entre os discursos sobre a agricultura brasileira, o
conceito de agroecologia surgia e representava um projeto alternativo. O conjunto de técnicas e conceitos, que une o conhecimento tecnológico e o saber popular sobre o ecossistema, era considerado um modelo de agricultura socialmente justo, economicamente viável e ecologicamente sustentável, diferente da agricultura convencional, que sempre buscou insumos e venenos para ampliar a produção e o lucro. Para se ter uma idéia, apenas nas regiões Norte e Nordeste do Brasil, já existem cerca de dois milhões de unidades de produção que não utilizam venenos.
A produção agroecológica tem
como objetivo preservar a vida com alimentos saudáveis sem agrotóxicos e livre de transgênicos. As relações do agricultor com a natureza são fundamentais neste processo, como explica Vladimir Moreira, agrônomo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na região de Bagé, no Rio Grande do Sul.
“A agroecologia é um apanhado de técnicas, de
parâmetros, de conhecimento local, de conhecimento do agricultor sobre o ecossistema em que ele vive, interação do meio ambiente com a natureza e o ser humano. É uma teia que a gente chama ‘Teia de Gaia’. Gaia significa terra em grego. Então, a agroecologia é formada por uma grande teia, onde o ser humano interage com os animais, vegetais e com a própria família. A agroecologia é constituída de diversos fatores que vão muito além da agricultura convencional, que é uma agricultura de exclusão.”
Para os agricultores, o conceito de agroecologia
se dá na prática, no cotidiano. Eles não ficam dependentes de nenhum fator externo ao lote de produção. Não precisam comprar adubo nem veneno. Para Délcio Jacó, de um assentamento do MST na cidade de Hulha Negra, no Rio Grande do Sul, o objetivo da agroecologia vai além de questões econômicas.
“A idéia é de você ser não simplesmente um
produtor para viabilizar só economicamente, mas sim defender a vida, a biodiversidade, dentro da propriedade, do assentamento. E também ter um alimento mais saudável, para você, para sua família e para o resto do pessoal.” Por não precisar adquirir nenhum insumo externo, as empresas de venenos fizeram uma investida comercial alegando que sem agrotóxicos a produção cairia e, no final das contas, isso sairia mais caro. Mas o agrônomo Vladimir Moreira discorda e explica que o custo da produção agroecológica é baixo, o agricultor arrisca menos e tem retorno econômico, social e de saúde. É o que o agricultor Élio Francisco, também da cidade de Hulha Negra, conseguiu provar na prática.
“No início até, não se acreditava muito que podia
dar resultado mesmo, porque parecia impossível produzir cebola sem usar um químico. Mas é possível porque enquanto as outras empresas usam é um rio de dinheiro para produzir cebola, nosso custo há anos é quase zero. O tratamento é ecológico. Não tem nem comparação. Chegamos a reduzir o custo do tratamento da mesma doença na cebola sem o químico em até 90%.”
Délcio confirma a experiência no seu lote. Ele
conta que tem muito trabalho na sua terra, mas nenhum dinheiro sai do seu bolso e a produção continua rendendo alguns trocados.
“No ano passado – quando eu tinha plantado um
pouquinho menos de um hectare de lavoura - tirei R$ 6 mil e sem ter nenhum centavo de despesa, de custos desta lavoura. Isso sem contar minha mão-de-obra, mas em despesas, em custos que eu tirei dinheiro do bolso, não tinha nenhum centavo. Você não desembolsa nada para produzir. Coloca na lavoura aquilo que você produz em casa.”
O conceito de segurança alimentar
também está muito relacionado à agroecologia. Saber o que se come e comer sem desconfiar de algum produto utilizado nos alimentos nos dá mais segurança. Garantir a qualidade necessária dos alimentos para a família traz muitos desafios para o produtor, que precisa ter condições de renda e plantio. E, para isso, segundo Flávio Valente, da Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos (Abrandh), sem mudanças significativas no modelo econômico fica muito mais difícil proporcionar as condições necessárias para o agricultor.
