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Jonathan Stroud

Trilogia Bartimaeus
Livro I
O Amuleto de Samarkand

Tradução
Eduardo Francisco Alves
JOSÉ OLYMPIO
EDITORA
2003

Para Gina

Nota do Tradutor:
O Amuleto de Samarkand, em seu original inglês, começa com uma nota esclarecendo a p
ronúncia do termo "djim" e do nome "Bartimaeus". Como em português não se coloca probl
ema quanto à pronúncia de "djim", ficou decidido usar este espaço para esclarecer que:
djim designa um espírito ou entidade para os muçulmanos. No Islã, Bartimaeus era um d
jim poderoso, cuja forma assustadora era a da Grande Serpente, oriunda dos mitos
da Babilônia e da Mesopotâmia em geral, que se preservaram no Oriente Médio. O nome é a
presentado em sua forma latina e sua pronúncia é "bartimeus", o ae de latim tendo o
som de e.
Eduardo Francisco Alves

Parte Um
Bartimaeus
1
A temperatura do aposento caiu bem depressa. Gelo juntou-se sobre as cortinas e
formou uma crosta espessa em torno das lâmpadas no teto. Os filamentos luminosos d
e cada lâmpada se encolheram e escureceram, enquanto as velas, que brotavam em tod
as as superfícies disponíveis como uma colônia de cogumelos, apagaram-se. O aposento o
bscurecido encheu-se de uma nuvem amarela e sufocante de enxofre, na qual sombra
s negras indefinidas se contorciam e se agitavam. Chegava de longe o ruído de muit
as vozes gritando. De repente, fez-se forte pressão sobre a porta que dava para o
patamar. A porta abaulou-se para dentro do quarto, a madeira rangendo. Sobre as
tábuas do assoalho ouviu-se o barulho do tropel de pés invisíveis, e bocas também invisíve
is sussurravam perversidades vindas de detrás da cama e de sob a escrivaninha.
A nuvem de enxofre contraiu-se em uma grossa coluna de fumaça que vomitou finos te
ntáculos; lamberam o ar como línguas antes de se recolherem. A coluna pairou sobre o
meio do pentagrama, borbulhando continuamente para o alto em direção ao teto, como
a nuvem de um vulcão em erupção. Houve uma pausa mal perceptível. Então, dois olhos amarel
os arregalados se formaram no coração da fumaça. Ei, era a primeira vez dele. Eu quis
assustá-lo.
E assustei mesmo. O garoto de cabelos escuros ficou parado em seu próprio pentagra
ma, um menor, cheio de runas diferentes, a um metro de distância do principal. Ele
estava pálido como um cadáver, tremendo como uma folha morta em um vendaval. Seus d
entes matraqueavam na queixada trêmula. Gotas de suor lhe pingavam da testa, viran
do gelo em contato com o ar. Ao cair, estalavam sobre o chão com o barulho de gran
izo.
Tudo muito bem, mas e daí? Quer dizer, ele parecia ter uns doze anos. Olhos arrega
lados, bochechas encovadas. Não dá tanta satisfação assim fazer um garoto magricela fica
r tremendo de medo dentro das calças.1
Então, flutuei e aguardei, na esperança de que ele não demorasse demais para chegar à fórm
ula de me mandar de volta. A fim de manter-me ocupado, mandei chamas azuis lambe
ndo em torno das beiradas internas do pentagrama, como se estivessem buscando um
meio de sair e pegá-lo. Só de onda, é claro. Já tinha verificado que o Selo estava bast
ante bem desenhado. Nenhuma fórmula errada em parte alguma, infelizmente.
Finalmente, pareceu que o moleque estava tomando coragem para falar. Percebi iss
o por um tremelique nos lábios dele que não parecia induzido apenas por puro medo. D
eixei o fogo azul se dissipar, para ser substituído por um cheiro fétido.
O garoto falou. Parecia um guincho.
Eu lhe ordeno que... que... Ande logo com isso! ... diga-me o seu n-nome.
Geralmente eles começam assim, os jovens. Palavras pretensiosas, mas sem sentido.
Ele sabia e eu sabia que ele sabia o meu nome; senão, só para início de conversa, como
poderia ter-me invocado? E preciso ter as palavras certas, as ações certas e, princ
ipalmente, o nome certo. Quer dizer,não é como fazer sinal para um táxi no meio da rua
simplesmente não aparece ninguém, quando se chama.
Escolhi uma voz de um tipo cheio, profundo, sombrio, achocolatado, do tipo que r
essoa vindo de toda parte e de parte alguma e deixa os cabelos em pé nas nucas ine
xperientes.
BARTIMAEUS.
Vi o garoto engolir em seco meio estrangulado, quando ouviu a palavra. Ótimo, então
ele não era totalmente imbecil: sabia quem e o que eu era. Conhecia a minha fama.
Depois de dar um tempo para engolir algum muco acumulado, ele tornou a falar.
Volto a lhe ordenar que responda. Você é aquele Bartimaeus que nos tempos antigos f
i invocado pelos magos para consertar as muralhas de Praga?
Como esse garoto gostava de perder tempo! E quem mais seria? Com essa, aumentei
um pouquinho o volume. O gelo das lâmpadas estava como açúcar cristal. Por trás das cort
inas sujas, o vidro das janelas estremeceu e zumbiu. O garoto balançou para trás sob
re os calcanhares.
Eu sou Bartimaeus! Sou Sakher al-Jinni, N'gorso, o Poderoso, e a Serpente de Plu
mas Prateadas! Eu reconstruí as muralhas de Uruk, Karnak e Praga. Falei com Salomão.
Corri com os búfalos patriarcas das planícies. Fiquei de olho no Antigo Zimbabué, até q
ue as pedras caíram e os chacais comeram o seu povo. Sou Bartimaeus! Não reconheço amo
ou senhor. Portanto, exijo de você, por sua vez, menino. Quem é você para me invocar?
Fala impressionante, hein? Tudo verdade também, o que lhe dá mais força. E eu não estava
fazendo isso só para parecer importante. Esperava que isso assustasse o garoto pa
ra levá-lo a dizer-me o seu nome, em troca, o que me daria alguma coisa com que co
ntinuar quando ele virasse de costas.2 Mas nessa não dei sorte.
Pela força do círculo, das pontas do pentagrama e da corrente de runas, sou seu amo
Vai obedecer a minha vontade!
Havia algo particularmente irritante em ouvir essa velha conversa vindo de um fe
delho fracote, e também em uma porcaria de voz tão aguda. Engoli a vontade de dizer-
lhe parte do que eu pensava e soltei a resposta habitual. Qualquer coisa para ac
abar logo com aquilo.
Qual é a sua vontade?
Admito que eu já estava surpreso. A maioria dos aprendizes de feiticeiro olha prim
eiro e pede depois. Saem vendo o que há disponível, tentando perceber seu poder pote
ncial, mas nervosos demais para fazer uma tentativa. Tampouco é freqüente haver fran
gotes como esse titiquinha invocando entidades como eu, só para início de conversa.
O garoto limpou a garganta. Aquele era o momento. Era para isso que ele vinha se
preparando. Sonhava com isso há anos, quando devia estar deitado na cama pensando
em carros de corrida e garotas. Esperei carrancudo pelo pedido patético. O que se
ria? Levitar algum objeto era um pedido costumeiro, ou movê-lo de um lado para out
ro do aposento. Talvez ele quisesse que eu fizesse aparecer uma ilusão. Isso podia
ser divertido: tinha de haver um modo de interpretar mal seu pedido e sacaneá-lo.
3
Eu lhe ordeno que pegue o Amuleto de Samarkand na casa de Simon Lovelace e o tra
ga para mim quando eu o invocar amanhã, ao nascer do Sol.
Você o quê?
Eu lhe ordeno que pegue...
Sim, ouvi o que disse.
Não quis parecer petulante, só escorregou da minha língua, e meus tons sepulcrais esco
rregaram um pouco também.
Então, vá!
Espere um pouco!
Tive aquela sensação de náusea que sempre vem quando eles nos despacham. Como se alguém
estivesse nos sugando as entranhas pelas costas. Precisam dizer três vezes para co
nseguirem se livrar de você, caso você esteja disposto a ficar. Em geral, não está. Mas
desta vez eu fiquei onde estava, dois olhos ardendo em um feroz sufoco de fumaça f
ervendo.
Sabe o que está pedindo, garoto?
Não estou a fim nem de conversar, nem de discutir, nem de conferenciar com você; nem
de me envolver em charadas, apostas ou jogos de azar; nem a...
Não tenho a menor vontade de conversar com um adolescente magricela, acredite, por
tanto poupe a repetição mecânica de suas tolices. Alguém está se aproveitando de você. E qu
m é... o seu amo, digamos? Um encarquilhado covarde, se escondendo atrás de um garot
o.
Deixei a fumaça recuar um pouco e expus meus contornos pela primeira vez, pairando
meio apagado nas sombras.
Você está brincando duplamente com fogo, me invocando. Onde estamos? Londres?
Ele fez que sim com a cabeça. Sim, era Londres, sim, senhor. Alguma casa cavernosa
em uma zona residencial da cidade. Examinei o aposento em meio aos vapores químic
os. Teto baixo, papel de parede descascando; um único padrão de estampado, esmaecido
, sobre a parede. Era uma sombria paisagem holandesa escolha curiosa para um men
ino. Eu esperava patinhos saindo das cascas, jogadores de futebol... Muitos mago
s são conformistas, mesmo quando jovens.
Ora, vejam... Minha voz estava frouxa e melancólica. Este é um mundo cruel e lhe ens
inaram muito pouco.
Não tenho medo de você! Eu lhe dei uma incumbência e exijo que vá cumpri-la!
Despachado pela segunda vez. Senti como se um rolo compressor estivesse passando
sobre minhas entranhas. Senti minha forma vacilar, bruxulear. Esse menino tinha
poder, mesmo sendo muito jovem.
Não é a mim que você deve temer; não agora, de qualquer modo. Simon Lovelace virá atrás de
ocê em pessoa, quando descobrir que o seu amuleto foi roubado. Ele não o poupará por v
ocê ser muito jovem.
Tem a obrigação de fazer a minha vontade.
Tenho.
Tive de ceder a ele, o garoto estava determinado. E era muito obtuso. Sua mão se m
oveu. Ouvi a primeira sílaba do Vício Sistemático. Ele ia infligir dor.
Eu fui. Não me dei o trabalho de mais efeitos especiais.
2
Quando pousei no alto de um poste de luz, no cair da noite, em Londres, chovia p
ara valer. Era a minha sorte proverbial. Eu assumiria a forma de um melro, com u
m bico amarelo vivo e plumagem preto-azeviche. Em uma questão de segundos, eu era
a ave mais encharcada que já tinha batido asas em Hampstead. Virando a cabeça de um
lado para o outro, vi uma faia enorme na calçada em frente. Folhas se desfaziam em
sua base ela já havia sido pelada pelos ventos de novembro , mas os brotos espesso
s de seus galhos ofereciam um pouco de proteção contra a chuva. Voei até ela, passando
por cima de um carro solitário que seguia com leve ronco do motor pela longa aven
ida suburbana. Por trás de muros altos e da folhagem sempre-verde de seus jardins,
as feias fachadas brancas de diversas mansões se destacavam por trás da escuridão com
o os rostos dos mortos.
Bem, talvez fosse meu estado de ânimo que as fizesse parecer assim. Cinco coisas e
stavam me incomodando. De início, a dor chata, que vem a cada manifestação física, já esta
va começando. Dava para senti-la em minhas penas. Mudar de forma manteria a dor so
b controle por algum tempo, mas também poderia chamar atenção para mim, em um estágio crít
ico da operação. Enquanto eu não estivesse seguro do ambiente a minha volta, teria de
continuar a ser pássaro.
A segunda coisa era o tempo. Não preciso dizer mais nada. E, em terceiro, eu havia
esquecido as limitações dos corpos materiais. Estava com uma coceira logo acima do
bico e fiquei tentando inutilmente coçá-la com uma asa.
Em quarto lugar, o garoto. Eu tinha um monte de perguntas a respeito dele. Quem
ele era? Por que tinha um desejo de morte? Como eu acertaria as contas com ele,
antes de sua morte, por haver me sujeitado a esta missão? Notícias correm rápido, e er
a fatal que eu levasse algum castigo por estar correndo por aí para atender a um t
itica como ele.
Em quinto lugar... o amuleto. Segundo todos diziam, era um feitiço poderoso. O que
o garoto achava que ia fazer com ele, quando o obtivesse, eu não conseguia imagin
ar. Ele não tinha a menor idéia. Talvez só o usasse como um trágico acessório de moda. Tal
vez surrupiar amuletos fosse a última onda, a versão bruxa de roubar calotas. Mesmo
assim, eu tinha de pegá-lo primeiro, e isso não ia necessariamente ser fácil, nem mesm
o para mim.
Fechei meus olhos de melro e abri os olhos internos, um após o outro, cada qual em
um plano diferente.4 Olhei para trás e para a frente à minha volta, pulando de galh
o para cima e para baixo, para conseguir a melhor visão. Nada menos de três mansões ao
longo da avenida tinham proteção mágica, o que mostrava que área grã-fina era essa em que
nos encontrávamos. Não examinei as outras duas mais no alto da rua; era a que ficav
a do outro lado da calçada, atrás do poste de luz, que me interessava. A residência de
Simon Lovelace, mago.
O primeiro plano estava livre, mas ele havia improvisado um vínculo defensivo no s
egundo que brilhava como fina teia azul por toda a extensão do muro alto. E não term
inava aí, projetava-se para o alto, no ar, ultrapassando o topo da casa branca bai
xa e voltando a descer do outro lado, formando um grande domo tremeluzente.
Nada mal, mas eu podia dominá-lo.
O terceiro e o quarto planos estavam livres, mas no quinto percebi três sentinelas
rondando pelo ar, logo atrás da beira do muro do jardim. Eram inteiramente de um
amarelo opaco, cada qual formado de três pernas robustas que giravam sobre um eixo
de cartilagem. Acima do eixo ficava uma massa cheia de pústulas, que exibia duas
bocas e diversos olhos vigilantes. As criaturas passavam aleatoriamente, para lá e
para cá, no perímetro do jardim. Encolhi-me de encontro ao tronco da faia instintiv
amente, mas eu sabia que era improvável que me avistassem de lá. A essa distância, eu
devia parecer um melro em todos os sete planos. Era quando eu chegasse mais pert
o que eles poderiam descobrir minha ilusão.
No sexto plano não havia nada. Mas o sétimo... esse era curioso. Eu não conseguia ver
nada óbvio a casa, a avenida, a noite, tudo parecia igual , mas, chamem de intuição se
quiserem, eu tinha certeza de que havia alguma coisa lá, à espreita.
Esfreguei o bico, desconfiado, contra um nó de madeira. Conforme esperado, havia m
uita magia poderosa em operação aqui. Eu tinha ouvido falar de Lovelace. Era conside
rado um mago formidável e um feitor tirânico. Eu tinha sorte de nunca ter sido invoc
ado à seu serviço e não queria sua inimizade, nem a de seus servidores.
Mas tinha de obedecer àquele guri.
O melro encharcado alçou vôo do galho e atravessou rápido a avenida, evitando convenie
ntemente o arco de luz do poste mais próximo. Pousou em um pequeno trecho de grama
cheia de mato, no canto do muro. Quatro sacos pretos de lixo tinham sido deixad
os lá fora, para serem recolhidos na manhã seguinte. O melro saltitou para trás dos sa
cos de lixo. Um gato que tinha observado o pássaro5 de alguma distância, esperou dur
ante alguns momentos que ele saísse, perdeu a paciência e foi curiosamente à sua procu
ra. Não havia nada lá, a não ser um recém-revirado montinho de terra de um buraco de tou
peira.
3
Detesto o gosto de lama. Isso não é coisa que sirva para um ser de ar e de fogo. O p
eso sufocante da terra me oprime enormemente, sempre que entro em contato com el
a. Por isso sou muito exigente quanto a minhas encarnações. Pássaros, ótimo. Insetos, ótim
o. Morcegos, tudo bem. Coisas que correm rápido são ótimas. Moradores de árvores são ainda
melhores. Coisas subterrâneas não servem. Toupeiras, péssimo.
Mas não há sentido em ser exigente, quando você tem pela frente um escudo protetor de
que se desviar. Eu raciocinara corretamente que ele não se estendia ao subterrâneo.
A toupeira cavara fundo, bem fundo, sob as fundações do muro. Não soou nenhum alarme mág
ico, embora eu tenha batido com a cabeça cinco vezes em um pequeno calhau.6 Cavei
de volta para cima, atingindo a superfície após vinte minutos me esfalfando, fungand
o e erguendo meu nariz redondinho para as minhocas suculentas que eu descobria a
cada duas raspadas.
A toupeira botou a cabeça cautelosamente para fora da pequena pilha de terra que h
avia estendido pela superfície imaculada do gramado de Simon Lovelace. Olhou em to
rno, conferindo o ambiente. Havia luzes na casa, no andar térreo. As cortinas esta
vam fechadas. Os andares superiores, pelo que a toupeira podia ver, estavam escu
ros. A extensão azul translúcida do sistema mágico de defesa erguia-se em um arco alto
. Uma sentinela amarela passou, em seu afã imbecil, três metros acima dos arbustos.
As outras duas provavelmente estavam na parte de trás da casa.
Tentei novamente o sétimo plano. Nada ainda, aquela desagradável sensação de perigo cont
inuava. Ah, bem.
A toupeira recuou para baixo da terra e foi abrindo um túnel sob as raízes da grama
em direção à casa. Reapareceu no canteiro de flores logo abaixo das janelas mais próxima
s. Estava pensando com força. Não havia sentido em ir mais além com esse disfarce, por
tentador que fosse invadir o porão. Era preciso descobrir um método diferente.
Às orelhas peludas da toupeira chegou o ruído de risos e do tilintar de copos. Era s
urpreendentemente alto, vindo de muito perto. Na parede, a não mais de meio metro
dali, havia um respiradouro, rachado de tão velho, para a passagem de ar. Dava lá pa
ra dentro.
Com algum alívio, transformei-me em uma mosca.
4
Da segurança do respiradouro, espiei com meus olhos multifacetados o interior de u
ma sala de estar bem tradicional. Havia um tapete grosso, um detestável papel de p
arede listrado, uma coisa medonha de cristal, que passava por ser um lustre, dua
s telas a óleo escurecidas pelo tempo, um sofá e duas poltronas (também listrados), um
a mesa de centro baixa tendo em cima uma bandeja de prata e, sobre a bandeja, um
a garrafa de vinho tinto e nenhum copo. Os copos estavam nas mãos de duas pessoas.
Uma delas era uma mulher. Era jovenzinha (para um humano, o que significa infini
tesimalmente jovem) e provavelmente muito bonita, de um modo bem carnal. Olhos g
randes, cabelos escuros, cortados curtos. Guardei-a na memória automaticamente. Ap
areceria sob a forma dela, amanhã, quando voltasse a visitar aquele garoto. Só que n
ua. Vamos ver como sua mente obstinada, mas tão inteiramente adolescente, reagiria
a isso!7
Por enquanto, porém, eu estava mais preocupado com o homem para quem essa mulher e
stava olhando e sorrindo. Era alto, magro, bonito, de um modo um tanto livresco,
com o cabelo puxado para trás mediante algum óleo de cheiro pungente. Usava óculos re
dondinhos e exibia uma boca larga com bons dentes. Tinha o queixo proeminente. A
lguma coisa me dizia que esse era o mago, Simon Lovelace. Seria sua indefinível au
ra de poder e autoridade? Ou seria o jeito de proprietário com que ele gesticulava
em torno do aposento? Ou seria o diabrete que flutuava sobre seu ombro (no segu
ndo plano), em cautelosa vigilância contra perigo de todos os lados?
Esfreguei minhas duas pernas frontais com irritação. Teria de tomar muito cuidado. O
diabrete complicava as coisas.8
Pena que eu não era uma aranha. Elas podem ficar horas paradas sem se incomodar. M
oscas são muito mais agitadas. Mas, se eu me transformasse aqui, o escravo do mago
certamente perceberia. Eu tinha de forçar meu corpo rebelde a ficar na moita e a
ignorar a dor que estava voltando a se formar, desta vez dentro de minha quitina
.
O mago estava falando. Ele fez pouca coisa mais. A mulher o fitava com olhos de
spaniel tão arregalados e tolos de adoração, que tive vontade de mordê-la.
...será uma ocasião magnífica, Amanda. Você será a menina dos olhos da sociedade londrina
Sabe que o próprio primeiro-ministro está ansioso por conhecer a sua propriedade? S
im, sei disso de fonte limpa. Meus inimigos o andaram cercando durante semanas c
om suas insinuações, mas ele ficou firme na decisão de realizar a reunião no Grande Hall
. Então, entenda, meu amor, ainda posso influenciá-lo quando necessário. O negócio é saber
como levá-lo, como lisonjear sua vaidade... não diga a ninguém, mas ele na verdade é ba
stante fraco. A especialidade dele é fazer charme, e hoje até isso ele raramente faz
. E por que faria? Ele tem homens de terno para o fazer por ele...
O mago continuou tagarelando assim por vários minutos, citando nomes com incansável
energia. A mulher tomava seu copo de vinho, arfava, assentia com a cabeça e soltav
a exclamações nos momentos certos, estendendo-se ao lado dele no sofá. Quase comecei a
zumbir de tédio.9
De repente, o diabinho ficou alerta. Ele virou a cabeça 180 graus e ficou olhando
a porta na outra extremidade do aposento. Cutucou suavemente a orelha do mago, p
ara preveni-lo. Segundos depois a porta se abriu e um lacaio de casaca preta e c
areca entrou respeitosamente.
Perdoe-me, senhor, mas seu veículo está pronto.
Obrigado, Carter. Levaremos só um momento.
O lacaio recuou. O mago recolocou seu copo de vinho (ainda cheio) sobre a mesa d
e centro e segurou a mão da mulher. Beijou-a galantemente. Às suas costas, o diabinh
o fazia caras de extremo desagrado.
É horrível ter de ir embora, Amanda, mas o dever me chama. Não estarei em casa esta
ite. Posso ir vê-la? Teatro amanhã à noite, talvez?
Seria encantador, Simon.
Então, está resolvido. Meu bom amigo Makepeace tem uma peça nova em cartaz. Vou gan
entradas. Agora, Carter a levará para casa.
Homem, mulher e diabrete saíram, deixando a porta escancarada. Atrás deles, uma mosc
a desconfiada esgueirou-se de seu esconderijo e atravessou, veloz e silenciosame
nte, o aposento, até um ponto de observação que dava uma visão do vestíbulo. Durante algun
s minutos, houve atividade, casacos sendo trazidos, ordens sendo dadas, portas b
atendo. E então o mago saiu de casa.
Voei até o vestíbulo. Era amplo, frio e tinha o chão forrado com lajotas pretas e bran
cas. Samambaias de um verde vistoso cresciam em gigantescos vasos de cerâmica. Voe
i em torno do lustre, ouvindo. Estava muito silencioso. Os únicos sons vinham de u
ma cozinha distante e eram bastante inocentes só o bater de pratos e panelas e div
ersos arrotos bem altos, provavelmente dados pelo cozinheiro.
Ponderei a idéia de mandar um discreto pulso mágico, para ver se podia detectar o pa
radeiro dos artefatos do mago, mas concluí que era arriscado demais. As criaturas
de sentinela do lado de fora poderiam captá-lo, em primeiro lugar, ainda que não hou
vesse mais guardiães. Eu, a mosca, teria de ir pessoalmente à caça.
Todos os planos estavam livres. Segui pelo vestíbulo e, seguindo uma intuição, subi as
escadas.
No patamar, um corredor com um carpete espesso levava em dois sentidos, cada qua
l orlado de telas a óleo. Fiquei imediatamente interessado pela passagem à mão direta,
pois a meio caminho havia um vigia. Para olhos humanos, era um alarme de fumaça,
mas nos outros planos sua forma se revelava um sapo de cabeça para baixo, com olho
s desagradavelmente bulbosos pousados no teto. A mais ou menos cada minuto, ele
dava um pulo, girando um pouco. Quando o mago voltasse, ele lhe contaria qualque
r coisa que houvesse acontecido.
Mandei uma pequena mágica na direção do sapo. Um espesso vapor pegajoso saiu do teto e
envolveu o vigia, obscurecendo-lhe a visão. Enquanto ele saltava e coaxava, confu
so, passei voando rapidamente até a porta no final da passagem. Das portas que hav
ia no corredor, essa era a única que não tinha buraco de fechadura; sob sua pintura
branca, a madeira era reforçada com barras de metal. Dois bons motivos para tentar
essa primeiro.
Havia uma fenda minúscula sob a porta. Era pequena demais para um inseto, mas eu e
stava mesmo louco por uma mudança. A mosca dissolveu-se em um filete de fumaça, que
passou sem ser visto por baixo da porta, assim que a tela de vapor em torno do s
apo se desmanchou.
Dentro do quarto, transformei-me em uma criança.
Se eu soubesse o nome do aprendiz, teria sido malicioso e assumido sua forma, só p
ara dar a Simon Lovelace uma vantagem quando ele começasse a montar as peças do roub
o. Mas, sem saber seu nome, eu não tinha como manipulá-lo. Então, virei um menino que
eu havia conhecido, alguém que havia amado. Seu pó há muito tempo seguira flutuando pe
lo Nilo, então meu crime não o prejudicaria, e, de qualquer forma, contentava-me lem
brar-me dele desse modo. Tinha pele morena, olhos lustrosos e usava uma tanga br
anca. Ele olhou em torno, daquele jeitinho todo seu, a cabeça levemente caída para u
m lado.
O quarto não tinha janelas. Havia vários armários contra as paredes, cheios de parafer
nália mágica. A maioria era bem inútil, só servia para espetáculos no palco,10 mas havia a
qui alguns itens curiosos. Havia uma trompa de convocação que eu sabia ser autêntica,
porque só de olhar para ela senti-me mal. Uma buzinada daquilo e qualquer coisa so
b o poder daquele mago estaria a seus pés, suplicando piedade e pedindo para cumpr
ir suas ordens. Era um instrumento cruel e muito antigo e eu não conseguia nem che
gar perto dele. Em outro armário havia um olho feito de argila. Eu já tinha visto um
desses, na cabeça de um golem. Eu me perguntava se o insensato sabia o potencial
daquele olho. Quase com certeza não sabia deve tê-lo escolhido como um souvenir em a
lgum pacote de férias na Europa Central. Turismo mágico... veja você. Bem, com sorte e
u talvez possa matá-lo algum dia.
E havia o Amuleto de Samarkand. Estava guardado em uma pequena embalagem só para e
le, protegido por vidro e por sua própria fama. Aproximei-me, examinando um a um o
s planos, procurando perigo e encontrando... bem, nada explícito, mas no sétimo plan
o tive a distinta impressão de que alguma coisa se mexia. Não aqui, mas por perto. E
ra melhor agir rápido.
O amuleto era pequeno, sem graça e feito de ouro batido. Pendia de um curto cordão d
e ouro. Tinha no centro uma peça oval de jade. O ouro havia sido amolgado com enta
lhes de desenho simples, representando corcéis em disparada. Cavalos eram os bens
mais valiosos das pessoas da Ásia central que haviam feito o amuleto, três mil anos
atrás, e o enterraram no túmulo de uma de suas princesas. Um arqueólogo russo o encont
rou nos anos 1950, e logo foi roubado por magos que reconheciam seu valor. Como
Simon Lovelace o conseguira quem exatamente ele havia assassinado ou tapeado par
a consegui-lo , eu não fazia idéia.
Joguei de novo a cabeça para o lado, tentando escutar. Estava tudo silencioso na c
asa.
Ergui a mão sobre o armário, sorrindo ao meu reflexo quando meu punho se fechou.
Então baixei a mão com força e arrebentei o vidro com ela.
Uma pulsação de energia mágica ressoou por todos os sete planos. Agarrei o amuleto e p
endurei-o no pescoço. Virei-me rapidamente. O quarto estava como antes, mas eu pod
ia sentir alguma coisa no sétimo plano, movendo-se rapidamente e se aproximando.
O tempo para o roubo tinha acabado.
Enquanto corria para a porta, percebi com o canto do olho um portal subitamente
aberto em pleno ar. Dentro do portal havia um negrume que foi imediatamente obsc
urecido quando alguma coisa o atravessou, saindo.
Projetei-me contra a porta e atingi-a com meu punho de menininho. A porta se esc
ancarou como uma carta de baralho dobrada. Passei por ela correndo, sem parar.
No corredor, o sapo virou-se para mim e abriu a boca, de onde saiu um jato de lo
do verde que subitamente se acelerou em minha direção, visando minha cabeça. Esquivei-
me, e o lodo esparramou-se na parede atrás de mim, destruindo uma pintura e tudo a
té chegar aos tijolos por baixo.
Lancei um feixe de compressão contra o sapo. Com um pequeno coaxar de lástima, ele i
mplodiu em uma densa folha de matéria do tamanho de uma bola de gude e caiu no chão.
Não interrompi o passo. Enquanto atravessava apressado o corredor, coloquei um es
cudo protetor em torno de meu corpo físico, para o caso de mais algum míssil.
O que acabou sendo uma sábia providência porque, um instante em seguida, uma Detonação a
tingiu o assoalho, logo atrás de mim. O impacto foi tão grande que saí voando de cabeça,
em ângulo, pelo corredor afora e me enfiando até a metade na parede. Chamas verdes
lambiam à minha volta, deixando nas paredes os riscos de veias como os dedos de um
a mão gigante.
Fiz força para pôr-me de pé em meio à confusão de tijolos estilhaçados e virei-me.
Parado sobre a porta quebrada no final do corredor havia algo que assumiria a fo
rma de um homem muito alto com a pele vermelho-brilhante e a cabeça de um chacal.
BARTIMAEUS!
Mais uma Detonação abalou o corredor. Pulei, num sobressalto, buscando as escadas e,
quando a explosão verde vaporizou a quina da parede, rolei os degraus de ponta-ca
beça, atravessei os balaústres e caí dois metros sobre o chão de lajes pretas e brancas,
rachando-o seriamente.
Pus-me de pé e olhei para a porta da frente. Através do vidro fosco ao lado da porta
eu podia ver a volumosa silhueta amarela de uma das três sentinelas. Estava deita
da à espera, mal percebendo que podia ser vista do interior. Resolvi sair por outr
a parte. Assim, a qualquer hora, a inteligência superior vence a força bruta!
Falando nisso, eu tinha de cair fora depressa. Ruídos vindos de cima indicavam per
seguição.
Atravessei correndo dois aposentos uma biblioteca e uma sala de jantar , em cada
um deles fazendo uma pausa para olhar pela janela e a cada vez recuando quando u
ma ou mais das criaturas amarelas ficava à vista do lado de fora. A estupidez dela
s, de se fazerem tão óbvias, só era igualada por minha cautela em evitar quaisquer arm
as mágicas que portassem.
Atrás de mim, meu nome era chamado por uma voz furiosa. Com crescente frustração, abri
a porta seguinte e achei-me na cozinha. Não havia mais portas internas, mas uma l
evava para fora até o que parecia uma estufa com telhado de meia-água, cheia de erva
s e verduras. Atrás dela ficava o jardim e também as três sentinelas, que vinham conto
rnando a lateral da casa a uma velocidade surpreendente com suas pernas rotativa
s. Para ganhar tempo, pus um Selo na porta atrás de mim. Olhei em torno e vi o coz
inheiro.
Ele estava sentado bem para trás em sua cadeira, com os sapatos sobre a mesa da co
zinha, um homem gordo, de aspecto jovial, com um rosto rubro e um cutelo de carn
e na mão. Estava aparando minuciosamente as unhas com o cutelo, mandando cada frag
mento de unha pelo ar, com um piparote hábil, fazendo-os cair na lareira a seu lad
o. Enquanto fazia isso, ele me espiava continuamente com seus olhos escuros.
Senti-me inquieto. Ele não parecia absolutamente perturbado por ver um garotinho e
gípcio entrar correndo em sua cozinha. Examinei-o nos diferentes planos. Do um ao
seis ele era exatamente a mesma coisa, um cozinheiro corpulento com um avental b
ranco. Mas no sétimo...
Xiiii.
Bartimaeus.
Faquarl.
Como vai?
Nada mal.
Não o tenho visto por aí.
Não, calculo que não.
Vergonha, hein?
Sim. Bem... eis-me aqui.
Ei-lo aí, de fato.
Enquanto essa conversa fascinante prosseguia, os sons de uma contínua série de Deton
ações chegava do outro lado da porta, mas meu Selo agüentou firme. Sorri o mais polida
mente que pude.
Jabor parece nervoso como sempre.
Sim, ele é sempre o mesmo. Só acho que talvez levemente mais voraz, Bartimaeus. Essa
é a única mudança que notei nele. Ele nunca parece satisfeito, mesmo quando é alimentad
o. E isso acontece muito raramente hoje em dia, como pode imaginar.
Trate-os como empregados, mantenha-os entusiasmados, esse é o lema de seu amo, não
Mesmo assim, ele deve ser razoavelmente poderoso para poder ter você e Jabor como
seus escravos.
O cozinheiro deu um sorriso apertado e, com um gesto rápido da faca, mandou uma ap
ara de unha rodopiando até o teto. Ela perfurou o gesso e ficou encravada lá.
Ora, ora, Bartimaeus, não usamos a palavra escravo entre pessoas civilizadas, usam
os? Jabor e eu estamos fazendo o jogo demorado.
Claro que estão.
Falando em disparidades de poder, percebo que você escolheu evitar se dirigir a mi
m no sétimo plano. Isso parece um pouco rude. Estaria intranquilo com minha forma
verdadeira?
Nauseado, Faquarl, não intranquilo.11
Bem, isso tudo é muito agradável. Admiro a sua escolha de forma, aliás, Bartimaeus. Mu
ito decorosa. Mas vejo que está um pouco sobrecarregado por um certo amuleto. Talv
ez pudesse ter a bondade de tirá-lo e pô-lo em cima da mesa. Então, talvez, se quiser
me dizer para que mago está trabalhando, eu poderia considerar modos de encerrar e
ste encontro de uma forma não fatal.
Isso é gentileza sua, mas sabe que não posso fazer isso.12
O cozinheiro espetou a beirada da mesa com a ponta de seu cutelo.
Deixe-me ser franco. Você pode e o fará. Não é nada pessoal, evidentemente; um dia
os voltar a trabalhar juntos. Mas por enquanto estou sob obrigação, exatamente como
você. E eu também tenho minha tarefa para cumprir. Então trata-se, como sempre, de uma
questão de poder. Corrija-me, se eu estiver errado, mas percebo que você não tem conf
iança demais em si próprio hoje em dia, senão teria saído pela porta da frente,derruband
o os trilóides no caminho, em vez de permitir que eles o botassem para contornar a
casa, tocando-o para cá, até chegar a mim.
Só estava seguindo uma idéia que me deu na veneta.
Hmm. Talvez você deva parar de ficar se esgueirando para junto da janela, Bartimae
us. Uma manobra dessas seria deploravelmente óbvia, até para um humano,13 e, além diss
o, os trilóides esperam por você lá. Entregue o amuleto, ou vai descobrir que esse seu
Escudo de Defesa ordinário não vale nada.
Ele se levantou e estendeu a mão. Houve uma pausa. Por trás de meu Selo, as Detonações i
nsistentes (ainda que sem imaginação) de Jabor ainda ressoavam. A própria porta há muito
já devia ter sido reduzida a pó. No jardim, as três sentinelas pairavam, todos os olh
os voltados para mim. Olhei em torno da cozinha, buscando inspiração.
O amuleto, Bartimaeus.
Ergui a mão e, com um suspiro profundo, muito teatral, segurei o amuleto. Então, sal
tei de pé. Ao mesmo tempo, soltei o Selo da porta. Faquarl emitiu um som de impaciên
cia e começou a fazer um gesto. A isso, foi atingido em cheio por uma possante Det
onação, que irrompeu pela brecha onde havia estado o Selo. Ela o projetou para trás, p
ara dentro da lareira, e os tijolos desabaram em cima dele. Parti violentamente
para a estufa, no exato momento em que Jabor entrava na cozinha pela brecha do S
elo. Quando Faquarl surgiu do meio dos destroços, eu estava prorrompendo no jardim
. As três sentinelas convergiram sobre mim, os olhos todos arregalados, as pernas
girando. Garras cortantes surgiram nas pontas de seus pés pustulentos. Lancei uma
Iluminação do tipo mais brilhante. O jardim inteiro se acendeu como que iluminado po
r uma explosão solar. Os olhos das sentinelas ficaram ofuscados; elas tiveram trem
eliques de dor. Saltei por cima delas e atravessei correndo o jardim, esquivando
-me de feixes de magia, vindos da casa, que incineravam árvores.
Na extremidade do jardim, entre uma pilha de adubo e um cortador de grama a moto
r, saltei sobre o muro e saí rasgando a treliça de nódulos mágicos, deixando um buraco c
om o formato de um menino. Imediatamente, campainhas de alarme começaram a tocar e
m todo o terreno da propriedade.
Caí de pé na calçada, o amuleto saltando no meu peito. Do outro lado do muro, escutei
o som de cascos em galope. Estava mais do que na hora de fazer uma transformação.
O falcão-peregrino é o pássaro mais rápido de que se tem conhecimento. Voando em mergulh
o, ele pode atingir uma velocidade de duzentos quilômetros por hora. Raramente alg
uém consegue essa marca horizontalmente, sobre os telhados do norte de Londres. Al
guns até duvidariam que isso fosse possível, em particular carregando um amuleto pes
ado pendurado no pescoço. Basta dizer, no entanto, que quando Faquarl e Jabor cheg
aram à rua dos fundos, lá em Hampstead, criando uma barreira invisível contra a qual i
mediatamente colidiu uma van de mudanças que vinha em velocidade, eu não estava mais
visível.
Tinha sumido há muito.
Nathaniel
5
Acima de tudo disse-lhe seu amo , existe um fato que você precisa enfiar nessa sua
desgraçada cabecinha, para nunca mais se esquecer. Pode imaginar que fato é esse?
Não, senhor disse o menino.
