído chamado Satanael? O que quer dizer isso tudo?
Satanael e Kaliel continuaram a conversa em japonês.
O que é que está acontecendo? O que é que a tia Ká não me contou, pra que ela
precise conversar em japonês com esse cara?

137
Abascanto: a sombra dos caídos

Não saiu mais da cozinha. Ficou preso à porta. Ouvia perfeitamente o que
eles falavam, mas não conseguia entender nada. Concentrou-se, como se de
repente as palavras fossem fazer sentido, mas, até o fim da conversa, continu-
aram enigmáticas.
Érico percebeu, em vários momentos, que eles citaram o nome de Sariel e
Belial. Muitas vezes, na mesma frase.
Levou muito tempo para tomar um gole de água.
Pareceu a Érico que, em certo momento, eles se ameaçaram, mas foi uma
impressão bem rápida. Meia hora depois, o tom da conversa mudou para uma
finalização. Ouviu quando se levantaram e se despediram em português:
— Adeus, Kaliel.
— Até a próxima, Satanael.
E a porta de entrada se fechou. Érico, imediatamente, voltou à sala.
Ficou olhando para a tia. Kaliel caminhou lentamente até a mesa e arrumou
os papéis. Érico esperou alguma explicação.
— O que foi isso, tia?
Kaliel não lhe direcionou o olhar.
— Eu e Satanael estávamos discutindo um pouco, querido.
— Discutindo o quê? Por que vocês conversaram em japonês?
— Não se preocupe com isso, meu anjo.
O tom casual da tia fez nascer nele uma onda de raiva que lhe subiu imediata-
mente à cabeça. Podia aceitar muitas coisas, mas não suportava quando era ignorado.
— Vocês estavam falando sobre Sariel, não é? Como é que eu não vou me
preocupar? Ele matou meu pai, seu irmão! Qual é o seu problema!? Eu mereço
saber!
Kaliel parou o que estava fazendo e olhou para Érico por um instante. Só
moveu os olhos. Não disse nada e continuou arrumando a mesa.
Érico pressentiu perigo.
— Você vai sair, não é? Você está indo enfrentar o Sariel.
Kaliel suspirou. Terminou de arrumar tudo com rapidez.
Porque detestaria deixar a casa desarrumada...
— Me fala! Você está indo enfrentar ele, não é?
Kaliel endireitou as costas e olhou para o sobrinho, séria.
— Sim, Érico. Eu estou.
Maldita! E não ia me dizer nada! Essa luta é minha!
— Por quê? Por que agora? O que é que aconteceu?
— Satanael me mostrou provas que o incriminam, querido. Sariel infringiu
várias regras. Agora eu tenho liberdade para enfrentá-lo.

138
O visitante

Os olhos de Érico pegaram fogo. Poderia ter fuzilado a tia com o olhar.
— Ele infringiu várias regras? E quando ele matou o meu pai? Você não podia
ter saído para lutar com quando ele matou o meu pai?
— Nós temos leis, meu anjo. Eu não posso começar a infringi-las só porque
estou magoada. Se eu fizesse isso, seria pior do que ele.
Érico olhou para o lado. Com muito esforço, engoliu o fel que lutava para sair.
Falou com decisão absoluta:
— Então eu vou com você.
— Você não vai fazer nada disso, querido.
Mais uma vez o tom casual. Érico se inflamou.
Quem ela pensa que eu sou? Eu quase venci Belial!
— Eu vou, sim!
Kaliel olhou fundo nos olhos do sobrinho. Estava pensando.
Ela está decidindo se eu vou ou não com ela, mas eu vou de qualquer jeito. Hoje
ele morre.
A antecipação lhe aquecia o peito.
Finalmente! Depois de tanto treino! É hoje que ele morre!
— Érico, querido, você também tinha a melhor das intenções quando foi aju-
dar seu pai, e ao final, só acabou atrapalhando.
Érico arregalou os olhos. Cerrou os punhos com tanta força que poderia tê-
los quebrado. Apenas o susto impediu que avançasse para cima de sua tia. Todo
o seu corpo, subitamente, tremeu.
Estava aí. Essa era a questão central. Esse era o motivo de tudo.
Toda a raiva de Érico, todo o seu ódio, cada minuto de treino incessante...
Tudo isso tinha o mesmo motivo. Mesmo a sua certeza de que Sariel e Belial
deveriam ser destruídos... Tudo isso porque ele fazia o máximo para evitar um
único pensamento:
Meu pai morreu por minha causa.
Mas estava ali. Colocado pela tia em um tom mais que óbvio. O pensam-
ento que nunca chegou a se formar, mas cuja ideia permeava todas as ações
de Érico.
Não podia suportar uma acusação daquelas.
Não podia ser verdade! Não era verdade!
— Não! Não foi! Ele precisava da minha ajuda!
Kaliel suspirou. Érico percebeu que ela baixou de leve os olhos.
O que ela disse também doeu nela...
Ela sempre pensou assim. Ela não queria me contar porque achava que ia
ser pior.

139
Abascanto: a sombra dos caídos

E eu pensei que ela estava me treinando pra me ajudar a lutar contra eles...
Mas, o tempo todo, ela estava apenas com pena de mim! Ela não acredita em
mim.
Seu olhar mareou. Sua boca, cerrada, impediu qualquer palavra de sair. Todo
o seu rosto se contraíu.
No final das contas, eu estou sozinho... Nem a minha tia eu tenho.
Agora tinha ouvido a verdade da boca de outra pessoa. Mas podia esquecê-la.
Podia colocá-la no fundo da mente e lidar com ela apenas ao final de tudo.
Olhou para a tia como se ela fosse o inimigo.
— Eu sei onde ele está, tia. Eu vou enfrentá-lo quer você queira, quer não. A
gente pode fazer isso junto ou separado, a escolha é sua.
Kaliel pensou por poucos instantes e disse:
— Pegue suas espadas, Érico.
Ela concordou! Ela aceitou minha ajuda! Eu sabia que ela ia aceitar! Afinal, eu
fui três vezes campeão paulista de kung-fu!
Kaliel não caminhou com Érico para a garagem. Pegou sua arma e o levou
ao quintal.
O que ela quer agora?
Posicionou-se a três metros de Érico e ergueu sua espada.
— Em guarda, Érico.
— O quê?
Érico, então, notou que a tia tinha um olhar inteiramente novo. Uma ausência
de brilho. Um olhar que ele havia visto apenas uma vez antes: o mesmo que seu
pai exibira ao lutar com Sariel.
Estava desprovida de qualquer emoção.
— Em guarda, garoto! Você não acha que pode contra eles? Então... Vamos
ver se você é bom mesmo!
Isso é loucura! Eu sou muito melhor do que ela!
— Tia, eu não vou lutar com você.
Kaliel não se mexeu. Érico não havia erguido a guarda.
— Tia! A gente pode se machucar seriamente. Estas espadas são reais!
É um teste! Ela está me testando! Ela quer ver se eu consigo evitar a luta diante
de uma provocação.
— Você não vai erguer sua guarda, Érico?
— Não!
— Então... Morra!
Kaliel ergueu a sua lâmina e investiu para cima de Érico com um forte ataque
por cima.

140
O visitante

Ela vai me cortar ao meio!


Por puro reflexo, Érico ergueu sua espada no último instante.
O golpe de Kaliel foi tão forte que, mesmo com seu aparo, Érico foi jogado
para o lado e caiu no chão.
Ela está louca! Ela realmente teria me matado!
Kaliel atacava novamente. Um amplo golpe lateral.
Érico se pôs de pé com um salto acrobático e defendeu o ataque de Kaliel a
dez centímetros do seu corpo. Mais uma vez, o impacto foi tão grande que ele foi
projetado para o lado, caiu e rolou no chão.
Que força é essa?!
Érico se levantou com dificuldade. Kaliel esperou.
— O que foi, Érico? É assim que você queria lutar com Sariel?
— Tia.. para com isso!
Outra investida. Érico não tentou um aparo dessa vez, mas se esquivou para o
lado quando a espada de Kaliel cortou o ar de cima a baixo.
No instante seguinte, levou uma cotovelada da tia na boca do estômago que o
jogou novamente ao chão.
Ela é muito rápida!
Olharam-se. Érico se arrastou para trás. Precisava de espaço.
— Vamos, Érico! Só aqui eu já podia ter te matado três vezes! Vamos ver
quando é que eu te pego mesmo!
Caramba, se eu não me defendo disso, ela me mata mesmo!
Ele se ergueu novamente. Kaliel investiu. Outro ataque por cima, mas, subi-
tamente, a espada de Kaliel rodou no ar e o ataque se tornou uma estocada no
estômago. Érico estava completamente sem defesa! Tentou um aparo desajeitado
com sua outra espada, girando o corpo para o lado, e a lâmina de Kaliel cortou
sua camiseta.
Ela não está brincando!
Percebeu que as costas de Kaliel estavam à mostra. Automaticamente, com
a espada que estava erguida, cruzou um ataque por trás, na altura do pescoço.
Kaliel se agachou no último instante e, com a mão livre, alcançou o peito dele e o
empurrou com tanta força que o tirou do chão.
Érico voou dois metros antes de cair de cara.
— Vamos, menino! Ponha força nesse golpe!
Érico se levantou. Estava apavorado.
Quem é essa mulher!?
— Eu já estou cansada dessa sua birra, sabe? Essa molecagem acaba aqui! Está
na hora de você crescer, Érico!

141
Abascanto: a sombra dos caídos

Érico deu um passo para trás, como se tivesse sido atingido.


— Olha só pra você! Eu te ataquei quatro vezes, e as quatro vezes você caiu no
chão! É assim que você queria enfrentar Sariel?
Ela está certa!
Mas Kaliel ainda não havia acabado. Lançou-lhe um olhar de desprezo e
ainda disse:
— Você não é digno de vingar a morte do seu pai!
Era a chama que faltava. Tudo dentro de Érico explodiu. Todas as frases que
ele havia dito a si mesmo saíram da boca da tia. O pavor daqueles dois caídos, a
saudade do pai, a raiva da derrota, a morte de Guilherme... A humilhação de ser
vencido pela própria tia.
Eu não sou digno de vingar o meu pai...
Ah, não sou?
Correu para cima de Kaliel com as duas espadas na ofensiva. Soltou um
grito desesperado e se atirou a um ataque irracional. Não via mais Kaliel à sua
frente. Sua mente estava de volta ao terraço. Via novamente Sariel matar o seu
pai! Sem perceber, gritou:
— Morra! Morra!
Atacou uma, duas, três vezes, e quatro, cinco, seis. Não respirava. Não dava a
menor abertura para um contra-ataque. Iria cortá-la em oito.
Kaliel se defendeu de todos os ataques de Érico enquanto dava alguns passos
para trás. Não tirou os olhos dos dele. O estrondo das lâminas se chocando se
tornou repetitivo.
Um dos ataques de Érico foi uma estocada frontal. Kaliel aparou o golpe mui-
to próximo à mão do sobrinho e, com o impacto, a espada dele voou longe. Com
a outra mão, ela agarrou o pulso dele e o torceu para trás. Ele largou a segunda
espada e caiu no chão de dor.
Kaliel o jogou para trás.
Estava desarmado. Ela havia vencido.
Quando se olharam novamente, Kaliel estava com o rosto constrito.
Érico respirava pesadamente. Sua tia não havia feito esforço algum.
— Quantas vezes eu vou ter que te dizer que a raiva é sua inimiga, Érico?
Você jogou tudo o que tinha para cima de mim e olha com que facilidade eu
te desarmei!
Érico desviou o olhar.
— Olhe para mim quando eu falo com você!
Quando ele voltou a encarar a tia, as lágrimas dela lhe caíam suavemente
pelo rosto.

142
O visitante

— Érico, quando eu te digo que você não sabe com quem está lidando é
porque você não sabe mesmo! Eles têm muito mais recursos do que você pensa.
Eu te venci e nem tenho sete mil anos de treino!
Kaliel inspirou fundo enquanto Érico se erguia. Quando falou, tinha a voz
firme, mas condoída:
— Eu te adoro, Érico! Eu te peguei no colo e te criei desde pequenininho! Eu
nunca vou deixar você entrar num luta pra perder. Dissolva a sua raiva, Érico.
Perdoe Sariel. Encontre o seu centro. Aí você vai poder lutar com ele. É pela tran-
quilidade que você vence, Érico, não pelo ódio.
Kaliel olhou fixamente para uma das espadas de Daqshael caídas no chão e
disse:
— E isso vale pra você também.
Embainhou sua espada.
— Lição encerrada.
Saiu. Érico não a seguiu.

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Aline
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TATE CONESTRUM

Sariel estava terminando de se arrumar para um jantar quando o telefone tocou.


— Sariel? É Belial.
Sua irmã estava falando em aramaico. Ela só falava aramaico quando estava
muito excitada. Só poderiam ser boas notícias.
— Diga, irmã.
— Conseguimos, Sariel. Está pronto. Todos os testes confirmam! Deucalion
está pronto!
Belial parecia uma criança. Sariel riu. Ele também se sentia mais leve. Não
conseguia conter aquela força que impelia seus lábios a se erguerem. Queria con-
tar a notícia para todo o mundo.
— Mas que ótima notícia, Belial!
— Finalmente, irmão! Finalmente! E foi mais rápido do que imaginávamos!
— Bom trabalho, Belial. Um novo mundo está pra nascer.
— Eu estou te enviando um courier com a primeira ampola refrigerada e
fechada a vácuo.
— Ótimo. Ótimo! Quando podemos começar a produzir mais?
— Podemos chegar à produção planejada em dois meses. Muitas das etapas
do processo são bem demoradas.
— A vitória já é nossa, Belial. Nada mais importa. Com essa amostra na
minha mão, nós vamos selar o destino deste mundo. Venha para cá, Belial. Eu
estou indo para o jantar anual dos acionistas. Vamos comemorar depois.
— Certo, eu vou terminar algumas coisas por aqui e te encontro no jantar.
Sariel passou um bom tempo sorrindo.
Até que enfim! Até que enfim chegou a hora de acabar com a hipocrisia desta
sociedade! Deucalion é a chave do novo mundo!
Quanto tempo eu esperei por isso? Por quanto tempo eu assisti à decadência da
humanidade, à perda gradual dos valores, ao estímulo do que é fútil, a toda essa
violência hedionda! E as poucas pessoas que poderiam fazer alguma coisa, esmaga-
das por um sistema que só dá margens para a corrupção, a injustiça, o descaso.

144
A escolha de Aline

Quantas vezes eu caminhei pelos campos de batalha das guerras deste mundo?
No século XV, eu financiava metade dos orfanatos da Europa. No século XIX, eu
mesmo fui para a frente de batalha como médico.
E cada vez mais... Rios e rios de sangue. Sempre os jovens morrendo pela am-
bição dos mais velhos. Sempre o mesmo interesse escuso, o mesmo descaso.
Deuses... Eu vi o que de pior existe neste mundo... E nem todas as obras
filantrópicas puderam mudá-lo.
Eu vivi mil anos como um mortal porque um dia ousei ensinar à humanidade
a medicina e a magia. Me acorrentaram na rocha do mundo material e acharam
que eu nunca fosse me soltar...
Eu sobrevivi a todos eles. E agora, vou consertar de vez todos os erros desta
filosofia horrenda do dinheiro e do poder.
Hoje é a aurora de um novo tempo. Hoje eu vou renascer!
Terminava de dar um nó na gravata enquanto pensava que nada poderia es-
tragar aquela noite.
Aline entrou no quarto, ligeiramente pálida.
— Amor? Tudo bem?
Fez que sim.
— Acho que eu não vou com você no jantar hoje, querido. Estou um pouco
enjoada.
Sariel ergueu uma sobrancelha.
— Mesmo? Bom, cuide-se.
Estaria grávida?
Não... Não pode! Não agora! Ela sempre se precaveu! Eu mesmo via. Deve ser
uma indisposição passageira.
Beijou-a carinhosamente no rosto.
— Se eu melhorar, eu passo lá.
— Vai ser mais um jantar chato. Só negócios e números. Você não vai perder
muita coisa.
Aline sorriu.
Sariel sentiu um leve desconforto. Um incômodo, como se tivesse ficado mui-
to tempo na mesma posição. Uma sensação muito conhecida: Um grigori está
chegando.
— O que houve, Sá?
Ela percebeu! Ela também sentiu algo. Os sentidos desta mulher estão cada dia
mais afiados.
Não há como esconder nada agora.
— É um grigori, Aline. Um grigori está chegando.

145
Abascanto: a sombra dos caídos

— O quê? Agora!?
E está chegando bem rápido. O elevador do prédio não é tão rápido assim: deve
estar subindo as escadas.
Sariel correu até o closet e saiu de lá carregando suas duas espadas.
Aline levou a mão à boca.
— Sá! Meu Deus!
Mas Sariel estava controlado.
— Fique calma, Aline. Tudo vai ficar bem...
... eu espero. Por que agora? Será que eles descobriram?
Se descobriram, foi tarde demais.
A caminho da sala de estar, viu a porta do apartamento se abrir e uma mul-
her entrar.
Kaliel.
Trazia uma longa espada de duas mãos. Não estava cansada. Subiu vinte e cin-
co andares de escada e não se cansou. A vitalidade desta mulher é impressionante.
Pararam e travaram olhares. Aline chegou por trás de Sariel e não se conteve
quando viu aquela mulher com uma espada desembainhada em seu apartamento.
— Não, meu Deus! De novo, não!
Os dois pareciam ignorá-la. Ambos ergueram seu Aegis. Sariel afastou a
esposa lentamente, com um braço.
— Acabou, Sariel.
— Pare! Pare! Pelo amor de Deus, pare! Meu marido não fez por mal! Ele só
não queria perder uma pessoa importante!
Kaliel olhou para Aline como se a percebesse pela primeira vez. Uma maciez
se insinuou em seu olhar. Uma saudade cruzou sua voz:
— Aline, não é?
Aline não respondeu.
— Você acabou ficando igualzinha a ela, Aline.
— A quem?
— À sua mãe. Sua mãe biológica.
Aline deixou o queixo cair e respirou fundo.
— Quem é você?
Ela conheceu minha mãe? O que ela sabe sobre mim?
— Eu sou sua tia, Aline. Meu nome é Kaliel. Eu sou irmã de Daqshael, seu pai.
Aline levou as mãos à boca e deu um passo para trás. Tinha os olhos bem abertos.
— Deus!
— Eu não quero um confronto com você, Kaliel — declarou Sariel.
— Você não tem outra opção.

146
A escolha de Aline

— Não, por favor, não briguem! — implorou Aline.


