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ESTUDO DO LIVRO MINHA FORMAÇÃO, DE JOAQUIM NABUCO

REFERÊNCIA:

MARTINS, Matheus; TEIXEIRA, Marcos. Engenho, percurso e formação: um estudo das memórias de
Joaquim Nabuco. In: Revista de Literatura - 2005. Belo Horizonte: Associação Pré-UFMG, 2004, p. 33-62.

Da vasta produção intelectual deste nosso político-escritor (en-


tre dezenas de discursos parlamentares, pequenos ensaios e até um
estudo crítico sobre Os Lusíadas, de Camões), três reconhecidos livros
merecem maior destaque: O abolicionismo, de 1883, obra em que
Nabuco se debruça sobre aquilo que seria sua maior preocupação
durante grande parte de sua vida, a abolição da escravidão no Brasil;
Um estadista do Império, de 1898, detalhada biografia de Nabuco de
Araújo, seu pai e importante figura da política brasileira da metade do
século XIX; e Minha formação, objeto de nosso estudo, obra de
1900, em que Joaquim, ao traçar o trajeto de sua formação política-
literária-existencial, retoma as duas obras anteriores e reflete sobre
momentos importantes da história brasileira do final do século XIX.

Revista de Literatura
da Associação Pré-UFMG

A Revista de Literatura da Associação Pré-


UFMG, que é elaborada todos os anos pelos
professores do Departamento de Literatura, traz
análises dos livros indicados ao vestibular da
UFMG. A revista pode ser adquirida nas unidades
da Associação Pré-UFMG.

Outras informações:

www.preufmg.org.br
ENGENHO, PERCURSO E FORMAÇÃO:
UM ESTUDO DAS MEMÓRIAS DE JOAQUIM NABUCO

Matheus Martins
Marcos Teixeira

1 - Joaquim Nabuco: a vida Unidos. Em março de 1878 morre seu pai que,
antes de falecer, assegurou a sua eleição com o
Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Barão de Vila Bela como deputado geral pela
Araújo, filho do futuro senador José Tomás província de Pernambuco. No ano seguinte,
Nabuco de Araújo e de Ana Benigna de Sá participando do parlamento, Joaquim Nabuco
Barreto, nasceu no dia 19 de agosto de 1849, iniciou a campanha contra a escravidão. Em
no sobrado da Rua do Aterro da Boa Vista 1882, foi derrotado nas eleições para a Câmara
(hoje Rua da Imperatriz Tereza Cristina), em dos Deputados. Nesse mesmo ano partiu para a
Recife, Pernambuco. Ainda criança, seus pais Europa numa viagem que chamou de “exílio
seguiram para o Rio de Janeiro e ele foi morar voluntário”.
com sua madrinha, dona Ana Rosa Falcão de No dia 10 de fevereiro de 1888 conseguiu
Carvalho, no engenho Massangana, localizado uma audiência particular com o papa Leão XIII
no município do Cabo, também em com quem conversou e pediu que se
Pernambuco. O menino Nabuco passou sua pronunciasse contra a escravidão existente no
infância nesse engenho, onde teve seu Brasil e na África. Nessa conversa, consegue do
primeiro contato com os escravos e onde papa a promessa de que ele se pronunciaria na
permaneceu até a morte de sua madrinha, encíclica em favor dos negros. Todavia, a
ocorrida em 1857, quando ele tinha oito anos. encíclica só é publicada após a assinatura da Lei
Com isso, mudou-se para a residência de Áurea. No dia 28 de abril de 1889, Nabuco se
seus pais, no Rio de Janeiro, onde realizou os casou com a dona Evelina Torres Soares
estudos de nível primário e, posteriormente, Ribeiro, filha do barão de Inhoã. No dia 21 de
na cidade de Nova Friburgo, os de nível agosto desse ano, foi eleito deputado por
secundário, estes feitos em colégio dirigido Pernambuco, para a última legislatura do
pelo barão de Tautphœus, o qual será Império. Com a Proclamação da República, em
considerado como mestre pelo escritor. Em 15 de novembro de 1889, Nabuco se posicionou
1869, transferiu-se para a Faculdade de a favor da Monarquia, tendo recusado inclusive,
Direito, no Recife, dando continuidade ao apesar de solicitado, a postular uma cadeira na
curso, iniciado na Faculdade de São Paulo em Assembléia Constituinte de 1891. Justificou sua
1866. Em 1870, diplomou-se em Ciências posição no opúsculo Por que sou monarquista.
Sociais e Jurídicas. Após a formatura, Em 1892 viajou para a Inglaterra com a família,
retornou ao Rio de Janeiro, onde tentou aí permanecendo por alguns anos. Fazendo um
advogar. balanço de sua vida, voltou à Igreja Católica,
Em 1872, tendo vendido o Engenho que havia abandonado na juventude.
Serraria, que havia herdado de sua madrinha, De 1893 a 1899 temos o período de
viajou para a Europa onde passou um ano. intensa atividade intelectual do escritor. Nabuco
Nesse período, fez contatos com intelectuais e dedicou-se às letras, escrevendo livros e artigos
políticos. Em 1876 obteve seu primeiro cargo para jornais e revistas. Nesse período escreve
público, o de adido de legação, por meio do Um estadista do Império (1896) e seu livro de
qual passa cerca de um ano nos Estados memórias Minha formação, que é publicado em

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1900. Durante esse período, em 1896, escritor”1 , como afirma Gilberto Freyre em sua
participou da fundação da Academia introdução a Minha formação. Apesar de não ter
Brasileira de Letras, que teve Machado de sido ficcionista nem poeta de grande fôlego, a
Assis como seu primeiro presidente e Nabuco temática político-social de toda a obra de
como secretário perpétuo. Em 1899 aceitou o Nabuco ganhará o tratamento e a dimensão de
convite do governo da República para expressão literária, evidenciados por uma visível
defender o Brasil na questão de limites com a preocupação estilística e por um domínio da
então Guiana Inglesa, de que seria árbitro o rei própria linguagem.
Victor Emanuel da Itália. Iniciou um processo Na verdade, o que aqui dividimos em
de afastamento do grupo monarquista e a sua duas esferas distintas — política e literatura —
conciliação com a República. Em 1900, Nabuco aproxima pelo que as duas revelam de
tornou-se finalmente um funcionário essencialmente humano, isto é, pelo que nelas
republicano. Em 1904, o rei da Itália dá o transcende a mera manifestação pessoal e atinge
laudo arbitral com relação à questão da a condição de universal. Veremos adiante que
Guiana Inglesa, dividindo o território disso resultarão o olhar cosmopolita e a
disputado em duas partes: 3/5 para a Grã- incapacidade de experimentar aquilo a que ele
Bretanha e 2/5 para o Brasil. Esse resultado chama de pequena política, com “p” minúsculo,
foi considerado por todos, inclusive por aquela realizada por partidos e movida pelos
Nabuco, como uma derrota para o Brasil. seus interesses. Por ora, basta-nos avaliar que
Em 1905, tendo sido criada a embaixada tanto como político quanto como leitor, Joaquim
brasileira em Washington, nos Estados Nabuco se considera espectador do grande
Unidos, Joaquim Nabuco foi nomeado drama humano, refletido nos detalhes que a
embaixador do Brasil. O político faleceu no História e a Arte nos apresentam através de seus
dia 17 de janeiro de 1910, ainda em episódios e obras, respectivamente.
Washington, após um longo período de Da vasta produção intelectual deste
doenças. nosso político-escritor (entre dezenas de
Cumpre ressaltar a importância desta discursos parlamentares, pequenos ensaios e até
breve nota biográfica uma vez que o objeto do um estudo crítico sobre Os Lusíadas, de
presente estudo tem como matéria uma parte Camões), três reconhecidos livros merecem
da vida de Joaquim Nabuco. Por isso, é maior destaque: O abolicionismo, de 1883, obra
interessante ter uma visão geral do que foi a em que Nabuco se debruça sobre aquilo que
vida deste personagem de nossa história seria sua maior preocupação durante grande
política para que possamos situar e entender parte de sua vida, a abolição da escravidão no
melhor o detalhe que ele nos conta em Minha Brasil; Um estadista do Império, de 1898,
formação. detalhada biografia de Nabuco de Araújo, seu
pai e importante figura da política brasileira da
metade do século XIX; e Minha formação,
2 - Joaquim Nabuco: a obra objeto de nosso estudo, obra de 1900, em que
Joaquim, ao traçar o trajeto de sua fo rmação
Paralelamente à vocação política, o política-literária-existencial, retoma as duas
interesse e a inclinação pela literatura sempre obras anteriores e reflete sobre momentos
estiveram presentes na vida de Joaquim importantes da história brasileira do final do
Nabuco. De todas as atividades deste político, século XIX. Sendo esta última nosso objeto,
a mais persistente sempre foi “a de ser

1
Prefácio, p. 16.

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falemos um pouco mais dela nos seus traços desenvolvermos tal hipótese; continuemos a
gerais antes que adentremos sua análise. leitura.
Minha formação é na verdade a Ao longo do capítulo, o escritor descreve
coleção de diversos artigos escritos entre a admiração que então, durante os primeiros
1893-1899 e publicados ao longo desses anos contatos com a escola, naturalmente mantinha
em jornais como O Comércio , de São Paulo, e pelo pai e por sua postura liberal, apesar de
em outros importantes periódicos da época, naquela época ainda não entender a importância
como a Revista Brasileira. É preciso, porém, do senador Nabuco de Araújo para a
que o leitor, aqui, não confunda as datas: se a movimentação de tal consciência nacional.
redação da obra remonta à década de 1890, a Anos se passam e o período acadêmico é
história que ela conta começa na infância de então marcado por um adolescente Nabuco já
Nabuco em Massangana e o início de seu cheio de entusiasmo político, radicalizando a
contato com os escravos (apesar deste influência recebida do pai. Estudante de Direito,
episódio não corresponder ao primeiro fascinado pelas contínuas descobertas do
capítulo, como veremos) e vai, seguindo um espírito, lendo tudo que lhe vinha à mão
recorte temático (a formação acima referida), indiscriminadamente, Nabuco comenta que
até a década que sucede a Proclamação da nesta época “não tinha idéia alguma, porque
República, como se pode observar no tinha todas”, ilustrando assim a imaturidade e a
derradeiro capítulo intitulado “Os últimos dez avidez de “impressões novas” de sua juventude.
anos (1889-1899)”. Apesar da intacta e radical base liberal, o
É hora então de recontarmos essa escritor afirma que durante esta fase seu
história, através dos vinte e três capítulos que pensamento ainda não se fixara em nenhuma
a compõem, a fim de levantar seus elementos posição política, pairando entre as diferentes
centrais, para em seguida aprofundá- los, e, atrações exercidas tanto pela monarquia quanto
num último momento, pensar a maneira como pela república. O elemento decisivo, que o
Nabuco conduz e estrutura a narrativa de sua levará a uma postura monárquica parlamentar
formação. sem volta, surgirá na figura de um pouco lido
pensador político chamado Bagehot e seu livro
sobre a Constituição Inglesa, tema do capítulo
3 – Uma formação em capítulos seguinte.