Não? As sobrancelhas eriçadas se ergueram, fingindo surpresa. Como hipnotizado, o
nino ficou olhando-as desaparecer sob o tufo pendente de cabelo branco. E aí, quas
e timidamente, elas continuaram sumidas só por um momento, até subitamente descerem
com terrível peso e conclusividade. Não. Então, bem... O mago inclinou-se para a frent
e na poltrona. Vou lhe dizer.
Com um movimento lento, deliberado, ele juntou as mãos de forma que as pontas dos
dedos formassem um arco pontudo, que apontou para o menino.
Lembre-se disto disse ele em voz baixa. Demônios são muito malvados. Eles o mac
, se puderem. Entende isso?
O menino ainda estava observando as sobrancelhas. Não conseguia afastar o olhar de
las. Agora estavam vincadas serenamente para baixo, duas pontas de flechas aguda
s se encontrando. Moviam-se com uma agilidade notável para cima, para baixo, se in
clinando, formando arcos, às vezes juntas, às vezes separadamente. Com sua paródia de
vida independente, elas exerciam um estranho fascínio sobre o menino. Além disso, el
e achava examiná-las infinitamente preferível a enfrentar o olhar do mestre.
Você está entendendo?
Estou, sim, senhor.
Ora, bem, você diz que sim, e tenho certeza que é sincero. E, no entanto... Uma sobr
ancelha ergueu-se pensativamente. E, no entanto, não me sinto convencido de que re
almente compreenda.
Oh, sim, senhor; compreendo, sim, senhor. Demônios são malvados, perigosos e machuca
m você, se você deixar, senhor.
O menino agitou-se nervoso em sua almofada. Estava ansioso para provar que tinha
prestado bastante atenção. Lá fora, o Sol de verão batia sobre a grama e as calçadas quen
tes; uma caminhonete de sorvete passara alegremente sob a janela há cinco minutos.
Mas apenas uma orla reluzente da pura luz do dia passava pelas pesadas cortinas
vermelhas da sala do mago; o ar lá dentro era denso e abafado. O menino ansiava q
ue a aula acabasse para poder ir embora. Prestei bastante atenção, senhor disse ele.
O mestre fez que sim com a cabeça.
Você já viu um demônio? perguntou.
Não, senhor. Quer dizer, só em livros.
Levante-se.
O garoto levantou-se depressa, um pé quase resvalando na almofada. Ele ficou esper
ando, desajeitado, as mãos estendidas dos lados do corpo. O mestre indicou uma por
ta atrás dele, com um dedo apontado indiferentemente.
Sabe o que há ali, do outro lado?
O seu gabinete, senhor.
Ótimo. Desça os degraus e entre no escritório. Atravesse-o. Na parede em frente, encon
trará minha mesa. Sobre a mesa há uma caixa. Na caixa há um par de óculos. Ponha-os e vo
lte para cá. Entendeu?
Sim, senhor.
Muito bem, então. Pode ir.
Sob o olhar vigilante do mestre, o menino atravessou a porta, que era de madeira
escura, sem pintura, com muitos nós e partes granuladas. Teve de fazer força para v
irar a pesada maçaneta de latão, mas seu toque frio lhe foi agradável. A porta girou e
abriu-se silenciosa sobre dobradiças bem lubrificadas e o menino entrou, encontra
ndo-se no alto de degraus acarpetados. As paredes eram elegantemente cobertas co
m um papel de padrão floral. Uma pequena janela, abaixada pela metade, deixava ent
rar um agradável jorro de luz do Sol.
O menino desceu com atenção, um degrau de cada vez. O silêncio e a luz do Sol o tranqüil
izaram e dominaram alguns de seus medos. Nunca tendo passado desse ponto, contav
a apenas com histórias da carochinha para suprir sua idéia do que poderia estar à espe
ra no gabinete do mestre. Imagens terríveis de crocodilos empalhados e de globos o
culares dentro de vidros brotaram-lhe berrantes na cabeça. Furiosamente, botou-as
para fora. Não ia ficar com medo.
Ao pé da escada havia uma outra porta, semelhante à primeira, porém menor e decorada,
no centro, com uma estrela de cinco pontas pintada em vermelho. O menino torceu
a maçaneta e empurrou: a porta se abriu relutantemente, prendendo-se no carpete es
pesso. Quando o vão ficou largo o bastante, o menino passou e entrou no cômodo.
Inconscientemente, prendeu a respiração ao entrar; agora tornava a soltá-la, quase com
uma sensação de decepção. Era tudo tão comum. Um aposento comprido, repleto de livros de
ambos os lados. No fim, uma grande mesa de madeira com uma cadeira almofadada e
forrada de couro. Canetas sobre a mesa, alguns papéis, um velho computador, uma ca
ixinha de metal. A janela atrás da mesa dava para uma castanheira adornada com o p
leno esplendor do verão. A luz no aposento tinha um suave matiz esverdeado.
O menino dirigiu-se para a mesa.
A meio caminho, parou e olhou para trás.
Nada. E, no entanto, tivera uma estranhíssima sensação... Por algum motivo, a porta le
vemente aberta, através da qual entrara há apenas um momento, agora dava-lhe um sent
imento de insegurança. Gostaria que lhe houvesse ocorrido fechá-la às suas costas.
Ele sacudiu a cabeça. Não era preciso. Voltaria a atravessá-la em uma questão de segundo
s.
Quatro passos apressados o levaram à beira da mesa. Voltou a olhar em torno. Com c
erteza tinha havido um ruído...
O cômodo estava vazio. O menino ficou ouvindo tão atentamente quanto um coelho em se
u esconderijo. Não, nada havia para ouvir além dos fracos sons do tráfego distante.
Olhos arregalados, respirando com esforço, o menino virou-se para a mesa. A caixa
de metal refulgia ao sol. Estendeu a mão para pegá-la. Isso não era rigorosamente nece
ssário poderia ter dado a volta à mesa e pegado a caixa com facilidade , mas, de algu
m modo, ele queria economizar tempo, pegar o que tinha vindo buscar e cair fora.
Inclinou-se sobre a mesa e estendeu o braço, mas a caixa, obstinada, continuava s
implesmente fora de alcance. O garoto balançou para a frente e agitou freneticamen
te as pontas dos dedos. Eles não conseguiram pegar a caixa, mas o braço, que se sacu
dia, derrubou um potinho de canetas. As canetas se espalharam sobre o couro.
O menino sentiu uma gota de suor escorrer-lhe sob o braço. Agitadamente, começou a r
ecolher as canetas e a enfiá-las de volta no pequeno recipiente.
Houve um risinho gutural na sala, logo atrás dele. Girou sobre os calcanhares, suf
ocando um grito, mas não havia nada aparente.
Durante um momento o menino permaneceu de costas para a mesa, encostado nela, pa
ralisado de medo. Então, alguma coisa dentro dele se reassegurou.
Esqueça as canetas aquilo parecia dizer. Você veio até aqui por causa da caixa.
Lenta e imperceptivelmente, centímetro a centímetro, ele começou a fazer um círculo rumo
à lateral da mesa, as costas para a janela, os olhos pregados na sala.
Alguma coisa deu pancadinhas urgentes na janela, três vezes. Ele girou em torno de
si. Nada. Só a castanheira no jardim, agitando-se delicadamente à brisa do verão.
Nada ali.
Naquele momento, uma das canetas que haviam se derramado rolou pela mesa, caindo
no carpete: não fez nenhum ruído, mas ele avistou-a com o canto do olho. Uma outra
caneta começou a rolar para lá e para cá a princípio lentamente, depois cada vez mais ráp
do. De repente ela rolou para longe, bateu na base do computador e caiu da beira
da da mesa para o chão. Depois outra fez o mesmo. E então mais uma. De repente, toda
s as canetas estavam rolando, em diversas direções, ao mesmo tempo, acelerando rumo às
beiradas da mesa, colidindo, caindo, ficando paradas.
O menino ficou de olho. A última caiu.
Ele não se mexeu.
Alguma coisa riu baixinho, bem em seu ouvido.
Com um grito, ele deu um golpe com o braço esquerdo, mas não fez nenhum contato. O ímp
eto do movimento o fez girar e ir de cara na mesa. A caixa estava bem a sua fren
te. Ele não conseguiu equilibrá-la e a deixou cair o metal estivera sob o sol e o ca
lor queimou a palma de sua mão. Com a queda na mesa, a tampa abriu. Um par de óculos
de aros de chifre caiu. Logo em seguida, ele os pegou e correu para a porta.
Algo veio atrás dele. Ouvi-o pulando às suas costas.
Estava quase na porta; podia ver a escada adiante, que o levaria ao mestre.
E a porta fechou violentamente.
Ele virou a maçaneta, bateu na porta, depois com mais força, chamou o mestre aos sol
uços, mas tudo sem resposta. Algo sussurrava ao seu ouvido e ele não conseguia enten
der. Num pânico mortal, chutou a porta, conseguindo apenas machucar o dedão na sua b
ota preta.
Virou-se, então, e encarou o cômodo vazio.
Ouvia murmúrios a sua volta, sentiu pancadinhas suaves e alguns adejares, como se
o tapete, os livros, as estantes, mesmo o teto fossem escovados por coisas que s
e moviam invisíveis. Uma sombra clara acima de sua cabeça oscilava devagar numa bris
a que não soprou.
Em meio a lágrimas, ao terror, o menino encontrou coragem para falar.
Pare! Gritou. Vá embora!
Os murmúrios, as pancadinhas e os adejares pararam imediatamente. O balançar da somb
ra foi diminuindo até parar. O escritório estava imóvel.
Engolindo a seco para respirar, o menino aguardou com as costas contra a porta,
olhando para o cômodo. Nenhum barulho.
Então ele lembrou dos óculos, que ainda segurava nas mãos. Por cima da densa neblina d
o medo, lembrou-se do mestre, que lhe disse para colocar os óculos antes de voltar
. Talvez se o fizesse, a porta abriria e ele poderia subir as escadas a salvo.
Com os dedos trêmulos levantou os óculos e os colocou.
E viu a verdade do gabinete.
Centenas de pequenos demônios ocupavam cada centímetro do espaço a sua frente. Estavam
empilhados, alinhados e espalhados por todo o escritório, como sementes num melão o
u um saquinho de nozes, com pés esmagando rostos e cotovelos cutucando barrigas. E
stavam tão atarracados, tão apertados, que todo o carpete estava coberto. Olhando de
viés obscenamente, espalhavam-se sobre a mesa, penduravam-se nas lâmpadas, nas past
as e pairavam no ar. Alguns equilibravam-se nos narizes protuberantes dos outros
ou se agarravam em seus membros. Alguns tinham corpos enormes com cabeças do tama
nho de laranjas; muitos eram o oposto. Havia rabos e asas e chifres e verrugas e
mãos ou bocas ou pés ou olhos extras. Havia muitas escamas e pêlos demais e outras co
isas em lugares impossíveis. Alguns tinham bicos, outros tinham ventosas, a maiori
a tinha dentes. Havia demônios de todas as cores que se possa imaginar, freqüentemen
te em péssimas combinações. E todos fizeram o máximo para ficarem bem quietinhos a fim d
e convencer o menino de que não havia ninguém lá. Tentaram com todas as forças ficar imóve
is, apesar das chacoalhadas e tremidas de rabos e asas e das incontroláveis contrações
de sua bocas extremamente inquietas.
Mas no exato momento em que o menino pôs os óculos e os viu, perceberam que ele os e
nxergava também.
Então, com um grito de alegria, saltaram nele.
O menino berrou, caiu com as costas na porta e depois de lado no chão. Ele ergueu
as mãos para se proteger, arrancando os óculos do nariz. Às cegas, rolou de rosto para
o chão, encolheu-se em uma bola, sufocado pelo terrível ruído de asas, escamas e pequ
enas garras afiadas em cima, em volta e ao lado dele.
Vinte minutos depois, o menino ainda estava lá, quando seu mestre veio buscá-lo e de
bandar o bando de diabretes. Ele foi carregado para seu quarto. Durante um dia e
uma noite, não comeu. Durante ainda mais uma semana, ficou mudo e chocado, mas ao
s poucos recuperou a fala e pôde retomar os estudos.
Seu mestre nunca mais se referiu a esse incidente, mas ficou satisfeito com o re
sultado da aula com o poço de ódio e de medo que havia sido aberto para seu aprendiz
naquele aposento ensolarado.
Essa foi uma das primeiras experiências de Nathaniel. Não falou sobre ela a ninguém, m
as sua sombra nunca saiu de seu coração. Ele tinha seis anos na ocasião.
Bartimaeus
6
O problema com um artefato altamente mágico como o Amuleto de Samarkand é que ele te
m uma aura pulsante característica que atrai atenção como um homem nu em um funeral. E
u sabia que assim que Simon Lovelace fosse informado de minha façanha mandaria bat
edores procurando pelo pulso revelador e, quanto mais tempo eu permanecesse em u
m lugar, mais possibilidade haveria de alguma coisa o denunciar. O menino só me in
vocaria pela manhã, então eu tinha várias horas inquietas para primeiro sobreviver.
O que o mago poderia mandar à minha procura? Não era provável que ele convocasse muito
s outros djins da força de Faquarl e de Jabor, mas ele certamente seria capaz de r
eunir uma legião de servidores mais fracos para participarem da caçada. Normalmente,
posso dispor de trasgos e outros do tipo, com uma garra amarrada nas costas, ma
s se eles viessem em grande número, e eu estava exausto, as coisas podiam ficar di
fíceis.
Voei de Hampstead a toda velocidade e procurei abrigo sob os beirais de uma casa
abandonada junto ao Tâmisa, onde ajeitei minhas penas e fiquei de olho no céu. Após a
lgum tempo, sete pequenas esferas de luz vermelha atravessaram o céu a baixa altit
ude. Quando atingiram o meio do rio, dividiram forças: três continuaram para o sul,
duas foram para oeste, duas para leste. Encolhi-me bem fundo nas sombras do telh
ado, mas não pude deixar de notar o amuleto dando uma pulsação extra-vibrante quando a
s esferas de busca mais próximas sumiram rio abaixo. Isso me abateu; pouco depois
parti para uma viga a meio caminho no alto de um guindaste na margem em frente,
onde estavam levantando um elegante prédio de apartamentos para a pequena nobreza
da magia.
Cinco minutos silenciosos se passaram. O rio cobriu e remoinhou em torno dos pil
ares lamacentos do cais. Nuvens passavam em frente da Lua. Uma repentina luz ver
de e doentia acendeu-se bruscamente em todas as janelas da casa abandonada, no o
utro lado do rio. Sombras encurvadas moviam-se lá dentro, procurando. Não acharam co
isa alguma; a luz congelou e tornou-se uma névoa luminosa que escorreu das janelas
e sumiu no vento. A escuridão voltou a envolver a casa. Voei imediatamente para o
sul, vagando e me precipitando de rua em rua.
Durante metade da noite continuei minha dança frenética e fugitiva através de Londres.
As esferas14 circulavam em números ainda maiores do que eu temia (evidentemente m
ais de um mago as havia invocado) e apareciam no alto a intervalos regulares. Pa
ra estar seguro, eu tinha de me manter em movimento, e mesmo assim quase fui peg
o duas vezes. Em determinado momento, voei em torno de um quarteirão de escritórios
e quase colidi com uma esfera vindo em direção oposta, uma outra veio para cima de m
im, quando, totalmente exausto, encolhi-me em um pé de vidoeiro no Green Park. Em
ambas as ocasiões, consegui escapar antes que chegassem reforços.
Bem depressa, eu estava nas últimas. O esforço constante de sustentar minha forma físi
ca estava me exaurindo e consumindo energia preciosa. Resolvi adotar um plano di
ferente encontrar um lugar onde a pulsação do amuleto fosse afogada por outras emissõe
s mágicas. Estava na hora de misturar-me com a multidão de muitas cabeças, a plebe: em
outras palavras, com pessoas. Tanto era o meu desespero.
Voei de volta para o centro da cidade. Mesmo a essa hora tardia, os turistas em
Trafalgar Square ainda fluíam em torno à base da Coluna de Nelson em uma onda barulh
enta, comprando feitiços com abatimento nas barracas oficiais de venda, encaixadas
entre os leões. Uma cacofonia de pulsos mágicos erguia-se da praça. Era o melhor luga
r para se esconder.
Do alto do céu da noite desceu a descarga de um raio cheio de plumas e desapareceu
no espaço estreito entre duas barracas. Logo um menino egípcio de olhos tristes sai
u de lá e foi abrindo caminho com os cotovelos entre a multidão. Usava uma calça jeans
nova e uma jaqueta de aviador acolchoada sobre uma camiseta branca, além de um pa
r de tênis brancos grandes com cordões cujos laços se desfaziam constantemente. Ele se
misturou à multidão.
Senti o amuleto queimando sobre o meu peito. Ele emitia, a intervalos regulares,
pequenas ondas de intenso calor em rajadas duplas, como batidas de coração. Eu esta
va com a ardente esperança de que esse sinal agora seria engolido por aquelas aura
s todas em torno.
A maior parte da magia aqui era exibição, nenhuma substância. A praça estava abarrotada
de charlatães com autorizações oficiais, vendendo feitiços inferiores e bugigangas que h
aviam sido aprovados pelas autoridades para uso comum.15 Turistas de olhos arreg
alados, da América do Norte e do Japão, examinavam ávidos as pilhas de pedras e bijute
rias multicoloridas, tentando lembrar os signos de nascença dos parentes lá na terra
deles, enquanto eram pacientemente induzidos pelos animados vendedores com seu
sotaque cockney. Não fosse pelas lâmpadas das câmaras espocando, seria como se eu esti
vesse de volta a Karnak. Barganhas eram fechadas, gritos felizes ressoavam, todo
mundo sorria. Era um incessante quadro de ganância e credulidade.
Mas nem tudo na praça era trivial. Aqui e ali, homens de rosto mais sóbrio eram vist
os parados à entrada de pequenas barracas fechadas. Os visitantes podiam entrar um
a um. Evidentemente, havia lá dentro artefatos de valor autêntico, uma vez que, sem
exceção, pequenas sentinelas ficavam paradas do lado de fora de cada barraca. Elas
assumiam variadas formas não-chamativas pombos, principalmente; eu evitava chegar
perto demais, só para o caso de serem mais perspicazes do que pareciam.
Uns poucos magos vagavam em meio à multidão. Não era provável que estivessem lá para compr
ar alguma coisa; mais provavelmente estavam dando o turno da noite nos escritórios
do governo em Whitehall e tinham saído para descansar um pouco. Um deles (com um
terno de boa qualidade) tinha um acompanhante, um diabrete no segundo plano, sal
titante em seus calcanhares, os outros (mais mal-vestidos) simplesmente seguiam
os odores reveladores de incenso, suor ressecado e velas.
A polícia também estava presente vários guardas comuns e uns dois tipos cabeludos e de
rosto adelgaçado, da Polícia Noturna, mantendo-se apenas visíveis o suficiente para e
vitar problemas.
E, em volta da praça, os faróis dos carros rodopiavam, levando ministros e outros ma
gos de seus gabinetes no Parlamento para os seus clubes em St. James Park. Eu es
tava perto do eixo de uma grande roda de poder, que se estendia por um império, e
aqui, com sorte, eu ficaria despercebido até ser finalmente invocado.
Ou possivelmente, não.
Segui até uma barraca de aspecto particularmente chinfrim e examinava seus produto
s quando tive a desconfortável sensação de estar sendo observado. Virei a cabeça um pouc
o e corri os olhos pela multidão. Uma massa amorfa. Examinei os planos. Nenhum per
igo oculto: um rebanho bovino, tudo insípido e humano. Virei-me de novo para a bar
raca e peguei distraidamente um My Magic Mirror, um pedaço de espelho barato colad
o em uma moldura de plástico cor-de-rosa e pobremente decorado com varinhas, gatos
e chapéus de bruxas.
Aí, aconteceu de novo! Virei o corpo bruscamente. Através de uma brecha na multidão di
retamente atrás de mim podia ver uma maga baixinha e gorducha, um bando de crianças
amontoadas em torno de uma barraca, um policial olhando-os com suspeita. Ninguém p
arecia ter o mais leve interesse em mim. Mas eu sabia o que havia sentido. Da próx
ima vez eu estaria preparado. Fiz questão de ostensivamente examinar o espelho.
"MAIS UM GRANDE PRESENTE DE LONDRES, CAPITAL MUNDIAL DA MAGIA!", gritava a etiqu
eta na parte de trás. "MADE IN TAIW..."
E a sensação voltou. Virei-me mais rápido do que um gato e... sucesso! Peguei os obser
vadores olho no olho. Dois deles, um menino e uma menina, do tal bando de crianças
. Eles não tiveram tempo de desviar o olhar. O garoto estava no meio da adolescência
; a acne fechava o cerco ao seu rosto com algum sucesso. A menina era mais moça, m
as seus olhos eram duros e frios. Sustentei o olhar. Que importância tinha? Eram h
umanos, não podiam ver o que eu era. Que olhassem.
Após alguns segundos, eles não agüentaram mais; desviaram o olhar. Dei de ombros e fiz
como quem vai embora. O homem da barraca tossiu alto. Repus o My Magic Mirror c
uidadosamente sobre o tabuleiro, arreganhei-lhe um sorriso e segui meu caminho.
As crianças me seguiram.
Avistei-as na barraca seguinte, observando de trás de uma barraquinha de algodão-doc
e. Estavam andando em bando talvez cinco ou seis, não dava para ter certeza. O que
elas queriam? Fazer um ganho? Se fosse isso, porque tinham escolhido a mim? Hav
ia aqui dúzias de candidatos melhores, mais recheados e mais ricos. A fim de pôr iss
o a teste, engatei um papo com um turista muito baixinho, de ar próspero, com uma
câmara gigante e óculos grossos. Se eu quisesse roubar alguém, ele teria ocupado o top
o da lista. Mas quando o deixei e fui dar uma volta entre a multidão, as crianças se
guiram bem atrás de mim também.
Estranho. E chato. Eu não queria fazer uma transformação e sair voando; estava cansado
demais. Só o que queria era que me deixassem em paz. Ainda tinha muitas horas pel
a frente, até o amanhecer.
Apressei o passo; as crianças também. Antes de termos completado três voltas em torno
da praça, eu já estava cheio. Uma dupla de policiais ficara nos observando andar em
círculos, e provavelmente eles iam nos fazer parar logo, quando menos para não ficar
em tontos. Estava na hora de ir embora dali. Não importa atrás do que as crianças esta
vam, eu não queria continuar chamando atenção.
Havia um metrô por perto. Desci correndo os degraus, ignorei a entrada para a estação
e subi de volta, do outro lado da rua, em frente ao centro da praça. A garotada ha
via sumido talvez estivessem todos no metrô. Agora era a minha chance. Virei rápido
a esquina de uma rua, passei por uma livraria e segui abaixado por um beco. Espe
rei um pouquinho, metido nas sombras entre as latas de lixo.
Uns dois carros passaram em frente à saída do beco. Nenhum veio atrás de mim.
Permiti-me um breve sorriso. Achei que havia me livrado deles.
Ledo engano.
7
O menino egípcio seguiu pelo beco, virou para a direita umas duas vezes e saiu em
uma das muitas ruas que se irradiam da Trafalgar Square. Enquanto andava, eu ia
revendo o meu plano.
Deixa pra lá Trafalgar. Crianças irritantes demais circulando. Mas talvez, se encont
rasse um refúgio por perto, ainda seria difícil para as esferas detectarem a pulsação do
amuleto. Eu podia ficar enfiado atrás de algumas latas de lixo até o amanhecer. Era
a única opção. Estava cansado demais para voltar a alçar-me aos céus. E queria parar para
pensar um pouco.
A velha dor havia recomeçado, latejando em meu peito, estômago, meus ossos. Não era sa
lutar passar tanto tempo encaixado em um corpo. Como os humanos conseguem agüentar
isso sem ficarem loucos por completo é algo que nunca vou saber.16
Segui trôpego pela rua escura e fria, olhando meu reflexo, que passava rápido pelos
retângulos vazios das vidraças ao longo da rua. O menino andava com os ombros encolh
idos contra o vento, as mãos enfiadas no fundo dos bolsos da jaqueta, seguia arras
tando os tênis sobre o concreto. Sua postura expressava perfeitamente a chateação que
eu estava sentindo. O amuleto batia contra meu peito a cada passo. Se estivesse
sob apenas meu poder, eu o teria arrancado do pescoço e jogado no latão mais próximo a
ntes de me desmaterializar enfurecido.
Mas eu estava sob a obrigação da ordem do menino.17 Tinha de guardá-lo comigo.
Peguei uma rua lateral, afastada do tráfego. A escuridão maciça de edifícios altos fecha
va-se dos dois lados, oprimindo-me. Cidades me põem para baixo, quase como se eu e
stivesse debaixo da terra. Londres é particularmente ruim fria, cinzenta, carregad
a de odores e de chuva. Faz-me ansiar pelo sul, pelos desertos e o vazio céu azul.
Um outro beco saía para a esquerda, entupido de papelões e jornais molhados. Automat
icamente, examinei entre os planos e nada vi. Servia. Rejeitei os dois primeiros
portais por motivo de higiene. O terceiro estava seco. Sentei-me ali.
Estava mais do que na hora de repassar na cabeça os acontecimentos da noite até agor
a. Que foi movimentada. Houve o menino da cara pálida, Simon Lovelace, o amuleto,
Jabor, Faquarl... Uma cocção diabólica, do começo ao fim. Ainda uma vez, que importância t
inha? Ao amanhecer, eu entregaria o amuleto e sairia de vez dessa encrenca.
Exceto pelo meu assunto com o garoto. Ele ia pagar por isso, em grande estilo. Não
se espera sair impune depois de reduzir Bartimaeus de Uruk a ficar buscando um
lugar para se encostar em becos do West End. Primeiro eu descobriria o nome dele
, depois...
Esperem...
Ruído de passos no beco... Diversos pares de botas se aproximando.
Talvez fosse só coincidência. Londres é uma metrópole. As pessoas a usam. As pessoas usa
m becos. Fosse quem fosse, provavelmente estava só pegando um atalho para casa.
Logo no beco em que eu estava me escondendo.
Não acredito em coincidências.
Encolhi-me no recuo de escuridão do portal e lancei um Encobrimento sobre mim mesm
o. Uma camada de fios negros estreitamente entremeados cobriu-me onde eu estava
sentado nas sombras, misturando-me à escuridão. Esperei.
As botas se aproximavam. Quem poderia ser? Uma patrulha da Polícia Noturna? Uma fa
lange de magos mandada por Simon Lovelace? Talvez as esferas tivessem me localiz
ado, afinal.
Não eram os magos nem a polícia. Eram as crianças de Trafalgar Square.
Cinco meninos, com a garota à frente. Eles vinham meio morosamente, olhando distraíd
os de um lado para o outro. Relaxei um pouco. Eu estava bem escondido e, mesmo q
ue não estivesse, não havia a temer deles, agora que estávamos longe dos olhos do públic
o. E verdade que os garotos eram grandes e tinham um ar de grosseirões, mas ainda
eram só garotos, usando jeans e couro. A garota usava calça preta de couro que cedia
e se alargava exageradamente dos joelhos para baixo. Havia ali material suficie
nte para fazer um segundo par de calças para uma pigméia. E lá vinham eles pelo beco,
arrastando os pés em meio ao lixo. Dei-me conta, de repente, de como estavam em um
silêncio muito pouco natural.
Na dúvida, examinei de novo os outros planos. Em cada um deles, tudo tal como devi
a. Seis crianças.
Escondido atrás de minha barreira, esperei que eles passassem.
A garota vinha à frente. Ela passou em frente a mim.
Seguro atrás de minha barreira, bocejei.
Um dos garotos deu um tapinha no ombro da garota.
Está ali disse ele, apontando.
Pegue disse a garota.
Antes que eu conseguisse me recuperar da surpresa, três dos garotos mais corpulent
os pularam para dentro do portal, desabando em cima de mim. Quando tocaram nos f
ios do Encobrimento, estes se rasgaram e se dissolveram em nada. Por um instante
, vi-me subjugado por uma onda gigante de couro gasto, loção pós-barba barata e cheiro
de suor azedo. Sentaram em cima de mim e me deram socos e tapas pela cabeça. Fui
puxado para ficar de pé sem qualquer cerimônia.
E então me reaprumei e me impus. Afinal, sou Bartimaeus.
O beco foi iluminado por uma breve descarga de calor e luz. Os tijolos do portal
pareciam ter saído forno.
Para minha surpresa, os garotos ainda estavam me segurando. Dois deles agarraram
meus punhos como um par de algemas, enquanto o terceiro tinha os braços apertados
em torno da minha cintura.
Repeti o efeito com maior ênfase. Os alarmes dos carros na rua ao lado começaram a t
ocar. Dessa vez, confesso, eu esperava ver-me seguro por três corpos carbonizados.
18
Mas os garotos continuavam firmes, respirando com dificuldade e agarrando-me com
o se disso dependessem suas próprias vidas.
Alguma coisa aqui estava muito errada.
Segurem firme disse a garota.
Olhei para ela, ela olhou para mim. Era um pouco mais alta do que minha atual ma
nifestação, com olhos escuros, cabelos escuros compridos. Os dois outros garotos a f
lanqueavam como uma guarda de honra cheia de acne. Fui ficando impaciente.
O que querem? perguntei.
Você tem algo pendurado no pescoço.
A garota tinha uma voz notavelmente regular e cheia de autoridade para alguém tão jo
vem. Calculei que devia ter cerca de treze anos.
Quem disse?
Esteve bem à vista durante os dois últimos minutos, seu cretino. Pulou para fora da
sua camiseta quando saltamos sobre você.
Oh. Muito justo.
Entregue-o.
Não.
Ela deu de ombros.
Então vamos pegar. Será o seu funeral.
Vocês não sabem mesmo quem eu sou, sabem? Tentei parecer bem casual, com uma dose
tra de ameaça. Você não é uma maga.
Pode estar certo que não sou. Ela cuspiu as palavras.
Um mago não cairia nessa de se meter com alguém como eu. Eu estava ocupado increm
ando de novo o fator medo, embora isso seja razoavelmente complicado quando você t
em um idiota fortão em torno da sua cintura.
A garota arreganhou um sorriso gelado.
Um mago se daria tão bem contra a sua periculosidade?
Nisso, até que ela tinha razão. Só para começar, um mago não ia querer nem chegar perto de
mim sem estar protegido até o pescoço com amuletos e pentagramas. E, depois, ele pr
ecisaria da ajuda de diabretes para me descobrir sob o meu Encobrimento e, final
mente, precisaria conjurar um djim razoavelmente peso-pesado para me dominar. Se
ele ousasse. Mas essa garota e seus amiguinhos tinham feito tudo sozinhos, sem
que parecessem particularmente atrapalhados.
Eu devia ter soltado uma Detonação com plena força ou algo do gênero. Mas estava cansado
demais para qualquer coisa extravagante. Procurei refúgio em fanfarronada vazia.
Ri lugubremente.
Hah! Estou brincando com vocês.
Você está tentando nos impressionar...
Tentei outra tática.
Mesmo a contragosto eu disse , confesso que estou curioso. Aplaudo a coragem de
ocês de virem me atacar. Se me disserem como se chamam e qual o seu objetivo, vou
poupá-los. Na verdade, posso até ser capaz de ajudá-los. Tenho muitas habilidades a mi
nha disposição.
Para minha decepção, a garota tapou os ouvidos com as mãos.
Não me venha com essa sua conversa manhosa, demônio! disse ela. Não vou me deixar tent
ar.
Com certeza você não quer a minha inimizade continuei em tom apaziguador. Minha amiz
ade é imensamente preferível.
Não estou ligando para uma coisa nem outra disse a garota, abaixando as mãos. Quero
o que quer que você tenha pendurado no pescoço.
Não é possível. Mas você pode lutar, se quiser. Fora os danos que isso vai lhe causar, não
vou deixar de soltar um sinal que trará a Polícia Noturna sobre nós como górgonas vinda
s do inferno. Não vão querer a atenção deles, vão?
Isso a fez vacilar um pouco. Tratei de aproveitar a vantagem.
Não seja ingênua disse eu. Pense só. Estão tentando roubar de mim um objeto mui
so. Ele pertence a um mago terrível. Se você ao menos tocar nele, esse mago vai enco
ntrá-la e esfolá-la viva.
Quer tenha sido esta ameaça ou a acusação de ingenuidade que a afetou, a garota ficou
assustada. Eu podia dizer isso pela direção em que ela fazia beicinho.
Só para experimentar, mexi um pouco um cotovelo. O garoto correspondente grunhiu e
apertou mais a mão que segurava meu braço.
Uma sirene soou a algumas ruas de distância. A garota e seus guarda-costas olharam
apreensivos para a escuridão no fim do beco. Umas poucas gotas de chuva começaram a
cair do céu encoberto.
Já chega disso disse a garota. Deu um passo em minha direção.
Cuidado disse eu.
Ela estendeu a mão. Nesse momento abri a boca muito, muito lentamente. Então ela ten
tou pegar o cordão do meu pescoço.
Em um instante eu era um crocodilo do Nilo com as mandíbulas escancaradas. Bati co
m os maxilares em direção a seus dedos. A garota deu um gritinho e puxou o braço para
trás, mais depressa do que eu imaginaria ser possível. Meus dentes pontudos não pegara
m por muito pouco suas unhas que recuavam. Tentei novamente mordê-la, sacudindo-me
de um lado para o outro, sob o domínio de meus captores. A garota soltou um guinc
ho agudo, escorregou e caiu sobre uma pilha de lixo, derrubando um de seus dois
guardas. Minha súbita transformação pegou meus três jovens de surpresa, principalmente o
que estava agarrado a minha cintura, agora o meio de um corpo largo e cheio de
escamas. Sua pegada tinha afrouxado, mas os outros dois ainda se seguravam. Meu
rabo longo e duro ceifou para a esquerda, depois para a direita, fazendo um agra
dável contato nítido com dois crânios espessos. Seus miolos, se eles tivessem algum, e
stavam perfeitamente confusos; seus queixos se afrouxaram, e também o aperto de su
as mãos.
Um dos dois guardas da garota ficara apenas momentaneamente chocado. Ele se recu
perou, enfiou a mão dentro da jaqueta e saiu-se com alguma coisa brilhante na mão.
Quando a atirou, voltei a me transformar.
A rápida mudança de grande (o crocodilo) para pequeno (uma raposa) foi muito bem aju
izada, se me permita dizê-lo. As seis mãos que vinham se esforçando para lidar com esc
amas em grande escala subitamente acharam-se apertando o ar rarefeito, enquanto
um pequeno maço de pêlos vermelhos e garras agitadas lhes escorregava por entre os d
edos para o chão. No mesmo momento um míssil de prata faiscante atravessou o ponto o
nde recentemente estava a garganta do crocodilo e foi cravar-se na porta de meta
l logo atrás.
A raposa subiu correndo o beco, as patas roçando as pedras escorregadias do calçamen
to.
Um apito penetrante soou mais à frente. A raposa deu uma parada. Feixes de luz de
lanternas mergulhavam e giravam nos portais e nos tijolos. Pés em corrida seguiam
as luzes.
Era só o que faltava. A Polícia Noturna estava chegando.
Quando um facho de luz girou em minha direção, pulei fluidamente para a boca aberta
de um latão de plástico. Cabeça, corpo, cauda sumiram; a luz passou por cima do latão de
lixo e projetou-se para o fundo do beco.
Agora chegavam homens gritando, soprando apitos, correndo para onde eu deixara a
garota e seus companheiros. E então um rosnado, um cheiro acre; e algo que poderi
a ser um cachorro enorme, correndo atrás deles na noite.
Os sons se esvaíram em ecos. Enroscada aconchegantemente entre um saco de lixo que
vazava e um caixote de garrafas vazias de cheiro avinagrado, a raposa ficou esc
utando, de orelhas espetadas para a frente. Os gritos e apitos ficaram mais dist
antes e confusos e, para a raposa, parecia que tinham se mesclado e se transform
ado em um uivo agitado.
Então o barulho passou por completo. O beco ficou em silêncio.
Sozinha na sujeira, a raposa ficou lá deitada.

Nathaniel
8
Arthur Underwood era um mago de média categoria que trabalhava para o Ministério de
Assuntos Internos. Um homem solitário, de natureza um tanto rabugenta, morava com
a esposa, Martha, em uma alta casa georgiana em Highgate.
O sr. Underwood nunca tivera um aprendiz, nem queria ter. Estava bastante feliz
trabalhando por sua própria conta. Mas sabia que mais cedo ou mais tarde, como tod
os os outros magos, chegaria a sua vez e teria de aceitar uma criança em sua casa.
E, efetivamente, o inevitável aconteceu: um dia chegou uma carta do Ministério do Em
prego, contendo o temido pedido. Com sombria resignação, o sr. Underwood cumpriu com
seu dever. Na tarde marcada, foi até o ministério para pegar seu pupilo sem nome.
Subiu os degraus de mármore entre duas pilastras de granito e entrou no vestíbulo re
verberante. Era um espaço vasto, desinteressante; funcionários iam e vinham silencio
samente entre portas de madeira de cada um dos lados, seus sapatos fazendo respe
itosos sons tamborilantes no piso. Do outro lado do saguão, duas estátuas de ex-mini
stros do Emprego haviam sido erigidas em escala heróica e, espremida entre elas, h
avia uma mesa coberta por altas pilhas de papéis. O sr. Underwood se aproximou. Fo
i só quando efetivamente chegou à mesa que avistou, atrás da estacada trincheira de pa
stas bojudas, o rosto de um funcionário baixinho e sorridente.
Olá, senhor disse o funcionário.
Ministro adjunto Underwood. Vim pegar meu novo aprendiz.
Ah... sim, senhor. Estava sendo esperado. Queira assinar alguns documentos... O
funcionário procurou em uma das pilhas próximas. É coisa de um minuto. E então poderá peg
o na sala de espera.
Pegá-lo? Então, é um menino?
Um menino, cinco anos de idade. Muito inteligente, se testes querem dizer alguma
coisa. Obviamente um pouco chateado neste momento... O funcionário localizou um m
aço de papéis e tirou uma caneta de trás da orelha. Por favor, rubrique cada página e as
sine nas linhas pontilhadas.
O sr. Underwood brandiu a caneta em um floreio.
Os pais dele... foram embora, suponho?
Sim, senhor. Não viam a hora de ir embora. O tipo habitual: pegam o dinheiro e cae
m fora, se me entende bem, senhor. Mal pararam para se despedir dele.
