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Faltou Freio

Copyright 2005 - by Cláudio S. de Lucena Neto

Projeto gráfico, capa e editoração eletrônica


Engenho de Arte

L229f Lucena Neto, Cláudio de.


Faltou Freio / Cláudio de Lucena Neto.
-
Natal, Engenho de Arte, 2005.
128 p.
1. Crônicas - Literatura brasileira.

CDU 869.0(81)

Editado por

Rua Neuza Farache, 1930 - Capim Macio


59082-100 - Natal - RN
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Homepage: www.engenhodearte.com.br
E-mail: editora@engenhodearte.com.br
Cláudio de Lucena Neto

Faltou Freio
Crônicas

Edições Engenho de Arte


Natal - Rio Grande do Norte
Para Myrla,
por tudo
Nota da editora
Sumário
Da noite pro dia 11
A síndrome da viseira de burro 15
Compay y nosotros 19
Beletti é a mãe 23
Paixão nacional? 27
Fina prosódia 31
Dez razões para o terror vir pela América 35
O namoradinho da minha filha 39
O apagão WAP 43
Eme ci o que? 47
O soldado 6362 57
Scolarsson, Buensson, Ronaldsson e outras frias 57
Eu sei o que é melhor pra vocês 61
Falta argentinidade 65
Mulheres no shopping 69
Ilíada Trezeana 75
Faltou freio 79
O risco da democracia 83
O mestre encena 87
Faz o q, neh? 91
Sem merchan 93
O Apagão da natalidade 97
O imperio contra-ataca 101
Um povo que sorri 105
Stalinismo paz e amor 109
O apagão da imoralidade 113
O Brasil do milhão 115
Tomaram no Kursk 119
Vencendo a derrota 123
O mito da reeducação alimentar 127
Faltou Freio

Da noite pro dia

Ronald Reagan, que durante o tempo em que viveu na Casa


Branca foi o maior ator americano de todos os tempos, costumava
dizer que um homem sabe que está ficando velho quando, entre
duas opções, ele escolhe invariavelmente a que permite que ele esteja
em casa às dez da noite.
11
Não percebi que estava ficando velho. Aliás, não tive como
perceber porque não teve isso de ir ficando velho. A coisa não foi
gradual, paulatina, aos poucos, nem passo a passo, como era de se
esperar.
Simplesmente envelheci.
Assim, de uma hora pra outra. Da noite pro dia.
Com direito a todos os sintomas.
Tenho amizades de mais de vinte anos.
Som alto me irrita.
Cláudio de Lucena Neto

Rangido de carro me irrita.


Latido de cachorro me irrita.
Qualquer barulho inesperado me irrita.
Barulho que já era esperado também me irrita.
Pra falar a verdade, poucas são as coisas que não me irritam.
Comecei a me referir aos jogadores do meu time como os
garotos, aquele moleque da lateral-direita, aquele menino que está
na reserva, e a implicar que o problema é que são jovens demais, é a
falta de experiência.
Aliás, implicância e ranzinzice cada vez me faltam menos.
Comecei a achar que há duas maneiras de fazer as coisas: a
minha maneira e a maneira errada.
Não dá mais pra pinçar os cabelos brancos, a não ser que eu
conte com uma equipe de pinçadores maior do que aquela que a
Ferrari põe, durante os pit stops, à disposição de Schumacher. Re-
sistirei ao ardil de pintá-los de acaju. Viva a dignidade!
Passei a me divertir com o horário eleitoral gratuito.
A incômoda e insistente dor nas costas começa a me fazer
desconfiar da veracidade daquele papo de jovem de espírito.

12 O celular traz muito mais problemas e tragédias do que


diversão e alegria.
Tenho tempo pra escrever.
A velhice vem surpreendendo a nossa geração muito antes
da época em que deixou o seu cartão de visitas para a geração que
nos antecedeu.
O aventureiro humano que passa por este século enfrenta,
com raras exceções, um ritmo alucinante de vida, excesso de com-
petição, excesso de stress, excesso de problemas, excesso de conflitos
e de cobranças pessoais e profissionais, excesso de trabalho, de pressão
e depressão, excesso de excessos e de tudo o que não presta.
Faltou Freio

Isso me conduz à ingrata certeza de que muito mais cedo


começaremos a enfartar, a sofrer os nossos derrames, ataques
cardíacos, turicas e bilouras. Perceberemos e padeceremos de todos
os males de saúde física e mental que nos foram reservados em uma
idade muito inferior à que os nossos pais começaram a enfrentá-los
– queira o meu bom Deus que esse próprio texto já não seja uma
publicação póstuma.
Aos trinta entro, definitivamente, em um grupo de altíssimo
risco.
Como se isso não bastasse, para os que sobrevivem inicia-
se uma desesperada corrida contra o tempo pra dar certo. O país
desenvolveu a prática cruel, o péssimo hábito de esperar tudo de
uma vez de quem tem entre trinta e quarenta anos. Antes dos trinta
ninguém deposita muita confiança em você, mas depois dos quarenta
ninguém mais deposita muita confiança em você. Tudo tem que
acontecer aí, nesse intervalo. Cruzar a barreira dos trinta, portanto, é
como abrir uma volta de classificação com um monte de carros na
pista disputando uma vaga, e com a desvantagem extra de saber
que, se não chegar antes dos quarenta, não se entra nem no grid.
E o pior é que ninguém percebe, ou se percebe não tem
coragem de te avisar, que tudo isso está chegando. A idade é inevitável
mas é sorrateira, astuta. É previsível mas ninguém está verda-
deiramente preparado pra ela porque é tudo muito rápido, muito
repentino. Tudo acontece de forma assustadoramente inesperada, 13
quase que instantaneamente.
Assim, de uma hora pra outra.
Da noite pro dia.
(Julho de 2005)
Faltou Freio

A síndrome de viseira de burro

Partilhava eu junto com os meus entes queridos da inevitável


calmaria e do ócio do domingo quando fui arrebatado, tão surpreso
quanto qualquer outro cidadão brasileiro, pelo trágico espetáculo
proporcionado pelos detentos do estado de São Paulo, numa demons-
tração de organização de dar inveja a muita instituição pública e até
mesmo a empresas do nosso setor privado. 15
Todas as revistas de maior circulação do país já estavam
em nossas mãos e os jornais do domingo também já estavam im-
pressos. Restou apenas a cobertura ostensiva dos insuportáveis
programas de televisão de domingo.
Apenas?
Se é que alguém se recorda, nem o drama que viveu o nosso
conterrâneo Herbert Vianna deu tanto o que falar – e olha que de
dramas pessoais eles comem até o caroço! Foi absolutamente
impossível assistir a um bloco de qualquer programa sem interrupção
para flashes ao vivo das penitenciárias amotinadas.
Cláudio de Lucena Neto

Concordo. A ação foi um espanto, tema dos principais


noticiários ao redor do mundo. O problema também é gravíssimo.
As soluções têm que ser encontradas em caráter de urgência. Ficar
alheio ou insensível aos fatos do cotidiano não revela nada além de
estupidez.
Alguns dias no entanto já se passaram, e a cantilena
continua. Nenhuma notícia pode deixar de fazer referência ao
ocorrido. Horas de telejornais, páginas e páginas de jornais e revistas,
bytes e bytes de cybernotícias. Alguma dúvida sobre o tema do Globo
Repórter da próxima sexta?
A discussão a respeito do que aconteceu é de fato essencial
e urgente. Tenho, aliás, ouvido diversas sugestões interessantes a
respeito da criação de comitês para a aplicação de penas alternativas,
da instalação de equipamentos de segurança nos presídios, do
treinamento e formação dos agentes carcerários, do controle de
freqüência telefônica e radiofônica nas áreas dos presídios, idéias
que sob condições normais de temperatura e pressão dificilmente
chegariam à superfície do debate.
Duas coisas, contudo, me preocupam sobremaneira neste
episódio. A primeira, diretamente ligada ao problema em questão,
refere-se ao fato de que, se os amigos se derem ao trabalho de repassar
a lista de sugestões do parágrafo anterior verão que nenhuma delas -
nenhuma! - diz respeito a um problema recém-surgido ou descoberto
16 durante este movimento. Ou seja, isto é a vivificação daquele nosso
velho e abominável hábito de só lembrar o quanto a árvore era bonita
depois que todas as folhas já caíram.
A outra razão de minha insônia - esta com repercussão em
tudo o que diz respeito à nossa história – está na Síndrome da Viseira
de Burro, cujo sintoma principal é deixar de lado absolutamente tudo
o que está acontecendo em volta e concentrarmo-nos, exclusiva-
mente, no tema da moda.
Enquanto isso, na Sala da Justiça, a contenda entre Eurico
Lolo-of-Florida-da-Gama Miranda e Roberto Aquele-Canalha-me-
Paga Marinho continua a mil. Chrètien Bombardier e a poderosa
OMC andam dando “de cambão” em Pratini & Friends. Jader
Faltou Freio

Fortunato (na acepção do sapientíssimo Professor José Tavares)


assume o comando do Poder Legislativo Nacional e ninguém pergunta
nada. Reformas? Passe mais tarde!
E a roda gira...
As grades das Estações Carandiru por este país afora são,
sem sombra de dúvida, tenebrosas, sangrentas e preocupantes. Dignas,
portanto, de toda a atenção por parte da sociedade, de modo a que se
venha a encontrar caminhos viáveis para enfrentar uma situação que,
não é necessário que se repita, representa uma bomba-relógio.
Estas poucas linhas devem servir, simplesmente, para
lembrar que esse mundinho velho de meu Deus continua a girar -
mesmo fora delas.

(Fevereiro de 2001)

17
Faltou Freio

Compay y nosotros

O domingo estava particularmente calmo. Aquele sossego


que o clima das tardes de julho empresta a Campina Grande, aquela
tranqüilidade que o friozinho traz e que empurra a gente pra um sofá
bem aconchegante, debaixo de um cobertor não menos aconchegante,
ao lado de uma boa companhia, de preferência ainda mais
aconchegante. É óbvio que todo esse cenário contribui muito para 19
potencializar aquele desejo irresistível de não fazer absolutamente
nada, desejo esse por si só sempre já bastante forte.

Nessa paisagem dominical, passei horas alternando entre


as minhas duas cenas favoritas do “Buena Vista Social Club”, filme
de Wim Wenders. Uma delas é a cena em que Ibrahim Ferrer, uma
das maiores lendas da música cubana, depois de ficar esquecido,
desprezado, de viver engraxando sapatos e catando lixo por mais de
uma década, permanece imóvel por vários minutos, absolutamente
estático, como que não entendesse como foi que chegou até o palco
do Carnegie Hall, onde se encontrava naquele momento, sendo
Cláudio de Lucena Neto

apaixonadamente aplaudido de pé pelo público mais cobiçado do


mundo do show business de massa.
Sempre volto a essa cena. Ela é de uma riqueza de significa-
do única, principalmente para quem conhece de perto as dificuldades
e os bastidores, raramente gloriosos, do mundo da música profissional.
Mas há outra cena, muito mais singela, muito menos
pomposa, com muito menos luxo, em que Compay Segundo, outro
ícone cubano, relembra sua infância no pequeno povoado de Siboney,
na província de Santiago de Cuba, revelando que, por determinação
da matriarca da família, sua avó, nenhum membro poderia deixar o
lugarejo até que ela morresse, que fumava os puros cubanos desde
os cinco anos de idade e que, portanto, estava fumando havia 85
anos, que tinha seis filhos, mas que ainda estava procurando ter o
sétimo, dentre outros detalhes de sua vida.
A elegância daquele senhor, a alegria, a realização pessoal e
profissional, a vida saciada, a sensação evidente de ter cumprido o
dever e o contentamento por ainda ter saldo de vida a gozar são
óbvios e cativam o espectador. É uma das seqüências mais marcantes
e mais agradáveis do filme, à qual o diretor Wim Wenders faz seguir
um trecho do show “Buena Vista Social Club”, em Amsterdã, em
que Compay se faz acompanhar do redentor desses tesouros cubanos
quase esquecidos pelo tempo e pelos seus pares, o guitarrista Ry
Cooder.
20 Eles tocam juntos “Y tú, ¿que hás hecho?”, uma bela canção
rancheira, de acordes simples, sutil, delicada, falando sobre uma
menina que gravou seu nome em um tronco de uma árvore que,
comovida, deixou-lhe cair uma flor.
De volta ao carro, ouvi mais uma vez essa canção. Ao chegar
em casa, procurei a letra na Internet, e, no dia seguinte, fui trabalhar
ouvindo e cantarolando de novo a música.
Quando liguei o computador e visitei o primeiro portal, a
notícia de que Compay havia falecido de madrugada em Havana me
tocou profundamente. Acho que ao ver e rever a cena no dia anterior
por diversas vezes, ao sentir tanta felicidade, tanto vigor e tanta força,
Faltou Freio

esqueci que o grande Compay já contava 95 primaveras e acho que


também não cogitei que aquele senhor, particularmente cativante,
um dia poderia ir-se deste plano.
Engraçado como estes tempos de abundância e de alcance
de informação têm o poder de aproximar tanto as pessoas comuns
daquelas que estas admiram, a ponto de fazer com que a morte de
uma destas pessoas admiradas seja, às vezes, sentida como se fosse
a de uma pessoa realmente próxima. Desenvolve-se uma afeição
real, um carinho, uma ligação quase íntima com relação a essas
pessoas. Afinal de contas, a sua música, a sua imagem, a sua vida, os
seus gostos, costumes, as suas grandes realizações, seus endereços
eletrônicos, tudo fica absolutamente ao nosso alcance, e, muitas
vezes, sob o nosso próprio controle.
Fiquei imaginando a quantidade de pessoas no mundo
inteiro que foram tocadas por aquela cena, pela história e pela música
daquele senhor, e como estas pessoas, sem nunca terem visto ou
conversado com Compay, sem jamais terem ido a Cuba ou conhecido
de perto a sua vida, exatamente como eu, sentiam naquele momento
a perda de um grande talento.
Só não acho certo que o mesmo acesso e a mesma facilidade
que os meios de informação e comunicação nos proporcionam para
desfrutar desses grandes talentos não sejam as mesmas que
encontramos para produzi-los, para apresentá-los ao mundo. E não é
certo porque, sem qualquer sombra de dúvida, aqui surgem talentos
que em nada deixam a dever a outros grandes nomes, principalmente
21
da cena musical.
Aqui temos, em estado bruto, em abundância, e incrustados
em um veio que parece não ter fim, criatividade e originalidade,
virtuosismo técnico, preciosismo harmônico, vozes marcantes, ritmo,
balanço e, principalmente, figuras cativantes.
Cativantes como Jackson do Pandeiro, como Luiz Gonzaga,
como Marinês, para lembrar apenas aqueles que alcançaram projeção,
sem mencionar Manezinho Silva, que até hoje vive à margem de
uma linha de trem, do esquecido Seu João, recentemente redescoberto
pela abnegação do Dr. Carlos Antônio e do Professor Romério
Cláudio de Lucena Neto

Zeferino, os Ry Cooders paraibanos, além dos inúmeros Seus Joões


por aí afora, verdadeiras bombas de talento invariavelmente
desarmadas pela dificuldade e pela dureza da vida.
Tivesse o mundo a oportunidade de tê-los conhecido através
dos mesmos meios que difundiram e que tornaram notórios Compay,
Ibrahim, Omara Portuondo e seus companheiros, certamente o talento
dos nossos seria igualmente admirado, seus grandes feitos seriam
conhecidos, suas trajetórias e sua obra seria reverenciada mundo afora,
e lhes seriam prestadas as devidas homenagens, ainda em vida.
E não tenho dúvida de que uma lágrima também seria
derramada em cada canto do mundo, a cada vez que um de nossos
grandes se fosse. Uma lágrima sem a marca de consternação, da
tristeza. Uma lágrima de admiração, de respeito e de reconhecimento.
Uma lágrima de carinho, de gratidão e de uma terna saudade, como
a que verti pelo viejo Compay.

(Julho de 2003)

22
Faltou Freio

Beletti é a mãe!

Milhões de explicações sobrevieram ao Triste-Fim-de-


Policarpo-Quaresma da seleção brasileira, no mais recente espetáculo
protagonizado contra o temível escrete hondurenho, oportunidade
na qual nossos atletas sepultaram de vez o que havia sobrado de sua
já surrada dignidade.
23
No chororô dos dias seguintes foram identificados diversos
problemas, digamos, infraestruturais. A maioria das razões que deram
origem à palhaçada, aquelas que são mais evidentes, já foram exausti-
vamente debatidas e explicadas de forma buênica, casagrândica,
falcônica, cajurústica ou trajânica. O argumento é sempre aquela
conversa fiada de que não adianta tirar fulano ou beltrano, que o
calendário é isso, que é aquilo, que o time não treina, que joga
demais… Vá entender!
Algumas outras circunstâncias no entanto têm grande
influência sob o desempenho de nossos jogadores - aliás, meus não:
de vocês aí... - embora não sejam sequer objeto de análise das mesas
Cláudio de Lucena Neto

redondas, que só perdem em inutilidade para uma entrevista coletiva


pós-jogo, onde se tenta explicar porque Martínez, terceiro reserva de
Honduras, fez 2, enquanto que um ataque que deve valer, por baixo,
uns 150 milhões de dólares, só fez raiva.
Um problema claro: excesso de nomes. Aliás, excesso de
sobrenomes. Ora, o time brasileiro nunca necessitou de jogador com
muitos nomes. Nunca precisou, sequer, de jogadores com nomes
compridos. Pelé, Vavá, Garrincha, Didi, isso é que é nome de boleiro!
Fomos atacados por uma mania de sobrenomear os jogadores, e
acredito até que com a melhor das intenções, de fazer com que
sentissem identidade própria. O resultado é que criamos monstros, à
imagem de Flávio Conceição, Marcos Assunção, um Juninho para
cada estado da Federação, Roque Júnior (?), Eduardo Costa (valha-
me São Severino dos Ramos!), até chegarmos ao absurdo de Fábio
RochembackMytzplic que, se disser seu nome ao contrário,
provavelmente voltará à quinta dimensão. Resultado: enquanto o
Flamengo jogava com Zico, Tita, Lico e Nunes, encantava o mundo
e faturava o título mundial, o Brasil de hoje pode jogar com até três
Firmas Individuais no ataque que sequer têm tempo de pronunciar
os nomes completos uns dos outros pra pedir pra passar a bola.
Um outro fato, que não costuma ser observado mas no qual
ainda acredito sinceramente, é que alguns dos problemas enfrentados
pelo futebol brasileiro têm a ver com o futebol, mesmo.