Capítulo 1: COLÉGIO E ACADEMIA


Capítulo 2: BAGEHOT
Apesar do título, Nabuco inicia a
narrativa de sua formação falando muito O encontro de Nabuco com a obra de
pouco de seu período escolar. Para ele, o Bagehot acontece em 1869, durante o seu quarto
detalhe importante desta época reside na ano de faculdade. A leve inclinação à República,
influência que o liberalismo de seu pai começa para a qual tendia o liberalis mo um tanto
a exercer sobre seu pensamento, servindo-lhe americanizado do jovem estudante de Direito,
de alicerce durante toda a vida, como enfraquece ao entrar em contato com as idéias
confirmam os capítulos seguintes da obra. do referido filósofo que, apesar de não possuir o
Adiante neste estudo, arriscaremos dizer olhar retrospectivo e panorâmico de um jurista
inclusive que Minha formação talvez seja a ou mesmo de um historiador, tinha, sim, a
história mesma desta postura liberal e dos seus agudeza de raciocínio do pensador político,
desdobramentos na vida política e literária de necessária para compreender e esmiuçar um
Joaquim Nabuco. Ainda é cedo, porém, para determinado problema. Nabuco usa então a

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metáfora do relógio de catedral para demarcar opinião, e o inglês, um relógio que marca até os
melhor as diferenças de Bagehot em relação a segundos” 2 , isto é, para ele, apesar da origem
outros pensadores: enquanto estes dão notícia feudal, do princípio hereditário da dinastia,
da construção, da história, da simbologia das enfim, de toda a tradição aristocrática da
formas de um relógio específico, Bagehot monarquia inglesa (preconceitos democratas que
simplifica e explica o funcionamento de seu ele diz perder), o modelo britânico de governo é
“mecanismo atual”. muito mais democrático e popular do que a
A influência que Nabuco recebe deste república americana, que elege o seu presidente
pensador tem mais a ver então com uma e nada pode fazer após isso. É este liberalismo
estratégia para entender sistemas e concepções conservador que Joaquim Nabuco tentará
políticas do que com a simples absorção de explicar a partir de agora e que relativizaremos
idéias variadas. Um desses sistemas que na parte seguinte deste estudo.
Bagehot explica, ao qual Nabuco se sente
devedor, é o do “governo de gabinete”, alma
da Constituição Inglesa e de sua monarquia Capítulo 3- NA REFORMA (1871-1873)
parlamentar. Para o pensador, este tipo de
governo harmoniza os poderes legislativo e Neste terceiro capítulo, Nabuco trata do
executivo, uma vez que eles são esferas período pós-academia e diz ter vencido, através
interdependentes, unidas pela Câmara dos da leitura de Bagehot, o preconceito em relação
Comuns, cujo gabinete, sua principal a um elemento monárquico que inviabilizava a
comissão, é capaz de dissolvê- la caso as aceitação desta forma de governo por muitas
coisas não estejam funcionando de maneira pessoas: a não-eletividade do chefe de Estado. O
equilibrada entre os dois poderes. Nabuco vê recém- formado advogado inverte a negatividade
neste modelo um exemplo de política liberal, deste detalhe e passa a vê-lo, inclusive, em sua
avessa à disputa de vaidades que ele, na estabilidade, como o sinal da superioridade
esteira de Bagehot, percebe existir no monárquica sobre o modelo republicano, sujeito
presidencialismo, na medida em que a mútua “a interrupções periódicas, que são pa ra certos
independência dos poderes acima referidos, países revoluções certas”3 .
nesta forma de governo, gera uma rivalidade Nabuco adverte, porém, que a fixação
prejudicial ao desenvolvimento da monárquica de seu pensamento não se realiza
democracia. assim tão rápido e nos dá mais detalhes de seu
Em suma, o pensamento bagehotiano liberalismo radical durante os três anos em que
de Nabuco considera que a república dá escreveu artigos políticos ultra-democratas,
margem a uma conduta de governo voltada a “quase” republicanos, para a revista Reforma.
interesses pessoais, enquanto que o Num destes artigos, por exemplo, Nabuco
parlamento atende mais aos interesses de uma criticava a viagem do Imperador à Europa em
coletividade, caso contrário ele é dissolvido. A 1871, sugerindo uma visita aos Estados Unidos,
partir desta perspectiva, Nabuco inicia uma terra da liberdade e do progresso, para que lá ele
série de comparações entre os sistemas de visse que um povo pode dispensar a tutela do
governo da Inglaterra e dos Estados Unidos rei. Nesta fase ainda, o escritor investe contra a
(monarquia parlamentar e presidencialismo, Igreja e participa da campanha maçônica de
respectivamente) que vai durar alguns bons 1873. Sabemos que anos depois Nabuco fará as
capítulos e que fecha este segundo retornando pazes com a religião; neste momento, no
à imagem do relógio: “comparados os dois
governos, o norte-americano ficou-me 2
NABUCO, 1981. p. 36.
parecendo um relógio que marca as horas da 3
Idem. p. 37.

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entanto, ele rompe com a doutrina romana em e domina a inteligência”5 por tratar de um drama
função da construção de uma Igreja nacional, humano universal, promovendo uma emoção
na esteira das idéias de Feijó. puramente intelectual, que comove o coração só
Mas aos poucos, nas palavras do quando encenada num detalhe ligado
próprio escritor, “a influência do sistema afetivamente ao espectador. Este detalhe, porém,
monárquico vai crescendo e prevalecendo como está dito, não representa a política pela
sobre esse radicalismo espontâneo, esse qual Nabuco se diz interessado; o que nele — no
igualitarismo inflexível” 4 e 1873 se torna o detalhe nacional — chama a atenção de sua
ano da fixação de seu pensamento pela inteligência é o que há de universal neste caso
monarquia parlamentar. É na mesma Reforma específico representado em sua terra.
que Nabuco passa a escrever artigos atacando A atração que o mundo exerce então
a república, comparando as figuras do sobre Nabuco o levará a algumas afirmações que
soberano inglês e do presidente americano: podem chocar o leitor mais patriótico, tais
para ele, o chefe de estado de um governo como: “em 1870, o meu maior interesse não está
presidencialista se aproxima muito mais da na política do Brasil, está em Sedan. No começo
imagem de um tirano do que o próprio de 1871, não está na formação do Gabinete Rio
Imperador, uma vez que este, no que tange a Branco, está no incêndio de Paris”6 . O escritor,
administração, depende do exercício ativo da porém, atribui muito desse caráter expansivo de
Câmara dos Comuns, enquanto que aquele, ao seu pensamento à fome de conhecimento própria
ser eleito, escolhe seus funcionários, governa da juventude, mas reconhece que, em matéria de
e comanda a nação à sua maneira. espírito, sua curiosidade nunca encontrou
Relativizaremos também essas reflexões de limites, mesmo que politicamente tenha sido
Nabuco na próxima parte deste estudo, a fim homem de uma só idéia, de um inabalável
entender a maneira como o escritor constrói monarquismo.
seu raciocínio político, através de algumas Ao final do capítulo, Nabuco amarra seu
omissões e exageros. Por ora, continuemos a olhar universalista e seu interesse europeu com a
ver o que ele diz. idéia de que os brasileiros pertencem à América
pelo que há de novo em nosso espírito e à
Europa pelo que em nós está sedimentado, isto
Capítulo 4: ATRAÇÃO DO MUNDO é, o escritor considera que os povos americanos
não têm uma tradição própria e que, por isso,
Nabuco introduz neste capítulo um sua imaginação não pode deixar de pertencer ao
elemento muito importante para a Velho Mundo. Em suma, Joaquim Nabuco
compreensão de sua formação mais ampla, pensa a Europa como o berço da América
que é a de homem liberal: o cosmopolitismo (talvez de todo o mundo) e, por conseqüência
de sua política. Desde os anos de mocidade disso, o espírito humano seria europeu. Daí
descritos no capítulo anterior, o escritor se diz resultaria a instabilidade que ele atribui aos sul-
sempre incapaz de ser aquilo que se entende americanos: quando se está no lado de cá do
por político profissional, o homem de partido, Atlântico “sente-se a ausência do mundo” 7 ;
cujos interesses são locais, regionais, de país. quando se está no lado de lá, a ausência da
Para ele, a política que interessa é aquela com pátria.
“P” maiúsculo, entendida como história,
filosofia, moral, ideologia; aquela que “prende
5
Idem. p. 41.
6
Idem. p. 42.
4 7
NABUCO, 1981. p. 38. NABUCO, 1981. p. 44.

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Capítulo 5: PRIMEIRA VIAGEM À ignorar, no entanto, a sedução promovida
EUROPA também pelas artes: Nabuco se sentia então
dividido entre os dois interesses, mas deixa
Pelo que acabamos de ver, podemos entrever uma certa vitória da segunda esfera de
ter uma idéia da influência que exerceu sobre atenções em passagens como: “Eu, porém, não
o pensamento de Joaquim Nabuco sua poderia sequer lembrar-me de que fora político
primeira viagem à Europa, datada de 1873: a diante do mármore dos mármores ou do colorido
imagem que ele usa, ainda no capítulo que se esvai e de um traço que se apaga de
anterior, para caracterizar o efeito deste Leonardo [da Vinci]”10 ou em “Quando em um
episódio, é a de uma “metamorfose pessoal”, mesmo homem há um lírico e um político, a
semelhante a da larva que se transforma em lenda tem para ele uma proporção duas vezes
borboleta8 . maior que a da História”11 .
Apesar de ter durado apenas um ano, Mas o capítulo é sobre política e Nabuco
Nabuco afirma que a estadia européia serviu relata suas participações como espectador de
para fortalecer suas idéias monárquicas e debates memoráveis na Assembléia Nacional,
“destruir no gérmen toda e qualquer além de sua admiração pelo republicano francês
inclinação republicana” 9 que porventura Adolphe Thiers. Este detalhe curioso exige um
permanecesse em seu espírito, ao notar que o comentário: assumindo-se francamente thierista,
republicanismo francês tinha um “fermento de Nabuco se diz politicamente republicano em
ódio” contrário ao exercício realmente liberal; França; politicamente, mas não essencialmente,
uma agressividade advinda da intolerância e porque, na essência, a Terceira República
da desarmonia interna de um governo francesa, nos conta Nabuco, era fruto inclusive
conduzido pela luta de vaidades, gerando uma de monarquistas, estando então, na origem, de
“hipertrofia ingênua da personalidade”. acordo com se u espírito.
Nabuco vê a intolerância como uma fobia da O grande efeito político de França sobre
liberdade e a aproxima à postura própria de Nabuco fora então a consciência de que “a
um fanático. forma de governo não é uma questão teórica,
No fim do capítulo, porém, Nabuco porém prática, relativa, de tempo e de
revela que o verdadeiro efeito desta viagem situação” 12 , destruindo assim fanatismo e
fora o de desviar a política do seu centro intolerâncias: se na França de então a atmosfera
principal de atenções, deslumbrado que estava liberal “aproveitava” melhor à república, cuja
pelas impressões de arte e vida recolhidas no idéia Thiers toma do poder exclusivo dos
passeio. Apesar deste afastamento, seria jacobinos, Nabuco reforça seu monarquismo
ingênuo pens ar que Nabuco não sofreria para o Brasil, por considerá-lo mais adequado às
influências políticas da Europa naquele nossas circunstâncias da época.
período; é deste tipo de influência francesa
que o próximo capítulo tratará.
Capítulo 7: ERNEST RENAN

Capítulo 6: A FRANÇA DE 1873-74 Comentada a influência política francesa,


Nabuco passa a descrever as influências
O sexto capítulo fala então da literárias adquiridas nesse país. A partir de 1873,
influência política exercida pela França, se m
10
Idem, p. 52.
8 11
Idem. p. 42. Idem. p. 53.
9 12
Idem. p. 47. Ide m. p. 54.