E todos os procedimentos normais de segurança?
Seus registros de nascimento foram recolhidos e destruídos, senhor, e ele foi seve
ramente instruído a esquecer seu nome de batismo e não revelá-lo a ninguém. Ele agora é of
icialmente inexistente. Pode começar do zero com ele.
Muito bem.
Com um suspiro, o sr. Underwood completou sua última assinatura fina e espetada co
mo uma aranha e devolveu os documentos.
Se isso for tudo, acho que é melhor ir pegá-lo.
Ele atravessou corredores silenciosos até uma porta pesada, com painéis de madeira,
entrou em uma sala alegremente pintada e cheia de brinquedos, para a distração de cr
ianças infelizes. Lá, entre um cavalo de pau cujo focinho fazia uma careta e uma bon
eca de plástico representando uma bruxa, usando um chapéu cômico em forma de cone, enc
ontrou um menino pequeno, de rosto pálido. Chorara recentemente, mas agora, felizm
ente, tinha desistido. Dois olhos vermelhos ergueram-se para ele, sem expressão. O
sr. Underwood limpou a garganta.
Sou Underwood, seu mestre. Sua vida de verdade começa agora. Venha comigo.
O garoto deu uma fungada alta. O sr. Underwood notou seu queixo tremendo perigos
amente. Com algum desagrado, pegou o menino pela mão, puxou-o para ficar de pé e o l
evou por corredores reverberantes de eco até seu carro, que esperava.
Na viagem de volta para Highgate, uma ou duas vezes o mago ainda tentou conversa
r com o garoto, mas foi recebido com silêncio lacrimoso. Isso não lhe agradou; com u
ma bufada de frustração, desistiu, e ligou o rádio para saber os resultados do críquete.
O garoto ficou sentado imóvel no banco de trás, olhando para os próprios joelhos.
Sua esposa os recebeu à porta. Trazia uma bandeja de biscoitos com uma caneca fume
gante de chocolate quente e imediatamente levou o menino para uma aconchegante s
ala de estar, onde fogo crepitava na lareira.
Não vai conseguir nada dele, Martha grunhiu o sr. Underwood. Ele não disse uma
ra.
E isso é de espantar? Está aterrorizado, coitadinho. Deixe-o comigo.
A sra. Underwood era uma mulher minúscula, roliça, com um cabelo muito branco, corta
do curtinho. Fez o menino sentar-se em uma poltrona junto ao fogo e ofereceu-lhe
um biscoito. Ele não deu qualquer sinal de reconhecimento.
Meia hora se passou. A sra. Underwood batia papo agradavelmente sobre qualquer c
oisa que lhe viesse à cabeça. O garoto tomou um pouco de chocolate e mordiscou um bi
scoito, mas, de resto, ficou fitando silenciosamente o fogo. Finalmente, a sra.
Underwood sentou-se ao lado dele e passou-lhe o braço sobre os ombros.
Agora, meu bem disse ela , vamos entrar em um acordo. Sei que lhe disseram que n
contasse a ninguém o seu nome, mas pode abrir uma exceção comigo. Não posso conhecê-lo dir
eito chamando-o só de "menino", posso? Então, se me disser o seu nome, eu lhe digo o
meu, na mais estrita confiança. O que acha? Esse gesto quis dizer sim? Pois muito
bem, meu nome é Martha. E o seu é...?
Uma pequena fungadela, uma voz ainda menor.
Nathaniel.
Um lindo nome, meu bem, e não se preocupe. Não direi a ninguém. Não se sente melhor
ra coma mais um biscoito, Nathaniel, e vou levá-lo ao seu quarto.
Com a criança alimentada, banhada e finalmente posta na cama, a sra. Underwood foi
contar ao marido, que estava trabalhando em seu estúdio.
Ele dormiu, finalmente disse ela. Não me surpreenderia se ele estivesse em choq
.. nem seria de surpreender, os pais o largando dessa maneira. Acho uma infâmia ar
rancar uma criança tão pequena de seu lar.
Sempre foi assim, Martha. Aprendizes têm de vir de algum lugar.
O mago continuou com a cabeça baixada expressivamente sobre o livro.
Sua esposa não pegou a dica.
Ele devia poder ficar com a família continuou ela. Ou pelo menos vê-los de vez
ando.
Saturado, o sr. Underwood pousou o livro sobre a mesa.
Sabe muito bem que isso é impossível. O nome dele deve ser esquecido, senão futuros in
imigos o usarão para atingi-lo. E como poderá ser esquecido, se a família se mantém em c
ontato? Além disso, ninguém forçou os pais dele a deixarem o moleque. Eles não o queriam
, essa é a verdade, Martha, ou não teriam respondido aos anúncios. E bem simples. Ele
ganha a oportunidade de servir a seu país no nível mais elevado, e o Estado ganha um
novo aprendiz. Simples. Todo mundo ganha. Ninguém sai perdendo.
Mesmo assim...
A mim não fez nenhum mal, Martha. O sr. Underwood estendeu a mão para apanhar o livr
o.
Seria muito menos cruel se os magos pudessem ter seus próprios filhos.
Esse caminho leva a dinastias rivais, alianças familiares... e tudo termina em rix
as de sangue entre famílias. Leia os livros de História, Martha: veja o que acontece
u na Itália. Portanto, não se preocupe com o garoto. Ele é muito novo. Logo terá esqueci
do. Que tal servir o meu jantar?
A casa do mago Underwood era daquelas de um tipo que apresenta um aspecto delgad
o simples e cheio de dignidade para a rua, mas que se estendia por uma distância n
otável para os fundos, em uma confusão de corredores, escadas e níveis levemente varia
dos. Havia no total cinco andares principais: uma adega, cheia de prateleiras de
vinho, caixas de cogumelos e caixotes de frutas secando; o andar térreo, contendo
sala de entrada, de jantar, cozinha e estufa; dois andares superiores, constitu
indo-se principalmente de banheiros, quartos de dormir e salas de trabalho; e, b
em no alto, um sótão. Era nele que Nathaniel dormia, sob um teto marcadamente inclin
ado e vigas caiadas.
Todo dia, ao amanhecer, ele era acordado pelo clamor trauteado de pombos no telh
ado logo acima dele. No teto havia uma pequena clarabóia. Através dela, se ficasse d
e pé sobre uma cadeira, podia ver ao longe o horizonte cinzento e lavado pela chuv
a de Londres. A casa ficava sobre uma colina, e a vista era boa; em dias claros
podia ver a antena de rádio do Crystal Palace à distância, no outro lado da cidade.
Seu quarto era mobiliado com um guarda-roupa barato de compensado, uma cômoda pequ
ena, uma mesa, uma cadeira e uma estante do lado da cama. Toda semana a sra. Und
erwood colocava um novo apanhado de flores do jardim em um vaso sobre a mesa.
Desde aquele primeiro dia infeliz, a esposa do mago tomara Nathaniel sob suas as
as. Gostara do garoto e era boa com ele. Na privacidade da casa, freqüentemente di
rigia-se ao aprendiz pelo seu nome de batismo, apesar do forte desagrado do mari
do.
Não devíamos nem saber o nome do moleque disse a ela. É proibido! Ele pode vir a ficar
comprometido. Quando fizer doze anos, e já tiver idade, receberá seu novo nome, pel
o qual será conhecido como mago e como homem pelo resto da vida. Enquanto isso, é co
mpletamente errado...
Quem vai perceber? protestou ela. Ninguém. Isso consola o pobrezinho.
Ela era a única pessoa que usava seu nome. Seus tutores o chamavam de "Underwood",
por causa de seu mestre. O próprio mestre só se dirigia a ele como "menino".
Em troca de sua afeição, Nathaniel recompensava a sra. Underwood com aberta devoção. Aga
rrava-se a cada palavra que ela dizia e seguia suas instruções em tudo.
No final de sua primeira semana na casa, ela trouxe um presente a seu quarto.
Isto aqui é para você disse ela. É meio velho e sombrio, mas achei que podia go
Era uma pintura de barcos subindo um riacho cercado de charnecas e campinas lisa
s. O verniz estava tão escuro de tempo que mal se conseguiam divisar os detalhes,
mas Nathaniel o adorou instantaneamente. Ficou olhando a sra. Underwood pendurá-lo
na parede sobre a mesa.
Está destinado a ser mago, Nathaniel disse ela , e esse é o maior privilégio que qualqu
er menino ou menina pode ter. Seus pais fizeram o extremo sacrifício de abrir mão de
você para esse nobre destino. Não, não chore, meu bem. Em troca deve ser forte, se es
forçar o máximo que puder e aprender tudo que seus tutores pedirem a você. Fazendo iss
o, estará honrando tanto seus pais quanto a si mesmo. Venha até a janela. Suba naque
la cadeira. Agora olhe do lado de lá. Está vendo aquela pequena torre distante?
Aquela?
Não, aquilo é um prédio de escritórios, querido.
A pequena e certinha, logo à esquerda?
Essa aí. São as Casas do Parlamento, meu querido, aonde vão todos os melhores magos
ra governar a Inglaterra e nosso império. O sr. Underwood vai lá o tempo todo. E se
você trabalhar com empenho e fizer tudo que seu mestre mandar, um dia irá até lá também, e
ficarei orgulhosíssima de você.
Sim, sra. Underwood.
Ficou fitando a torre, até os olhos doerem, fixando sua posição na mente com firmeza.
Ir para o Parlamento. Um dia seria assim. Teria de fato que trabalhar com afinco
e fazê-la se orgulhar.
Com o tempo e a constante ajuda da sra. Underwood, a saudade de casa de Nathanie
l começou a passar. A lembrança de seus pais distantes foi se apagando e a dor dentr
o dele foi diminuindo, até ele ter quase esquecido de sua existência. Uma rotina rígid
a de trabalho e estudo o ajudou nesse processo: tomava-lhe quase todo o seu temp
o e deixava-lhe pouca oportunidade de ficar remoendo pensamentos. Nos dias de se
mana, a rotina começava com a sra. Underwood acordando-o com uma dupla batida à port
a de seu quarto.
O chá está do lado de fora, no degrau. Com a boca, e não os pés.
Esse chamado era um ritual originário de uma manhã em que, quando ia descer para o b
anheiro, Nathaniel saíra do quarto inteiramente às tontas, fez contato preciso entre
pé e caneca e mandou uma onda enorme de chá quente que foi bater na parede do patam
ar. A mancha continuava visível, anos depois, como a marca de um jorro de sangue.
Felizmente, seu mestre nunca descobriu esse desastre. Ele nunca subia ao sótão.
Após lavar-se no banheiro, no andar de baixo, Nathaniel se vestia com uma camisa,
calças de cor cinza, meias compridas cinza, sapatos pretos elegantes e, se fosse i
nverno e a casa estivesse fria, uma grossa jaqueta com capuz que a sra. Underwoo
d comprara para ele. Escovava o cabelo cuidadosamente em frente a um espelho alt
o no banheiro, correndo os olhos sobre a figura magra e bem-arrumada, com o rost
o pálido lhe devolvendo o olhar. Então ele descia pela escada dos fundos até a cozinha
, carregando seu material de escola. Enquanto a sra. Underwood preparava os floc
os de cereal e as torradas, ele tentaria terminar o trabalho de casa que sobrara
da noite anterior. A sra. Underwood freqüentemente fazia tudo para ajudá-lo.
Azerbaijão? A capital é Baku, eu acho.
Baku?
Sim, olhe no seu atlas. Para que está estudando isso?
O sr. Purcell diz que eu tenho de dominar o Oriente Médio esta semana, aprender os
países e esses troços.
Não fique tão abatido. A torrada está pronta. Bem, é importante aprender todos esses "tr
oços", você tem de conhecer o cenário antes de chegar às partes interessantes.
Mas é tão chato.
É só o que sabe dizer. Estive no Azerbaijão. Baku parece um pouco um chiqueiro, mas é um
centro importante para a pesquisa de afritos.
O que são afritos?
Demônios do fogo. A segunda forma mais poderosa de espíritos. O elemento flamejante é
muito forte nas montanhas do Azerbaijão. É também onde começou a fé de Zoroastro; eles ven
eram o fogo divino que se encontra em todas as coisas vivas... Se está procurando
a pasta de chocolate, está atrás do cereal.
Viu um djim quando esteve lá, sra. Underwood?
Não se precisa ir a Baku para achar um djim, Nathaniel... e não fale com a boca chei
a. Está enchendo a minha toalha de migalhas. Não, os djins virão até você, especialmente s
e está aqui em Londres.
Quando vou ver um aflito?
Um afrito. Não tão cedo, se sabe o que é bom para a saúde. Agora termine depressa. O Pur
cell deve estar esperando.
Após o desjejum Nathaniel juntava seus livros escolares e subia as escadas para a
sala de trabalho do primeiro andar, onde o sr. Purcell de fato estaria esperando
por ele. Seu professor era um homem moço, com um cabelo louro que ia rareando e q
ue ele freqüentemente alisava para baixo, em vão esforço para esconder o escalpo. Usav
a um terno cinza que era um tanto grande demais para ele e uma seqüência alternada d
e gravatas horríveis. Seu primeiro nome era Walter. Muitas coisas o deixavam nervo
so, e falar com o sr. Underwood (o que ele, de tempos em tempos, tinha de fazer)
deixava-o decididamente cheio de tiques nervosos. Como resultado de seu estado
de nervos, ele descontava suas frustrações em Nathaniel. Era um homem honesto demais
para ser realmente brutal com o menino, que era um estudante competente; em vez
disso, tendia a replicar brusca e irascivelmente a seus erros, ganindo como um
cachorrinho.
Nathaniel não aprendia magia com o sr. Purcell. O professor não conhecia nenhuma. Em
vez disso tinha de se dedicar a outras matérias, basicamente matemática, línguas mode
rnas (francês, tcheco), geografia e história. Política também era importante.
Então, jovem Underwood dizia o sr. Purcell. Qual é o propósito de nosso nobre governo?
Nathaniel lançava-lhe um olhar vazio. Vamos! Vamos!
Nos governar, senhor?
Nos proteger. Não se esqueça de que nosso país está em guerra. Praga ainda comanda as pl
anícies orientais da Boêmia, e estamos lutando para manter seus exércitos fora da Itália
. Estes são tempos perigosos. Agitadores e espiões andam à solta em Londres. Se o impéri
o quer se manter íntegro, um governo forte deve estar instruído, e forte significa m
agos. Imagine o país sem eles! Seria impensável: plebeus estariam no comando! Resval
aríamos no caos e rapidamente haveria uma invasão. Só o que temos entre nós e a anarquia
são os nossos líderes. É a isso que deveria aspirar, menino. Ser parte do governo e g
overnar honradamente. Lembre-se disso.
Sim, senhor.
Honra é a qualidade mais importante para um mago continuava o sr. Purcell. Ele ou
ela tem grande poder e deve usá-lo com critério. No passado, magos trapaceiros tenta
ram derrubar o Estado; sempre foram derrotados. Por quê? Porque magos de verdade l
utam com a virtude e a justiça a seu lado.
Sr. Purcell, o senhor é um mago?
O professor alisou o cabelo para trás e suspirou.
Não, Underwood. Eu... não fui escolhido. Mas, ainda assim, sirvo o melhor que posso
Ora...
Então é um plebeu?
Sr. Purcell bateu com a palma da mão sobre a mesa.
Faça-me o favor! Eu estou fazendo as perguntas! Pegue o seu transferidor. Vamos pa
ssar para geometria.
Pouco depois de seu oitavo aniversário, o currículo de Nathaniel foi ampliado. Ele c
omeçou a estudar química e física, por um lado e, por outro, história da religião. Também c
meçou várias outras línguas-chave, incluindo latim, aramaico e hebraico.
Essas atividades ocupavam Nathaniel de nove da manhã até o almoço à uma, hora em que ele
descia para a cozinha a fim de devorar em solidão os sanduíches que a sra. Underwoo
d lhe deixava enrolados em filme de PVC aderente e úmido.
Às tardes, o horário era variado. Em dois dias da semana, Nathaniel continuava o tra
balho com o sr. Purcell. Em duas outras tardes, era levado rua abaixo até uma casa
de banhos pública, onde um homem corpulento com um bigode no formato de um pára-lam
a supervisionava um regime punitivo. Junto a um pelotão encharcado de outros menin
inhos, Nathaniel tinha de nadar distâncias incontáveis, usando cada estilo de natação ex
istente. Era sempre tímido e estava sempre exausto demais para falar muito com seu
s colegas de natação, e estes, tomando-o pelo que ele era, mantinham distância. Já aos o
ito anos de idade era evitado e deixado de lado.
Duas outras atividades da tarde eram música (quinta-feira) e desenho (sábado). Natha
niel temia a música ainda mais do que a natação. Seu tutor, o sr. Sindra, era um homem
obeso, irritadiço, cuja papada se sacudia quando caminhava. Nathaniel ficava de o
lho naquela papada: se o tremor aumentasse, era sinal certo de que um ataque de
raiva estava começando. Esses ataques de fúria aconteciam com deprimente regularidad
e. O sr. Sindra mal conseguia conter sua fúria sempre que Nathaniel apressava suas
escalas, lia errado suas notas ou falhava na leitura à primeira vista, e essas co
isas aconteciam com freqüência.
Como gritava o sr. Sindra você se propõe a invocar uma lâmia com um dedinho des
mo? É desconcertante! Dê-me isso aqui!
Arrancou a lira da mão de Nathaniel e segurou-a contra o seu amplo peito. Então, os
olhos fechados em êxtase, ele começava a tocar. Uma doce melodia enchia a sala de tr
abalho. Os dedos curtos e gordos moviam-se como salsichas dançantes entre as corda
s; lá fora, os pássaros paravam na árvore para ouvir. Os olhos de Nathaniel se enchiam
de lágrimas. Lembranças do passado distante vagavam como fantasmas diante dele...
Agora, você!
A música se interrompia com um guincho dissonante. A lira lhe era enfiada de volta
nas mãos. Nathaniel começava a dedilhar as cordas. Seus dedos se precipitavam e tro
peçavam; lá fora, vários pássaros caíam da árvore, aparvalhados. A papada do sr. Sindra se
acudia como gelatina fria.
Seu idiota! Pare! Quer que a lâmia o coma? Ela deve ser encantada, não enfurecida!
ouse esse pobre instrumento. Vamos tentar a gaita-de-foles.
Gaita ou lira, voz coral ou reco-reco qualquer coisa que Nathaniel tentasse , sua
s tentativas fracassadas eram recebidas com gritos de revolta e desespero. Muito
diferente de suas aulas de desenho, que corriam bem e pacificamente sob o coman
do de sua tutora, a sra. Lutyens. Dócil, esbelta e graciosa, ela era a única, entre
seus professores, com quem Nathaniel podia falar livremente. Como a sra. Underwo
od, tinha pouco tempo para o seu status "anônimo". Pediu-lhe em confiança que lhe co
ntasse seu nome, o que ele fez sem parar um segundo para pensar.
Por que perguntou ele certa tarde de primavera, quando estavam sentados na sala
de trabalho, com uma brisa fresca soprando pela janela aberta , por que passo o m
eu tempo todo copiando este padrão?
É tão difícil quanto maçante. Realmente, preferiria estar desenhando o jardim, esta sala
ou mesmo você, sra. Lutyens. A professora riu para ele.
Ficar fazendo esboços é algo que vai muito bem para artistas, Nathaniel, ou para mo
ricas que não têm mais o que fazer. Você não vai virar artista nem uma moça rica, então o
ropósito de trabalhar com o lápis é bem diferente. Você está destinado a ser um artífice, u
planejador técnico. É preciso que seja capaz de reproduzir qualquer padrão que quiser
, com rapidez, confiança e, acima de tudo, com exatidão.
Ele olhou desanimado para o papel pousado sobre a mesa entre eles. Exibia um pad
rão complexo de galhos, flores e folhagem, com formas abstratas encaixadas ajustad
amente nos espaços vazios. Ele estava recriando essa imagem em seu caderno de dese
nho e já vinha trabalhando nisso há duas horas sem interrupção. Apenas metade da tarefa
estava completa.
É só que parece uma coisa sem sentido, só isso disse ele, com uma vozinha miúda.
Sem sentido não é contrapôs a sra. Lutyens. Deixe-me ver o seu trabalho. Bem, não está
, Nathaniel, não está nada mau, mas veja... não acha que esta cúpula está bem maior do que
o original? Está vendo aqui? E você deixou um buraco neste talo, esse é um erro bem g
rave.
É só um pequeno erro. O resto está bom, não é?
Não é essa a questão. Se estivesse copiando um pentagrama e deixasse nele um buraco, o
que aconteceria? Isso lhe custaria a vida. E você não quer morrer já, quer, Nathaniel
?
Não.
Então, bem. Você simplesmente não deve cometer erros. Senão eles lhe custarão caro.
A sra. Lutyens recostou-se na cadeira.
Pelo certo, eu deveria fazê-lo recomeçar com isso.
Sra. Lutyens!
É o mínimo que o sr. Underwood esperaria. Ela fez uma pausa, ponderando.
Mas pelo seu grito de angústia, suponho que seria inútil esperar que se saísse melh
da segunda vez. Vamos parar por hoje. Por que não vai até o jardim? Parece que um po
uco de ar fresco não lhe faria mal.
Para Nathaniel, o jardim da casa era um lugar de solidão e refúgio temporários. Lá não hav
ia aulas. E o jardim não lhe trazia lembranças desagradáveis. Era comprido e estreito,
fechado por um muro alto de tijolos vermelhos, sobre o qual cresciam rosas trep
adeiras no verão e seis macieiras lançavam sua cobertura de flores brancas sobre o g
ramado. Dois arbustos de rododendros se estendiam pela largura do espaço, lá pela me
tade do jardim atrás deles ficava uma área coberta, bem escondida das muitas abertur
as de janelas da casa. Nela, a grama crescia alta e úmida. Sobre ela projetava-se
a copa de uma castanheira-da-índia de um jardim vizinho, e um banco de pedra, verd
e de líquen, ficava à sombra do muro. Ao lado do banco a estátua de mármore de um homem
segurando um forcado de raios. Usava uma casaca em estilo vitoriano e um par de
costeletas gigantescas projetava-se de suas faces como as garras de um besouro.
A estátua era castigada pelo tempo e estava coberta por uma fina camada de limo, m
as ainda transmitia uma impressão de grande força e energia. Nathaniel era fascinado
por ela e chegou ao ponto de perguntar à sra. Underwood quem era o retratado, mas
ela apenas sorriu.
Pergunte a seu mestre disse ela. Ele sabe tudo.
Mas Nathaniel não ousou perguntar.
Esse recanto sossegado e repousante, com sua solidão, seu banco de pedra e sua estát
ua de um mago desconhecido era para onde Nathaniel ia sempre que precisava se pr
eparar antes de uma aula com seu mestre frio e intimidante.
9
Entre os seis e os oito anos de idade, Nathaniel só visitava seu mestre uma vez po
r semana. Essas ocasiões, nas tardes de sexta-feira, eram objeto de grande ritual.
Depois do almoço, Nathaniel tinha de subir para se lavar e trocar de camisa. Então,
precisamente às 2h30, ele se apresentava à porta da sala de leitura de seu mestre,
no primeiro andar. Batia três vezes, e uma voz lhe dizia que entrasse.
O mestre reclinava-se em uma poltrona de vime em frente a uma janela dando para
a rua. Seu rosto freqüentemente estava na sombra. Luz vinda da janela espalhava-se
em torno dele, em um véu nebuloso. Quando Nathaniel entrava, uma mão comprida e fin
a apontava para as almofadas empilhadas sobre o divã oriental na parede em frente.
Nathaniel pegava uma almofada e a pousava no chão. Sentava-se nela, o coração palpita
ndo, esforçando-se por captar cada nuança da voz do mestre, aterrorizado com a possi
bilidade de perder algo.
Nos primeiros anos o mago contentava-se em interrogar o menino sobre os seus est
udos, chamando-o a discutir vetores, álgebra ou os princípios de probabilidade; pedi
ndo-lhe que descrevesse brevemente a história de Praga ou que narrasse, em francês,
os eventos-chave das Cruzadas. As respostas quase sempre o satisfaziam Nathaniel
aprendia depressa.
Em raras ocasiões o mestre fazia um gesto para que o menino se calasse, no meio de
uma resposta, e falava ele próprio sobre as limitações da magia.
Um mago dizia ele é alguém que exerce um poder. Um mago emprega a sua vontade e efet
ua mudanças. Pode fazê-lo por motivos egoístas ou virtuosos. Os resultados de suas ações p
odem ser o bem ou o mal, mas o único mau mago é o mago incompetente. Qual é a definição de
incompetência, menino?
Nathaniel remexeu-se em sua almofada.
Perda de controle.
Correto. Contanto que o mago se mantenha no controle das forças que pôs em ação, ele con
tinua... Ele continua o quê?
Nathaniel balançou para a frente e para trás.
Bem...
Os três Ss menino, os três Ss. Use a cabeça.
Sólido, seguro e secreto, senhor.
Correto. Qual é o grande segredo?
Espíritos, senhor.
Demônios, menino. Chame-os do que eles são. O que nunca se deve esquecer?
Demônios são muito malvados e o machucarão se puderem, senhor. Sua voz vacilou, quando
ele disse isso.
Ótimo, ótimo. Que memória excelente você tem! Tenha cuidado com o modo como pronuncia su
as palavras tenho a impressão de que sua língua andou tropeçando em si mesma aí. Pronunc
iar mal uma sílaba na hora errada pode dar a um demônio exatamente a oportunidade qu
e ele vinha esperando.
Sim, senhor.
Então, demônios são o grande segredo. As pessoas comuns sabem de sua existência e que nós
podemos comungar com eles, é por isso que nos temem tanto! Mas elas não se dão conta d
a verdade completa que é a de que todo o nosso poder deriva de demônios. Sem a ajuda
deles, não passamos de bruxos baratos e charlatães. Nossa única grande habilidade é inv
ocá-los e fazê-los curvarem-se à nossa vontade. Se o fizermos corretamente, eles têm de
nos obedecer. Se cometermos apenas o menor erro, eles caem em cima de nós e nos de
spedaçam. Caminhamos sobre uma linha muito fina, menino. Com que idade está agora?
Oito, senhor. Nove, na semana que vem.
Nove? Ótimo. Então na semana que vem vamos começar seus estudos mágicos de verdade. O sr
. Purcell se ocupa de lhe dar suficiente fundamento em conhecimentos básicos. Daqu
i para a frente, nos reuniremos duas vezes por semana e começarei a apresentar-lhe
os dogmas centrais de nossa ordem. No entanto por hoje encerraremos com você reci
tando o alfabeto hebraico e seus doze primeiros números. Prossiga.
Aos olhos de seu mestre e de seus tutores, a educação de Nathaniel progredia rapidam
ente. Ele adorava informar a sra. Underwood de suas conquistas diárias e espojava-
se ao calor de seus elogios. À noite, ele ficava diante da janela, olhando para o
distante brilho amarelo que marcava a torre dos prédios do Parlamento, e sonhava c
om o dia em que iria para lá como mago, como um dos ministros do nobre governo.
Dois dias depois de seu nono aniversário, seu mestre apareceu na cozinha, enquanto
ele fazia o desjejum.
Deixe isso e venha comigo disse o mago.
Nathaniel seguiu-o pelo vestíbulo e entrou na sala que era a biblioteca de seu mes
tre. O sr. Underwood ficou de pé junto a uma estante larga cheia de volumes de tod
os os tipos e cores, indo desde léxicos de grande antigüidade, com capas de couro, a
té castigadas brochuras amarelas com sinais místicos rabiscados nas lombadas.
Este é o seu material de leitura para os próximos três anos disse o mestre, dando bati
dinhas no alto da estante. Quando tiver doze anos, deverá já se ter familiarizado co
m tudo que ela contém. Os livros são escritos em inglês médio, latim, tcheco e hebraico,
em sua maioria, embora você venha também a encontrar algumas obras coptas sobre os
rituais egípcios dos mortos. Existe um dicionário copta para ajudá-lo com essas. Fica
nas suas mãos dar conta de ler tudo isso; não tenho tempo para ficar te paparicando.
O sr. Purcell vai cuidar de sua agilidade nessas línguas. Entende?
Sim, senhor. Senhor?
O que é, menino?
Quando eu tiver lido tudo isso, senhor, saberei tudo de que preciso? Quer dizer,
para ser mago, senhor. Parece ser um montão horrível.
O mestre bufou e suas sobrancelhas subiram ao alto da testa.
Olhe às suas costas disse ele.
Nathaniel virou-se. Atrás da porta havia uma estante que ia do chão até o teto; transb
ordava com centenas de livros, cada um mais volumoso e empoeirado do que o outro
, o tipo de livros que, podia-se dizer mesmo sem abri-los, eram impressos com le
tras minúsculas divididas em duas colunas em cada página. Nathaniel deu uma pequena
engolida em seco.
Dê conta desse monte disse o mestre secamente e talvez consiga chegar a alguma
te. Essa estante contém os rituais e encantamentos de que precisaria para invocar
demônios importantes e você não vai nem começar a utilizá-los antes de chegar à adolescênci
portanto tire isso da sua cabeça. A sua estante ele deu tapinhas sobre ela de novo
lhe dá o conhecimento preparatório e é mais do que suficiente por enquanto. Certo, ve
nha comigo.
Foram até uma sala de trabalho que Nathaniel nunca havia visitado. Lá havia um grand
e número de vidros e frascos amontoados em prateleiras manchadas e sujas, cheios c
om líquidos de cores variadas. Alguns dos vidros tinham dentro objetos flutuando.
Nathaniel não sabia dizer se era o vidro grosso e curvo desses recipientes que faz
ia os objetos parecerem tão distorcidos e estranhos.
Seu mestre sentou-se em um banquinho a uma mesa de trabalho simples, de madeira,
e fez sinal a Nathaniel para que se sentasse ao lado. Empurrou em direção a ele uma
caixa estreita. Nathaniel abriu-a. Dentro havia um pequeno par de óculos. Uma lem
brança distante o fez estremecer pronunciadamente.
Ora, pegue-os, menino, não vão mordê-lo. Certo. Agora olhe para mim. Olhe para os m
olhos. O que vê?
De má vontade, Nathaniel olhou. Achou muito difícil encarar os olhos castanhos bravi
os e faiscantes do homem mais velho e, como resultado, seu cérebro se imobilizou.
Não viu coisa alguma.
Então?
Hum, hum... Lamento, eu não...
Olhe em volta das minhas íris, vê alguma coisa?
Hum...
Oh, seu pateta! Seu mestre deu esse grito de frustração e puxou para baixo a pele da
pálpebra inferior de um dos olhos, revelando a superfície inferior avermelhada. Não e
stá vendo? Uma lente, garoto! Uma lente de contato! Em volta do meio do olho! Está v
endo?
Desesperadamente, Nathaniel olhou de novo e desta vez viu de fato uma tênue orla c
ircular, fina como uma linha feita a lápis em torno da íris, fechando-a em seus limi
tes.
Sim, senhor disse ele, todo animado. Sim, estou vendo.
Já era hora. Certo. O mestre inclinou-se para trás no banquinho. Quando fizer doze a
nos acontecerão duas coisas importantes. Primeiro, receberá um nome novo, que assumi
rá como sendo o seu próprio. Por quê?
Para evitar que demônios ganhem poder sobre mim, descobrindo meu nome de batismo,
senhor.
Correto. Magos inimigos são igualmente perigosos, é claro. Em segundo lugar, ganhará s
eu primeiro par de lentes, que pode usar o tempo todo. Elas lhe permitirão enxerga
r um pouco dos ardis dos demônios. Até lá, usará estes óculos, mas só quando instruído a fa
, e em nenhuma outra hipótese eles devem ser retirados desta sala de trabalho. Ent
endido?
Sim, senhor. Como eles nos ajudam a enxergar melhor as coisas, senhor?
Quando demônios se materializam, eles sabem adotar todos os tipos de formas falsas
, não só nesta esfera material como também em outros planos de percepção. Logo vou lhe ens
inar sobre esses planos, não me pergunte sobre eles agora. Alguns demônios da casta
mais elevada podem até se tornar invisíveis, a malícia de seus logros não tem fim. As le
ntes e, em menor medida, os óculos lhe permitirão ver em diversos planos de uma só vez
, dando-lhe melhor possibilidade de penetrar suas ilusões. Observe...
O mestre de Nathaniel estendeu a mão para uma prateleira entulhada atrás dele e pego
u um vidro grande, selado com rolha e cera. Continha um líquido como uma salmoura
esverdeada e um rato morto, todo de pêlos marrons eriçados e a carne pálida. Nathaniel
fez uma careta. Seu mestre o observou.
O que diria que isto é, menino? perguntou.
Um rato, senhor.
Que tipo de rato?
Um rato marrom. Rattus norvegicus, senhor.
Bom. Nome latino e tudo, hein? Muito bom. Completamente errado, mas bom, assim m
esmo. Não é rato nenhum. Ponha os óculos e volte a olhar.
Nathaniel obedeceu. Os óculos pousaram em seu nariz frios e pesados. Ele tentou en
xergar através da turva lente de cristal, levando um ou dois momentos para tudo en
trar em foco. Quando a garrafa ficou à vista, ele teve um engasgo. O rato sumira.
Em seu lugar havia uma pequena criatura preta e vermelha com uma cara esponjosa,
asas de besouro e a parte de baixo em forma de sanfona. Os olhos da criatura es
tavam abertos e tinham uma expressão aflita. Nathaniel tirou os óculos e olhou de no
vo. O rato marrom flutuava no líquido conservante.
Deus do céu disse.
Seu mestre grunhiu:
Um Tormento Escarlate, capturado e posto num vidro pelo Instituto Médico de Lincol
n's Inn. Um diabrete de menor monta, mas um notável disseminador de pestilência. No
plano material ele só pode criar a ilusão do rato. Nos outros, sua verdadeira essência
se revela.
Ele está morto, senhor? perguntou Nathaniel.
Hmmm? Morto? Eu diria que sim. Se não estiver, com certeza está zangado. Está nesse vi
dro há pelo menos cinqüenta anos, eu o herdei de meu antigo mestre.
Botou o vidro de volta na prateleira.
Veja, menino continuou , mesmo os demônios menos poderosos são malignos, perigos
evasivos. Não se pode baixar a guarda por um momento. Olhe só.
Tirou de detrás de um maçarico Bunsen uma caixa retangular de vidro que parecia não te
r tampa. Seis criaturas minúsculas zumbiam lá dentro, batendo incessantemente contra
as paredes de sua prisão. À distância, pereciam insetos; quando se aproximavam, Natha
niel observou que tinham pernas demais para isso.
Estes trocinhos disse o mestre são possivelmente a forma mais baixa de demônio.
se pode dizer que tenham qualquer inteligência. Você não precisa de óculos para enxergá-lo
s em sua verdadeira forma. No entanto até mesmo esses são uma ameaça, a não ser que adeq
uadamente controladas. Está vendo esses ferrões laranja que eles têm por trás das caudas
? Criam inchaços intensamente dolorosos no corpo da vítima; bem pior do que os de ab
elhas ou vespas. Um método admirável de punir alguém, seja um rival irritante... ou um
aluno desobediente.
Nathaniel ficou olhando aquelas coisinhas furiosas batendo as cabeças contra o vid
ro. Assentiu vigorosamente com a cabeça.
Sim, senhor.
Coisinhas malignas.
O mestre empurrou a caixa de volta.
E, no entanto, só precisam das palavras certas de comando para obedecerem a qualqu
er instrução. Eles com isso demonstram, na menor das escalas, os princípios de nossa a
rte. Temos instrumentos perigosos que precisamos controlar. Agora vamos começar a
aprender como nos protegermos.
Nathaniel logo descobriu que demoraria muito tempo até que ele tivesse licença para
manejar pessoalmente os instrumentos. Tinha aulas com seu mestre na sala de trab
alho duas vezes por semana e durante meses não fizera nada além de tomar notas. Fora
m-lhe ensinados os princípios dos pentagramas e a arte das runas. Aprendeu os rito
s de purificação adequados que os magos precisam observar antes que possa ocorrer um
a invocação. Foi posto para trabalhar com almofariz e pilão para triturar misturas de
incenso que estimulavam demônios ou mantinham longe os indesejáveis. Cortou velas em
variados tamanhos e arrumou-as em uma grande quantidade de padrões diferentes. E
nem uma única vez seu mestre invocou alguma coisa.
Impaciente por progressos, em seu tempo livre Nathaniel devorava os livros daque
la estante da biblioteca. Impressionou o sr. Purcell com seu onívoro apetite de co
nhecimento. Trabalhou com grande vigor nas aulas de desenho da sra. Lutyens, apl
icando suas técnicas aos pentagramas que agora traçava sob os olhos de seu mestre, q
ue pareciam duas contas redondinhas. E, durante esse tempo, os óculos juntavam poe
ira na prateleira da sala de trabalho.
A sra. Lutyens era a única pessoa a quem ele confiava suas frustrações.
Paciência dizia ela. Paciência é a virtude básica. Se se apressar, vai errar. E
oloroso. Deve sempre relaxar e se concentrar na tarefa em execução. E agora, se esti
ver pronto, quero que desenhe aquilo de novo, só que desta vez com os olhos vendad
os.
Em seis meses de treinamento, Nathaniel observou uma invocação pela primeira vez. Pa
ra seu profundo aborrecimento, não tomou parte ativa. Seu mestre desenhou os penta
gramas, inclusive um secundário para Nathaniel ficar dentro. Nathaniel não pôde sequer
acender as velas e, o que foi pior, teve ordem de deixar de lado os óculos.
Como vou ver alguma coisa? perguntou, bem mais irritadamente do que era seu cost
ume com o mestre; um olhar com os olhos bem apertados o reduziu imediatamente ao
silêncio.
A invocação começou como uma profunda decepção. Após as fórmulas encantatórias, que Nathani
ve a satisfação de descobrir que ele em grande parte entendia, nada pareceu acontece
r. Uma ligeira brisa atravessou a sala de trabalho; de resto, tudo estava quieto
. O pentagrama vazio continuou vazio. Seu mestre ficou por perto, olhos fechados
, aparentemente adormecido. Nathaniel foi ficando muito entediado. Suas pernas c
omeçaram a doer. Evidentemente, esse demônio particular tinha resolvido não aparecer.