“Garantir a segurança alimentar para toda a
sociedade depende da luta do povo brasileiro. Não depende de ninguém especificamente. Primeiro, depende de um entendimento de que a prioridade deveria ser para garantir que toda a população tivesse condições de ter emprego, terra para plantar, que o modelo agrícola fosse adequado e garantisse o apoio à agricultura diversificada, de que produzisse alimentos limpos e de qualidade. Garantir emprego que as pessoas pudessem ter dinheiro para comprar. Você vê, então, que não é uma coisa que depende de uma ou outra pessoa, mas de uma organização social mais adequada.”
Felizmente, na prática, algumas pessoas já podem
contar com a produção saudável de seus alimentos, independentes de empresas de sementes, adubos e outros produtos. Para Seu Délcio são muitas as vantagens, mesmo que elas demorem um pouquinho a aparecer.
“As vantagens existem na saúde das famílias, na
saúde dos animais. Aquilo que você gasta em casa, você sabe que é muito mais saudável. Então as vantagens vêm aos poucos. De repente a gente de início não percebe tanto a diferença, mas no passar no tempo vai percebendo que as diferenças começam a surgir ali: na água mais saudável, por exemplo. Então tem um monte de fatores que você começa a perceber aos poucos, na melhoria da vida e até econômica também.”
Por conta desses benefícios que
Seu Décio e outros agricultores de todo o país já podem contar que a produção agroecológica é vista como uma mudança profunda na concepção de agricultura. É o que explica Valdemar Arl, agrônomo da Associação para o Desenvolvimento da Agroecologia (Aopa).
“A agroecologia deve ser vista como um
instrumento da transformação social e também uma quebra de paradigmas. Porque é a ciência da co-evolução em interações positivas de cooperação, de complementaridade e até de interdependência. Não é uma descoberta nova, porque, no passado, o agricultor dependia da natureza, não tinha de nenhum insumo interno. Não existia agrotóxico, nem semente híbrida, ou adubo químico, nem máquinas, nem ferramentas praticamente. E ele praticava a agricultura.”
A disputa entre os discursos sobre a produção
agroecológica, a convencional e a que utiliza transgênicos ainda está muito presente nos dias de hoje e está longe de chegar ao fim. Resta à população brasileira refletir sobre o melhor modelo para produzir o alimento suficiente para cerca de 180 milhões de pessoas, levando em conta os aspectos econômicos, sociais, ambientais e de saúde. A produção agroecológica tem como objetivo preservar a vida com alimentos saudáveis sem agrotóxicos e transgênicos. A agroecologia é defendida por muitos agricultores e especialistas na área como um modelo de agricultura socialmente mais justo, economicamente mais viável e ecologicamente mais sustentável, diferente da agricultura convencional, que busca insumos e venenos para ampliar a produção e o lucro.
Só no Norte e Nordeste do país já existem cerca
de dois milhões de unidades de produção que não utilizam agrotóxicos. Em contrapartida, temos cerca de 11,5 milhões de hectares com plantações transgênicas, o equivalente à área de mais de 11 milhões de campos de futebol.
Nesta série especial, a Radioagência NP
apresenta três reportagens aprofundadas sobre o tema. A jornalista Nina Fideles foi conferir a experiência de produção agroecológica no Rio Grande do Sul e conversou com especialistas em agricultura. As reportagens contam com entrevistas com agricultores, além de Flávio Valente, da Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos (Abrandh); Fernando Ferreira Carneiro, especialista em regulação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa); Alda Lerayer, diretora-executiva do Conselho de Informações sobre Biotecnologia (CIB); Valdemar Arl, agrônomo da Associação para o Desenvolvimento da Agroecologia (Aopa), entre outros. O conteúdo da série está disponível em áudio e texto.