24 É terrível que os jogadores precisem se desgastar em tantas


partidas, o passa-a-mão nos caixas dos clubes e da CBF também
deve ser combatido, os estádios modernizados, a legislação adaptada,
mas é hora de estabelecermos, também, alguns outros parâmetros,
em termos de bola, mesmo.
Por exemplo: quantos passes de um metro e meio seria
aceitável que um cabeça-de-bagre-de-área da seleção brasileira errasse
durante 90 minutos? Quantos cruzamentos seriam toleráveis que o
lateral/ala despachasse para fora do estádio, nos esconderijos das
guerrilhas colombianas?
Acabo de ver o grandalhão do Uruguai, o Morales, fazer
um gol de cabeça, depois de muita insistência, naquele mesmo goleiro
Faltou Freio

mexicano frente ao qual o Jardel não conseguiu finalizar uma única


vez. Não conseguiu porque os laterais brasileiros não conseguiram
acertar a área... Só repetindo, que é pra fixar bem: não conseguiram
acertar a área. A área. Nem a área? Assim não há quem agüente!
Toda a razão assiste a quem argumenta que o futebol no
mundo evoluiu. Evoluiu, sim, e muito. Toda espécie de recurso pode
ser aplicado ao treinamento da maioria das equipes profissionais do
planeta o que acarreta, sem qualquer sombra de dúvida, um nive-
lamento muito maior entre elas. Só que ao invés de reagir a essa
evolução com um novo salto de qualidade o jogador brasileiro, em
sinal de protesto, desaprendeu a dar um passe de dois palmos, a dar
um chute em movimento, a cruzar uma bola dentro da área!
Convém lembrar também que se o futebol no Brasil não
são somente flores, que há terríveis dificuldades, o que se há de dizer
das condições do futebol na Coréia do Sul, no Japão, no Chile, no
Paraguai, no Equador, no Uruguai e em Honduras?
Dá até para imaginar que é insatisfação financeira, que os
nossos profissionais/estrelas não são remunerados de forma sufi-
ciente.
É. Pensando bem, vai ver que é isso mesmo...
Vejam só a que exploração são submetidos esses pobres
diabos, tendo que jogar bola duas, às vezes três vezes por semana,
concentrados em hotéis cinco estrelas de condições duvidosas, longe 25
das mansões e dos condomínios fechados onde estão suas famílias
semi-desamparadas.
Agora o senhor, trabalhador de 44 horas semanais de batente
(fora os bicos), calo na mão, patrão enjoado, salário mínimo e sem
carteira assinada, como é que o senhor tem cara pra exigir empenho,
eficiência, estabilidade emocional, refinamento técnico e mais um
monte de outras coisas de atletas sacrificados como os de que
dispomos?
Quando os pais e amigos usavam os apelidos daqueles
jogadores do passado para referirem-se às crianças havia, com certeza,
um elogio expresso, um desejo de que o garoto jogasse como aquele
Cláudio de Lucena Neto

craque. Era uma alcunha que ele envergava com orgulho. Hoje,
definitivamente, não temos do que nos orgulhar. Os valores
individuais – sofríveis – têm um impacto risível no resultado da equipe
- futebol lembremos, é um esporte de equipe, o que significa que a
quantidade de embaixadas que Denilson consegue fazer não implica
em qualquer tipo de vantagem frente aos adversários.
Dá até pra imaginar a decepção, daqui a pouco tempo, do
garoto, todo animado, que volta correndo pra casa e conta ao pai o
que aconteceu lá na sua escolinha de futebol – estabelecimento onde
se ensina a jogar bola que, pelo seu caráter de utilidade pública,
deveria receber subsídios governamentais no Brasil. Emocionado,
revela que já está sendo chamado de Beletti, e que seu professor
disse que Beletti havia sido um jogador da seleção.
Ao saber, da boca do seu próprio pai, dos grandes feitos do
tal Beletti o menino volta à escolinha, injuriado, gritando:
- Beletti é a mãe! Beletti é a mãe!

(Julho de 2001)

26
Faltou Freio

Paixão nacional?

Bem faz Ariano Suassuna, sem temer as convenções e sem


se preocupar em pôr-se contrário à maioria - aquela, do Nelson
Rodrigues - quando o que conta são os seus posicionamentos pes-
soais. E não falo de grandes temas de debate nacional, não. São prefe-
rências pessoais, mesmo.
27
Cafezinho? Odeia. Qual é o problema? E as razões são as
mais simples. Frio, não tem graça; quente, queima a língua. Troço
mais complicado...
Viajar? Detesta, não suporta. Espera anos para participar
de um evento ou ver um espetáculo, evitando ir à Montanha, sempre
na esperança de que um dia a Montanha venha a Maomé. Pois é:
para Ariano, cafezinho é horrível; viajar, um suplício.
E sabe do que mais? Eu odeio carro. É isso aí! Pronto. Falei.
Concordo que nesse malquerer todo, tem muito do fato de
que sempre possuí fubicas risíveis, meios de transporte de dar dó a
Cláudio de Lucena Neto

qualquer habitante do leste europeu pós-muro. Não importa. O que


sei é que, no estágio em que estou, nem se fosse presenteado com
um bólido de última geração do melhor fabricante de automóveis
voltaria a ter gosto por essas máquinas. Como dizem nas calçadas
desta nossa terra, tomei abuso...
Iniciando a minha curta carreira de possuidor de automóvel,
após uma carreira, para a minha felicidade, ainda mais curta, de
motociclista, surge na minha vida Rolando Veras. Rolando era um
Fusca 79 cor-de-burro-quando-foge, que foi alcunhado desta carinhosa
forma em homenagem ao corredor equatoriano homônimo, de
canelas impressionantemente esqueléticas que, numa daquelas sur-
presas que só o esporte proporciona, ganhou a corrida da São Silvestre
umas tantas vezes.
Achei que havia feito um grande negócio saindo de uma
moto 125 cilindradas para um carro, que se não era novo pelo menos
podia carregar as minhas coisas, levar a minha feira...
E levou. Por várias vezes ele levou o dinheiro da feira em
peças, o tempo do estudo em oficinas e a paciência do trabalho em
defeitos mecânicos, os populares pregos. Fiquei sem nada. De Rolan-
do, só me restam as inesquecíveis lembranças de haver perdido o
casamento da minha irmã, quando fiquei no meio do caminho, do
fogo que queimou o motor e que, como o Fusca tem aquela jogada
genial do motor na parte de trás, só foi percebido quando minha vida
28 já tinha sido suficientemente exposta a perigo real, e das incontáveis
vezes em que ele me aparecia com a jocosa surpresa de substituir,
por conta e risco próprios, o lugar da segunda marcha pela ré, compro-
metendo inúmeras caixas de marcha e, como sempre, o meu sofrido
bolso.
Vendi-o – ah, a vingança! - a um cantor de Aroeiras. Que
Deus os tenha.
O fato de que eu odeio carros, aliás, não constitui qualquer
novidade para aqueles com quem convivo. Todos sabem que, na
remota possibilidade de que, um belo dia, o dinheiro pare de correr
para longe de mim como o diabo corre da cruz, um dos poucos
excessos a que me permitirei será o de ter um motorista. Não resolve
Faltou Freio

o meu problema mas me tirando do contato direto com o volante


pelo menos eu terei a impressão de que faço menos parte desse
abominável jogo urbano.
Não me recordo bem quem foi que inventou a paixão do
brasileiro por automóveis, a não ser por uma vaga lembrança de uma
campanha publicitária de conhecida rede de postos de gasolina -
baseada, portanto, em fatos não necessariamente reais. Para ser franco,
quem suporta o irritante tráfego das nossas grandes cidades? Quem
está disposto a enfrentar o perigo de parar o carro a cada sinal de
trânsito? Até quando o mundo vai ceder em indexar as economias
pelos combustíveis? Quanto custam os engarrafamentos, os acidentes,
as perdas, os assaltos, a conservação das rodovias?
Na falta de uma opção mais adequada para irmos tocando
o nosso dia-a-dia, não encontramos coragem para admitir a falência
do nosso pobre sistema de transportes, que já deu o que tinha de dar.
Embora sinta-se, inicialmente, nas cidades de maior porte, será visível
dentro em pouco em toda parte, como já apontou em genial ensaio
Roberto Pompeu de Toledo, a respeito de que logo teremos que optar
entre os carros ou a convivência dentro de níveis aceitáveis de
urbanidade.
E já que falo em Suassuna, deveria era falar com um outro
Suassuna, que parece ter encontrado uma inventiva solução para
grande parte dos problemas que aqui exponho, tomando a
sapientíssima decisão de locomover-se valendo-se de um outro meio 29
de transporte, que costuma causar muito menos dor de cabeça em
seus usuários, que é o helicóptero. Se bem que isto já seria uma outra
história, pelo que é melhor que fique por aqui.
Além disso, vai que o espírito de Ariano baixa em mim de
vez e eu começo a falar a respeito de um monte de coisa que eu e
muita gente também não gosta, não tolera, não admite, mas que não
é pra se falar assim, em público, não...

(Maio de 2001)
Faltou Freio

Fina prosódia

É difícil encontrar entre acadêmicos, entusiastas e oráculos


de botequim alguém que não ache a língua portuguesa complicada.
Flexões das mais variadas formas, exceções indomáveis, a virtual
impossibilidade de controlar todas as construções, o vocabulário
formidavelmente rico e extenso. Não. Definitivamente, o desafio de
bem expressar-se em português não é dos mais simples. 31
Como se isso não bastasse, o idioma está sob o ataque
perpétuo de pagodeiros, apresentadores e outros répteis, digo, criaturas
de menor potencial ofensivo que a cada pronunciamento solene
invariavelmente importunam o merecido descanso de Camões, cujos
restos mortais devem, então, sofrer contrações e espasmos os mais
terríveis. Que o bom Deus o tenha. Camões, ô pá.
Especificamente em relação ao poder e à magia das palavras
é fantástico o quanto as nossas podem dizer, expressar, significar
por si sós, por sua mera pronúncia e sonoridade, sem que seja
necessário o socorro de dicionários ou gramáticas. A opulência e a
Cláudio de Lucena Neto

fartura de bunda, é um bom exemplo. Dizem os mais entendidos


(não que eu não entenda de bunda, mas reconhecer a importância de
gente com mais experiência no ramo, convenhamos, é fundamental)
que seria impossível que bunda significasse outra coisa. Corre
inclusive a tese de que a notória paixão nacional por esse adorável
regaço da geografia feminina originou-se do profundo prazer que se
extrai ao pronunciar a palavra, que parece se estender, ressoar, perma-
necer no ar indefinidamente. Buunn... (perde-se no infinito)... da.
Pronuncia-se com toda a boca. Que é gostoso, isso é. A palavra, ô pá.

Há outras palavras, contudo, que poderiam ser abolidas,


banidas das páginas de nossos livros, sem que isso representasse
qualquer perda, do ponto de vista estético para a língua, digo, idioma.
O notável Luís Fernando Veríssimo elegeu seborréia. De fato, não
lhe falta razão. A palavra é feíssima (o superlativo é dele mesmo).
Digo, contudo, em ousadia sem precedentes, discordando do
fenomenal gaúcho, que deferimento é ainda mais repugnante.

Imaginem a indefectível frase ao final dos requerimentos


formais: espera deferimento. Que coisa dura, seca, horrível! Parece
uma daquelas doenças assombrosas cujo nome nossas avós evitavam
pronunciar pois já era forma mais do que suficiente para dar início
ao irreversível processo de contágio.

Por fim, há aqueles vocábulos particularmente difíceis de


serem pronunciados, que extraem de seu usuário o máximo de
32 controle, de familiaridade, de domínio do idioma. Após uma
observação de campo séria, bem conduzida e que seguiu rígidos
critérios científicos, posso afirmar convictamente que hoje, a palavra
mais difícil da língua portuguesa é, sem qualquer sombra de dúvida,
drive-thru.

O d vai sendo pronunciado junto com um r que vem rugindo


de profundezas guturais. A língua enrola como durante uma
convulsão das boas. O ái segue-se imediatamente e logo atrás vem o
v, somente o v, sem o e, porque não se pode pronunciar a palavra até
o final. Pausa. Descanso. Fase 1 cumprida. O restante deve ser bem
estudado. É apenas uma sílaba. Há uma única chance, que não pode
ser desperdiçada. O th já seria suficientemente dúbio e preocupante.
Faltou Freio

Mas não. O sofrimento seria pouco. Ele vem acompanhado de um r,


que reduz as chances de sucesso. O th deve ser pronunciado junto
com o rugido, e o u deve vir logo após, acentuando o final, mais ou
menos como um espirro... Thru! Saúde.

A desvantagem dessas palavras de fina prosódia é que o


charme que elas constroem ao seu redor encoraja o seu uso indis-
criminado, prolongado e muitas vezes indevido. Começam a aparecer
drive-thrus (acredito ser essa a forma plural correta) por toda a parte.
Drive-thru de lavanderia, drive-thru de revelação de fotos, drive-thru
de banco, drive-thru de tudo quanto é estabelecimento. E quando o
pessoal de casa pergunta onde você esteve, tem início a maratona da
pronúncia.

A situação ainda piora consideravelmente se você foi a um


drive-thru de fast-food. Se a fast-food ainda está quente na sua mouth,
digo, boca, é muito provável – e por que não dizer compreensível –
que você não consiga suportar o esforço da pronúncia, o que
certamente pode vir a ocasionar um desastre de proporções cataclís-
micas, quando você expelir o conteúdo de sua boca – a fast-food –
em seu interlocutor. E se a fast-food já foi engolida, desastre similar
pode ocorrer já que a pronúncia, de tão complicada, tende a mobilizar
músculos de diversas partes do corpo, principalmente do estômago,
provocando a regurgitação da fast-food e a sua conseqüente expulsão,
da mesma forma, sobre o seu interlocutor.

Ainda bem que no Brasil se consegue com relativa facilidade 33


construir uma terminologia adequada, apropriada para representar
as novelties que a modernidade traz. Imagine o caro leitor se fôssemos
obrigados a descrever as coisas, os lugares e as ações em uma língua
estranha, à qual não estamos acostumados e cuja sonoridade foge
àquela que disciplinou os nossos ouvidos.

Quem seria capaz, enfim, de me compreender se eu


chegasse em casa de repente, gritando desesperadamente que o rato
(mouse) do caderno (notebook) tinha dado defeito, e que eu não
poderia resolver o besouro (bug) do programa sem ir até o centro de
compras (esse é moleza!) mais próximo? E que no caminho de volta
pra casa a gente podia pegar um sanduíche de carne moída prensada
Cláudio de Lucena Neto

(hamburguer) com uma coca dieta (?) pra fazer uma hora feliz (happy–
hour)? E pra evitar mais atraso a gente podia comprar o lanche no
passe-e-pegue?

Não!Tem que ser no drive-thru! Saúde…

(Agosto de 2002)

34
Faltou Freio

Dez razões para o terror


vir pela América

1. Os Estados Unidos são a nação mais poderosa do mundo.


No plano político, dominam as decisões tomadas no cenário inter-
nacional. Controlam as engrenagens financeiras que movem o globo.
Têm poderio bélico temível, imenso, em todos os sentidos. É até
compreensível que o seu cidadão comum acredite que todos estão
aos seus pés. Seus governantes, contudo, têm obrigação, pelo bem 35
de seu próprio povo, de enxergar alguns milímetros adiante de seus
narizes, e entender o papel que desempenham e o alvo que
representam frente à comunidade internacional.
2. O Presidente desta poderosa nação é um Jeca, que ador-
meceu administrando uma grande fazenda, e acordou no comando
das forças armadas mais bem equipadas do planeta e de um PIB de
mais de 7 trilhões de dólares. Um homem de raciocínio restrito e
obtuso, que não consegue compreender porque há países onde a língua
oficial não é o inglês, onde a moeda oficial não é o dólar e onde a
bebida oficial não é Coke. Um governante (?) que vem mostrando
graça e sutileza comparáveis às de um rinoceronte numa loja de
Cláudio de Lucena Neto

cristais para conduzir os assuntos de interesse de um mundo que –


aceite ele ou não – é o mesmo onde estão e onde terão que (sobre)
viver os Estados Unidos, pelo menos até que encontrem lugar melhor.
3. É possível que uma nação submeta todas as outras aos
seus interesses por algum tempo, ou que submeta algumas nações
durante todo o tempo, mas fazer todos os povos do mundo baixarem
a cabeça durante todo o tempo é – comprovadamente – impossível.
Todos sabíamos que um dia iria aparecer um louco, ou um bando
deles, que iria simplesmente se negar a aquiescer, que iria contestar e
inadmitir tudo, sob qualquer ameaça. Apareceram.
4. A maior ameaça que os Estados Unidos fazem aos res-
ponsáveis pelos ataques é a morte. Ora, a morte, no transcorrer da
jihad, é a glória, a honra maior para quem crê nas doutrinas funda-
mentalistas radicais. Mais do que homenagear, a morte torna o terro-
rista um símbolo, um ícone, o mártir de que tanto precisam. Matá-
los, pura e simplesmente, é atirar no próprio pé.
5. Nunca houve ataque a solo americano. A comparação
com o ataque de 1941 é infeliz. Pearl Harbor não conta. Não era
uma casa de shows, um parque de diversões ou um estádio de futebol.
Não se esperava nada ali além de um ataque. Se foram pegos de sur-
presa é outra história. Mas era a guerra. Nova Iorque, ao contrário, é
o american dream, a festejada terra das oportunidades. O país estava,
com efeito, pronto para neutralizar qualquer arma, de qualquer natu-
36 reza, desde que não fosse um míssil civil, gigantesco e armado com
dezenas de cidadãos americanos. Há 200 anos o país se prepara para
um ataque a seus domínios territoriais. Esse foi o primeiro. Fazer
com que o sistema de defesa americano tivesse um índice de falha
de 100% era, com certeza, uma possibilidade tentadora. Conseguiram.
6. Quanto maior o adversário, maior a queda. Sabia-se que
a humilhação infligida seria imensa. O mais miserável dos homens
jamais se sentiu tão ultrajado como o mais prepotente dos ameri-
canos. Já se vai uma semana, a destruição está nas TVs de todo o
mundo, o império, entre urros e rugidos, ainda treme seriamente, e
eles nem sequer sabem – leia-se, têm provas – quem foi!
7. As últimas grandes conferências mundiais que trataram
Faltou Freio

de temas de interesse de todas as nações foram ignoradas pelos


americanos. As delegações simplesmente viraram as costas e des-
denharam os debates e as negociações, num sinal, mais do que de
desprezo, de falta da mais elementar educação doméstica. Até o
mais bronco dos texanos sabia que nem todo mundo levaria desaforo
para casa para sempre.
8. O clima de pânico constante que tomou as cidades norte-
americanas não é nem mais nem menos do que o clima em que
vivem aquelas regiões do Oriente Médio que hoje exportam o terror.
Há décadas o palestino adormece sem a mínima certeza de que vai
acordar no dia seguinte. A corrida armamentista e o comércio bélico,
dos quais os Estados Unidos estão entre os maiores beneficiários,
têm grande parcela de responsabilidade. Determinadas práticas e
idéias precisam ser revistas.
9. O poder de causar desequilíbrio e insegurança financeira
no mundo são também formas – crudelíssimas – de terrorismo. Estão
acessíveis apenas aos grandes conglomerados econômicos e aos
estados mais ricos. Não causam violência física, direta, visível, exte-
riorizada, o que representa um perigo ainda maior porque quanto
menos agressividade aparentam mais toleráveis ficam aos olhos da
população e mais ódio contido geram. Determinadas práticas e idéias
precisam, definitivamente, ser revistas. Alguém duvida?
10. Os símbolos passaram a ser mais importantes do que a
vida. 37
Entretanto, assassinar do anonimato – suprema covardia –
milhares de pessoas inocentes é uma péssima maneira de começar a
contestar o que está errado.
Desculpem a falta de bom-humor. A intolerância não o
admite.