De súbito, percebeu com horror que várias das velas em um dos cantos da sala de trab
alho haviam tombado. Uma pilha de papéis estava em chamas e o fogo estava se espal
hando. Nathaniel deu um grito de alarme e um passo...
Fique onde está!
O coração de Nathaniel quase parou, de susto. Ele se imobilizou, com um pé ainda ergui
do. Os olhos de seu mestre haviam se arregalado e o estavam fixando com uma raiv
a horrível. Com uma voz de trovão, seu mestre disse as sete Palavras de Dispensa. O
fogo no canto da sala desapareceu, a pilha de papéis com ele; as velas estavam nov
amente de pé e ardendo sossegadamente. O coração de Nathaniel fraquejou-lhe no peito.
Ia pisar fora do círculo, não ia?
Ele nunca ouvira a voz de seu mestre tão contundente.
Eu lhe disse que alguns ficam invisíveis. São mestres da ilusão e conhecem mil meio
e distraí-lo e tentá-lo. Mais um passo e você teria ficado em chamas. Pense nisso quan
do sentir fome hoje à noite. Suba para o seu quarto!
Novas invocações foram menos aflitivas. Guiado apenas por seus sentidos comuns, Nath
aniel observou demônios em uma enorme quantidade de formas enganadoras. Alguns apa
reciam como animais familiares gatos vagindo, cães de olhos arregalados, hamsters
carentes e molengas que Nathaniel morria de vontade de segurar. Passarinhos dóceis
ficavam saltando e brincando às margens de seus círculos. Uma vez, uma chuva de flo
res de macieira se precipitou do ar, enchendo a sala de um perfume inebriante qu
e o deixou tonto.
Ele aprendeu a resistir a seduções de todos os tipos. Alguns espíritos invisíveis invest
iam contra ele com odores fétidos que lhe davam ânsias de vômito; outros o encantavam
com um perfume que lhe lembrava o da sra. Lutyens ou o da sra. Underwood. Alguns
tentavam amedrontá-lo com sons medonhos o ruído forte de passos chapinhando e de co
isas sendo esmagadas com os pés, sussurros e uma algaravia de gritos. Ouvia vozes
estranhas que gritavam suplicantes, a princípio muito agudas, em seguida descendo
cada vez mais graves, até soarem como um sino fúnebre. Mas ele fechava a mente a tod
as essas coisas e nunca chegou nem perto de sair do círculo.
Um ano se passou para que Nathaniel pudesse usar os óculos durante cada invocação. Ago
ra ele podia observar muitos dos demônios como eles realmente eram. Outros, leveme
nte mais poderosos, mantinham suas ilusões mesmo nos outros planos observáveis. A to
das essas desorientadoras mudanças de percepção, Nathaniel se adaptava calma e confian
temente. Suas aulas progrediam bem, seu autodomínio igualmente. Ele foi ficando ma
is rijo, mais maleável, mais determinado a progredir. Passava todas as suas horas
livres lendo atentamente novos manuscritos.
Seu mestre estava satisfeito com o progresso do aluno, e Nathaniel, apesar da im
paciência com o ritmo de sua educação, estava encantado com o que aprendia. Era uma re
lação produtiva, ainda que não íntima, e podia muito bem ter continuado assim, não fosse p
elo terrível incidente que ocorreu no verão anterior a seu aniversário de onze anos.
Bartimaeus
10
No final, amanheceu o dia.
Os primeiros raios hesitantes tremeluziram no céu oriental. Um halo de luz ergueu-
se lentamente sobre o horizonte, na região das Docas. Eu o saudei com alegria. Já es
tava mais do que na hora.
A noite inteira foi um negócio cansativo e muitas vezes humilhante. Repetidamente
espreitei, enrolei e fugi voando, nessa ordem, através de metade das regiões postais
de Londres. Fui tratado com dureza por uma menina de treze anos. Procurei abrig
o em um latão de lixo. E agora, para cúmulo de tudo, estava agachado no telhado da A
badia de Westminster, fingindo ser uma gárgula. As coisas não podiam ficar piores.
Um raio de luz do Sol, que nascia, bateu na beirada do amuleto, que estava pendu
rado em meu pescoço coberto de liquens. Ele faiscou, brilhante como um vidro. Auto
maticamente, ergui a garra para escondê-lo; só para o caso de olhos aguçados estarem e
m alerta, mas a essa altura eu não estava preocupado demais.
Tinha passado um par de horas dentro daquele cesto de lixo no beco, tempo sufici
ente para descansar e ficar impregnado com o cheiro de legumes podres. Então, tive
a brilhante idéia de fixar residência pétrea na abadia. Lá eu estaria protegido pela pr
ofusão de ornamentos mágicos em seu interior eles disfarçariam o sinal do amuleto.19 D
e meu novo posto de observação eu vira algumas poucas esferas à distância, mas nenhuma d
elas se aproximou. Finalmente a noite havia recuado e os magos haviam ficado can
sados. As esferas no céu haviam piscado e se apagado. A pressão acabara.
Quando o Sol se ergueu, aguardei impacientemente a esperada invocação. O menino diss
era que me chamaria ao amanhecer, mas sem dúvida estava dormindo como o adolescent
e comodista que era.
Enquanto isso, organizei meus pensamentos. Uma coisa que estava claríssima é que o g
aroto era o testa-de-ferro de um mago adulto, alguma influência obscura, que busca
va jogar a culpa pelo roubo em cima dele. Isso não era difícil de perceber nenhuma c
riança da idade dele iria me invocar para uma missão tão terrível por sua própria conta. P
resumivelmente, o mago desconhecido queria infligir um golpe em Lovelace e ganha
r controle sobre os poderes do amuleto. Se assim fosse, ele estava arriscando tu
do. A julgar pela escala da caçada de que eu acabara de escapar, várias pessoas pode
rosas estavam enormemente preocupadas com sua perda.
Mesmo sozinho, Simon Lovelace era um sujeito formidável. O fato de que ele fosse c
apaz de empregar (e controlar) tanto Faquarl quanto Jabor era prova disso. Eu não
ia achar graça no destino do garoto quando o mago o alcançasse.
E, aí, havia a menina, aquela não-maga cujos amigos agüentaram a minha mágica e enxergar
am minhas ilusões. Há vários séculos não me deparava com humanos desse tipo; então, encontr
os aqui em Londres foi curioso. Era difícil dizer se eles entendiam ou não as implic
ações de seu poder. A garota nem mesmo parecia saber exatamente o que o amuleto era;
só que era um troféu que valia a pena possuir. Ela com certeza não era aliada nem de
Lovelace nem do garoto. Estranho... não conseguia ver onde ela se encaixava em tud
o isso.
Ora, bem; isso não seria problema meu. A luz do Sol atingiu o telhado da abadia. P
ermiti-me uma breve e voluptuosa flexão das asas.
Nesse momento, chegou a invocação.
Mil anzóis pareciam ter se cravado em mim. Fui puxado em diversas direções a uma só vez.
Resistir por muito tempo arriscava rasgar minha essência, mas eu não tinha interess
e em retardar. Queria entregar o amuleto e encerrar a questão.
Com essa ávida esperança em mente, submeti-me à invocação, desaparecendo do telhado...
... e reaparecendo instantaneamente no quarto do menino. Olhei em torno.
Tudo bem, o que é isto?
Eu lhe ordeno, Bartimaeus, que revele se executou diligente e inteiramente sua m
issão...
É claro que sim... O que acha que isto é, uma bijuteria?
Apontei com minha garra de gárgula para o amuleto, pendendo sobre o meu peito. Ele
tremulava e piscava à luz bruxuleante das velas.
O Amuleto de Samarkand. Era de Simon Lovelace. Agora é seu. Logo voltará a ser de S
mon Lovelace. Pegue-o e agüente as conseqüências. Quero lhe perguntar sobre esse penta
grama que você traçou aqui: o que são essas runas? Essa linha extra?
O garoto esvaziou o peito:
O Pentagrama de Adelbrand.
Se eu fosse tolo de cair nessa, poderia jurar que ele deu um sorriso afetado, um
a expressão facial muito pouco própria para alguém tão jovem.
O Pentagrama de Adelbrand. Isso era encrenca. Passei a examinar ostensivamente a
s linhas da estrela e o círculo, procurando por minúsculas interrupções ou vacilações no gi
. E examinei os próprios símbolos e runas.
Ahá! vociferei. Você traçou isto errado. E sabe o que isso significa, não sabe.
tei-me como um tigre pronto para saltar sobre a presa.
O rosto do garoto assumiu uma interessante mistura de pálido e rubro, seu lábio infe
rior estremeceu, seus olhos pareciam que iam saltar das órbitas. Ele dava a forte
impressão de que iria sair correndo, mas não o fez, portanto meu plano fracassou.20
Afobado, ele vistoriou as letras sobre o chão.
Pérfido demônio! O pentagrama está perfeito, ele o obriga a ficar quieto!
Está bem, eu menti.
Reduzi meu volume. Minhas asas pétreas dobraram-se para trás, sobre a corcova de min
has costas.
Quer o amuleto ou não?
Coloque-o nesse vaso.
Havia no chão uma pequena tigela de pedra-sabão, entre os arcos mais externos dos do
is círculos. Retirei o amuleto e, com um certo alívio íntimo, joguei-o distraidamente
na tigela. O garoto curvou-se em sua direção. Com o canto do olho eu o observava ate
ntamente se um pé, um dedo saíssem do círculo, eu pularia em cima dele, mais depressa
do que um louva-a-deus.
Mas o garoto era esperto demais para isso. Tirou uma vareta do bolso de seu casa
co esfarrapado. Enfiado na ponta da vareta havia um pedaço de arame enorme encurva
do em forma de anzol, que parecia suspeitamente um clipe de papel dobrado. Com e
stocadas e puxões cautelosos ele pegou a beirada da tigela com o anzol e puxou-a p
ara dentro de seu círculo. Então, pegou o cordão do amuleto, torcendo o nariz ao fazê-lo
.
Puxa, isto é nojento!
Nada a ver comigo. Culpe a estação de tratamento de esgotos de Rotherhithe. Não, pensa
ndo melhor, culpe a si mesmo. Passei a noite inteira tentando fugir de ser pego
por sua causa. Tem sorte se não fiquei enfiado de vez em um buraco.
Você foi perseguido? Ele pareceu quase curioso. Emoção errada, garoto. Tente o medo.
Por metade das hordas demoníacas de Londres.
Revirei meus olhos de pedra e bati ruidosamente meu duro bico.
Não se engane, garoto, eles virão para cá, vorazes e de olhos amarelados, prontos p
pegá-lo. E você estará impotente, indefeso contra o poder deles. Você só tem uma chance:
liberte-me deste círculo e eu o ajudarei a livrar-se das garras deles.21
Acha que sou idiota?
O amuleto em suas mãos responde a isso. Bem, não tem importância. Executei a minha
efa. Pelo restante de sua curta vida, adeus.
Minha forma tremeluziu, começou a se apagar. Uma ondulante coluna de vapor ergueu-
se do assoalho, como se quisesse me engolir e sumir comigo. Puro pensamento otim
ista... o Pentagrama de Adelbrand cuidaria disso.
Não pode ir embora! Tenho outro trabalho a repartir convosco.
Mais do que o renovado cativeiro, eram esses arcaísmos ocasionais que me chateavam
tanto. "Vós", "convosco", "pérfido demônio". Façam-me o favor: ninguém usava mais linguag
em como essa há duzentos anos. Qualquer um acharia que ele aprendera seu ofício inte
iramente em algum livro antigo.
Mas, com ou sem esses estranhos "convosco", ele bem que tinha razão. A maioria dos
pentagramas comuns o obriga a apenas um serviço. Execute-o e está livre para ir emb
ora. Se o mago o quiser de novo vai ter de repetir todo o extenuante palavreado
de invocação desde o começo.
Mas o Pentagrama de Adelbrand revogava isso: suas linhas e fórmulas encantatórias ex
tras atrancavam duplamente a porta e o forçavam a ficar para novas ordens. Era uma
fórmula mágica complexa, que exigia energia e concentração de adulto, e isso me deu mun
ição para meu ataque seguinte.
Deixei o vapor refluir.
Onde está ele?
O garoto se ocupava virando sem parar o amuleto em suas mãos lívidas. Ergueu os olho
s distraidamente.
Onde está quem?
O chefe, seu mestre, a éminence grise, o poder por trás do trono. O homem que o ins
igou a esse pequeno furto, que lhe disse o que falar e o que desenhar. O homem q
ue vai ficar incólume nas sombras, enquanto os djins de Lovelace estiverem atirand
o seu cadáver estraçalhado para lá e para cá, sobre os telhados de Londres. Ele está fazen
do algum jogo que você desconhece, valendo-se da sua ignorância e da sua vaidade de
jovenzinho.
Essa doeu. Seus lábios encresparam-se para trás um pouco.
Queria saber o que ele lhe disse. Adotei uma voz de cantilena condescendente: Bo
trabalho, meu jovem, você é o melhor garoto mágico que já vi em muito tempo. Diga-me, g
ostaria de fazer surgir um djim poderoso? Gostaria? Bem, por que não fazermos exat
amente isso? Podemos pregar uma peça em alguém também, roubar um amuleto...
O garoto riu. Inesperado, isso. Eu esperava um rompante furioso ou um pouco de a
flição. Mas não, ele riu.
Virou de lado o amuleto uma última vez, inclinou-se e recolocou-o na tigela. Também
inesperado. Usando a varinha com o anzol ele empurrou o pote de volta para fora
do círculo, devolvendo-o a sua posição original no chão.
O que está fazendo?
Devolvendo-o.
Eu não o quero.
Pegue-o.
Eu não ia entrar nessa frescura de bater boca com um garoto de doze anos, particul
armente um garoto capaz de impor-me a sua vontade, portanto estendi o braço para f
ora do círculo e passei a mão no amuleto.
E agora? Quando Simon Lovelace chegar, não vou querer estar agarrado com isto, você
sabe. Vou devolvê-lo a ele, com um sorriso e um aceno. E apontando para a cortina
atrás da qual você estará tremendo todo.
Espere.
O garoto tirou alguma coisa lustrosa de um dos bolsos internos de seu volumoso c
apote. Cheguei a mencionar que esse capote era uns três números grande demais para e
le? Havia evidentemente pertencido a um mago muito descuidado, pois, embora todo
remendado, ainda exibia os traços inconfundíveis de fogo, sangue e garras. Desejei
ao garoto sorte semelhante.
Agora ele segurava, com a mão esquerda, um disco polido um espelho mágico de latão ext
remamente lustrado. Passou a mão direita por cima dele algumas vezes e começou a fit
ar o reflexo do metal com concentração passiva. Qualquer que fosse o diabrete cativo
que vivia dentro do disco, logo reagiu. Formou-se uma imagem opaca e sombria; o
menino a observava atentamente. Eu estava afastado demais para poder ver a imag
em, mas, enquanto ele estava distraído, dei minhas próprias espiadinhas.
O quarto dele... eu queria uma pista para a sua identidade. Alguma carta endereçad
a a ele, talvez, ou uma etiqueta em seu capote. Essas duas coisas já tinham funcio
nado para mim. Eu não estava atrás do seu nome de batismo, é claro, isso seria esperar
demais, mas seu nome oficial serviria para começar.22 Só que eu não estava com sorte.
O lugar mais particular, íntimo e revelador do quarto sua escrivaninha tinha sido
cautelosamente coberto com um pano preto grosso. Um guarda-roupas no canto esta
va fechado; da mesma forma a cômoda. Havia um vaso de vidro rachado com flores fre
scas, no meio da confusão de velas um toque estranho, esse. Não fora ele próprio que o
pusera ali, calculei; então, alguém gostava dele.
O garoto agitou a mão sobre o espelho mágico e sua superfície ficou opaca. Ele recoloc
ou o disco no bolso e, de repente, voltou os olhos para mim. Xiiii. Lá vinha.
Bartimaeus começou , ordeno-lhe que pegue o Amuleto de Samarkand e o esconda no
ositório mágico do mago Arthur Underwood, ocultando-o de forma que ele não possa perce
bê-lo e realizando isso tão furtivamente que ninguém, nem humano, nem espírito, neste ou
em qualquer outro plano, veja-o entrar ou sair; ordeno-lhe ainda que retorne im
ediatamente para mim, em silêncio e sem ser visto, a fim de aguardar novas instruções.
Quando acabou de falar, seu rosto estava azul, tendo soltado tudo em um só fôlego.23
Fiz um olhar furioso sob meu cenho pétreo.
Muito bem. Onde vive esse desafortunado mago?
O garoto deu um sorriso apertado.
No andar de baixo.
11
No andar de baixo... Bem, isso era uma surpresa.
Armando contra o seu mestre, não é? Coisa feia.
Não estou armando contra ele. Só quero isso seguro, protegido, por segurança. Ninguém va
i encontrá-lo lá. Ele fez uma pausa. Mas se encontrarem...
Você estará limpo. Típico truque de mago. Está aprendendo mais depressa do que a maioria
.
Ninguém vai encontrá-lo.
Você acha? Veremos.
Eu continuava não podendo ficar ali tagarelando o dia inteiro. Envolvi o amuleto c
om um encanto, tornando-o temporariamente pequeno e dando-lhe a aparência de um fi
apo de teia de aranha enroscadinho. Afundei por um buraco na madeira da tábua de a
ssoalho mais próxima, serpenteei como vapor pelo espaço vazio sobre o chão e, disfarçado
de aranha, saí cautelosamente por uma rachadura no teto do aposento abaixo.
Estava em um banheiro deserto. A porta estava aberta; corri até ela ao longo da sa
nca de gesso, o mais rápido que oito pernas conseguiam me levar. Enquanto seguia,
sacudi minhas mandíbulas pela audácia do garoto.
Armar para outro mago: isso não era comum. Mas fazia parte do negócio, vinha com o t
erritório. Armar contra seu próprio mestre, porém, ora, isso era fora do comum na verd
ade seria um caso ímpar em um magozinho de doze anos. Claro, quando adultos, magos
se desentendiam com uma regularidade ridícula, mas não quando estavam começando; não qu
ando estavam ainda só aprendendo as regras.
Como eu tinha certeza de que o mago em questão era seu mestre? Bem, a não ser que prát
icas seculares agora estivessem sendo abandonadas e aprendizes estivessem sendo
despachados juntos para colégios internos (muito improvável), não havia outra explicação.
Magos guardam seu conhecimento fechado em seus pequenos e encarquilhados corações, c
obiçando o poder que dá esse conhecimento do modo como um avaro cobiça ouro, e só o pass
am adiante com cautela. Desde os dias dos magos medos, alunos sempre moraram soz
inhos nas casas de seus mentores um mestre para um pupilo, dando suas aulas secr
eta e furtivamente. Do zigurate à pirâmide, do carvalho sagrado ao arranha-céu, quatro
mil anos se passam e as coisas não mudam.
Resumindo: parecia que, para salvar sua própria pele, essa criança ingrata estava ar
riscando atrair a ira de um mago poderoso sobre a cabeça de seu inocente mestre. F
iquei muito impressionado. Mesmo que ele tivesse que estar de cumplicidade com u
m adulto talvez inimigo de seu mestre , era um plano admiravelmente tortuoso para
alguém tão jovem.
Saí pela porta na ponta dos oito pés. E então vi o mestre.
Nunca ouvira falar desse mago, sr. Arthur Underwood. Presumi, portanto, que foss
e um bruxo de menor importância, um diletante em impostura e fetiches, que nunca o
usava perturbar os demais seres mais elevados, assim como eu. Quando ele passou
embaixo de mim para entrar no banheiro (eu evidentemente saí bem a tempo), vi com
certeza que se encaixava no tipo do mago de segunda classe. Um sinal garantido d
isso era que tinha todos os atributos consagrados e tradicionais que outros huma
nos associam a grande poder de magia: uma juba de cabelos rebeldes, da cor de ci
nzas de cigarro, uma barba comprida e esbranquiçada que se projetava para a frente
como a proa de um navio e um par de sobrancelhas particularmente hirsutas.24 Po
dia imaginá-lo pavoneando-se pelas ruas de Londres em um terno de veludo preto, o
cabelo ondulando para trás, de um jeito muito feiticeiro. Ele provavelmente brandi
a uma bengala com castão de ouro, talvez até uma pretensiosa capa. Sim, ele estaria
pronto para o papel, então, perfeitamente: muito impressionante. Muito diferente a
gora, de calças de pijama, coçando as indecências e exibindo um jornal dobrado embaixo
do braço.
Martha! chamou logo antes de fechar a porta do banheiro.
Uma mulher baixinha e esférica emergiu de um quarto. Por sorte, ela estava totalme
nte vestida.
Sim, querido?
Pensei que você tivesse dito que a tal mulher fez a limpeza, ontem.
E fez, sim, querido. Por quê?
Porque tem uma teia de aranha imunda pendendo do meio do teto, com uma aranha re
pelente à espreita dentro dela. Detestável. Ela devia ser despedida.
Oh, estou vendo. Que porcaria. Não se preocupe, vou falar com ela. E trago o espan
ador num instante.
O grande mago pigarreou e fechou a porta. A mulher sacudiu a cabeça com magnanimid
ade e, entoando uma cantiga alegre, desapareceu escadas abaixo. A aranha "detestáv
el" fez um sinal grosseiro com duas de suas pernas e disparou correndo pelo teto
, arrastando consigo sua teia.
Foram precisos diversos minutos de fuga precipitada até que eu achasse a entrada p
ara o estúdio ao pé de um pequeno lance de degraus. E aqui parei. A porta estava pro
tegida contra intrusos por um feitiço na forma de uma estrela de cinco pontas. Era
um expediente simples. A estrela parecia consistir em tinta vermelha descascand
o; no entanto, se um invasor desavisado abrisse a porta, a armadilha disparava e
a "tinta" reverteria a sua condição original uma descarga de fogo ricocheteante.
Parece bom, eu sei, mas na verdade era o tipo de troço bem básico. Uma empregada cur
iosa podia levar um baita susto, mas não Bartimaeus. Formei um Escudo à minha volta
e, tocando a base da porta com uma pata minúscula, fui projetado um metro para trás.
Finas estrias cor-de-laranja apareceram dentro das linhas vermelhas. Por um segu
ndo, as linhas correram como líquido, dando precipitadamente a volta à forma da estr
ela. E então um jato de fogo irrompeu da ponta mais alta da estrela, rebateu no te
to e projetou-se para baixo em minha direção.
Eu estava preparado para o impacto no meu Escudo, mas ele nunca ocorreu. A chama
se desviou de mim totalmente e atingiu a teia que eu estava arrastando. E a tei
a a sugou, puxando o fogo da estrela como suco por um canudinho. Em um instante
acabou. A chama sumira. Havia desaparecido dentro da teia de aranha: que estava
mais fria do que nunca.
Com alguma surpresa, olhei em torno. Havia uma estrela de um preto-carvão cauteriz
ada na madeira da porta do estúdio. Enquanto eu observava, o feitiço começou a se aver
melhar lentamente estava recompondo sua carga para o próximo intruso.
De repente percebi o que havia acontecido. Era óbvio. O Amuleto de Samarkand fizer
a o que se espera que os amuletos façam ele havia protegido quem o estava usando.2
5 E com muita precisão. Absorvera o feitiço sem qualquer dificuldade. Isso, para mim
, foi ótimo. Desmanchei meu Escudo e entrei no estúdio de Underwood espremendo-me po
r baixo da porta.
Lá dentro não encontrei novas armadilhas em nenhum dos planos, mais um sinal de que
o mago era de ordem bem inferior. (Recordei-me da extensa rede de defesas armada
por Simon Lovelace e que eu havia penetrado com garbo tão fácil. Se o garoto achava
que o amuleto estaria seguro por trás da "segurança" de seu mestre, devia dar uma p
ensada.)
O lugar era arrumado, embora poeirento, e continha, entre outras coisas, um armári
o de louças trancado que, imaginei, abrigava seus tesouros. Entrei pela fechadura,
entalando a teia atrás de mim.
Uma vez lá dentro, executei uma pequena iluminação. Uma série deplorável de bugigangas mági
as estava arrumada com cuidado extremo em três prateleiras de vidro. Algumas delas
, assim como a bolsa do funileiro, com seu bolso secreto para fazer "desaparecer
" moedas, francamente não eram nada mágicos. Fazia minha avaliação dele como sendo um ma
go de segunda classe parecer excessivamente generosa. Quase senti pena do velho
pateta. Pelo seu bem, esperava que Simon Lovelace nunca desse as caras.
Havia um totem javanês de um pássaro no fundo do armário, o bico e as plumas cinzentos
de poeira. Underwood obviamente nunca tocava nele. Puxei a teia por entre a bol
sa e um pé de coelho eduardiano e enfiei-a por trás do totem. Ninguém o encontraria al
i, a não ser que estivessem procurando para valer. Finalmente, retirei dele o enca
ntamento, restaurando-o a seu tamanho e forma normais de amuleto.
Com isso, minha missão estava concluída. Só me restava voltar até o garoto. Saí do armário
do estúdio sem qualquer estorvo e parti de volta escada acima.
Foi aí que a coisa ficou interessante.
Eu estava voltando para o quarto do sótão, é claro, usando o teto inclinado sobre a es
cada, quando inesperadamente o garoto passou por mim descendo. Vinha seguindo a
esposa do mago, parecendo totalmente de saco cheio. Era evidente que acabava de
ser chamado do seu quarto.
Recompus-me imediatamente. Isso era ruim para ele e pude ver, pelo seu rosto, qu
e ele percebera também. Sabia que eu estava à solta, em algum lugar por perto. Sabia
que eu estaria voltando, que minha ordem fora "voltar até ele imediatamente, em s
ilêncio e sem ser visto, para aguardar novas instruções". Ele sabia que eu, portanto,
poderia o estar seguindo agora, ouvindo e prestando atenção, aprendendo mais sobre e
le, e que ele não poderia fazer nada em relação a isso enquanto não voltasse a seu quart
o e ficasse de novo dentro do pentagrama.
Em suma, tinha perdido o controle da situação, um estado de coisas perigoso para qua
lquer mago. Virei-me e segui diligentemente na cola deles, ninguém me viu ou ouviu
arrastando-me atrás.
A mulher conduziu o garoto até uma porta no andar térreo.
Ele está aí dentro, querido disse ela.
Está bem disse o menino. Sua voz foi gentil e desanimada, bem do jeito que eu gos
o.
Eles entraram, a mulher primeiro, o garoto em seguida. A porta fechou-se tão depre
ssa que precisei soltar uns dois lances rápidos de teia para me servir como um tra
pézio com que eu pudesse passar pela abertura antes que ela se fechasse. Foi uma e
xcelente acrobacia gostaria que alguém a houvesse visto. Mas não. "Em silêncio e sem s
er visto", eu sou assim.
Estávamos em uma sombria sala de jantar. O mago, Arthur Underwood, estava sentado
sozinho à cabeceira de uma mesa de jantar escura e lustrosa com xícara, pires e jarr
a de café de prata à mão. Ainda estava ocupado com o jornal, que estava pousado sobre
a mesa, dobrado ao meio. Quando a mulher e o menino entraram, ele pegou o jornal
, desdobrou-o, virou a página energicamente e dobrou tudo pelo meio de novo, baten
do o jornal. Não ergueu os olhos.
A mulher, perto da mesa, hesitou.
Arthur, Nathaniel está aqui disse.
A aranha tinha recuado para um canto escuro sobre a porta. Ao ouvir essas palavr
as, ela ficou imóvel, como fazem as aranhas. Nathaniel! Ótimo. Já era um começo.
Tive o prazer de ver o garoto piscar. Seus olhos corriam para lá e para cá, sem dúvida
se perguntando se eu estaria lá.
O mago não deu sinal de ter ouvido, mas continuou mergulhado em seu jornal. A espo
sa começou a rearrumar um lamentável arranjo de flores secas sobre a lareira. Foi en
tão que calculei que era responsável pelo vaso no quarto do menino. Flores mortas pa
ra o marido, flores frescas para o aprendiz isso era curioso.
Underwood mais uma vez desdobrou, virou, bateu o jornal e retomou a leitura. O g
aroto ficou esperando em silêncio. Agora que eu estava livre do círculo e, assim, não
sob seu controle direto, tinha uma oportunidade de avaliá-lo mais clinicamente. El
e havia (evidentemente) tirado seu capote andrajoso e estava sobriamente vestido
com calça e paletó cinzentos. O cabelo fora umedecido e puxado para trás com o pente.
Trazia um maço de papéis embaixo do braço. Era a imagem da deferência silenciosa.
Ele não tinha nenhum traço obviamente definidor nenhum sinal, nada esquisito, nada d
e cicatrizes. Seu cabelo era escuro e liso, seu rosto tendia para o chupado. A p
ele era muito pálida. Para um observador distraído ele era um menino muito comum. Ma
s para o meu olhar mais esperto e mais dedicado havia outras coisas a notar: olh
os astutos e calculistas; dedos que tamborilavam impacientemente nos papéis que el
e segurava; mais que tudo um rosto muito cauteloso que, por meio de mudanças sutis
, assumia qualquer expressão que dele se esperasse. Por enquanto havia adotado um
aspecto submisso, porém, atento capaz de lisonjear a vaidade de um homem mais idos
o. E, no entanto, corria os olhos continuamente pelo aposento, à minha procura.
Facilitei isso para ele. Quando estava olhando em minha direção, dei umas duas corri
dinhas pela parede, agitei algumas pernas e remexi o abdome de um modo brincalhão.
Ele me viu imediatamente, ficou mais pálido do que nunca, mordeu o lábio. Não podia f
azer nada quanto a mim, porém, sem entregar o próprio jogo.
No meio de minha dança, Underwood de repente grunhiu com desprezo e deu um tapa no
jornal com as costas da mão.
Olhe aqui, Martha disse. Makepeace está enchendo os teatros mais uma vez, com seu
disparate oriental. Cisnes da Arábia... Eu lhe pergunto, já ouviu falar de baboseira
tão sentimental? E, no entanto, está com reservas completas até o fim de janeiro! Mui
to estranho.
Está tudo reservado? Oh, Arthur, eu queria tanto ir...
Ouça: "... na qual uma atraente jovem missionária de Chiswick se apaixona por um dj
m moreno..." Isso não é só conversa fiada romântica, é danado de perigoso também. Espalha d
sinformação entre as pessoas.
Oh, Arthur...
Você viu djins, Martha. Alguma vez viu um "com olhos de mormaço, que derreterão seu
ração"?... Que derreterão seu rosto, talvez.
Estou certa de que tem razão, Arthur.
Makepeace não devia cair nessa. Uma vergonha. Eu faria alguma coisa a respeito, ma
s ele é muito amigo dos parlamentares.
Sim, querido. Gostaria de mais café?
Não. Os parlamentares deveriam estar dando uma ajuda ao meu Departamento de Assunt
os Internos em vez de gastar seu tempo com vida social. Mais quatro roubos, Mart
ha, quatro na semana passada. E eram coisas valiosas. Estou lhe dizendo, isto es
tá virando uma bagunça.
Assim dizendo, Underwood ergueu o bigode com uma das mãos e habilmente encaixou a
borda da xícara por baixo. Tomou um gole bem longo e sonoro.
Martha, esse está frio. Você pegaria mais café?
De bom grado, a esposa apressou-se em sua tarefa. Quando ela saía, o mago jogou o
jornal de lado e dignou-se a finalmente notar a presença do pupilo.
O mago grunhiu.
Então. Está aí, não é?
Apesar da ansiedade, a voz do menino estava firme.
Sim, senhor. Mandou me chamar, senhor.
De fato, mandei. Ora, andei falando com seus professores e, à exceção do sr. Sindra
odos têm pareceres satisfatórios a dar de você.
Ergueu a mão, para silenciar as prontas articulações de agradecimentos do menino.
Sabem os céus que você não o merece, depois do que fez no ano passado. No entanto,
sar de certas deficiências, para as quais repetidamente chamei sua atenção, você fez alg
um progresso em relação aos dogmas capitais. Assim uma pausa dramática , acho que está n
hora de fazer sua primeira invocação.
Emitiu esta última frase em tons lentos e sonoros evidentemente de propósito para en
cher o menino de temor. Mas Nathaniel, como agora me agradava tanto chamá-lo, esta
va distraído. Tinha uma aranha no pensamento. Seu embaraço não passou despercebido a U
nderwood. O mago bateu peremptoriamente na mesa para atrair a atenção do pupilo.
Ouça, menino! disse. Se você se aflige à mera perspectiva de uma invocação, nun
mesmo agora. Um mago bem-preparado não tem medo de nada. Está entendendo?
O garoto concentrou-se e fixou a atenção em seu mestre.
Sim, senhor. É claro, senhor.
Além disso, estarei com você o tempo todo, durante a invocação, em um círculo adjacente. T
erei uma dúzia de feitiços protetores à mão e bastante alecrim em pó. Começaremos com um de
io inferior, um diabrete sapo-cururu.26 Se isso der certo, passaremos a um bolor
ento.27
Foi uma medida de quanto esse mago era desatento, não ter percebido a chama de des
prezo que lampejou nos olhos do garoto. Ele só ouviu a voz muito fracamente ansios
a.
Sim, senhor. Estou esperando muito por isso, senhor.
Excelente. Tem as suas lentes?
Sim, senhor. Chegaram semana passada.
Ótimo. Então, só existe mais uma providência que precisamos tomar, e que é...
Seria a porta, senhor?
Não me interrompa, menino. Como ousa? A outra providência, que não tomarei se você volta
r a ser insolente, é a escolha do seu nome oficial. Daremos atenção a isso esta tarde.
Leve o Almanaque Nominativo de Loew para mim na biblioteca depois do almoço e jun
tos escolheremos um nome para você.
Sim, senhor.
Os ombros do menino desabaram; mal se ouvia a sua voz. Ele não precisava ver-me da
ndo cambalhotas na teia, para saber que eu tinha ouvido e entendido.
Nathaniel não era seu nome oficial! Era seu nome real! O insensato havia me invoca
do antes de relegar seu nome de batismo ao esquecimento. E agora eu sabia! Under
wood remexeu-se na poltrona.
Bem, o que está esperando, garoto? Isso não é hora de folgar, você ainda tem horas
tudo antes do almoço. Ponha-se a caminho.
Sim, senhor. Obrigado, senhor.
O garoto seguiu desanimadamente até a porta. Rangendo as mandíbulas de satisfação, eu o
segui com uma cambalhota inversa especial, concluída com uma guinada em chute octo
nário.
Eu agora tinha uma chance contra ele. As coisas estavam um pouquinho mais equili
bradas. Ele sabia meu nome, eu sabia o dele. Ele tinha seis anos de experiência, e
u tinha cinco mil e dez. Era esse o tipo de chance que se podia aproveitar.
Acompanhei-o escada acima. Ele agora estava fazendo cera, arrastando cada passo.
Vamos lá, vamos logo! Volte ao seu pentagrama. Eu seguia veloz, doido para o confr
onto começar.
Deixa estar, jacaré, que a lagoa há de secar...
Nathaniel
12
Certo dia de verão, quando Nathaniel tinha dez anos de idade, estava sentado com s
ua professora no banco de pedra do jardim, desenhando o pé de castanha-da-índia atrás
do muro. O Sol batia em cheio nos tijolos vermelhos. Um gato branco e cinza se r
efestelava no alto do muro, sacudindo indolentemente o rabo de um lado para o ou
tro. Uma brisa suave remexia as folhas da árvore e trazia um fraco perfume dos arb
ustos de rododendros. O limo sobre a estátua do homem com o forcado de raios cinti
lava intensamente à luz amarela do Sol. Insetos zumbiam. Foi o dia em que tudo mud
ou. - Paciência, Nathaniel.
Já disse isso tantas vezes, sra. Lutyens.
E não tenha dúvida de que vou dizer de novo. Você é impaciente demais. É o seu maior defei
to.
Nathaniel hachurou irritadamente os riscos enviesados de uma mancha de sombra.
Mas é tão frustrante exclamou. Ele nunca me deixa tentar nada. Só o que tenho p
de fazer é arrumar as velas, o incenso e outros troços que eu conseguiria fazer dorm
indo e de cabeça para baixo! Não me é permitido nem falar com eles.
O que também está bastante correto disse a sra. Lutyens com firmeza. Lembre-se, eu só
quero um sombreado sutil. Nada de linhas carregadas.
É ridículo. Nathaniel fez uma careta. Ele não se dá conta do que eu posso fazer. Li tod
s os livros dele e...
Todos eles?
Bem, todos os de sua estante pequena, e ele me disse que esses me manteriam prog
redindo até os doze anos. E ainda não tenho nem onze, sra. Lutyens. Quer dizer, já dom
inei as palavras de ordem e controle, a maioria delas; eu saberia dar uma ordem
a um djim, se ele o invocasse para mim. Mas ele não me deixa nem tentar.
Não sei o que mais me desagrada, Nathaniel, se sua bravata ou a sua petulância. Devi
a parar de se preocupar com o que ainda não tem e apreciar o que tem agora. Este j
ardim, por exemplo. Estou muito satisfeita por ter pensado em fazermos a nossa a
ula aqui fora hoje.
Venho para cá sempre que posso; me ajuda a pensar.
Isso não me surpreende. É sossegado, solitário. E há poucos lugares agradáveis e bons como
este em Londres, portanto seja grato.
Ele me faz companhia. Nathaniel indicou a estátua. Gosto dele, mesmo não sabendo que
m é.
Esse? A sra. Lutyens ergueu os olhos do caderno de desenho, mas continuou desenh
ando. Oh, isso é fácil. Esse é Gladstone.
Quem?
Gladstone. É claro que você conhece. O sr. Purcell não lhe ensina história recente?
Demos política contemporânea.
Recente demais. Gladstone morreu há mais de cem anos. Ele foi um grande herói de sua
época. Devem ter sido feitas milhares de estátuas dele, espalhadas por todo o país. E
com muita justiça, do seu ponto de vista. Você deve muito a ele.
Nathaniel estava intrigado.
Por quê?
Ele foi o mago mais poderoso entre todos que se tornaram primeiros-ministros. El
e dominou a era vitoriana durante trinta anos e colocou as facções conflitantes de m
agos inimigos sob controle do governo. Você deve ter ouvido falar do duelo dele co
m o bruxo Disraeli em Westminster Green, não? Devia ir lá ver. As marcas de queimado
ainda estão à vista. Gladstone era famoso por sua suprema energia e implacável resistên
cia quando as coisas estavam difíceis. Ele nunca desistiu de sua causa, mesmo quan
do as coisas pareciam ruins.