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data da viagem, até 1879, entrada de Nabuco continua dizendo que o que impressiona em seus
na Câmara, a literatura predomina em sua poemas seja talvez a eloqüência de sua retórica,
vida. Apesar do gosto pelas letras remontar sua capacidade discursiva, que não
aos tempos da Academia, o período anterior à necessariamente têm a ver com o que ele chama
viagem é de receptividade, de leitura, e só de dom do verso, entendido como “a mais nobre
após o conhecimento da França é que Nabuco forma do pensamento, a mais pura cristalização
passa a sentir a necessidade de criar. Como da idéia”14 .
sua bagagem literária era quase toda composta Nabuco termina citando Olavo Bilac, o
por textos em francês, o escritor inicia sua príncipe dos poetas parnasianos, para mostrar
produção escrevendo nesta língua. como o timbre de um verso se realiza com
Aventurando-se em poesia, publica naturalidade em qualquer poema daquele que
apenas um único livro, intitulado Amour et possui o referido dom, e também para comentar
Dieu, que, com segura auto-crítica, considera a lição aprendida com Renan, de que aos novos
muito fraco, mas que na época submete à escritores é indispensável o conhecimento dos
leitura de muita gente importante, inclusive de antigos. Percebemos com clareza neste detalhe à
seu grande mestre Ernest Renan. inclinação de Nabuco à poesia parnasiana,
Nabuco então avisa aos jovens poetas escola poética predominante da época (segunda
sobre o perigo da eutrapelia, isto é, os falsos metade do século XIX), cuja obediência a
elogios que grandes escritores fazem a modelos fixos e a um repertório de imagens,
estreantes para não os ofender nem ambos advindos da tradição clássica,.está entre
desestimular. Nabuco, anos após ter recebido suas premissas básicas de composição. Veremos
uma elogiosa carta de Renan sobre seus que a valorização da tradição reaparecerá com
poemas, lê um artigo em que o mestre admite bastante força nos capítulos 10 e 13, porém, em
praticar várias dessas eutrapelias para com sua dimensão política, para justificar a posição
jovens escritores que lhe mandam originais. monárquica de Joaquim Nabuco.
Nabuco fecha então o capítulo valorizando a
crítica sincera e o sacrifício de uma “honra
literária” em função dos progressos do Capítulo 9: ADIDO DE LEGAÇÃO
escritor.
Nabuco encerra o capítulo anterior e
inicia este reforçando a idéia de que a viagem à
Capítulo 8- A CRISE POÉTICA Europa desviara seu foco de atenção para as
artes, fechando ao seu olhar toda e qualquer
Este capítulo é uma espécie de preocupação em política que não fosse
extensão da autocrítica literária iniciada no universal, distante assim da luta de partidos e de
anterior. Aqui, Nabuco explica as razões pelas interesses locais. A maneira como seu espírito
quais ele “naufragaria sempre no verso”13 , monarquista se incorpora a sua consciência
sendo a falta de originalidade de sua produção estética será, de acordo com ele, o principal
a principal delas. Ao citar um de seus poemas, trabalho político operado durante os anos de
em francês, o escritor avalia que poderia até 1873-79. Neste intervalo de tempo, várias coisas
haver naqueles versos o embrião de uma acontecem: a viagem a Europa a qual já nos
“sedutora filosofia’, caso eles não fossem uma referimos; a volta ao Velho Mundo pouco tempo
pobre tradução do que Renan escrevera depois; e o adido de legação, ou seja, o cargo de
anteriormente em “elegante prosa”. Assim, diplomata nos Estados Unidos, em 1876, único

13 14
NABUCO, 1981. p. 63. Idem. p. 64.

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exercido por Nabuco até a data de publicação Capítulo 11: 32, GROSVENOR GARDENS
de Minha formação, em 1900 (em 1905, ele
segue como embaixador em Washington). A O título do capítulo é uma referência ao
nomeação desse primeiro adido fora dada pelo endereço da mansão do Barão de Penedo, reduto
Barão de Cotegipe e exige um breve brasileiro na Inglaterra, local em que se
comentário da parte de Nabuco. O escritor encontravam figuras importantes do período,
justifica que a indicação, apesar do aparente tanto nacionais, quanto de toda parte da Europa.
paternalismo, não tinha nada de escandalosa, Neste capítulo, além de descrever as
uma vez que ele seria capaz de conquistar o relações travadas com essa s figuras, Nabuco
cargo por mérito próprio, caso fosse exigido reforça o elogio anterior a Londres, dizendo
um concurso para isso. estarem lá, reunidas, as melhores impressões
Sobre a carreira de diplomata, Nabuco que teve dos outros lugares que visitou. Nabuco
voltará a falar no capítulo 14, intitulado “Nova aproveita ainda para elogiar a Legação do Brasil
York (1876-77)”; antes, porém, nos próximos de então, considerada em alta conta pela corte
quatro capítulos, o escritor trata do período inglesa, recebendo inclusive a visita da realeza.
anterior à diplomacia, período em que viaja ao A propósito, o escritor tece um curioso
país onde receberá a influência mais comentário sobre a importância de uma rainha e
importante de sua vida po lítica: a Inglaterra. o interesse popular que ela desperta, propondo
inclusive a inversão da lei sálica (que excluía as
mulheres do trono), na me dida em que sua
Capítulo 10: LONDRES figura é capaz de mesclar características de
soberana e de mãe, ligando assim a nobreza ao
A influência da Inglaterra, Nabuco povo.
admite no início do capítulo, solidificará sua Ao final, Nabuco assume a sedução que
posição monárquica. É lá, em um país a aristocracia inglesa lhe exerceu e comenta que
governado por uma monarquia parlamentar, só não cedeu inteiramente aos seus encantos
que o escritor sente ser possível experimentar porque ela não superava os interesses pelo
a essência liberal de seu espírito com maior drama humano que formavam a base de seu
proximidade. Londres lhe passa uma pensamento, seu olhar universalista. Donde a
impressão de Império, de majestade e importância que Nabuco atribui à aristocracia:
soberania, devido às gigantescas proporções ter evitado uma conversão republicana, caso seu
de sua massa, capaz de concentrar imagens de espírito se inclinasse ou só às artes ou só à
cidade e campo em um só espaço, e devido a política. A “sensibilidade à impressão
um “traço de seriedade e reserva”, que acaba aristocrática da vida” 15 foi o que freou seu
por lhe dar também um ar de independência. republicanismo na mocidade, e este é o tema do
Daí a resposta para o devaneio em que próximo capítulo.
Nabuco diz se perder às vezes: caso a
humanidade tivesse de se reduzir a um só
povo, qual deles ele salvaria? Entre França e Capítulo 12: A INFLUÊNCIA INGLESA
Inglaterra, o escritor escolhe a primeira,
porque a segunda seria capaz de se salvar Desenvolvendo a reflexão anterior,
sozinha. Nos próximos três capítulos, Nabuco Nabuco afirma que a impressão aristocrática
desenvolve o poder dessa influência em seus está, junto com as impressões de arte, no lado
vários desdobramentos. “negativo” da influência recebida pela Europa. É

15
NABUCO, 1981. p. 83.

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importante que o leitor não veja juízo de valor todos os desdobramentos que ele atribui a esta
para o adjetivo entre aspas acima; Nabuco feição, aquele do qual ele mais trata parece ser o
parece colocar os sinais de “mais” e “menos” “espírito de tradição”, grande responsável pela
apenas para distinguir os lados opostos de sua resistência acima referida, justificando seu
influência, mas de igual importância para a apreço à monarquia.
formação de sua identidade monárquica, Nabuco nota que na tradição da
sendo o lado “positivo” o da influência Inglaterra há uma enorme capacidade de
política, a que nos referimos nos capítulos 5 e “admirar a massa histórica de uma instituição”17,
6. que almeja a liberdade através da ordem. Para
Nabuco passa então a falar de uma ele, na organização inglesa, até as modificações
superioridade da monarquia sobre a república, obedecem a regras elementares. O diálogo com
comparando Inglaterra e França. É curioso a tradição é intenso, e qualquer ruptura se realiza
notar como o escritor aqui começa a traçar sem a explosão daquilo que vinha antes: a
com mais precisão seu perfil de liberal demolição precisa ser feita com o “mesmo amor
conservador. Para ele, a monarquia é capaz de e cuidado” usado na construção de épocas
proporcionar uma maior liberdade ao homem, anteriores. O escritor termina dizendo que até na
uma vez que descentraliza o poder, ao questão da abolição esse espírito inglês orientará
contrário do que a figura do rei possa sua conduta, uma vez que esta seria uma
representar: o rei não governa, reina, e o poder reforma, imagina ele, que se anteporia a
do Estado então é diluído na Câmara dos qualquer outra, caso o problema existisse na
Comuns, enquanto que na república o Inglaterra.
presidente concentra as decisões sobre os
rumos do país em suas mãos. Voltaremos com
mais cuidado a esta questão na próxima parte Capítulo 14: NOVA YORK (1876 – 77)
desta análise. Basta, por ora, considerar que
para Nabuco o governo pessoal só é possível Dando seqüência ao seu cosmopolitismo,
na república e por isso mesmo é suscetível a Joaquim Nabuco viverá nos anos de 1876 e
uma luta de vaidades, enquanto que na 1877 nos Estados Unidos, época em que pôde
monarquia essa disputa perde o sentido, já que perceber as suas qualidades e deficiências
o cargo mais alto da nação — o de rei — não políticas. Conforme nos informa, Nabuco tenta
está em jogo. viver nesse país como se fosse um
estadunidense:

Capítulo 13: O ESPÍRITO INGLÊS Durante mais de um ano fui um verdadeiro


americano nos Estados Unidos, como o
provérbio manda ser romano em Roma. Era o
A definição para o espírito inglês, do
meio de penetrar, de compreender, de sentir a
qual o escritor afirma ter recebido apenas um vida política do país, se eu o queria, e este fora o
toque, suficiente, porém, para fazê - lo resistir à meu motivo ao desejar ir para os Estados Unidos.
“ilusão republicana”, vem logo no início do (Nabuco, 1981, p. 94)
capítulo: “a norma tácita de conduta a que a
Inglaterra toda parece obedecer, o centro de O escritor reproduz em seu livro algumas
inspiração moral que governa todos os seus páginas de seu diário que foi escrito nessa fase
movimentos”16 . No entanto, é só sua feição de sua vida, momento em que a narrativa
política que interessará a Nabuco e dentre memorialística se mistura com o gênero diário:

16 17
NABUCO, 1981. p. 89 Ibidem, p. 90.