Kaliel virou-se para Aline com um olhar incrédulo.
— O que é que você disse para ela, Sariel? — e então a compreensão surgiu em
seu olhar. — Você não sabe de nada, não é? Ele não lhe contou a verdade!
Sariel pressentiu um grande desastre.
A maldita sabe! Sabe e vai falar para Aline. E, se eu a interromper agora, Aline
vai desconfiar ainda mais!
— Ele me contou tudo! Ele me falou quem vocês são e o que ele fez. Por favor,
deixe-o viver! Só mais um pouco, por favor! Só por mais um tempo! Ele é meu
marido! Eu não saberia viver sem ele.
Fantástico, Aline. Era a deixa que eu precisava.
— Essa é sua resposta, Kaliel. Saia daqui enquanto pode.
Kaliel hesitou para responder. Estava ponderando. Sariel foi enfático:
— Agora!
Quase não percebeu a investida de Kaliel. Ela correu em sua direção e, com
a ponta da espada, procurou o peito dele. Ele virou o tronco a tempo e girou as
espadas por cima dela, atacando-a pelas costas. Kaliel havia levado sua espada
para trás e aparou os ataques de Sariel mesmo sem vê-los.
Para Aline, começava uma reprise da noite de seu aniversário. Sua tia, talvez o
seu último elo com o passado oculto, atacava seu marido em uma luta até a morte.
Apoiou uma das mãos na parede, procurando o que fazer, enquanto seus
pensamentos corriam, alucinados. Como resolver a situação? Nenhum dos dois
poderia morrer ali.
Sariel estava atacando e defendendo com a mesma intensidade. Não con-
seguia ler aquela mulher, que parecia atacar a cada momento com uma técnica
diferente. Corriam pela sala do apartamento trocando golpes, e não tiravam o
oponente dos olhos.
Ela se preparou para esta luta. Ela treinou especialmente para lutar contra mim!
Um erro aqui será fatal.
Mais do que isso, a aura de Kaliel era especialmente densa.
A energia que esta mulher comanda é assombrosa. O que ela não tem em téc-
nica, tem em força bruta.
É por isso que eu não consigo ler seus ataques. Ela quase não tem técnica nen-
huma. Ataca de qualquer jeito, contando apenas com sua velocidade e percepção
para orientar seus golpes. Ela luta por instinto.
Que isso fosse possível, era fascinante. Sariel recordou-se dos muitos casos de
“sorte de principiante”. Esta mulher é uma mestra na técnica da sorte de principiante.
Isso é muito ruim.

147
Abascanto: a sombra dos caídos

Na rua, começou a trovejar.


Quando se esquivou de um dos ataques de Kaliel, Sariel investiu com uma
sequencia de ataques em falso. Girou as espadas por cima e pelo lado, obrigan-
do-a a se defender em diversas posições difíceis. Tentou forçar uma abertura
com seu ataque.
Em um instante, notou o lado direito dela desprotegido. Girou uma espada e
teria cortado Kaliel ao meio se ela não tivesse pulado para trás no último segundo.
Logo depois, ela entrou por baixo da defesa dele e, com a mão livre, tocou o
peito de Sariel.
Sariel saiu voando pela sala e chocou-se com a parede oposta em um pesado
estrondo. Um armário ao seu lado caiu no chão, destruindo algumas dúzias de
enfeites de cristal.
Aline correu para o meio da sala e se colocou no meio da briga.
— Parem, parem com isso agora!
Kaliel deu um salto e passou por cima dela, encolhendo-se toda e parando
logo à frente de Sariel, que se recuperava do impacto.
Ela me deu um golpe telecinético desses e não se cansou?
A espada de Kaliel passou zunindo pelo ouvido dele, cortando o ar na verti-
cal. Sariel rolou para o lado. Kaliel deu mais um passo na direção dele e investiu
com um corte horizontal. Sariel pulou de lado, sentindo o frio da lâmina passar
por baixo dele.
Um imenso televisor foi cortado ao meio.
Minhas espadas, onde estão minhas espadas?
O impacto com a parede as tinha jogado sala afora. Kaliel avançava sobre ele
com uma ferocidade animal. Sariel queria trazer as lâminas para as suas mãos
usando telecinesia, mas não encontrava brecha alguma para se concentrar em
meio aos ataques de Kaliel.
Com um passo para o lado, Sariel escapou de mais uma ataque e correu de
costas, tentando abrir o máximo de distância entre eles.
Tempo! Tempo! Eu preciso de tempo!
Estava na sacada. Viu Kaliel correr em sua direção, mas teve condições ao
menos de recuperar uma de suas espadas.
Kaliel não atacava com a mesma rapidez que ele ou Daqshael, mas cada um
de seus ataques causava um forte impacto. Os braços dele já estavam se cansando
de aparar tantos golpes.
É assim que ela faz! Ela não espera que seus golpes me atinjam, mas quer que eu
os apare! Cada golpe dela é uma avalanche, e mais cedo ou mais tarde eu não vou
ter forças para continuar a defesa.

148
A escolha de Aline

Aline olhava aterrorizada para a sala destruída, as paredes marcadas por gol-
pes, o sofá em frangalhos, o televisor em pedaços.
Eles não vão parar!
Via-os lutar ferozmente na sacada. Não entendia nada de luta, mas tinha a
nítida impressão de que seu marido estava na defensiva.
Com o canto do olho, viu a miniatura de um barco de cristal caído no chão,
quebrado em três. Sua mãe havia lhe dado aquele presente quando ela fizera quinze
anos. Uma das mais fortes lembranças que tinha da mãe... quebrada no chão.
Aline perdeu completamente a noção do perigo. Não sabia o que ia fazer, não
sabia como resolver a situação, mas tinha de fazer algo. Caminhou decididam-
ente para a sacada.
Parou à porta quando um golpe de Sariel passou rente ao seu nariz.
Kaliel girou para o lado, evitando o impacto, e acertou um soco no rim de
Sariel. Ele caiu no chão.
Aline voltou a se perguntar: O que é que faço com estes dois?
Kaliel mergulhou por cima de Sariel, que aparou o golpe do chão e jogou-a de
lado. Ergueu-se, já fugindo de outro ataque.
Kaliel estava de costas para Aline.
Eles me ignoram!
Não por muito tempo.
Aline saltou sobre Kaliel e agarrou-lhe o pescoço a unha. Kaliel se jogou para
o lado e escapou de um golpe frontal de Sariel.
Aline bateu com a cintura no parapeito da sacada. O impacto lhe tirou o fô-
lego e fez com que ela soltasse Kaliel. Sentiu o corpo girar. Foi jogada para fora.
Tentou se agarrar a alguma coisa, mas não havia nada para pegar.
Estava caindo.
Sariel arregalou os olhos, horrorizado. Viu a vida da esposa acabando na-
quele mesmo instante. Em sua mente, nada mais existia além de Aline. Seu grande
plano, seu objetivo magnífico para a humanidade... Nada disso importou.
Deixou a espada para trás e, sem pensar suas vezes, pulou por cima de Kaliel.
Saltou do prédio com rapidez felina. Aline havia se segurado na beirada exter-
na do chão do balcão, mas sua mão escorregava. Quando Sariel a viu, os dedos
perderam a força e ela reiniciou a queda.
Sariel agarrou o braço dela no mesmo instante em que se segurou no parapeito.
Aline sentiu o corpo inteiro estalar com o choque da mão de Sariel. Soltou um
grito de dor, de susto, e o prolongou com a força do pânico quando percebeu o
que estava acontecendo.
Olhou para baixo, apavorada.

149
Abascanto: a sombra dos caídos

Kaliel estava logo acima de Sariel. Tinha a espada pronta. Poderia ter acabado
com ele ali mesmo.
Se ao menos Aline não estivesse condenada a morrer com ele.
Sariel encarou Kaliel.
— Deixe-me subir, Kaliel. Deixe-me salvar Aline!
Kaliel olhava para a situação dos dois, inconformada.
Por que é que você tinha que se meter, garota? Caramba, mas é igualzinha ao
Érico! Só tem emoção nessa cabeça, só emoção e nenhum planejamento.
— Jogue-a para cima que eu a pego.
— Não, deixe-nos subir.
— Eu a seguro quando você a jogar!
Encararam-se.
— Você ama a sua esposa, Sariel? Então pense antes nela do que em você!
Sariel e Aline se olharam. Aline parou de gritar.
Ele estava vivo havia sete mil anos e, ainda assim... “Às vezes surge uma mul-
her tão grande e tão forte que faz com que mil anos de espera valham a pena.”
Aline fez que não.
— Não sem você!
O olhar de Sariel foi toda a resposta que teve. O mesmo olhar do primeiro
instante do dia em que se conheceram.
— Nunca sem você! — repetiu.
Sariel concentrou energia, fortaleceu seus músculos. A mão que segurava
Aline descreveu um arco para cima, e ele arremessou sua esposa para o alto.
— Não!!!
Jogada para o alto, Aline se sentiu sem peso por um instante. Passou pela
sacada do apartamento e foi subitamente agarrada pela mão da tia, que a puxou
para dentro.
Caiu no chão com um forte impacto. Sentiu a torsão do pé e gritou de dor, de
medo e de surpresa.
Kaliel estava de costas para ela. Estava voltada para o lado de fora da sacada e
atacava com sua espada alguma coisa logo abaixo dela.
Meu Deus, Sariel!
— Não, pare! Pare!
Quando arremessou a esposa para o alto, Sariel havia entregado sua vida
nas mãos de Kaliel. Sabia que ela não perderia a chance. Achou que pudesse
voltar para a sacada enquanto Kaliel ajeitava Aline, mas a grigori simples-
mente tinha jogado a moça para dentro do apartamento e agora o atacava
ferozmente.

150
A escolha de Aline

Sariel poderia ter se atirado. Era bem capaz de sobreviver à queda, mas isso
iria exigir um grande esforço. Enquanto ele estivesse se recuperando, Kaliel cairia
com tudo sobre ele.
Precisava achar um jeito de voltar para a sacada, mas isso parecia cada vez
mais difícil. Jogava o corpo de um lado para o outro, escapando por pouco dos
golpes de Kaliel. Apesar de tudo, conseguia desviar as investidas. Seus braços
já estavam enfraquecidos depois do combate com Kaliel, suas mãos estavam se
cansando. Era só uma questão de tempo.
Via Kaliel bem acima dele. Ela mirava cada golpe. Atacava com força total.
Aline se levantou, tonta e dolorida. Kaliel, de costas para ela, estava completa-
mente concentrada em matar seu marido. Aline chacoalhou a cabeça, estupefata.
Ela vai matá-lo!
Apoiou-se na parede para se sustentar e viu Kaliel atacando as mãos de Sariel,
agarradas ao parapeito.
Segurou a respiração sem que se desse conta disso. Deixou um ímpeto lhe
subir do ventre e controlar suas ações. Não percebeu quando agarrou o vaso a
seu lado, nem se deu conta da força com que o ergueu e lançou contra a cabeça
de Kaliel.
Fez sua escolha. Tomou seu partido.
Sariel viu os cacos passarem voando pelos lados da cabeça de sua oponente.
Kaliel desmaiou imediatamente.
O que é que aconteceu?
Aline apareceu na sacada.
— Amor, você está bem?
Sariel mal podia acreditar.
Com esforço, subiu de novo ao parapeito e voltou para o apartamento. Seus
braços tremiam. Quase não tinha sensibilidade nas mãos.
Kaliel estava estendida no chão.
— O que aconteceu, Aline?
— Ai, meu Deus, será que eu a matei?
Sariel fez que não.
— Se você tivesse, ela teria se desfeito.
Olhava para a oponente tombada e para Aline. Essa minha esposa...
— O que vamos fazer, Sariel?
Sariel pegou sua espada, que estava no chão, e virou-se para Kaliel. A esposa
se interpôs na mesma hora.
— Não, por favor! Ela é minha tia. Por favor, Sariel! Por favor!
Sariel pousou uma das mãos no ombro de Aline.

151
Abascanto: a sombra dos caídos

— Eu não vou machucá-la, Aline.


Virou Kaliel de barriga para cima e ajoelhou-se na sua frente.
— O que é que eu vou fazer com você, mulher...
Então teve uma ideia.
Justiça poética...
Gesticulou para que Aline se afastasse, enquanto concentrava energia. Pre-
cisaria de muita força para o que pretendia.
Abriu os olhos e viu toda a trama de linhas de força que cruzavam o corpo
de Kaliel. Sua aura não era mais uma nuvem disforme, e sim um emaranhado
extremamente complexo de canais e órgãos de pura energia.
Estendeu sua percepção e abraçou o corpo de Kaliel com sua intenção. Tocou
cada uma daquelas linhas cintilantes de energia vital.
Começou a desatar alguns nós, a dar outros. Lentamente, foi mexendo na
constituição do corpo de Kaliel, foi reescrevendo sua composição.
Estava alterando a natureza daquela mulher. Estava cortando o acesso dela
à energia.
Obscureceu suas linhas de força, fez com que seus órgãos funcionassem bem
mais devagar. Viu toda aquela potência vazar pelos lados enquanto, cuidadosa-
mente, traçava novos canais. Ficou quinze minutos fazendo a cirurgia energética.
Quando se ergueu, estava exausto.
— O que você fez?
— Eu a transformei. Eu mexi na energia dela e rompi o contato dela com o
resto do mundo.
— Como é?
Sariel olhou fixamente para a esposa. Falou com saudade, com uma breve
satisfação, e muita dor.
— Eu a transformei numa mortal. Eu a acorrentei a este mundo. Eu retirei
seus poderes.
Aline olhou fixamente para Kaliel, caída no chão.
— Isso é possível!?
— Não é permanente. A força desta mulher é muito grande. Vai durar uns
bons meses, talvez um ano, mas ela não tem mais poderes do que você agora.
Aline foi abraçar o marido. Sariel a evitou... Olhando para Kaliel, teve um
breve momento de remorso.
Eu vivi assim por mil anos... Eu jurei que jamais faria isso com alguém...
— Vai ser difícil para ela... Vamos, ajude-me a levá-la para um quarto de hós-
pedes. Ela vai dormir por muito tempo. O bastante para eu ir ao jantar e voltar.
— Você ainda vai? Mesmo depois disso tudo? Fique comigo!

152
A escolha de Aline

— Eu preciso, Aline. Eu tenho que ir.


É lá que eu vou pôr as mãos em Deucalion...
Seus braços ainda tremiam.

153
DDOO LL
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SAPIENTE N NTASE MMES-
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M
VOL-
DOLENTEM
mundo
DOLENTEM
DOLENTEM
CONSE DELES-
AECATAMUS,
TATE CONESTRUM

Érico se sentia anestesiado.


Achava que havia experimentado o que de mais amargo existia na vida. Não
conseguia deixar de ver a morte de Sariel e Belial com grande satisfação, mas
também achava que era um desejo frustrado.
Eu tenho que matá-los! Eu tenho que vê-los sumir na minha frente! Eu! Não ela!
Não podia apagar o gosto da derrota.
Ela me venceu e nem tem tanto treino quanto Sariel...
Achava que era um campeão e havia encontrado um oponente muito superior.
Achava que estava evoluindo com seus poderes, e Belial tinha lhe mostrado
que ainda podia vencê-lo.
Perdera o pai, perdera o melhor amigo, não conhecia mais a tia.
Não tinha mais nada.
Toda a sua vida lhe parecia um sonho.
Como eram pequenas as minhas preocupações de um mês atrás... Achar um
emprego... Conseguir dinheiro... Namorar... Morar sozinho...
Não poderia nem mais voltar para aquela vida se quisesse. Sariel e Belial ha-
viam mostrado que não iriam deixá-lo em paz.
Eu não tenho como lutar contra eles... E não tenho como fugir!
Havia perdido tudo. Seu amigo, seu apartamento, seu futuro... Estava em uma
casa que não era sua, suas roupas foram compradas por Kaliel. Nem sequer a
camiseta que acabava de vestir era sua.
Eu não tenho mais nada... Nada... Nem posses, nem treino, nem futuro...
Nem pai. Nem amigo.
Achou que era motivo bastante para desistir de tudo, mas não tinha mais
ânimo nem para isso.
O que é que eu sou, no final das contas?
Sua tia, a única coisa que lhe restava, talvez nem mais voltasse. E aí toda a sua
vida teria acabado.
Olhou para o lado como se alguém tivesse dito o seu nome.

154
O dono do mundo

Lá estavam as espadas de Daqshael.


Não tenho nada... Exceto as espadas do meu pai.
Segurou uma delas e, novamente, sentiu aquele ímpeto, a mesma determina-
ção de antes.
É você mesmo que está aqui, pai?
Lembrou-se de um episódio... Tanto tempo antes... Estava na quarta série e
havia repetido de ano. Naquela vez, como agora, parecia que havia perdido tudo
o que tinha. Não veria mais seus amigos, teria de enfrentar pessoas novas, gru-
pinhos formados, e tudo com o péssimo gosto de ser pior do que os outros, de
não ter conseguido estar à altura.
Aquilo parecia tão distante, tão pequeno... Mas, naquela época, ele também
ficara arrasado. Havia sido vencido e perdera o que mais importava.
Seu pai nunca o tinha acusado de nada. Apenas perguntara:
— Qual é a pior parte disso tudo, filho?
Quando ele conseguiu responder, disse:
— Eu perdi meus amigos, pai.
Daqshael olhou para ele e disse:
— Nem todos, filho.
O pai o levou todo dia a um passeio diferente. Parques, cinemas, teatro,
acampamentos: Érico viu tudo o que podia ser visto na cidade. Sempre com o
pai ao lado.
Foram as melhores férias da sua vida.
Ele não queria que aquilo acabasse nunca. Mas seu pai lhe disse, pouco antes
das aulas começarem:
— Filho, se você passar direto de ano desta vez, a gente vai fazer tudo de novo,
tudo bem?
É, pai... Você nunca me deixou na mão.
Eu não vou te abandonar agora.
Mas o que ele poderia fazer?
Kaliel estava certa: ele não tinha nem ideia dos recursos que aqueles seres
tinham. Não sabia com quem estava lidando.
Eu tenho que saber mais sobre eles...
Em cima da mesa, arrumados e empilhados, estavam os papéis que Satanael
havia entregado à tia.
Relatórios e mais relatórios. Algo sobre química e biologia. Fórmulas e mais
fórmulas. Não entendia nada.
Tratavam do progresso de alguma coisa. Havia cópias de e-mails trocados por
diretores e gerentes, folhas e mais folhas com números.

155
Abascanto: a sombra dos caídos

Uma pilha de papéis tinha apenas uma sequência de bases gênicas: “TAG-
GACATTCCA...”.
O que é isto? O que é que esse Satanael descobriu?
Não tinha como entrar em contato com ele...
Será que não?
Érico pensou naquele senhor de fisionomia exótica que tinha visto não mais
de uma hora antes. Concentrou-se na imagem dele. Tentou se recordar especial-
mente da primeira impressão que o homem causara nele. Focalizou toda a sua
atenção nisso.
Achou que rapidamente estabeleceria um contato mental. Foram pelo menos cin-
co minutos até ele sentir que aquela imagem que formara em sua mente respondia.
Era a impressão de que, de repente, aquele homem estava olhando de volta para ele.
Érico enviou um pensamento.
Satanael, eu quero falar com você.
Teve de usar muita concentração para enviar esse pensamento, até ter a sensa-
ção de que a mensagem havia chegado. Cansou-se mais do que imaginava.
Isso não é nem um pouco como um telefonema...
Um minuto depois, ouviu a voz daquele homem como se ele estivesse bem
a seu lado:
Ligue para mim. 6999-8697
Érico discou.
— Érico, meu camarada... Você não é nada sutil com isso, sabia?
— Satanael?
— Quem mais, rapaz?
— Eu quero conversar com você.
— Dê um pulo na minha casa. Fica na Aldeia da Serra. Rua Sabiá, 819. Na
entrada eles te dão um mapinha. Você sabe como chegar?
— Acho que sim, obrigado.
— Estou te esperando, garoto.
Desligou. Érico não ficou mais nem um minuto na casa.
Levou suas espadas, só por precaução...