(Setembro de 2001)
Faltou Freio

O namoradinho da minha filha

Acompanhei de perto o parto que foi a escolha e a


nomeação do novo técnico da seleção brasileira e os primeiros dias
do seu reinado, unânime e absoluto à frente daquilo que, em um
longínquo dia, foi o orgulho da nação.
Por razões as mais diversas e menos sérias possíveis, o 39
anúncio de um novo técnico do Brasil está para o país, mais ou menos,
como o anúncio de um novo Papa está para a comunidade católica -
excetuando o fato de que Ricardo Teixeira e a Nike ainda não man-
dam no Papa e, mesmo assim, só porque o Vaticano ainda não tem
um time competitivo.
Esse fanatismo invariavelmente nos faz ter a impressão de
que gozamos de determinados direitos, de que podemos tratar o
escolhido com uma certa intimidade que, de fato, não temos. Acredi-
tamos poder cobrar, xingar e reclamar da mesma maneira informal
que o fazemos com os nossos colegas de turma, companheiros de
mesa, tios e amigos.
Cláudio de Lucena Neto

O brasileiro tem uma tendência irreversível a tratar o técnico


da seleção como quem trata o namorado da filha. Afinal, a seleção é
mesmo um pouco filha de todo mundo e não é pra qualquer um
ficar passando a mão assim, não - obviamente, com todo respeito,
que eu também tenho namorada, irmãs, primas e sobrinha. O ciúme,
a princípio, corrói; é inevitável.
Mas se com o tempo a gente vê que o sujeito leva jeito pra
coisa, trata o nosso bebê com carinho, é sincero, honesto, simples e,
se acima de tudo, ela está se dando bem com ele, é como se a gente
tivesse recebido um outro filho, que a gente passa - e aprende - a
amar da mesma forma.
Talvez alguém ache que isso é um exagero mas o fato é que
tem tanto tempo que a gente não arruma um namorado legal pra
nossa filha que ninguém mais lembra como é gostoso ter um cara
assim na família.
Claro! Desde o velho Telê Santana que não sabemos o que
é estar de bem com o namoradinho de nossa filha. Paulo Roberto
Falcão, muita elegância, e Carlos Alberto Silva, muita mineirice,
passaram despercebidos. Já Sebastião Lazzaronni - bata três vezes
no primeiro pedaço de madeira que vir na frente - , com certeza, não
passou despercebido. Mais um ou outro que sequer chegou a namorar
na sala...
O Parreira é caso especial a ser estudado porque conseguiu
40 desagradar até a mãe - and did it my way... O Velho Lobo jamais foi
- jamais será - unanimidade, embora tenha considerável identificação
com o torcedor.
O Luxemburgo passou a olhar de forma diferente do
brasileiro, a falar de forma diferente do brasileiro, a pensar de forma
diferente do brasileiro, a comandar e a tomar atitudes de forma dife-
rente do brasileiro, a vestir roupas diferentes daquelas dos brasileiros,
e qualquer caolho veria que ele se afastava, cada vez mais, do torcedor
brasileiro. O Leão ficou dez vezes mais distante, com vinte vezes
menos resultados.
Mas o Felipão chega idolatrado, aplaudido, aclamado. Vi
Faltou Freio

uns dois ou três programas de entrevistas onde o homem foi recebido


com flores, assovios, entusiasmo, contando com um apoio que há
tempos não se via no país.
O desespero da situação atual ajuda, é claro. Mas a unani-
midade do Felipão nasce mais em cima. Nasce no olho. Na coragem
de quem não tem medo de falar sobre o que deu errado. Em uma
família que parece com a família do brasileiro. O torcedor brasileiro
voltou a torcer por um técnico porque o técnico voltou a ser um
torcedor brasileiro, que grita, que empurra, que xinga, que faz cara
feia, que reclama, que sofre com sinceridade, mas que apóia, que
encoraja, que vibra e que nas (poucas) vezes em que sorri, sorri de
peito aberto, honestamente, com o coração, exatamente como o
torcedor brasileiro.
O namoradinho dela vem jantar na nossa casa pela primeira
vez no dia 1º de julho, e o prato é carregado. Faz muito tempo que
não torço, nem faço o menor esforço pra ela arrumar um namoradinho
que preste.
Acabo de abrir uma exceção. Tomara que ele não me
desaponte.

(Junho de 2001)

41
Faltou Freio

O apagão WAP

Fantástica essa história de WAP. O sujeito aperta um botão


e recebe a listagem dos melhores restaurantes da região, sugestões
dos últimos lançamentos literários, das melhores locadoras ou dos
filmes em cartaz. Ou até mesmo não aperta botão nenhum, e mesmo
assim ainda recebe a cotação do dólar e de ações do mercado finan-
ceiro, em tempo real, durante a gritaria histérica dos operadores. 43
A gama de serviços que podem ser oferecidos através dessa
tecnologia é praticamente infindável. Já serviu, inclusive, como aliada
da própria Justiça, nas eleições em Santa Catarina e no Paraná, e
tornou possível o acompanhamento processual, por exemplo, junto
ao Tribunal de Justiça de Sergipe. É mole? Judiciário WAP! Nem
Isaac Asimov, com toda a viagem de psicodelia científica.

A minha operadora de telefone celular tem um convênio


com um desses grandes portais de Internet, por meio do qual eu
recebo as principais notícias do dia, sem precisar recorrer aos meios,
digamos, convencionais, de informação e comunicação.
Cláudio de Lucena Neto

Isso tem um efeito muito positivo. Já me sinto até em


condições de sobreviver sem o Boris-Casoy-Isso-É-Uma-Vergonha
ou o William-Boa-Noite-Bonner. Sem a Ana Paula Padrão, conve-
nhamos, é bem mais difícil, como diria, inclusive, o Presidente da
República... (se alguém disser que eu escrevi isso, morro jurando
que é mentira!). O Renato Machado também está no rol dos indispen-
sáveis, divertidíssimo, de uns três anos pra cá, tendo se transformado
numa espécie de Sílvio Luís cult.
Agora, o que acho realmente um espetáculo é a variedade
de reações que podem ocorrer quando nos deparamos com as notícias
que chegam durante o dia, via WAP, e a semelhança entre o destino
que damos a elas e o destino que gostaríamos que elas, de fato, tives-
sem. É um pouco como brincar de Todo-Poderoso.
Apagão é inevitável no Nordeste, diz Parente.
Opções:
Próxima - Pode ir passando que essa não tem nem mais
graça!
Guga derrota Corretja e é Tri em Roland Garros.
Opções:
Arquivar - Deseja armazenar essa mensagem? - Armazene,
sim, afinal, alguma coisa - nem que seja o ópio - tem que escapar,
44 não é verdade?
Primeira noite de amor de Cristal e Antônio é um sucesso.
Opções:
Ignorar - Essa e todas as outras do gênero, que eu tenho
mais o que fazer! Era só o que me faltava...
Homem mata amigo a machadadas em Jacareí.
Opções:
É comigo? Não?
Próxima.
Faltou Freio

Seleção dá vexame e perde para a Austrália.


Opções:
Retornar - O mais rápido possível antes que no grande
deserto de Gibson nasça capim, principal fonte alimentar do Leão e
dos demais animais que eram por ele comandados, e que eles
resolvam ficar por lá mesmo - se bem que, de qualquer forma, a
Austrália dificilmente iria aceitá-los. É que o rebanho eqüino por lá
já alcançou níveis satisfatórios. Ah, uma jaula...
Escândalo foge ao controle e ACM renuncia.
Opções:
Apagar - Tentando dar um basta nesse tipo de compor-
tamento, vamos dar-lhe um apagão definitivo.
Deseja realmente apagar essa mensagem?
(Preciosos segundos durante os quais refletimos a respeito
do que fazer diante da situação...)
Pensando bem, arquive essa aí também, pra que nas próxi-
mas eleições (e nos escândalos que se seguirem) a gente não fique
reclamando que é porque o povo brasileiro não tem memória.

(Junho de 2001) 45
Faltou Freio

Ême ci o quê?

Existe um gênero musical que temos relutado muito em


enxergar mas que, diante dos fatos - contra os quais, reza um vali-
díssimo brocardo latino, não há argumentos - é imprescindível que
seja definido, analisado e até criticado como tal, que é a música de
divertimento.
47
Não é necessário ressaltar a importância da música, quando
ela assume o papel de manifestação cultural, quando ela é a voz de
uma geração, o arauto de uma ideologia, o porta-voz de protestos e
indignação. Tudo isso – é óbvio – é dever de quem faz música.
Que música?
Parece-me que a classificação dos gêneros musicais, normal-
mente bipartida entre erudita e popular e, mais recentemente,
redividida entre diversos e incontáveis gêneros, não reflete mais o
que ocorre com o mercado musical.
Também me parece igualmente incoerente que estejamos
Cláudio de Lucena Neto

esperando o surgimento, a cada temporada, de artistas da música


arte, que escrevam como Chico Buarque, instrumentistas virtuosos
como Egberto Gismonti, criadores natos como Hermeto Pascoal,
hermético, aliás, por natureza.
Houve, de fato, esse tempo. Quando? Quando o acesso a
tudo era mais restrito. Quando os meios de se divulgar música eram
mais caros, quando as rádios eram mais inacessíveis, quando gravar
o trabalho era um processo técnico melindroso e, por conseqüência,
caríssimo, quando os preços dos aparelhos de rádio e de TV eram
proibitivos, e o público atingido era, devido a todos esses aspectos,
mais seleto e muito mais exigente. A música e as pessoas que faziam
música tinham que dizer algo, que acrescentar algo.
O Império contra-ataca, e hoje a popularização de tudo isso
inverteu o quadro anterior. Os gêneros que – não nos enganemos –
sempre subexistiram à margem de quem tinha acesso à divulgação
apareceram. Rádio, TV e aparelho para tocar CD são gêneros de
primeira necessidade. Como o público potencial desse tipo de produto
musical é muito maior do que o anterior, é possível a promoção de
eventos de massa, a audiência dos programas cresce de forma verti-
ginosa, as vendas estouram, formatam-se revistas, vendem-se fofocas.
As cifras envolvidas acompanham este movimento e, com muito
dinheiro envolvido, o controle essencial ao negócio passa a ser
exercido de forma muito mais ostensiva, fácil e eficaz.
O gênero que surgiu com esta nova abordagem do mercado
48 musical, tem a única finalidade de divertir, de entreter, de distrair o
público-alvo. Não precisa apresentar qualquer característica em espe-
cial, simplesmente porque esse novo gênero não precisa dizer nada,
não precisa acrescentar nada, não precisa soar, especificamente, de
uma ou de outra forma. Basta apenas que ele mova a roda da fortuna.
É uma tendência que resolve que estilo deverá ser a galinha
dos ovos de ouro de cada estação, criando e maquiando os produtos
que serão os símbolos da onda e detonando um processo cancerígeno
alucinante de clonagem dos produtos principais, que pode ser obser-
vado com muita facilidade por quem participa do processo de pré-
produção dos artistas que surgem, sempre inspirados pela nova onda
– e decepcionados, seis meses depois.
Faltou Freio

Do momento em que isso foi estabelecido em diante tive-


mos aulas tenebrosas de história, com a Índia se apaixonando por
Cabral e levando a Gueixa para o Havaí – por favor, corrijam-me se
houver confundido alguma passagem – uma pobreza harmônica e
melódica infinita, uma timbragem pavorosa nas vozes dos nossos
best-sellers, a bundalização de todos – repito, todos – os nossos
ritmos e sub-ritmos, até atingirmos o último degrau do subsolo do
poço, abolindo a harmonia e a melodia – que alguns artistas, para
falar a verdade, já tinham abolido há muito tempo – e abraçando o
movimento selvagem do Tigrão, do Sapão e do resto desta indigesta
fauna funk, Eme Ci e etc.
É simbólico o que ocorreu neste Carnaval, quando o enla-
tado marketing baiano, o folclore amazônico e até mesmo o autismo
pernambucano sucumbiram ao dito felino, desmusicalizando e
rebundalizando as suas festas.
Não discordo da idéia do entretenimento, de que a música
nem sempre deve ser obrigada a dizer alguma coisa, de que deve
existir música com a única finalidade de divertir, de distrair. Além
disso o Brasil é um país cujo clima pede, exige a dança, a sensualidade,
o sincretismo musical. Para finalizar, a música do povo, de todas as
camadas sociais, deve ter o seu espaço.
Este espaço, contudo, deve ser dado também a quem faz a
música que quer sobreviver ao verão, mais elaborada, dizendo,
acrescentando alguma coisa. Pela ausência de artistas em quem se
espelhar é visível que a formação e a produção dos novos nomes
49
deste gênero já deixam muito a desejar.
O meu medo é unicamente o de que, com tanto dinheiro e
atenção envolvidos na produção da música de entretenimento, a gente
esqueça de que a música também tem outra finalidade, tão ou ainda
mais nobre que a diversão: a de dar um recado para quem está ouvindo
e a de deixar uma mensagem para quem está por vir.
É bomba! – ou o Brasil acaba com o funk ou o funk acaba
com o Brasil!
(Março de 2001)
Faltou Freio

O Soldado 6362
Há homens que lutam por um dia, e são
importantes. Há homens que lutam por
muitos dias, e são muito importantes. Mas
há aqueles homens que lutam por uma vida
inteira. Esses são os indispensáveis.
Berthold Brecht

Dificilmente haverei de me deparar com situação tão


delicada quanto esta missão que, na qualidade de representante dos
estudantes de direito, me foi confiada. De um lado, a honra
indescritível e o convite irrecusável para que tomasse parte em uma
homenagem que, com a devida aquiescência do Exmo. Sr. Presidente
da Câmara dos Vereadores, esta Casa do Povo deve à figura e à 51
memória de seu patrono e hoje especialmente à sua família. De outro
lado, a imensa responsabilidade de colocar-me ao lado do Dr. Inácio
Jário e do Professor Carlos Escorel, pessoas que certamente muito
têm a dizer, a contar, a analisar e a lembrar a respeito deste grande
homem - Félix Araújo - sem que eu, a princípio, tenha subsídios
históricos ou acadêmicos suficientes para acrescentar brilho a esta
solenidade.
Egresso do Centro de Ciências e Tecnologia da
Universidade Federal da Paraíba, mundo dos números e das
manipulações exatas que, embora mágicas e encantadoras são, no
fundo, um tanto quanto frias e demasiadamente racionais,
Cláudio de Lucena Neto

desembarquei já não mais adolescente no Curso de Direito da Univer-


sidade Estadual da Paraíba. Entre os meus colegas de faculdade lá
estava o amigo Félix Araújo Neto, com quem tenho a oportunidade
de dividir, até hoje, as inúmeras dificuldades na trilha desta carreira
tão bela e de comemorar as realizações e as conquistas que, queira
Deus, haverão de ser muitas.
Tragados pela paixão primeira do estudante das ciências
jurídicas – Direito Penal e Criminologia – tivemos o privilégio de
contar com inesquecíveis lições madrugada adentro do mestre Félix
Araújo Filho. Eu, na qualidade de discípulo; meu amigo, na qualidade
também de filho. De forma extremamente rigorosa, exigente, mas
falando de maneira apaixonada e sobretudo apaixonante, sorvemos,
confesso, pouco da ciência penal mas tudo, absolutamente tudo, a
respeito da vontade de aprender, do prazer do conhecimento.
Foi naquele gabinete, verdadeiro repositório da história de
Campina Grande que, para mim, Félix Araújo foi deixando de ser a
homenagem, o monumento, a rua, a praça, e transformando-se em
uma das mais fascinantes histórias de liderança, de sabedoria, de
comprometimento, de vida pública e de cidadania de que já tive
notícia. Ao mesmo tempo, no instante em que aqueles recortes de
realidade, aquelas evidências de luta, de sofrimento, mas também
de glória e de reconhecimento popular tocavam minhas mãos, eu
me sentia envergonhado até por somente então começar a compre-
ender a dimensão daquele personagem.
52
A figura histórica, a vida, a influência do pensamento e da
atuação política e social de Félix Araújo na sociedade paraibana são
aspectos que os dois mestres presentes podem, com extrema proprie-
dade e domínio, ressaltar e comentar.
Assim, procurei ansiosamente algum aspecto da história
do homenageado que não fosse diminuído pelo singelo comentário
de um estudante. Veio-me às mãos, como resposta, o discurso pro-
ferido pelo Deputado Evaldo Gonçalves na Assembléia Legislativa
da Paraíba há exatos 20 anos, cujo título, “Félix Araújo, O Poeta e o
Líder”, apontava a direção a seguir neste momento, afastando-me
da abordagem meramente fática que me é nitidamente inviável.
Faltou Freio

Perfeito: a poesia, indelével ao passar dos anos, conservando


sua essência, sua alma, como se a ação do tempo sobre ela nenhum
efeito tivesse; a noção de líder, esta imortalizada pela história, eterna
no coração do povo que hoje lota as dependências desta Casa.
Adoraria falar sobre o poeta, um dos mais completos que
esta terra já viu. Este poeta que cantou a sua Cabaceiras querida e
com igual beleza as manifestações da natureza e os feitos dos homens,
na perfeição da rima, da métrica, da balada, dos textos livres e corridos
e da prosa. Sintetiza assim o Deputado Evaldo Gonçalves a poesia
de Félix Araújo, passagem que poderia com o mesmo sucesso
sintetizar a sua vida:
Percorreu todos os caminhos; combateu todos os combates; fez todo
o bem possível, porque nunca se esqueceu de que sua missão nesta
terra haveria de ser a de um justo.

O poeta que aos 18 anos de idade concebeu “Tamar”, obra


de raríssimo valor na qual consegue, sob o pano de fundo do romance
juvenil que se desenrola, encontrar espaço para de forma
extremamente hábil dar vazão à sua índole de homem social, de
combatente, muito embora “Tamar”, no dizer de Baldomiro Souto,
seja um livro inocentíssimo. Uma profissão de fé no Amor.
Olho o mundo e vejo o desfile imenso das dores, das alegrias, das
misérias, das grandezas, do tudo e do nada em sua perpétua sucessão.

E nesse jogo de contrastes, como dulcificando a realidade amarga, a


asa do amor roçando a face da terra é a única razão de se aceitar a
53
vida e se querer existir.