Puxa. Nathaniel fitou o rosto severo, olhando de baixo de sua cobertura de limo.
A mão de pedra segurava seu raio relaxada e confiantemente, pronta para atirá-lo. P
or que aconteceu esse duelo, sra. Lutyens?
Creio que Disraeli fez uma observação grosseira sobre uma amiga de Gladstone. Isso f
oi um grande erro. Gladstone nunca deixava alguém insultar sua honra ou a de seus
amigos. Ele era muito enérgico e bastante disposto a desafiar qualquer um que o tr
atasse mal.
Ela soprou carvão de seu desenho e ergueu-o para examiná-lo criticamente à plena luz.
Gladstone fez mais do que qualquer um para ajudar Londres a ascender à proeminência
na magia. Naquela época Praga ainda era a cidade mais poderosa do mundo, mas o tem
po de seu auge há muito havia passado; estava velha e decadente e seus magos vivia
m brigando nos cortiços do gueto. Gladstone proporcionou novos ideais, novos proje
tos. Ele atraiu muitos magos estrangeiros para cá, adquirindo certas relíquias. Lond
res tornou-se o lugar certo para se viver. Como continua, seja lá como for. Como e
u disse, você devia ser grato.
Nathaniel olhou para ela.
O que quer dizer com "seja lá como for"? Por acaso será ruim de algum modo?
A sra. Lutyens franziu os lábios.
O sistema vigente é muito benéfico para magos e uns poucos outros sortudos que se a
ontoam em volta deles. E menos para todos os demais. Agora vejamos como vai o se
u desenho.
Alguma coisa no tom em que ela falou despertou a indignação de Nathaniel. Suas aulas
com o sr. Purcell vieram-lhe à cabeça em uma torrente.
Não deveria falar assim do governo disse ele. Sem magos, o país estaria indefeso! Os
plebeus iam governar e o país cairia aos pedaços. Os magos dão vida pela segurança do p
aís! Devia lembrar-se disso, sra. Lutyens. Até à seus próprios ouvidos, sua voz pareceu
meio estridente.
Tenho certeza de que, quando crescer, você fará muitos sacrifícios expressivos, Nathan
iel. Ela falou muito mais asperamente do que de costume. Mas, na verdade, nem to
dos os países têm magos. Muitos se saem muito bem sem eles.
A senhora parece saber bastante sobre isso tudo.
Para uma simples professora de desenho? Será que percebo surpresa na sua voz?
Bem, a senhora é apenas uma plebéia. Ele parou de súbito, ruborizado. Lamento, não prete
dia...
Tem toda razão disse a sra. Lutyens secamente , eu sou plebéia. Mas os magos não detêm m
nopólio completo do conhecimento, como sabe. Longe disso. E, de qualquer maneira,
conhecimento e inteligência são coisas muito diferentes. Como você um dia vai descobri
r.
Durante alguns minutos eles se ocuparam com seus papéis e canetas, e não falaram. O
gato sobre o muro lançou uma pata indolente contra uma vespa que circulava. Por fi
m, Nathaniel rompeu o silêncio.
Não quis tornar-se maga, sra. Lutyens? perguntou com uma voz miúda.
Ela deu um risinho seco.
Não tive esse privilégio disse ela. Não, sou só uma professora de arte e feliz
Nathaniel tentou de novo.
O que faz quando não está aqui? Comigo, quer dizer.
Estou com outros alunos, é claro. O que estava pensando... que eu ia para casa me
lastimar? O sr. Underwood não me paga o suficiente para eu ficar me lastimando, cr
eio. Tenho de trabalhar.
Oh. Nunca ocorrera a Nathaniel que a sra. Lutyens podia ter outros alunos. De al
gum modo, esse conhecimento lhe deu a sensação de um nó levemente apertado na boca do
estômago.
Talvez a sra. Lutyens tenha pressentido isso; após uma rápida pausa, ela voltou a fa
lar, e de um modo menos frígido.
De qualquer modo disse , espero muito por minhas aulas aqui. É um dos pontos alt
da minha semana de trabalho. Você é uma boa companhia, mesmo estando sempre propenso
a apressar as coisas e achar que sabe tudo. Então, anime-se e deixe-me ver como s
e saiu com essa árvore.
Após alguns minutos de calma discussão sobre questões ligadas à arte, a conversa retomou
seu decurso pacífico habitual, mas logo a aula era suspensa pela chegada inespera
da da sra. Underwood, toda afobada.
Nathaniel! gritou. Você está aqui!
Tanto a sra. Lutyens quanto Nathaniel se levantaram respeitosamente.
Estive procurando você por toda parte, querido disse a sra. Underwood, respirando
com dificuldade.
Achei que você estaria na sala de aula...
Sinto muitíssimo, sra. Underwood desculpou-se a sra. Lutyens. É que estava um dia tão
bonito...
Oh, não tem importância. Tudo bem quanto a isso. E só que meu marido quer a presença de
Nathaniel imediatamente. Ele está com visitas e gostaria de apresentá-lo.
Então, aí está ele disse baixinho a sra. Lutyens, enquanto deixavam apressadas o jardi
m.
O sr. Underwood não o deprecia, de modo nenhum. Deve estar muito satisfeito com vo
cê, para apresentá-lo a outros magos. Ele quer exibi-lo!
Nathaniel sorriu fracamente, mas não disse palavra. A idéia de conhecer outros magos
o fez sentir-se bastante constrangido. Durante todos os anos que passara naquel
a casa, nem uma única vez lhe fora permitido conhecer os colegas profissionais de
seu mestre, que apareciam por lá de vez em quando. Ele era sempre despachado para
o seu quarto, ou mantido à distância, com seus professores, lá em cima. Esse desenrola
r dos acontecimentos era novo e empolgante, ainda que assustador. Imaginou uma s
ala abafada, cheia de homens do poder, altos e graves, olhares iracundos sobre e
le, por cima de suas barbas hirsutas e capas agitadas. Seus joelhos tremiam com
a expectativa.
Eles estão na sala de visitas disse a sra. Underwood quando entraram na cozinha. D
eixe-me dar uma olhada em você... Ela molhou o dedo e retirou apressadamente uma m
ancha de grafite de sua têmpora. Bastante apresentável. Muito bem, pode ir para lá.
A sala estava cheia, nisso ele tinha acertado. Estava quente com os corpos, o ch
eiro do chá e o esforço de conversa educada. Mas quando Nathaniel fechou a porta e a
travessou o aposento, para ocupar o único lugar disponível, no canto de uma cômoda orn
amental, suas visões grandiosas de um grupo de homens importantes já haviam se evapo
rado. Eles simplesmente não faziam o tipo.
Não havia uma capa ou um manto à vista. Muito poucas e raras barbas à mostra, e nenhum
a nem a metade tão impressionante quanto a de seu próprio mestre. A maioria dos home
ns usava ternos sem graça com gravatas mais sem graça ainda; só uns poucos ostentavam
acréscimos ousados, como um colete cinzento ou um lenço projetando-se do bolso do pa
letó. Todos usavam sapatos pretos lustrosos. Nathaniel sentiu-se como se houvesse
ido parar em uma reunião no escritório de uma funerária. Nenhum deles se parecia com G
ladstone, na força ou no porte. Alguns eram baixos, outros velhos e ranzinzas, mai
s de um, propensos à gordura. Falavam animadamente uns com os outros, bebericando
chá e mordiscando biscoitos secos, e nenhum deles erguia a voz acima do murmúrio de
consenso.
Nathaniel estava profundamente decepcionado. Enfiou as mãos nos bolsos e respirou
fundo.
Seu mestre abria caminho aos poucos entre a multidão, trocando apertos de mão e solt
ando seu peculiar risinho feito um latido sempre que uma das visitas dizia algo
que ele achava ter tido a intenção de ser engraçado. Avistando Nathaniel, fez-lhe sina
l para que se aproximasse; Nathaniel espremeu-se entre uma bandeja de chá e a barr
iga protuberante de alguém e aproximou-se.
Este é o menino disse o mago asperamente, dando um tapinha no ombro de Nathaniel,
em um gesto desajeitado.
Três homens baixaram os olhos sobre ele. Um era velho, cabelos brancos, com um ros
to rubro, de tomate seco, coberto de rugas minúsculas. Outro era um tipo pálido e al
go pastoso, na meia-idade; sua pele tinha um aspecto de fria e viscosa, como um
peixe sobre uma pedra de balcão. O terceiro era muito mais jovem e bem-apessoado,
com os cabelos esticados para trás, óculos redondos e uma seqüência de dentes luzindo de
brancos, nas proporções de um xilofone. Nathaniel retribuiu-lhes o olhar em silêncio.
Não parece grande coisa disse o sujeito frio e viscoso. Ele fungou e engoliu algum
a coisa.
Devagar ele vai aprendendo disse o mestre de Nathaniel, a mão ainda dando tapinhas
no ombro do garoto, de um modo desligado que sugeriu estar ele pouco à vontade.
Ele é lento, não é? disse o velho. Falou com um sotaque tão carregado, que Nathaniel mal
conseguiu entender as palavras.
Sim, alguns garotos o são. Deve-se perseverar.
Você bate nele? disse o homem viscoso.
Raramente.
Imprudente. Isso estimula a memória.
Quantos anos você tem, menino? perguntou o mais moço.
Dez, senhor disse Nathaniel educadamente. Onze em nov...
Ainda faltam uns dois anos para que ele lhe sirva de alguma coisa, Underwood dis
se o mais jovem, interrompendo Nathaniel como se este não existisse.
Sai-lhe por uma fortuna, suponho.
O que, casa e comida? É claro.
Aposto que ele come feito uma doninha.
Voraz, não é? disse o velho. Ele assentiu como quem se lamenta. É, alguns meninos o são
Nathaniel ouviu isso com mal contida indignação.
Não sou voraz, senhor disse com sua voz mais cortês. Os olhos do velho chisparam em
direção a ele e voltaram a se desviar, como se não tivesse ouvido; mas a mão do mestre d
esceu sobre seu ombro com alguma força.
Bem, garoto, agora deve voltar para seus estudos disse ele. Vá, depressa.
Nathaniel estava feliz por ir embora, mas quando começou a sair de fininho o homem
moço de óculos ergueu a mão.
Vejo que não tem papas na língua disse ele. Não tem medo dos mais velhos.
Nathaniel não disse nada.
Talvez não ache que sejam seus superiores também?
O homem falou suavemente, mas o fio cortante em sua voz era claro. Nathaniel ent
endeu de imediato que ele próprio não era o que estava em questão, e que o moço estava d
esafiando seu mestre por meio dele. Sentiu que devia responder, mas a pergunta o
confundiu tanto que ele não sabia se devia dizer sim ou não.
O moço interpretou mal seu silêncio.
Ele se acha bom demais para sequer falar conosco! disse a seus companheiros e ar
regalou um sorriso.
O homem viscoso cobriu a boca com a mão para abafar um riso úmido, e o homem mais ve
lho, o de rosto rubro, sacudiu a cabeça.
Ele te pegou disse.
Vá, depressa, menino repetiu o mestre de Nathaniel.
Espere um pouco, Underwood disse o moço, abrindo um largo sorriso. Antes que ele s
e vá, vamos ver o que você ensinou a esse seu bichinho. Vai ser divertido. Venha cá, r
apaz.
Nathaniel olhou para seu mestre, que não acolheu o olhar. Devagar e de má vontade el
e se aproximou do grupo. O moço estalou os dedos, com um floreio da mão, e falou a t
oda velocidade.
Quantos tipos de espíritos há classificados? Nathaniel respondeu com uma pausa.
Treze mil e quarenta e seis, senhor.
E não classificados?
Petronius postula quarenta e cinco mil; Zavattini, quarenta e oito mil, senhor.
Qual é o modus apparendi do subgrupo cartaginês?
Eles aparecem, senhor, como criancinhas chorando ou como doppelgängers28 do mago e
m sua juventude.
Como se deveria castigá-los?
Fazendo-os beber um tonel de leite de jumenta.
Humm. Ao invocar um basilisco, que precauções se deveria tomar?
Usar óculos espelhados, senhor. E cercar o pentagrama com espelhos em dois outros
lados também, para forçar o basilisco a olhar na outra direção, onde suas instruções por es
rito estarão à espera.
Nathaniel estava ganhando confiança. Guardara detalhes simples como esses na memória
há muito tempo e estava satisfeito por notar que suas respostas absolutamente cer
tas estavam exasperando o moço. Seu sucesso também fizera parar os risinhos abafados
do homem viscoso, e o velho mago, que escutava com a cabeça inclinada de lado, até
assentira afirmativamente, de má vontade, uma ou duas vezes. Ele notou seu mestre
sorrindo, um tanto presunçosamente. Não que alguma coisa disso se deva a você, pensou
Nathaniel maldosamente. Eu li tudo isso. Você me ensinou quase nada.
Pela primeira vez houve uma pausa no bombardeio de perguntas do moço. Ele parecia
estar pensando.
Está bem disse ele finalmente, falando muito mais devagar agora e rolando as pala
ras voluptuosamente sobre a língua , quais são as seis palavras de ordem? Em qualquer
língua.
Arthur Underwood soltou um protesto chocado:
Tenha dó, Simon! Ele ainda não pode saber isso! Mas, enquanto ele ainda falava, Nath
aniel já estava abrindo a boca. Essa era uma fórmula contida em diversos dos livros
da grande estante de seu mestre, que Nathaniel já andava folheando.
Appare; Mane; Ausculta; Se Dede; Pare; Redi.... Aparece; Fica; Ouve; Submeta-se;
Obedeça; Retorne. Ele olhou o mago moço nos olhos, ao terminar, consciente de seu t
riunfo.
A platéia murmurou sua aprovação seu mestre agora exibia um sorriso escancarado, o hom
em viscoso ergueu as sobrancelhas e o velho fez uma cara enviesada, soltando bai
xinho:
Bravo.
Mas seu interrogador limitou-se a dar de ombros desdenhosamente, como se o incid
ente fosse insignificante. Parecia tão arrogante, que Nathaniel sentiu a auto-sati
sfação se transformando em uma raiva feroz.
Os padrões devem ter caído muito disse o mais moço, tirando um lenço do bolso e l
uma mancha imaginária em sua manga , para ser elogiado por declamar algo que todos
aprendemos quando ainda estávamos mamando no peito.
Você é só um derrotado despeitado disse Nathaniel.
Houve um momento de silêncio. O moço vociferou uma palavra e Nathaniel sentiu algo p
equeno e compacto cair pesadamente sobre seus ombros. Mãos invisíveis agarraram seu
cabelo, puxando-o para trás com uma força violenta, de forma que seu rosto ficou vol
tado para o teto e ele soltou um grito de dor. Tentou erguer os braços, mas descob
riu que estes estavam presos aos lados do corpo por um anel terrivelmente vigoro
so que se enroscava nele como uma língua gigante. Não conseguia ver nada além do teto;
dedos delicados faziam cócegas em seu pescoço exposto com horrível sutileza. Em pânico,
clamou por seu mestre.
Alguém se aproximou, mas não era o mestre. Era o moço.
Seu trombadinha presunçoso disse baixinho o moço. O que vai fazer agora? Pode s
tar? Não. Mas que surpresa: está impotente. Conhece algumas palavras, mas não pode faz
er nada. Talvez isso lhe ensine o perigo que é a insolência quando se é fraco demais p
ara revidar. Agora suma da minha frente.
Alguma coisa deu um risinho abafado em seu ouvido e, com um coice de pernas poss
antes, soltou-se dos ombros de Nathaniel. No mesmo instante, seus braços ficaram l
ivres. Sua cabeça tombou para frente; lágrimas brotaram-lhe dos olhos. Eram causadas
pela dor que sentia nos cabelos, mas Nathaniel temeu que parecessem o choraming
o de um menino covarde. Secou-as com a manga da camisa.
A sala estava imóvel. Todos os magos haviam parado de conversar e olhavam para ele
. Nathaniel olhou para seu mestre, apelando por amparo ou socorro, mas os olhos
de Arthur Underwood fulguravam de raiva raiva que parecia dirigida contra ele. N
athaniel devolveu um olhar vazio, virou-se e atravessou a passagem silenciosa qu
e se abriu para ele ao longo da sala, estendeu a mão para à porta, abriu-a e saiu.
Fechou a porta cuidadosa e silenciosamente às suas costas.
Pálido e sem expressão, subiu as escadas.
Enquanto subia, encontrou a sra. Underwood, que vinha descendo.
Como foi, querido? perguntou ela. Você brilhou? Há algo errado?
Nathaniel não conseguiu olhar para ela, de tanto desgosto e vergonha. Ia passar po
r ela sem responder, mas, no último momento, deteve-se de repente.
Foi ótimo respondeu. Diga-me, a senhora sabe quem era o mago com os óculos pequ
e uma larga fieira de dentes brancos?
A sra. Underwood franziu o cenho.
Acho que era Simon Lovelace. Ministro-menor do Comércio. Ele tem mesmo uma senhora
dentadura, não é? Uma estrela em ascensão, eu soube. Você o conheceu?
Sim. Conheci.
Você não pode fazer nada.
Tem certeza que está tudo bem? Está tão pálido.
Sim, obrigado, sra. Underwood. Agora vou subir.
A sra. Lutyens está esperando por você na sala de aula. Você está impotente.
Vou direto para lá, sra. Underwood.
Nathaniel não foi para a sala de aula. A passo lento e firme, seguiu até a sala de t
rabalho de seu mestre, onde a poeira sobre os vidros sujos reluzia à luz do Sol, o
bscurecendo seus conteúdos em conserva.
Nathaniel caminhou ao longo da mesa de trabalho toda marcada de sulcos e arranhões
, a qual estava coberta de diagramas em que ele andara trabalhando na véspera.
Você é fraco demais para revidar.
Ele parou e estendeu a mão para uma pequena caixa de vidro, dentro da qual seis ob
jetos zumbiam e se agitavam. Vamos ver.
À passo lento e firme, Nathaniel atravessou a sala até um armário de parede e abriu um
a gaveta. Estava tão cheia e carregada que emperrou no meio do caminho e ele teve
de pousar cuidadosamente a caixa de vidro sobre a superfície de trabalho para pode
r abri-la com alguns fortes puxões. Dentro da gaveta, em meio a um monte de outras
ferramentas, havia um martelinho de aço. Nathaniel tirou-o da gaveta, voltou a pe
gar a caixa e, largando a gaveta aberta, saiu da sala ensolarada.
Ficou parado na sombra fresca do patamar, ensaiando silenciosamente as palavras
de ordem e controle. Na caixa de vidro as seis pequenas criaturas se ativaram pa
ra a frente e para trás com grande entusiasmo; a caixa vibrava em suas mãos.
Você não á capaz de nada.
A reunião estava acabando. A porta se abriu e os poucos magos saíram em grupinhos. O
sr. Underwood os acompanhou até a porta. Houve troca de palavras educadas e de de
spedidas. Nenhum deles notou o menino de rosto pálido olhando da escada.
Era preciso dizer o nome depois das três primeiras ordens, mas antes da última. Não er
a difícil demais, contanto que não se tropeçasse nas sílabas mais rápidas. Ele repassou tu
do na cabeça. Sim, estava tudo otimamente preparado.
Mais magos foram embora. Os dedos de Nathaniel estavam frios. Havia uma fina cam
ada de suor entre eles e a caixa que seguravam.
O mago mais moço e seus dois companheiros saíram do saguão de entrada. Conversavam ani
madamente, dando risinhos por causa de uma observação feita pelo homem da pele visco
sa. A passo relaxado, aproximaram-se do mestre de Nathaniel, que esperava à porta.
Nathaniel segurou o martelo com mais firmeza.
Estendeu a caixa de vidro à sua frente. Ela sacudia por dentro.
O velho estava apertando a mão do sr. Underwood. O moço era o próximo da fila, olhando
para a rua como se ansioso para ir embora.
Nathaniel deu em voz alta as três primeiras ordens, disse o nome de Simon Lovelace
e disse então a palavra final.
E, aí, arrebentou a caixa.
Um estalo forte, um zumbido feroz. Estilhaços caíram em cascata sobre o tapete. As s
eis minúsculas criaturas precipitaram-se para fora de sua prisão e dispararam escada
s abaixo, seus ferrões ávidos projetando-se para a frente.
Os magos mal tiveram tempo de olhar antes que os pequenos demônios estivessem sobr
e eles. Foram direto para o rosto de Simon Lovelace; erguendo a mão, este fez um ráp
ido sinal. Imediatamente, cada criaturinha explodiu em uma bola de fogo e se des
viaram depressa em um ângulo, para explodir contra a parede. Os três outros desobede
ceram a suas ordens. Dois dispararam rumo ao mago viscoso, de rosto pastoso; com
um grito, ele recuou trôpego, tropeçou na soleira da porta e foi cair na trilha do
jardim. As coisinhas pulavam e mergulhavam para cima dele, procurando carne expo
sta. Ele agitou os braços furiosamente em frente ao rosto, mas de nada lhe valeu.
Várias picadas foram feitas com sucesso, cada qual acompanhada de um uivo de sofri
mento. A sexta criatura aproximou-se veloz do velho. Ele pareceu não fazer nada, m
as quando estava a apenas centímetros de seu rosto, o diabinho de repente se detev
e e inverteu de sentido freneticamente, rodopiando em pleno ar. Perdeu o control
e enquanto girava, e foi cair perto de Simon Lovelace, que o esmagou com o pé sobr
e o tapete.
Arthur Underwood ficara olhando isso horrorizado; agora conseguira se recompor.
Atravessou a soleira até onde seu visitante se contorcia sobre o canteiro de flore
s e bateu as mãos com um estalo agudo. Os dois diabinhos ferozes caíram ao chão como q
ue atordoados.
Nesse ponto, Nathaniel achou melhor bater em ajuizada retirada.
Escafedeu-se para a sala de aula, onde a sra. Lutyens estava sentada à mesa, lendo
uma revista. Ela sorriu quando ele entrou.
Como se saiu? Parece uma reunião muito agitada para esta hora do dia. Tenho certez
a de que ouvi um copo se quebrando.
Nathaniel não disse nada. Viu em sua mente os três diabinhos explodindo inocuamente
contra a parede. Começou a tremer se de medo ou decepção furiosa, não sabia.
A sra. Lutyens pôs-se em pé instantaneamente.
Nathaniel, venha cá. Qual é o problema? Você parece mal! Está tremendo!
Passou o braço em torno dele e deixou que ele repousasse a cabeça suavemente sobre o
lado de seu corpo. Ele fechou os olhos. Tinha as faces afogueadas; sentia frio
e calor, tudo ao mesmo tempo. Ela ainda estava falando com ele, mas ele não conseg
uia responder-lhe...
Nesse momento a porta da sala de aula foi escancarada.
Simon Lovelace postou-se à porta, seus óculos lampejando à luz vinda da janela. Ele de
u uma ordem. O corpo de Nathaniel foi arrancado do braço da sra. Lutyens e carrega
do pelo ar. Por um momento, ele pairou suspenso entre o teto e o chão, tempo sufic
iente para ver os outros dois magos amontoados atrás do que viera à frente, e também,
relegado ao final do grupo, e quase fora de vista, seu mestre.
Nathaniel ouviu a sra. Lutyens gritar alguma coisa, mas então ele foi posto para c
ima, o sangue afluiu depressa a seus ouvidos e todos os demais sons foram abafad
os. Ele pendia com a cabeça, os braços e as pernas balançando em direção ao tapete e o tra
seiro para cima. E então uma mão invisível ou uma vara de marmelo invisível atingiu-o em
cheio no traseiro. Ele gritou, se contorceu, chutou em todas as direções. A mão desce
u de novo, com mais força do que antes. E, então, mais uma vez...
Muito antes que a mão incansável acabasse seu trabalho, Nathaniel havia parado de ch
utar. Ficou pendendo molemente, consciente apenas da ardência de dor e da ignomínia
de seu castigo. O fato de que a sra. Lutyens o testemunhara tornava-o muito mais
brutal do que ele podia suportar. Desejou ardentemente morrer. E quando finalme
nte uma escuridão começou a se formar e a levá-lo a apagar, ele a acolheu com prazer d
e todo o coração.
As mãos o soltaram, mas ele já estava inconsciente quando bateu no chão.
Nathaniel passou um mês confinado em seu quarto e sujeito a um grande número de outr
os castigos e privações. Após a série inicial de penalidades, seu mestre decidiu não falar
com ele, e o contato com qualquer outra pessoa com a exceção da sra. Underwood, que
lhe trazia suas refeições e cuidava de seu penico cessou imediatamente. Nathaniel não
tinha aulas nem lhe eram permitidos livros. Ficava sentado em seu quarto do ama
nhecer até o crepúsculo, olhando pela janela, sobre os telhados de Londres em direção às d
istantes Casas do Parlamento.
Tal solidão poderia tê-lo levado à loucura, se ele não houvesse descoberto uma esferográfi
ca largada embaixo de sua cama. Com ela e algumas folhas velhas de papel, conseg
uiu matar parte do tempo com uma série de desenhos do mundo do outro lado da janel
a.
Quando isso tornou-se tedioso, Nathaniel dedicou-se, como alternativa, a compila
r um grande número de listas e anotações minuciosamente detalhadas, escritas sobre seu
s desenhos, que ele escondia debaixo do colchão, sempre que ouvia passos subindo a
escada. Essas notas continham o início de sua vingança.
Para grande aflição de Nathaniel, a sra. Underwood fora proibida de falar com ele. E
mbora percebesse alguma compreensão e solidariedade em seus modos, o silêncio dela p
roporcionava-lhe triste consolo. Fechou-se dentro de si mesmo e não falava quando
ela entrava.
Foi só quando seu mês de isolamento chegou ao fim e suas aulas recomeçaram que ele des
cobriu que a sra. Lutyens havia sido dispensada.
13
Durante o longo e úmido outono, Nathaniel recolhia-se ao jardim, sempre que lhe er
a possível. Quando o tempo estava bom, ele pegava livros das prateleiras de seu me
stre e devorava seu conteúdo com uma avidez sem piedade, enquanto as folhas secas
choviam sobre o banco de pedra e o gramado. Em dias chuvosos, ele se sentava e f
icava a olhar os arbustos pingando, os pensamentos indo e vindo por familiares c
aminhos de amargura e vingança.
Fez rápido progresso nos estudos, pois sua mente estava inflamada de ódio. Todos os
ritos de invocação, todos os feitiços de que um mago poderia se cercar para evitar ata
ques, todas as palavras poderosas que submetiam o demônio desobediente ou o despac
havam em um instante, Nathaniel os estudava e guardava na memória. Caso se deparas
se com uma passagem difícil talvez escrita em língua copta ou da Samaria ou escondid
a em algum tortuoso código rúnico , sentindo o coração desanimar, tinha apenas que erguer
os olhos para a estátua verde-cinza de Gladstone para recuperar a determinação.
Gladstone vingara-se de qualquer um que o houvesse ofendido: defendera sua honra
e era louvado por isso. Nathaniel planejava fazer o mesmo, mas não era mais domin
ado pela impaciência, de agora em diante só a usava como estímulo para ir em frente. S
e havia uma lição dolorosa que tivesse aprendido era a de não agir enquanto não estivess
e realmente pronto, e ao longo de muitos meses longos e solitários trabalhou incan
savelmente em direção a seu primeiro objetivo: a humilhação de Simon Lovelace.
Os livros de história que Nathaniel estudava estavam cheios de inúmeros episódios em q
ue magos rivais haviam se confrontado. Às vezes venciam os magos mais poderosos, e
, no entanto, esses com freqüência haviam sido derrotados por ação furtiva ou por malícia.
Nathaniel não tinha a menor intenção de desafiar seu formidável inimigo de frente pelo
menos não enquanto não houvesse ganhado força. Ele o derrubaria por outros meios.
Suas aulas propriamente ditas nessa época eram uma distração tediosa. Assim que foram
retomadas, Nathaniel adotou imediatamente uma máscara de obediência e contrição destinad
a a convencer Arthur Underwood de que sua ação perversa era agora, para ele, motivo
da mais profunda vergonha. Essa máscara nunca escorregou, mesmo quando era mandado
realizar as tarefas mais banais e cansativas na sala de estudo. Se o mestre lhe
passava um sabão por algum erro à toa, Nathaniel não deixava que nem um lampejo de de
sagrado lhe cruzasse o rosto. Ele simplesmente abaixava a cabeça e se apressava a
corrigir o erro. Era, exteriormente, o aprendiz perfeito, deferente para com seu
mestre de todos os modos e por certo jamais expressando qualquer impaciência com
o ritmo de tartaruga com que seus estudos agora progrediam.
Na verdade, isso era porque Nathaniel não encarava mais Arthur Underwood como seu
verdadeiro mestre. Seus mestres eram os magos de antigamente, que lhe falavam at
ravés de seus livros, permitindo-lhe aprender no seu próprio ritmo e proporcionando
a sua mente maravilhas em perpétua multiplicação. Não condescendiam com ele, nem o traíam.
Arthur Underwood havia perdido seu direito ao respeito e à obediência de Nathaniel n
o momento em que não o protegeu dos escárnios e ataques físicos de Simon Lovelace. Iss
o, Nathaniel sabia, simplesmente não era correto. Todo aprendiz recebia a lição de que
seu mestre era efetivamente seu pai. Ele ou ela o protegia até ter idade suficien
te para se defender sozinho. Arthur Underwood não fizera isso. Ficara de lado, ass
istindo à injusta humilhação de Nathaniel, primeiro na reunião, depois na sala de aula.
E por quê? Porque era um covarde e temia o poder de Lovelace.
Pior ainda, tinha despedido a sra. Lutyens.
De rápidas conversas com a sra. Underwood, Nathaniel ficou sabendo que, enquanto e
stivera pendurado no ar, apanhando do diabrete de Lovelace, a sra. Lutyens fizer
a o possível para ajudá-lo. Oficialmente, fora demitida por "insolência e impertinência"
, mas sugeriu-se que ela tinha efetivamente tentado bater no sr. Lovelace, só impe
dida de fazê-lo pelos colegas do mago. Quando pensava nisso, o sangue de Nathaniel
fervia com ainda mais força do que quando pensava em sua própria humilhação. Ela tentar
a protegê-lo e, por ter feito isso, seu mestre a havia despedido.
Isso era algo que Nathaniel nunca poderia perdoar.
Tendo a sra. Lutyens ido embora, a sra. Underwood era agora a única pessoa cuja co
mpanhia dava a Nathaniel algum prazer. A afeição dela entremeava seus dias de estudo
e o aliviava do frio distanciamento de seu mestre e da indiferença de seus profes
sores. Mas não podia confiar-lhe seus planos: eram perigosos demais. Para estar se
guro e ser forte, precisava ser sigiloso. Um verdadeiro mago guarda seus segredo
s.
Após vários meses, Nathaniel impôs-se seu primeiro teste de verdade a missão de invocar
um diabrete menor. Havia riscos envolvidos, pois, embora estivesse suficientemen
te confiante quanto às fórmulas encantatórias, ele nem possuía um par de lentes de conta
to para observar os três primeiros planos nem havia recebido seu nome oficial. Esp
erava-se que as duas coisas acontecessem quando Underwood mandasse, quando ele c
omeçasse a entrar na maioridade, mas Nathaniel não podia esperar por esse dia tão dist
ante. Os óculos da sala de trabalho o ajudariam com a visão. Quanto a seu nome, não da
ria ao demônio qualquer oportunidade de aprendê-lo.
Nathaniel roubou uma velha peça de lâmina de bronze do gabinete de seu mestre e cort
ou-a, com grande dificuldade, em um tosco disco. Ao longo de diversas semanas, p
oliu e lustrou o disco, depois poliu novamente, até que ele cintilava à luz de velas
e refletia sua imagem sem defeito.
Depois esperou até um fim de semana em que tanto seu mestre quanto a sra. Underwoo
d se ausentaram. Mal o carro deles sumiu no fim da rua, Nathaniel pôs-se a trabalh
ar. Enrolou o tapete de seu quarto e, sobre as tábuas nuas do assoalho, traçou a giz
dois pentagramas simples. Suando profusamente, apesar do frio que fazia no quar
to, fechou as cortinas e acendeu as velas. Uma simples tigela de madeira de tram
azeira e de aveleira foi colocada entre os círculos (somente uma era necessária, uma
vez que o diabrete em questão era fraco e tímido). Quando estava tudo pronto, Natha
niel pegou o disco de bronze polido e colocou-o no centro do círculo em que o demôni
o devia aparecer. Então pôs os óculos no rosto, vestiu um guarda-pó todo roto que encont
rara na porta da sala de trabalho e entrou no círculo para dar início ao feitiço.
Com a boca seca, ele pronunciou as seis sílabas da invocação e chamou o nome da criatu
ra. Sua voz rachou um pouco quando ele falou e pensou que gostaria de ter tido a
previsão de colocar um copo d'água dentro de seu círculo. Não podia se dar o luxo de pr
onunciar errado uma palavra.
Esperou, contando baixinho os nove segundos que sua voz levaria para atravessar
o vácuo até o Outro Lugar. E então contou os sete segundos que levaria para a criatura
despertar ao seu nome. Finalmente, contou os três segundos que levaria para...
...um bebê nu flutuou acima do círculo, movendo os braços e as pernas como se estivess
e nadando. Fitou-o com olhos amarelos e taciturnos. Seus minúsculos lábios vermelhos
se franziram e expeliram um insolente borbulho de cuspe.
Nathaniel disse as palavras de confinamento.
O bebê gorgolejou de raiva, agitando freneticamente os braços gorduchos, enquanto su
as pernas eram puxadas para baixo, em direção ao lustroso disco de bronze. A ordem s
aiu forte demais: como se fosse subitamente sugado pelo buraco de uma tomada, o
bebê alongou-se em um fluxo de cor, que sumiu em movimento espiral pelo disco aden
tro. Por um instante foi possível ver seu rosto zangado espremendo o nariz contra
a superfície de metal, a partir de dentro; então um brilho enevoado o obscureceu e o
disco ficou vazio de novo.
Nathaniel pronunciou diversos encantos, para garantir o disco e impedir embustes
, mas estava tudo bem. Com as pernas tremendo, ele saiu de seu círculo.
Sua primeira invocação tivera sucesso.
O diabrete aprisionado era grosseiro e malcriado, mas, aplicando um pequeno enca
nto que significava um enérgico choque elétrico, Nathaniel pôde induzi-lo a revelar vi
sões verídicas de coisas acontecendo longe. Ele podia contar conversas que escutara,
além de revelá-las visualmente no disco. Nathaniel guardava seu espelho mágico rude,
mas eficiente, escondido sob as telhas junto à clarabóia, e com sua ajuda aprendeu m
uitas coisas.
Como experiência, ordenou ao diabrete que revelasse o que estava acontecendo no es
túdio de seu mestre. Após uma manhã de observação, ele descobriu que Underwood passava a m
aior parte de seu tempo ao telefone, tentando manter-se a par dos acontecimentos
políticos. Parecia estar paranóico com a idéia de que seus inimigos no Parlamento est
avam tramando sua derrubada. Nathaniel achou isso em princípio interessante, mas c
hato nos detalhes, e logo desistiu de espionar seu mestre.
Em seguida, observou de longe a sra. Lutyens. A névoa fez um redemoinho sobre o di
sco, dissipou-se e, com o coração acelerado, Nathaniel voltou a avistá-la, tal como se
lembrava dela tão bem: sorrindo, trabalhando... e ensinando. A imagem do disco de
slocou-se para o lado, revelando um aluno, um menininho desdentado, desenhando f
uriosamente em seu bloco de desenho e evidentemente agarrando-se a cada palavra
da sra. Lutyens. Os olhos de Nathaniel arderam de ciúmes e tristeza. Com voz embar
gada, ordenou que a imagem desaparecesse, rilhando os dentes ao som da risada qu
e o diabrete, feliz da vida, botou para fora.
Nathaniel então voltou a atenção para seu principal objetivo. Certa noite, já tarde, ele
ordenou ao diabrete que espionasse Simon Lovelace, mas ficou desconcertado ao v
er, em vez disso, o rosto do bebê aparecer no bronze polido.
O que está fazendo? gritou Nathaniel. Eu lhe dei uma ordem. Obedeça!
O bebê torceu o nariz e falou, com voz desconcertantemente grave.
O problema é que essa é cabulosa, né? disse ele. Ele tem barreiras erguidas. Nã
se posso ultrapassá-las. Podia disparar um monte de chateação, se bem me entende.
Nathaniel levantou a mão e agitou-a ameaçadoramente.
Está me dizendo que é impossível?
O bebê esticou cautelosamente uma língua pontuda pelo canto da boca, como lambendo v
elhas feridas.
Não impossível, não. Apenas difícil.
Pois, então.
O bebê deu um suspiro profundo e desapareceu. Após uma breve pausa, uma imagem bruxu
leante começou a se formar no disco. Ficava borrada, indistinta e pulava, como uma
televisão mal sintonizada. Nathaniel soltou uma imprecação. Estava para pronunciar as
palavras do soco punitivo, quando refletiu que provavelmente isso era o melhor
que o diabrete conseguia fazer. Curvou-se para perto do disco e olhou bem para e
le, concentrando-se na cena dentro dele...
Havia um homem sentado a uma mesa, digitando velozmente em um laptop.
Nathaniel apertou os olhos. Era Simon Lovelace, sem dúvida.
O ponto de observação do diabrete era a partir do teto, e Nathaniel tinha uma boa vi
são do restante do aposento, por trás do mago, embora um pouco distorcido, como se e
stivesse sendo visto através de uma lente olho de peixe. O aposento estava sombrio
, a única luz vinha de um abajur sobre a mesa de Lovelace. No fundo havia um jogo
de cortinas negras, estendendo-se do chão ao teto. O mago digitava. Estava usando
um smoking, com a gravata pendendo frouxa.
Uma ou duas vezes, ele coçou o nariz.
Súbito, o rosto do bebê se intrometeu na cena.
Não consigo agüentar isso muito mais disse ele, fungando. Estou cheio, né, e, como dis
se, se ficarmos por aqui tempo demais pode haver encrenca.
Vai ficar por aí enquanto eu disser que fique rosnou Nathaniel. Ele falou uma sílaba
e o bebê revirou os olhos de dor.