Matheus Martins / Marcos Teixeira 9


“Talvez o melhor modo de mostrar o que devo tradições próprias” 19 . Para o político, não há
aos Estados Unidos seja reproduzir páginas do separação entre vida pública e privada naquele
meu diário de 1876-77” 18 p. 93. país, estando qualquer um de seus políticos
sujeito a humilhações e à exposição de sua vida
particular. Para ele, os norte-americanos são
Capítulo 15: O MEU DIÁRIO DE 1877 preconceituosos, incapazes de sentimento de
igualdade com relação a qualquer imigrante
Há nesse capítulo uma continuação do analfabeto ou indigente. O político afirma ainda
diário de Joaquim Nabuco, cuja reprodução que os cidadãos norte-americanos acreditam que
foi iniciada no capítulo anterior. Reproduz-se, são superiores aos demais povos do mundo:
então, partes do diário referente aos meses “Ninguém que conheça o tipo (...) desconhecerá
entre junho e setembro de 1877. Como o que a característica, por excelência, do
próprio político diz, estes registros “são americano é a convicção de que melhor do que
impressões de simples transeunte”. É ele não existe ninguém no mundo”20 .
importante observarmos que nessa fase da
vida de Nabuco, mesmo morando nos Estados
Unidos como se fosse um cidadão Capítulo 17: INFLUÊNCIA DOS ESTADOS
estadunidense, ele não deixará de ter a UNIDOS
influência européia, ou esta não será
substituída por uma influência norte- Novamente Nabuco afirma que suas idéias
americana: políticas não se alteraram nos Estados Unidos. O
político compara o povo desse país aos ingleses
Esses trechos mostram que em Nova York, eu e franceses e comenta sobre o caráter de nitidez
não me achava sob influência americana, mas da cultura em questão: “O inglês fará tudo
que continuava em mim a influência européia
sólido; o francês, elegante; o americano procura
e eu era o espectador, que tinha sido em
Londres, quase desinteressado da política, fazer nítido...” 21 . Essa nitidez, ou, de certo
desinteressado pelo menos de toda a política modo, o positivismo entranhado na cultura
que não pudesse converter em assunto norte-americana, defronta-se com um certo
literário, ou em nota crítica e observação. vazio. “Os americanos”, escreve em suas
(Nabuco, 1981, p. 103)
memórias, “estão inventando a vida, como se
nada existisse feito até hoje” 22 . Para Nabuco,
cidadão do mundo, é difícil dizer o papel, a
Capítulo 16: TRAÇOS AMERICANOS
importância, que os EUA ocupam ou possuem
na humanidade:
As impressões dos Estados Unidos que
Nabuco relata em sua obra se referem
A sua missão na história é ainda a mais absoluta
principalmente a Nova York e a Washington. incógnita. Se ele desaparecesse de repente, não
Segundo ele, com relação à arte, os Estados se pode dizer o que é que a humanidade perderia
Unidos de sua época não têm o que mostrar: de essencial, que raio se apagaria do espírito
“A idéia, porém, que tenho é que quem viu humano; não é ainda como se tivesse
desaparecido a França, a Alemanha, a Inglaterra,
Nova York e Washington viu tudo que há que
a Itália, a Espanha.
ver nos Estados Unidos, excetuando somente (Nabuco, 1981, p. 116)
as poucas cidades a que se podem chamar
cidades históricas, que têm o cunho das suas 19
Ibidem, p. 105.
20
Ibidem, p. 108.
21
Ibidem, p. 114.
18 22
Ibidem, p. 93. Ibidem, p. 116.

Matheus Martins / Marcos Teixeira 10


Capítulo 18: MEU PAI senador, como ele se sentara na de meu avô, que
já não fora o primeiro senador Nabuco, porque
encontrara no Senado seu tio José Joaquim
De todas as influências que Joaquim Nabuco de Araújo, o primeiro barão de Itapoã.
Nabuco recebeu em sua formação intelectual, Eu representaria assim no Parlamento a quarta
a mais poderosa foi, segundo ele, a que geração da mesma família, o que não aconteceu,
exerceu seu pai, José Tomás Nabuco de suponho, a nenhum outro.
Araújo. O escritor escreve sobre ele: (Nabuco, 1981, p. 126)

Coube-lhe em primeiro lugar acabar No ano de 1879 temos Joaquim Nabuco


inteiramente com o tráfico de africanos que como estreante, isto é, seduzido pelos debates e
Eusébio de Queiroz, seu antecessor, ferira de tomando parte nas questões discutidas na
morte, mas que não queria desaparecer senão tribuna. Importante ressaltarmos a forte
mui lentamente; a menor fraqueza da parte de
influência do liberalismo inglês presente no
uma futura administração fá-lo-ia renascer
com dobrada ânsia de aproveitar a monção, político estreante: “sou um liberal inglês – com
porque seus quadros e material conservavam- afinidades radicais, mas com aderências whigs –
se intactos no Brasil e em África. no parlamento brasileiro” 25 . Passado um
(Nabuco, 1981, p. 118) primeiro momento do político, sua preocupação
se voltará para a identificação humana com os
Joaquim Nabuco se arrepende, em suas escravos.
memórias, por não ter aproveitado o bastante
da experiência e do conhecimento de seu pai e
reconhece que, na política, continuou seu Capítulo 20: MASSANGANA
trabalho: “e posso assim dizer que em 1879
não fiz como deputado senão continuar do Massangana é o nome de um engenho
ponto em que ele ficara, substituir- me a ele, localizado no município do Cabo, em
com a diferença natural entre minha mocidade Pernambuco, onde Joaquim Nabuco passou a
e sua velhice” 23 . Nabuco afirma ainda que, infância, morando com sua madrinha. Após a
para isso, continuou desenvolvendo em favor morte dela, ocorrida em 1857, o engenho viverá
dos escravos existentes “o pensamento que ele na memória do político como o espaço feliz da
assinalara como um dever nacional, tanto no infância. A inversão feita por Nabuco, tratando
preparo como na discussão da lei que libertou da infância no vigésimo capítulo ao invés de
as gerações futuras”24 . contá-la no início da obra, rompe com a
autobiografia clássica e enfatiza a questão da
liberdade aos escravos como uma imagem
Capítulo 19: ELEIÇÃO DE DEPUTADO constante em sua vida, isto é, enraizada no
político desde a sua infância:
Pouco depois da morte de seu pai,
ocorrida em 1878, Joaquim Nabuco será eleito Eu estava uma tarde sentado no patamar da
deputado pela primeira vez, o que significará a escada exterior da casa, quando vejo precipitar-se
quarta geração da mesma família na política: para mim um jovem negro desconhecido, de
cerca de dezoito anos, o qual se abraça aos meus
Minha mãe, porém, conservava a ambição de pés suplicando-me pelo amor de Deus que o
meu pai, de me ver entrar na política, para um fizesse comprar por minha madrinha, para me
dia substituí-lo, sentar-me na sua cadeira de servir. Ele vinha das vizinhanças, procurando
mudar de senhor, porque o dele, dizia-me, o
castigava, e ele tinha fugido com risco de vida...
23
Ibidem, p. 120.
24 25
Ibidem, p. 120. Ibidem, p. 127.

Matheus Martins / Marcos Teixeira 11


Foi este o traço inesperado que me descobriu a frase da “Princesa Imperial” dita a Rebouças em
natureza da instituição, com a qual eu vivera viagem de exílio: “se houvesse ainda escravos
até então familiarmente, sem suspeitar a dor
que ela ocultava.
no Brasil, nós voltaríamos para libertá-los”27 .
(Nabuco, 1981, p. 131)

É na infância de Nabuco que temos Capítulo 23: PASSAGEM PELA POLÍTICA


também a sua educação religiosa, o fato de ter
tido ama-de-leite escrava, e a falta de convívio O escritor relata alguns episódios de sua
com seus pais, que se encontravam na corte. vida para mostrar um outro lado de sua
passagem pela política, ou seja, o seu contato
com as pessoas simples e com os pobres: “Eu
Capítulo 21: A ABOLIÇÃO visitava os eleitores, de casa em casa, batendo
em algumas ruas a todas as portas... A pobreza
Joaquim Nabuco trata, neste capítulo, do de alguns desses interiores e a intensidade da
movimento abolicionista que se inicia em religião política alimentada neles fez- me por
1871 e se prolonga até 13 de maio de 1888, vezes desistir de ir mais longe... Doía ver o
quando a lei Áurea é assinada e a escravidão quanto custava a essa gente crédula a sua
se torna extinta no Brasil. O escritor registra devoção política. Diversos desses episódios
nessa parte de seu livro duas amizades que lhe gravaram-se-me no coração”28 . Nabuco relata o
foram muito importantes nessa fase de sua episódio de um homem que queria votar nele,
vida: a amizade com André Rebouças e com mas que, se o fizesse, seria demitido de seu
Joaquim Serra. Importante observarmos que emprego. Este homem tinha recebido a chapa de
ele reproduz nesse capítulo uma carta e cita caixão, ou seja, era obrigado a votar num
um trecho do diário de André Rebouças, determinado candidato, recurso que ficou
realizando assim uma mistura de gêneros. conhecido como voto de cabresto. Nabuco
Joaquim Nabuco, o qual afirma que seu demonstra ainda a sua gratidão pelo guarda-
arquivo é a sua contribuição para o estudo da livros Antônio Carlos Ferreira da Silva, homem
Abolição, escreve em seu livro: “compare-se que trabalhou pelo político e que contribuiu para
nesse ponto o que ela foi no Brasil com o que a relação entre este e o povo de Recife.
foi na América do Norte. No Brasil, a
escravidão é uma fusão de raças; nos Estados
Unidos, é a guerra entre elas”26 . Capítulo 24: NO VATICANO

Nesse capítulo, Nabuco torna a romper


Capítulo 22: CARÁTER DO MOVIMENTO com a ordem cronológica referente aos fatos que
– À PARTE DA DINASTIA marcaram a sua vida. A visita ao Vaticano e seu
encontro com o papa Leão XIII aconteceu no
O escritor lamenta o fato de a Abolição início do ano de 1888, antes do 13 de maio. O
não ter sido uma preocupação religiosa. Para escritor, que acabava de ser eleito deputado pelo
ele, o movimento contra a escravidão no Recife, segue para Roma com o objetivo de
Brasil foi um movimento de caráter mais conseguir uma mensagem do papa em favor do
humanitário e social do que religioso. Em 15 fim da escravidão no Brasil. Joaquim Nabuco
de novembro de 1889 é proclamada a acaba conseguindo uma audiência particular
República. Nabuco registra em seu livro uma
27
Ibidem, p. 146.
26 28
Ibidem, p. 137. Ibidem, p. 150.

Matheus Martins / Marcos Teixeira 12


com o próprio papa, que é marcada para 10 de amor pelo Brasil, pela natureza que aqui
fevereiro daquele ano. Nesse encontro, o papa encontrou e pelo Império que viu se extinguir.
promete ao escritor falar em favor da
liberdade dos negros por meio da encíclica.
Nabuco, no mesmo dia, escreve um texto que Capítulo 26: OS ÚLTIMOS DEZ ANOS (1889-
será enviado para publicação em O País e 1899)
divulgado no Brasil. A encíclica só aparece
depois de abolida a escravidão, ou seja, A queda do Império põe fim à carreira
quando, segundo Nabuco, “não havia mais política de Joaquim Nabuco. Após 1889, o
escravos no Brasil”29 . A luta por uma causa escritor se preocupará com a morte do
universal e humana leva o escritor a Roma e à imperador, com a sua própria religiosidade;
sua própria religiosid ade: “Não posso hoje ocupar-se-á dos livros Balmaceda e Intervenção
pensar na minha ida a Roma em 1888 sem e da vida de seu pai: “agora aspirava viver em
sentir que então germes esquecidos nos regiões de ar mais dilatado, onde se respirasse a
primeiros sulcos da meninice reviveram, para unanimidade moral, a fé, o otimismo humano, o
germinar mais tarde ao calor de outras oxigênio das grandes correntes de ideal...” 33 .
influências... Não fui em vão a Roma, do Nesse momento de sua vida, o escritor se
ponto de vista do meu sentimento preocupará com as suas memórias, ou seja, com
religioso...”30. o próprio livro Minha Formação: “É preciso
roubar ao mundo uma parte da vida, e é melhor
que seja a final, para dá- la aos pensamentos e às
Capítulo 25: O BARÃO DE TAUTPHŒUS aspirações que não queremos que morram
conosco” 34 .
Joaquim Nabuco trata, nesse capítulo, da
grande influência que recebeu do velho Barão
de Tautphœus: “Nenhuma influência singular 4 - Joaquim Nabuco e o perfil de um liberal
atuou sobre mim mais do que a de meu conservador
mestre”31 . Expatriado da Baviera, Tautphœus
segue para a Grécia, vive depois na França e Joaquim Nabuco, em uma nota-de-
emigra para o Brasil. Homem erudito e rodapé do capítulo “Massangana”, nos dá uma
amante da natureza é tido como mestre por notícia de suas intenções ao escrever o objeto de
Nabuco: “Ele falava de um modo uniforme, nosso presente estudo: “A primeira idéia fora
sem ênfase, sem colorido, sem expressão contar minha formação monárquica; depois,
mesmo, mas era um jorrar sem fim de ciência, alargando o assunto, minha formação político
de erudição, como se naquele mesmo dia literária; por último, desenvolvendo-o sempre,
tivesse estado a estudar o assunto” 32 . O minha formação humana”35 . De fato, notamos
escritor narra ainda sobre o período da vida que a obra é na verdade a história desta última
desse intelectual passado na ilha tropical de formação, que vai acabar englobando todas as
Paquetá, no Rio de Janeiro. Tautphœus, outras, na medida em que lhes dá, muitas vezes,
embora fosse estrangeiro, possuía grande apenas a função de contribuir para a construção
dessa esfera maior; isto é, Nabuco usará, em
grande parte do livro, tanto a formação
29
Ibidem, p. 160.
30 33
Ibidem, p. 162. Ibidem, p. 172
31 34
Ibidem, p. 163. Ibidem, p. 173.
32 35
Ibidem, p. 163-164. Ibidem, p. 129.