Que seria do mundo sem o Amor?

Que seria do mundo sem o amor? Sem a Fraternidade,


doutrina e prática do combate que foi a vida de Félix Araújo?
Fraternidade, em verdade, foi a sua grande obra. Não a sua grande
obra literária mas sua grande obra de vida. Curiosamente, foi fiel à
sua obra. Digo curiosamente em virtude de que hoje é absolutamente
natural defender determinadas idéias e tomar atitudes em sentido
diametralmente oposto. A fidelidade ideológica é coisa dos homens
do passado. O poeta Félix buscou durante toda a sua existência a
Cláudio de Lucena Neto

realização, a materialização daquilo em acreditava, e no que sua mão


escrevia.
Infelizmente, é pouco o que eu poderia dizer sobre o poeta;
e é muito o que diz a sua poesia para ser resumida nestes breves
minutos.
Poderia tentar então delinear a figura do grande líder. Mas é
com tristeza que constato que me faltam parâmetros. Tenho pouca
idade, e posso dizer apenas que os últimos homens que surgiram
como grandes lideranças no país renunciaram, foram cassados, ou
estão sob ameaça de cassação, sob graves acusações de corrupção,
dentre outras ainda mais graves. Esta não é a minha concepção de
líder.
Vejo o líder como um soldado que enfrenta sem temor e
com obstinação a dureza do campo de batalha; como uma voz que
consegue mobilizar, com o poder sedutor da palavra, as grandes
massas; como um articulador habilidoso, que transita bem nos
círculos de poder, mas que compreende que o poder verdadeiro emana
do povo e por ele é aclamado.
O fato de nascer com acesso aos meios políticos e econô-
micos através dos quais se chega ao poder não descaracteriza o líder.
Mas líder nato é forjado no seio do povo; dele surge, ascende do
nada, em meio a inúmeras dificuldades, contra todas as previsões
razoáveis, e é isso o que o faz ainda mais querido.
54
O Soldado 6362 não recuou diante de qualquer que tenha
sido o desafio. Fosse a intolerância nazi-fascista, fosse a opressão
silenciosa ao mais humilde homem do povo, lá estava ele. Não em
busca da vaidade, não em busca do seu interesse, mas honrando
aqueles a quem servia.
O líder, em verdade, é tanto mais líder quanto mais sente
na carne a necessidade dos seus liderados. A perda do seu querido
Chico Félix, que representou o início de um período dificílimo na
vida de Félix Araújo, e que só não comprometeu a sua formação e a
sua existência por que estamos falando de um homem de uma fibra
à toda prova, deixou-lhe marcas.
Faltou Freio

Quando líder, sabendo da dificuldade e da importância da


educação para o desenvolvimento do país e para a melhoria das
condições de vida do seu povo, chegou a percorrer a cavalo várias
localidades, a levar o material escolar que alimentaria o espírito e a
esperança de muitas crianças. À frente da secretaria de Educação do
Município, empreendeu tremendo esforço para que o homem simples
e o seu filho, ainda mais humilde, pudesse servir-se do bem maior
que um estado pode oferecer ao cidadão: o conhecimento.
De modo que a presença do estudante paraibano, hoje, nesta
Casa de Félix Araújo, ao contrário do que inicialmente eu previa, é
de uma adequação e de uma simbologia impressionantes, o que só
aumenta a minha honra e a minha emoção, enquanto representante
do estudante, ao prestar singela homenagem a um dos vultos de maior
expressividade da nossa história, que foi poeta, que foi homem, que
foi soldado, que foi líder, que foi grande, mas que na essência jamais
deixou que abandonassem o seu coração, sentimentos que animam
e que pulsam com força maior no jovem coração do estudante: o
amor a uma causa, a um ideal e a determinação para atingi-lo.
Nas mãos de um líder nato estas são armas poderosíssimas.
Constituem a única e real ameaça à corrupção, à ditadura, velada ou
não, ao descaso e ao descompromisso.
Esperamos que com estas armas, as mesmas armas de que
se valeu Félix de Souza Araújo em sua cruzada em busca de condições
mais justas, a democracia possa voltar a gerar grandes líderes. 55
O exemplo foi dado com maestria. Estudá-lo, compreendê-
lo e segui-lo, nas palavras simples e sábias da singela obra de Moacyr
Andrade, faz bem ao meu espírito.
(Julho de 2001)
Faltou Freio

Scolarrsson, Buensson,
Ronaldsson e outras frias

Tinha acabado de ver Brasil e Islândia. Partidaço. Estava


emocionado.
Além de muito movimentado, o amistoso pareceu ter sido
muito útil para o bem montado escrete escandinavo, que se preparava
com afinco para a Copa Nórdica, torneio da maior importância, que 57
costuma revelar grandes valores para o futebol mundial.
Como a seleção brasileira, embora não aparente, também
se prepara para um outro torneio, para o qual parece dar bem menos
importância, foi também uma partida válida para testar, testar, testar...
Sem pressa. Afinal, ainda falta tempo suficiente!
Finalmente um adversário à altura do futebol que a seleção
andava apresentando. O entrosamento, o talento individual, a frieza
do futebol e a determinação que vimos na seleção islandesa e na
brasileira foram muito semelhantes. Só que o mais interessante desse
jogo foi o longínquo e esquecido parentesco entre os jogadores das
duas seleções, que passou despercebido por quase todos, muito
Cláudio de Lucena Neto

embora seja mais do que evidente. Basta olhar para os nomes dos
jogadores que fizeram os gols, por exemplo.
Edilsson, descendente direto da antiga família real islandesa,
enfrentou os temíveis defensores nórdicos com coragem de Hamlet.
Conseguiu driblar reiteradas vezes os eletricistas e pintores que com-
punham a zaga adversária, mostrando sua ótima fase.
Andersson Polgasson, mal-acostumado com os adversários
moscas-mortas que vem enfrentando, chutou as duas bolas mais
estranhas da sua vida. Deu sorte. Tinha pela frente o goleiro mais
estranho da sua vida. Resultado: os dois gols mais estranhos de sua
vida.
Klebersson mostrou contra a Bolívia e contra a Islândia ser
um homem de muita criatividade no meio do campo, muito embora
nessas situações duvido que o velho Val Pilar não mostrasse o mesmo
desempenho.
Gilbertsson Silva, com seu jeito mineiro-islandês, vai
conquistando o carinho do treinador, com um forte abraço a cada
gol. Se depender dos gols que Gilbertsson vai fazer contra França,
Argentina, Inglaterra, Itália ou Alemanha, o técnico Luis Felipsson
Scolarrsson tende a ficar cada vez mais carente.
Kakásson, previamente convocado para a Copa do Mundo
por Galvão Buensson para desempenhar o papel do mascote, do
58 garoto-que-ninguém-é-louco-de-botar-pra-jogar, também deixou a sua
marca. Vai lembrar com orgulho do dia em que conseguiu, após
hercúleo esforço, furar o bloqueio islandês.
Há os titulares absolutos, como Juansson, e os certamente
convocados, como Vampetsson que, na verdade, não deram muita
importância ao amistoso a não ser pelo fato de poder ir até Cuiabá,
dar um rolé com a camisa da seleção.
Duas coisas, porém, permanecem inalteradas: a paixão filial
de Galvão Buensson, que assumiu de vez o cargo de auxiliar técnico,
perito médico e psicólogo da seleção, por Ronaldsson, e o fantasma
de Romárisson, também previamente convocado para o mundial
pela mais insuportável campanha global de que já se teve notícia,
Faltou Freio

que dividiu espaço com as mais graves crises políticas e étnicas,


nacionais e internacionais e com os mais relevantes assuntos de
segurança nacional.
Tudo bem. Até a data final de inscrição dos jogadores na
Copa foi alterada, obviamente, para contemplar a recuperação de
Ronaldsson, o Fenômensson, esperada há mais de três anos. O mundo,
a FIFA, e dizem até que alguns fortes patrocinadores o querem na
Copa . Nisso, eu, particularmente, não acredito, porque acho que o
futebol ainda é um esporte sério e independente. O que se há de
fazer? Bota o homem na mala e vamos embora. Transforma a
concentração em um centro de tratamento e bola pra frente. E, aliás,
pensando bem, se for pra levar o Washington...
Portugal também veio. Disseram que foi quase o time de
estréia. Pior pra nós, que vamos ter que voltar a aturar a chatice de
galocha de Rivaldsson e Robertsson Carlos, homens que parecem –
esses, sim – ter vindo do gelo. Qualquer coisa que houvesse, um
pouquinho melhor que fosse, seria melhor, valeria a pena. Pena que
não existe. Não existe mesmo. Vamos tomá-los com um mal
necessário, como um purgante. São atletas que não têm mais vibração,
não têm mais garra, não têm mais brasilidade. Europeizaram demais.
Talvez se encaixassem bem melhor na seleção da Islândia.
E sem pressa, que ainda falta mais de trinta dias...
(Março de 2002)
59
Faltou Freio

Eu sei o que é melhor pra vocês


(O pronunciamento que ele ainda não fez)

Eu sei o que é melhor pra vocês.

É bem provável que vocês não saibam; afinal de contas,


saber dessas coisas é meio que uma coisa de inspiração divina e
Deus, como vocês devem saber, não pode ficar por aí, explicando
tudo pra todo mundo. O círculo de interlocutores do Todo- 61
Poderoso é cada vez mais restrito e, no momento, como vocês já
devem ter percebido, o procurador direto Dele sou eu.

Aliás, procurador não, que procurador sugere alguns


resquícios de legalidade o que, como vocês devem saber, é uma
furada, que nem sempre atende às minhas necessidades. E quando
não se atende às minhas necessidades, não convém questionar
aspectos de legitimidade ou de respeito a leis que não me servem.
Dá-se um jeito de agir por fora, sem ouvir ninguém, bypassando
a diplomacia.

Aliás, diplomacia não, que diplomacia, como vocês já


Cláudio de Lucena Neto

devem saber, é coisa pra desocupado. Vê lá se eu tenho tempo de


ficar esperando deliberações, discussões, reflexões, soluções
colegiadas. Quando tenho pressa, não gosto de empecilhos. Perco
tempo e dinheiro precioso quando insistem pra que eu justifique
ações, que eu apresente provas convincentes das razões que me
levam a adotar determinadas resoluções. O que é que todos têm
a ver com isso? Quem resolve não sou eu? Então? Fundamentos
morais das minhas decisões? É consenso que parece brincadeira...

Aliás, consenso não, que consenso é um negócio muito


difícil. A gente tem que esperar todo mundo falar, tem que dar
atenção ao que os outros pensam, tem até que escutar opiniões
de quem – vê se pode! – acredita poder ter argumentos melhores
que os meus, o que acaba sendo uma coisa muito chata, como a
maioria de vocês deve saber, já que têm que passar por isso.

Aliás, maioria não, que a maioria, como me disseram


que alguém disse lá no Brasil, é burra. Pra falar a verdade, é
desnecessária. Não foi a maioria que me trouxe até aqui. A
maioria não consegue entender que o bom senso está sempre do
meu lado. A maioria não é importante pra mim nem pra meus
aliados. Se a maioria não pode, nem de fato nem de direito, quem
se importa com a maioria?

Só lamento que nem todos vocês tenham sido tão


iluminados quanto eu. Mas não há problema. São poucos os
62 escolhidos, como eu, é claro. E sabendo o que é melhor pra vocês,
eu posso lhes ajudar a conseguir as coisas que vocês não sabem
que precisam e, principalmente, a estimar valores que vocês ainda
não sabem que devem cultivar, como a minha idéia de liberdade,
a minha idéia de segurança e a minha resplandecente verdade.

Naturalmente, como vocês já devem ter notado, esta


ajuda está disponível apenas para o caso de que caso vocês
queiram ou precisem. E é óbvio que eu não tenho o direito de
usar a força contra vocês a não ser que, no exercício do seu livre-
arbítrio, vocês não consigam perceber que sou eu quem decide se
vocês querem ou precisam; que eu sou o único e legítimo
Faltou Freio

representante da razão, do bem, da virtude, da ventura e da


esperança.

E que tanto a espada quanto a balança estão em minhas


mãos.

Afinal de contas, sou eu quem sabe o que é melhor pra


vocês.

(Maio de 2003)

63
Faltou Freio

Falta argentinidade

Um dia, ainda que o nosso distinto presidente contra isso


esteja lutando com todas as suas armas - algumas delas bem menos
legítimas que outras - haverei de me aposentar.
Até lá, se o dinheiro houver parado de correr de mim como
o diabo corre da cruz, dedicarei mais tempo ao esporte, uma das 65
grandes paixões de minha vida.
Obviamente quando falo na necessidade de dinheiro não é
para a prática do esporte, mas para poder acompanhar as competições
de perto, viajar, torcer, gritar, incentivar os atletas, fazer parte, estar
lá e curtir o clima dos grandes eventos esportivos que, imagino eu,
seja permanentemente emocionante. Não deve haver uma oportu-
nidade tão marcante para alguém que é absolutamente apaixonado
por esportes – falo de carteirinha na mão – do que presenciar um
grande encontro dessa natureza.
Durante os jogos Pan-Americanos, agora em Santo Domin-
go, praticamente parei mais uma vez. Contei medalhas, sequei
Cláudio de Lucena Neto

adversários, empurrei atletas brasileiros, rezei, vibrei, torci e,


naturalmente, xinguei bastante, gritei, coloquei em dúvida a honra e
a integridade moral de árbitros e tudo o mais a que tive direito.
E nem adianta falar que para os jogos Pan-Americanos os
paises não enviam seus melhores atletas, que o Pan não representa o
nível real de uma competição internacional, a exemplo dos Jogos
Olímpicos, e blá blá blá. Não é que eu não acredite nisso. Na verdade
eu sei que é assim mesmo, mas não estou nem aí. Quero é torcer.
Torcer e ganhar.
Falando em ganhar, mesmo com toda a dificuldade, com a
ausência dos melhores atletas e com todas as decepções, até que a
nossa delegação deu um bom caldo. Combinado a uma performance
sofrível do Canadá, até que o desempenho dos atletas brasileiros foi
suficiente para brigar pelo posto de terceira potência do esporte no
continente. Não fizemos feio não.
Embora o nosso número de medalhas de ouro não tenha
passado de 30 (mesmo que se comprove que o americano correu
“viajando”), gosto de lembrar aos amigos que tivemos quase uma
centena de campeões pan-americanos graças ao desempenho do nosso
esporte coletivo – uma espécie de prática desportiva que o Rivaldo
desconhece.
As quatro medalhas de ouro, por exemplo, do basquete e
do handebol masculino, e do handebol e do futebol feminino nos
66 renderam mais de sessenta atletas campeões, sem falar em outras
modalidades em que se compete com mais de um atleta (vela, tênis
de mesa, canoagem, revezamentos, e outros). No total, medalharam-
se em Santo Domingo aproximadamente 60% dos atletas brasileiros
o que, a despeito da palhaçada dos discípulos do Bernardinho, é uma
boa marca sob qualquer aspecto.
É claro que isso não torna o Brasil uma potência esportiva,
não nos garante um lugar ao sol no cenário esportivo mundial onde
o buraco, como infelizmente poderemos comprovar nas Olimpíadas,
é bem mais embaixo, nem muito menos serve de consolo para as
verdadeiras mazelas do nosso dia-a-dia porque não cola mais o panis
et circensis. No entanto, como o esporte é obviamente essencial na
Faltou Freio

educação e na manutenção da saúde, um bom desempenho da


delegação do país em uma competição dessa natureza não deixa de
ser um ótimo incentivo à sua prática.
Também não pude deixar de notar que as grandes potências
nunca vão competir. Vão ganhar mesmo. Cuba e os Estados Unidos
tiveram mais medalhas de ouro do que de prata e bronze. A relação
só se inverteu a partir do Canadá e do Brasil, países que já ganharam
bem mais medalhas de prata e de bronze do que de ouro.
Mas, pensando bem, e quem assistiu às competições sabe,
dava pra ter levado mais.
A Argentina, por exemplo, em tese não deveria levar tantas
medalhas assim, e nem brigar, como de fato não brigou, com o Brasil.
Tudo bem que não se deve esquecer que não se trata de um país
qualquer, já que a Argentina tem menos de 5% de analfabetos, metade
de nossa mortalidade infantil, um povo orgulhoso de sua nação, polido,
sofisticado, politizado e em geral bastante agradável e desenvolvido.
É certo que os abutres de lá se revelaram – quem diria! –
incomparavelmente mais ávidos e mais gananciosos do que os nossos
e que a cobiça sequiosa tenha levado o país a uma pindaíba de fazer
medo, o que certamente prejudica o desempenho dos atletas.
Mas é só colocar uma bola na conversa ou falar em alguma
espécie de competição, de disputa, seja valendo o que for, que os
nossos hermanos como que são inundados por hormônios que inibem
a sensatez e a razoabilidade, deixando-os temporariamente privados
67
da condição humana. Selvagerizam-se, barbarizam-se, animalizam-
se no sentido mais grotesco da palavra. Sentem aquela vontade incon-
trolável de vencer, de trucidar, de bater o oponente. Oponente não
que, competindo, argentino não tem oponente nem adversário. Tem
é inimigo mesmo.
E como isso parece ser uma coisa de sangue, de terra, de
nacionalidade mesmo, é impossível deixar de admitir, não sem um
leve desapontamento, que não temos e que não somos assim. Como
sempre, nesse Pan sobrou-nos talento, força, vigor, resistência, cora-
gem, inteligência, habilidade, vontade até, mas faltou argentinidade.
Faltou não. Falta.
Cláudio de Lucena Neto

Nos momentos decisivos, onde a disputa está por um fio,


por um segundo, por um décimo, por uma dose milimétrica de
superação ou por um átimo de determinação, essa tal argentinidade
faz uma senhora diferença. E o que nos deixa ainda mais angustiados
é perceber que, se junto ao nosso talento e à nossa habilidade
pudéssemos contar com uma considerável dose de argentinidade,
seríamos atletas virtualmente imbatíveis.
É melancólico e deprimente ver um time de futebol argen-
tino comemorando uma medalha de ouro, quanto mais em cima de
um time de futebol brasileiro, ainda que tenhamos dado pelo menos
uns cinco bons trocos em outros esportes. Mas não dá pra desprezar
nem deixar de admirar essa argentinidade que eles têm e que tanta
falta faz aos nossos atletas.
Falta aquela raiva de perder. Não é aborrecimento não, é
raiva mesmo por ter perdido, causando a certeza de que nunca mais
se vai suportar a sensação de perder de novo. Falta a malícia, aquela
irreverência irritante, aquela vontade e aquela raça que acabam inevi-
tavelmente se confundindo com a deslealdade de quem está disposto
a pagar qualquer preço pela vitória.
Falta o gosto, o prazer em derrotar o inimigo, esquecendo a
dor da superação extrema, muitas vezes sem talento mesmo, sem
qualquer habilidade, somente com o desejo de ganhar, de dificultar
ao máximo o caminho do outro, de não se entregar sob hipótese
68 alguma, de deixar de ser atleta e passar a ser guerreiro mesmo.
Mais ou menos como fez o nosso Fernando Meligeni na
sua partida final.
Nosso Meligeni que, aliás, nasceu bem argentino...
(Junho de 2003)
Faltou Freio

Mulheres no shopping:
dicas práticas de sobrevivência

Parabéns!
Se o amigo está lendo estas mal-traçadas linhas é porque,
certamente, sobreviveu ao período das festas de fim de ano, o que
significa, em última análise, que já aprendeu muito bem a se virar
diante da situação inteiramente adversa de gerenciar a relação entre 69
mulheres e shopping centers, e que já é de qualquer forma um grande
vitorioso.
No entanto é preciso constantemente traçar estratégias de
sobrevivência mais eficientes para que mais os jovens ou os mais
desavisados possam encontrar diretrizes, referências e indicações de
onde possam partir para encarar os desafios e conviver com a dura
realidade da verdadeira história de amor que existe entre as mulheres
e os shopping centers.
Não se pretende, com as singelas considerações a seguir,
esgotar o assunto ou produzir um guia absoluto, conclusivo sobre
esta relação tão delicada, melindrosa e tenra.
Cláudio de Lucena Neto

Não. Definitivamente, não é o caso.