Satanael desligou o telefone e ficou admirando a ironia da vida. Sentia como


se tivesse sido atropelado por um basculante.
Por Zeus... Esse garoto precisa aprender a controlar a própria força. Eu nem
sabia se ele estava querendo um contato ou um confronto...
Então o filho de Daqshael quer falar comigo... Claro que quer. Kaliel não deve
ter dito nada para ele. E eu disse pra mulher levá-lo para enfrentar Sariel. Como

156
O dono do mundo

esses grigori têm mente obtusa... Teimam em não usar os recursos que têm. E, com
certeza, eles têm um sério problema com o trabalho em equipe.
Agora... O que é que eu faço com esse garoto? Assim que ele bater na minha
porta, todas as lideranças vão ficar sabendo que o filho de Daqshael veio conversar
comigo. Isso vai ser uma mensagem de parcialidade muito óbvia...
Hum... Não posso deixar meus nobres conterrâneos pensarem assim. Eu tenho
que equilibrar a situação de alguma forma...
Já sei! Mas que ótima ideia! E ainda vai ser uma diversão à parte!
Ainda segurando o telefone, Satanael discou outro número.
— Alô?
— Belial, minha querida, como está você?
— Satanael... Faz tempo que não nos falamos. Se eu bem me lembro, da última
vez que conversamos, você ameaçou minha vida...
— Águas passadas, minha cara! Eu tenho notícias quentes para você! Daquelas
que você vai gostar de ouvir.
— Você tem dez segundos.
— Sabe o filho do seu arqui-inimigo, Daqshael? O garoto cujo amigo você
matou? É, neném, eu estou sabendo das suas diversões. Então, esse Érico está
vindo aqui conversar comigo. Parece que ele tem alguma coisa muito importante
pra me dizer.
Silêncio.
É óbvio que ela vai querer saber mais.
— Ele adiantou o assunto?
— Não. Disse que tinha que ser pessoalmente.
— Por acaso você não me diria onde está agora, não é?
— Mas que pergunta ingrata, Bê. Você acha que eu me esqueci de toda a sua
ajuda na batalha de Poitiers? Claro que eu lhe diria. Pelos velhos tempos. Pela
nossa amizade.
— Claro, Satanael... Pela nossa amizade...
— Anote aí...

A casa em que Satanael estava ficava em uma encosta na colina. Tinha-se uma
visão completa de todas as minúsculas caixinhas de vidro e concreto que forma-
vam a capital. Um horizonte cinza se estendia de um lado a outro, salpicado de vez
em quando por um tufo de verde nas beiradas. Uma cobra negra e suja cortava a
vista: o rio no qual as pessoas até já esqueceram que, um dia, foi possível nadar.
Sobre essa imagem crua, uma fumaça cinza-chumbo, que nunca se desfazia, espa-
lhava pó e doenças entre todos os cidadãos. Viver na cidade era um desafio por si só.

157
Abascanto: a sombra dos caídos

Apesar disso, muitos considerariam a vista privilegiada. Muitos pagariam


uma bela fortuna para tê-la.
A casa em si brotava do solo em um labirinto de caixas brancas. Vez ou outra,
via-se aqui e ali uma janela ou uma parede de vidro, mas, no geral, o branco
dominava. Não havia telhado, mas cada terraço era aproveitado de maneira dife-
rente. Desse emaranhado confuso, caía uma pequena cachoeira artificial que le-
vava água à piscina.
Era a única casa do quarteirão. Érico nunca havia entrado em uma residência
tão grande.
Quando ele se identificou pelo porteiro eletrônico, o portão abriu por conta
própria. Uma jovem o esperava do outro lado.
Mal conseguiu conter seus olhos. A mulher que o atendeu havia acabado de
sair da piscina e usava o menor biquini possível. Érico não conseguia deixar de
dançar com seu olhar sobre cada uma daquelas curvas.
Totalmente à vontade, ela acenou para que ele entrasse.
Na sala de estar, foi recebido por um rapaz que aparentava ter não mais que
a idade de Érico. Não usava roupas: usava etiquetas. Todas muito bem à mostra.
Mediu Érico de cima a baixo com o primeiro olhar e pousou a vista por um se-
gundo a mais nas espadas que o nephilim carregava.
Tinha um queixo fino, que apenas acentuava uma face quase andrógina. Uma
outra mulher o abraçava e brincava com um tufo dourado de seus cabelos, que
lhe caíam pelos ombros.
Érico se sentiu devorado por aquele olhar. Um par de olhos amendoados
parecia ler a menor das sombras de seu rosto.
— Sim?
— Eu vim ver Saito Tamura, eu sou...
— Érico. Sim, nós o estávamos esperando. Ele está no escritório dele, no final
do corredor.
Apontou languidamente para o lado, mas os olhos não perderam o corte nem
por um instante. Ergueu-se e caminhou à frente de Érico. Com o mais breve sinal
de sua mão, pediu a suas acompanhantes que o esperassem na sala.
Érico percebeu: Ele também é um dos caídos.
A casa tinha uma decoração discreta. Poucos objetos, aqui e ali, preenchiam
o espaço com precisão milimétrica. Não parecia vazia, mas estava longe de estar
cheia. Sempre em tons pastéis.
O escritório de Satanael era uma enorme sala com parede de vidro. Estava
atrás de uma mesa de mármore, sobre a qual havia três notebooks abertos que
dividiam a atenção do caído. De um lado, uma prateleira de vidro exibia uma

158
O dono do mundo

coleção de troféus e placas comemorativas. Do outro, uma estante de madeira


escura, com livros precisamente posicionados.
— Satanael, Érico está aqui.
— Ah, ótimo. Faça-o entrar, por favor, Lucien.
Érico se sentiu aliviado quando a porta se fechou atrás dele. Não havia gos-
tado daquele indivíduo desde o início.
Satanael gesticulou para que Érico se sentasse em uma das poucas cadeiras
do escritório. Tinham um design moderno, daqueles que só se vê nas vitrines das
lojas de decoração.
Reclinou-se na sua e disse:
— Armado, Érico?
Érico ficou levemente envergonhado por ter trazido as espadas.
— Desculpe, é que...
— Deixe disso, garoto. Eu não esperava nada diferente de você. Deixe as espa-
das na mesa e sente-se. Seja bem-vindo à minha casa.
— É impressionante...
— Um mimo. Você tem que ver meus castelos na Espanha.
Por algum motivo, essa frase deixou Érico subitamente desconfortável.
Satanael ergueu o canto direito da boca.
— O que eu posso fazer por você?
Tinha uma navalha na voz. Érico imaginou que ele não deveria dizer aquilo
muitas vezes, nem para muitas pessoas.
— Eu quero que você me diga sobre o que conversou com a tia Ká.
Novamente, Satanael armou uma leve expressão enigmática quando Érico
disse “tia”.
— Por que você não pergunta a ela?
— Ela saiu. Foi enfrentar Sariel.
— E por que eu lhe diria?
Satanael, calmo, ainda tinha seu quase sorriso na boca.
Do que é que ele está rindo?
— Eu mereço saber!
— Rapaz... O mundo não é justo. Por que eu haveria de sê-lo?
— Você contou para ela!
— Eu e ela temos um acordo.
Érico não tinha o que dizer. Não tinha o que apresentar nem oferecer.
— Por favor, me conte! Eu tenho que saber! Ele matou o meu pai!
— Ah, por favor, sem pieguices comigo, sim?
— Sem pieguices o caralho!

159
Abascanto: a sombra dos caídos

Érico havia se erguido de súbito, sem nem ao menos percebê-lo.


— Eu não vim até aqui pra uma conversa de fim de tarde. Eu vim aqui pra saber
o que está acontecendo, e você vai me contar! Meu pai morreu na minha frente por
causa disso! Minha tia pode morrer agora mesmo por causa disso! Eu perdi meu
melhor amigo! Você vai me contar porque, se tem uma pessoa que merece saber,
sou eu! E você sabe! Você sabe de tudo! Esses caras brincam com as nossas vidas
como se não fôssemos nada! E você ainda vai me dizer que eu sou piegas?
Bateu as mãos na mesa.
— Você vai me falar porque alguém tem que parar com isso, e esse alguém
sou eu!
Satanael não moveu um músculo. Continuou observando Érico sem mudar
de expressão. Ajeitou-se muito lentamente na cadeira enquanto se encaravam.
Por fim, disse:
— Sabe de uma coisa? Você não vai viver muito. Gente como você morre
cedo, sabia? É. Uma pena mesmo...
Satanael voltou a fazer sinal para que Érico se sentasse. O anfitrião se ergueu e
foi a um pequeno bar no canto da sala. Serviu-se de uma dose de bebida. Balan-
çou a cabeça, como se achasse alguma coisa lamentável, e disse:
— Diga-me, você sabe o que é o “sulco superior temporal posterior”?
— Não, o que é isso?
— É uma região do cérebro. Descobriu-se que essa região é mais desenvolvida
em pessoas que têm uma maior propensão para atos de caridade e ajuda.
Érico franziu a testa.
— E o que isso tem a ver?
— Tem tudo a ver. Veja, desde o começo do século XX, Sariel tem o monopólio
de fato da produção farmacêutica do mundo. Todas as grandes corporações têm
algum vínculo com ele. O seu pseudônimo, Sandro Asternach, é dono do maior
conglomerado de investimentos do planeta nesta área.
— E?
— E que eu descobri recentemente, hoje mesmo, que Sariel tem desenvolvido
uma doença em segredo. Uma doença fatal, extremamente contagiosa, perigosís-
sima, chamada Deucalion.
— Deucalion?
— É. É bem coisa dele essa de dar nomes sentimentais às coisas. Deucalion era
o nome de um dos filhos que ele teve. Muito, muito tempo atrás.
— E o que é que essa doença faz?
— Ela mata. Ela é rápida, indolor e quase completamente assintomática. Após
contraí-la, a pessoa ainda tem um mês de vida normal, e depois, em dois dias,

160
O dono do mundo

morre. Nesse mês, ela é um vetor para a doença, que se espalha por via aérea. É
como se fosse uma gripe, mas não tem sintomas e mata em pouco tempo.
Érico abriu os olhos.
— Isso existe?
— Acabou de ser desenvolvido. Mas veja, essa doença não mata todo mundo,
ah, não. Ela mata apenas as pessoas que não têm o sulco superior temporal pos-
terior desenvolvido. Ou seja, uma doença que vai exterminar a raça humana e
deixar neste mundo apenas as pessoas... digamos, “boas”.
Érico se levantou.
— Isso não é possível!
— Sente-se... Isso é bem possível. Isso já existe!
— Mas isso é o fim!
— Concordo.
Ele ainda ria quando disse aquilo!
— Isso não pode acontecer! Ele tem que ser impedido! Agora!
— Pois foi justamente isso que sua tia foi fazer! Sente-se, ainda temos o que
conversar.
Érico se sentou, mas não conseguia parar de olhar de um lado para o outro.
Passava a mão na cabeça.
— Mas por quê? Por que ele quer fazer isso? É uma catástrofe! Genocídio! Ele
vai acabar com toda a humanidade!
Com seu copo na mão, Satanael se sentou na beirada da mesa.
— Por quê? Ah, bem... Na visão deturpada de Sariel, ele vai salvar o mundo.
— Salvar?
— Sim. Veja, Sariel tem um grave defeito: ele se envolve demais. Ele gosta de
conhecer pessoas, de se tornar parte da vida delas, salvar vidas. Ele é muito dado
a grandes causas humanitárias, sabe? Financia obras assistenciais, dá dinheiro
para os pobres, comida para as crianças, essas coisas.
— E, por causa desse “defeito”, ele quer destruir tudo?
— Sim, exatamente. Sariel não aguenta mais. Ele não aguenta mais ver a hu-
manidade se matando, violentando a si mesma. Todo o sofrimento do mundo, a
dor das crianças, o horror das guerras, blá, blá, blá. Tudo isso, depois de sete mil
anos, é demais para ele.
Érico estava incrédulo.
— Ele quer destruir o mundo... Para salvá-lo?
Satanael sentou-se em sua cadeira.
— Entenda que, para Sariel, o grande problema é o sistema. Sariel acredita que
a sociedade, hoje, está construída de um jeito que impede que as pessoas real-

161
Abascanto: a sombra dos caídos

mente boas ou dignas façam alguma coisa para mudar isso. Elas são esmagadas
pelos interesses dos oportunistas, dos gananciosos, e os seus esforços de mudan-
ça acabam se tornando infrutíferos. Para Sariel, o mundo não é melhor porque as
pessoas não são melhores. Mas, se a sociedade pudesse ser refeita, se, de repente,
todas as pessoas que estragam o sistema fossem eliminadas, e sobrassem seres
dignos, então esses seres construiriam um novo mundo, digno. E depois que essa
nova estrutura estiver estabelecida, mesmo que nasça alguém egoísta, essa pessoa
é que vai ser coibida pelo sistema. Seria a inversão dos valores atuais. O nasci-
mento de um mundo justo.
— Isso é loucura!
— Veja, garoto... Pode dar certo. A ideia dele não é tão ruim, ela pode
funcionar!
Érico não conseguia parar de se mexer da cadeira.
Acabar com a humanidade! Matar todo mundo!
De repente, a sua vingança ficou bem pequena. De repente, tudo o que ele
queria ficou sem sentido. Não era só a morte do seu pai em jogo. Não era só a sua
vida ou os seus sentimentos.
Bilhões de pessoas!
Todo mundo que ele conhecera na faculdade, seus amigos, seus rivais, mestre
Kong, Clarice, sua primeira namorada, Alessandro, seu amigo de infância que
morava em Americana... Os familiares deles... Todo mundo... Morto!
— E você disse que ele já desenvolveu isso?
Satanael fez que sim.
A amplitude do desastre não cabia na cabeça de Érico.
— Quem sabe disso?
— Ele, Belial, sua tia, eu e você. Tirando os pesquisadores que desenvolveram
a doença, é claro.
— Meu Deus!
Estava pasmo.
— E qual é a sua parte nisso tudo?
— A minha? Heh. Eu quero impedi-lo. Sabe, eu até poderia ter concordado
com o plano dele... Eu até poderia ter me aliado a ele... Talvez... Se ele ao menos
tivesse a cortesia de me informar no início de tudo. Mas não, ele resolveu fazer
tudo em segredo, sem a minha aprovação. Isso eu não posso deixar barato. Ele
mexeu no meu território, e eu tenho que me opor a ele, porque, se não, será o
caos entre os caídos. — E aí ele perdeu o sorriso. — Ninguém mexe com o meu
mundo sem a minha aprovação.
— O seu mundo?

162
O dono do mundo

— Sim. Meu. Ele é meu, Érico. Tudo o que você vê me pertence. Todos os
prédios, objetos, serviços, pessoas, cidades, nações. Eu tenho poder sobre tudo
isso. Eu posso escolher o destino de um indivíduo, ou de um país, com a mesma
facilidade. Eu conquistei este mundo na política, na guerra e na influência. Ele é
meu. E eu gosto dele. Eu não quero que ele acabe. E o mais importante: eu não
autorizei isso.
Ele também é louco?
— Você está falando sério?
Ele não está mais rindo...
— Seríssimo, garoto. E é bom que você saiba, já que está entrando em contato
conosco agora. Existem uns cento e trinta e nove caídos neste mundo. Cada um
deles tem sua área de influência. Uns cuidam de grandes corporações, outros
cuidam de agências policiais, outros ainda cuidam do crime organizado, de uma
ou outra nação. Mas todos se curvam a mim. Eu sou o mais antigo de todos. Eu
sou o líder dos líderes ocultos deste planeta. A Terra é minha.
Satanael se inclinou para frente para dizer:
— E ninguém mexe com ela sem o meu aval.
E depois se reclinou novamente, relaxado, armando mais uma vez a ironia
na face.
— Aceita um uísque?
Ou esse cara é louco... ou muito perigoso! Será que ele realmente tem todo esse
poder?
— O que é que você vai fazer agora, Érico?
Não sabia. Não sabia, na verdade, como enfrentar Sariel.
Ele vai matar o mundo todo!
Tinha de enfrentá-lo. Com ou sem o aval da tia.
Ninguém mais sabe disso! Para detê-lo, somos nós ou mais ninguém!
Atrás dele, a porta se abriu. Satanael se levantou.
— Ah, mas que ótimo. Outra visita. Érico, acho que vocês já se conhecem,
não? Esta é Belial.
Érico se virou para a porta no mesmo instante. As espadas já estavam em
suas mãos.
Ela está aqui! Aqui!
Em seu peito e em suas mãos, uma satisfação surgiu.
É agora! Finalmente! Desta vez ela não me escapa!

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sincera
DOLENTEM
DOLENTEM
CONSE DELES-
AECATAMUS,
TATE CONESTRUM

Aline continuava sentada em seu banheiro, sem saber direito no que pensar.
Sua tia — sua tia biológica — estava dormindo em um quarto a alguns metros
dela. A pessoa que poderia lhe contar tudo, sobre seu pai e sua mãe, a família que
nunca teve, a verdade sobre a sua vida! Seu elo com o resto do mundo. A base
que sempre lhe faltara.
A mesma pessoa que havia tentado matar seu marido, e Aline tinha quebrado
um vaso em sua cabeça.
Não queria nem sequer começar a pensar no que Sariel havia feito com
ela. Não tinha a menor condição de imaginar o que significava tê-la “tornado
mortal”. Mas sabia de uma coisa: Se acontecesse comigo, eu iria acordar uma
fera...
Precisava daquela mulher! Precisava conversar com ela, ouvir o que ela tinha
a dizer. Queria que ela a ajudasse a se aproximar de Érico, o irmão que ela nunca
soubera que tinha...
Quando ela acordar, não vai ficar nem mais um minuto aqui.
Suspirou.
E, além de tudo, mais uma surpresa!
Um filho. Estava esperando um filho de Sariel.
O teste não mentia: ela o havia feito três vezes. Aline tinha se precavido, mas
mesmo a pílula tinha suas falhas...
Menos de uma semana antes, tinha tido uma conversa com Sariel sobre isso.
Assim que mencionou a palavra “filhos”, uma melancolia desceu sobre o marido,
um peso que puxou os cantos de seus olhos para baixo.
— O que houve, Sá? Você não quer ter filhos? Você adora crianças!
— É verdade, meu bem... Mas filhos são uma coisa que nós nunca poder-
emos ter.
— Por quê? Um grigori não é compatível com um ser humano? Eu não sou
filha de um?
— Sim, meu anjo... Mas é que...