Está bem, está bem! Como poderia fazer isso com um bebezinho, seu monstro! O rosto t
remeluziu e se apagou, e a cena reapareceu.
Lovelace continuava sentado, ainda digitando. Nathaniel gostaria de poder olhar
mais de perto os papéis sobre a mesa, mas os magos costumavam ter sensores em suas
pessoas para detectar magia inesperada por perto. Não seria prudente chegar perto
demais. Essa era uma visão tão boa quanto...
Nathaniel deu um salto.
Havia mais alguém na sala de Simon Lovelace, parado nas sombras, junto às cortinas.
Nathaniel não o vira entrar, nem tampouco, o mago, que continuava digitando, de co
stas para o intruso. A figura era um homem alto, de compleição maciça, envolto em uma
capa de viagem, de couro, que se estendia até quase a sola de suas botas. Tanto as
botas quanto a capa estavam fortemente marcadas de lama e pelo uso. Uma barba n
egra espessa cobria-lhe a maior parte do rosto; acima dela, seus olhos faiscavam
na escuridão. Alguma coisa no aspecto dele fez a pele de Nathaniel se arrepiar.
Evidentemente a figura agora havia falado ou feito algum barulho, pois Simon Lov
elace de súbito teve um sobressalto e girou a cadeira para trás.
A imagem tremeluziu, apagou-se e reapareceu. Nathaniel xingou e forçou o rosto mai
s para perto do disco. Era como se a imagem houvesse saltado para a frente um mo
mento ou dois no tempo. Os dois estavam agora mais próximos o intruso avançara para
ficar ao lado da mesa. O mago assentiu com a cabeça, abriu uma gaveta e, tirando u
ma sacola de roupas, esvaziou-a sobre a mesa. Maços de notas de dinheiro foram des
pejados.
O disco de bronze emitiu uma voz gutural, que falava com urgência:
Só achei que devia preveni-lo e, por favor, não me golpeie de novo, mas está chegan
algum tipo de vigia. A duas salas daqui, vindo em nossa direção. Precisamos puxar o
carro, chefe, e rapidamente.
Nathaniel mordeu o lábio.
Fique onde está até o ultimíssimo momento. Quero ver pelo que ele está pagando. E grave
na memória a conversa.
O enterro é seu, chefe.
O estranho estendera uma mão enluvada por baixo da capa e estava enfiando as notas
de volta na sacola. Nathaniel estava quase pulando de frustração a qualquer momento
o diabrete sairia de cena e ele ficaria sem saber nada.
Felizmente, sua impaciência também era sentida por Simon Lovelace, que voltou a este
nder a mão, desta vez de forma mais decisiva. O estranho fez que sim com a cabeça. E
nfiou a mão dentro da capa e tirou um pequeno pacote. O mago agarrou-o e, avidamen
te, rasgou e arrancou o papel de embrulho.
A voz do diabrete soou:
Está na porta! Estamos caindo fora.
Nathaniel só teve tempo de ver seu inimigo enfiar a mão no embrulho e arrancar algo
que cintilou à luz da lâmpada e então o disco ficou vazio.
Ele deu uma ordem concisa, e o rosto do bebê apareceu relutantemente.
Isso não é tudo? Preciso puxar um ronquinho agora, posso lhe dizer. Puxa, essa foi p
or pouco. Estivemos tão perto de nos ferrar.
O que eles disseram?
Ora, bem, o que foi que eles disseram? Devo ter ouvido uns pedaços, não digo que não o
uvi, mas minha audição não é mais o que era, devido ao meu longo confinamento...
Simplesmente me diga!
O grandalhão não falou muito. Viu aquelas manchas vermelhas na capa dele, aliás? Muuui
to suspeitas. Não era ketchup, digamos assim.
Fresco, também. Dava para sentir o cheiro. Que foi que ele disse então? "Está comigo"
essa foi uma coisa que disse. E, "Primeiro quero meu pagamento." Homem de poucas
palavras, é como eu o definiria.
Era um demônio?
Com essa rude observação presumo que você queira dizer uma nobre entidade do Outro
ar? Neca. Homem.
E o que o mago disse?
Esse foi um pouco mais acessível. Bastante volúvel, na verdade. "Está com você?" fo
im que ele começou. E então ele disse: "Como foi que você...? Não, não quero saber dos det
alhes. Basta dá-lo para mim." Ele estava todo ansioso e afobado. E aí ele pegou o di
nheiro.
Era aquilo? O que era o objeto? Algum dos dois disse?
Não sei se me lembro... não, espere! Espere! Não precisa ser ruim comigo. Estou faz
o o que pediu, não estou? Quando o grandalhão entregou o pacote, ele disse algo...
O quê?
Tão baixinho, que eu quase não peguei...
O que ele disse?
Ele disse: "O Amuleto de Samarkand é seu, Lovelace." Foi o que ele disse.
Nathaniel levou quase outros seis meses até sentir-se pronto. Dominou novas áreas de
seu ofício, aprendeu ordens novas e mais imponentes e nadava todas as manhãs antes
das aulas, para aumentar sua energia. Com esses meios foi ficando forte, de ment
e e corpo.
Não foi mais capaz de espionar diretamente seu inimigo. Quer sua presença tenha sido
detectada ou não, o diabrete não conseguiu voltar a se aproximar.
Não importa. Nathaniel tinha a informação de que precisava.
Ficava sentado no jardim, enquanto a primavera se transformava em verão, bolando e
refinando seu plano. Esse plano lhe agradava. Tinha o mérito da simplicidade e o
mérito ainda maior de que ninguém em todo o mundo imaginava o seu poder. Somente ago
ra seu mestre estava encomendando suas lentes; falara desligadamente de talvez e
xperimentarem uma invocação básica no inverno. Para seu mestre, seus professores e até p
ara a sra. Underwood, ele era um aprendiz sem nenhum talento especial. E continu
aria assim enquanto ele roubava o amuleto de Simon Lovelace.
O roubo seria apenas o começo, um teste de seu próprio poder. Depois disso, se tudo
corresse bem, montaria sua armadilha.
Só o que faltava era encontrar um servidor capaz de fazer o que ele queria. Alguém p
oderoso e engenhoso o suficiente para executar seu plano, mas não tão possante que f
osse uma ameaça ao próprio Nathaniel. A hora de dominar as grandes entidades ainda não
havia chegado.
Leu de cabo a rabo as obras sobre demonologia de seu mestre. Estudou registros m
antidos através dos séculos. Leu sobre os servidores secundários de Salomão e Ptolomeu.
Por fim, escolheu:
Bartimaeus.
Bartimaeus
14
Eu sabia que ia haver uma briguinha decente quando voltássemos ao sótão, então dessa vez
me preparei direito. Primeiro, eu precisava decidir que forma assumir. Queria a
lgo que realmente o atormentasse e fizesse ele perder totalmente a tranqüilidade e
, por estranho que pareça, isso deixava de fora a maior parte de minhas formas mai
s assustadoras. Na verdade, significava aparecer como algum tipo de pessoa. E es
tranho, mas ser insultado por um espectro bruxuleante ou ser xingado por uma ser
pente alada chamejante não é metade tão chato para um mago empedernido quanto ouvi-lo
da boca de algo que pareça ser humano. Não me perguntem por quê. Isso simplesmente tem
a ver com o modo como funciona a cabeça das pessoas.
Calculei que o melhor que eu podia fazer era aparecer como outro menino mais ou
menos da mesma idade, alguém que despertasse todos os sentimentos de rivalidade e
de concorrência direta do garoto. Isso não era problema. Ptolomeu tinha quatorze ano
s quando melhor o conheci. Ptolomeu ia servir.
Depois disso, só o que restava era repassar meus mais poderosos contra-feitiços e es
perar com prazer poder voltar para o meu lugar sem demora.
Leitores perspicazes podem ter notado um novo otimismo em minha atitude para com
o garoto. E não estariam errados. Por quê? Porque eu conhecia seu nome de batismo.2
9
No entanto, verdade seja dita: ele partiu para a briga. Mal subiu a seu quarto,
vestiu o guarda-pó, pulou dentro do círculo e me invocou com voz alta. Mas não teve de
gritar; eu estava bem do lado dele, me arrastando veloz pelo chão.
Um instante depois o menininho egípcio apareceu no círculo oposto, usando seu traje
de Londres. Arreganhei um sorriso.
Nathaniel, hein? Papa-fina. Não combina muito com você. Eu imaginaria algo um pouco
mais chegado à favela, Bert ou Chuck, talvez.
O garoto estava lívido de raiva e medo; eu conseguia ver pânico em seus olhos. Ele f
ez um esforço para se controlar e assumiu uma cara fingida.
Esse não é o meu nome de verdade. Nem o meu mestre o conhece.
Siiim, certo. Quem você acha que engana?
Pode pensar o que quiser. Eu lhe ordeno agora...
Não dava para acreditar... ele estava tentando me despachar de novo! Ri na cara de
le e adotei uma pose sacana, com as mãos nos quadris e interrompi em estilo sofist
icado.
Vá ver se estou lá na esquina.
Eu lhe ordeno agora...
Tá certo, buuu, fora!
O garoto estava quase botando espuma pela boca de tão zangado.30 Ele bateu o pé, tal
como um menino pequeno no parquinho. E então conforme eu esperava esqueceu-se de
si mesmo e partiu para o ataque óbvio. Era novamente o Vício Sistemático, o preferido
do valentão.
Ele botou para fora a fórmula encantatória, e eu senti as faixas apertando.31
Nathaniel.
Falei o nome dele entredentes e sem fôlego, depois as palavras do contra-feitiço ade
quado.
As faixas imediatamente inverteram seu aperto. Expandiram-se para fora, afastand
o-se de mim, abrindo-se em círculos como ondas concêntricas em um lago. Por meio de
suas lentes, o menino viu-as vindo em sua direção. Deu um gritinho e, após um momento
de pânico, encontrou as palavras de cancelamento. Disse-as atropeladamente; as fai
xas desapareceram.
Despachei com um peteleco uma poeira inexistente da manga do meu casaco e pisque
i para ele.
Opa eu disse. Nessa você quase pôs a perder a própria cabeça.
Se o garoto houvesse parado um pouco, teria percebido o que acontecera, mas sua
fúria era grande demais. Ele provavelmente achava que havia cometido algum erro, f
alado alguma coisa fora de hora. Respirando fundo, ele procurou por algo em seu
repertório de truques malvados. Então bateu as mãos e falou de novo.
Eu não estava esperando nada tão forte quanto o Perímetro Estimulante. De cada um dos
cinco pontos do pentagrama em que eu estava, jorrou para cima uma fulgurante col
una de eletricidade, estridente e crepitante. Era como se cinco relâmpagos houvess
em sido momentaneamente capturados; em mais um instante, cada coluna havia dispa
rado em um feixe luminoso horizontal que me espetou com a força de uma lança.
Arcos de eletricidade giravam velozes em torno do meu corpo; gritei e dei uma gu
inada, arrancado do chão pela força da descarga.
Eu disse, entredentes:
Nathaniel! e então um contra-feitiço como antes.
O efeito foi imediato. A descarga se afastou de mim, joguei-me no chão. Raios e re
lâmpagos pequenos disparavam em todas as direções. O garoto se abaixou bem a tempo uma
descarga elétrica que o teria matado bonitinho atravessou direto a aba de seu jal
eco, que adejava no ar, no momento em que ele atingiu o chão. Outros raios colidir
am com sua cama e escrivaninha; um chocou-se com seu vaso de flores cortando-o p
erfeitamente em dois. O resto desapareceu paredes adentro, salpicando-as com peq
uenas marcas de queimado, em forma de asterisco. Era uma visão e tanto.
O guarda-pó do garoto lhe descera sobre o rosto. Lentamente, ele ergueu a cabeça e d
eu uma olhada para fora. Fiz-lhe um amigável sinal de positivo, com o polegar para
o alto.
Siga em frente eu disse, abrindo um largo sorriso. Um dia, se você se esforçar
e parar de cometer todos esses erros estúpidos, talvez vire um feiticeiro maduro
de verdade.
O garoto nada disse. Pôs-se penosamente de pé. Por puro acaso, ele se jogara no chão d
ireto e sem desvios, portanto ainda estava dentro do pentagrama. Não me importei.
Eu esperava algum erro que ele cometeria em seguida.
Mas seu cérebro estava de novo em ação. Ele ficou parado quieto por um minuto e avalio
u a situação.
É melhor livrar-se de mim rapidamente disse eu, em uma espécie de modo prestativo. O
velho Underwood deve estar a caminho, para ver o que é toda essa barulheira.
Não, não deve. Estamos muito no alto.
Somente dois andares.
E ele é surdo de um ouvido. Nunca escuta nada.
A patroa...
Cale a boca. Estou pensando. Você fez alguma coisa, então, das duas vezes... O que f
oi...?
Ele estalou os dedos.
Meu nome! É isso! Você o usou para neutralizar meus feitiços, maldito.
Examinei minhas unhas, as sobrancelhas erguidas.
Pode ser que sim, pode ser que não. Eu sei, e você tem de descobrir. O garoto bateu
pé de novo.
Pare com isso! Não fale assim comigo!
Assim, como?
Como acaba de fazer! Está falando como criança.
Crianças se reconhecem entre si, colega.
Isso estava divertido. Eu o exasperava de verdade. A questão do nome o fez perder
a esportiva. Estava a segundos de ter um novo ataque, dava para ver ele tinha a
postura e tudo mais. Adotei uma pose semelhante, mas defensiva, como um lutador
de sumo. Ptolomeu tinha exatamente a altura desse garoto, cabelos escuros e tudo
,32 portanto a coisa ficava bem-arrumada e simétrica.
Fazendo um esforço, o garoto se controlou. Dava para vê-lo repassando na mente todas
as suas aulas, tentando lembrar o que devia fazer. Dera-se conta de que agora u
m castigo comum do tipo tiro rápido estava fora de questão: eu simplesmente o revert
eria contra ele.
Vou descobrir outro meio murmurou sombriamente. Espere para ver.
Ooh, estou mesmo apavorado eu disse. Olhe como estou tremendo.
O garoto estava pensando intensamente. Tinha grandes bolsas cinzentas sob os olh
os. Toda vez que fazia um feitiço, ele se desgastava ainda mais, o que para mim es
tava ótimo. Sabe-se que alguns magos caíram duros, mortinhos, simplesmente de excess
o de esforço. Eles têm um estilo de vida muito estressante, coitadinhos.
Ele continuou pensando durante um longo tempo. Dei um bocejo escancarado e fiz a
parecer um relógio em meu pulso, só para poder ficar olhando para ele, com cara de s
aco cheio.
Por que não perguntar ao chefão? sugeri. Ele pode ajudá-lo.
Meu mestre? Você está de brincadeira.
Não esse velho bobo. O que o está orientando contra Lovelace. O garoto franziu a tes
ta.
Não há ninguém. Não tenho um chefe. Agora foi a minha vez de lançar um olhar vazio.
Estou agindo por minha conta. Dei um assobio.
Quer dizer que você realmente me invocou por si, sozinho? Nada mal... para uma cri
ança. Tentei parecer adequadamente sicofanta.33 Bem, então me deixe lhe dar uma dica
. A melhor coisa é você me deixar ir embora. Precisa de um descanso. Já olhou em um es
pelho recentemente? Alguém sem diabrete dentro, quer dizer. Você está com rugas de pre
ocupação. Isso não é bom na sua idade. Logo vai ter cabelos grisalhos. O que fará então, qu
ndo encontrar seu primeiro súcubo? Vai fazê-lo sair correndo, isso sim.
Sei que estava falando demais, mas não tinha como evitar. Estava preocupado. O gar
oto estava me olhando com uma expressão calculista que não me agradava.
E, além disso disse eu, se eu for embora, ninguém saberá que você tem o amuleto. Pode
lo em completo sigilo. E um bem precioso, todo mundo parece querê-lo. Ainda não lhe
contei, mas uma garota tentou me atacar para pegá-lo, quando eu estava vagando pel
a cidade. O menino franziu o cenho.
Que garota?
Reviste-me, procure aqui no meu bolso. Deixei de mencionar que foi bem isso que
a garota quase conseguiu fazer.
Ele deu de ombros.
É em Simon Lovelace que estou interessado disse ele, quase consigo mesmo. Não no amu
leto. Ele me humilhou e vou destruí-lo por causa disso.
Ódio demais é prejudicial arrisquei.
Por quê?
Hmm...
Vou lhe contar um segredo, demônio continuou ele. Pelo poder da minha magia,34 vi
como Simon Lovelace entrou em posse do Amuleto de Samarkand. Alguns meses atrás, u
m estranho, moreno, barba negra e fechado em uma capa, foi vê-lo certa noite. E le
vou-lhe o amuleto. Houve uma transação de dinheiro. Foi um encontro furtivo.
Fiz um esgar de desdém.
Que novidade há nisso? É como todos os magos negociam. Eles engordam com sigilo desn
ecessário.
E mais do que isso. Vi nos olhos de Simon Lovelace e nos olhos do estranho. Houv
e nesse negócio alguma coisa ilegal, ilícita... A capa do sujeito estava manchada de
sangue fresco.
Ainda não me impressiona. Assassinato faz parte do jogo para vocês. Isto é, você já está ob
ecado com vingança, e só tem uns seis anos de idade.
Doze.
Grande diferença. Não, não há nada incomum nisso. Esse cara com as manchas de sangue pro
vavelmente presta um serviço bastante conhecido. Ele deve estar nas Páginas Amarelas
, se você se der o trabalho de procurar.
Quero descobrir quem é ele.
Hmm. Barba negra e uma capa, hein? Isso reduz nossos suspeitos a apenas cerca de
55% dos magos de Londres. Sequer excluiu todas as mulheres.
Pare de falar! O garoto pareceria já estar cheio.
Qual é o problema? Eu achava que estávamos nos dando bem.
Eu sei que o amuleto foi roubado. Alguém foi assassinado para ele ser obtido. Quan
do descobrir quem, vou denunciar Lovelace e vê-lo destruído. Vou plantar o amuleto,
atraí-lo para ele e alertar a polícia ao mesmo tempo. Vão pegá-lo com a boca na botija.
Mas primeiro quero saber tudo sobre ele e o que ele anda aprontando. Quero conhe
cer seus segredos, saber como ele faz seus negócios, quem são seus amigos, tudo! Pre
ciso descobrir quem tinha o amuleto antes dele e o que exatamente o amuleto faz.
E preciso saber por que Lovelace o roubou. E dessa finalidade eu o encarrego, B
artimaeus...
Espere só um minuto. Não está se esquecendo de nada?
Do quê?
Conheço seu verdadeiro nome, Natanzinho. Isso significa que tenho algum poder sobr
e você. Não é mais um circuito de mão única, é?
O garoto parou para pensar.
Você não pode me causar dano com tanta facilidade agora continuei. E isso limita o s
eu espaço de manobra, segundo as minhas regras. Lance alguma coisa contra mim, e e
u devolvo no ato.
Ainda posso obrigá-lo à minha vontade. Você terá de obedecer as minhas ordens.
Isso é verdade. Suas ordens são os termos nos quais estou neste mundo, afinal. Não pos
so violá-los sem você soltar o Fogo Atrofiante.35 Mas eu certamente posso tornar as
coisas difíceis para você enquanto executo as suas ordens. Por exemplo, enquanto est
iver espionando Simon Lovelace, por que eu não o entregaria a algum outro mago? A ún
ica coisa que me impediu de já ter feito isso foi o medo das conseqüências. Mas agora
elas não me preocupam. E mesmo que você me proíba explicitamente de dedurá-lo, descobrir
ei algum outro meio de fazer-lhe uma sujeira. Deixar escapar seu nome de batismo
, talvez, para conhecidos meus. Você não vai conseguir dormir à noite, pelo terror do
que eu possa fazer.
Ele estava abalado, isso dava para ver. Seus olhos lampejavam de um lado para o
outro, como se estivesse caçando uma falha em meu raciocínio. Mas eu estava bastante
seguro: confiar uma missão a um djim que sabe o seu nome é como atirar fósforos aceso
s em uma fábrica de fogos. Mais cedo ou mais tarde você terá conseqüências. O melhor que e
le podia fazer era me liberar e esperar que ninguém mais me convocasse enquanto el
e vivesse.
Ou assim eu achava. Mas ele era uma criança incomumente esperta e engenhosa.
Não disse lentamente , não posso impedi-lo se você quiser me trair. Só o que pos
providenciar para que sofra comigo. Vamos ver...
Começou a procurar pelos bolsos de seu jaleco mulambento.
Deve haver alguma coisa aqui em algum lugar... Ahá!
Sua mão reapareceu segurando uma latinha de metal amassada, na qual as palavras OL
D CHOKEY estavam escritas de forma ornamental.
Isso é uma lata de fumo de cachimbo! exclamei. Você não sabe que fumar mata?
Ela já não contém mais fumo disse o menino. E uma das caixas de incenso do meu mestre.
Agora está cheia de alecrim.
Ele levantou a tampa muito pouquinho; evidentemente, um instante depois uma lufa
da daquele perfume infernal chegou a mim, fazendo os cabelos de minha nuca ficar
em de pé. Algumas ervas são muito ruins para nossa essência, e o alecrim é uma delas. Em
conseqüência, os magos buscam tê-lo sempre em quantidade.36
Eu jogaria isso fora e encheria essa lata com um pouco de tabaco honesto aconsel
hei. Bem mais saudável.
O menino fechou a tampa.
Vou enviá-lo em missão disse ele. No momento em que você for cumpri-la, lançarei o feit
do Confinamento Indefinido, prendendo-o dentro desta lata. O feitiço não fará efeito
imediatamente; na verdade, farei com que comece daqui a um mês. Se por algum motiv
o eu não estiver aqui para desmanchar o feitiço antes que um mês se cumpra, você vai se
achar puxado para esta lata e preso dentro dela, até o momento em que volte a ser
aberta. Que lhe parece esta idéia? Alguns séculos fechado em uma lata de alecrim. Is
so fará maravilhas pela sua pele.
Você tem uma cabecinha maliciosa, não tem? eu disse sombriamente.
E caso você se sinta tentado a arriscar a penalidade, vou amarrar esta lata a tijo
los e atirar tudo no Tâmisa antes do dia acabar. Portanto não fique esperando que al
guém o liberte tão cedo.
Não vou. Tem toda razão, não sou insanamente otimista.37
O rosto do menino agora tinha uma expressão horrivelmente triunfante. Ele parecia
um garoto desagradável, no parquinho, que acabava de ganhar minha melhor bola de g
ude.
Então, Bartimaeus disse ele, com um riso de desdém , o que me diz disso?
Dei-lhe um sorriso radiante.
E o que me diz de esquecer toda essa história besta dessa lata e em vez disso conf
iar em mim?
De jeito nenhum.
Meus ombros desabaram. Esse é o problema, entendam. Por mais que você tente, os mago
s sempre descobrem um meio de derrotá-lo no fim.
Tudo bem, Nathaniel eu disse. O que exatamente você quer que eu faça?
Parte Dois
Nathaniel
Mal o djim se transformou em um pombo e voou de sua janela, Nathaniel fechou o t
rinco e as cortinas, e deixou-se escorregar para o chão. Seu rosto estava pálido com
o o de um cadáver, e seu corpo tremia de exaustão. Durante quase uma hora, ficou rec
ostado contra a parede, olhando para nada.
Ele tinha conseguido, tinha conseguido, sem dúvida o demônio fora derrotado, estava
de novo sob seu controle. Só lhe restava trabalhar o feitiço confinante sobre a lata
e Bartimaeus seria forçado a servi-lo por quanto tempo ele quisesse. Ia ficar tud
o ótimo. Ele não tinha nada com que se preocupar. Absolutamente nada.
Assim disse a si mesmo. Mas suas mãos tremiam-lhe sobre o colo, seu coração palpitava
penosamente contra o peito e as afirmações confiantes que ele tentara evocar fugiram
-lhe da mente. Com raiva, forçou-se a respirar fundo e apertou com força as mãos, para
interromper o tremor. É claro, esse medo era muito natural, ele se desviara do Pe
rímetro Estimulante por uma fração de segundo. Fora a primeira vez que estivera perto
da morte. Esse tipo de coisa não deixava de causar uma reação. Em poucos minutos, ele
estaria de volta ao normal; poderia trabalhar no feitiço; tomar o ônibus para o Tâmisa
...
O djim conhecia seu nome de batismo. Ele sabia seu nome.
Bartimaeus de Uruk, Sakhr al-Jinni de Al-Arish... Tinha permitido que ele descob
risse seu nome. A sra. Underwood havia falado, o djim havia ouvido e, naquele mo
mento, a regra cardeal havia sido infringida. E agora Nathaniel estava compromet
ido, talvez para sempre.
Sentiu o pânico subindo-lhe pela garganta, com uma força que quase o fez engasgar. P
ela primeira vez, ao que podia se lembrar, sentiu os olhos picando com lágrimas. A
regra cardeal... Se você a quebrasse, podia dar-se por perdido. Os demônios sempre
descobriam um modo. Dê-lhes qualquer poder que seja, e mais cedo ou mais tarde ele
s o pegam. Às vezes levava anos, mas eles sempre...
Lembrou-se de ter visto nos livros análises de casos famosos. Werner de Praga; ele
deixara que um diabrete inofensivo, que estava trabalhando para ele, descobriss
e seu nome de batismo; no devido tempo o diabrete tinha contado a um trasgo, e o
trasgo contara a um djim, que contara a um afrito. E três anos depois, quando Wer
ner atravessava a praça Wenceslas para comprar uma lingüiça defumada, um redemoinho o
arrebatou para o ar. Durante diversas horas, seus uivos lá de cima ensurdeceram os
moradores que cuidavam de suas vidas, até que o incidente terminou com pedaços do m
ago chovendo sobre os cata-ventos e as chaminés da cidade. E seu destino dificilme
nte terá sido o mais horrível que coubera a magos descuidados. Houve Paulo de Turim,
Septimus Manning, Johann Faust...
Um soluço brotou da boca de Nathaniel, e o som miúdo e patético o tirou com um choque
de seu desespero e auto-piedade. Chega disso. Ele ainda não tinha morrido, e o demôn
io ainda estava sob seu domínio. Ou estaria, assim que ele houvesse disposto adequ
adamente da lata de fumo. Ele ia se recompor.
Nathaniel fez força para se levantar, seus membros tomados de fraqueza. Com grande
esforço, expulsou seus temores para o fundo da mente e começou seus preparativos. O
pentagrama foi redesenhado, o incenso mudado. Novas velas foram acesas. Esgueir
ou-se até a biblioteca do mestre e reconferiu as fórmulas encantatórias. Então botou mai
s alecrim na lata de tabaco, pousou-a no centro do seu círculo e começou o feitiço do
Confinamento Indefinido. Após cinco longos minutos sua boca estava seca e a voz fa
lhou, mas uma aura de um cinza como aço começou a brilhar sobre a superfície da lata.
Ela luziu e se apagou. Nathaniel disse o nome de Bartimaeus, acrescentou uma dat
a astrológica em que o confinamento devia começar e concluiu. A lata estava como ant
es. Nathaniel enfiou-a no bolso do casaco, apagou as velas e estendeu o tapete s
obre as marcas no assoalho. Então desabou em cima da cama.
Quando a sra. Underwood levou o almoço para o marido, uma hora depois, desabafou c
om ele uma preocupação.
Estou preocupada com o menino disse ela. Ele mal tocou em seu sanduíche. Deixou
ficar curvado sobre a mesa, branco como um lençol. Como se houvesse passado a noi
te inteira acordado. Alguma coisa o assustou ou ele está apreensivo com alguma coi
sa. Ela fez uma pausa. Querido?
O sr. Underwood estava inspecionando o montão de comida no seu prato.
Não tem mango chutney, Martha. Sabe que eu gosto disso com o presunto e a salada.
Nosso chutney acabou, querido. O que acha que devíamos fazer?
Comprar mais um pouco. É óbvio, não é? Pelos céus, mulher...
Quanto ao menino.
Mmm? Oh, ele está bem. O moleque está só nervoso por causa do novo nome. E porque vai
invocar seu primeiro diabrete. Lembro-me de como fiquei aterrorizado, meu mestre
praticamente teve de me bater para eu entrar no círculo.
O sr. Underwood enfiou uma garfada de presunto na boca.
Diga a ele que vá me encontrar na biblioteca daqui a uma hora e meia, e para não es
uecer o Almanaque. Não, marque para daqui a uma hora. Preciso telefonar a Duvall d
epois, sobre aqueles roubos, maldito seja.
Na cozinha Nathaniel ainda só tinha dado conta de meio sanduíche. A sra. Underwood d
esmanchou seu penteado.
Anime-se disse ela. É o novo nome que o está perturbando? Não deve se preocupar
pouco com isso. Nathaniel é bonito, mas há muitos outros nomes bons à disposição. Pense só
você pode escolher qualquer nome que quiser, dentro do razoável. Contanto que nenhu
m outro mago ainda vivo o tenha. Plebeus não têm esse privilégio, você sabe. Eles têm de s
e contentar com o que receberam.
Ela ficou se azafamando, enchendo o bule de chá, procurando o leite e, o tempo tod
o, falando, falando, falando. Nathaniel sentia a lata pesando em seu bolso.
Gostaria de sair um pouquinho, sra. Underwood disse ele. Preciso de um pouco de
ar fresco.
Ela o encarou, sem expressão.
Mas você não pode, meu bem, pode? Não antes do novo nome. Seu mestre o quer na bibliot
eca daqui a uma hora. E não se esqueça do Almanaque Nominativo, ele disse. Embora, t
endo dito isso, você de fato parece um tanto pálido. Ar fresco poderia lhe fazer bem
, eu acho... Tenho certeza que ele não notará se você der um pulinho lá fora por uns cin
co minutos.
Tudo bem, sra. Underwood. Vou ficar em casa.
Cinco minutos? Ele precisava de duas horas, talvez mais. Teria de dar jeito na q
uestão da lata depois e esperar que Bartimaeus não tentasse nada anteriormente.
Ela serviu uma xícara de chá e pousou-a na mesa diante dele.
Isso vai dar um pouco de cor a suas bochechas. É um grande dia para você, Nathaniel
Quando eu voltar a vê-lo, já será outra pessoa. Esta é provavelmente a última vez que o c
hamo por seu antigo nome. Acho que agora vou ter de começar a esquecê-lo.
Não poderia ter começado a esquecê-lo hoje de manhã?, pensou o garoto. Uma parte dele, p
equena e maliciosa, queria culpá-la por sua imprudente afeição, mas sabia que isso era
totalmente injusto. Foi culpa dele, o demônio estar à mão para escutá-la. Seguro, secre
to, sólido. Ele agora não era nenhuma dessas coisas. Tomou um golão de chá e queimou a b
oca.
Entre, garoto, entre.
Seu mestre, sentado em uma poltrona de espaldar alto e reto, ao lado da mesa da
biblioteca, parecia quase cordial. Olhou bem para Nathaniel quando ele se aproxi
mou e indicou um banco ao seu lado.
Sente-se, sente-se. Bem, você está com um ar mais elegante do que o habitual. Está até u
sando o paletó, hein? Fico satisfeito em ver que você expressa a importância da ocasião.
Sim, senhor.
Certo. Onde está o Almanaque? Bom, vamos vê-lo... O livro era encapado com couro ver
de lustroso, com uma fita de rabo de boi como marcador. Tinha sido entregue pela
Jaroslav's somente no dia anterior e ainda não havia sido lido. O sr. Underwood a
briu a capa delicadamente e lançou um olhar à folha de rosto. Almanaque Nominativo de
Loew, tricentésima nonagésima quinta edição... Como o tempo voa. Escolhi meu nome da tr
icentésima qüinquagésima, dá para acreditar? Lembro-me como se fosse ontem.
Sim, senhor. Nathaniel encobriu um bocejo. Seus esforços da manhã lhe estavam pesand
o, mas ele precisava se concentrar no que tinha a fazer. Ficou olhando enquanto
seu mestre virava as páginas, falando o tempo todo.
O Almanaque, menino, relaciona todos os nomes oficiais usados por magos entre a
era de ouro de Praga e hoje em dia. Muitos foram usados mais de uma vez. Ao lado
de cada nome há um registro indicando se o nome está atualmente sendo usado. Se não,
o nome está livre para ser adotado. Ou você pode inventar o seu próprio. Vejamos aqui,
"Underwood, Arthur; Londres"... Sou o segundo desse nome, menino; o primeiro fo
i um destacado jacobita; um amigo íntimo do rei James I, creio. Ora, andei pensand
o um pouco nesse assunto, e acho que você faria bem em seguir os passos de um dos
grandes magos.
Sim, senhor.
Pensei que Theophilus Throckmorton, talvez. Foi um alquimista notável. E... sim, v
ejo que essa combinação está livre. Não? Essa não o atrai? E que tal Balthazar Jones? Não e
tá convencido? Bem, talvez esse seja um modelo difícil de seguir. Sim, menino? Tem u
ma sugestão?
William Gladstone está livre, senhor? Eu o admiro.
Gladstone! Seu mestre arregalou os olhos. Mas que idéia... Há alguns nomes, men
que são grandiosos e recentes demais para os tocarmos. Ninguém ousaria! Seria o cúmulo
da arrogância assumir seu manto. As sobrancelhas se encresparam. Se você não é capaz d
uma sugestão sensata, escolherei por você.
Lamento, senhor. Eu não pensei que...
Nada errado com a ambição, meu jovem, mas você deveria resguardá-la. Se for óbvio d
vai se encontrar derrubado no fogo antes de chegar à casa dos vinte anos. Um mago
não deve chamar a atenção sobre si cedo demais; certamente não antes de ter invocado seu
primeiro bolorento. Bem, vamos folhear juntos desde o princípio...
A escolha levou uma hora e 25 minutos para ser feita, um tempo que foi penoso pa
ra Nathaniel. Seu mestre parecia ter muita afeição por magos obscuros com nomes mais
obscuros ainda, e Fitzgibbon, Treacle, Hooms e Gallimaufry só foram evitados com
dificuldade. Da mesma forma, as preferências de Nathaniel sempre pareciam ao sr. U
nderwood arrogantes ou ostentosas demais. Mas ao final fez-se uma escolha. Enfas
tiado, o sr. Underwood pegou o formulário oficial, deu entrada no novo nome e o as
sinou. Nathaniel tinha de assinar também, em um retângulo espaçoso, no pé da página. Sua a
ssinatura era toda pontuda e mal formada, mas também era a primeira vez que ele a
fazia. Leu-a para si mesmo, baixinho:
John Mandrake.
Ele era o terceiro mago desse nome. Nenhum de seus predecessores alcançara grande
proeminência, mas, a esta altura, Nathaniel não se importava. Qualquer coisa era mel
hor do que Treacle.38 Esse ia servir.
Seu mestre dobrou a folha, colocou-a em um envelope pardo e recostou-se em sua p
oltrona.
Bem, John disse. Está feito. Pedirei que selem e despachem este envelope diretamen
te do ministério e então você existirá oficialmente. No entanto não comece a ficar muito c
heio de si. Você ainda não sabe quase nada, como verá quando tentar invocar o diabrete
sapo-cururu amanhã. Mesmo assim, o primeiro estágio da sua educação está concluído, graças
mim.
Sim, senhor. Obrigado, senhor.
Deus sabe que foram seis anos longos e tediosos. Muitas vezes duvidei que você che
garia tão longe. A maioria dos mestres o teria posto na rua, depois daquela história
no ano passado. Mas eu perseverei... Não importa. De agora em diante, você pode usa
r suas lentes.
Obrigado, senhor.
Nathaniel não pôde deixar de piscar. Ele já as estava usando. A voz do sr. Underwood a
ssumiu um tom complacente.
Tudo correndo bem, em poucos anos poderemos ver você em um emprego digno: talvez c
omo subsecretário em um dos ministérios menores. Não seria glamouroso mas se adequaria
a suas modestas capacidades perfeitamente. Nem todo mago pode aspirar a tornar-
se um ministro importante, como eu, John, mas isso não deve impedi-lo de dar uma c
ontribuição pessoal, por modesta que seja. Nesse meio-tempo, como meu aprendiz, pode
rá me dar assistência em invocações triviais e recompensar-me um pouco por todo o esforço
que despendi com você.
Seria uma honra, senhor.
Seu mestre dispensou-o com um aceno de mão, permitindo a Nathaniel virar-se e assu
mir uma expressão azeda. Ele estava quase chegando à porta quando seu mestre lembrou
-se de algo.
Mais uma coisa disse. A escolha de seu novo nome foi bem a tempo. Daqui a três
s, comparecerei ao Parlamento para ouvir a elocução oficial dada pelo primeiro-minis
tro a todos os membros sêniores de seu governo. E uma ocasião muito cerimonial, mas
ele estará destacando as políticas que pretende ver aplicadas no interior e no estra
ngeiro. Aprendizes que já têm nome também são convidados, e também os cônjuges. Contanto qu
não me desagrade antes, vou levá-lo comigo. Ver-nos será uma experiência para abrir-lhe
os olhos; os magos superiores, todos juntos!
Sim, senhor. Muito obrigado, senhor!
Quase pela primeira vez, que ele se lembrasse, o entusiasmo de Nathaniel, ao fal
ar com seu mestre, era de fato autêntico. O Parlamento! O primeiro-ministro! Saiu
da biblioteca e subiu correndo as escadas para seu quarto e a clarabóia, pela qual
as distantes Casas do Parlamento eram mal e mal visíveis sob o céu cinzento de nove
mbro. Para Nathaniel, a torre como um palito de fósforo parecia banhada de sol.
Um pouco depois, ele se lembrou da lata de fumo em seu bolso.
Ainda faltavam duas horas para o jantar. A sra. Underwood estava na cozinha, enq
uanto seu mestre falava ao telefone, no estúdio. Furtivamente, Nathaniel saiu de c
asa pela porta da frente, tendo pegado cinco libras do vidro em que a sra. Under
wood guardava dinheiro para o homem da quitanda e que ficava em uma prateleira d
o vestíbulo. Na avenida principal ele tomou um ônibus rumo ao sul.