A intenção é, simplesmente, sistematizar esse conhecimento
acumulado, que foi adquirido da maneira mais difícil, na dureza do
campo de batalha, para que ele possa ser compartilhado através de
intercâmbios e da trocas de experiências masculinas em botequins,
bares, restaurantes, beiras de praia, estádios de futebol e outros
templos sagrados da masculinidade.
Preste atenção e siga cuidadosamente as seguintes dicas:
O que Deus uniu, o homem não separa
O shopping foi feito à imagem e semelhança da mulher.
Empreender esforços para afastá-los é gastar – de forma absoluta-
mente inútil – tempo e paciência preciosos para o duríssimo combate
que está por vir. Jamais arrisque o ou eu ou o shopping. Acredite: a
escolha já foi feita, geneticamente, e muito antes de você.
Manifeste-se
Acompanhe a mulher e opine em todos os instantes. Não
por ciúme. Mulheres hipnotizadas pelo shopping center dificilmente
perceberão ou se interessarão por outro homem, por mais lindo, rico,
tesudo e maravilhoso que seja, a não ser que ele também esteja em
promoção, parcelado, sem entrada, no cheque ou no cartão.
O problema é que se não vier a sua opinião ela certamente
70 vai buscar uma outra. Provavelmente de outra mulher. Será o seu
fim. Aguarde o juízo final. Sentado, porque ainda demora muito.
As mulheres não estão interessadas em saber se você
entende ou não a respeito do que está opinando, se você acha que
listras combinam com bolinhas, se verde vai bem com cáqui, ou se
bolsa de couro, cinto de miçangas e chapéu de aba larga caem bem
juntos. A rigor, a sua opinião não faz a menor diferença. A rigor,
mesmo, a própria mulher não tem a menor idéia sobre a opinião que
tem a respeito das coisas que lhe interessam. Mas que ela precisa de
uma opinião, precisa.
Mais um detalhe. Opine sem pressa, com calma e com
interesse, ainda que disfarçado, e matematicamente calculado. Se a
Faltou Freio

mulher perceber que você está dando uma opinião apenas para se
livrar mais rápido da tortura, você estará definitivamente perdido.
Além de outra opinião, ela provavelmente passará a procurar por
outro homem.
Conduza mulheres com moderação
Engana-se redondamente quem pretende economizar
tempo e paz de espírito ao levar todas as suas mulheres ao shopping
de uma só vez. É um erro grosseiro, típico de principiantes, que tem
levado diversos homens ao cárcere privado, a crises histéricas e à
maníaco-depressão, durante vários dias.
Os mais experientes já perceberam que, em bandos, a
insegurança e a indecisão, acessórios naturais da mulher, não crescem
em progressão aritmética, mas geométrica – elevadas à qüinqua-
gésima potência. Mulheres aparentemente independentes, decididas,
obstinadas e firmes, quando acompanhadas de outras mulheres,
mesmo que de temperamento igualmente desembaraçado, tendem
a ter acessos inesperados e súbitos de dúvidas, de incertezas e de
uma hesitação quimérica que podem lhe deixar encarcerado por
décadas a segui-las pelos infindáveis e entediantes labirintos das lojas.
Portanto, lembre-se: conduza uma – e somente uma –
mulher ao shopping center de cada vez. Primeiro a mulher, depois a
mãe, a sogra, a filha, a avó, tia, sobrinha, amiga e assim por diante,
desde que nunca mais de uma por vez. Desta forma, a chance de
você atolar ou engarrafar indefinidamente nos corredores será 71
significativamente reduzida.
Redobre a atenção com as cunhadas. Ao utilizar um
homem da família que não é o pai, o irmão ou o delas próprias, é
fácil verificar que elas sentem um prazer todo especial em testar o
seu controle emocional, adoram frustrar suas esperanças de sair vivo
daquele inferno e são praticamente imunes a qualquer tipo de
retaliação posterior.
Equipe-se
Do momento em que uma mulher diz que resolveu sair de
um shopping center até a hora em que você, efetivamente, põe os
Cláudio de Lucena Neto

pés no carro, o planeta pode passar por três processos de congelamento


e descongelamento, em intervalos milenares.
É que o fato de pagar pelos itens que vai levar não significa,
sob hipótese alguma, que o penoso processo de compras tenha
terminado. A mulher pode permanecer em uma loja, mesmo após
haver pago por suas compras, por meses a fio, mesmo até a luz ser
desligada, memorizando a disposição das prateleiras e o design de
artigos e peças que nunca vai levar.
Evite o inconveniente tendo sempre à mão viseiras de burro
e protetores auriculares, tipo concha. Assim que a mulher balbuciar
alguma coisa no sentido de que deseja ir embora, pegue na palavra e
não hesite em usar os acessórios, para impedir que alguma coisa a
faça mudar de idéia no caminho até a saída.
Mantenha a defensiva
Não tente revidar. Este, certamente, é o ponto mais
importante deste esforço concentrado. Pretender vencer uma mulher
pelo cansaço em seu habitat natural é como tentar derrotar o Boca
Juniors em La Bombonera, ou como enfrentar um tubarão em alto
mar. Dizer que vai embora com ou sem ela tem o mesmo impacto
de uma greve de aposentados. Mulheres, assim como crianças de
tenra idade, são atraídas por cores diversas, gritantes e chamativas,
por movimento e, é claro, por liquidações. Paciência e autocontrole
são fundamentais. Lembre-se de que a vingança é um prato que se
72 come frio.
Visite periodicamente as saídas
Não que elas tenham o menor interesse. Não. A mulher
jamais sairá do shopping center por iniciativa própria.
Assim, como quem não quer nada, localize-a diante das
saídas, esclarecendo que o estabelecimento está equipado com duas
saídas dianteiras, duas saídas sobre as asas, e duas saídas pelos fundos
além, é óbvio, do estacionamento. Passeie diante das saídas,
periodicamente, mostrando sempre que possível que há vida
inteligente fora do shopping center. Dificilmente ela irá ceder se
interessar ou compreender. Jogue baixo. Vale qualquer coisa. Peça à
Faltou Freio

administração para cortar a luz ou, num eventual desespero, até


mesmo pra desligar o ar-condicionado.
E sempre – sempre – que houver uma chance, jogue-se por
cima dela e atire-a para fora do prédio. Invente qualquer desculpa.
Diga que ouviu que a estrutura do shopping está condenada pela
defesa civil, que ele é alvo de uma ameaça terrorista, bomba,
disseminação de vírus letal, ou qualquer outra coisa. O incômodo
desta alternativa é que você terá que manter a mulher distante dos
meios de comunicação durante alguns dias, enquanto que ela,
provavelmente, também se manterá distante de você por igual
período.
(Janeiro de 2005)

73
Faltou Freio

Ilíada trezeana

O esporte nos proporciona alguns momentos de vida que


não se repetem, que não se igualam nem se comparam a qualquer
outra experiência, de qualquer outra natureza.

É comum que o embate esportivo se dê entre oponentes de


poder de fogo visivelmente diferentes, que o desequilíbrio seja 75
flagrante, que todas as evidências apontem na direção de que a vitória
será de um dos competidores, francamente favorito.

Nessas situações, particularmente, é habitual que o compe-


tidor inferiorizado perca um pouco o compromisso de honra com
um bom resultado e como conseqüência desta despreocupação tenha
uma performance mais eficiente, menos nervosa.

Além disso, para quem acompanha o esporte também fica


claro que o fato de estar inferiorizado normalmente faz surgir, não se
sabe de onde, uma força extraordinária que acaba proporcionando
as condições de superar limites tidos como insuperáveis.
Cláudio de Lucena Neto

Força como a que o Treze foi buscar para se classificar contra


o Coritiba.
Não se tratava apenas do fato de que o Coritiba tem um
título brasileiro, de que está na divisão de elite do futebol nacional,
de que a vantagem do empate lhe favorecia, de que jogou mais de
uma hora com um atleta a mais, de que o Treze teve expulso um de
seus principais jogadores ou de que o Coxa tem uma folha de
pagamento de mais de setecentos mil reais.
É que a cena financeira e social dos estados, os métodos e
as condições de desenvolvimento à disposição dos atletas, as próprias
diferenças entre as perspectivas de uma e de outra região do Brasil
eram verdadeiros abismos que separavam Treze e Coritiba.
A questão de honra, de não ser eliminado por um pequeno
Davi acabou fazendo pressão demais no Golias paranaense.
Um único tiro no alvo, certeiro, eliminaria o nosso exército
da guerra.
Apesar do poderio massivo do ataque verde, dos grandes
jogadores de que dispõe, de todas as diferenças sociais, financeiras,
de organização e de perspectiva, de todas as desvantagens contra o
Treze, esse tiro não saiu.
Não faltou tentar. Certamente assistimos a uma das exi-
76 bições mais perfeitas de um goleiro brasileiro em uma partida de
futebol. O desfalque súbito e a desvantagem numérica por mais de
uma hora fez com que o goleiro Érico fosse bombardeado pelos
atacantes do Coritiba de forma incessante, insistente, sem trégua e
sem descanso, mas sem falhar um único segundo.
De uma forma ou de outra, todos fizemos parte da vitória.
Todos os demais jogadores, a torcida, os gandulas, a imprensa, os
empresários, todos deram a sua contribuição e colhem os frutos com
muita alegria.
Por tudo isto, estar no Amigão na última quarta-feira, na
noite de 4 de maio de 2005, acompanhar a resistência heróica dos
guerreiros alvinegros, sofrer com o cerco verde, padecer vendo o Galo
Faltou Freio

ferido, alquebrado, sitiado, acuado, mas perseverando, recusando-se


corajosamente a admitir qualquer inferioridade, não aceitando desistir,
de forma épica, briosa e verdadeiramente impressionante, me trouxe
uma emoção absolutamente impossível de descrever – e de esquecer.
Abraçar os amigos ainda incrédulos, sentir a leveza de
espírito que só um grande triunfo pode causar, saudar e aplaudir de
perto os soldados do exército preto e branco depois da gloriosa bata-
lha, comover-me com as lágrimas dos torcedores apaixonados, na
alegria intensa que invadia o ar – e chorá-las, também! – são lem-
branças que vou guardar eternamente no mais escolhido espaço do
coração para contar a filhos e netos, com o orgulho indisfarçável de
ter sido testemunha da história.
(Maio de 2005)

77
Faltou Freio

Faltou freio

Pensando bem, até que não é de todo absurda a idéia de ter


colaboradores da ONU trabalhando aqui no Brasil, numa legítima
parceria internacional que tenha como objetivo real o aprimoramento
de nossas instituições democráticas. Afinal de contas, se não há um
aperfeiçoamento concreto e constante, ininterrupto, aberto a suges-
tões e a observações – externas, inclusive –, se não há dinamismo
79
social, comprometimento ou respeito por experiências que podem
trazer uma relevante contribuição, não há como se falar em
instituições verdadeiramente democráticas.

É evidente que a coisa não pode ser levada a sério da forma


que a cúpula do grande império vermelho tupiniquim propôs, como
intervenção, como intromissão. Aqui também não é o Iraque, como
lembrou o Ministro Francisco Fausto. Tampouco somos uma Enron,
ou a casa de Mãe Joana. Aliás, acredito que a própria Mãe Joana
teria sérias restrições em ver devassado o seu lar, embora eterna e
sabidamente fuzarqueado, se a idéia for conduzida com a violência
Cláudio de Lucena Neto

política e a imposição humilhante que a abóbada de poder Planaltina


pretende.

Em primeiro lugar, o nome da operação não pode ser esse.


O termo inspeção sugere um descontrole estatal extremo, e o remédio
a ser administrado implica em uma ingerência à qual não se pode
submeter um poder constituído de um estado democrático. É bem
verdade que a modernidade política, social e tecnológica já permite
uma considerável flexibilização das noções e das ações relativas à
cooperação internacional, mas soberania é soberania.
Afinal de contas, isso aqui não é uma bodega, uma loja de
departamentos, ou o setor de contabilidade de uma multinacional
de energia elétrica, pra ir todo mundo entrando e auditando como
bem quer. É um estado, uma nação organizada, com defeitos, mas
cheia de virtudes, dentre elas a capacidade de se autogovernar, e
democrática o suficiente para escolher e debater seus destinos. Existe
um núcleo mínimo de poder soberano que não deve ser atingido,
que não pode ceder, que não pode sofrer interferência externa, cuja
definição tem que depender única e exclusivamente das decisões
internas da nação sob pena dessa ingerência perder os limites e causar
uma dependência manifesta e injustificável.
O que se deve, sim, aceitar, a idéia cuja semente se deve
procurar plantar, é a de se utilizar os organismos e a estrutura à
disposição das Nações Unidas para procurar, em parceria com os
80 poderes constituídos e de acordo com o ordenamento jurídico e
constitucional de cada país-membro, desenvolver estudos sérios e
abalizados, que venham diagnosticar eventuais problemas e servir
como base para propor a implementação de soluções indicadas e
encontradas através de debate amplo, que envolva os diversos
segmentos da comunidade internacional.
Em segundo lugar, concordo que o Judiciário não é um
Poder melhor que qualquer outro. Mas como ele certamente também
não é um Poder pior que qualquer outro, por que direcionar a proposta
apenas para o Poder Judiciário? E ainda vou mais longe. Por que
direcionar a proposta apenas para o Poder Judiciário brasileiro?
A tal caixa-preta é um confortável mito, atrás do qual parece
Faltou Freio

ser muito fácil de se esconder e através do qual ficou muito fácil ata-
car outros defeitos que inegavelmente existem e que o judiciário
vem procurando corrigir em sua estrutura. Mas este mito não resiste
à menor análise ou à menor observação, por menos criteriosa que
seja.
Há diversos mecanismos de controle e de monitoramento
da atividade jurisdicional previstos em lei, há os órgãos de corre-
gedoria, há os Conselhos de Magistratura, há o princípio da publi-
cidade, e nem é necessário um jurista de inteligência tão ilumi-nada
para compreender, invocar e fazer funcionar tais mecanismos.
Mas é preciso, no mínimo, ler e entendê-los. Não é respon-
sável criticar indiscriminadamente sem a exata noção de como funcio-
nam esses dispositivos. Alguém tem que fazer isso e instruir as
lideranças antes de permitir que uma declaração exclusivamente
política sem a mais elementar fundamentação técnico-jurídica cause
o estrago que vem causando.
Se o objetivo da ONU é harmonizar e proporcionar o aperfei-
çoamento das instituições democráticas e das condições econômicas,
sociais, culturais e humanitárias de todos os seus 191 atuais membros,
por que não agendar um programa global de estudo, diagnóstico e
debate destes problemas e das soluções possíveis, que envolva todos
os poderes, de todos os países-membros, que é na verdade o que um
verdadeiro estadista teria sugerido?
Sim, porque, o Brasil está longe de ser o lugar onde os pro- 81
blemas institucionais são os mais graves. Não devemos, é claro, chegar
ao vácuo mental de negar a existência de falhas, de morosidade, de
tortura, de crime organizado no país. Mas também é preciso saber o
que vai ocorrer e que instituições vão controlar a economia iraquiana.
Ainda não se esclareceram satisfatoriamente as condições em que
morreu o Dr. David Kelly, que estava envolvido, na Inglaterra, na
elaboração de um relatório cujas conclusões poderiam ter evitado o
conflito do Iraque. Há criminosos em série por toda a Europa, violên-
cia gratuita e surpreendente vinda de jovens de classe média, emissão
de poluentes e irregularidades fiscais e contábeis em grandes empresas
nos Estados Unidos, ou seja, a rigor, a ONU tem muito trabalho a
fazer para atingir seus objetivos em muitos dos países-membros.
Cláudio de Lucena Neto

Poderíamos tomar como base o ranking da corrupção


elaborado por uma instituição reconhecidamente séria como a
Transparência Internacional e, partindo daí, agendar um cronograma
não de intervenção ou de inspeção mas de estudo, de pesquisa e
colaboração, começando pelos poderes Executivo, Legislativo,
Judiciário e Ministério Público dos países, onde, em tese, há pouco
trabalho a fazer, como a Finlândia, a Islândia, a Dinamarca e a Nova
Zelândia. Desse modo sobraria mais tempo para dedicar aos países
onde, ainda em tese, o estudo teria que tomar mais tempo, como o
Haiti, a Nigéria e Bangladesh.
Assim, ao chegar ao Brasil, o programa seria recebido com
muito menos objeção e com muito menos resistência por qualquer
dos poderes. Ser inspecionado isoladamente por um organismo
internacional paraestatal sob a acusação tácita de corrupção e de
favorecimento e sob a notória ameaça de desrespeito à soberania
nacional é uma coisa. Fazer parte de um amplo esforço internacional
público de aprimoramento e de aperfeiçoamento institucional, como
diria o meu grande amigo Dr. Idalino José, em seu impecável, mordaz
e shakespeariano inglês, it´s other five hundred...
Fora dessa abordagem, ao focar a proposta de investigação
internacional exclusivamente no Poder Judiciário, que não é o único
– e que, talvez, nem seja o principal – responsável pelo problema
humanitário relacionado ao crime organizado que foi detectado pela
representante da ONU Asma Jahangir, o governo faz com que uma
82 sugestão a princípio válida, lógica e razoável, adquira o nítido
contorno de pressão política para desacreditar e constranger o
judiciário, procurando, em um interminável e juvenil cabo-de-guerra
institucional, eximir-se de uma responsabilidade que deve ser
compartilhada e enfrentada por todos. ONU e Governo Federal,
inclusive.
(Outubro de 2003)
Faltou Freio