164
Nenhuma pessoa sincera

Poucas vezes Aline tinha visto o marido transparecer uma tristeza tão grande.
— Meu bem... Uma mulher mortal não consegue suportar a gravidez causa-
da por um grigori. A energia é muito grande. Em quase todos os casos, elas
morrem no parto.
Aline perdeu um pouco do próprio espírito naquela hora. Sentiu o coração se
fechar, todas as preocupações de repente ficaram menores. As cobertas que usava
lhe pareceram muito pesadas.
— Eu nunca vou poder ter um filho seu?
— O perigo é muito grande, Aline.
— Mas eu sou uma nephilim. Eu sou mais resistente do que um humano comum.
— É verdade, meu bem, você tem mais chance do que a maioria, mas, mesmo
assim, as chances não passam de uma em quatro. E, mesmo que você viva, pode
ser que você venha a ter sérios problemas. Você pode ficar em coma, ficar debil-
itada para o resto da vida... Os riscos são muito grandes, amor.
Aline suspirou. Tinha tantos planos. Tinha tantas esperanças. Queria ver
aquele imenso apartamento repleto de pequenos Sariéis e Alines. Queria segurar
no colo um pedaço dos dois.
Abraçou Sariel com força.
— Eu queria tanto um filho nosso, Sá.
— Eu também quero, meu bem, mas não podemos...
Não podiam... E iria acontecer. Ela tinha bem na frente a prova. Ele deveria ter
sido concebido já havia um tempo. Talvez no final da lua de mel.
O atraso e uma forte sonolência foram pistas inconfundíveis. O enjoo daquela
manhã tinha sido o decreto final.
E agora? O que eu faço?
Se eu não contar para o Sá... Se eu deixar para que ele descubra tarde demais,
talvez ele não tenha opção a não ser aceitar. Afinal... Uma em quatro...
6NBFNRVBUSPDeus! Eu quero este filho, mas... Uma em quatro!
Não sabia o que fazer. Não sabia nem para quem pedir conselhos. Tinha
certeza de que Sariel iria exigir um aborto. Não queria arriscar contar aquilo
para a tia: nem sabia com que humor ela iria acordar. E não havia mais nin-
guém. Talvez Érico, mas meu marido matou nosso pai... Ele não vai querer me
ver por um bom tempo...
Será que eu sempre vou estar sozinha nestas decisões?
Ouviu a porta de entrada se abrir.
Compôs-se e foi ver quem era. Seu pai estava na sala de entrada. Aline abriu
um sorriso sincero, aliviado, embora uma leve tensão fizesse o canto de sua
boca tremer.

165
Abascanto: a sombra dos caídos

— Papai. Entre. Por que você não me disse que estava vindo para cá? Eu teria
me arrumado melhor...
E tirado aquela grigori do quarto de hóspedes... Pelo menos eu tive tempo de
limpar os escombros da sala...
Edgar parecia um pouco preocupado. Distraído, talvez.
Será que ele notou alguma coisa errada?
Aline podia jurar que ele pensou um pouco para responder.
— Eu vim pegar você e Sandro para o jantar, Aline.
— Ah, que gentileza, papai, mas o Sandro já foi. Você sabe como ele gosta de
dirigir sozinho, e eu... Não estou com muito apetite hoje.
— Ah... Que pena... Tem algo de que você precise?
Aline franziu levemente a testa.
O que é que ele quer?
— Não, papai, obrigada.
— Eu vou usar o banheiro um minutinho.
— Ah, claro...
Lá se foi ele.
Que estranho... Papai não costuma aparecer sem avisar. E ele bem sabe que o
Sariel gosta de dirigir sozinho. Por que será que ele apareceu aqui?
E então lembrou-se de uma coisa.
Minha nossa! Ele vai usar o banheiro onde eu deixei os testes de gravidez!
Aline correu atrás dele. A porta do banheiro ainda não estava fechada. Edgar
estava de pé, com um dos testes nas mãos.
Estava com as sobrancelhas juntas. A boca séria. Os ombros encurvados. O-
lhava fixamente para o resultado do teste.
Ele está preocupado? Ele está vendo o meu teste de gravidez e está preocupado?
Ele sabe dos riscos? Como é que ele sabe?
Aline arrancou o teste da mão dele.
Olharam-se.
Outra memória lhe veio à mente.
Em sua festa. No momento em que Érico a tomara pelo braço e soltara a
primeira de uma série de revelações: “Eu sou seu irmão”. Edgar estava logo atrás.
Poucos instantes depois, Sariel entrara correndo no salão.
Todos nós nos viramos, assustados com a entrada dele. Eu, Érico, Belial e papai.
Todos o vimos, mas Sariel estava com seu Aegis ligado.
Como é que papai o viu!?
Aline abriu os olhos e deixou o queixo cair.
— Você também tem Abascanto!

166
Nenhuma pessoa sincera

Edgar a encarou por um instante. Considerou, por alguns momentos, uma


mentira qualquer, mas decidiu que ela já sabia demais, havia passado por muita
coisa, para que ele não fosse sincero com ela.
Endireitou-se.
— Sim, Aline. Eu tenho.
Aline deu um passo para trás.
— Oh, céus! Desde quando?
Edgar quase riu.
— Desde sempre, Aline. Isso é algo que nasce com você.
— Você sabia? Você sabia esse tempo todo sobre Sariel e Belial? Sobre mim,
meu pai biológico, minha tia?
Edgar apenas fez que sim.
Aline levou a mão à boca. Sentiu subitamente que todo o seu almoço estava
para sair. Apoiou-se no batente da porta e se controlou. Fechou os olhos com
força. O mundo inteiro girava. Sua vida inteira, de pernas para o ar. Tremendo,
duas lágrimas descreveram um caminho tortuoso pela sua face.
— Você sabia e não disse nada? Não me avisou? Nunca me falou sobre meu
pai de verdade?
— Aline, você nunca mostrou o menor interesse em conhecer sua família bi-
ológica. Você nunca expressou a menor preocupação com isso. Por que é que eu
ia te trazer uma dor de cabeça dessas?
— Ah, por favor, poupe-me do “isso foi para sua proteção”!
Edgar saiu do banheiro. Foi em direção à sala.
— Aonde você pensa que vai?
— Suponho que você não me queira mais aqui.
— Pois supõe errado. Sente-se aí e comece a me contar tudo.
Edgar se sentou, resignado.
— O tempo é curto, Aline.
— Dane-se o tempo.
— Você não entende. Uma coisa horrível está para acontecer.
— A única coisa horrível vai ser que eu vou te atirar por aquela janela se você
não me falar tudo! Por que é que você nunca contou nada? Eu noivei com ele e
você sabia! Desde quando você sabe que eu sou filha de Daqshael? Por que nunca
me contou nada?
Edgar baixou o olhar.
— Tudo bem, eu vou tentar ser rápido... Eu conheci Daqshael e sua tia vinte
e um anos atrás, logo depois de te adotar. Eles estavam procurando pela filha
de Daqshael. Quando viram que você estava adotada, resolveram deixá-la viver

167
Abascanto: a sombra dos caídos

comigo, porque acharam que assim você teria uma vida normal. Quando Sariel
apareceu, eu comecei a informá-los sobre cada passo dele. Pouco tempo atrás,
nós começamos a desconfiar que ele estava tramando algo, mas não sabíamos o
que era. Nesse meio-tempo, Daqshael sempre arranjou um jeito de ter notícias
suas. Ele sempre queria saber como você estava, se estava sendo bem tratada,
se estava feliz. Ele sempre a acompanhou a distância. Daq sempre soube do
meu Abascanto. Foi ele mesmo quem me pediu para não lhe contar nada, para
deixar que ele o fizesse, e como o amor dele era sincero, concordei.
Aline tremia da cabeça aos pés. Não conseguiria se mover se tentasse.
— Eu nunca soube de nada... Deus meu, todo mundo ao meu redor sabia de
tudo e eu nunca soube de nada! Será que não há uma pessoa que tenha sido sin-
cera comigo esse tempo todo?
Edgar não respondeu. Apenas olhava para ela.
— Diga alguma coisa!
— O que você quer que eu diga, Aline? Me desculpe? Não é disso que você
precisa agora.
Aline agarrou o encosto do sofá com muita força. Seus olhos perfuravam o pai
com uma raiva nua.
— Kaliel está aqui, Aline?
— Como é?
— Kaliel está aqui? Eu preciso saber.
A pergunta incendiou Aline por dentro.
— Ah... você precisa saber? Precisa saber, é? Que bom! Que ótimo! Você
precisa saber! E eu? Ninguém nunca se perguntou o que é que eu precisava
saber? Ninguém nunca considerou o que é que eu iria pensar, é? Todo mundo
sabia! Todo mundo! Sariel sabia! Belial sabia! Meu pai biológico! Você sabia!
Meu próprio pai sabia e não me contou nada! A minha vida toda! Vocês
poderiam ter me explicado a minha vida toda e me deixaram no escuro! E
agora quer que eu te diga se Kaliel está aqui porque “você precisa saber”?!
Ora, vá para o inferno, você! Vá para o quinto dos infernos, você, Kaliel,
todo mundo! Eu estou cheia dessa história! Estou farta! Para mim acabou,
entendeu? Chega! Daqui para frente, eu dou um tiro na próxima pessoa que
me vier com um “foi para o seu bem”! Eu sei qual é o meu bem, entendeu?!
Eu! E mais ninguém!
Percebeu que tinha mais um vaso nas mãos. Edgar a olhava com os olhos
bem abertos.
— E eu vou ter esse filho, sim! Não quero saber de uma em quatro! Ele é meu
filho e eu vou tê-lo!

168
Nenhuma pessoa sincera

Edgar ergueu lentamente as mãos à sua frente.


— Tudo bem, Aline, olha... eu —
— “Olha, eu” coisa nenhuma! Saia daqui! Suma desta casa agora!
Edgar foi em direção à porta.
— Aonde diabos você está indo?
Olhou-a, confuso.
— Você não queria falar com minha amável tia Kaliel? Bom, ela está no
quarto, dormindo. Ela lutou com meu marido e só não morreu porque eu o
impedi.
Edgar endireitou as costas e pôs-se a andar pelo corredor antes que Aline
mudasse de ideia... Encontrou Kaliel deitada em uma cama. Aline vinha logo
atrás. Ao ver a grigori, Edgar soube de imediato que havia algo muito errado
com ela.
Edgar se aproximou de Kaliel e se sentou na frente dela. Inclinou-se para olhá-
la bem de perto.
Aline estava à porta. Não pôde deixar de notar que Edgar olhou para Kaliel
com um estranho cuidado, quase uma reverência.
— Bom, está aí. Está dormindo. Agora que você a viu, quer me fazer o favor
de sair daqui?
Mas o pai se virou para a filha, sério e constrito.
— O que é que aconteceu com ela?
— Sariel tirou os poderes dela por um tempo.
— Ele fez o quê?
— Tirou os poderes dela. Você não sabia que ele podia fazer isso? Quer dizer
que eu sabia de algo, e você não? Que novidade.
Edgar se levantou.
— Isso é um desastre.
— Desastre é o que vai te acontecer se você não for embora logo, logo.
— Aline, seu marido está prestes a matar todo mundo.
Aline piscou duas vezes. A acidez saiu da sua boca por um instante.
— Como é que é?
— Sariel desenvolveu uma doença que vai acabar com toda a humanidade,
Aline, e vai soltá-la daqui a pouco. Daqui a alguns minutos! Kaliel me avisou
disso por telefone e disse que estava vindo para cá para dar um fim em Sariel de
uma vez por todas.
— Uma doença? Para acabar com a humanidade?
— Sim! Por isso eu te digo que o tempo é curto.
Aline soltou uma gargalhada nervosa.

169
Abascanto: a sombra dos caídos

— Isso é impossível! Sariel jamais faria isso! Eu o conheço.


Edgar se aproximou de Aline e a agarrou pelo ombro.
— Pois da próxima vez, filha, não reclame porque ninguém te contou nada! A
verdade é esta: seu marido quer acabar com toda a raça humana, e daqui a bem
pouco, vai conseguir.
Aline tinha o queixo caído.
Meu marido? Sariel? Não é possível!
— Não! Não! O Sariel é uma pessoa gentil. Ele é carinhoso, ele é sensível! Ele
jamais faria isso.
Edgar a soltou e foi em direção a Kaliel. Sentou-se na frente dela mais uma
vez, colocou as mãos na nuca e começou a se concentrar.
— Não, isso não é verdade! Você está enganado! Eu conheço meu marido! Ele
não é assim!
Edgar olhou para a filha. Ninguém além dela teria notado a leve pontada de
raiva em sua voz:
— Veremos. Eu e Kaliel vamos conversar com ele agora mesmo.
— Você pode trazê-la de volta?
— Eu posso acordá-la. Quanto ao que Sariel fez...
Concentrou-se em Kaliel. Dois minutos depois, ela abriu os olhos devagar.
Levou uma das mãos à cabeça, como se estivesse tonta. Seus olhos se abriram
o bastante para Aline perceber o seu pavor. Ninguém disse nada.
Um segundo de susto, foi tudo o que passou pelo rosto da grigori. Depois, era
novamente a mulher que havia lutado com o marido de Aline.
Ergueu uma das mão na direção de Edgar, e ele a ajudou a se sentar.
Kaliel e Aline trocaram um olhar. Aline achou que ela iria engoli-la com
aqueles olhos.
— Ajude-me a me levantar, sim.
— Você está bem?
Kaliel fez que sim.
— Bem o bastante, Edgar. Sariel retirou de mim tudo o que podia, mas eu
ainda estou viva. Nós dois juntos vamos ter que pegá-lo.
Edgar concordou em silêncio.
Aline se interpôs na conversa:
— Não antes de eu ouvir essa história toda da boca dele. Doença? Matar todo
mundo? Vocês estão errados!
Kaliel se voltou diretamente para Aline, e uma sombra de carinho passou por
seus olhos.
— Traga minha espada, por favor, querida.

170
Nenhuma pessoa sincera

Aline saiu na mesma hora.


Por que eu a estou obedecendo? Porque eu não sei de mais nada. Deus do céu...
Toda a humanidade?

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ACCUSTIS
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DOLENTEM
Revanche
DOLENTEM
DOLENTEM
CONSE DELES-
AECATAMUS,
TATE CONESTRUM

Diante de Érico estava a assassina de Guilherme, a mulher que participara da


morte de seu pai. A mulher que o tinha seduzido e derrotado.
Havia sonhado com aquele instante. Havia imaginado diversas formas de aca-
bar com ela. Seu peito se inflamava cada vez que fantasiava a morte daquele ser
horrendo. Sentia os braços arder. Suas mãos queriam estrangulá-la. Seus olhos
queriam vê-la sumir.
Apesar de tudo, agora que ela estava na sua frente, um silêncio profundo tomou
conta de Érico. Todo o seu corpo se esvaziou de sentimento. Só o frio restava.
Sabia que seus olhos estavam desprovidos de emoção.
O mesmo olhar que a tia exibira ao lutar com ele, o mesmo olhar de seu pai
em combate. Estava com ele agora.
Antes, ao falar com Satanael, Érico estava irado. Agora, sua voz saiu com con-
trole absoluto:
— O que é isto, Satanael? O que ela está fazendo aqui?
— A casa é minha, moleque, e eu deixo entrar quem eu quiser... Você chegou
bem na hora, Belial. Havíamos acabado de trocar grandes confidências. Você tem
sido uma menina levada, hein?
— Satanael, deixe-me explicar.
Belial estava totalmente voltada para Satanael. Toda a sua guarda estava aberta
para Érico. Ele podia investir contra ela ali mesmo.
Ainda assim, ele esperou. Controlou-se, a despeito do que sentia.
Não! Não de surpresa. Não pela traição. Vai ser olho no olho. Eu quero que
ela me veja!
— Ah, eu deixo você se explicar, Belial. Eu deixo você se explicar o quanto
você quiser. Mas antes... Antes você vai se acertar com nosso jovem amigo aqui.
Sabe, Belial, meu tempo é muito precioso, e eu não quero gastar horas ouvindo
uma explicação só pra você morrer logo depois. Então, acertem as contas vocês
dois, e daí eu converso com quem sobrar.

172
Revanche

Olharam-se, os dois oponentes. Belial ergueu sua espada e voltou sua aten-
ção para Érico.
Satanael ainda disse:
— Érico, Belial... Eu lhes dou permissão para se matarem na minha casa.
E se sentou calmamente na mesa.
Eles teriam se matado de qualquer forma, mas eu tenho que manter a autori-
dade no meu território!
Ambos correram um em direção ao outro assim que Satanael acabou de falar.
Érico se lembrava muito bem da força de Belial, sabia que os golpes de um
grigori eram intensos demais para serem aparados. Não se lembrava de Belial
ser mais forte do que a tia; mesmo assim, não poderia se dar ao luxo de fazer
uma experiência.
Não poderia usar uma de suas espadas para atacar, enquanto a outra defendia:
aparar os golpes de Belial só faria cansá-lo muito rapidamente. Isso limitava a
utilidade das lâminas duplas.
Belial começou com um ataque frontal. Usava um montante: uma espada me-
dieval cuja lâmina ultrapassava em altura a cintura de sua dona. As espadas de
Érico tinham lâminas mais curtas, e ele teria de se aproximar muito da oponente
para tentar um golpe certeiro.
Ela tem todas as vantagens!
Deu um passo para o lado e escapou da estocada de Belial. A lâmina percor-
reu um arco no ar e o atacou pelas costas. Mais um amplo passo para trás, e ele
sentiu a ponta da espada tocar levemente sua camiseta.
Um silvo cortante percorreu o ar. Teria sido um golpe bem forte.
Eu preciso me aproximar dela!
Belial avançou com uma sequencia de giros frontais da espada. Érico se afas-
tou como pôde: correu em círculo pela sala, para trás e para o lado, fugindo dos
golpes. Sabia que estava perigosamente perto da parede.
Eu não posso me esquivar para sempre!
Belial o atacou pelo lado. Forçava-o contra a parede. Outra esquiva, e Érico
percebeu que não poderia continuar com aquilo.
Estava encurralado. No mesmo segundo, ela girou sua espada e o atacou de
cima para baixo.
Érico interceptou o golpe com sua espada. Não para evitá-lo — não podia
medir forças com ela —, mas para desviá-lo. Para tanto, precisou de mais
músculos do que supunha: sentiu o braço tremer com o impacto. A espada
de Belial passou a seu lado. Ela estava à frente dele, com a guarda totalmente
aberta.

173
Abascanto: a sombra dos caídos

Érico estendeu uma lâmina, procurando a barriga de Belial. Ela deu um passo
para a esquerda, mas a segunda espada avançava por esse lado. Belial tentou um
passo desajeitado para trás e ergueu sua espada rapidamente. Aparou o golpe de
Érico, mas não antes de ele abrir um corte em seu ventre.
Os olhos de Belial ficaram selvagens com a dor. Érico também mal acreditava.
Eu consegui! Eu a feri! Eu posso vencer!
Confiante, afastou-se dela, dizendo:
— Esse é só o primeiro, sua vaca assassina!
Belial avançou com carga total. Érico não conseguiria se esquivar total-
mente daquela investida: ela corria na direção dele. Agachando-se, aparou
um golpe lateral e, com um leve toque, fez a espada passar por cima de sua
cabeça. Mais uma vez, os braços tremeram. Estava de frente para as pernas
da adversária e passou as duas lâminas entre elas. Belial saltou por cima de
Érico, mas ele se ergueu no mesmo instante. Mal pousou no chão, Belial le-
vou uma cotovelada na barriga. Caiu para trás e foi bater na parede. Chocou-
se contra uma estante de vidro repleta de prêmios e troféus, que se quebraram
pelo chão.
Satanael cobriu os olhos com as mãos.
— Isso custou caro...
Érico partiu para cima de Belial. Com um golpe, ela o obrigou a se afastar.
Olharam-se.
— Parabéns, garoto. Você treinou mesmo. Vamos ver como você se sai numa
luta de verdade.
Avançou. Desferiu um golpe na altura do ventre dele. Érico deu um passo
para trás, mas era um ataque em falso: a espada mudou de curso e investiu pela
frente. Érico girou para o lado. Belial passou a lâmina por sobre a cabeça e en-
gatou outro ataque. Érico viu a lâmina bem à sua frente, sem tempo para outra
esquiva. Aparou o golpe, colocando as duas espadas à frente.
O impacto o jogou longe, e ele caiu do outro lado da sala. Com um salto, Belial
voou sobre ele, justamente quando ele bateu no chão. Érico deu uma cambalhota
para trás e sentiu a arma de Belial raspar suas costas.
Novamente, estavam diante um do outro.
— Estou esperando pra começar. Acho que as vacas não lutam tão bem assim.
Isso não está nada bom. Eu desperdicei uma chance de ouro! Ela é muito mais
rápida do que eu pensava. Eu preciso de algum artifício.
Belial investiu novamente, com um ataque pelo alto. Érico deu um passo para
trás e viu a lâmina cortar o ar à sua frente. Ela avançou, concatenando um corte
de baixo para cima.