Matheus Martins / Marcos Teixeira 13


monárquica quanto a político literária para parece perceber e tenta desfazer: como um
compor o perfil de sua formação humana, que sujeito essencialmente liberal, que lutará pela
é também o perfil de seu liberalismo (e o liberdade dos escravos, pode ser a favor da
pronome vai em itálico para demarcar bem monarquia, um modelo de governo
que este liberalismo é mais uma visão muito conservador? A pergunta é de grande fôlego e
pessoal de mundo do que uma maneira de se exigirá uma resposta à altura (não é à toa que
fazer política). É como se Nabuco, para Nabuco passa mais da metade do livro tentando
escrever Minha formação, tivesse se feito a respondê- la). Para isso, ele precisará mostrar
seguinte pergunta: “o que é meu liberalismo e como a monarquia, um modelo teoricamente
por que sou liberal?” e a partir disso submisso a um soberano, a quem a veneração e
começasse a construir a história de um detalhe a obediência são aceitas por toda uma sociedade
da sua vida, desdobrando-o em seus elementos de raízes aristocráticas, de reconhecidas e
a fim de justificá- lo. legitimadas distinções de uma classe a outra,
Esse procedimento de composição será como esta forma de governo, enfim, poderia ser
empregado também em esferas menores de mais democrática, mais igualitária, do que a
seu perfil: por exemplo, se ele usa sua posição república, que se baseia, também teoricamente,
monárquica para desenhar a imagem do na delegação de poderes a alguém escolhido
liberal, como já se disse e como veremos com pelo próprio povo. É o que Nabuco tenta
mais cuidado adiante, faz uso também de responder na maior parte de Minha formação.
algumas leituras e de viagens ao exterior para
compor e justificar essa mesma posição
monárquica. Assim, a narrativa ganha um 4.1 - Formação monárquica
efeito de desdobramentos sucessivos que, ao
se explicarem, anunciam algo maior do qual Vimos no resumo deste estudo que a
fazem parte. Vejamos como esse projeto base monarquista de Nabuco está na leitura do
narrativo se realiza em seus elementos. pensador político Bagehot. Lá entendemos como
Como observamos no resumo dos o filósofo pensa a monarquia parlamentar e
capítulos, Nabuco começa a história de sua como Nabuco contrapõe este modelo — no qual
formação falando da influência liberal quem governa é, na verdade, um parlamento, e
exercida por seu pai desde os tempos de não o rei, que apenas reina — ao
escola, época em que ele ainda pouco entendia presidencialismo republicano, cujo chefe de
de política, mas já era capaz de adivinhar e Estado teria o poder concentrado em suas mãos.
admirar a figura humana do senador. O leitor Vimos também que, após a base, Nabuco
deve perceber que a narrativa se inicia pelo reforçará seu monarquismo através da primeira
elemento mais amplo do perfil do viagem que faz à Europa, quando compara a
“biografado”, aquele ao qual se chegará após república francesa (e, posteriormente, num outro
os sucessivos desdobramentos: Nabuco contexto, também os EUA) à monarquia inglesa,
anuncia sua “essência” liberal, começa a inclinando sua admiração política para esta
justificá-la pela influência do pai, desenvolve- última, apesar de guardar seus encantos
a ao longo da narrativa, para fechá- la dando literários para a primeira. Deixamos no resumo,
uma idéia do todo que é seu liberalismo. porém, alguns fios soltos para amarrarmos
O escritor passa então ao que seria a agora, e um deles está justamente na
primeira etapa de seu projeto narrativo: a relativização de certas conclusões a que chega
formação monárquica. Esta talvez seja a parte Nabuco sobre os tipos de governo que analisa.
mais polêmica de sua história, uma vez que O escritor tem razão ao comentar que o
constitui o aparente paradoxo que Nabuco presidencialismo gera uma luta de vaidades

Matheus Martins / Marcos Teixeira 14


entre os partidos que disputam o poder (e seu gosto pelas artes e no cosmopolitismo que
entre inclusive os poderes legislativo e essa inclinação para as “humanidades” parece
executivo), mas ignora, para sus tentar a representar. Como vimos no resumo, o
perfeição de seu raciocínio, que o parlamento encantamento artístico europeu, a admiração, o
também é dado a conchavos políticos, mesmo respeito e o interesse pelo Velho Mundo são,
que eles sejam mais discretos, com brigas para Nabuco, a marca de seu olhar universalista
menos declaradas. Para justificar o maior e não um índice de falta de patriotismo:
senso de justiça que teria o parlamento, o intelectualmente, o drama humano é o que lhe
escritor argumenta que este pode ser interessa, apesar de sua representação num
dissolvido caso suas atitudes não agradem, o detalhe nacional comover mais intimamente o
que demonstraria sua superioridade em observador. Para o escritor, nosso sentimento é
relação à república, onde o presidente, uma brasileiro, mas nossa imaginação é européia,
vez escolhido, manda e desmanda nos uma vez que considera a Europa o berço da
subordinados que ele próprio elege; mas América. Daí sua incapacidade para o que ele
Nabuco parece não perceber que essa mesma chama de pequena política, aquela de partidos,
disso lução de um parlamento pode não ter regional: assim como na obra de arte, Nabuco
também origens das mais nobres. Nabuco, observa um episódio político como um
novamente, no intuito de amparar a retidão de espectador do drama humano acima referido.
seu pensamento, não aprofunda muito sua Sem se considerar então um profissional,
análise política para que ela não acabe por Nabuco vê a política da mesma maneira que vê
revelar elementos que derrubassem a as artes, entendendo-as, entre outras coisas,
impecabilidade de seu discurso, ignorando como ideologia, moral, filosofia e história. É
também que no presidencialismo o poder não este tipo de olhar cosmopolita que aponta de
está tão centrado nas mãos do presidente, uma maneira mais contundente para o perfil liberal
vez que suas reformas precisam ser votadas do qual viemos falando até agora, uma vez que
pelo Senado, e que ele inclusive pode ser nas duas atividades centrais de sua vida, a de
deposto, como vimos recentemente acontecer político e escritor, o que mais interessa a
na história do Brasil, em 1992, ou mesmo Nabuco é aquilo que elas têm de essencialmente
pressionado a renunciar, como o próprio humano.
Nabuco teve oportunidade de ver acontecer a
Deodoro da Fonseca.
Em suma, Nabuco deixa de relativizar 4.3 - Formação humana
uma série de elementos para criar uma história
em linha reta, na qual os acontecimentos Toda essa formação liberal irá culminar
parecem todos concorrer para a confirmação naquela que seria a maior iniciativa de sua vida:
de um mesmo ponto: seu liberalismo. A a luta pela abolição da escravidão no Brasil. O
análise que ele faz, apesar de ter uma elemento que “encerra ” (até o momento da
aparência concreta, de reflexão histórica, é na escrita de Minha formação, já que ele retorna
verdade a elaboração de um ideal muito como embaixador no início do século XX) sua
pessoal de governo. carreira e é seu ponto mais alto, na verdade,
antes de ser um feito meramente político, é um
ato humanista, próprio de uma política pensada
4.2 - Formação político literária com P maiúsculo, para usar uma imagem do
escritor, distante daquela movida por interesses
Outro elemento de grande importância pessoais e partidários. Porém, é curioso pensar
para a construção desse perfil liberal surge em que, apesar de ser o momento mais importante

Matheus Martins / Marcos Teixeira 15


de sua vida pública, a abolição da escravidão escrever sobre si mesmo: “foi decerto o primeiro
não é o elemento mais importante de Minha homem público brasileiro a descobrir-se com a
formação, funcionando na obra como a chave própria mão de grande escritor; e em
de ouro da “construção” textual de sua autobiografia tão psicológica como
formação humana liberal, como uma espécie sociologicamente valiosa, além de notável pela
de ápice, de confirmação “incontestável” — sua qualidade literária” 36 . Freyre afirma ainda
para ele, está claro — da evolução retilínea que, na ocasião da publicação do livro de
que o escritor dá à própria vida, através de um Nabuco, a obra encontrou certa resistência e não
episódio histórico do qual fez parte. Cumpre faltaram aos leitores palavras de crítica ao
notar que a questão da Abolição será tratada político:
com cuidado por Joaquim Nabuco em um
outro livro seu intitulado O Abolicionismo, ao Para o Brasil da época em que apareceu, Minha
qual inclusive já fizemos referência. Formação foi livro um tanto escandaloso, por ter
sido, para muitos, cheio de louvor em boca
A despeito de suas posições políticas,
própria. Não faltou quem acusasse o autor de
que são, sem dúvida, passíveis de deselegante narciso...
questionamentos, interessa observar em Minha (...) Repugnava aos melhores (sic) mestres
formação a habilidade com que Joaquim brasileiros de bom-tom que um indivíduo
Nabuco constrói sua própria história, elegante escrevesse de si próprio: da sua própria
formação. Faziam-no franceses, ingleses e
valorizando alguns detalhes, omitindo outros,
russos, é certo: os últimos indo ao extremo de
aprofundando algumas discussões, deixando recordar suas deformações. Mas eram
outras na superfície, amarrando elementos estrangeiros. Se, no Brasil, José de Alencar
distantes a uma primeira vista, para compor contara já aos seus leitores como e porque se
uma história coesa, obediente a uma lógica tornara romancista, fizera -o discretamente e em
poucas páginas; e quase limitando-se a recordar
rigorosa de causalidade, o que inclusive o seus experimentos literários num gênero – o da
aproxima dos escritores realistas de seu ficção – que não adquirira ainda, entre os
tempo. Percebe-se na obra menos a força do brasileiros, plena dignidade intelectual.
político do que a desenvoltura do escritor, (Nabuco, 1981, p. 03)
seguro não apenas no domínio de sua
linguagem, mas também na melhor maneira de Freyre afirma também que Minha
utilizá- la para escrever uma determinada formação é uma autobiografia parcial, mas
história. Se a Nabuco faltava a imaginação expressiva. Para ele, Nabuco, ao escrever essa
para a invenção de situações fictícias, a obra, “descobriu-se somente pela metade” 37 .
destreza para contá- las lhe era inerente, o que Gilberto Freyre reconhece, evidentemente, que
talvez explique o fato de a vida real ser a uma autobiografia ou um livro de memórias não
matéria da principal e maior parte de sua consegue contar a vida de alguém de maneira
produção escrita. É hora de entrarmos, então, completa e perfeita e que Joaquim Nabuco, ao
na discussão sobre o gênero de Minha escolher o que queria contar sobre si, escolhia
formação. também o que gostaria de esconder de seus
leitores. Falar sobre si mesmo implica fazer uso
de um ponto-de-vista, no caso, o de Nabuco.
5- Minha formação: mistura de gêneros. Diante dessas questões percebemos que há
ficção na narrativa autobiográfica, o que não
Conforme nos informa Gilberto Freyre,
na introdução escrita para a nona edição de
Minha formação, o político Joaquim Nabuco 36
Ibidem, p. 03.
foi o primeiro homem público, no Brasil, a 37
Ibidem, p. 03.