O risco da democracia

Estava eu em meio a uma daquelas crises de inspiração a


que a idade nos condena com cada vez mais freqüência e intensidade.
Mas muito embora o ritmo do mundo e do Brasil esteja frenético,
embora o momento histórico, político, social e econômico seja
riquíssimo, embora, enfim, não falte assunto, não conseguia que nada
me chamasse a atenção, me despertasse o desejo de voltar ao teclado, 83
ao papel.
Talvez eu esteja representando o início de um longo período
infértil, no plano literário, da humanidade como um todo. Talvez eu
tenha percebido o quanto é inútil tentar chegar às pessoas por
intermédio da palavra escrita. Talvez todo o conhecimento que
acumulamos ao longo dos milênios tenha se banalizado e não faça
mais qualquer sentido a discussão, a expressão, a difusão de idéias.
Ou talvez, como invariavelmente ocorre, minha avó esteja certa. Ela
diz que isso é preguiça. Safadeza mesmo.
Até que ontem, de repente, veio-me um estalo. Sabem
aquele lampejo de clarividência, de inspiração, que só vem aos
Cláudio de Lucena Neto

gênios? Exato. Ele só vem aos gênios mesmo. Jamais experimentei


sensação sequer próxima a isso. De qualquer forma, veio-me um
lampejo que se não foi tão forte quanto aquele que vem aos gênios
foi o suficiente para me revelar que ontem foi aniversário do Penta!
Isso. Esse era o meu o assunto! Há exatamente um mês celebrávamos,
para desespero de Paulo César Cajuru e de outros urubulinos desastristas
de plantão, o quinto título mundial da seleção brasileira de futebol.
Foi uma copa diferente. Disso não se tem dúvida. E é
engraçado como a gente tem outra dimensão do evento, completa-
mente diferente, basta que se passe um mês. As declarações surgem,
as histórias são reveladas, os bastidores vêm a público e a gente acaba
por enxergar a coisa por um ângulo que não era possível, que não
existia, ao qual a gente simplesmente não tinha acesso. Com isso,
determinadas situações ficam mais claras; outras perdem o sentido de vez.
Algumas coisas da Copa do Mundo Coréia Japão (é assim
que vem escrito no meu álbum de figurinhas da Panini), no entanto,
permanecem, e no meu humilde modo do compreender, permane-
cerão sempre inexplicadas. Perguntas que não querem calar, embora
jamais deixem de levantar a curiosidade daqueles que, como eu, são
fanáticos por este esporte sensacional, cujo único defeito é precisar
ser dirigido por pessoas. Oops! Nada a ver. As perguntas:
Onde está o pescoço do Seu Noronha?
Difícil essa, hein? Se bem que, como arguto observador,
84 não posso deixar de externar que tenho um palpite, uma desconfiança
intrigante, que só ganha corpo à medida em que os fatos vão se
sucedendo. O pescoço de Noronha deve ter sido maliciosamente
escondido no mesmo lugar onde esconderam o futebol daquela que
sucedeu Diana na idéia que os ingleses têm de princesa encantada: a
nova princesinha Beckham. As evidências são fortíssimas. A
existência do pescoço de Seu Nonô e do futebol da princesinha é
dogma, verdade admitida como absoluta. Eu até confesso que acredito
que existam. Ambos. Inclusive o futebol da princesa. Mas é aquilo:
todo mundo sabe que existe, tem que estar em algum lugar, mas a
verdade é que, como o Monstro de Loch Ness, ninguém jamais viu.
Para onde foi o futebol francês?
Faltou Freio

Como assim, futebol francês? O futebol francês está para o


futebol mais ou menos como a justiça militar está para a justiça.
Jamais existiu qualquer futebol francês. Um ou outro jogador francês
vá lá, mas futebol, mesmo, não. Nunca. Interditem quem quer que
disser que o conheceu. Certamente, trata-se de uma pessoa extrema-
mente perigosa e desequilibrada.
É que os franceses produziram tanto conhecimento, tanta
cultura, lideraram tantos movimentos e correntes literárias, filosóficas
e políticas, estão tão à frente no pensar, e pensaram tanto o mundo
que, em sua retórica elaborada, acabaram por convencer os mais
desavisados da existência do tal futebol francês. “Ganharam a copa!”
Grande merda. A Inglaterra também ganhou a sua copa. Os suecos
foram finalistas na deles, os chilenos foram finalistas na deles. Até a
Coréia foi finalista na dela... Até a Coréia!
Se não tivesse servido pra mais nada, essa copa já teria sido
útil para colocar a França, que me perdoem Voltaire, Sartre, Molière,
Rousseau e seu enorme séqüito de discípulos intelectuais e sexuais,
no seu devido lugar, o único que sempre lhe coube na história do
futebol mundial. O de coadjuvante. Chiquérrimo, mas coadjuvante.
Um mês... Passa tão depressa. Acontecem tantas coisas.
Quem diria, há um mês, que passaríamos praticamente em branco
esse primeiro e solene aniversário do título, esquecidos – lá se vai a
nossa história de novo – de uma vitória, ache o contrário quem quiser
achar, tão importante. Todas as atenções voltadas para uma espe-
culação econômica terrorista, todos empenhados, unhas cravadas no 85
dólar, lutando pra tirar mais água do que o que entra pelo furo do
barco, para evitar que afunde. E o que é pior: sem o furo no barco!
Estamos sucumbindo à nossa própria descrença. Tal qual
os franceses convenceram o mundo de que tinham um futebol, o tal
mercado americanizado está convencendo o brasileiro de que o Brasil
quebrou, que não tem mais jeito, que está tudo perdido, que estamos
à deriva, quando todas – repito – todas – e, repito, mais uma vez –
todas as evidências apontam em sentido contrário.
Sem querer forçar a barra, não dá para não lembrar do que
ocorreu com a seleção durante o mundial, sem enxergar uma saída
Cláudio de Lucena Neto

pelo mesmo caminho. Os entendidos diziam que zagueiro era o


Ferdinand, nunca o Edmilson; que criação era com o Ortega, jamais
com Ronaldinho Gaúcho; técnica era com Figo, em hipótese alguma
Rivaldo; que craque era Zidane e que Ronaldinho estava morto.
Pois bem. Quebraram a cara, para todo mundo ver. E aqui?
Investidores compraram o Banco Real, não o JP Morgan Chase ou o
Citigroup. Para a fusão, vieram procurar a CSN. Não foram atrás da
Enron ou da WorldCom. A contabilidade do Grupo Votorantim,
pelo menos até agora, está toda em ordem, enquanto lá até as
empresas de auditoria estão sob suspeita.
E eleição, aqui, quem ganha leva.
Neste sentido, o tal risco Brasil existe, não há dúvida. Mas
é o risco de perder as condições ideais de palco propício à especulação
irresponsável, prostituída pelo ganho fácil e extorsivo, pelo descom-
promisso financeiro, social e de desenvolvimento. Risco de não ser
mais um mercado atraente a um capital volátil, apátrida, ingrato,
que gira o mundo mais rápido do que Júlio Verne poderia imaginar.
Risco de se tornar um país cuja população pode começar a interferir
em seu próprio destino, onde o povo pode vir optar por uma mudança
na orientação e nas diretrizes políticas do Estado através – um absurdo!
– do voto. Risco – e isso causa um arrepio por lá – de andar com as
próprias pernas.
Não sei se esse risco é tão mau quanto andam dizendo. Ou
86 se o risco deles não é ainda maior...
E esse risco, o de, ao permitir esta atitude, ver surgir um
gigante, de condições naturais e climáticas inigualáveis, com potencial
econômico imensurável, com um povo criativo e cheio de esperança
e acima de tudo onde a democracia seja efetivamente exercida, é
um risco que a grande fachada de liberdade sob a qual se esconde
um despotismo econômico em escala mundial não pode correr.
(Agosto de 2002)
Faltou Freio

O mestre encena

Sivuca não subiu ao palco. Ele já estava lá.


É verdade que quando as cortinas se abriram ele já estava
sentado em sua cadeira, no centro do palco. Mas desde antes, desde
muito antes, ele sempre, sempre esteve lá.
Nunca me emocionei tanto com um espetáculo musical 87
quanto me emocionei naquele domingo, ao assistir, na praça Antenor
Navarro, na capital paraibana, à apresentação do Mestre Sivuca,
acompanhado da formidável Orquestra de Câmara de João Pessoa.
Tanta emoção, certamente, vem do fato de que os privi-legiados
espectadores daquela noite não viram somente uma apresentação
musical. Aliás, a música foi um detalhe. Belíssimo, comovente,
irretocável, mas um detalhe.
O verdadeiro espetáculo da noite foi a celebração, a
homenagem, a reverência, a demonstração do apreço e da gratidão
de um povo a alguém que representa um símbolo do respeito que
este povo deseja, e pode conquistar.
Cláudio de Lucena Neto

O corpo já não está tão resistente. Que importa? Que


diferença faz o estado do corpo de alguém que é alma pura? Alma
que demonstra um vigor, uma força impressionante? É a alma – não
o corpo – do mestre que sustenta os quinze quilos da sanfona por
quase uma hora de espetáculo.
É como se fosse a primeira vez, é o entusiasmo de um
estreante no palco. A dificuldade física de se levantar e começar a
apresentação desaparece na primeira nota, oculta-se na paixão
declarada, intensa de viver uma vez mais a sua música.
O público vinha de todas as partes. Vinha dos bairros nobres,
onde em geral a música erudita faz parte dos hábitos culturais dos
moradores. Mas também vinha da periferia, onde raramente há
esforço, salvo por parte de alguns abnegados, para difundir qualquer
tipo de música mais elaborada, onde as rádios têm penetração mais
agressiva e onde a música que normalmente se vende é a de entrete-
nimento, massificada e bundalizada, de resultado financeiro mais
expressivo e mais rápido, de milhares de ingressos para o show do
final de semana, e de artistas efêmeros de programas de auditório.
Sivuca uniu esse público cultural, social e economicamente
estratificado, reduziu essas diferenças em nome e em torno da sua
música, e demonstrou com precisão matemática que a verdadeira
arte fala indistintamente a qualquer ser humano, e que as pessoas
independentemente de condição social compreendem, percebem sim,
88 e estão sempre prontas a apreciar, a admirar e a desfrutar daquilo
que tem qualidade e bom-gosto.
Ele fez todos perceberem que vê-lo em cena é um privilégio.
O termo é este mesmo. Em cena. O artista que está ali é
uma figura muito diferente do homem que o representa por mais
nobre, ilustre, notável, por mais extraordinário que seja esse homem.
Aquele artista é um ser eterno, imortal, que tem e que mostra mais
energia do que nunca, a despeito de todas as barreiras que o tempo,
num esforço absolutamente estéril, tenta lhe impor.
Hipnotizada, a jovem concertista – são muitos os jovens
nessa fantástica iniciativa que é a Orquestra de Câmara de João Pessoa
Faltou Freio

– que dividia o palco com o mestre, esqueceu-se completamente de


que estava no meio de uma apresentação e, durante um solo do seu
ídolo, repousou tranqüila e sossegadamente a cabeça sobre o seu
violoncelo, como que pedindo pra que aquele extraordinário professor,
com sua musicalidade mágica, fascinante, embalasse pra sempre o
seu sonho de ser grande como ele.
O regente da orquestra, dando-se perfeita conta do
momento sublime que presenciava, delicadamente despertou a
menina-artista, tomando o cuidado de não repreendê-la e de não
censurá-la – quem poderia? – procurando apenas trazer-lhe, sem
sobressaltos, de volta ao palco, ao seu violoncelo, à companhia dos
outros músicos, à realidade da qual o espírito encantador daquele
artista lhe havia arrebatado.
Ao final, ainda embriagados pela beleza daquela magnífica
exibição, dá para perceber que o triunfo do mestre sobre o tempo é
provisório, passageiro. Somente com ajuda é que ele consegue desven-
cilhar-se da sanfona, voltar a sentar-se e finalmente retirar-se do palco
enquanto as cortinas se fecham.
Difícil, penoso, talvez, porque ali é o seu lugar. É onde ele
deve e precisa estar, de onde não deve sair, de onde sua música nos
fala mais alto, ecoando nas almas de quem a ouve.
É onde ele sempre, sempre esteve.
Toque, Mestre. 89
E que os deuses que lhe outorgaram o dom desta arte
sedutora concedam ao mundo o privilégio da sua companhia e a
eloqüência inspiradora de seus acordes, pelo tempo que o mundo os
merecer.
(Março de 2004)
Faltou Freio

Fz o q, neh?

É interessante parar um pouco para uma análise, ainda que


seja superficial, do que ocorre nas salas de bate-papo ou de chat,
embora eu não saiba de onde raio saiu essa mania horrível de usar
uma palavra de fora da língua para se referir a algo que a nossa língua
descreve, e bem. Se este símbolo da modernidade presta um serviço
incalculável à comunicação, ao desenvolvimento cultural e - por que 91
não dizer? - sexual dos jovens, à sua interação com outras pessoas, se
ele representa o seu livre acesso à informação e - vamos aproveitar a
empolgação! - à democracia, por outro lado representa um risco de
danos lingüísticos irrecuperáveis para os rebentos.
Lembrando, sem querer ser xiita: essa forma de se
comunicar nem é boa nem má. É simplesmente útil em algumas
situações e inútil em outras. É apenas mais uma forma de
comunicação, tanto quanto a que usamos em casa, no trabalho, no
estádio de futebol, e que não trará qualquer prejuízo para aqueles
que fazem sem problemas a transição de um subconjunto da língua
para o outro, uma habilidade que salvo engano é chamada pelos
Cláudio de Lucena Neto

estudiosos de code-switching - perdão, mas para essa aí, realmente


não conheço termo análogo em português: - uso o do artigo que li.
O problema surge para quem ainda não lida muito bem
com essas necessidades diferentes para o uso da língua, como é
geralmente o caso dos nossos jovens, que ainda não têm maturidade
suficiente no uso de uma forma escrita da língua e começam a usar
uma outra variação escrita. Pior, em um ambiente onde ninguém se
corrige e onde tudo é permitido.
As principais regras, a princípio, resumiam-se a escrever o
mais rápido possível (para não perder a dinâmica de uma conversa,
de um verdadeiro bate-papo); e escrever as palavras da forma como
são pronunciadas, pela impossibilidade técnica de acentuá-las. Os
programas melhoraram, os acentos chegaram e até hoje esperam pra
ser usados...
O trabalho dos professores de português junto aos jovens
que utilizam as salas de bate-papo com freqüência é importantíssimo,
não no sentido de condenar as convenções daquele ambiente - que,
como disse, são úteis em determinadas situações - mas no de orientar
e mostrar que a linguagem escrita precisará, um dia, ser utilizada
fora da Internet, e que nesse caso será preciso acentuar as palavras,
escrevê-las até o final e usar pontuação.
Na verdade, na própria Internet já há necessidade por vezes
de utilizar a linguagem formalmente, como nas propostas de emprego
92 ou no envio de currículo ou propostas comerciais para análise,
situações nas quais o uso adequado do vernáculo pode ser a diferença
entre o sucesso e o fracasso.
Afinal de contas, naum eh q tc c vcs n seja blz, pq eh td
mundo d +! Ahi, Eh ou n eh? Fazer o q, neh? Kero aki manda xêro p
tds vcs!
T +!
(Abril de 2001)
Faltou Freio

Sem merchan

O Cardeal Joseph Ratzinger jamais teria sido eleito Papa


se a eleição, imaginando circunstâncias diversas, fosse direta e secreta.
Tudo bem: só secreta basta.
O mundo católico saía de um período em que teve um
Sumo Pontífice que tornou-se ídolo de uma geração pop, da comunica-
93
ção e da mídia de massa. Karol Wojtyla, eleito aos 58 anos, foi um
Papa garoto (sem trocadilhos de mau gosto), ator, poeta, praticante
de esportes, peregrino, aventureiro, desbravador de terras e de almas,
uma espécie de Indiana Jones da Santa Sé, que durante duas décadas
melindrosas, delicadíssimas, teve energia e vigor para tocar o barco
da Igreja Católica por águas muito tormentosas, com sua presença
física marcante, levando-a a lugares onde essa Igreja jamais havia
estado.
Qualquer católico sabia que a última coisa de que Roma
precisava agora era de um passo atrás na abertura que já vem
ocorrendo a passos de jabuti com câimbra, mesmo porque a história
Cláudio de Lucena Neto

mostra indícios de que é justamente nos períodos de abertura – ainda


que se abrindo na marra – que a Igreja dá significativos saltos de
crescimento enquanto instituição.
Ratzinger é conservador a ponto de fazer Frei Damião
parecer um vanguardista, um teólogo da libertação, um democrata.
Não que João Paulo II tenha cedido um milímetro
desnecessário nos dogmas que sustentam a filosofia, a doutrina e a
fé católica. Mas não se pode negar que, extremamente bem
assessorado por companheiros de habilidade política e de competência
invejáveis (Ratzinger, o principal deles), teve uma percepção
privilegiada das circunstâncias que o rodeavam e em decorrência
disso teve a postura, a firmeza e – diferencial só seu – o carisma
necessário para sempre dirigir a atenção dos fiéis para um foco
favorável à instituição que comandou.
Além disso, uma coisa ninguém pode reclamar do bom e
velho João de Deus. Ele sempre foi autêntico, genuíno, franco em
tudo o que se meteu a fazer. Para utilizar uma terminologia
recentemente cunhada na erudita academia bigbrotheriana, foi um
Papa sem merchan.
Pode ser que não tenha sido um camarada lá muito simples.
Pode até ser que não tenha sido uma pessoa muito humilde, agradável,
bem-humorada ou afetuosa. Vá lá saber ao certo... Não sei, não o
conheci, nunca tive o privilégio de privar de sua honrosa companhia,
94 e afinal de contas há mais mistérios nos bastidores do Trono de Pedro
do que jamais poderia imaginar a nossa vã filosofia.
Pode ser que aquele sujeito boa-praça que aparecia nas TVs,
em pôsteres, em outdoors, em livros e vídeos e que deu início a uma
era cristã digital, encorajando o lançamento do portal oficial do
Vaticano na Internet (e outras modernidades, desde que estritamente
necessárias), tenha sido somente o resultado de um eficientíssimo
mis-en-scène pontifício.
Mas, sinceramente, não foi o que pareceu.
Estivesse ele comportando-se de forma reacionária como
nunca, defendendo a tese caolha da abstinência sexual, condenando
Faltou Freio

as uniões homoafetivas, lutando contra o aborto, ou estivesse falando


em nome da paz, superando barreiras culturais, conciliando diferenças
religiosas, enfrentando ameaças, adversidades e perigos a bem da
liberdade e da dignidade do ser humano, ele sempre, sempre pareceu
verdadeiro, ideologicamente honesto e coerente.
É claro que tudo o que ele fez teve uma repercussão enorme,
digna do chefe religioso mais influente do ocidente, senão o chefe de
Estado mais influente do mundo. Suas atitudes e todas as notícias
que lhe diziam respeito tinham essa dimensão. E ele tinha a exata
noção da relevância de seu posto. Sabia disso. Perfeitamente.
Mas a impressão que sempre passou foi a de que nenhuma
dessas posições era só pra inglês ver, nada era somente para se pôr
em evidência, somente para se fazer notar – no fundo, ele não
precisava disso. Sempre fez crer que, se defendia uma idéia, era em
virtude de uma convicção corajosa de estar tomando a atitude correta.
Ele sabia que é muito importante que a mulher de César
seja honesta.
Mas entendeu que o indispensável, mesmo, é que ela pareça
honesta.
Não sei, de fato, se o Peregrino tinha tantas virtudes quanto
parecia, mas parecia que as tinha.
Quando Joseph Ratzinger surgiu como Bento XVI na sacada 95
principal do Palácio Apostólico tinha a expressão de satisfação de
quem alcança um objetivo secular, de quem atinge uma meta. É
inevitável compará-la com a expressão desarmada, ingênua, cândida,
quase indefesa de Karol Wojtyla quando surgiu, na mesma sacada,
como João Paulo II, 26 anos antes.
Aquela expressão de humildade, de reverência e de
resignação à vontade divina foi decisiva para que aquele pastor, com
seu carisma nato, com carinho e com sinceridade, começasse a
conquistar a simpatia e a confiança, depois o respeito e a obediência
e, no final, o afeto e a adoração dos milhões de fiéis que a partir de
então guiou.
Cláudio de Lucena Neto