174
Revanche

Érico saltou para o lado, mas Belial esperava por aquilo: seu ataque se trans-
formou em um giro da espada pela lateral. Érico teve instantes para apará-lo e
novamente voar longe. Bateu na parede e se equilibrou como pôde, para não cair.
Atrás dele, uma estante com livros foi abalada e vários volumes foram ao chão.
Viu Belial avançar com a espada em riste. Jogou-se para o lado e caiu no chão.
Por pouco não foi empalado vivo.
Belial girou a espada e o atacou, caído que estava no chão. Érico rolou para o
lado e, com um salto acrobático, pôs-se em pé novamente.
Estava respirando com dificuldade. Belial ainda estava só começando a se cansar.
Eu tenho que acabar logo com isto. Se não, ela me vence pelo cansaço!
Percebeu.
Quase todos os ataques dela são na altura do ventre. Ela está atacando meu cen-
tro de gravidade porque, com isso, consegue me desequilibrar com mais facilidade!
Maus lençóis, Érico. A vantagem dela só cresce!
Belial o atacou pela esquerda. Érico afastou-se com um passo para o lado, evi-
tando a estocada. A grigori avançou pela frente. O nephilim se agachou e deixou
as espadas passarem por cima dele.
E então ela estava indefesa! Érico enfiou as espadas para cima dela. Belial ar-
regalou os olhos e, no último momento, aparou os dois ataques de Érico com um
golpe desesperado.
O que foi esse olhar dela? Medo? Pavor?
Entendeu.
Ela não está me atacando na altura do ventre porque quer me desequilibrar! Ela
está protegendo a área da virilha! O sexo é seu ponto fraco. Ela é superprotetora em
relação a essa parte!
Érico acabou encostado na mesa de Satanael. Belial avançou com força total.
Ele girou as espadas em um golpe duplo, de baixo para cima. Iria cortá-la da
virilha à cabeça.
Belial inibiu seu próprio ataque e defendeu o golpe de Érico com a espada na
horizontal. Érico usou o impacto das lâminas para girar uma delas e atacar de
cima para baixo.
Belial ainda defendia o primeiro ataque de Érico quando viu a segunda espada
chegando por cima.
Poderia ter aparado esse golpe, mas, para isso, teria de aceitar um corte no
ventre. Ao invés disso, tentou girar o corpo.
Os dois estavam muito próximos. A espada a cortou do ombro ao ventre,
abrindo um caminho vermelho em seu peito.
Belial deu um passo para trás. Gritou.

175
Abascanto: a sombra dos caídos

Érico a atacou novamente. Uma espada pela esquerda, defendida. Outra pela
direita, e o ombro ferido de Belial não respondeu. Cortou-a na transversal.
Belial soltou a espada.
Foi empalada pelas armas de Daqshael.
Os olhos da mulher se arregalaram. Sua boca se distendeu em um urro deses-
perado. Belial bateu na parede logo atrás dela e caiu.
Érico empurrou as espadas até que os cabos encostassem no seu peito.
Deus, ela demora pra morrer!
O coração tremia. Os olhos brilhavam. O sangue fervia nas veias.
— Pai! Pai! Esta é sua, pai!
Girou as espadas, e Belial gritou ainda mais.
Soltou-as e começou a estrangular a mulher. Os braços de Belial se moviam,
descoordenados. Batiam em Érico sem força.
Satanael tinha se levantado e observava. Não tirava os olhos dos dois.
Érico esganava Belial e começou a sentir que aquele corpo se desfazia. Os ol-
hos dela começaram a brilhar, com uma luz vinda do fundo das retinas.
Não! Ainda não! Eu quero mais! Mais! Eu quero que ela sofra mais!
Suas mãos começaram a afundar naquele pescoço. Sentiu-as sendo percor-
ridas por um choque sem dor.
Que nem com o meu pai. Ela é feita de energia!
Energia...
“Nós somos feitos de energia pura: a mesma energia que você pode aprender
a manipular.”
A mesma energia que eu aprendi a manipular...
Ela não vai morrer! Ela só vai voltar para sua casa! Eu não fiz nada com ela!
Eu não a matei!
Não! Eu não vou deixar que ela se vá assim! Ela é minha! Minha!
Érico expirou. Esvaziou os pulmões. Olhava fixamente para os olhos de Belial,
cada vez mais transparentes.
Inspirou. Lentamente. Com força. Chamou para dentro dele toda a energia.
Toda a energia de Belial.
Ele não a deixaria ir embora. Ele iria consumi-la. Iria devorá-la. Ela não
voltaria para casa. Não iria a lugar nenhum! Ela havia lhe tirado o pai, e ele ti-
raria a sua vida!
Inspirou e absorveu a inimiga.
A luz que saía dela, que se projetava para cima, começou a caminhar para
dentro dele. O corpo translúcido de Belial estremeceu. Seus olhos se arregalaram
e sua boca se abriu. Estaria gritando, desesperada, se pudesse.

176
Revanche

Debateu-se, enlouquecida. Érico leu o seu pavor.


Isso! Isso! Morra, sua desgraçada! Morra! Você é minha!
Aquele choque elétrico e sem dor que passava pelas suas mãos percorreu todo
o seu corpo. Centenas de fios de luz se ligaram a ele. Sentiu as veias incharem. O
coração acelerou ainda mais. Cada um dos seus poros se abriu.
De repente, aquela energia não era mais indolor. O sangue, que fervia nas
veias, virou fogo. Queimava por dentro. Toda aquela energia entrando em seu
corpo, e toda a pele torrava por dentro.
Segurou-se enquanto podia. Aguentou a dor o máximo possível, mas acabou
curvando a cabeça para trás em um grito agonizante.
Era demais! Era energia demais! Ele não conseguiria aguentar! Caiu no chão
e começou a se debater.
A energia continuava entrando. Érico tinha se comprometido a devorar Belial
e não conseguia mais parar. Voltou os olhos para cima.
Deus, é muita dor!
Faria qualquer coisa para dar um fim àquilo! Todo o seu corpo doía. Por den-
tro e por fora. Ele sentia cada um de seus órgãos se rebelando!
Belial entrava nele, e estava explodindo! Iria morrer junto com ela!
O que foi que eu fiz?

177
DDOO LL
OPTIIST
MOLORES
SAPIENTE EEN TAS
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TVOLUP-
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VELLUPTA-
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MOLUPTATUR,
ACCUSTIS
ACCUSTIS
ACCUSTIS
CULPA
DICIDITEASN T E ES-
VOL-M
DOLENTEM
Consequencias
DOLENTEM
DOLENTEM
CONSE DELES-
AECATAMUS,
TATE CONESTRUM

Satanael se ergueu, satisfeito, quando Érico cravou as espadas no peito de


Belial. Não tinha certeza de que o garoto conseguiria derrotá-la, mas, mesmo
que não conseguisse, certamente a deixaria fraca o bastante para um confronto
com ele.
Assistiu com gosto e tristeza ao fim daquela rival milenar. Eles tiveram seus
momentos. Tiveram suas concordâncias e desavenças... Conheciam-se havia
sete mil anos.
Ela merecia ter morrido nas mãos de alguém mais digno. Não nas de um pivete
enfezado como este. Ela já lutou contra exércitos. Já salvou um continente inteiro e
condenou outro. Era uma adversária e tanto.
Divertiu-se quando Érico começou a estrangulá-la.
Mas o que é que ele quer agora? A coitada já era...
Seu riso escapou e seus olhos se abriram ao máximo quando ele percebeu o
que Érico estava fazendo.
Houve alguns segundos de incredulidade: Mas o que é que ele pensa que vai
fazer com a energia dela?
Quando o corpo de Belial começou a se desfazer e a ser absorvido por Érico,
pela primeira vez em muito tempo, Satanael tremeu.
O que é que ele está fazendo!? Ele está consumindo o corpo dela!
Ele está se alimentando dela!
Não era a primeira vez que isso acontecia, mas a última havia sido mais de três
mil anos antes, e Satanael não a testemunhara.
Agora, estava acontecendo bem na sua frente.
Aquele garoto estava realmente assassinando Belial. Estava rasgando seu cor-
po energético ao meio! Ele a estava devorando!
Ele é louco! Ele não pode suportar isso!
Satanael se concentrou em Érico e viu a energia ao redor de seu corpo físico
se preencher com Belial. Toda a sua estrutura foi incrivelmente energizada, for-
talecida. Brilhava como um sol.

178
Consequências

A energia não parava de fluir. A aura de Érico se expandiu para além da sala,
sua estrutura começou a se romper.
Toda a luz de Belial passou para Érico. Sobraram apenas um esqueleto
pútrido e vestígios de órgãos enegrecidos no chão, que se decompuseram em
cinzas.
Érico caiu no chão. Seu corpo energético não iria se sustentar por muito tempo.
O idiota se matou! Ele não tem como aguentar isso. Daqui a pouco, ele tam-
bém já era...
Passou para a frente da mesa e ficou assistindo aos gritos desesperados de Érico.
Ele nem sabe mais onde está. A dor deve ser imensa...
A porta do escritório se abriu e um Lucien apavorado entrou. Satanael fez um
gesto para que ele saísse.
Não queria testemunhas.
Eu posso salvá-lo. Eu posso fortalecer o corpo dele para que ele aguente toda
essa força.
Se eu fizer isso, além de obter um aliado, vou dar a ele condições de lutar com
Sariel. Ele me seria infinitamente grato... até o dia em que compreendesse exata-
mente o que fiz... O preço que ele vai ter que pagar.
Mas ele é um mortal. Ele valoriza demais a vida... Não passa pela cabeça dele
que existem destinos piores do que a morte... Ele seria grato a mim, mesmo que sua
vida fosse um inferno...
Será que vale a pena salvar uma pessoa como ele? Ele pode causar sérios prob-
lemas depois...
Em compensação... Ele cuidaria de Sariel para mim, e nenhum outro caído sa-
beria do meu envolvimento... Ele é o álibi perfeito...
Érico não tinha mais fôlego para gritar. Soltava grunhidos selvagens. Falta-
va-lhe o ar.
Mãos à obra, então. E se ele causar problemas no futuro... cuidarei disso eu
mesmo. Eu não posso deixar um cara desses sair impune daqui sem uma boa me-
dida de segurança.
Ajoelhou-se sobre o corpo de Érico e colocou a mão sobre a testa do rapaz.
Pense bem... Você vai salvar a vida de uma pessoa que sabe do segredo... Sabe
que nós podemos realmente morrer... Ele realmente matou Belial...
É... Mas Sariel precisa ser impedido. E eu estou de mãos atadas.
Se eu fizer isso... ele vai ficar completamente aberto para mim... Vou poder re-
escrevê-lo do jeito que eu quiser. Posso me assegurar que ele não será um problema
para mim...
Sim...

179
Abascanto: a sombra dos caídos

É preciso ser rápido. Resta pouco para ele partir de vez.


Gritou no ouvido do nephilim:
— Érico! Escute-me! É Satanael! Você está morrendo!
Érico apenas conseguia responder aos berros, mas pareceu dizer:
— A-ju-de...
— Eu posso te salvar! Mas você tem que me dar permissão! Érico, você per-
mite que eu te toque com o meu poder?
Érico mal entendeu o que foi dito, mas balançou a cabeça freneticamente.
— S-sim...
Ele é meu!

Érico voltou a si muito devagar.


Tudo estava diferente.
Antes que abrisse os olhos, sabia exatamente como era o ambiente onde es-
tava. Podia vê-lo com nitidez em sua mente. Sabia que estava no chão, Satanael
estava sentado em uma poltrona à sua frente, e cinzas de forma levemente hu-
mana estavam à sua direita.
Quando abriu os olhos, quase não entendeu o que viu.
Satanael estava envolto em uma nuvem de energia de várias cores. Ao redor
dele, várias pequenas linhas de luz intensa se espiralavam e contorciam, forman-
do vários canais e pequenos nós.
Tudo tinha um certo brilho ao seu redor.
Ele podia ver essas luzes correndo pelo próprio corpo. Sentia cada um dos
músculos. Tinha consciência de cada órgão, por dentro e por fora: cada veia,
cada osso. Ouvia o sangue correr. O coração batia com uma força imensa.
— O que é... — tentou dizer. Mas a voz não saiu. Sua garganta estava con-
traída. Só conseguiu grunhir.
Tentou se erguer, e Satanael teve de ajudá-lo a se sentar.
Estava tonto, mas apenas seu corpo girava. Sua mente estava viva como nun-
ca. Sabia exatamente de tudo o que acontecia a seu redor.
Apesar dos membros não responderem direito, ele se sentia bem. Mais que
bem: na verdade, sentia-se ótimo. Sentia-se vivo como nunca esteve.
Falou baixinho:
— O que é que aconteceu?
Satanael, sentado a seu lado, perguntou:
— Diga-me uma coisa, garoto.
Érico olhou para ele.
— Você por acaso tem merda na cabeça, é?

180
Consequências

— O que é que aconteceu?


— Eu vou lhe dizer o que aconteceu, e você preste muita atenção. Eu salvei a
sua vida, é o que aconteceu. Você me deve uma. Na verdade, você me deve todas,
porque, graças a mim, você tem condição de lutar com Sariel.
Sariel... Sim... Lembrava-se dele. Tinha de lutar com ele. Mas por que, mesmo?
Ele tinha matado seu pai?
Mas papai está vivo... Voltou para sua casa...
Porque ele iria matar todo mundo?
Mas o mundo é tão podre mesmo... Eles bem que merecem...
Não, Érico! Acorde! O que é que está acontecendo? Ele tem que morrer! Eu vou
vê-lo sumir na minha frente!
Érico acenou com a cabeça.
— Sim... Sariel...
— Ouça bem. Você lutou com Belial e venceu, lembra-se disso?
— Sim...
— E depois, lembra-se do que você fez?
Érico tremeu. A dor ainda era bem vívida na memória.
Eu deveria estar morto...
— O que você fez comigo?
— Érico... Quando você fez a idiotice de tentar absorver a energia de Belial,
você jogou para dentro do seu corpo muito mais do que ele podia suportar. Ele
começou a se romper. Você estava para morrer. Mas você deu permissão para que
eu te afetasse com o meu poder, passando pelo seu Abascanto. Então, o que eu fiz
foi reforçar o seu corpo. Eu usei a energia de Belial para reconstruir e fortalecer a
sua aura. Com isso, você conseguiu suportar toda essa carga de força.
Érico já não estava mais tão tonto. Estava se recuperando com muita rapidez.
— Obrigado...
— Não me agradeça, rapaz. Isso vai ter sérias consequências pelo resto da
sua vida...
O nephilim franziu a testa.
— Quais?
— A energia de Belial é muito mais forte do que a sua, Érico. A tendência
dessa energia é continuar no mesmo caminho que ela seguia. Pra simplificar:
quando você absorveu Belial, você assumiu o peso de toda a vida dela.
— Como assim?
Satanael suspirou, impaciente.
— A energia dela, que seria liberada pelo Cosmos, ainda está presa em você. Isso
inclui todos os poderes dela, e também todas as memórias, os desejos, as vontades.

181
Abascanto: a sombra dos caídos

Érico sentiu o chão escapar dos seus pés.


— Você queria matar essa mulher, Érico, e agora vai ter que conviver com ela
pelo resto da sua vida. Tudo o que ela fez, o que ela pensava, o que ela queria, faz
parte de você agora. Para sempre.
— O quê? Como? Ela não morreu? Ela está... em mim?
— Ah... Ela morreu, sim. O espírito dela se desprendeu do corpo e seguiu a
marcha da Eternidade. Você realmente conseguiu o que queria. Mas, em com-
pensação, tudo o que ela era no momento da morte vive em você. Você é o
Érico que conhecia, mais a Belial que não conhecia... Você tem todas as habili-
dades dela à sua disposição, garoto. Mas nunca mais vai saber se um sentimen-
to ou um pensamento são seus, ou dela. Você é outra pessoa agora. Aprenda a
conviver com isso.
Érico se levantou. Sentia, realmente, uma força imensa. Tinha a sensação de
ter vivido por muito tempo. Flashes passaram em sua mente: imagens antigas,
lugares que não existiam mais. Vozes de pessoas que ele amara, que havia muito
tinham partido. O cheiro odioso do sangue das batalhas que lutara, a imagem de
um rei barbado se ajoelhando diante dele.
Não! Não! Isso não sou eu! Eu nunca lutei numa guerra! Eu nunca me casei! Eu
não sou isso!
Érico olhou para Satanael. O pavor nascia em seus olhos.
— Tire isso de mim! Desfaça!
— Eu não posso, Érico. Eu teria de matá-lo para isso. Eu mal consegui reforçar
a sua estrutura, e fiz o possível para evitar que você enlouquecesse de vez. Aceite
sua sorte, garoto. Você teve uma ideia imbecil e agora vai ter que conviver com
as consequências!
— Não! Não assim! Não esta mulher!
Satanael se ergueu e agarrou Érico pelos ombros.
— Concentre-se, rapaz! O que está feito está feito. Escuta aqui! Tudo o
que ela foi faz parte de você agora, mas você ainda tem controle de si mes-
mo. Você é suas ações, Érico, não suas memórias ou sentimentos. Ela não
pode te dominar. Ela não pode mais voltar. Ela está morta. Tão morta quanto
qualquer um pode estar. Você vai ter de conviver com o peso dessa morte
pelo resto da sua vida, mas você é quem escolher ser, garoto. Eu coloquei
várias barreiras para que as memórias dela não inundem sua mente de uma
só vez, mas, com o tempo, é você quem vai ter que se esforçar para manter
sua sanidade.
Érico o olhava fundo nos olhos.
— O que é que eu faço agora?

182
Consequências

— Você ainda quer acabar com Sariel?


Érico teve de pensar para responder:
— Sim... Eu acho que sim. Ele matou meu pai... Ele vai acabar com a humani-
dade. Apesar de ser meu irmão, eu tenho que matá-lo.
Percebeu o que disse.
Deus meu! Ele não é meu irmão! Ele é um assassino! Um louco!
— Não! Ele não é meu irmão!
Satanael suspirou.
— Então eu sugiro que você faça isso. Antes que comece a tomar o partido dele.
Érico olhou ao redor.
— Onde estão minhas espadas?
Satanael lhe entregou a espada de Belial.
— Esta é sua espada agora, Érico. As outras desapareceram logo depois de
você devorar Belial.
Não! Meu pai!
Era tudo o que me restava dele...
Pai... No final... eu te abandonei...
Fechou os olhos. Não conseguia chorar, mas o coração pesou. Era tudo o que
me restava dele. Era sua última aprovação... E se foi.
Talvez ele não me aprove mais... Talvez eu tenha cometido o erro dos erros
desta vez...
Eu me tornei um assassino igual a eles...
Sem ânimo, pegou o cabo da espada que tinha sido de Belial.
Parecia muito confortável em sua mão.
— Vá logo, Érico. Aproveite a surpresa. Acabe com Sariel quando ele menos
espera.
Érico começou a andar em direção à porta. Abriu-a, e Satanael ainda disse:
— Érico.
— Sim?
— E então? Qual é o sabor da vingança?
Érico baixou os olhos. Não era como ele esperava. Não era mesmo. Perdera a
última memória do pai. Perdera a si mesmo. Nada mais lhe restava agora. Havia
se tornado um ninguém. Engoliu em seco. Saiu sem uma palavra.
Satanael começou a rir. Primeiro, uma risada breve, mas logo uma gargalhada.
Satisfeita, cruel, repleta de acusações. Uma gargalhada que acompanharia Érico
por muito tempo...
Lucien entrou na sala com a testa levemente franzida.
— O que houve aqui, Sat?