Matheus Martins / Marcos Teixeira 16


quer dizer que as informações ali encontradas acontecimentos como gérmen de sua formação.
não sejam verdadeiras. Permite, assim, compreendermos Massangana
Ao escrever Minha formação, o autor como o espaço feliz de sua infância e como a
não seguiu o modelo da autobiografia clássica, imagem que acompanhará o homem maduro e
ou seja, desse gênero que segue uma certa influenciará as suas atitudes 39 . Na parte que se
linearidade cronológica, começando no refere a esse espaço, encontramos algumas
nascimento do personagem e narrando os recordações de sua madrinha, dona Ana Rosa
fatos, ou tentando narrá- los, na mesma ordem Falcão de Carvalho, cuja morte, segundo o
em que esses aconteceram. O escritor altera a escritor, separará a sua infância do resto de sua
seqüência dos episódios de sua vida. Nabuco vida: “A noite da morte de minha madrinha é a
relata primeiro a sua fase de colégio e cortina preta que separa do resto de minha vida
academia e um pouco de sua infância, mas no da cena de minha infância” 40 . Temos também
vigésimo capítulo, isto é, após ter tratado da nessa época a educação religiosa recebida pelo
influência que recebeu da monarquia inglesa, menino Nabuco na “pequena capela de
do tempo em que viveu na Europa e, Massangana” 41 e, sendo também criança
posteriormente, nos Estados Unidos, volta a amamentada por ama -de-leite negra, seu
falar de sua infância em Massangana, engenho primeiro contato com a escravidão, imagem
de Pernambuco 38 . Para isso, o escritor sente a marcante de sua infância:
necessidade de explicar esse rompimento com
a ordem cronológica em uma nota-de-rodapé, ... no entanto a escravidão para mim cabe toda
à qual já fizemos referência: em um quadro inesquecido da infância, em uma
primeira impressão, que decidiu, estou certo, do
emprego ulterior de minha vida. Eu estava uma
A razão que me fez não começar pelos anos da tarde sentado no patamar da escada exterior da
infância foi que estas páginas tiveram, ao
casa, quando vejo precipitar-se para mim um
serem primeiro publicadas, feição política que jovem negro desconhecido, de cerca de dezoito
foram gradualmente perdendo, porque já ao anos, o qual se abraça aos meus pés suplicando-
escrevê-las diminuía para mim o interesse, a
me pelo amor de Deus que o fizesse comprar por
sedução política. A primeira idéia fora contar minha madrinha para me servir. Ele vinha das
minha formação monárquica; depois, vizinhanças, procurando mudar de senhor,
alargando o assunto, minha formação político-
porque o dele, dizia-me, o castigava, e ele tinha
literária ou literário-política; por último, fugido com risco de vida... Foi este o traço
desenvolvendo-o sempre, minha formação inesperado que me descobriu a natureza da
humana, de modo que o livro confinasse com
instituição com a qual eu vivera até então
outro, que eu havia escrito antes sobre minha familiarmente, sem suspeitar a dor que ela
reversão religiosa. É deste livro, de caráter ocultava.
mais íntimo, composto em francês há sete
(Nabuco, 1981, p. 131)
anos, que traduzo este capítulo para explicar a
referência feita às minhas primeiras relações
com os escravos. Finalizada a parte de sua infância, o
(Nabuco, 1981, p. 129) escritor passa a tecer comentário sobre a
Abolição. Do capítulo vigésimo para o que o
Nabuco, ao tratar do período vivido em segue, temos um intervalo de mais de trinta
Massangana, depois de ter apresentado ao anos. De maneira evidentemente intencional, a
leitor grande parte de sua vida, permite a este
compreender a imagem da infância e seus
39
Quando tratamos de um espaço feliz da infância,
levamos em consideração os apontamentos feitos por
38
Hoje, no Engenho Massangana, funciona um centro Gaston Bachelard em seu livro Poética do espaço.
40
de estudos e pesquisa pertencente à Fundação Joaquim Ibidem, p. 133.
41
Nabuco. Ibidem, p. 130.

Matheus Martins / Marcos Teixeira 17


disposição dos capítulos na forma em que se promessa do papa, mas sua encíclica só é
encontram aponta para o encerramento de uma publicada após o 13 de maio. Todavia, Nabuco
questão na vida do político, que é a da escreve um texto relatando o encontro que tivera
escravidão. Iniciada na infância e terminada com o papa e a atual posição daquela igreja
em 1888 com a Abolição, agora “terminada”, acerca da escravidão, que é publicado no jornal
a luta pelos escravos não será mais o principal O País antes da assinatura da Lei Áurea:
motivo na vida do político Joaquim Nabuco,
cuja atuação durou de 1879 a 1889. Já as Como o cardeal Czacki tinha tido razão de dizer
eleições de 1889, ou seja, após a abolição dos que eu ia levar ao Papa um verdadeiro
bombom!... Infelizmente, a diplomacia envolveu-
escravos, não interessavam ao político: se na questão, o ministério conservador alarmou-
“Duvido ter eu tido maior revelação, ou se com a intenção manifestada pelo Papa, e
impressão exterior que ficasse atuando sobre conseguiu demorar a Encíclica... A curta demora
mim de modo mais permanente, do que essas foi bastante para ela só aparecer depois de
eleições de 1884 a 1887, – a de 1889, posso abolida a escravidão no Brasil... Entre a queda de
Cotegipe e a Abolição o espaço foi tão pequeno
dizer, feita a abolição, não me interessava
que a bela obra de Leão XIII só veio a ser
quase”42. Em outra parte de sua obra, o autor publicada quando não havia mais escravos no
escreve: Brasil. A bênção, porém, do Santo Padre à nossa
causa, a palavra que ele ia proferir, essas desde
Em 1879 eu me alistara para uma campanha os fins de fevereiro, ainda sob o Gabinete
que supunha havia de durar além de minha Cotegipe, o país as conheceu pelas minhas
vida; fiz assim, posso dizer, voto perpétuo de revelações... A surpresa da emancipação total foi
servir uma grande causa nacional: o que devia tão agradável a Leão XIII que, como post-
mais de trinta anos, durou somente nove, mas scriptum à sua carta lapidária sobre a escravidão,
nem por isso economizei forças, iniciativa, ele mandou à Princesa Imperial a Rosa de Ouro.
imaginação para outros empreendimentos... A (Nabuco, 1981, p. 160)
abolição, além disso, pelo seu sopro universal,
isolara-me dos partidos, afastara-me da sua Podemos pensar em duas questões que se
esfera contenciosa; por hábito eu agora relacionam de alguma forma a essa alteração da
aspirava viver em regiões de ar mais dilatado,
onde se respirasse a unanimidade moral, a fé, o
ordem cronológica ou ao fato de o escritor
otimismo humano, o oxigênio das grandes relatar o seu encontro com o papa somente após
correntes de ideal... ter tratado da Abolição. Uma delas seria talvez
(Nabuco, 1981, p. 172) uma preocupação do político em não trazer para
si um pouco da “glória” pelo fim da escravidão,
No capítulo 24, “No Vaticano”, a não direcionando assim, de certo modo, a
narrativa retorna no tempo outra vez. No recepção do texto. A outra questão consiste em
capítulo 21 o escritor havia feito mostrar um lado pessoal da visita ao Vaticano,
considerações sobre o “fim” da escravidão apontando para um reencontro do político com a
ocorrido em 13 de maio de 1888. Em “No sua própria religiosidade: “Não posso hoje
Vaticano”, Joaquim Nabuco trata de sua pensar na minha ida a Roma em 1888 sem sentir
viagem a Roma e de seu encontro com o papa que então sementes esquecidas nos primeiros
Leão XIII ocorrido no dia 10 de fevereiro de sulcos da meninice reviveram, para germinar
1888, ou seja, anterior à Abolição. No mais tarde ao calor de outras influências... Não
encontro que tem com o papa, o escritor pede fui em vão a Roma, do ponto de vista do meu
que a Igreja Católica se pronunciasse a favor sentimento religioso...”43 .
da libertação dos escravos. O político recebe a

42 43
Ibidem, p. 150. Ibidem, p. 162.

Matheus Martins / Marcos Teixeira 18


Eis um outro ponto da vida de Joaquim mais do gênero memórias do que do da
Nabuco que retoma a vivência da infância: a autobiografia.
religiosidade. Como dissemos, a educação É importante lembrarmos que memórias e
religiosa do escritor acontece na capela do autobiografia são gêneros que não se opõe e que
engenho Massangana. Essa religião adormece podem se confundir em vários momentos.
durante boa parte de sua vida e torna a viver Poderíamos dizer que o gênero memórias pode
por ocasião dessa viagem ao Vaticano. Temos englobar vários gêneros vizinhos, como a
assim, além da escravidão, outra ponta da vida autobiografia mesmo e o diário. Nas memórias
de Joaquim Nabuco, a religiosidade, que se ata temos, quando acontece a identificação entre
à época da infância. autor, narrador e personagem, partes
Já dissemos q ue o livro Minha formação autobiográficas. Assim sendo, podemos
é classificado por Freyre como uma classificar a obra de Nabuco como um livro de
autobiografia e que, pertencendo a esse memórias que, sendo mais amplo e dinâmico,
gênero, não segue o modelo de autobiografia admite as inversões feitas pelo escritor e a
clássica. Segundo Philippe Lejeune, autor de própria mistura de gêneros que percebemos no
Le pacte autobiographique, além do pacto de texto.
leitura, que deve ser autobiográfico, a Eis uma característica importante no livro
autobiografia, que pode ser escrita em Minha formação, de Joaquim Nabuco: a mistura
primeira, segunda ou em terceira pessoa, deve de gêneros. Encontramos partes do diário do
permitir a identificação entre autor, narrador e político reproduzidas nessa obra, assim como
personagem (autor = narrador = personagem). uma carta e uma citação do diário de André
No caso de Minha formação, é-nos claro Rebouças e partes de cartas de sua madrinha.
que o personagem principal se identifica com Nessa perspectiva, temos vários pactos de leitura
o narrador em primeira pessoa e com o que se relacionam ao livro: o pacto
próprio escritor Joaquim Nabuco, o que autobiográfico, o pacto de diário, o de leitura de
preenche um dos requisitos da autobiografia. cartas, dentre outros. Essa mistura de gêneros
As duas introduções escritas por Gilberto nos conduz a um gênero maior, como já vimos,
Freyre para a nona e a décima edições o de memórias.
apresentam a obra como tal, o que conduz o Essa reprodução de cartas e de diários,
leitor ao pacto autobiográfico. Todavia, ao além de dar uma sustentação aos fatos da
escrever Minha formação, Joaquim Nabuco narrativa, ou seja, de possibilitar um efeito de
teve como objetivo — e como o título do livro real, de apresentar o conteúdo como algo
indica — a questão de sua formação, seja ela verdadeiro, denuncia um homem preocupado em
monárquica, política, literária, humana, ou, guardar documentos, em registrar suas viagens
num sentido maior, intelectual. Para isso, o em diário, e mostra que uma das qualidades do
escritor sente a necessidade de narrar sobre as escritor está no trabalho de pesquisa empregado
pessoas que o influenciaram ou que, de algum em sua produção escrita.
modo, foram importantes em sua vida. Nesse No gênero memórias, assim como em uma
sentido, ele dedica alguns capítulos para tratar autobiografia, há um certo distanciamento, um
da influência de seu pai, do escritor Ernest intervalo temporal grande entre os episódios
Rena n, do papa Leão XIII e do Barão de acontecidos e o momento em que se narra.
Tautphœus. Embora o objetivo maior seja Nesse intervalo, ou melhor, durante a vida do
falar de si, a ênfase nesses personagens que memorialista, os fatos são pensados e
diferem do autor-narrador (autor = narrador repensados, o que acentua o caráter ficcional
personagem) aproximam o livro de Nabuco desses gêneros. Não há simplesmente uma
descrição dos fatos, mas uma análise dos