Na alegria daquela sacada, Ratzinger, um líder estrategi-


camente preparado e de há muito ansioso por aquele momento,
parecia realizado, inteiramente confortável. Acenou confiante, seguro
e efusivo, dirigindo-se diretamente para o público na Praça de São
Pedro e no mundo inteiro.
Na alegria daquela sacada, Wojtyla, não mais do que um
padre eslavo, reconheceu a sua limitação, a sua fragilidade, sentiu a
insegurança de sua condição humana e a dividiu com todos.
Parecendo aflito dirigiu-se quase que exclusivamente aos céus de
onde incessantemente invocava proteção, pedindo para ser aceito,
buscando timidamente nos olhos de cada fiel o apoio e a ajuda para
a enorme tarefa que sabia que estava por iniciar e para a qual parecia
não ter certeza de estar pronto.
Na humanidade daquela expressão começou a se tornar
grande.
(Abril de 2005)

96
Faltou Freio

O apagão da natalidade

Agora que está tudo mais claro - Deus sabe que não quero
fazer nenhum trocadilho - a respeito da crise de recursos energéticos
que o nosso imenso país atravessa, talvez seja a hora de alertar a
nossa população, ainda sob o efeito dos sedativos administrados para
engolir sem dor os cortes e as multas que vêm por aí, e que foram a
melhor saída que o Ministério do Apagão conseguiu encontrar, para
97
alguns dos outros problemas decorrentes, dos quais o que posso
vislumbrar com mais nitidez é a desestabilização do controle da
natalidade.

Pois será que alguém ainda duvida que o controle de


natalidade é filho legítimo das zilhares de opções de entretenimento
que a maravilhosa energia elétrica, ao longo dos anos, pôde nos
proporcionar?

A energia elétrica funcionou, durante o século passado, em


sua essência, como aliada terrorista dos arautos do apocalipse neo-
Cláudio de Lucena Neto

malthusiano anunciado, proporcionando o desenvolvimento de


maravilhas que distraíram a atenção das pessoas para algumas outras
coisas que, tenho certeza, são até bem mais interessantes, mas que
passaram a perder terreno para os novos mimos da sociedade de
consumo.

O rádio, a televisão, o videocassete, a parabólica, a TV a


cabo, o Videokê, as salas de bate-papo, o correio eletrônico, os sites,
toda a tecnologia dos últimos séculos vem trabalhando e gravitando
em torno de soluções para conter o crescimento desenfreado da
população, o que estamos em vias de pôr a perder por causa de um
planejamento de recursos energéticos desastroso e irresponsável, que
não se deu ao trabalho de verificar quantas variáveis estavam
envolvidas no processo.

Não que esta seja exatamente a decorrência mais imediata


dos apagões. Os efeitos daqueles, por exemplo, deverão vir apenas
após os primeiros dois meses da medida, na forma de enjôos e
náuseas, após o que deverá se seguir um significativo aumento das
glândulas mamárias e da região abdominal das brasileiras do sexo
feminino, simultaneamente à diminuição da quantidade de cabelos
dos brasileiros do sexo oposto.

O corte até que poderia ser uma boa saída para continuar a
controlar a natalidade, mas não da forma proposta pelo governo, que
98 propõe o corte somente após os apagões. Corte depois do apagão
consumado... nas palavras do nordestófilo Falcão, é mermo que nada!

A geração dos filhos do apagão virá a partir dos sete meses


de medidas – tem gente que, pelo sim, pelo não, já está se preparando
para o apagão há algum tempo. É de se esperar que estes rebentos
possam ter um melhor acesso à educação e a consciência cívica de
usar os recursos naturais, não como um direito, mas como um
benefício, que deve ser utilizado de forma planejada, racional e
responsável.

O leitor certamente irá perdoar o tom irônico destas


Faltou Freio

maltraçadas linhas, que acredito e aceito até possam ser tachadas de


debochadas, de insensíveis ou de inconseqüentes, mas nunca de piada.

Porque piada, mesmo - e imbatível! - é usar o candeeiro por


mais de 200 anos, e faltando quinze dias, perceber que o gás está no
fim...

(Maio de 2001)

99
Faltou Freio

O Império contra-ataca?

Há alguns meses esteve em Campina Grande por inter-


médio do nosso querido Saulo Ais o artista plástico catalão Jesus
José Cardenete, que expôs belos trabalhos no bravo e resistente
Museu de Arte Assis Chateaubriand.
Entre os trabalhos expostos, um deles me chamou imediata 101
atenção. Não sou conhecedor da pintura, não consigo identificar
técnicas, composições, escolas ou movimentos, mas a arte fala a
mim da mesma forma que fala a qualquer ser humano. Sua linguagem
é universal, e não se fica impassível diante de suas manifestações.
Um mouse – em Portugal é rato, mesmo! – de formas bonitas
e vanguardistas dirige-se, inocentemente, a um artefato que a princípio
nada tem a ver com o seu ambiente natural – uma ratoeira. Em tese,
nada pode o arcaico ardil contra o moderno dispositivo. O problema,
que o talento de Cardenete conseguiu enxergar é que, no fundo, no
fundo, o mouse continua a ser simplesmente um rato, sujeito às
mesmas ameaças e vulnerável aos mesmos problemas de sempre.
Cláudio de Lucena Neto

La trampa de la modernidad é muito mais do que uma obra


genial. Não tivesse qualquer mérito estético – não é o caso, a tela é
primorosa – já seria brilhante enquanto registro da antevisão de um
acontecimento que, todos sabíamos, era iminente: o embate entre a
sociedade da informação e da tecnologia e as velhas armadilhas a
que a humanidade está sujeita. Mal sabia o simpaticíssimo forasteiro
de Barcelona que seu pincel havia traçado uma cena tragicamente
profética, principalmente depois de conhecida a dimensão inédita e
chocante do fato. Suprema clarividência, o mouse está completamente
vermelho, dos botões ao fio, em uma óbvia alusão ao banho de sangue
por que passaria o símbolo político da modernidade e à armadilha
que ela esconde sob o mito da segurança.
O Afeganistão é uma armadilha de proporções colossais,
de barreiras físicas e geográficas virtualmente intransponíveis, de
barreiras ideológicas inabaláveis, na qual os EUA parecem cair como
patos, ao reagir no pior momento possível, que é o momento em
que estão tomados pelo ódio. Neste instante, é impossível ter a
parcimônia e o comedimento necessários para entender que é neces-
sário mais do que um exército, mais do que armas, mais do que a
força bruta para conter e derrotar o terror, o horrendo inimigo que a
humanidade enfrenta.
Pior. É possível que, ante à cegueira moral imposta pelo
ressentimento, os valores e os princípios – exatamente aqueles que
o ataque procurou sepultar sobre os destroços dos alvos atingidos –
102 sejam esquecidos, atropelados, deixados de lado. Esse é horizonte
na paisagem terrorista, que sabe ser impossível derrotar em franco
combate as forças armadas internacionais. Eliminados os vestígios
da tolerância, da civilidade e da racionalidade que se está tentando
construir ao longo dos séculos, a derrota da paz terá sido completa.
Osama Bin Laden, tenha ele a ver ou não, especificamente,
com a carnificina que mudou a história, é um assassino sangrento,
lunático, desequilibrado e grotesco e, por isso, extremamente perigoso.
No entanto, a diferença de perspicácia, de visão política e diplomática
entre ele e o xerife texano é tão estúpida que ele está conseguindo
fazer com que as coisas se dêem numa seqüência que lhe é impressio-
nantemente favorável.
Faltou Freio

À medida em que os corpos vão esfriando sob os escombros


do World Trade Center, vai arrefecendo a necessidade imperiosa de
vendetta que a força das imagens instantaneamente nos fez sentir. A
curto prazo, Bin Laden vai fazendo com que os seus métodos pare-
çam ser os únicos capazes de causar com efetividade alguma reflexão
e, portanto, vão perigosamente assumindo um certo caráter de
legitimidade. Mais alguma trapalhada estratégica da América e ela
própria corre o risco de escrever na história o nome de Bin Laden
como um grande herói da resistência – tanto para o ocidente quanto
para o oriente.
É inevitável lembrar, nesse contexto, a lição de um outro
artista – este, paraibano – o professor Paulo Lopo Saraiva. Já de
algum tempo, o mestre tenta nos convencer de que o que se globaliza
é o mercado, não a sociedade.
Com efeito, o dinheiro está internacionalizado. É possível
comer um McDonald’s em Marrakesh, Pequim, Bogotá ou São
Petersburgo. O capital de programa dorme com quem der mais. Só
que não é tão fácil universalizar – vá lá, globalizar – os valores, os
princípios, a ideologia, e a prova maior é o show de intolerância que
estamos vendo.
Ah! O Império contra-ataca, sim, e de forma enérgica, impie-
dosa, cumprindo enfim a profecia de nosso artista espanhol. Afinal
de contas, o bem deve vencer o mal, os escolhidos precisam subjugar
os infiéis (sejam eles quem forem – ninguém sabe, mesmo...) e a 103
Infinita Justiça precisa triunfar sobre as trevas tirânicas.
E aqueles que se beneficiam do domínio da Infinita Justiça
devem, até por uma questão de coerência, perfilar-se ao seu lado, já
que são sempre convidados a participar das suas celebrações e festas.
Não é justo – ou digno – porém exigir igual posicionamento daqueles
que nunca são convidados; daqueles que quando muito são chamados
no dia seguinte para o serviço pesado e braçal de arrumar a bagunça
que os convidados deixaram e, se houver sobras, experimentar as
migalhas.
(Setembro de 2001
Faltou Freio

Só ele sorri

Volta e meia o debate em torno da Santíssima Trindade das


paixões nacionais vem à tona. É verdade que somos um povo que
gosta de dar opinião dos limites éticos da produção de transgênicos
à influência dos cardumes nos abalos sísmicos - este último, pasmem,
tema de uma importante pesquisa financiada por uma Universidade
japonesa. Ah, um CNPq de vergonha lá...!. Mas quando se trata de 105
samba, futebol ou mulher, o brasileiro acha que sabe de tudo, que
ninguém sabe de nada e que só ele é quem sabe.
Verdade que, dessas paixões, à medida que o tempo vai
deixando em nós as indeléveis marcas de sua impiedosa atuação,
acabamos por ir deixando um pouco de lado as duas primeiras, para
ver se conseguimos dar a devida conta da última, principalmente se
a última for a nossa. Nunca, contudo, o brasileiro consegue desven-
cilhar-se completamente destas suas grandes paixões.
Agora, por exemplo. Vivemos a doce agonia de disputar as
eliminatórias fingindo esquecer que não há a menor chance de que1
Cláudio de Lucena Neto

os triliardários patrocinadores de nosso amado escrete - que já foi


mais amado, quando amava mais - venham a permitir, junto à FIFA,
um órgão visivelmente destinado a dar apoio comercial ao esporte,
que sua cria fique à margem do próximo campeonato mundial.
E torcemos, e gritamos, e nos preocupamos, e quebramos o
sigilo bancário, telefônico, comercial, sexual, se preciso, daqueles
que entendemos responsáveis pelos vexames, e crucificamos e
elegemos heróis, e celebramos no melhor estilo panis et circensis as
glórias alcançadas.
Para não dizer que não há nada de novo no front, embora
não haja mesmo, encontrei uma coisa interessante à qual, creio,
vale a pena prestar atenção.
Pelo valor dos investimentos e do retorno que hoje o futebol
traz, há muito mais em jogo durante uma partida do que jamais
poderia imaginar a nossa vã idolatria. Diante dos salários, dos
patrocínios, dos direitos de transmissão, de cessão de imagem, é
possível notar nas fisionomias dos protagonistas as diferentes reações,
das quais gostaria de saber: qual delas é a cara do Brasil?
Não gostaria que fosse a de um Rivaldo, seu próprio e único
inimigo, personagem atormentado, em eterno conflito consigo
mesmo, com visível complexo de inferioridade, paranóico,
acreditando que todos os que a ele se dirigem têm a intenção de
diminuí-lo em seu valor. Tampouco me parece, para o bem de todos
106 e felicidade geral do que resta da nação, que tenhamos a cara de um
Flávio Conceição, com seu indefectível estrabismo mental, ou de
um Emerson, a quem a truculência desvelada convenceu que guiaria
rumo ao sucesso.
Preocupa-me a idéia de ter, na apatia e na falta de
personalidade de Alex, um símbolo do país, enquanto causa-me asco
imaginar que podemos ser tomados pelo exibicionismo esnobe dos
Carlos da defesa, a quem uns trocados amealhados em solo europeu
fizeram crer que são pessoas melhores que as que saíram desta terra
ou, ainda que absolutamente impressionado por uma prepotência
irritantemente eficaz, tampouco me agrada a noção de sermos
representados pela arrogância de Romário.
Faltou Freio

Para que não pareça que não falo das flores há uma face
deste grupo de atletas que me apraz soberbamente: o sorriso de um
garotocuja inocência, irreverência, dadas as agruras pelas quais
certamente passará, irão se desvanecer dentro em pouco, que Deus
me permita estar errado.
Ainda que assim seja, não importa! Estará lá, imortalizada,
a imagem de um menino em cuja fisionomia é possível ler os
obstáculos que já ultrapassou. Que talvez por isso mesmo, tem no
rosto o prazer de viver. Que sai de suas dificuldades com extrema
criatividade. Que teve a imensa sorte, ao mesmo tempo, de escapar
das ruas e de encontrar a fortuna honesta. Que tem um impressionante
senso de companheirismo e de equipe, incansável em seu ofício, que
conhece como ninguém.
Ele é forte, rico, famoso, sortudo, habilidoso, talentoso,
saudável, disciplinado, criativo, exatamente como todos os seus
colegas de equipe, embora haja entre eles uma diferença vital: ele
sorri! Sorri por razões que todos os outros teriam para sorrir. Mas é
somente ele quem sorri. Não que eles não sintam prazer no que
fazem, mas somente ele sorri com esse prazer. Também não vou
cometer o disparate de supor que eles não tenham orgulho em
defender a pátria, mas esse orgulho só vira sorriso, um sorriso sincero,
franco, no rosto do menino. Embora a fisiologia explique que o
esforço para sorrir é bem menor que o empreendido para chorar, só
ele sorri. Só ele sorri...
Ah, aos outros falta a juventude. Esta, que faz com que
107
todos os problemas pareçam distantes, deixando livre o caminho
para que ele possa sorrir, poderiam me dizer. Verdade. Esta poderia
ser a explicação. Pode ser que o tempo o deixe tão amargo quanto
seus companheiros. Mas pode ser também que para esse garoto,
somente para esse, o destino tenha reservado, realmente, o encantador
papel de sorrir. E se assim for, estamos vendo o surgimento de um
grande ídolo que, sorrindo, identifica-se com um povo criativo,
habilidoso, forte, irreverente, solícito, incansável e cheio de esperança.
Um povo que, apesar de tudo, sorri.
(Junho de 2001)
Faltou Freio

Stalinismo paz e amor

É inaceitável, absolutamente inaceitável que um profissional


que tem à disposição as poderosas, as imbatíveis armas que os meios
de comunicação internacionais põem ao seu dispor decida,
gratuitamente, ofender e denegrir a imagem de um Chefe de Estado
estrangeiro – e por uma previsível tabela a imagem do próprio país –
perante toda a comunidade mundial. 109
Baixa. Definitivamente baixa, sórdida, indigna, tosca e
grosseira a maneira como um jornalista americano agrediu
moralmente uma autoridade constituída de um país que o recebeu
com o respeito que se deve a qualquer profissional, e como planejou
invocar, ardilosa e imerecidamente, o amparo nobre da liberdade de
expressão.
É inadmissível que a sua irresponsabilidade profissional
supere a sua falta de educação doméstica a ponto de pôr em cheque
a estabilidade política, econômica e social de um país em troca de
uma reportagem meramente especulativa, inconseqüente, aventureira,
Cláudio de Lucena Neto

temerária, desrespeitosa, excessiva, enfim, em todos – todos – os


seus aspectos.
Um jornalista que chega à posição que Larry Rohter chegou
tem, sim, conhecimento do alcance e da repercussão de seu trabalho
e do impacto que tal sorte de declarações têm sobre a credibilidade
da economia dos países, principalmente sobre aqueles em desen-
volvimento. É portanto intolerável que um capricho, uma fantasia
ou uma extravagância sua semeie uma crise maliciosa, infundada,
ridícula e grotesca.
Deve, sem qualquer dúvida, responder por seu excesso.
Exemplarmente.
E há uma infinidade de meios para que o jornalista responda.
Há formas de responsabilizá-lo profissionalmente, civilmente e crimi-
nalmente. Há formas de estender esta responsabilidade ao órgão que
ele representa. Há providências políticas e diplomáticas que podem
ser tomadas.
A saída que o Governo Federal escolheu, no entanto, é a
mais estúpida de todas.
Expulsar um jornalista, ainda que este tenha ofendido o
país, é uma atitude extrema, incoerente, que não representará jamais
a tolerância, a sobriedade e a temperança que o povo brasileiro, apesar
de tantas dificuldades, sempre elegeu como relevantes valores de
110 vida em sociedade.
Por mais dura, por mais injusta que tenha sido a agressão,
não é essa a reação que o cidadão brasileiro espera, principalmente
de autoridades outrora acossadas e perseguidas na luta pela liberdade
de expressão e de pensamento, a mesma liberdade que hoje é perigo-
samente ameaçada por seus próprios atos.
A expulsão encaminha o governo escada abaixo rumo à
mesma indignidade e à mesma torpeza da irresponsabilidade contra
a qual se insurge.
Aqueles que governam o país não podem se dar ao luxo de
cercar-se exclusivamente de sabujos, de bajuladores, de aduladores
Faltou Freio

servis, que aprovem incondicionalmente os mais insensatos desatinos


e arrebatamentos.
Não podem prescindir de opiniões e de alternativas
moderadas, serenas, prudentes, ponderadas e, sobretudo, legítimas –
ainda que divergentes – sob pena de instaurar-se no Brasil defi-
nitivamente a cegueira política, a atrofia intelectual e o autismo social,
cujos indícios já podem ser claramente vistos no rio de incongruência
ideológica que o governo faz cortar o país de norte a sul.
Foi o desvario dos pensadores excêntricos por trás de George
Bush que levou os Estados Unidos ao estado de falência moral em
que se encontram perante a comunidade internacional e que pôs o
seu modelo interno de democracia em um picadeiro circense, onde
exibem, já sem muito orgulho, um espetáculo medonho de horror,
violência, perversões, sadismo e atrocidades muito semelhantes
àquelas que, através de sua ação militar indiscriminada, pretendem
prevenir.
É preciso cautela para que os arroubos dos idealistas deste
stalinismo paz e amor que governa os destinos do Brasil não nos levem
na direção de um abismo muito parecido.
(Maio de 2004)