183
Abascanto: a sombra dos caídos

Satanael estava tentando arrumar o que havia sobrado da sua sala. Colocava
os livros de volta nas prateleiras, separava os troféus quebrados e uma pilha de
entulho que iria para o lixo.
— Belial e Érico tiveram uma pequena divergência filosófica, Lucien.
Lucien levantou muito sutilmente uma sobrancelha.
— E o que é que eu devo fazer com isto?
Mostrou a Satanael as duas espadas que ele havia lhe dado anteriormente, as
espadas de Daqshael.
— Ah, isto? Guarde em algum lugar, podem me ser úteis no futuro.
— Não há o risco de desaparecerem?
— Não. Elas já aceitaram o garoto como mestre. Não vão embora tão facilmente.
Apontou para as cinzas de Belial.
— Vou mandar alguém limpar aquilo.
— Também não, Lucien. Deixe que eu cuido disso. Essas cinzas também po-
dem ser muito, muito úteis.
Lucien não virou o rosto, mas seus olhos fitaram Satanael.
— Érico saiu daqui bem diferente.
Satanael estava colocando seus livros de volta no que havia sobrado da estante.
— É mesmo? Eu não havia notado.
Lucien suspirou.
— Ele a derrotou, Satanael? Érico derrotou Belial?
Satanael parou o que fazia e virou o rosto para Lucien. Não disse nada. Lucien
ainda não havia acabado.
— Ele não tinha condições, Satanael.
— Ah, é?
— Não. Não sem uma ajuda...
Satanael ergueu muito levemente um dos cantos da boca.
— Talvez ele tenha tido sorte.
— É preciso uma pessoa excepcional para ter sorte contra nós, e Érico não é
nenhum Napoleão.
Satanael voltou a arrumar a sala. Não disse mais nada, mas contiunuava clara-
mente satisfeito.
— Salvar a vida dele foi uma decisão muito perigosa, Sat. Você criou um mon-
stro. Você lembra o que aconteceu da última vez que um mortal roubou nossos
poderes e sobreviveu.
— Relaxe, Lucien. Os tempos eram outros. Fique bem tranquilo. Eu fiz questão
de me assegurar que aquele garoto não vai nos causar nenhum problema no futuro.
Pouco antes de eu fazer a sua reconstrução, ele abriu o Abascanto dele para mim.

184
Consequências

— Você não colocou nada nele que contrarie as regras, eu espero?


— Ah, não... Ele vai manter a sua liberdade de escolha... É com aquilo que ele
não pode escolher que eu mexi...
Abriu um amplo sorriso para Lucien, que não conseguiu esconder o desgosto.
— Você e seus jogos, Satanael. Algum dia desses, eles ainda vão acabar conosco...
Novamente, Satanael riu.

185
DDOO LL
OPTIIST
MOLORES
SAPIENTE EE N TAS
N E MMES-
TVOLUP-
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VELLUPTA-
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CULPA
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VOL-M
DOLENTEM
Sariel
DOLENTEM
DOLENTEM
CONSE DELES-
AECATAMUS,
TATE CONESTRUM

O último andar dos escritórios do grupo Asternach, onde ficava o au-


ditório, havia sido convertido em um salão de jantar para a décima sexta re-
união dos acionistas.
Dezenas de mesas redondas preenchiam o salão. Onde antes ficavam o palco
e a tela do projetor, um piano e um músico completavam o ambiente com música
clássica. A iluminação era indireta.
De uma pequena sala no canto, uma legião de garçons entrava e saía com
bandejas.
Sariel conversava amenidades com os principais cabeças das empresas Asternach.
Chico Anes, diretor de tecnologia; Maurício Pacheco, diretor de Marketing; Adriana
de Oliveira, diretora de RP; e Alfredo Stahl, diretor geral para a América Latina.
Apenas Edgar não estava na roda. A ausência do vice-presidente era o tema da
maioria das conversas ao redor de Sariel.
Ele foi discretamente informado por um garçom de que havia à porta uma
pessoa, não convidada, querendo falar com ele.
Sariel se levantou e pediu licença aos colegas. Esforçou-se para não demons-
trar quão rápido seu coração batia. Caminhou, contando os passos, porque não
queria parecer apressado demais.
O fim da humanidade, a poucos passos dele.
Eu me sinto como se tivesse cem anos de novo.
Na porta, encontrou um de seus pesquisadores. O mesmo cuja mente ele ha-
via apagado.
Mais uma ironia do destino...
O homem lhe estendeu uma pequena lata, pouco menor do que a de um re-
frigerante. Estava fria.
— Aqui está, chefe. A primeira amostra. O laboratório terá mais em uma semana.
Sariel olhou para a lata em suas mãos. Girou a tampa no sentido horário e a abriu.
Um tubo de ensaio surgiu de dentro do pequeno sistema de refrigeração que era
a lata. Havia um líquido azul dentro dele. Segurou-o como se fosse seu próprio filho.

186
A hora de Sariel

— Então é isto.
— É isto, senhor. Está em suas mãos.
Sariel olhou para seu empregado e colocou a mão no ombro dele.
— Excelente trabalho.
O homem se endireitou, assumiu uma seriedade profunda e quase fez uma
reverência ali mesmo.
— Obrigado, senhor.
Sariel recolocou o tubo de ensaio na lata. Voltou para o salão com uma
calma fingida.
Agora é só escolher a melhor forma de distribuição. Eu poderia soltar Deucalion
aqui mesmo, só isso já seria o suficiente. O salão está repleto de pessoas que viajam
o tempo todo. Este é o momento exato para soltar a doença.
E começou a fazer, mentalmente, uma lista de quem iria morrer e quem iria viver.
Mal prestou atenção nas conversas depois disso. Concentrou-se por um ins-
tante e ninguém à mesa prestou atenção na sua latinha.
Estão tão próximos... E nunca saberão.
Foi quando percebeu uma confusão na entrada. Com o canto do olho, notou
que Aline estava lá.
Mas o que é que está acontecendo? Aline resolveu vir? Será que o nome dela não
estava na lista?
Quando chegou no saguão de entrada, notou que, apesar de Aline e Edgar es-
tarem na lista de convidados, Kaliel não estava. Os recepcionistas estavam espe-
cialmente nervosos por causa das espadas que a grigori e o nephilim carregavam.
Aline ficou presa ao chão quando o viu.
Sariel ergueu seu Aegis. Estendeu-o imediatamente aos outros três. Queria evitar
confusões desnecessárias. Os recepcionistas passaram a ignorá-los por completo.
Aline o encarava com um olhar pungente. Falou, com o peito pesado:
— É verdade, Sariel? É verdade o que eles me falaram sobre Deucalion?
Kaliel e Edgar se colocaram ao lado de Aline. Cada um deles empunhava
uma lâmina.
Edgar! Edgar veio me enfrentar!
A voz saiu pesada e cansada. Estava permeada de desilusão. Triste pelo fim de
uma amizade que havia durado tão pouco, e nunca fora totalmente real.
— Então era você mesmo. Era você quem avisava Kaliel e Daqshael dos
meus passos.
Aline não deu espaço para sua tristeza.
— Me responda!
— Sim, Aline, é verdade.

187
Abascanto: a sombra dos caídos

São loucos se vieram me enfrentar com Kaliel nestas condições. Estão realmente
desesperados.
Aline cerrava os punhos com força. Seus braços tremiam. Seus olhos faisca-
vam. Estava determinada. Estava decidida. Nem um traço daquele pavor todo.
Mesmo assim, duas lágrimas desceram pelo seu rosto.
— Me diga que é mentira, Sariel! Me diga que isso é tudo mentira! Me diga
que eles se enganaram!
Sariel não disse nada. Seus olhos estavam presos aos de Aline. Uma pontada
de dor lhe cruzou a garganta, esmagando-a. Havia magoado a esposa. Mais uma
vez, ele a fizera chorar, e não esperara que isso pudesse ser mais brutal do que
qualquer golpe de espada que recebesse.
Se Edgar lhe perfurasse o coração, não morreria. Não havia mais nada ali.
Aline fazia que não com a cabeça. Não tirava os olhos dele. Deu um passo
para trás e deixou Kaliel e Edgar à sua frente.
Sariel estendeu uma de suas mãos em direção à chapelaria, e suas duas espa-
das vieram voando na direção dele.
— Vocês estão completamente loucos? Pretendem me enfrentar? Eu vou aca-
bar com vocês.
Kaliel não se moveu para responder:
— Pois se nós somos tudo o que resta para impedir esta catástrofe, Sariel, que
assim seja.
Sariel soltou um brevíssimo riso. Kaliel saltou para cima dele, Edgar correu.
Ambos o atacaram e foram bloqueados.
Estavam lutando.

Aline não se mexeu nem mesmo para enxugar as lágrimas. Ele havia men-
tido para ela pela última vez. Ele a tinha enganado, usado e traído. Ela estava
dando o troco. Não iria mais em seu auxílio. Não quebraria um vaso na cabeça
do oponente dele dessa vez.
Assistia à luta do pai de seu filho contra a última linha de defesa da raça humana.
Kaliel e Edgar atacaram, cada um por um lado. Tentavam forçar Sariel a
abrir a guarda, na esperança de conseguir uma brecha para um golpe certeiro.
Sariel se defendia com desenvoltura. Cada aparo que realizava era concatenado
com um outro golpe, e Kaliel, com a força muito reduzida, tinha de recuar para
evitar um corte.
Edgar tentava se posicionar para desferir um ataque por trás. Não tinha a ve-
locidade nem a força de Kaliel, mesmo enfraquecida, mas, contra um oponente
de costas, ele não precisava de nenhuma das duas coisas.

188
A hora de Sariel

Edgar investiu com um ataque vertical. Sariel passou uma de suas mãos para
trás e se defendeu, enquanto a outra espada mantinha Kaliel longe.
Estava com um inimigo de cada lado. Saltou para o lado, passou por cima de
Edgar e colocou os inimigos à sua frente.
Os garçons se desviavam dos golpes por pura sorte. Sariel teria quebrado um
copo ao saltar, se seu dono não o tivesse levado à boca no mesmo instante.
Kaliel pisou em uma mesa e atacou Sariel por cima. Edgar correu na direção
dele, pelo lado. Sariel andou para a esquerda, aparou o ataque de Kaliel, colo-
cando-a em frente a Edgar.
Maurício teria sido decapitado se, no último instante, não tivesse se inclinado
para discutir com Adriana uma divergência filosófica. Um dos garçons percebeu
que uma colher havia caído no chão e, quando se abaixou para pegá-la, Sariel
saltou por cima dele com as espadas em riste.
Aline involuntariamente levou uma das mãos ao peito. Chorava sem inibição.
Todas as noites em que conversaram, olhando as estrelas... Todos os risos e
choros que compartilharam durante o namoro, o noivado, a lua-de-mel... E o
tempo todo, ele tinha aquele plano.
Quando Sariel a levara a Genebra para conhecer sua fundação, que auxiliava
as vítimas da guerra, ela pensara: Aí está um homem bom!
Ao visitar seu avô no hospital, internado por causa de uma hérnia de hia-
to, ela encontrara Sariel andando de quarto em quarto, conversando com os
doentes.
Pensara: Aí está um homem que se importa com as pessoas.
Ao ver os números — astronômicos — das doações que ele fazia a entidades
filantrópicas do mundo todo, pensara: Aí está um homem que luta por algo bom!
Esse mesmo homem lutava agora com Kaliel e seu pai, para matar a humani-
dade inteira!
Com tudo aquilo, sabendo que ele tinha de ser impedido, Aline ainda não
conseguia aceitar o veredicto.
Eu não posso perdê-lo! Deus! Eu não posso perder esse homem!
Ele é bom! Ele é sensível! Eu tenho certeza de que ele tem uma explicação! Isso
não pode ser verdade!
Mesmo depois de ele ter confessado, Aline não queria acreditar na história.
Kaliel e Edgar estavam cada vez mais cansados. Em breve, seriam derrotados.
Edgar sempre partia para um ataque pelas costas de Sariel, enquanto Kaliel o
atacava pela frente, forçando-o a se defender.
Não demorou para Sariel perceber a estratégia.
Edgar... é o elo fraco.

189
Abascanto: a sombra dos caídos

Novamente, Kaliel avançou para cima de Sariel com um ataque lateral. Ele o
aparou. Aline viu uma certeza nascer nos olhos do marido.
É hora dele acabar com isso.
Edgar avançava por trás.
Sariel se defendeu facilmente de uma sequência de ataques duplos de Kaliel.
Edgar ergueu sua espada.
Sariel saltou para trás, passando por cima de Edgar, que ainda tentou atacá-lo
em meio ao salto, mas teve seu golpe aparado por Sariel em pleno ar. Sariel caiu
exatamente atrás de Edgar.
Investiu contra o sogro com um forte ataque por baixo. Edgar deu um passo
para trás e se defendeu no último instante. Mas a ponta da espada de Sariel en-
controu a base da lâmina do adversário. Girando-a na mão, ele arremessou longe
a arma de Edgar, que foi se cravar na parede, bem distante de seu dono. Olharam-
se. Edgar não tinha defesa alguma.
Sariel estendeu uma das mãos e agarrou Edgar pela camisa. Jogou-o longe,
sala afora, e o fez se chocar contra a parede. As luzes indiretas da sala falharam
em um dos cantos, e algumas pessoas comentaram, curiosas, o que havia aconte-
cido. Edgar caiu no chão, desacordado.
Os garçons e convidados começaram a notar a presença de Edgar e Aline. A
filha correu para onde seu pai havia caído.
Estava vivo. Suspirou aliviada.
Kaliel e Sariel se olharam. Ele girou as espadas nas mãos. Os braços trêmulos.
Kaliel avançou. Partiu para um ataque lateral. Sariel deu um salto por cima
dela. Pisou na cabeça da grigori e pousou no mesmo lugar em que estivera antes.
Kaliel foi atordoada e caiu no chão. Sariel imediatamente se virou para ela e colo-
cou as espadas em posição para empalá-la.
Aline soltou um grito.
Sariel atacou o chão à sua frente. Kaliel deu uma cambalhota na última hora.
Estava ofegante. Ficou cara a cara com ele. Sariel avançou com um ataque óbvio
por cima.
Kaliel deu um passo para o lado, mas Sariel partiu em sua direção e a forçou
a cruzar espadas com ele.
Kaliel tinha a sua espada presa em um X formado pelas lâminas de Sariel. Os
dois começaram uma disputa de força física.
Kaliel não tinha mais como vencer.
Sua espada saiu voando salão afora e foi se cravar no chão bem à frente de um
convidado que havia se detido ao ouvir alguém chamar por ele.
Tão logo ela foi desarmada, Sariel abriu os braços.

190
A hora de Sariel

Aline viu a tia ser atingida por uma imensa onda de choque. Kaliel saiu
voando pelo salão, bateu a cabeça no teto, girou e caiu de cara no chão. Ao re-
dor de Sariel, mesas, pratos, cadeiras e convidados, todos foram jogados longe.
O Aegis de Sariel não bastou para fazer uma desordem como aquela passar des-
percebida. De repente, todas as pessoas no salão se ergueram das cadeiras com gri-
tos de espanto. Muitos convidados perceberam que as mesas tinham voado longe
e que as pessoas tinham sido atiradas ao chão, sem saber ao certo o que as atingira.
Um murmúrio de incredulidade correu o salão. Os garçons estavam comple-
tamente paralisados. Os recepcionistas do bufê não podiam ficar mais espanta-
dos. Todos olhavam ao redor, tentando entender o que havia acontecido.
Sariel se virou para a mesa à qual estivera sentado, pegou a lata com Deuc-
alion e saiu pela porta de emergência.
É agora. Eu poderia matar Kaliel, mas não posso esperar mais! Tenho que soltar
Deucalion agora!
Subiu as escadas de incêndio até o terraço. Acabou saindo no heliporto.
Correu pela pista enquanto abria a lata. Retirou a ampola. Tão logo chegou à
beirada, atirou-a com toda a força.
Para a cidade. Para a rua movimentada abaixo. Para atingir o maior número
possível de pessoas.
Viu a ampola parar no ar poucos metros à sua frente.
Quando se virou para trás, viu Aline concentrada. Deucalion flutuou rapida-
mente em sua direção.
— Não faça isso, Sariel! Pelo amor de Deus, não faça isso!
— Aline... É preciso. Você não entende... Será que ninguém neste mundo vê?
Será que ninguém percebe o horror que este lugar se tornou? Será que ninguém
mais se importa?
— E isto é a solução, Sariel?
— Isto é a solução, Aline! Um novo começo! Uma nova chance! Com as pes-
soas certas, com quem sabe que decisões tomar!
Aline baixou os olhos por um breve instante.
— Esqueça isso, Sariel. Abandone esse plano. Por favor, eu te imploro! Pelo
nosso amor, meu bem, pela nossa vida!
Deu um passo.
— Pelo seu filho, Sariel. Pelo seu filho que está crescendo dentro de mim! Eu
te imploro! Não faça isso!
Sariel deu um passo em direção a Aline. Sua boca lutou para se abrir em um
sorriso. Um brilho inteiramente novo nasceu em seu olhar. Um futuro inteiro
passou pela sua cabeça.

191
Abascanto: a sombra dos caídos

— Um filho, Aline?
Aline fez que sim.
— Mas... como?
— Às vezes a pílula falha, Sariel. Nenhuma proteção é garantida.
Ele a segurou pelos ombros. Aline estremeceu. Aquele era o mesmo toque,
aquele era o mesmo olhar da sua primeira noite.
Uma breve sombra cruzou a expressão de Sariel.
— Mas o perigo, Aline... Você pode morrer.
— Uma chance em quatro, Sariel. Eu aceito o risco. Pelo nosso filho, eu aceito.
Nenhuma de suas esposas, nenhuma amante, jamais lhe dissera aquilo.
Acariciou levemente o rosto da esposa. Aline achou que ele iria chorar. Ele
segurou a mão dela com força.
— Fique comigo, meu anjo. Deixe isso tudo para trás. Esqueça essa loucura.
Vamos fugir daqui. Mudar de nome, viver em algum lugar bem longe. Os grigori
nunca vão nos achar! A gente fica junto até o fim! Pode ser que meu filho tenha
de crescer sem uma mãe, Sariel. Não tire também o pai dele. Fica comigo! Por
favor!
Sariel não conseguia tirar os olhos dela. Sentiu um fogo, uma luz nova surgir
em seu peito.
Lembrou-se de uma vez, muito, muito tempo antes. Um grupo de grigori que
veio ao mundo para construir uma cidade perfeita. Uma nação para orientar
todas as outras. Um reino de tolerância e justiça no meio do Atlântico.
Sariel era um deles. Deixara a Eternidade de lado para fundar o fim do sofri-
mento neste mundo. Traria aos mortais toda a beleza do Cosmos. Ensinaria às
pessoas a verdade sobre todas as coisas.
Aquela mesma Eternidade, aquela mesma Verdade, a mulher à sua frente
fizera-a renascer em seu peito.
Aline viu uma lágrima descer pelo rosto de Sariel quando ele disse:
— Sim, amor. Sim. Sim, eu largo tudo e fico com você.
Gentilmente, ele trouxe o queixo de Aline para perto. Envolveu-a em um beijo
longo, suave e carinhoso. Afagou-lhe a nuca e aproximou seu quadril, enquanto
as línguas dos dois provavam uma da outra.
Teve de se concentrar para não se desfazer ali mesmo. Tanta alegria podia
matar alguém como ele.
Olharam-se com devoção completa.
Sariel sentiu uma nova presença. Uma outra aura se aproximava. Conhe-
cia-a bem.
Belial.