Magos não costumavam usar o transporte público. Sentou-se no banco de trás, o mais dis
tante possível dos demais passageiros, observando-os com o canto do olho enquanto
entravam e saltavam. Homens, mulheres, velhos, moços; jovens vestidos com cores se
m graça, moças com jóias brilhando no pescoço. Eles discutiam, riam ou ficavam sentados
em silêncio, lendo jornais, livros e revistas lustrosas. Humanos, sim, mas era fácil
ver que não tinham qualquer poder. Para Nathaniel, a experiência das pessoas era mu
ito limitada, o que as tornava estranhamente bidimensionais. Suas conversas pare
ciam ser sobre nada; os livros que liam pareciam triviais. A parte a sensação de que
a maioria deles era levemente vulgar, não conseguia ver nada neles.
Após meia hora o ônibus chegou à Blackfriars Bridge e ao Tâmisa.
Nathaniel saltou e caminhou para o centro mesmo da ponte, onde debruçou-se sobre a
balaustrada de ferro batido. O rio estava com a maré alta; suas águas pardacentas e
rápidas passavam aceleradas sob ele, a superfície irregular rodopiando incessanteme
nte. Ao longo das margens prédios de escritórios com suas janelas como olhos vazios
amontoavam-se sobre as avenidas do Embankment, onde os faróis dos carros e os post
es de rua começavam a se acender. As Casas do Parlamento, Nathaniel sabia, ficavam
logo depois de uma curva do rio. Nunca tinha chegado tão perto delas. O mero pens
amento fez seu coração se acelerar.
Outro dia haveria tempo suficiente para isso. Primeiro ele tinha uma tarefa vita
l a cumprir. De um bolso tirou um saco plástico e metade de um tijolo, que encontr
ara no jardim de casa. De outro bolso tirou a lata de fumo. Tijolo e lata foram
postos dentro do saco, cuja boca foi amarrada com um nó duplo.
Nathaniel deu uma rápida olhada para os dois lados da ponte. Outros pedestres pass
avam rápido por ele, as cabeças baixas, os ombros descaídos. Ninguém olhava em sua direção.
Sem maiores alardes, atirou o pacote por cima da balaustrada e o ficou olhando c
air.
Para baixo... para baixo... No final, não era nada além de uma mancha branca. Mal pôde
ver o choque com a água.
Sumiu. Afundou feito pedra.
Nathaniel levantou a gola do paletó, protegendo o pescoço do vento que soprava pelo
rio. Estava seguro. Bem, tão seguro quanto era possível por enquanto. Ele efetivara
sua ameaça. Se Bartimaeus ousasse traí-lo agora...
Começou a chover quando ele voltava pela ponte até o ponto do ônibus. Caminhava devaga
r, perdido em pensamentos, quase colidindo com quem passava apressado, vindo na
direção oposta. Xingavam-no ao passar, mas ele nem notava. Seguro... era só o que impo
rtava...
Um grande enfado abatia-se sobre ele, a cada passo.
Bartimaeus
16
Quando saí pela janela do sótão do garoto, minha cabeça estava tão cheia de planos conflit
antes e estratagemas complexos, que não olhei para onde ia e voei direto por uma c
haminé adentro.
Havia algo simbólico nisso. É o que a falsa liberdade faz com você. E lá fui eu, voando
pelo ar, um entre um milhão de pombos na grande metrópole. O Sol batia em minhas asa
s, o ar frio encrespava minhas belas plumas. As fileiras incessantes de telhados
marrom-acinzentados estendiam-se abaixo até o horizonte apagado, como os sulcos d
e um campo gigantesco no outono. Como aquele espaço enorme me atraía. Queria voar até
ter deixado a maldita cidade bem longe, nunca olhando para trás. Poderia tê-lo feito
. Ninguém me teria parado. Eu não seria invocado de volta.
Mas não podia seguir esse desejo. O garoto deixara bem claro o que aconteceria se
eu falhasse em espionar Simon Lovelace e deixasse de fazer o serviço. Claro, eu po
dia ir a qualquer lugar que quisesse neste exato momento. Claro, eu poderia usar
os métodos que escolhesse, para obter minha informação (tendo em mente que qualquer c
oisa que fizesse, prejudicial à Nathaniel, no seu devido tempo prejudicaria a mim
também). Claro, o menino não iria me invocar, pelo menos por algum tempo. (Ele estav
a muito fatigado e precisava de repouso39.) Claro, eu tinha um mês para fazer o se
rviço. Mas ainda tinha de obedecer a suas ordens até sua plena satisfação. Caso contrário,
teria um encontro marcado com a lata de Old Chokey que, nesse momento, provavel
mente estava em suave repouso dentro da lama grossa e escura do fundo do Tâmisa. A
liberdade é uma ilusão. Ela sempre tem um preço.
Refletindo sobre as coisas, concluí que eu tinha a parca escolha entre começar com u
m lugar conhecido ou com um fato conhecido. O lugar era a mansão de Simon Lovelace
em Hampstead, onde provavelmente ocorreu a maior parte de sua transação secreta. Eu
não queria voltar a entrar lá, mas talvez pudesse montar um posto de vigia do lado
de fora e observar quem entrava e quem saía. O fato era que o mago aparentemente e
ntrara em posse do Amuleto de Samarkand por meios ilícitos. Talvez eu pudesse acha
r alguém que soubesse mais sobre a história recente do objeto, como, por exemplo, qu
em fora seu último dono.
Dos dois pontos de partida, visitar Hampstead parecia o melhor meio de começar. Pe
lo menos, sabia como chegar lá.
Desta vez me mantive o mais distante possível. Encontrando uma casa do outro lado
da rua que proporcionava uma visão decente do portão e da entrada de carros da mansão,
pousei sobre ela e encarapitei-me na calha. Fiz um reconhecimento do terreno. U
mas poucas mudanças tinham sido feitas na casa de Lovelace desde a noite anterior.
A rede de defesa tinha sido consertada e reforçada com uma camada extra, enquanto
as árvores mais seriamente chamuscadas tinham sido cortadas e levadas embora. Mai
s agourentamente, diversas criaturas altas, esguias e avermelhadas agora rondava
m os gramados nos quarto e quinto planos.
Não havia sinal de Lovelace, Faquarl ou Jabor, mas também eu não esperava nada de imed
iato. Estava fadado a ter de esperar por mais ou menos uma hora. Afofando minhas
penas contra o vento, ajeitei-me para a vigilância.
Três dias fiquei naquela calha. Três dias inteiros. Descansar me fez bem, tenho cert
eza, mas a dor que crescia dentro de minha manifestação estava me deixando aflito. A
inda por cima, eu estava muito chateado. Nada importante acontecia.
Toda manhã um jardineiro meio idoso fazia um giro à propriedade, espalhando fertiliz
ante nos trechos de grama onde as Detonações de Jabor haviam caído. Nas tardes ele pod
ava ramos inúteis e limpava com ancinho a entrada do carro, antes de entrar indole
ntemente, para uma xícara de chá. Não se dava conta das coisas vermelhas, três das quais
o espreitavam o tempo todo, como ávidas aves de rapina gigantes. Sem dúvida, soment
e os termos rigorosos de sua invocação as impediam de devorá-lo.
Toda noite uma flotilha de esferas de busca saía para continuar sua procura através
da cidade. O mago, ele próprio, ficava lá dentro, sem dúvida orquestrando outras tenta
tivas de localizar seu amuleto. Eu me perguntava ocasionalmente se Faquarl e Jab
or teriam sofrido por me deixarem escapar. Só se podia torcer.
Na manhã do terceiro dia, um suave arrulho de aprovação rompeu minha concentração. Um pomb
o pequeno e bem-aparentado havia pousado na calha à minha direita e me olhava com
uma nitidamente interessada inclinação da cabeça. Alguma coisa na ave me fez suspeitar
que era uma fêmea. Dei o que esperava ter sido um arrulho altivo e desdenhoso e o
lhei para o outro lado. A pomba deu um salto coquete ao longo da calha. Era só o q
ue me faltava: uma pomba amorosa. Afastei-me. Ela pulou um pouco mais para perto
. Afastei-me de novo. Agora eu estava bem na frente da calha, encarapitado sobre
a abertura para o cano de escoamento da água.
Estava tentando me transformar em um gato de rua e fazê-la perder todas as penas d
e susto, mas era arriscado demais, uma transformação tão perto da mansão. Estava a ponto
de voar para Outro Lugar, quando finalmente avistei algo saindo da residência de
Simon Lovelace.
Abriu-se um buraco circular na tremeluzente rede azul de proteção e por ele saiu um
diabrete verde-garrafa com asas de morcego e focinho de porco. O buraco se fecho
u. O diabrete bateu as asas e saiu descendo a rua, à altura dos postes de luz.
Levava duas cartas em uma das garras.
Nesse momento um arrulho ronronante soou diretamente em meu ouvido. Virei a cabeça
, e dei de olho no bico da besta da pomba. Com tortuosa astúcia feminina, ela apro
veitara a oportunidade para chegar mais perto.
Minha reação foi rápida e eloqüente. Ela levou uma pontada de asa no olho e um chute na
plumagem. E, com isso, lancei-me no ar, seguindo o diabrete.
Para mim estava claro que ele era algum tipo de mensageiro, ao qual provavelment
e fora confiado algo perigoso ou secreto demais para o telefone ou o correio. Eu
já vira criaturas do seu tipo.40 Levasse ele o que fosse agora, essa era minha pr
imeira oportunidade de espionar os afazeres de Lovelace.
O diabrete pairou sobre alguns jardins, elevando-se muito com uma corrente de ve
nto ascendente. Eu o segui mourejando um pouco com minhas asas troncudas. Enquan
to eu seguia, ponderei a situação cuidadosamente. A coisa mais segura e mais sensata
a fazer era ignorar os envelopes que ele estava levando e, em vez disso, concen
trar-me em fazer amizade com ele. Eu poderia, por exemplo, adotar o aspecto de o
utro diabrete mensageiro e começar uma conversa, talvez conquistando sua confiança n
o decorrer de diversos encontros "casuais". Se eu fosse paciente, amigável e casua
l o bastante, ele sem dúvida acabaria deixando escapar alguma coisa...
Ou, em vez disso, eu podia só dar-lhe umas porradas. Essa era uma abordagem mais d
ireta e mais rápida que, tudo considerado, eu preferia. Então, segui o diabrete a um
a distância discreta e caí-lhe em cima no alto de Hampstead Heath.
Quando estávamos em uma região suficientemente isolada fiz a mudança de pombo para gárgu
la; mergulhei sobre o infeliz diabrete e caímos entrouxados em meio a algumas árvore
s raquíticas. Isso feito, segurei-o pelo pé e dei-lhe uma boa sacudida.
Eca! protestou ele com um grito agudo, agitando para todos os lados as garras cr
ispadas. Eu te pego! Vou te fazer em tirinhas, eu vou!
Vai mesmo, meu jovem? Arrastei-o para uma moita e o prendi bonitinho sob um pequ
eno pedregulho. Só o focinho e as garras apareciam. Certo disse eu, sentando-me de
pernas cruzadas sobre a pedra e arrancando os envelopes de sua garra. Primeiro
vou ler isso aqui, aí podemos conversar. Você poderá me contar tudo o que sabe sobre S
imon Lovelace.
Fingindo não perceber os xingamentos francamente chocantes que vinham lá de baixo, e
xaminei os envelopes. Eram muito diferentes entre si. Um era simples e completam
ente liso: não tinha nenhum nome ou marca e havia sido selado com uma pingada de c
era vermelha. O outro era mais vistoso; feito de papel pergaminho com o monogram
a do mago em relevo, SL. Estava endereçado a alguém chamado R. Devereaux Esq.
Primeira pergunta disse eu. Quem é R. Devereaux? A voz do diabrete saiu abafada
s insolente.
Está de brincadeira! Não sabe quem é Rupert Devereaux? Você é tapado ou algo do gênero?
Um pequeno conselho disse eu. Falando de um modo geral, não é prudente ser grosseiro
com alguém maior do que você, especialmente quando esse alguém acaba de prendê-lo embai
xo de um matacão de pedra.
Pode enfiar o seu conselho no...
Vou perguntar de novo. Quem é Rupert Devereaux?
É o primeiro-ministro britânico, ó prodigalíssimo e misericordioso.
É mesmo?41 Lovelace circula mesmo em círculos elevados. Vejamos então o que ele tem
dizer ao primeiro-ministro...
Esticando minha garra mais afiada, puxei cuidadosamente o selo de cera do envelo
pe, causando um mínimo de dano, pousei-o sobre o pedregulho, ao meu lado, para fic
ar em segurança. E abri o envelope.
Não era a carta mais emocionante que eu já havia interceptado.
Caro Rupert,
Por favor, aceite minhas mais sinceras e humildes desculpas, mas poderei chegar
ligeiramente atrasado ao Parlamento hoje à noite. Surgiu algo urgente em relação ao gr
ande evento da semana que vem e eu simplesmente tenho de tentar resolver isso ho
je. Não gostaria que nenhum dos preparativos se atrasasse demais. Mas espero de fa
to que você haja por bem me perdoar se eu chegar atrasado.
Posso aproveitar esta oportunidade para dizer novamente como estamos eternamente
gratos por ter a chance de abrigar a reunião?
Amanda já renovou o saguão e está agora no processo de arrumar nova mobília (no estilo p
ersa-nouveau) em sua suíte. Ela também encomendou um grande número de seus petiscos pr
eferidos, inclusive línguas frescas de cotovia.
Novamente desculpas. Certamente estarei presente à sua elocução.
Seu fiel e sempre obediente servidor.
Simon
Só a típica linguagem servil de magos; o tipo de tagarelice sicofanta que deixa uma
sensação viscosa na língua. E tampouco é grandemente informativa. Ainda assim, pelo meno
s eu não tinha dificuldade para imaginar o que era o "algo extremamente urgente" só
podia ser o amuleto sumido, com certeza. E também dava para perceber que ele preci
sava arrumá-lo antes de um "grande evento" na semana que vem algum tipo de conferênc
ia. Isso talvez valesse a pena investigar. Quanto a "Amanda": só podia ser a mulhe
r que eu vira com Lovelace em minha primeira incursão à mansão. Seria útil saber mais so
bre ela.
Recoloquei cuidadosamente a carta no envelope, peguei o selo de cera e, aplicand
o criteriosamente um ínfimo jato de calor, derreti-lhe a parte de baixo. Voltei a
aplicar o selo, e pronto! Ficou como novo.
Em seguida abri o segundo envelope. Dentro havia um pequeno pedaço de papel, com u
ma breve mensagem rabiscada.
As entradas continuam perdidas. Talvez tenhamos de cancelar a apresentação.
Por favor, avalie nossas opções. Te vejo-o no P. hoje à noite.
Ora, isso tinha mais a ver! Muito mais suspeito: sem destinatário, sem assinatura
no fim, tudo certinho e vago. E, como todas as melhores mensagens secretas, seu
verdadeiro sentido ficava oculto. Ou pelo menos ficava para qualquer imbecil hum
ano que por acaso a lesse. Eu, por outro lado, percebi imediatamente toda aquela
droga sobre "bilhetes" perdidos. Lovelace estava novamente discutindo de modo d
iscreto seu amuleto sumido. Parecia que o garoto tinha razão: talvez o mago tivess
e algo a esconder. Estava na hora de fazer ao meu amigo diabrete algumas pergunt
as diretas.
Certo disse eu , este envelope em branco. Para onde o está levando?
Para a residência do sr. Schyler, Ó terribilíssimo. Ele mora em Greenwich.
E quem é o sr. Schyler?
Creio, Ó luz de todos os djins, que ele é o velho mestre do sr. Lovelace. Levo regul
armente correspondência entre eles. São ambos ministros do governo.
Entendo.
Isso era algo com que se continuar, ainda que não fosse grande coisa. O que eles a
ndavam aprontando? O que era essa "apresentação" que talvez tivesse de ser cancelada
? Pelas pistas contidas em ambas as cartas, parecia que Lovelace e Schyler se en
contrariam para discutir seus assuntos no Parlamento esta noite. Valeria bem a p
ena estar lá para ouvir o que tinham a se dizer.
Nesse meio-tempo, retomei meu interrogatório.
Simon Lovelace. O que sabe sobre ele? O que é essa conferência que ele está organiz
o?
O diabrete soltou um grito de desesperança.
Ó, brilhante raio de luzes das estrelas, pesa-me, mas não sei! Que eu seja torrado p
ela minha ignorância! Eu apenas levo mensagens, imprestável que sou. Vou para onde m
e mandam e trago respostas na volta, nunca me desviando de meu curso e nunca par
ando, a menos que eu tenha a boa fortuna de ser emboscado por vossa graça e esmaga
do sob uma pedra.
De fato. Bem, de quem Lovelace é mais íntimo? Para quem você leva mensagens com mais f
reqüência?
Ó, gloriosíssima pessoa de elevada fama, talvez o sr. Schyler seja seu correspondent
e mais freqüente. De resto, ninguém se destaca. São principalmente políticos e pessoas d
a alta na sociedade londrina. Todos magos, evidentemente, mas variam muito. Outr
o dia mesmo, por exemplo, levei mensagens para Tim Hildick, ministro para as Reg
iões, para Sholto Pinn, da Pinn's Accoutrements,42 e para Quentin Makepeace, o emp
resário teatral, de quem, igualmente trouxe uma mensagem. Essa é uma amostragem típica
.
Pinn's Accoutrements, o que é isso?
Se algum outro fizesse essa pergunta, O, aquele que é terrível e grandioso, eu diria
tratar-se de um tolo ignorante; em vós é um sinal daquela desconcertante simplicida
de que é a fonte de toda virtude. Pinn's Accoutrements é o mais prestigioso forneced
or de artefatos mágicos em Londres. Situa-se em Piccadilly. Sholto Pinn é o proprietár
io.
Interessante. Então, se um mago quisesse comprar um artefato, iria ao Pinn's?
Sim.
Sim, o que mais?
Lamento, Ó miraculoso, é difícil pensar em novos títulos para vós, quando fazeis perguntas
curtas.
Desta vez, vamos deixar passar. Então, além de Schyler, ninguém se destaca entre todos
os seus contatos? Tem certeza?
Sim, ser exaltado. Ele tem muitos amigos. Não dá para destacar um.
Quem é Amanda?
Eu não saberia dizer, Ó, campeão. Talvez seja a esposa dele. Nunca levei mensagens par
a essa.
"Ó, campeão." Você está realmente se esforçando, não está? Tudo bem. Duas últimas perguntas
do. Primeiro: alguma vez viu ou entregou mensagens a um homem alto, de barba neg
ra, usando uma capa manchada e luvas? Iracundo, misterioso. Segunda: que servos
Simon Lovelace emprega? Não digo borra-botas como você, mas poderosos como eu. Seja
rápido e preciso, e talvez eu retire essa pedrinha antes de ir embora.
A voz do diabrete saiu lastimosa.
Gostaria de poder satisfazer cada capricho vosso, senhor de tudo que examinais,
mas primeiro: temo nunca ter posto os olhos nessa pessoa barbuda, e segundo: não t
enho acesso a nenhum dos aposentos íntimos do mago. Há entidades formidáveis lá dentro;
sinto o poder delas, mas afortunadamente nunca as conheci. Só o que sei é que hoje d
e manhã o mestre instalou treze monstros de guarda vorazes no terreno. Treze! Um já
seria bastante ruim. Eles sempre avançam na minha perna quando chego com uma carta
.
Refleti por um instante. Minha melhor pista era a ligação com Schyler. Ele e Lovelac
e estavam aprontando alguma coisa, quanto a isso não há dúvida, e se eu ficasse à escuta
no Parlamento essa noite podia muito bem descobrir o quê. Mas a reunião era daqui a
horas; até lá fazia uma visita ao Pinn's Accoutrements, de Piccadilly. Evidentement
e, Lovelace não conseguira o seu amuleto, mas eu poderia saber alguma coisa sobre
o passado recente da bugiganga, se averiguasse um pouco por ali. Alguma coisa se
remexeu sob a pedra.
Já haveis terminado, O, clemente, será que posso seguir meu caminho? Eu sofro as Ag
ilhoadas de Fogo se me atraso na entrega de minhas mensagens.
Muito bem.
Não é incomum engolir diabretes menores que caem em meu poder, mas esse não era realme
nte o meu estilo.43 Saí de cima da pedra e empurrei-a para um lado. Um mensageiro
fino como uma folha de papel dobrou-se em um ou dois lugares e pôs-se penosamente
de pé.
Tome as suas cartas. Não se preocupe, não as adulterei.
Tudo bem comigo se as houvésseis adulterado, O, glorioso meteoro do Oriente. Eu ap
enas levo os envelopes. Não sei nada sobre o que há dentro deles, sei?
Superada a crise, o diabrete já estava voltando ao seu gênero irritante.
Não conte a ninguém sobre o nosso encontro ou estarei esperando por você da próxima vez
que sair.
O quê, acha que eu ia procurar encrenca? De jeito nenhum. Bem, se o meu espancamen
to já acabou, vou cair fora daqui.
Com umas poucas batidas cansadas de suas asas rijas como couro, o diabrete ergue
u-se no ar e desapareceu acima das árvores. Dei-lhe alguns minutos de vantagem e e
ntão voltei a transformar-me em pombo e saí eu próprio voando, rumando para o sul sobr
e a charneca solitária até o distante Piccadilly.
17
Pinn's Accoutrements era o tipo de loja em que só os muito ricos ou corajosos ousa
m entrar. Ocupando uma posição privilegiada na esquina da Duke Street com Piccadilly
, dava a impressão de que algum tipo de palácio havia sido largado ali por uma chusm
a de djins demolidores e em seguida soldado às construções mais sem-graça ao longo da ru
a. Suas vitrines iluminadas e colunas douradas com caneluras se destacavam em me
io às lojas para magos e às casas de caviar e patê que orlavam o bulevar largo e cinze
nto; mesmo quando se olhava do ar, sua aura de refinada elegância se destacava a q
uase uma milha de distância.
Eu tinha de tomar cuidado ao pousar muitos beirais tinham sido cravejados de esp
igões ou pintados com visgo bem pegajoso, para afastar pombos nocivos, assim como
eu , mas finalmente estabeleci-me no alto de uma placa de rua com uma boa visão da
Pinn's e passei a dar uma examinada na espelunca.
Cada vitrine era um monumento à pretensão e à vulgaridade a que todos os magos secreta
mente aspiravam: bengalas crivadas de pedrarias, em pedestais giratórios; lentes d
e aumento gigantescas pousadas sobre montes ofuscantes de anéis e braceletes; mane
quins automatizados se sacudiam para a frente e para trás, usando pretensiosos ter
nos italianos com alfinetes de brilhante nas lapelas. Na calçada, magos comuns ou
de feira iam para lá e para cá com suas roupas de trabalho mulambentas, olhavam dese
josamente os mostruários e iam embora, sonhando com riqueza e fama. Havia poucos não
-magos à vista. Não era uma parte das mais plebéias da cidade.
Por uma das vitrines, pude ver um alto balcão de madeira lustrada, ao qual estava
sentado um homem imensamente gordo todo vestido de branco. Precariamente encarap
itado em um banco, estava ocupado distribuindo encomendas por uma pilha de caixa
s que bamboleavam e oscilavam ao lado dele. Uma encomenda final foi posta, o gor
do olhou para o outro lado e a pilha de caixas começou a atravessar instavelmente
o salão. Um momento em seguida elas se viraram e avistei um pequeno trasgo44 atarr
acado se esfalfando embaixo delas. Quando ele chegou a um grupo de prateleiras e
m um canto da loja, esticou uma cauda particularmente longa e, com uma série de mo
vimentos hábeis, foi descarregando as caixas uma por uma a partir do alto da pilha
e pousando-as cuidadosamente sobre a prateleira.
Assumi que o gordo fosse o próprio Sholto Pinn, o dono da loja. O diabrete mensage
iro me dissera que ele era um mago, e notei que usava um monóculo de aro de ouro.
Sem dúvida era isso que lhe permitia observar a verdadeira forma de seu servo, uma
vez que, no primeiro plano, o trasgo usava o aspecto de um rapaz, para evitar a
ssustar passantes não-magos. Considerando como eram os humanos, Sholto parecia um
sujeito formidável; apesar de todo o seu tamanho, seus movimentos eram fluidos e p
ossantes, e seus olhos eram rápidos e penetrantes. Alguma coisa me dizia que ele s
eria difícil de enganar, então abandonei meu plano inicial de adotar um disfarce hum
ano para tentar arrancar informações dele.
O pequeno trasgo parecia mais promissor. Esperei pacientemente por minha oportun
idade.
Quando chegou a hora do almoço, o pinga-pinga de fregueses cheios da nota entrando
na Pinn's engrossou um pouco. Sholto bajulava e fazia mesuras; à sua ordem, o tra
sgo corria para lá e para cá pela loja, pegando caixas, pelerines, guarda-chuvas ou
qualquer outro artigo que fosse pedido.
Foram fechadas algumas vendas, e então a hora do almoço chegou ao fim e os fregueses
foram embora. Agora os pensamentos de Sholto voltavam-se para sua barriga. Deu
ao trasgo umas poucas instruções, vestiu um grosso sobretudo negro e saiu da loja. V
i-o chamar um táxi e sumir no trânsito. Isso foi bom. Ele ia levar algum tempo.
Quando ele saiu, o trasgo pendurou uma placa de FECHADO na porta e foi para o ba
nco atrás do balcão onde, imitando Sholto, ficou se inflando, com ares de grande imp
ortância.
Agora era a minha oportunidade. Mudei meu disfarce. Foi-se o pombo; no lugar del
e, um modesto diabrete mensageiro, modelado no que eu havia espancado em Hampste
ad, foi bater à porta da Pinn's. O trasgo ergueu os olhos, surpreso, fuzilou-me co
m o olhar e fez sinal para que eu fosse embora. Bati de novo, só que mais alto. Co
m um clamor de exasperação, o trasgo saltou do banco, veio a passo largo até a porta e
abriu-a, só uma pequena fresta. A sineta da loja tilintou.
Estamos fechados.
Mensagem aqui para o sr. Sholto.
Ele saiu. Volte mais tarde.
Não posso esperar, chefia. Quando ele deve voltar?
Em mais ou menos uma hora. O chefe saiu para almoçar.
Onde ele foi?
Ele não me forneceu essa informação.
Este trasgo tinha um tipo de comportamento altivo, superior; ele evidentemente c
onsiderava-se bom demais para falar com diabretes como eu.
Não tem importância. Vou esperar.
E, com um meneio do corpo e uma deslizada de lado, contornei a porta, passei por
baixo do braço dele e entrei na loja.
Puxa, isto aqui é chique, né?
O trasgo correu atrás de mim, em pânico.
Saia! Saia daqui! O sr. Pinn me deu instruções rigorosas para não deixar ninguém...
Não esquenta tanto, companheiro. Não vou afanar nada.
O trasgo colocou-se entre mim e o mostruário mais próximo de relógios de bolso, de pra
ta.
Acho que não vai mesmo! Com uma batida do pé, posso convocar um medonho para devorar
qualquer ladrão ou invasor! Agora, saia, por favor!
Está bem, está bem. Meus ombros descaíram quando me voltei para a porta. Você é poderos
emais para mim. E muito privilegiado. Não é todo mundo que dirige um lugar chique co
mo este.
Nisso você tem razão. O trasgo era incômodo, mas também vaidoso e fraco.
Mas você não leva surras, nem tampouco as Aguilhoadas de Fogo.
Certamente que não! Sou um modelo de eficiência, e o amo me trata com muita amabilid
ade.
Entendi então com que espécie eu estava tratando. Ele era um colaboracionista do pio
r tipo. Tive vontade de mordê-lo.45 No entanto isso me dava um ângulo a partir do qu
al trabalhar.
Claro! falei. Eu acharia mesmo que ele é amável e tudo. Por quê? Porque ele sab
te que tem de contar com a sua ajuda. Calculo que ele não pode se virar sem você. Ap
osto que você é bom em carregar troços pesados por aí. E pode alcançar prateleiras altas c
om essa sua cauda ou usá-la para varrer o chão...
O trasgo empertigou-se.
Seu fungo atrevido! O amo me valoriza por muito mais do que isso! Quero que saib
a que ele se refere a mim (na frente dos outros, veja bem) como seu assistente!
Tomo conta da loja para ele, quando vai almoçar. Faço a contabilidade, ajudo a procu
rar os artigos que estão à venda, tenho muitos contatos...
Espere aí, "os artigos"? Assobiei baixo. Quer dizer que ele o deixa cuidar da merc
adoria, de todo o seu material mágico, amuletos e coisas assim? Nunca!
A isso a criatura repelente deu um sorriso afetado.
E deixa mesmo! O sr. Pinn confia em mim sem hesitação.
O quê, coisas realmente poderosas ou só a rabeira do mercado? Você sabe, mãos gloriosas,
vidros de bolorentos e coisas assim?
Coisas poderosas, é claro! Artigos que são extremamente perigosos e raros! O amo pre
cisa ter certeza de seus poderes, entenda, e verificar se não são falsificações. E preci
sa da minha ajuda para isso.
Não! Que tipo de troço? Nada famoso?
Eu estava confortavelmente estabelecido agora, encostado na parede. A cabeça do es
cravo traidor estava inchando tanto,46 que ele se esquecera completamente de me
pôr para fora.
Hããã, você provavelmente não ouviu falar de nenhum deles. Bem, deixe-me ver... O destaque
do ano passado foi o cordão de tornozelo de Nefertite! Esse foi uma sensação! Um dos a
gentes do sr. Pinn desencavou-o no Egito e o trouxe para cá em um vôo especial. Deix
aram-me limpá-lo. De fato limpá-lo. Pense nisso da próxima vez que estiver voando por
aí, debaixo de chuva. O duque de Westminster o conquistou em leilão por uma soma con
siderável. Dizem aqui ele inclinou-se para mais perto e abaixou a voz que foi um p
resente dele para a esposa, que é aflitivamente sem sal. A tornozeleira confere gr
ande glamour e beleza à usuária, que foi evidentemente como Nefertite conquistou o f
araó. Mas aí você não ia saber nada disso.47
Neca.
O que mais tivemos? O pêlo da loba de Rômulo, a flauta de Chartres, o crânio de frei B
acon... eu podia continuar, mas só iria entediá-lo.
Tudo um pouco acima de mim, chefia. Ouça aqui, vou lhe contar algo de que ouvi fal
ar. O Amuleto de Samarkand. Meu amo o mencionou algumas vezes. Aposto que esse v
ocê nunca limpou.
Mas esse comentário casual feriu alguma corda sensível. O trasgo apertou os olhos e
sua cauda teve um estremecimento.
Quem é o seu amo? indagou abruptamente. E onde está a sua mensagem? Não o vejo trazend
o nenhuma.
É claro que não vê. Ela está aqui dentro, né? Dei um tapinha na cabeça com uma das garras
uanto a meu amo, não há nenhum segredo nisso. O nome é Simon Lovelace. Talvez já o tenha
visto por aqui.
Eu estava jogando um pouco, trazendo o mago para a equação. Mas o jeitão do trasgo hav
ia mudado à menção do amuleto, e eu não queria aumentar suas suspeitas evadindo a pergun
ta. Felizmente, ele pareceu impressionado.
Oh, é o sr. Lovelace, é? Você é novo para ele, não é? Onde está o Nittles?
Ele perdeu uma mensagem na noite passada. O amo o aguilhoou permanentemente.
Foi mesmo? Sempre achei que o Nittles era frívolo demais. Para ele, é bem feito. Ess
e pensamento divertido pareceu relaxar o trasgo; seus olhos ganharam uma expressão
sonhadora. Um cavalheiro de verdade, o sr. Lovelace, um freguês perfeito. Sempre
bem-vestido, pede as coisas educadamente. Bom amigo do sr. Pinn, é claro... Então el
e estava falando do amuleto, não é? É claro, isso não é surpresa, considerando o que acont
eceu. Aquilo foi uma sujeira, e ainda não encontraram o assassino, depois de seis
meses.
Isso me deixou de orelhas em pé, mas tentei disfarçar. Cocei o nariz despreocupadame
nte.
E, o sr. Lovelace disse que algo ruim tinha acontecido. Mas não disse o quê comentei
.
Bem, ele não ia contar a um titica como você, ia? Alguns calculam que foi a "Resistênc
ia" que fez o serviço, seja lá o que isso for. Ou um mago renegado, o que talvez sej
a mais provável. Não sei, era de se pensar que, com todos os recursos que o Estado p
ossui...
Então o que aconteceu com o amuleto? Ele foi afanado, não foi?
Sim, foi roubado, sim. E houve assassinato envolvido também. Arrepiante. Puxa vida
, foi muito horrível. Coitado, pobre sr. Beecham. E, assim falando, esse travesti
de um trasgo enxugou uma lágrima.48 Você me perguntou se tivemos o amuleto aqui? Bem
, é claro que não. Era valioso demais para ser posto no mercado. Foi propriedade do
governo durante anos, e nos últimos trinta esteve guardado na propriedade do sr. B
eecham, em Surrey. Alta segurança, portais e tudo. O sr. Beecham costumava mencioná-
lo ocasionalmente ao sr. Pinn, quando vinha nos visitar. Era um ótimo homem, duro,
mas ótimo, muito admirável. Ai de mim.
E alguém roubou o amuleto de Beecham?
Sim, há seis meses. Nenhum portal foi disparado, os guardas não sabiam de nada, mas
certa noite, já tarde, ele havia sumido. Desapareceu! E lá estava o pobre do sr. Bee
cham caído ao lado da caixa vazia, em uma poça de sangue. Mortinho da Silva! Ele dev
ia estar na sala com o amuleto quando os ladrões entraram e, antes de poder pedir
socorro, cortaram-lhe a garganta. Que tragédia! O sr. Pinn ficou perturbadíssimo.
Tenho certeza que ficou. Isso é terrível, chefia, uma coisa muito terrível.
Eu parecia tão pesaroso quanto é possível a um diabrete, mas bem lá no fundo eu exultava
de triunfo. Era exatamente a informaçãozinha que eu estava procurando. Então, Simon L
ovelace de fato mandara roubar o amuleto e um assassinato resultou disso. O home
m de barba negra que Nathaniel vira no estúdio de Lovelace deve ter chegado lá pouco
depois de ter matado Beecham. Além do mais, quer estivesse agindo por conta própria
ou como parte de algum grupo secreto, Lovelace roubara o amuleto do próprio gover
no, desse modo se envolvendo em traição. Bem, se o garoto não gostasse disso, eu era u
m bolorento.
Uma coisa era garantida: aquele menino, Nathaniel, se metera em águas profundas, b
em mais profundas do que ele pensava, quando me mandou surrupiar o amuleto. Era
evidente que Simon Lovelace não hesitaria diante de nada para conseguir a coisa de
volta nem para silenciar qualquer um que soubesse que antes estivera com ele.
Mas por que o havia roubado de Beecham? O que o fizera arriscar atrair a ira do
Estado? Eu conhecia o amuleto pela fama, mas não a natureza exata de seu poder. Ta
lvez o trasgo pudesse me ajudar nessa questão.
Esse amuleto deve ser muito especial disse eu. Negocinho útil, não é?
Meu amo me informou que sim. Dizem que ele contém um ser extremamente poderoso, al
guma coisa vinda das áreas mais profundas do Outro Lugar, onde predomina o caos. E
le protege o usuário contra o ataque de...
Os olhos do trasgo vagaram para trás de mim e ele se interrompeu com uma súbita engo
lida em seco. Uma sombra o envolveu, uma sombra grande que aumentava conforme se
estendia sobre o chão encerado. O sininho tilintante soou quando a porta da Pinn'
s Accoutrements se abriu, permitindo brevemente que o barulho do tráfego de Piccad
illy invadisse o silêncio confortável da loja. Virei-me rapidamente.
Bem, bem, Simpkin disse Sholto Pinn, enquanto fechava a porta com uma bengala de
marfim. Recebendo um amigo enquanto não estou, não é? Quando o gato sai...
N-n-não, amo, de modo algum.
O infeliz lamuriento estava afofando o topete, curvando-se e recuando o máximo que
podia. Sua cabeça inchada estava encolhendo visivelmente. Que espetáculo! Fiquei on
de estava, frio como um pepino, encostado na parede.
Não é um amigo?
A voz de Sholto era baixa, cheia e tonitroante; de algum modo, fazia pensar na l
uz do Sol brilhando sobre madeira escurecida pelo tempo, potes de cera de abelha
para móveis e garrafas de fino vinho do Porto.49 Era uma voz bem-humorada, aparen
temente sempre a ponto de prorromper em uma risada gutural. Um sorriso bailava s
obre os lábios finos e largos, mas, acima, os olhos eram duros e frios. Visto de p
erto, ele era ainda maior do que eu podia esperar, uma grande parede branca na f
orma de um homem. Usando seu casaco de pele, ele podia ser confundido, visto sob
pouca luz, com um mamute de costas.
Simpkin escorregara de fininho para a frente do balcão.
Não, amo. E-ele é um mensageiro para o senhor. E-e-ele traz uma mensagem.
Não diga, Simpkin! Um mensageiro com uma mensagem! Extraordinário. Então por que não peg
ou a mensagem e o mandou seguir caminho? Eu lhe deixei com muito trabalho para f
azer.
Deixou, amo, deixou mesmo. Ele acaba de chegar!
Mais extraordinário ainda! Com meu espelho mágico, pude observar você conversando c
ele feito a mulher da peixaria durante os dez últimos minutos. Que explicação isso pod
e ter? Talvez minha visão esteja finalmente se reduzindo, em minha idade avançada.
O mago tirou o monóculo de um bolso do colete, encaixou-o em posição sobre o olho esqu
erdo50 e deu uns dois passos para a frente, balançando ociosamente a bengala. Simp
kin se encolheu, mas não deu resposta.
Bem, então. A bengala de repente oscilou em minha direção. Sua mensagem, diabret
está?
Toquei respeitosamente o topete.
Confiei-a à minha memória, senhor. Meu amo a considerava importante demais para ser
posta no papel.
É mesmo? O olho por trás do monóculo me fitou de cima abaixo. E o seu amo é...
Simon Lovelace, senhor! Bati uma continência elegante e fiquei em posição de sentido.
E se me der licença, senhor, vou transmitir sua mensagem agora e então me vou. Não que
ro tomar mais o seu tempo.
Exatamente. Sholto Pinn chegou mais perto e fixou os olhos intensamente em mim.
Sua mensagem... por favor, prossiga.