111
Faltou Freio

O apagão da imoralidade

Primeiro Ato. Sobem as cortinas.Ninguém no plenário da


renúncia presta. Apenas ele.
No princípio, era o Verbo. E antes do Verbo, pelo que temos
notícia, só o ACM, mesmo. Sim, porque o ACM preexistiu a tudo o
que conhecemos. Não o ACM pessoa física, (muita) carne e osso 113
(duro), mas o ACM in essentia, um dos enunciadores da Lei de
Gérson, espírito da busca incessante pelo absolute power, a idéia
materializada da desnecessidade de freio moral na persecução de
objetivos, lícitos ou não (no caso particular, sempre ou não).
Aliás, esse é um espírito que infelizmente sempre esteve
umbilicalmente ligado e invariavelmente presente no círculo de
pessoas que detêm poder. Truculência, despotismo e até mesmo a
inobservância das regras elementares de convivência humana
harmônica têm dado o tom da atuação de diversos governantes e
dirigentes ao longo dos tempos. Hoje, Vladimir Putin, no que restou
da Rússia, João Havelange, em seu reinado na FIFA, Fidel, quem
Cláudio de Lucena Neto

diria, lá em seu reino e, falando em lordes, Sir Ricardo Teixeira e


Lord Eurico Miranda têm dado exemplos de como conseguir temor
sem respeito. Na FPF não, que aqui não tem disso.
Ainda bem que o povo parece estar enxergando melhor.
Neste sentido, a recepção do grande cacique na sua tribo foi
sintomática.
A favor da cidadania, o fato dos próprios baianos haverem
mostrado a sua indignação com respeito às circunstâncias ridículas
e, pelo menos até hoje, inexplicadas da tara freudiana de sacanear a
democracia e do golpe da renúncia, o que contribui para começar a
apagar o asqueroso hábito da imoralidade, ao mesmo tempo em que
evita o fenômeno ao qual já me referi da Síndrome da Viseira de
Burro. Conta pontos a menos o fato do governador haver levado a
popular subida por não ter conseguido controlar a manifestação
popular de forma eficiente e por haver permitido que esse baluarte
da democracia, quase um monumento tombado pelo patrimônio
histórico da humanidade, sofresse agressões terríveis, arranhando,
em sua própria terra, a imagem do mártir do painel.
O que é que a Bahia tem? - pergunta o nosso colega baiano
Cristiano Matos. Ao que consta, caro amigo, a Bahia parece ter antes
de tudo tomado consciência de que há métodos e métodos de se
governar, de se captar recursos, de se promover o desenvolvimento,
de se defender os interesses da terra natal. E que o povo pode - deve!
– exigir de seus representantes, além da dedicação à função e da
114 lealdade para com seus eleitores, que os métodos empregados sejam
dignos, transparentes e honestos, de forma a honrar suas próprias
casas, na lição do poeta, também baiano, também de Matos, também
atormentado pelo dilema barroco entre o pecado e o perdão:
A cada canto um grande conselheiro,
Que nos quer governar cabana e vinha;
Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro.
Trombone nele! Fim do Primeiro Ato. Descem as cortinas.
Por enquanto...
(Junho de 2001)
Faltou Freio

O Brasil do milhão

A atmosfera é densa. Os sobrecenhos estão cerrados e a


respiração, de há muito, está suspensa, aguardando o desfecho da
dramática situação.
O protagonista lança às câmeras aquele olhar de angústia
no qual, ao fundo, percebe-se o desespero diante da possibilidade de
que venha a perder a grande chance de sua vida.
115
Prescindindo temporariamente da faculdade de raciocinar,
o que em tese diferencia esta nossa racinha - desculpem a ausência
de cientificidade, espécie - das demais formas de vida sobre a terra, a
audiência sente a aceleração do pulso a cada ameaça de movimento
na face lívida da vítima.
A voz do apresentador, mediador, mestre-de-cerimônias,
empresário ou que quer que aquela figura represente, é inconfundível.
Grave, pausada, ritualística, cuidadosamente trabalhada e aperfeiço-
ada ao longo de décadas de experiência e de sucesso absoluto, elimina
qualquer risco de perda da concentração.
Cláudio de Lucena Neto

Você está certo disso?


Posso perguntar?
E então, a música completa o cenário. Enquanto a orquestra
executa trechos fortes, comoventes, allegretto, enquanto os fagotes,
as trompas e os timpanis desenvolvem seqüências rítmicas e meló-
dicas frenéticas, a realidade local e temporal sai da tela e invade os
lares, conquistando milhares de cidadãos.
Para o próximo programa, é claro.
A fórmula, como todas as grande idéias que tomaram de
assalto a mente deste Midas tupiniquim, multiplicando, ao longo
dos anos, a sua já imensa fortuna, é de uma simplicidade inquietante.
Cópia? Claro! Por que não? Mas se tudo em sua vida é
resultado de cópias! Muito originais, admita-se, mas cópias. Adap-
tações, para ser eufêmico...
A grande sacada, mais uma vez, é dar ao povo o que o
povo acredita que quer. É uma reação - de uma inteligência chocante
- a uma demanda do seu mercado consumidor.
A crise na qualidade da programação faz o público crer que
merece algo melhor, mais bem produzido, de maior apelo intelectual,
de mais classe. E em verdade, em verdade, eu vos digo que o seu
objetivo está sendo alcançado, na medida em que ele distribui à
116 população, com singela generosidade, migalhas de cultura inútil que,
se não matam, engordam.
Sensacional é notar o súbito interesse das pessoas quando
o tubo de imagem nos projeta a pergunta sobre quem escreveu O
Analista de Bagé; até parece que a Ordem do dia seguinte será literatura
nacional.
Mutatis mutandi, é o que ocorre com nós outros, viciados
nas sitcoms do Sony Entertainment Television©, acreditando sinceramente
na superioridade intelectual de Will & Grace sobre Guma & Lívia,
de Friends sobre Malhação, de Survivor sobre No Limite, de James
Burrows & Chris Keyser sobre Gilberto Braga & Benedito Rui Barbosa.
Faltou Freio

A única diferença, se é que há alguma diferença signi-


ficativa, é que enquanto lá a sátira é em cima da inércia do cidadão,
anestesiado pelo ópio do progresso e da prosperidade, aqui se tira
onda da ignorância do povo, que sequer sabe que sua ignorância é o
motivo do sucesso, o que move a roda da fortuna.
E nas horas vagas, é o que serve de chacota pra quem acha
que pode mais.
Embora eu ainda ache que qualquer esforço, por mais inte-
ressado e mal-intencionado que seja, de contra-ataque ao processo
de bundalização acaba, por bem ou por mal, sendo válido.
(Junho de 2001)

117
Faltou Freio

Tomaram no Kursk

De antemão, perdoem o extremo mau-gosto deste título.


Não é que tenha sido pra não perder a piada, ou que deva-se partir da
premissa de que é melhor humor negro que humor nenhum. Mas, de um
mau-gosto descomunal, mesmo, foi a reação das autoridades da ruína
socio-econômica daquilo que outrora fora o palco onde o estandarte
escarlate tremulou com mais pompa, ante a agonia daqueles que, 119
antes de serem guardiões de temíveis e inescrutáveis segredos mili-
tares, eram cidadão russos, e antes ainda, seres humanos.
Almas para sempre sepultadas no mar frio como a guerra
que as expulsou da vida não puderam gozar, por um capricho arrogante
de seus homens fortes - entendo cada vez menos o sentido desta
nomenclatura! - , da ajuda que se oferecia.
Temos cá nossos mais-que-vinte-e-poucos anos e sabemos
que não havia inocentes nem altruísmo em seu estado mais bruto
naquela oferta de ajuda. Mas, ora bolas, diariamente são feitas
concessões a grupos de terroristas de causas nem tão nobres,
Cláudio de Lucena Neto

burlando-se muitas vezes a lei, de forma a salvaguardar a integridade


física das pessoas tomadas como reféns. Sinceramente, a causa pedia
mais peito do que tiveram.
Não sou estrategista militar, não conheço táticas bélicas e
não saberia sequer como me aproximar da casa da minha própria
sogra sem que o poodle que mora lá me detectasse a quilômetros de
distância. Creio, no entanto, que sei sopesar o valor que tem uma
vida - e para o bem da sociedade, diante da opção profissional que
fiz, é melhor que saiba, mesmo! - e acredito que o preço pago foi
demasiado alto.
Trata-se, evidentemente, de um caso de condenação cruel,
indigna, degradante, humilhante e covarde à morte pelo fato, de uma
torpeza à toda prova, de estar no lugar errado na hora errada.
Imaginasse Beccaria que o gênero humano desceria a níveis tão
mesquinhos mais empenho teria demonstrado na sua odisséia contra
as formas hediondas de tratar o semelhante.
Não bastasse a incompetência do risível exército russo, não
bastasse a presunção das autoridades em imaginar que o incidente
seria abafado, como se o ferro da cortina houvesse resistido à bravura
da chama da liberdade, não fosse suficiente a indecisão e a falta de
comando no sentido de tomar uma ação mais rapidamente, ainda
foram lá incomodar o Czar que, após a prática do seu esporte predileto,
o Massacre a Chechenos, gozava de merecidíssimas férias às margens
120 do Mar Negro.
Que chateação! Levantar do seu merecido descanso, vestir
aquele terno enjoado, fazer crer que o erro estúpido é reparável, chorar
junto com a população, para ao final, anunciar a redenção! A prova
de que o Estado Russo atribui, sim, um valor à vida de seus cidadãos
e indenizará a família das vítimas, precisamente, no valor de um
milhão e meio de rublos ou, em linguagem financeira mundialmente
compreensível, cinqüenta e quatro mil dólares.
Não, amigos. Realmente não sabemos se a explosão, por si
só, teria poupado alguma vida no interior do fatídico Kursk. E querem
saber de uma coisa? Isso não tem a menor importância! Importância
devemos dar, sim, à certeza absoluta que temos de que servidores
Faltou Freio

da pátria, suas famílias, cidadãos, uma imprensa livre e toda a


humanidade tem direito a uma reação um pouco que seja acima da
hipocrisia, da inépcia e do desdém, diante de uma tragédia que
comoveu até mesmo o mais gélido dos corações siberianos.
O despreparo que levou ao catastrófico final do drama que
acompanhamos pode e deve ser tomado como uma advertência com
relação à competência deste verdadeiro dream team da burrocracia
- é assim, mesmo - russa. O verdadeiro valor dos governantes deve
ser aquilatado exatamente nas situações-limite, nas quais ele não
deve somente tomar a decisão certa, mas, principalmente, tomá-la
com a maior rapidez possível, sob pena de aquela não ser mais a
decisão certa! O que presenciamos tem nome: apatia - e se é uma
característica desprezível em qualquer ser humano, é absolutamente
inaceitável em um dirigente de uma nação!
Não enxerguem nesta manifestação indignada qualquer
censura ou exaltação a sistemas socioeconômicos ou
pronunciamentos do gênero. Fica, somente, o repúdio, a irresignação,
o inconformismo, contra aqueles - todos! - que tendo o poder de
tomar as decisões e a partir delas reescrever os destinos, interferir no
curso dos fatos, dar a sua contribuição, na busca de uma solução,
optam pelo silêncio, triste rumo final do Kursk.
Silêncio ao qual a história, certamente, com a mesma
crueldade e indiferença, também os condenará.
(Setembro de 2000)
121
Faltou Freio

Vencendo a derrota

As manchetes do dia seguinte davam conta de que o sonho


havia acabado.

Alguém dirá que tudo o que aconteceu foi que o Fluminense


foi ao interior da Paraíba e eliminou um pequeno time, que vinha
dando aos grandes um trabalho incomum na Copa do Brasil. 123
Nenhuma visão pode ser mais limitada, mais restrita nem
mais opaca.

Enfrentar grandes clubes do futebol brasileiro, jogar de igual


pra igual contra eles, ter a possibilidade de seguir em frente e eliminá-
los, nada disso foi um sonho para o Treze. Vivemos a mais pura e
concreta realidade, absolutamente cientes de nossas limitações mas
plenamente confiantes em nossas possibilidades.

O Treze nunca teve tantos torcedores tão orgulhosos de


envergar o manto alvinegro; uma equipe paraibana nunca despertou
Cláudio de Lucena Neto

tanta simpatia por esse Brasilzão de meu Deus afora; a nova geração
de torcedores – aquela que foi às lágrimas, na companhia de seus
pais, crescerá ainda mais apaixonada do que nós.
Triste, sim, mas ninguém sai frustrado, ninguém se sente
derrotado, vencido, abatido ou humilhado quando os seus guerreiros
combatem com coragem, com valentia e com raça, defendendo com
dignidade o time tão querido. São atletas que já estão nos nossos
corações, e ficarão na história do nosso glorioso Galo, para sempre.
No já lendário Amigão onde jogando pela Copa do Brasil é
praticamente invencível, o Galo jogou quatro vezes em 2005, ganhou
quatro vezes, marcou nove gols e sofreu apenas um.
De pênalti.
O time superou o vice-campeão gaúcho, o Campeão
Paulista, um Campeão Brasileiro, e até mesmo o grande Fluminense,
multi-campeão carioca, atual líder da primeira divisão do futebol
brasileiro, vindo de uma seqüência histórica de vitórias, teve-a
interrompida, suou, sofreu e precisou de 20 cobranças de penalidades,
fazendo sua torcida passar por um verdadeiro drama tendo estado,
por 4 vezes, a um pênalti da eliminação para conseguir a muito custo
desclassificar o Treze.
Depois do jogo, por toda a cidade, os torcedores ainda
agitavam bandeiras, confraternizavam, cantavam o orgulho de ser
124 trezeano em reconhecimento pelo grande feito que haviam pre-
senciado.
Não se surpreendam, caros amigos, se esta derrota tiver
sido mais importante do que muitas das grandes vitórias que tivemos.
Aliás, a língua portuguesa, com toda a sua riqueza,
certamente ainda não possui um termo adequado, preciso, para
descrever o sentimento que tomou conta dos torcedores do Treze
depois do último jogo da Copa do Brasil.
Não, meus amigos, tem que haver outra palavra para
descrever o que ocorreu e, se não houver, precisa ser criada.
Faltou Freio

Porque, deste time, pode-se dizer qualquer coisa, menos que


foi derrotado.
Quem quiser enxergar apenas que o Fluminense foi ao
interior da Paraíba e eliminou um pequeno time, que vinha dando
um trabalho incomum os grandes na Copa do Brasil, que fique à
vontade.
No fundo a gente sabe que foi muito mais do que isso.
No fundo a gente sabe que, naquela noite, o futebol da
Paraíba – e, na carona, a auto-estima desse nosso povo – alcançou
uma nova dimensão, ocupou um novo espaço, renasceu, despertou,
aí sim, para um novo sonho, o de permanecer entre os grandes, sonho
que está apenas começando e cuja semente foi plantada ao som do
sonoro canto deste Galo fantástico.
(Maio de 2005)

125
Faltou Freio

O mito da reeducação alimmentar

Não conseguir mais ter o mesmo pique para jogar bola por
causa da barriga é até aceitável. Ir à praia de camisa pólo, parecendo
um E.T. constrangido em expor a disforme protuberância abdominal
também é coisa que se supera sem precisar de análise. Dá pra suportar
o cansaço e a falta de ar que se segue a qualquer caminhadinha do
dia-a-dia. 127
Que minha irmã não consiga mais fechar os braços em torno
de mim já é um pouco mais preocupante. Mas presenciar minha
noiva e minha mãe tentando vestir um puff da sala com um abadá
da Timbalada, na esperança que depois disso – e só depois disso – a
maldita peça carnavalesca caiba em mim é fato que me faz reco-
nhecer que a inelutável hora de perder peso chegou, sob pena de que
cenas tão ou mais ridículas tornem-se um doloroso e caricato
espetáculo diário.
Deve parecer o cúmulo da insensibilidade e do pedantismo
falar em regime em meio a tantas campanhas oficiais e oficiosas
Cláudio de Lucena Neto

para conscientizar a população da urgente necessidade de se lutar


contra a fome que assola as regiões menos favorecidas do país.
Não é.
Aumento desregrado de peso não tem absolutamente a ver
com fartura e, em meu caso, definitivamente não tem a ver, como se
costuma pregar aqui pelo interior do Nordeste, com ascensão no,
por assim dizer, status civitatis. É falta de educação mesmo, falta de
controle, de limite, de horário, de vergonha, muitas vezes.
Excesso de peso da população na proporção que temos pode
virar um grave problema de saúde pública, principalmente porque a
tendência das campanhas de publicidade, por uma necessidade
intrínseca de vendas, não é a de alertar, mas a de potencializar esta
falta de educação, de limite e de horários. E cada vez mais cedo!
A solução, ao invés de ser pela conscientização, é vendida
através das dietas malucas, de remédios milagrosos, de belas
academias, de mais comida - agora, diet e light, produtos que são
consumidos por quem, evidentemente, já está com o paladar
completamente comprometido e que, por conseqüência, não consegue
mais distinguir o gosto de um brigadeiro do de uma bolinha de isopor.
No fim das contas algo me faz crer, cá com meus botões,
que emagrecer tenha alguma coisa a ver com comer menos e melhor.
Luto para pôr em prática essa teoria, mas a falta de educação é terrível.
128 Aliás, o termo reeducação alimentar é talvez um dos maiores
estelionatos intelectuais de que se tem notícia. Algo como música
militar, ou liberdade americana.
Conceitos, enfim, incompatíveis por natureza.
(Janeiro de 2004)
Este livro foi composto em tipologia Calisto 11/18
e impresso em papel Pólen Bold 90 g/m2
nas oficinas da Parkgraf em
em julho de 2005.

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