192
A hora de Sariel

Caminhou com Aline em direção à escada de incêndio. Belial se aproximava


rapidamente.
— Belial está aqui, querida.
— E o que você vai fazer?
— Deixe que eu cuido dela. Ela vai entender.
Ela estava logo à sua frente.
A porta se abriu.
Sariel e Aline pararam de andar quando viram Érico sair para o heliporto.
Érico? Mas onde está Belial?
Carregava duas grandes espadas. Uma delas, a arma de Kaliel. A outra, a
de Belial.
Sariel abriu os olhos e não conseguiu mais piscar. Assustou-se genuinamente.
A espada de minha irmã?
Érico tinha aço no olhar.
— Sariel, chegou a sua hora.
Ficou em guarda.

193
DDOO LL
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MOLORES
SAPIENTE EEN NTASE MMES-
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D OCONESTRUM
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MOLUPTATUR,
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M
VOL-
DOLENTEM
Confluencia
DOLENTEM
DOLENTEM
CONSE DELES-
AECATAMUS,
TATE CONESTRUM

Érico sentiu a presença de Sariel assim que entrou no prédio. Não conseguia
explicá-la. Era como se sua imaginação fosse tão forte a ponto de ser uma certeza.
Achou que teria problemas para entrar no salão, mas, quando chegou, depa-
rou com uma grande confusão. Várias pessoas gritavam, mesas estavam espalha-
das pelo chão. Alguns convidados estavam sujos. Todos os funcionários corriam
de lá para cá, sem saber o que fazer.
Viu a tia caída no chão.
Graças a Deus ela está viva!
Colocou-a em uma cadeira e tentou acordá-la, mas sem sucesso. Sentia que
Sariel ainda estava mais acima.
Não podia esperar que Kaliel acordasse. Viu, com o canto dos olhos, a espada
da tia no chão.
Sariel usa duas armas. Eu também vou precisar de mais uma lâmina para
enfrentá-lo.
Pegou a espada da tia e dirigiu-se à escadaria. Carregava em cada mão uma
arma grande o bastante para ser empunhada com as duas. Apesar disso, pareciam
leves e rápidas. A de Belial, em especial, era como a extensão do seu braço.
Caminhou até o terraço sem saber exatamente o que esperar do seu irmão.
Não! Ele não é meu irmão! Ele é o assassino do meu pai.
Lembrava-se de vários momentos junto a Sariel. Centenas, mesmo. Como
quando o caído servira na capacidade de conselheiro para seus soldados. Nas
sessões de meditação que compartilharam, quando passaram um tempo apren-
dendo kung-fu na China. No juramento de sangue que firmaram, quando de-
cidiram se opor ao governo tirânico do Império Romano em Elba — ela tivera
de se disfarçar de homem para ser aceita como general. Quando ele lhe salvara
a vida, durante a batalha de Agincourt. Quando ela o tinha retirado dos cala-
bouços da França napoleônica — eles sabiam muito bem como lidar com os
caídos naquela época...
Como é que ele não poderia ser seu irmão?

194
Confluência

Parou na escada para pôr ordem nos pensamentos. Isso não aconteceu comigo.
Isso é Belial falando! Eu sou Érico!
Quando abriu a porta e viu Sariel abraçado a Aline, teve de conter um impulso
para não abraçá-los também.
Em sete mil anos, poucas vezes tinha visto Sariel se assustar tanto como
naquele momento.
Não, sete mil anos não se passaram comigo! Concentre-se!
Ficou em guarda. Eu tenho que acabar com ele enquanto ainda consigo me
controlar.
— Sariel, chegou a sua hora.
Aline se adiantou.
— Érico! Por favor, não! Por favor! Sariel concordou que vai abandonar o
plano. Ele não vai matar mais ninguém!
— Eu não quero lutar com você, Érico. — Sariel continuava assustado. —
Deixe-me ir em paz.
Érico tinha dúvidas se seria capaz de lutar com Sariel. Não sabia se as memórias
de Belial iriam dominá-lo, se ele acabaria tendo pena do assassino.
Ainda via diante de seus olhos a noite da morte do pai. Via Sariel surgir por
trás de Daqshael. Sua vida destruída. Via tudo isso e, por algum motivo, aquelas
cenas não lhe pareciam mais tão fortes assim.
Ele matou meu pai. Eu matei sua irmã. Ele queria destruir a humanidade, mas
concordou em não fazer mais isso.
Sentia, como Sariel, a pena que teria de carregar cada vez que visse uma cri-
ança morrendo de fome, uma guerra pela TV, um mendigo pelas ruas.
Ele só queria reformar o mundo...
Talvez nós não sejamos tão diferentes assim.
Érico baixou um pouco a guarda. Sariel e Aline começaram a andar.
Ele vai escapar. O assassino de meu pai ficará livre!
E quem é que você está chamando de assassino, Érico? Se enxerga!
Ele quis destruir o mundo! Ele ainda pode fazê-lo!
Érico inspirou fundo. O ar úmido prenunciava chuva. Uma antiga ideia lhe
passou pela cabeça: sem a paixão de antes, mas recoberta de certeza.
Ele tem que ser destruído. Ele não pode viver.
Ele fez tudo isso uma vez e fará de novo. Essa era a missão do meu pai. Essa é
a missão de Kaliel.
Por você, pai! Por você, eu tenho que lutar com ele.
Ergueu a guarda mais uma vez.
— Sariel, é hora de pagar pelos seus crimes.

195
Abascanto: a sombra dos caídos

Sariel e Aline pararam. Estavam quase ao lado de Érico.


Sariel suspirou.
— Sim... você tem direito à sua vingança, rapaz. Você tem direito a uma
luta comigo. Eu tirei de você mais do que qualquer desculpa pode repor. Mas
eu peço, Érico, por favor, pense no que você está para fazer. Pense na sua irmã,
que me ama. Pense no meu filho, que está para nascer. Eu sei que acabei com
a sua vida, garoto, mas não seja igual a mim. Não tire o pai desta criança que
ainda não nasceu.
Filho? Minha irmã vai ter um filho? Eu vou ser tio?
Aline abraçou o marido.
— Por favor, Érico. Por misericórdia!
Érico fechou os olhos por um instante.
Me perdoe, irmã. Eu tenho que lutar com ele.
— Podemos ir, garoto?
Quando reabriu os olhos, quando fitou Sariel, Érico sabia que nada que dis-
sesse impediria o casal de sair dali. Se preciso for, ele vai fugir com minha irmã e
me deixar para trás...
Eu tenho que jogar sujo. Ele tem que querer lutar comigo...
— Podem ir. Mas fique sabendo que se você for, o assassino de sua irmã vai
ficar impune.
Sariel rangeu os dentes. Cerrou os olhos.
— O que foi que você disse?
— Belial já era, Sariel.
Sariel soltou uma breve risada, nervosa, incrédula.
— Você a derrotou?
Érico tomou fôlego para falar. Falou com gosto. Fabricou fel para colocar na
voz. A sua frase seguinte foi sua vingança. Esse foi seu golpe fatal. Foi naquele
momento que ele atravessou o coração de Sariel.
— Eu não a derrotei, Sariel. Eu a devorei! Eu consumi o corpo dela! Eu
me alimentei da energia dela, acabei com a vida dela. Belial está morta. Neste
mundo, no seu, em todos eles. Sua irmã já era. A eternidade dela acabou nas
minhas mãos.
Sariel se endireitou. Nenhuma expressão manchava seu rosto, além de uma
seriedade infinita. Érico achou que viu, de relance, suas sobrancelhas se con-
traírem de dor, mas foi só uma impressão. Sariel afastou a esposa.
— Sá! Não!
— Afaste-se, Aline.
O olho esquerdo de Sariel tremeu de leve. Érico sabia o que isso queria dizer.

196
Confluência

Ele está com medo! O assassino está com medo de mim!


— O que você fez foi um crime acima de todos os crimes, rapaz. Você não
deveria estar vivo.
— Talvez eu esteja vivo para fazer o mesmo com você!
Sariel se colocou em guarda. Érico o acompanhou. Aline se apoiou na porta.
— Não! Por favor! Parem! De novo, não!
— Deixá-lo viver seria o pior castigo para você, moleque. Mas eu vou te ajudar
a encontrar o seu pai, se é isso que você quer. Você não merece viver.
Eu sei, Sariel. Nenhum de nós merece...
Olharam-se por mais um segundo. Cada um deles concentrava o que con-
seguia de determinação e poder.
Quando correram em direção um ao outro, começou a chover.

Érico atacou pelo lado. Sariel se defendeu e usou a abertura para cortar de
cima para baixo. Érico aparou o contra-ataque, batendo na espada dele com uma
das suas. A lâmina de Sariel, mais leve, foi para trás com o impacto. Érico atacou
novamente pela frente. Mais uma defesa de Sariel, mas dessa vez a lâmina recuou
mais ainda. Sariel deu um salto para trás, para recompor a sua postura.
Sariel sempre usa ataques em falso. Costuma avaliar a força do oponente muito
bem para desferir um único ataque fatal.
Lembrou-se do apelido dele no século XIII: “Escorpião de Aço”. Felizmente já
o vira lutar o suficiente para saber qual era a fraqueza de sua estratégia.
É preciso conter a própria força. Levá-lo a acreditar em um falso ponto fraco,
para lhe dar o verdadeiro golpe fatal.
Sariel atacou por cima. Érico se moveu para aparar o golpe, mas a espada
de Sariel girou em sua mão e se converteu em um ataque lateral. Érico levou
a outra espada para a esquerda. Defendeu-se com facilidade, mas seu lado di-
reito ficou descoberto. Sariel investiu com a outra lâmina. Érico girou o corpo
e se esquivou do ataque. Bateu com força na segunda arma de Sariel e jogou-a
para trás. Ainda defendendo-se do ataque superior, atacou de um lado a outro.
Sariel deu um rápido passo para trás, e Érico cortou o ar à sua frente com um
assovio sibilante.
Sariel sentia a luta com muito mais impacto do que imaginara.
A primeira luta com Kaliel exigiu demais de mim. Cada ataque daquela mulher
me desgastou, e agora meus braços estão tremendo. Eu preciso me esforçar mais a
cada golpe deste garoto.
Érico girou as espadas e investiu com ambas as lâminas. Sariel afastou os dois
ataques de Érico, abriu a guarda do oponente, e contra-atacou com as duas lâmi-

197
Abascanto: a sombra dos caídos

nas, buscando o peito do garoto. Érico se jogou no chão e rolou de lado. Escor-
regou pelo piso que se molhava com a chuva.
Levantou-se com um salto acrobático. Sariel estava de costas, completa-
mente descoberto.
É agora! Agora eu mato meu irmão.
O mesmo irmão que havia consolado quando sua esposa morrera em batalha.
O mesmo irmão cuja vida ele salvara mais vezes do que podia contar. A pessoa
calma, centrada, que tantas vezes lhe dera um conselho de prudência e o impe-
dira de fazer uma desgraça.
Não conseguiu atacar.
Érico deu um passo para trás, chacoalhou a cabeça.
Não! Não! Eu sou Érico! Eu não sou Belial! Eu tenho que atacá-lo!
Sariel já havia se voltado para ele, pronto para se defender.
Érico soltou um urro de raiva. A luta poderia ter acabado ali mesmo.
Aline assistia, horrorizada, ao confronto entre seu marido e seu irmão. Cada
golpe que desferiam, ela o sentia no próprio peito. Somente um deles sobrevive-
ria, e ela não achava que pudesse aguentar a perda de nenhum dos dois. A cada
golpe, ataque e defesa, ela deixava escapar um gemido de susto. Apertava a bar-
riga, como se pudesse proteger o futuro do seu filho com as mãos.
Érico viu a lâmina de Sariel se projetar, buscando seu pescoço. Iria decapitá-
lo. Deu um passo para trás e sentiu uma leve brisa cortar o ar à sua frente quando
as espadas se cruzaram. Com um movimento rápido, avançou e deu um chute no
peito de Sariel que o fez voar para trás. Um grito involuntário saiu da garganta do
nephilim. Um trovão respondeu ao longe.
Espantou-se com sua própria força.
Sariel contorceu-se no ar e caiu de pé. Avaliava Érico atentamente.
Ele ainda não percebeu a minha fraqueza. Enquanto ele não investir direta-
mente contra mim, enquanto eu puder aparar seus golpes com leves estocadas, es-
tou com a vantagem.
A água caía torrencialmente. Os três estavam encharcados.
Os dois combatentes se encararam por mais um instante. Érico também sentia
o peso do confronto.
Ele é bom. Bom demais! Quando meu pai o enfrentou, ele não parecia lutar
tão bem.
Aline via toda a sua vida com Sariel passar diante de seus olhos. Em breves
momentos, revivia todo o sentimento de seu noivado, do casamento, das viagens
que fizeram. Lembrou-se das juras, das incríveis cartas de amor, de quando ele
cantara uma serenata para ela — e cantara bem!

198
Confluência

Sariel avançou com um grito. Colocou uma espada para trás: preparava-a para
um contra-ataque. Com a outra bem à frente, atacou por um lado. Érico se defen-
deu com facilidade e contra-atacou, buscando o peito do adversário. Sariel girou e
tocou as costas de Érico com as suas. A espada sobre sua cabeça baixou, atacando a
perna do oponente por trás. O rapaz se defendeu, usando a lâmina esquerda.
Ele luta exatamente como minha irmã! Tem a mesma postura, os mesmos ví-
cios. As memórias dela são fortes demais para ele ignorar.
Ficaram de frente um para o outro. Sariel já atacava lateralmente, tentando
atingir Érico na altura da barriga com as duas lâminas. Um sorriso cortava seu
rosto. O triunfo iminente encheu seu peito.
A luta está ganha.
Érico se defendeu com ambas as espadas.
Não! Este é o mesmo erro que Belial cometeu comigo! Defendi baixo demais!
Um dos ataques de Sariel foi em falso. A lâmina girou e cortou o peito de
Érico, que se jogou para trás no último instante: Sentiu o frio do corte passar por
sua pele.
Seu sangue jorrou sobre Sariel.
Érico deu dois passos para trás, mas escorregou no chão molhado de chuva e caiu.
Como eu fui burro! Essa é a mesma falha de Belial!
Estranhamente, sentia-se alerta. A dor não o incomodava.
Não sabia da gravidade do ferimento, não deixaria de lutar por causa dele.
Como Aline queria conversar com Érico! Perguntar do pai que nunca tinha
conhecido. Queria saber do que ele gostava, o que fazia para se divertir. Queria
lhe dar presentes por todos os aniversários perdidos, passar um tempo na casa
dele, saber de suas opiniões. Queria loucamente um elo com a vida que nunca
tivera e que tão facilmente poderia ter sido sua.
Sariel avançou. Érico pensou em se levantar com uma cambalhota para trás.
Não, é o que Belial faria!
Gritaram ambos ao mesmo tempo. Érico girou para o lado no último instante.
Quando se colocou de pé, percebeu que Sariel havia feito um ataque frontal di-
reto. Se tivesse se erguido como pensara, estaria empalado.
Ele conhece a irmã muito bem!
Sariel se virou para ele. Ainda tinha um leve sorriso na boca. Os raios ao longe
repercutiam os corações dos dois. Sangue e suor estavam naquela chuva. Gritos
e urros naqueles trovões.
Sariel atacou pelos dois lados. Érico se defendeu com as espadas na vertical,
mas foram dois ataques em falso. De repente, Sariel o atacava por cima e por
baixo. Érico ergueu uma espada e abaixou a outra.

199
Abascanto: a sombra dos caídos

O segundo ataque de Sariel também foi uma finta. Érico ficou com o peito
totalmente à mostra, e Sariel investiu diretamente contra seu coração. Érico
tentou aparar o golpe enquanto girava o corpo, mas a lâmina encontrou seu
braço esquerdo.
Érico caiu no chão com a súbita dor.
Aline gritou. Não conseguia se conter. Estendeu uma das mãos, tentando im-
pedir a luta. Usou sua concentração para afastar os lutadores, mas não era tão
fácil como mover objetos pequenos. Eles não sentiram nada.
Sariel investiu contra Érico com dois ataques pela esquerda. Está atacando
meu lado enfraquecido!
Érico rolou para o lado, colocou-se de pé e deu dois passos para trás. A
chuva já estava tão forte que eles tinham dificuldade para enxergar um ao
outro. Concentrava energia. Eu preciso de força. Preciso de muito mais força.
Inspirava vitalidade para seu próprio corpo, a rijeza dos ossos, a resistência
dos músculos.
Quando Sariel partiu novamente para cima dele, Érico usou toda a sua força
em um duplo ataque por cima. Sariel se defendeu facilmente, mas o impacto o
jogou para trás.
Seus braços quase se quebraram com o golpe.
Aline não podia escolher entre os dois. Queria salvar a ambos, e ambos pode-
riam morrer naquele instante.
Érico avançou novamente. Sariel não teve opção, a não ser defender lâmina
com lâmina. Suas duas espadas foram jogadas mais para trás com o impacto. Um
terceiro ataque, e Sariel estava recuando com cada vez menos equilíbrio.
Érico viu a imagem à sua frente ficar turva. A perifeira de seu campo visual
estava escurecendo e ele quase não sentia as mãos. Somente a imagem do pai o
sustentava. Somente a bile dava força a seus braços.
Antes que Sariel montasse um contra-ataque, Érico investiu com um duplo
ataque frontal. Sariel se defendeu jogando as espadas para os lados, mas Érico,
prevendo a defesa, atacou as próprias espadas de Sariel, fazendo-as girar nas
mãos do adversário.
Sariel não teve forças para continuar segurando suas armas.
Não estava mais sorrindo.
Foi desarmado com um único golpe. As espadas foram uma para cada lado do
terraço, e ele estava muito próximo da beirada do edifício.
Eu posso saltar daqui. Amorteço minha queda antes de chegar ao chão e ainda
o deixo pensando que me matou.
Mas não chegou a pôr seu plano em prática.