Matheus Martins / Marcos Teixeira 19


mesmos e o ponto -de-vista do escritor. Nos influenciador de Joaquim Nabuco fora o seu
diários, o intervalo de tempo entre o fato e o próprio pai. Aqui, o escritor faz uma reavaliação
texto é pequeno, não havendo assim uma de sua própria vida, demonstrando
grande reflexão acerca dos acontecimentos. arrependimento e sentimento de culpa com
Quando Joaquim Nabuco mistura esses relação ao fato de, em sua opinião, não ter
gêneros, dentre outros, está misturando aprendido o suficiente com seu pai, de saber que
também essa diferença de tempo referente a ele poderia lhe ter ensinado mais. Percebemos,
eles. No capítulo 15, “O meu diário de 1877”, assim, que Nabuco utiliza o livro Minha
temos uma interferência de sua prosa formação não só para tratar de sua formação
memorialista. Nabuco revê o que havia escrito política, humana e intelectual, ou para registrar o
e aproveita para fazer “reparos”. Temos um que considera importante em sua vida, mas que
bom exemplo disso quando o político escreve: aproveita para rever as suas opiniões, para
lamentar certos fatos, para registrar o
São impressões de simples transeunte. Eu hoje amadurecimento de algumas de suas
não escreveria dos Estados Unidos que é uma declarações. Enfim, para que, pintando ele
nação sem ideal; diria que é uma nação cujo
mesmo a sua vida, possa se desculpar por
ideal se está formando. Assim como o inglês
trata de adquirir fortuna e independência antes algumas coisas e impedir, de algum modo, que
de entrar para a Câmara dos Comuns, dir-se-ia compreendam mal certos acontecimentos,
que a nação americana trata de crescer, de clareando tudo (ou camuflando tudo) com as
povoar o seu imenso território, de chegar ao idéias que lhe agradam no momento da
seu completo desenvolvimento, her full size, construção do livro, ou seja, de sua maturidade.
para depois fazer falar de si e pensar no nome
que deve deixar. Até hoje os Estados Unidos Com relação a essa idéia de ruminar a
têm feito vida à parte e se têm ocupado de si própria vida, temos, em Minha formação, um
só; mas um país que caminha para ser, se já momento importante no capítulo 08, “A crise
não é, o mais rico, o mais forte, o mais bem poética”. Nesse capítulo, Joaquim Nabuco
aparelhado do mundo, tem, pela força das reproduz quatro estrofes de seu livro Amour et
coisas, que ligar a sua história com a das
outras nações, que se associar e lutar com elas. Dieu para dizer que, em sua opinião, o seu livro
(Nabuco, 1981, p. 101) é um livro ruim:

Mais adiante, no mesmo capítulo, O fato é que não possuo a forma do verso, na
Nabuco faz um comentário acerca de seu qual a idéia se modela por si mesma e donde sai
com o timbre próprio da verdadeira rima, que
diário com a finalidade de mostrar que,
nenhum artifício nem esforço pode imitar. Isto,
mesmo em Nova York, ele conservava a por um lado, quanto à pequena poesia, à poesia
influência européia que havia recebido: solta, ao que se pode chamar a música da poesia.
Quanto à grande poesia, à poesia de imaginação
Esses trechos mostram que em Nova York, eu e criação, poema, romance, balada que fosse,
não me achava sob influência americana, mas para essa eu seria incapaz, além da insuficiência
que continuava em mim a influência européia do talento, pela falta de coragem para habitar a
e eu era o espectador, que tinha sido em região solitária dos espíritos criadores...
Londres, quase desinteressado da política, (Nabuco, 1981, p. 64)
desinteressado pelo menos de toda a política
que não pudesse converter em assunto Essa idéia é reforçada várias vezes pelo
literário, ou em nota crítica e observação. escritor. Segundo Nabuco, seus versos valiam
(Nabuco, 1981, p. 103)
muito pouco e sua fase literária é resultante de
sua primeira viagem à Europa. Assim sendo,
No capítulo 18, “Meu pai”, como já
Nabuco critica a si mesmo: “como eu disse, não
vimos, é-nos relatado que o maior
encontrei em mim a tecla do verso”; e mais:

Matheus Martins / Marcos Teixeira 20


“Quando mesmo, porém, eu tivesse recebido o alguns trechos dessa súplica”48 . É claro que o
dom do verso, teria naufragado, porque não trabalho de produzir um livro que envolve certa
nasci artista”; ou ainda: “A mim, porém, não pesquisa, como o de Nabuco, implica em fazer
coube em partilha nem o verso nem a arte”44 . escolhas e buscar somente os pontos importantes
Ao se criticar Amour et Dieu de maneira dos documentos que serão reproduzidos. Mas
negativa, Nabuco se mostra leitor de poesia antes de dar ao leitor o texto anunciado, Joaquim
parnasiana e, nessa perspectiva, cita Olavo Nabuco faz a sua ressalva: “Hoje eu o teria
Bilac: “O timbre do verso reconhece-se em redigido de outro modo, mas hoje não tenho
qualquer quadra. Tome-se Olavo Bilac, por mais o ardor do propagandista...”49 .
exemplo ” 45 . Influenciado nessa época por No último capítulo do livro, “Os últimos
Ernest Renan, Joaquim Nabuco chega a dez anos (1889 – 1899)”, Joaquim Nabuco
mostrar o livro ao escritor francês, que tece demonstra o seu distanciamento da política,
elogios aos seus versos. Posteriormente, como embora permanecesse monarquista. Assim
já discutimos anteriormente em relação ao sendo, o escritor nos mostra que se trata do
conceito de eutrapelia, o político descobre que momento de sua vida em que está escrevendo as
Rena n confessou em seus escritos que mentia suas memórias, ou seja, o próprio livro Minha
aos novos escritores para não os desestimular: formação, produzido de 1893 a 1899: “É preciso
“Um poeta, por exemplo, nos apresenta os roubar ao mundo uma parte da vida, e é melhor
seus versos. É preciso dizer que são que seja a final, para dá- la aos pensamentos e às
admiráveis, porque sem isso seria dizer que inspirações que não queremos que morram
eles não têm valor e fazer uma injúria mortal a conosco” 50 . Mais adiante escreve: “Posso
um homem que teve a intenção de nos fazer portanto terminar aqui a história de minha
uma civilidade”46 . Como podemos perceber, formação política, e mesmo de toda a minha
Nabuco expõe sua vida, mas o faz de forma formação, porque das novas influências que me
crítica e revisada. vão dominar no resto da vida, a religiosa já se a
Pode-se falar ainda de uma organização encontrou na infância e a das letras na
com relação ao livro Minha formação. O mocidade”51 . Já o prefácio do livro é escrito por
escritor reúne e organiza docume ntos que, Nabuco no dia oito de abril de 1900, ou seja, no
reproduzidos na obra, expressam também o mesmo ano em que o livro tem publicada a sua
recorte que quer traçar: o da sua formação. primeira edição, a qual é impressa na França.
Segundo Gilberto Freyre, Nabuco “descobriu- Dessa maneira, a obra, que inicia reportando-se
se somente pela metade”47 . Evidentemente, ao aos tempos do escritor no colégio e que fornece
escrever uma autobiografia ou as suas os mecanismos ligados à formação intelectual
memórias, o escritor escolhe os fatos que quer do político, termina com um capítulo que reflete
contar, lapida outros, e omite certos episódios sobre a importância do fazer memorialístico na
ou documentos. Em Minha formação temos, fase da vida em que o político se encontra,
nesse sentido, dados omitidos, reiterações, aproximando assim o tempo da narrativa e o
considerações sobre o passado, dentre outros tempo do escritor.
aspectos. No capítulo 24, “No Vaticano”, por Acreditamos, assim, com o
exemplo, temos o texto incompleto de Nabuco aprofundamento de algumas questões
se dirigindo ao papa Leão XIII: “Aqui estão importantes de Minha formação, termos aberto

44 48
Ibidem, p. 64. Ibidem, p. 154.
45 49
Ibidem, p. 65. Ibidem, p. 154.
46 50
Ibidem, p. 60. Ibidem, p. 173.
47 51
Ibidem, p. 03. Ibidem, p. 173.

Matheus Martins / Marcos Teixeira 21


caminho para que o leitor possa se aventurar,
por conta própria, em um texto no qual o
escritor, ao se revelar através de suas
memórias, relata também parte importante da
história de nosso país.

Machado de Assis e Joaquim Nabuco

Questões de múltipla escolha a) Nabuco, eurocentrista, considera a Europa


como a origem da América, o que justificaria a
1) Entre as características abaixo, assinale supressão inevitável de todo traço americano
aquela em que o perfil de Joaquim Nabuco pelas características européias.
traçado em Minha formação não se encaixa: b) para Joaquim Nabuco, a Europa é o berço da
América, e por isso contém a dimensão de
a) inclinação para a literatura e outras artes história que falta aos americanos.
b) vontade de reforma social c) o sentimento de um americano relaciona-se à
c) opção pelo monarquismo parlamentarista sua pátria, mas sua imaginação tem raízes na
d) nacionalismo xenófobo e intransigente Europa
d) à Europa falta o sentimento de pátria que todo
2 ) Leia o seguinte trecho retirado de Minha homem americano contém e que lhe é vazado ao
formação, de Joaquim Nabuco: nascer, independentemente de onde resida no
futuro
“Estamos assim condenados à mais terrível das
instabilidades, e é isto o que explica o fato de
tantos sul-americanos preferirem viver na
3) Gilberto Freyre, em sua introdução à Minha
Europa... (...) A instabilidade a que me refiro
provém de que na América falta à paisagem, à formação, observa que de todas as atividades
vida, ao horizonte, à arquitetura, a tudo o que praticadas por Joaquim Nabuco, a de ser escritor
nos cerca o fundo histórico, a perspectiva foi a mais persistente. Assinale a alternativa
humana; e que na Europa, nos falta a pátria” abaixo que não ilustra a relação de Nabuco com
a literatura:
Com base na leitura do trecho, não podemos
inferir que: a) a primeira viagem à Europa desperta sua
vontade de produzir