200
Confluência

Aline não podia escolher entre os dois, mas quando viu Érico desarmar
Sariel e seu marido dar dois passos para trás, à beira de uma queda mortal...
Quando viu o pai de seu filho ameaçado, sua reação foi completamente ins-
tintiva.
Jogou-se sobre o irmão. Érico não esperava por aquilo. Pensou ainda em
se defender da investida de Aline, mas tinha duas espadas nas mãos e poderia
machucá-la.
Aline o atingiu em cheio com ambas as mãos. Empurrou-o com toda a força.
Érico cambaleou. Largou as espadas. Deu dois passos para o lado e foi ao chão.
Caiu muito próximo à beirada. Tentou se levantar, mas o piso estava molhado,
ele muito pesado e sua força já não era a mesma. Suas pernas escorregaram para
fora do prédio. Seu tronco foi arrastado pelo peso. Ficou debruçado, e ainda era
puxado para baixo.
Desceu mais ainda. Apenas o braço direito o segurava. Seus dedos não conse-
guiam encontrar um ponto firme de apoio.
Olhou para baixo e tudo girou. Via apenas um emaranhado de gotas se mistu-
rando. Parecia uma queda sem fim.
Sua mão falhou. Estava caindo.
Foi agarrado.
Por Sariel.
Estava salvo. Foi salvo pelo assassino de seu pai. Érico cruzou um olhar in-
crédulo com aquele homem.
Seu sangue pingava do braço e dos pés, misturando-se com a chuva e o suor.
Sariel o ergueu com um esforço sobre-humano. Puxou-o para cima e ainda
o arremessou para perto das espadas. Sua mão tremia visivelmente, seus braços
não teriam aguentado muito mais. Estendeu um dedo para Aline e disse:
— Fique fora disso, Aline. Érico merece uma luta justa. Ele merece um con-
fronto honesto. Não interfira!
— Não! Eu não vou deixar você morrer.
Sariel andou até ela e a agarrou pelo ombro. Perfurou seu espírito com o olhar.
— Você vai deixar esta luta terminar. Pela minha honra, pela minha palavra,
pela minha vida, você não vai se meter!
E a jogou longe. Não esperou resposta.
Aline chorou.
Érico estava de pé. Tinha ambas as espadas nas mãos.
Ele me salvou! Ele matou meu pai na minha frente e me salvou! Eu tinha a luta
ganha, eu iria matá-lo, e ele me salvou!
Eu não teria feito o mesmo por ele...

201
Abascanto: a sombra dos caídos

Sabia da sua raiva. Sabia o que deveria ser feito. Seu sangue ainda fervia ao
olhar para aquele homem. Mas agora sabia de algo mais.
Ele é melhor do que eu. Ele é uma pessoa melhor do que eu.
Isso, por si só, o derrotou. Érico havia jogado em Sariel toda a sua raiva, todo
o ódio contido desde a morte do pai, e encontrara apenas um homem de palavra.
Encontrara honra.
Nem toda a vitória do mundo poderia satisfazê-lo naquele momento.
Sentiu a visão falhar. Por pouco segurou sua consciência. De repente, achou
que não conseguiria mais lutar.
Sariel estendeu os braços, suas duas espadas voaram em sua direção. Em-
punhava-as novamente. Percebia que Érico estava fraco, mas sabia que ele ainda
poderia concentrar muita força para continuar o confronto.
Ele vai me atacar com outra investida direta, tentar me desarmar mais uma vez.
Érico viu as mãos de Sariel tremerem, mas havia experimentado em primeira
mão a força que ele ainda era capaz de concentrar: o erguera com um único braço.
Ele me venceu todas as vezes! Por quê? Por que é que ele conseguiu atravessar
minha guarda duas vezes?
Ele é muito rápido. Ele se move com muita agilidade.
Correram. Gritaram. Nenhum deles achava que a luta passaria daquele último
contato. Era a última chance, a última investida. Aplicaram tudo o que sabiam
uma última vez.
Sariel atacou o ventre de Érico, colocando o corpo de lado, para favorecer
uma esquiva.
Érico saltou por cima de Sariel. Suas pernas não estavam feridas. Passou pela
cabeça do oponente e caiu logo atrás dele.
Sariel virou-se no mesmo instante, mas Érico não havia caído de pé, e
sim agachado no chão. Com suas duas espadas, ele cortou as pernas de seu
cunhado.
Sariel tentou dar um passo para trás, mas as lâminas de Érico eram grandes
demais. Sentiu o fio penetrar por sua coxa e arranhar-lhe os ossos.
Gritou. Caiu no chão.
Érico se levantou no mesmo instante e sentiu tudo girar. Apoiou-se nas suas
espadas. Aquele último esforço havia sido demais para ele. Achou que iria perder
a consciência ali mesmo. Na tentativa de se manter em pé, abriu completamente
sua guarda.
Não! Defesa! Eu preciso me defender de Sariel!
Sariel estava caído no chão. Suas pernas estavam vermelhas e iluminadas com
o sangue que se transformava em energia. Ele não o tinha atacado.

202
Confluência

Érico tinha apenas uma espada nas mãos. A outra havia caído depois de seu
ataque. Sariel não tinha nenhuma, e não conseguia mais se erguer.
Eu consegui. Eu venci!
Sariel. Caído na minha frente. Desarmado, indefeso!
Quantas vezes ele tinha sonhado com aquele momento, aquela cena? Quan-
tas vezes ele havia concentrado todo o seu ódio para ver Sariel exatamente
naquela posição?
Lá estava ele.
Finalmente! Finalmente!
Pai. Esta é por você.
Ergueu a espada de Belial e olhou fundo nos olhos de Sariel.
Quando Sariel falou, tinha a voz cansada, ofegante. Um tom baixo, descon-
solado:
— Eu te perdoo, Érico.
Érico parou. Quase não o ouvira com a chuva.
Como é?
— Eu te perdoo pelo que você fez com minha irmã. Eu conheço Belial, eu sei
o que você está passando, e desculpo o que você fez.
Érico, de repente, se deu conta de como estava molhado, de como estava frio.
Cambaleou e tremeu dos pés à cabeça.
Ele me perdoa? ELE me perdoa?
Imaginou a cena. Viu-se com a espada erguida, apontada para aquele homem.
Viu sua irmã, chorando, apavorada, a seu lado.
Viu seu pai, morrendo na sua frente. Viu o assassino de seu pai caído na sua
frente. Ferido. Indefeso. Vencido.
Sariel e Érico se olharam por longos segundos.
Basta um golpe. Basta um ataque e eu acabo com ele.
Acabo com o assassino do meu pai, com o marido da minha irmã, com o meu
próprio irmão...
Queria matá-lo. Devia matá-lo. Precisava matá-lo.
Iria?
Tentou odiar aquele homem, mas ele havia acabado de lhe salvar a vida. Para
manter a palavra! Repetiu para si mesmo que Sariel desejava o fim da humani-
dade, mas ele já havia postergado seus planos.
Se eu continuar pensando nisso, ele vai escapar dessa.
Eu tenho que fazê-lo. E é agora!
Deu um passo. Ergueu a sua espada. Aline correu em sua direção e segurou
seu braço. Alcançou-o instantes antes de ele perfurar o peito de Sariel.

203
Abascanto: a sombra dos caídos

— Érico, por favor, não! Ele é meu marido! Por favor! Você o venceu! Érico,
ele é o pai do meu filho! Não faça isso!
Olhou de relance para a irmã. Aline agarrava o braço dele com a força de uma
criança. Seus olhos estavam bem abertos. Também tremia.
Tirar o pai do seu sobrinho...
Lentamente, baixou a espada. Seu sangue fervia, parecia que chovia a bile
de seu fígado.
Olhou para Sariel por um instante. Depois para a irmã.
— Saia da minha frente.
— Não! Por favor, não!
Aline se jogou sobre Sariel. Cobriu-lhe todo o corpo. Ofereceu-se como escudo.
Então é isso... Para acabar com o assassino do meu pai, eu tenho que matar
minha irmã também.
E o seu filho...
Olhou para o lado. Fechou brevemente os olhos.
— Saia daí!
— Não! Ele é meu marido!
— Ele matou meu pai! Nosso pai!
— Dê a ele mais uma chance, Érico! Por favor! Uma chance. Por mim! Pelo
meu filho!
Érico respirava pesadamente. Sentia como se inspirasse o vento daquela
tempestade.
Mais uma chance. Deixar que ele saia daqui. Deixar que ele viva, e mate sei lá
mais quem?
Avançou alguns centímetros. Seus olhos faiscavam como duas fogueiras.
Uma chance... Uma última chance... Pois bem...
— Pergunte a ele, Aline. Peça para que ele te prometa que, no futuro, quando
seu filho tiver morrido, quando isso estiver muito no passado, peça para que ele
não retome o plano. Faça ele prometer que nunca mais vai tentar acabar com a
humanidade. Pergunte se ele realmente abandonou essa ideia, ou só está adiando
a coisa um pouco.
Aline voltou-se para o marido. Seus olhos vibravam. Duas estrelas novas ha-
viam se acendido ali.
É tão fácil! É tão simples! Basta ele prometer! Eu vou ficar com ele, afinal!
Olharam-se.
A luz dos olhos de Aline brilhava forte. Sua boca tremia, buscava o sorriso
que, com uma única palavra, ele poderia dar.
O olhar de Sariel se esvaziou. Engoliu a luz de Aline e nada ofereceu em troca.

204
Confluência

Sua boca se abriu. Não com determinação, mas com uma desculpa que nunca
chegou a ser formulada. Diante da esperança da esposa, seu olhar se quebrou, e
ele baixou os olhos.
Aline procurava, desesperada, por uma dica qualquer, de que ele fosse dar
uma resposta. Uma única esperança de um “sim”. Seus olhos varreram a face
dele, percorreram cada curva daquele rosto, cada poro. O menor sinal teria sido
suficiente. Uma mentira teria bastado.
Nem isso ele pôde lhe dar.
Aline se levantou, entre Sariel e Érico. Ainda olhava nos olhos de seu marido
e sentia a ponta da lâmina do irmão nas costas.
As mãos lhe cobriram a boca. Ela assoou o nariz. Chorava com mais violência
do que as nuvens.
Havia sido abandonada, afinal. O amor de seu marido não era tão forte assim.
No final das contas, havia sido apenas uma ilusão. Nada mais lhe restava.
Nunca tivera aquilo que pensava.
Contraiu todo o seu rosto em uma angústia nua. Abriu os braços e se concen-
trou intensamente nas espadas do marido, caídas ao longe.
Exatamente como ele a tinha ensinado.
Não deixou de olhar nos olhos de Sariel nem por um instante. Não o per-
deu de vista nem por um minuto. Quando as espadas voaram em direção a suas
mãos, Aline ainda soltou um gemido solitário de dor, de saudade, de desilusão.
Érico arregalou os olhos quando percebeu o que Aline iria fazer.
Sua irmã caiu sobre o marido. Deixou-se ajoelhar e depois tombar sobre ele.
Encostou as mãos no peito dele, quando as lâminas já tocavam o chão abaixo de
suas costas.
Sariel abriu a boca. Tentou gritar, mas não conseguiu. Com a pouca força que
lhe restava nos braços, tocou levemente a face de Aline.
Quando sentiu os dedos dele, ela gemeu.
Érico cambaleou e caiu para trás. Não conseguia mais se manter de pé.
Aline abraçou o marido, encostou sua boca salgada na dele. Uma última vez.
Viu a luz surgir do fundo de seus olhos. Sentiu o abraço falhar quando o corpo
de Sariel perdeu solidez.
Érico viu a irmã envolta em uma dança de luzes e cores. Sariel passava inteiro
por ela enquanto se desfazia.
As lágrimas de Aline levaram embora as cinzas de Sariel. Ela soltou um único
grito. Um soluço. Retorceu-se inteira e caiu no chão. Tremia a cada gota que a
tocava. Cada memória que a atingia.
Estava só.

205
DDOO LL
OPTIIST
MOLORES
SAPIENTE EE N TAS
N E MMES-
TVOLUP-
E
VELLUPTA-
ET
TATE
OPTIIST
D O
ACCUSTIS
ACCUSTIS CONESTRUM
L
MOLUPTATUR,E
Epílogo
ACCUSTIS
CULPA
DICIDIT AS
–N T EES-
M
VOL-
DOLENTEM
Família
DOLENTEM
DOLENTEM
CONSE DELES-
AECATAMUS,
TATE CONESTRUM

O sol saía de cena de maneira discreta e deprimida naquele fim de tarde.


Caminhava vagarosamente em direção a seu repouso, como se tivesse preguiça
de ir dormir. Cada tonalidade de cor que passava pelo céu parecia empurrá-lo,
contrariado, para trás das montanhas de vidro e concreto da cidade.
Kaliel assistia à cena, contemplando cada detalhe dos prédios e casas.
Tão perto estiveram de morrer, e nunca saberão...
Não mais do que três passos de onde ela estava, Daqshael havia morrido
para salvar Érico. Aline havia presenciado uma luta entre grigori e caídos pela
primeira vez...
Seu cigarro estava no fim. A vontade de pegar outro levava suas mãos a brin-
car com o maço.
Suspirava, impaciente, entre uma tragada e outra. Queria voltar logo para
casa. Não confiava em Érico para cuidar de si mesmo na condição em que estava.
Apesar de todo o seu esforço naqueles últimos dias, ainda não tinha certeza de
que ele não tentaria uma besteira...
— Lindo, não?
Teria se assustado se não tivesse pressentido a aproximação de Satanael havia
vários minutos.
Virou-se para ele, devagar.
Ficaram se examinando por um tempo, um lendo as expressões do outro.
— E então?
— E então o quê?
— O que é que você quer comigo?
Satanael apoiou-se no terraço.
— Nós tínhamos um trato, neném. Ele ainda está valendo. Eu quero saber o
que foi que aconteceu. Qual é o fim desta história?
Se pudesse, Kaliel teria se atirado para cima de Satanael ali mesmo. Engoliu
em seco para responder:

206
Epílogo — Família

— Está tudo terminado, Satanael. Sariel foi morto. Aline controla as empresas
dele e já está cuidando para que todo o esquema que ele montou seja desfeito.
— E os pesquisadores que desenvolveram a doença?
— Presos. Edgar os tem sob vigilância constante. Todas as informações estão
sendo destruídas.
— E aquela ampola maldita?
— Aline e Edgar a guardam. Vão destruir a amostra daqui alguns dias, assim
que esta balbúrdia toda acabar.
Satanael franziu a testa.
— Isso deveria ter sido a primeira coisa a ser feita, Kaliel.
— Nenhum de nós é bioquímico, Satanael. Edgar e Aline tinham muito re-
ceio de cometer algum erro com relação a essa amostra. Não se preocupe, eu
estarei com eles. Também tenho todo o interesse em ver isso acabar de uma vez
por todas.
Um leve sorriso passou pela sua boca.
— Com você no comando, minha querida, eu nunca me preocupo...
Kaliel quis vomitar. Virou-se lentamente para a sacada, mas não tirou os olhos
daquele indivíduo.
— Então, a garotinha vai dar à luz um filho de Sariel?
Kaliel tragou fundo. Deixou a fumaça descer lentamente. Expirou-a devagar,
e só aí respondeu:
— Vai. Ela está decidida.
Satanael reclinou-se no parapeito. Kaliel passou o cigarro de uma mão para
outra só para que a fumaça fosse na direção dele.
— Há que se admirar a coragem da moça... E seu querido Érico? Como está ele?
Kaliel fechou os olhos. Jogou fora o cigarro e prendeu a respiração por alguns
instantes. Quando os abriu, olhava apenas para o rosto dele.
— Você não tinha o direito de fazer o que fez, Satanael.
Satanael juntou as mãos e ergueu as sobrancelhas.
— Ele não está bem, é?
— Ele não consegue dormir, Satanael. Todas as noites, ele vivencia alguma
memória de Belial. Guerras, morte, perdas, sete mil anos de experiências, e as
primeiras que estão surgindo são justamente as piores. Durante o dia, ele se
alterna entre ficar vagando, absorto, pelas sensações dela, e um acesso de raiva
pela morte de Sariel. Érico se lembra dele como se fosse seu próprio irmão. Ele
está...
Teve de respirar fundo novamente. Perderia um braço, mas não demonstraria
nenhuma emoção diante de Satanael.

207
Abascanto: a sombra dos caídos

— Ele está enlouquecendo, Satanael. Eu não sei se ele vai conseguir se estru-
turar depois disso. Cada dia que passa, as emoções de Belial o dominam mais...
Você não tinha o direito de condená-lo a isso...
Satanael apoiou um ombro na sacada.
— Bom, já que é assim... Você sabe o que fazer, não é?
Uma nova onda de raiva contorceu os lábios de Kaliel. Sem que ela percebesse,
a sugestão a havia irritado a tal ponto que ela jogou para cima dele toda a sua
força. Uma imensa energia partiu na direção de Satanael.
As luzes do salão ao lado queimaram. Um forte vento levou os guardanapos e
os cardápios que estavam nas mãos de quem comia no restaurante.
Satanael ergueu um dedo. Concentrou sua atenção na forma de um pequeno
fio de energia à sua frente. Toda a força de Kaliel foi cortada ao meio e escorreu
pelos lados. Nada lhe aconteceu.
Ele abriu um breve sorriso satisfeito.
— Nervosinha, não?
Kaliel se recompôs.
Isso foi muito vulgar! Essa energia toda poderia ter matado alguém. Con-
trole-se, mulher.
— Então, minha cara. Se você acha que Érico está tão perdido assim... por que
é que você não faz o que você sabe que é preciso?
Kaliel não sabia o que responder.
— Eu... Ele...
— Eu te digo. Porque você prefere vê-lo vivo e sofrendo do que morto e em paz.
— Você não tem o direito de fazer um julgamento desses!
— Não seja piegas, meu bem. Viver é julgar, queira você ou não.
— Por que você fez isso, Satanael? Por que condenou meu filho a uma dor
dessas?
— Ora, ele estava morrendo na minha frente, Kaliel. Ele pediu a minha ajuda.
— Abriu os braços. — E você sabe do meu profundo respeito pela vida.
Kaliel não conteve o asco que lhe subiu pela garganta.
— Você é um covarde, Satanael. Um hipócrita mau-caráter como eu nunca
conheci na vida. Você se esconde atrás dessa sua pose inatingível, mas no fundo é
um imbecil que não consegue fazer nada por si mesmo. Você precisa de um álibi
para tudo. E ainda fica com esse sorriso sonso estampado na cara. Você não vale
um fio de cabelo do meu filho.
Satanael não moveu um músculo. Quando Kaliel acabou, ele ampliou o sor-
riso e disse, divertido:
— Pode ser. Pode ser... Mas... eu tenho estilo!

208
Epílogo — Família

Kaliel cuspiu na cara de Satanael. Sua saliva ficou parada no ar diante dos dois,
suspensa na fronteira entre aquelas duas auras.
— Bem... foi um prazer te conhecer, querida. Eu vou sentir sua falta.
Kaliel pendeu a cabeça para o lado, levemente confusa.
Satanael fingiu uma imensa surpresa e disse:
— O quê? Então você não vai embora? Vai ficar aqui mais um tempo?
— Minha missão não acabou.
— É claro que acabou, Kaliel. Sariel e Belial estão mortos. A ameaça dos dois
está terminada. Aline já é uma mulher feita. Érico já é bem grandinho também.
Todos os motivos que prendiam você a este mundo já se foram.
Kaliel virou-se para a sacada.
Eu não preciso me justificar para este asno.
— Ou talvez haja algo mais? Talvez você queira ficar aqui para cuidar do Eri-
quinho até ele sarar. Ou até Aline ter seu filho, porque, se ela não sobreviver,
alguém vai ter que cuidar da criança, não é? E aí você teria álibi para mais uns
trinta anos de planeta Terra...
Sem que percebesse, uma antiga tristeza pesou no fundo dos olhos de Kaliel.
Minha família... meus irmãos... minha casa... Ah... voar, livre, pela Eterni-
dade mais uma vez... voltar a meu Lar além do tempo... como seria bom... como
seria bom...
Satanael reclinou-se e sussurrou no ouvido dela:
— Você é mais parecida conosco do que pensa...
Saiu sem mais uma palavra.

209

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