Matheus Martins / Marcos Teixeira 22


b) ávido leitor durante a mocidade, lia tudo o autores, citando assim cartas, diários, dentre
que lhe vinha às mãos outros.
c) desenvoltura na prática do verso
d) autocrítica severa de sua produção poética e
dramática 7) Leia o trecho abaixo, que foi retirado do livro
Minha formação, de Joaquim Nabuco, e, com
4) Assinale a alternativa abaixo que não base nesse texto, marque a alternativa incorreta:
contribui para a opção de Joaquim Nabuco
pela monarquia parlamentar: ... no entanto a escravidão para mim cabe toda
em um quadro inesquecido da infância, em uma
primeira impressão, que decidiu, estou certo, do
a) infância em Massangana
emprego ulterior de minha vida. Eu estava uma
b) influência do pai tarde sentado no patamar da escada exterior da
c) leitura da Constituição Inglesa, de Bagehot casa, quando vejo precipitar-se para mim um
d) viagem à Europa jovem negro desconhecido, de cerca de dezoito
anos, o qual se abraça aos meus pés suplicando-
me pelo amor de Deus que o fizesse comprar por
5) A viagem de Joaquim Nabuco à Inglaterra
minha madrinha para me servir. Ele vinha das
vai marcar profundamente sua personalidade. vizinhanças, procurando mudar de senhor,
Assinale a alternativa abaixo que não porque o dele, dizia-me, o castigava, e ele tinha
corresponde à influência inglesa recebida por fugido com risco de vida... Foi este o traço
Nabuco: inesperado que me descobriu a natureza da
instituição com a qual eu vivera até então
familiarmente, sem suspeitar a dor que ela
a) gosto pela tradição ocultava.
b) cosmopolitismo (Nabuco, 1981, p. 131)
b) impressão aristocrática da vida
d) consolidação de sua opção monárquica a) O escritor relaciona o episódio ocorrido entre
ele e o escravo fugido a um quadro inesquecido
da infância, ou seja, a uma imagem que o
6) Com relação ao gênero do livro Minha acompanhará durante a vida.
formação, de Joaquim Nabuco, assinale a b) O trecho acima se refere à época em que
alternativa abaixo que se encontra incorreta: Joaquim Nabuco foi eleito deputado e, com isso,
um escravo veio procurar- lhe com o objetivo de
a) O livro pode ser classificado como conseguir sua liberdade, sabendo da qualidade
autobiografia, ou como memórias, pelo fato de abolicionista referente ao político.
de, nele, o escritor falar de si mesmo. c) O episódio acima, ocorrido na infância de
b) No livro, o personagem principal se Nabuco é contado, no livro, depois que o
identifica com o narrador, que, por sua vez, escritor já havia narrado sobre suas viagens pela
identifica-se com o autor, caracterizando o Europa e Estados Unidos, tendo assim já tratado
traço autobiográfico (autor = narrador = de vários aspectos de sua vida adulta.
personagem). d) O jovem negro do qual nos fala Nabuco foi
c) Podemos dizer que, em Minha formação, até ele solicitar que sua madrinha o comprasse
Joaquim Nabuco evita de forma clara os pois no lugar onde vivia era muito castigado.
gêneros vizinhos à autobiografia, não fazendo
assim, em nenhum momento do livro, uma 8) No capítulo 18, “Meu pai”, do livro Minha
mistura de gêneros. formação, Joaquim Nabuco afirma: “É para mim
d) Para fundamentar sua narrativa, o escritor hoje uma causa de arrependimento e compunção
reproduz textos e documentos de outros o não ter tido como principal aspiração saciar-

Matheus Martins / Marcos Teixeira 23


me, saturar-me dele [de seu pai], fazer do meu manifestada pelo Papa, e conseguiu demorar a
espírito uma cópia, um borrão mesmo, do que Encíclica... A curta demora foi bastante para ela
havia impresso e gravado no seu” (p. 122). só aparecer depois de abolida a escravidão no
Com relação a essa afirmação e ao pai de Brasil... Entre a queda de Cotegipe e a Abolição
Nabuco, não podemos dizer que: o espaço foi tão pequeno que a bela obra de
Leão XIII só veio a ser publicada quando não
a) O pai de Joaquim Nabuco, José Tomás havia mais escravos no Brasil. A bênção, porém,
Nabuco de Araújo, preocupou-se como do Santo Padre à nossa causa, a palavra que ele
político em acabar inteiramente com o tráfico ia proferir, essas desde os fins de fevereiro,
de africanos, desmantelando assim o grande ainda sob o Gabinete Cotegipe, o país as
mercado de escravos existente nas costas conheceu pelas minhas revelações... A surpresa
brasileiras. Seu filho continuará seu trabalho, da emancipação total foi tão agradável a Leão
lutando pela abolição. XIII que, como post-scriptum à sua carta
b) Joaquim Nabuco, em suas memórias, faz lapidária sobre a escravidão, ele mandou à
certos reparos de alguns fatos ao falar sobre Princesa Imperial a Rosa de Ouro.
sua vida, tecendo comentários sobre (Nabuco, 1981, p. 160)
determinados episódios, e demonstra os
pontos em que gostaria que fossem diferentes, a) Homem que, dentre suas características,
como demonstra um arrependimento na temos o fato de ter sido religioso durante toda a
citação acima. vida, de forma ininterrupta, Joaquim Nabuco
c) Nabuco demonstra que a influência mais realiza ao encontrar com o papa um desejo que
forte que recebeu foi a de seu próprio pai: sua fé havia alimentado desde sempre, tendo
“Essa influência, sempre presente por mais sido a religião o motivo principal de sua ida ao
longe que eu me achasse dela, domina e Vaticano.
modifica todas as outras, que invariavelmente b) Na citação acima, Nabuco lamenta o fato de a
lhe ficam subordinadas” (p. 117). encíclica prometida pelo papa Leão XIII só ter
d) Joaquim Nabuco, assim como seu pai, não saído depois do dia 13 de maio de 1888, ou seja,
queria que a escravidão terminasse, pois via após a data em que a Lei Áurea havia sido
nessa instituição um dos mais importantes assinada.
pilares do império, e com o fim da escravidão, c) O fato de a escravidão no Brasil ter “acabado”
embora fosse uma causa humana, poderia antes que a encíclica fosse conhecida por todos,
haver um forte abalo nas estruturas da política fez com que o papa enviasse para a Princesa
brasileira da época. Isabel a Rosa de Ouro, como post-scriptum.
d) O motivo que leva Nabuco ao Vaticano é,
evidentemente, a luta pelo fim da escravidão no
9) Leia o trecho a seguir, retirado do capítulo Brasil. Porém, nessa viagem o escritor sente que
24, “No Vaticano”, do livro Minha formação, o sentimento religioso, nele adormecido desde a
de Joaquim Nabuco, e assinale a alternativa infância, retorna- lhe.
incorreta:

10) Com relação ao último capítulo do livro


Como o cardeal Czacki tinha tido razão de Minha formação, “Os últimos dez anos (1889 –
dizer que eu ia levar ao Papa um verdadeiro 1899)”, todas as alternativas estão corretas,
bombom!... Infelizmente, a diplomacia exceto:
envolveu-se na questão, o ministério
conservador alarmou-se com a intenção

Matheus Martins / Marcos Teixeira 24


a) O escritor demonstra que a queda do daquela esfera duvidosa, que é o período em que
Império pôs fim a sua carreira, sendo a causa sente renascer a fé, a religião e que nessa época
monárquica o seu último contato com a se dispõe a trocar a política pelas letras.
política. d) Nesse período o escritor se preocupará com
b) Joaquim Nabuco relata as homenagens que sua produção escrita: de 1893 a 1899 temos o
recebeu após a libertação dos escravos pela período de intensa atividade intelectual. Nabuco
sua luta e empenho. Demonstra apoio ao fim dedicou-se às letras, escrevendo livros e artigos
do Império e aproxima-se dos partidos, para jornais e revistas. Nesse período produz
terminando suas memórias como político Um estadista do Império (1896) e seu livro de
atuante. memórias Minha formação, publicado em 1900.
c) O político afirma, nesse capítulo, que a
Abolição o isolou dos partidos, afastando-o

Matheus Martins / Marcos Teixeira 25


Questões abertas

1) Em uma nota-de-rodapé do capítulo “Massangana”, Joaquim Nabuco nos revela um projeto


narrativo de Minha formação : “A primeira idéia fora contar minha formação monárquica; depois,
alargando o assunto, minha formação político literária; por último, desenvolvendo-o sempre, minha
formação humana”.

Baseado nesta revelação, faça um texto que ilustre, ao levantar as passagens mais importantes de
cada etapa, a realização deste projeto narrativo em Minha formação.

2) Influenciado pelo pensador político Bagehot, Joaquim Nabuco considera a monarquia


parlamentar uma forma de governo muito mais democrática do que a república. Faça um texto
explicando a preferência monárquica de Nabuco, apontando as diferenças que o escritor vê entre os
dois modelos de governo.

Matheus Martins / Marcos Teixeira 26


3) No capítulo 25, “O barão de Tautphœus”, do livro Minha formação, Joaquim Nabuco demonstra
certa admiração por este homem, que é considerado pelo escritor como um mestre, por, dentre
outras coisas, amar o Brasil e esquecer a Europa:

O seu amor pela nossa natureza foi muito grande. Quantas vezes introduzi
em nossas conversas a idéia de uma viagem à Europa para ver se
despertava nele afinidades esquecidas, recordações latentes! Toda essa
parte européia, porém, estava morta, atrofiada; em vez dela o que havia,
esta, vivaz e peregrina, era uma sensibilidade nova, americana, a
brasileira... Era um eterno encantado da nossa terra.
(Nabuco, 1981, p. 168)

Escrevendo um texto, compare a citação acima ao caráter de cosmopolitismo que Joaquim Nabuco
tem como cidadão do mundo.

4) Levando-se em consideração o gênero do livro Minha formação, comente a seguinte frase de


Gilberto Freyre: “Apenas Joaquim Nabuco, escrevendo Minha formação, descobriu-se somente
pela metade”.

Matheus Martins / Marcos Teixeira 27


5) Escreva um texto relacionando os seguintes trechos da obra Minha formação, de Joaquim
Nabuco:

“São impressões de simples transeunte. Eu hoje não escreveria dos Estados Unidos que é uma
nação sem ideal; diria que é uma nação cujo ideal se está formando” (p. 101)

“Hoje eu o [o memorial] teria redigido de outro modo, mas hoje não tenho mais o ardor do
propagandista...” (p. 154)

“É preciso roubar ao mundo uma parte da vida, e é melhor que seja a final, para dá-la aos
pensamentos e às aspirações que não queremos que morram conosco” (p. 173)

GABARITO

1) d 2) a 3) c 4) a 5) b 6) c 7) b 8) d 9) a 10) b

Matheus Martins / Marcos Teixeira 28


Bibliografia

BACHELARD, Gaston. Poética do espaço. São Paulo: M. Fontes, 2000.

BARTHES, Roland. O efeito de real. In: Literatura e realidade: que é o realismo? Lisboa: Dom
Quixote, 1984.

FUNDAÇÃO JOQUIM NABUCO. Ministério da Educação. – Casa Forte. Recife-PE. Apresenta


exposição virtual dos 150 anos de nascimento de Joaquim Nabuco. Disponível em:
<http://www.fundaj.gov.br/index.html>. Acesso em: 10 jun. 2004.

GOUVÊA, Fernando da Cruz. Joaquim Nabuco entre a monarquia e a república. Recife: Editora
Massangana, 1989.

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Matheus Martins / Marcos Teixeira 29

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