É simplesmente isto, senhor. "Caro Sholto, você foi convidado para ir ao Parlamento
hoje à noite? Eu não fui, parece que o primeiro-ministro me esqueceu, e me sinto mei
o esnobado. Por favor, responda com algum conselho a. s. a. p.51 Tudo de bom, Si
mon." Palavra por palavra, é isso aí, senhor, palavra por palavra.
A mim, isso pareceu bastante plausível, mas eu não queria abusar da sorte. Bati outr
a continência e parti para a porta.
Esnobado, hein? Pobre Simon. Mmm. O mago pensou por um momento. Antes de ir embor
a, como se chama, diabinho?
Beem... Bodmin, senhor.
Bodmin. Mmm. Sholto Pinn esfregou uma bochecha com um dedo grosso e cheio de anéis
. Você sem dúvida está louco para voltar a seu amo, Bodmin, mas tenho duas perguntas a
fazer antes que se vá.
Relutantemente, parei.
Oh, sim, senhor.
Que diabinho educado! Bem, em primeiro lugar, por que Simon não escreveria uma men
sagem tão inofensiva? Dificilmente poderia ser considerada sediciosa e poderia mui
to bem se deturpar na memória de um demônio inferior como você.
Tenho uma ótima memória, senhor. Sou famoso por isso.
Mesmo assim, parece errado... Não tem importância. Minha outra pergunta... E aqui Sh
olto aproximou-se um ou dois passos e meio que assomou sobre mim. Ele assomava d
e modo muito efetivo. Em minha forma atual, nem me senti pequeno. Minha outra pe
rgunta é a seguinte: por que Simon não me pediu conselho pessoalmente, quinze minuto
s atrás, quando o encontrei para um almoço que já havíamos combinado? Ah. Hora de ir emb
ora.
Dei um pulo em direção à saída, mas, por mais rápido que eu tivesse sido, Sholto Pinn foi
mais rápido ainda. Bateu com a bengala no chão e inclinou-a para a frente. Um raio d
e luz amarela foi disparado da ponta e colidiu com a porta, espalhando plasmas g
lobulares que se congelavam imediatamente contra qualquer coisa em que tocassem.
Dei um salto-mortal por cima deles, atravessando uma nuvem de vapor gélido e ater
rissei no alto de um mostruário entupido de roupa íntima de cetim. A bengala lançou ma
is um facho de luz; antes que ele acertasse, eu já estava em pleno ar, pulando sob
re a cabeça do mago e aterrissando com força sobre o seu balcão, espalhando papéis em to
das as direções.
Então rodopiei e disparei uma Detonação, que colidiu diretamente com as costas do mago
, empurrando-o para a frente em cima da estante de mostruário congelada. Ele tinha
a sua volta um campo de proteção pude vê-lo na forma de belas faíscas amarelas quando e
xaminei os diferentes planos , mas, embora não houvesse nele o furo que eu esperava
, Sholto ficou seriamente sem fôlego. Ele tombou, ofegante, em cima de uma mixórdia
de cuecas samba-canção geladas. Parti para a vitrine mais próxima com a intenção de arrebe
ntá-la para irromper no meio da rua.
Tinha me esquecido de Simpkin. Saindo rapidamente de detrás de um cabideiro de cap
otes, ele lançou um cajado gigante (com uma etiqueta dizendo EXTRAGRANDE) em direção a
minha cabeça. Eu me abaixei, o cajado espatifou o vidro da frente do balcão. Simpki
n recuou para repetir o golpe. Pulei sobre ele, tomei o cajado de suas garras e
dei-lhe uma porrada que inverteu a topografia do seu rosto. Com um grunhido, ele
caiu para trás, sobre uma pilha de chapéus malucos, e eu prossegui em meu caminho.
Entre dois manequins, observei um belo trecho de vitrine aberto, feito de vidro
límpido e curvo, que refratava a luz do sol em suaves cores de arco-íris. Parecia mu
ito caro e bonito. Disparei uma Detonação contra ele, mandando uma nuvem de pó de caco
de vidro que se despejou na rua como fumaça, e mergulhei para o buraco.
Tarde demais. Quando a vitrine quebrou, uma armadilha foi disparada.
Os manequins se viraram.
Eram de madeira escura lustrada o tipo de manequim de loja que não tem traços humano
s, só um esguio oval liso onde devia haver o rosto. A mais pálida sugestão de um nariz
, talvez, mas nenhuma boca, nem olhos. Estavam apresentando a última moda em roupa
de magos: ternos pretos unissex com listrinhas brancas finas e lapelas de corte
muito pronunciado; camisas de um tom de limão quase branco com colarinhos altos e
bem-engomados; gravatas ousadamente coloridas. Não usavam sapatos: de cada perna
de calça projetava-se apenas um simples pedaço de madeira.
Quando saltei no meio deles, seus braços dispararam para barrar o caminho. Do inte
rior de cada manga uma lâmina de prata se estendeu e firmou-se com um clique em su
as mãos sem dedos. Eu ia depressa demais para parar, mas ainda estava segurando o
cajado extragrande. As lâminas foram brandidas em minha direção em dois arcos sincroni
zados. Ergui o cajado à frente do rosto bem a tempo: as lâminas se cravaram fundo ne
le, quase cortando-os até o outro lado e me fazendo parar com uma súbita e dolorosa
sacudida.
Por um momento, senti a aura fria da prata contra a minha pele,52 larguei o caja
do e me atirei para trás. Os manequins sacudiram suas lâminas; meu cajado caiu ao chão
em duas metades. Eles dobraram os joelhos e saltaram. Eu pulei para trás, por cim
a do balcão.
As lâminas de prata cravaram-se no assoalho parquetado, bem no lugar onde eu estav
a.
Eu precisava me transformar, e rápido a forma de falcão provavelmente serviria , mas
também precisava me defender. Antes que eu pudesse decidir exatamente como, eles e
stavam em cima de mim de novo, cortando o ar com silvos, o vento franzindo seus
colarinhos exagerados. Mergulhei para um lado, caindo sobre uma pilha de caixas
de presente vazias. Um manequim caiu sobre o balcão, o outro atrás dele, suas cabeças
voltadas em minha direção.
Podia sentir minha energia se reduzindo. Transformações demais, feitiços demais, em mu
ito pouco tempo. Mas eu ainda não estava indefeso. Lancei um Inferno sobre o maneq
uim mais próximo o que se arrastava em cima do balcão. Um jorro de fogo azul irrompe
u do peitilho branco e durinho de sua camisa e começou a se espalhar rapidamente p
elo tecido. Sua gravata se encolheu, o paletó se consumiu sem chama. O manequim ig
norou isso, como era obrigado a fazer,53 e voltou a brandir sua lâmina. Recuei. O
manequim curvou as pernas, pronto para saltar. O fogo lhe lambia o torso; agora
o corpo de madeira envernizada estava ele próprio em chamas.
O manequim deu um salto bem alto e desceu em cima de mim, as chamas dançando atrás d
ele como um manto estendido. No último momento dei um pulo para o lado. Ele atingi
u pesadamente o chão. Houve um estalo doloroso: a madeira enfraquecida, queimando,
se lascara no impacto. O manequim deu um passo lateral em minha direção, seu corpo
oscilando em um ângulo grotesco e então suas pernas cederam. Ele caiu em uma confusão
flamejante de membros enegrecidos.
Eu estava para fazer o mesmo com seu companheiro, que havia ultrapassado com um
salto a fogueira e se aproximava depressa, quando um ligeiro som vindo de trás me
alertou para a recuperação parcial de Sholto Pinn. Olhei para ele. Sholto estava a m
eio de se aprumar sentado, com o aspecto de ter sido atropelado por uma manada d
e búfalos. Dois peitilhos duros em forma de forquilha orlavam-lhe a testa em um ângu
lo encantador. Mas ele ainda era perigoso. Procurou com a mão sua bengala, achou-a
, apontou-a em minha direção. O raio de luz amarela foi disparado mais uma vez, mas
eu já tinha caído fora e os plasmas envolveram o segundo manequim no meio do salto.
Seus membros irremediavelmente congelados, ele se arrebentou no chão, estilhaçando u
ma perna em uma dúzia de pedaços.
Sholto soltou uma imprecação e olhou em torno freneticamente. Não teve de procurar rea
lmente muito longe por mim. Eu estava bem acima dele, equilibrado no alto de uma
armação de prateleiras. A estante inteira estava cheia de pastas meticulosamente in
dexadas e mostruários belamente arrumados de escudos, estatuária e caixas antigas qu
e sem dúvida haviam sido surripiados de seus legítimos donos por todo o mundo. Devia
valer uma fortuna. Inclinei-me para apoiar as costas contra a parede, firmei be
m os pés na prateleira de cima e empurrei com força.
As prateleiras rangeram e oscilaram.
Sholto ouviu isso. Olhou para cima. Vi seus olhos se arregalarem horrorizados.
Dei um empurrão extra forte, com um pouco de maldade acrescentada. Eu pensava no i
ndefeso djim aprisionado nos manequins destruídos.
As prateleiras pararam e penderam suspensas por um instante. Um pequeno vaso canóp
ico egípcio foi o primeiro a cair, seguido de perto por uma caixa de incenso, de t
eca. Então o centro de gravidade se alterou, as prateleiras sofreram um estremecim
ento e o conjunto inteiro desabou com surpreendente rapidez sobre o mago esparra
mado no chão.
Sholto teve tempo para talvez um meio grito antes que seus accoutrements o ating
issem.
Ao som do impacto, carros em Piccadilly rabearam, colidiram. Uma nuvem de incens
o e poeira funérea se levantou dos remanescentes espalhados do belo mostruário de Sh
olto.
Até aí estava satisfeito com meu desempenho, mas é sempre melhor sair quando se está por
cima. Dei uma espiada cautelosa nas prateleiras, mas por baixo delas nada se me
xia. Se o seu escudo defensivo fora suficiente para salvá-lo, eu não sabia dizer. Não
importa. Com certeza agora eu estava livre para me mandar. Parti para o buraco n
a vitrine. Mais uma vez, ergueu-se uma figura para me bloquear o caminho. Simpki
n.
Dei uma parada no meio do ar.
Por favor disse eu, não desperdice o meu tempo. Já rearrumei seu rosto para você. M
o parecido com o dedo de uma luva virada do avesso, seu nariz antes protuberante
estava bem enfiado para dentro de sua cabeça. Ele parecia irritado.
Deu um sussurro anasalado.
Você machucou o amo.
Sim, e você devia estar dançando de alegria! disse eu com desdém. Se estivesse
lugar, eu estaria a caminho de acabar com ele, e não me lamuriando pelos cantos co
mo você, seu vira-casaca infeliz.
Levei semanas para arrumar aquele mostruário. Perdi a paciência.
Você tem um segundo para sumir da minha frente, traidor.
Tarde demais, Bodmin! Já acionei o alarme. As autoridades mandaram um...
Tá, tá.
Concentrando minhas últimas energias, transformei-me no falcão. Simpkin não esperava u
ma transformação dessas de um humilde diabrete mensageiro. Ele caiu para trás; levante
i vôo sobre sua cabeça, despejando um cocô de despedida sobre seu cabelo, e prorrompi
finalmente na liberdade do céu aberto!
Ao que baixou uma rede de fios de prata, prendendo-me sobre a calçada de Piccadill
y.
Esses fios eram uma Armadilha do tipo mais elástico: prendiam-me em todos os plano
s, grudando-se a minhas penas que se agitavam em luta, minhas pernas que chutava
m e meu bico que beliscava com força. Resisti lutando com todas as minhas forças, ma
s os fios se prendiam a mim, pesados com o elemento terra, de todos o que me é mai
s alheio e com o toque torturante da prata. Eu não podia me transformar, não podia e
xecutar nenhuma mágica, grande ou pequena. Minha essência era ferida ao menor contat
o com os fios quanto mais me debatia, pior me sentia.
Após alguns segundos, desisti. Fiquei caído sob a rede, todo amontoado, um montinho
confuso e imóvel de penas. Um de meus olhos deu uma espiada por baixo da dobra da
asa. Olhei para além da fatídica treliça de fios de prata para a calçada cinzenta, ainda
úmida da última chuva, com a fina cobertura de um borrifo de cacos de vidro. E, em
algum lugar ou outro, podia ouvir Simpkin dando uma risada longa e aguda.
E então as lajes da calçada escureceram sob uma sombra que baixava.
Dois cascos grandes e fendidos pousaram sobre as lajes com um tinido suave. O ci
mento estalou e borbulhou onde cada casco tocou.
Ergueu-se um vapor em volta da rede, carregado com as exalações nocivas de alho e al
ecrim. Minha mente estava envenenada; minha cabeça flutuava, meus músculos se afroux
avam... E, então, a escuridão envolveu o falcão e, como uma vela derretida, apagou sua
consciência.
Nathaniel
18
Os dois dias que se seguiram à escolha de seu novo nome foram desagradáveis para Nat
haniel. Fisicamente, ele estava em maré baixa: a invocação de Bartimaeus e o duelo mágic
o entre eles levaram a isso. Quando voltou de sua ida ao Tâmisa, já estava fungando
um pouquinho; ao cair da noite, coriza lhe escorria aos montes, na manhã seguinte
estava totalmente gripado. Quando apareceu na cozinha, parecendo um fantasma, a
sra. Underwood deu-lhe uma olhada, virou-o de novo em direção à porta e mandou-o de vo
lta para a cama. Ela o seguiu até lá em cima pouco depois, com uma bolsa de água quent
e, uma pilha de sanduíches de creme de chocolate e uma caneca fumegante de mel e l
imão. Lá do fundo de seus cobertores, Nathaniel tossiu seus agradecimentos.
Isso nem precisa dizer, John ela disse. Não quero ouvir mais um pio seu esta manhã.
Temos de fazê-lo melhorar para o discurso do ministro, não é? Ela olhou em torno, fran
zindo o cenho. Está um cheiro muito forte de velas aqui em cima. E de incenso. Você
não andou treinando aqui, andou?
Não, sra. Underwood. Intimamente, Nathaniel amaldiçoou seu descuido. Tivera vontade
de abrir a janela para deixar sair o fedor, mas sentira-se tão cansado na noite an
terior, que isso lhe fugira da cabeça.
Isso às vezes acontece. Os cheiros sobem até o alto da casa, vindo da sala de trabal
ho do sr. Underwood.
Estranho. Nunca havia notado.
Ela farejou de novo. Os olhos de Nathaniel foram atraídos como por um ímã para a ponta
de seu tapete onde, para seu horror, viu o perímetro de um pentagrama aparecendo.
Com grande força de vontade, afastou o olhar e prorrompeu em um vigoroso acesso d
e tosse. A sra. Underwood se distraiu. Ela lhe passou o mel com limão.
Tome isto, meu bem. E então durma. Eu volto a subir na hora do almoço.
Muito antes de que ela voltasse, a janela tinha sido aberta e o quarto ficou bem
arejado. As tábuas do assoalho sob o tapete haviam sido limpas com um esfregão.
Nathaniel ficou deitado. Seu novo nome, a que a sra. Underwood parecia determina
da a acostumá-lo, vibrava estranhamente em seus ouvidos. Parecia artificial, até um
pouco bobo. John Mandrake. Adequado talvez para um mágico dos quadrinhos; menos ad
equado para um menino cheio de gripe, com o nariz escorrendo sem parar. Ele acha
ria difícil se acostumar a essa nova identidade, mais difícil ainda esquecer seu ant
igo nome...
Não que lhe fosse permitido esquecê-lo, com Bartimaeus por aí. Mesmo com sua salvaguar
da a lata de fumo tomando banho no fundo do rio , Nathaniel não se sentia muito seg
uro. Por mais que tentasse eliminá-la da mente, a preocupação voltaria: era como uma c
onsciência culpada, aguilhoando-o, não o deixando esquecer, nunca lhe permitindo rel
axar tranqüilo. Talvez ele houvesse esquecido algo vital que o demônio percebia... t
alvez nesse mesmo instante ele estivesse maquinando seu plano em vez de espionar
Lovelace, como ele havia mandado.
Uma multidão de possibilidades desagradáveis girava incessantemente por sua cabeça, en
quanto ele se espalhava em meio a um entulho de cascas de laranja e tecidos amar
rotados. Sentiu-se fortemente tentado a tirar o espelho mágico de seu esconderijo
sob as telhas e, com sua ajuda, dar uma conferida em Bartimaeus. Mas ele sabia q
ue isso era imprudente sua cabeça estava nublada, sua voz era um fraco grasnido e
seu corpo não tinha força suficiente para sentar-se ereto na cama, quanto menos para
controlar um diabinho beligerante. Por enquanto, o djim teria de ser deixado po
r conta de seus próprios estratagemas duvidosos. Sem dúvida, ia ficar tudo bem.
As atenções da sra. Underwood puseram Nathaniel novamente de pé na terceira manhã seguin
te.
E bem em cima da hora ela disse. Hoje à noite é nossa grande saída.
Quem vai estar lá? perguntou Nathaniel. Ele estava sentado no canto da cozinha, de
pernas cruzadas, engraxando os sapatos.
Os trezentos ministros do governo, seus cônjuges, alguns aprendizes muito sortudos
e que já têm nome... e uns poucos habitues, os magos menores do serviço público ou das
forças armadas, que estão perto de serem promovidos, mas ainda não conhecem as pessoas
certas. É uma boa oportunidade para ver quem é in e quem é out, John, para não menciona
r o que todo mundo está vestindo. Na reunião de verão, em junho, diversos ministros fi
zeram a experiência de cafetã no estilo de Samarkand. Causou um grande furor, mas não
pegou, é claro. Oh, por favor, concentre-se, John. Ele deixara cair a escova.
Lamento, ela escorregou, foi só isso. Por que Samarkand, sra. Underwood? O que há de
estilo tão especial nisso?
Com certeza não faço a menor idéia. Se já terminou os sapatos, é melhor ir escovar o paletó
Era um sábado, e não havia aulas para distrair Nathaniel da emoção do que estava para ac
ontecer, então, conforme o dia foi se passando, ele ficou tomado de uma empolgação que
crescia descontroladamente. Por volta das três da tarde, várias horas antes do que
era necessário, já estava vestido com suas roupas mais elegantes e andando pela casa
para lá e para cá uma situação que perdurou até que o mestre apareceu à porta de seu qua
e abruptamente deu-lhe ordem de parar.
Pare com essa perambulação, menino! Está fazendo minha cabeça latejar! Ou será que
ficar em casa hoje à noite?
Nathaniel sacudiu a cabeça desligadamente e desceu na ponta dos pés para a bibliotec
a, onde se manteve longe de encrencas pesquisando novos feitiços de Sujeição do djim d
e categoria mediana. O tempo passou agradavelmente, e ele ainda estava ocupado a
prendendo a difícil fórmula encantatória para o Pêndulo Pontiagudo, quando o sr. Underwo
od prorrompeu pela sala, seu melhor sobretudo flutuando às suas costas.
Então está aí, seu idiota! Estou percorrendo a casa de alto a baixo chamando por vo
ais um minuto, e ia descobrir que já tínhamos saído.
Desculpe, senhor, eu estava lendo...
Esse livro você não estava lendo, não, seu tolo dorminhoco. E de quarto nível, escr
m copta, sem a menor esperança para você. Estava dormindo, e não negue. Certo, avie-se
ou vou realmente deixá-lo para trás.
Os olhos de Nathaniel estavam fechados no momento em que o mestre entrara: ele a
chava mais fácil decorar as coisas assim. Tudo considerado, isso talvez tenha sido
sorte, já que não precisava sair-se com mais explicações. Em um instante o livro estava
largado de lado, sobre a poltrona, e ele saiu da biblioteca sob total controle
de seu mestre, seguindo-o em um alvoroço de olhos arregalados e coração palpitante pel
o saguão, cruzando a porta da frente e saindo para a noite, onde a sra. Underwood,
usando um vestido verde acetinado e com alguma coisa parecendo uma sucuri pelud
a frouxamente passada em torno de seu pescoço, esperava sorrindo ao lado do grande
carro negro.
Nathaniel só andara no carro do seu mestre uma única vez e não se lembrava mais. Subiu
para o banco traseiro, maravilhado com a sensação do assento de couro lustroso e o
cheiro estranho e artificial do odorizante de pinho pendurado no espelho retrovi
sor.
Encoste-se bem no banco e não toque nas janelas.
As sobrancelhas do sr. Underwood lançaram-lhe uma expressão ameaçadora pelo espelho. N
athaniel recostou-se no banco, as mãos tranqüilamente pousadas no colo, e a viagem a
o Parlamento começou.
Nathaniel ficou olhando pela janela enquanto o carro seguia para o sul. As luzes
de Londres, incontáveis e brilhantes faróis, postes de rua, vitrines de lojas, jane
las, esferas de vigilância passavam sobre seu rosto em rápida sucessão. Ele fitava tud
o com os olhos esbugalhados, mal piscando, absorvendo o que era possível. Atravess
ar a cidade de automóvel era uma ocasião especial em si mesma raramente acontecia a
Nathaniel, cuja experiência do mundo se limitava principalmente a livros. De vez e
m quando, a sra. Underwood o levava, em viagens de ônibus necessárias, a lojas de ro
upas e de sapatos, e certa vez, quando o sr. Underwood saíra a negócios, ele fora le
vado ao zoológico. Mas raramente ultrapassava os arredores de Highgate, e certamen
te nunca à noite.
Como de costume, era a mera escala que o deixava sem fôlego; a profusão de ruas e su
as transversais, as fileiras de luz que desapareciam em curvas por todos os lado
s. A maioria das casas parecia muito diferente das da rua de seu mestre: muito m
enores, malcuidadas e empilhadas muito juntas. Às vezes elas pareciam se congregar
em torno de construções amplas e sem janelas, com telhados planos e chaminés altas, p
rovavelmente fábricas, onde plebeus se reuniam para algum propósito idiota. Como tal
, elas realmente não lhe interessavam.
Os próprios plebeus estavam em evidência também. Nathaniel sempre se surpreendeu com q
uantos deles havia. Apesar da escuridão e da garoa do anoitecer, eles saíam em números
surpreendentes, as cabeças baixas, afobando-se como formigas em seu jardim, entra
ndo e saindo das lojas ou às vezes desaparecendo em estalagens caindo aos pedaços na
s esquinas das ruas, onde luzes cálidas e alaranjadas brilhavam através de janelas f
oscas de frio. Cada uma dessas casas tinha sua própria esfera de vigilância flutuand
o permanentemente no ar, acima da porta; sempre que alguém passava por baixo, ela
piscava e pulsava com um rubro mais profundo.
O carro acabava de passar por uma dessas estalagens um exemplar particularmente
grande de taberna, em frente a uma estação do metrô , quando o sr. Underwood bateu com
o punho fechado sobre o painel do carro, com força suficiente para fazer Nathaniel
pular.
É essa aí, Martha! exclamou. Essa é uma das piores delas! Se dependesse de mim, a Políc
a Noturna entrava aí amanhã e carregava todo mundo que achasse lá dentro.
Oh, não a Polícia Noturna, Arthur disse a esposa, com voz dolorida. Com certeza há mel
hores meios de reeducá-los.
Você não sabe o que está dizendo, Martha. Mostre-me uma estalagem londrina, e eu lhe m
ostrarei um ponto de reunião de plebeus escondido lá dentro. No sótão, no porão, em uma sa
la secreta atrás do bar... já vi isso tudo, a Assuntos Internos dava constantes bati
das. Mas nunca houve nenhuma prova, nem nenhum dos flagrantes que procuramos, so
mente salas vazias, algumas cadeiras e mesas... Ouça o que estou lhe dizendo, é em a
ntros sujos e espeluncas como essas que os problemas estão começando. O primeiro-min
istro terá de agir logo, mas, aí, quem sabe que desmandos já terão cometido. Esferas de
vigilância não são suficientes! Precisamos liquidar esses lugares, foi o que eu disse
a Duvall hoje à tarde. Mas evidentemente ninguém me escuta.
Nathaniel há muito aprendera a nunca fazer perguntas, por mais interessado que est
ivesse em alguma coisa. Levantou a cabeça e ficou olhando as luzes laranja da esta
lagem diminuindo e sumindo atrás deles.
Agora estavam entrando no centro de Londres, onde os prédios ficavam cada vez maio
res e mais grandiosos, como convinha à capital de um império. O número de carros parti
culares nas ruas aumentou, enquanto as vitrines das lojas ficavam maiores e mais
vistosas, e magos, além de plebeus, tornavam-se visíveis, andando pelas calçadas.
Como está, meu bem? perguntou a sra. Underwood.
Muito bem, sra. Underwood. Já estamos quase chegando?
Mais uns poucos minutos, John.
Seu mestre deu uma olhada pelo retrovisor.
Tempo suficiente para lhe dar um aviso ele disse. Hoje à noite você está representando
a mim. Vamos estar no mesmo salão que todos os outros magos do país, e isso signifi
ca homens e mulheres de cujo poder você ainda nem começa a desconfiar. Dê um pisão fora
da linha e arruinará minha reputação. Sabe o que aconteceu com o aprendiz de Disraeli?
Não, senhor.
Foi em uma cerimônia oficial muito parecida com esta. O aprendiz tropeçou nos degrau
s de Westminster enquanto Disraeli estava sendo apresentado à assembléia. Ele esbarr
ou em seu mestre e lançou-o caindo pelos degraus, de cabeça para baixo. A queda de D
israeli foi interrompida pela duquesa de Argyll, felizmente, uma senhora bem for
nida.
Sim, senhor.
Disraeli levantou-se e desculpou-se com a duquesa com grande cortesia. Então virou
-se para onde seu aprendiz estava tremendo e chorando, no alto da escada, e bate
u palmas uma vez. O aprendiz caiu de joelhos, as mãos estendidas, mas de nada adia
ntou. Caiu uma escuridão sobre o salão durante aproximadamente quinze segundos. Quan
do clareou, o aprendiz tinha sumido e em seu lugar havia uma sólida estátua de ferro
, exatamente com a forma do infeliz do garoto. Em suas mãos suplicantes havia um c
apacho para se raspar lama, no qual todos que entraram no salão nos últimos 150 anos
puderam limpar seus sapatos.
É mesmo, senhor? Eu vou vê-lo?
A questão é, menino, que se você me constranger de alguma maneira, providenciarei para
que lá haja um cabideiro combinando. Está entendendo?
Estou sim, senhor.
Nathaniel tomou nota mentalmente de que deveria verificar as fórmulas para Petrifi
cação. Tinha a sensação de que implicava invocar um afrito de considerável poder. Pelo que
sabia da capacidade do seu mestre, duvidava que ele tivesse a mais longínqua poss
ibilidade de fazer isso. Deu um sorrisinho na escuridão.
Fique ao meu lado o tempo todo continuou o sr. Underwood. Não fale, a não ser que eu
lhe dê permissão, e não fique olhando para nenhum dos magos, não importa que deformidad
es possam ter. E agora fique em silêncio... Já chegamos e eu preciso me concentrar.
O carro reduziu a marcha, juntando-se a uma procissão de veículos pretos semelhantes
que seguiam ao longo da larga extensão cinzenta de Whitehall. Passaram por uma su
cessão de monumentos de granito aos magos da recente era vitoriana e aos heróis que
tombaram na Grande Guerra, e em seguida por algumas esculturas monolíticas, repres
entando Virtudes Ideais (Patriotismo, Respeito pela Autoridade, a Esposa Zelosa)
. Atrás, elevavam-se os prédios de escritórios de frente lisa e muitas janelas, que ab
rigavam o governo imperial.
O ritmo reduziu-se a um lento arrastar-se. Nathaniel começou a notar grupos de obs
ervadores silenciosos parados nas calçadas, vendo os carros que passavam. Pelo mel
hor que conseguia julgar, o ânimo dessas pessoas parecia taciturno, até hostil. A ma
ioria tinha o rosto magro e chupado. Homens grandalhões usando uniformes cinzentos
estavam parados mais afastados, como quem não quer nada, de olho na multidão. Todos
policiais como plebeus pareciam estar com muito frio.
Sentado sozinho, no conforto isolado do carro, um rompante de auto-satisfação começou
a tomar conta de Nathaniel. Ele agora era parte das coisas; estava por dentro, f
inalmente a caminho do Parlamento. Ele era importante, separado do resto e a sen
sação era boa. Pela primeira vez na vida, conhecia a satisfação indolente do poder fácil.
No momento o carro entrava na Parliament Square e eles dobraram à esquerda, atrave
ssando alguns portões de ferro batido. O sr. Underwood mostrou um passe, alguém fez
sinal para que seguissem em frente e então o carro estava cruzando um pátio paviment
ado de pedras arredondadas e descendo uma rampa para um estacionamento subterrâneo
iluminado por lâmpadas de neon. O sr. Underwood parou em uma vaga livre e desligo
u a ignição.
No banco de trás, os dedos de Nathaniel se agarraram ao assento de couro. Ele trem
ia, da emoção reprimida.
Haviam chegado.
19
Caminhavam ao lado de uma seqüência infinita de carros negros lustrosos, em direção a um
a dupla porta de metal. A essa altura, a expectativa de Nathaniel era tal que el
e dificilmente conseguia se concentrar em qualquer coisa que fosse. Estava tão dis
traído que mal percebeu os dois guardas esguios que os pararam ao lado das portas,
ou notou seu mestre apresentar três passes de plástico, que foram inspecionados e d
evolvidos. Mal registrou o elevador forrado com painéis de carvalho em que entrara
m, ou a minúscula esfera vermelha que os observava do teto. E foi só quando as porta
s do elevador se abriram e eles saltaram para o esplendor de Westminster Hall qu
e, num assomo, seus sentidos lhe voltaram.
Era um vasto espaço, largo e aberto sob um teto de vigas de madeira enegrecidas pe
los anos e de inclinação bem pronunciada. As paredes e os assoalhos eram feitos de g
igantescos blocos de pedra alisados; as janelas eram arcos ornamentados com intr
icado trabalho em vitral. Na extremidade oposta, uma multidão de portas e janelas
abria-se a um terraço dando para o rio. Lanternas amarelas pendiam do teto e se pr
ojetavam das paredes em braseiros de metal. Talvez umas duzentas pessoas já estive
ssem paradas ou circulando por esse vestíbulo, mas eram de tal forma engolfadas po
r sua enorme expansão, que o lugar parecia quase vazio, e Nathaniel engoliu em sec
o. Sentiu-se reduzido a uma súbita insignificância.
Ficou parado ao lado do sr. Underwood, no alto de um lance de escadas que descia
m para o grande vestíbulo. Um serviçal vestido de preto deslizou em direção a eles e ret
irou-se com o sobretudo de seu mestre. Um outro fez um gesto educado e eles part
iram escadas abaixo.
Um objeto ao lado chamou a atenção de seu olho. Uma estátua de um cinza embotado um ga
roto agachado, usando roupas estranhas, erguendo olhos arregalados e segurando u
m capacho para se raspar lama dos sapatos. Embora o tempo há muito houvesse apagad
o os detalhes mais minuciosos do rosto, ele ainda possuía um olhar curiosamente su
plicante, que fez a pele de Nathaniel se arrepiar. Apressou-se para a frente, te
ndo o cuidado de não chegar perto demais dos calcanhares do seu mestre.
Ao pé da escada eles fizeram uma parada. Serviçais se aproximaram trazendo copos de
champanhe (que Nathaniel queria) e limonada (que ele não queria mas aceitou). O sr
. Underwood tomou um prolongado gole de seu copo e correu os olhos com ansiedade
de um lado para o outro. A sra. Underwood olhou à sua volta com um sorriso vago,
sonhador. Nathaniel bebeu um pouco de limonada e deu uma olhada no ambiente.
Circulavam por lá magos de todas as idades, conversando e rindo. O grande vestíbulo
era um borrão de ternos escuros e vestidos elegantes, de dentes brancos reluzentes
e jóias coruscando sob a luz das lanternas. Uns poucos homens de expressões duras,
usando ternos cinza idênticos, circulavam indolentemente perto de cada saída. Nathan
iel calculou que eram policiais ou magos em serviço de segurança, prontos para convo
carem um djim ao menor sinal de problema mas nem mesmo através de suas lentes ele
pôde avistar entidades mágicas presentes no ambiente.
Notou, no entanto, diversos jovens se pavoneando e moças de nariz empinado que era
m evidentemente aprendizes como ele. Sem exceção, batiam papo confiantemente com out
ros convidados, todos muito à vontade. Nathaniel de súbito ficou agudamente cônscio do
modo esquisito com que seu mestre e a sra. Underwood estavam parados, isolados
e sozinhos.
Não devíamos estar conversando com alguém? arriscou. O sr. Underwood lançou-lhe u
virulento.
Acho que eu tinha lhe dito... Ele se interrompeu e saudou um homem gordo que aca
bara de descer as escadas. Grigori!
Grigori não pareceu particularmente emocionado.
Oh. Olá, Underwood.
Maravilhoso, ver você!
O sr. Underwood dirigiu-se até ele, praticamente precipitando-se sobre o outro em
sua avidez por começar uma conversa. A sra. Underwood e Nathaniel foram deixados s
ozinhos.
Ele não vai nos apresentar? Nathaniel perguntou impaciente.
Não se preocupe, querido. É importante para seu mestre falar com as pessoas da alta
Nós não precisamos falar com ninguém, precisamos? Mas ainda podemos ficar olhando, o
que é sempre um prazer... Ela fez um pouco de muxoxo. Devo dizer que os estilos es
te ano estão tão conservadores.
O primeiro-ministro está aqui, sra. Underwood? Ela esticou o pescoço.
Creio que não, meu bem, não. Ainda não. Mas aquele é o sr. Duvall, o chefe de políc
uma pequena distância dali um homem robusto, usando um uniforme cinza, escutava pa
cientemente duas moças, que pareciam estar falando animadamente com ele ao mesmo t
empo. Certa vez eu o conheci, um cavalheiro tão encantador. E muito poderoso, é clar
o. Deixe-me ver, quem mais? Minha nossa, sim... Está vendo aquela senhora ali? Nath
aniel tinha visto. Era surpreendentemente magra com cabelos brancos cortados cur
tinhos; seus dedos seguravam o pé de seu copo como as garras crispadas de uma ave.
Jéssica Whitwell. Ela tem algo a ver com a Segurança: uma maga muito prestigiada. F
oi ela que pegou os tchecos infiltrados dez anos atrás. Eles chamaram um marid e o
mandaram para cima dela, mas ela criou um Vácuo que os sugou. Fez isso sozinha, e
com mínima perda de vidas. Portanto não se atravesse no caminho dela quando for mai
s velho, John.
Ela riu e bebeu todo o seu copo. Imediatamente, um serviçal apareceu a seus ombros
e voltou a enchê-lo, até a borda. Nathaniel riu também. Como costumava acontecer em c
ompanhia dela, achava que a serenidade da sra. Underwood o exasperava um tanto.
Relaxou um pouquinho.
Com licença, com licença! O duque e a duquesa de Westminster.
Dois serviçais de libré passaram afobados. Nathaniel foi empurrado de lado sem a men
or cerimônia. Uma mulher miúda, rabugenta, usando um vestido preto mal-ajambrado, um
a correntinha de ouro no tornozelo e com uma expressão imperiosa abriu caminho ent
re a multidão às cotoveladas. Um homem com ar exausto vinha atrás dela. A sra. Underwo
od ficou olhando, admiradíssima.
Que mulher medonha ela é, não consigo imaginar o que o duque vê nela. Tomou mais
le de champanhe. E aquele ali... Meu Deus! O que lhe terá acontecido? É o comerciant
e Sholto Pinn.
Nathaniel observou um homem grande e gordo, usando um terno de linho branco, que
descia as escadas manquitola, apoiando-se em um par de muletas. Movia-se como s
e fazê-lo lhe causasse grande dor. Tinha o rosto coberto de machucados; um olho es
tava preto e fechado. Dois servidores o cercavam, abrindo-lhe caminho em direção a a
lgumas cadeiras postas contra a parede.
Ele não parece muito bem disse Nathaniel.
De fato, não. Algum terrível acidente. Talvez algum artefato tenha funcionado errad
, pobre homem...
Animada por seu champanhe, a sra. Underwood continuava a ciceronear Nathaniel po
r entre os importantes homens e mulheres que chegavam ao Hall. Era a nata do gov
erno e da sociedade; as pessoas mais influentes de Londres (e isso, evidentement
e, equivalia a dizer, do mundo). Conforme ela se alongava sobre seus feitos mais
famosos, Nathaniel ia se tornando cada vez mais sombriamente consciente de como
ele era periférico a todo esse glamour e poder. O sentimento de auto-satisfação que o
acalantará rapidamente no carro já estava esquecido, substituído, porém, por uma tortur
ante frustração. Voltou a avistar seu mestre diversas vezes, sempre parado na perife
ria de um grupo, sempre ignorado ou mal tolerado. Desde o incidente com Lovelace
, ele entendera como Underwood era ineficiente. E aqui estava mais uma prova dis
so. Todos os seus colegas sabiam que o sujeito era fraco. Nathaniel rangeu os de
ntes de raiva. Ser o desprezado aprendiz de um mago desprezado! Esse não era o iníci
o de vida que ele queria ou merecia...
A sra. Underwood sacudiu-lhe o braço com urgência.
Ali John! Está vendo? Aquele é ele! E ele!
Quem?
Rupert Devereaux. O primeiro-ministro.
De onde ele tinha saído, Nathaniel não fazia idéia. Mas, de repente, lá estava ele: um h
omem baixo, esguio, com cabelo castanho-claro, parado no centro de uma contenda
de smokings e vestidos de coquetel competindo entre si e, mesmo assim, miraculos
amente ocupando um ponto solitário de dignidade e calma. Ele escutava o que alguém d
izia, assentindo com a cabeça e sorrindo ligeiramente. O primeiro-ministro! O home
m mais poderoso da Grã-Bretanha, talvez do mundo... Mesmo à distância, Nathaniel senti
u um candente ímpeto de admiração; não queria nada além de se aproximar e olhá-lo, ouvi-lo
alar. Teve a sensação de que o Hall inteiro sentia-se como ele; que, sob a superfície
de cada conversa, os sentidos de todos voltavam-se para aquela específica direção. Mas
no momento mesmo em que ele começou a olhá-lo o bolo de gente se fechou e a figura
garbosa e esquia sumiu de sua vista.
Relutante, Nathaniel virou-se para outro lado. Tomou um gole resignado de sua li
monada e parou imóvel.
Junto ao pé da escada estavam parados dois magos. Eram quase os únicos naquela vizin
hança que não demonstravam interesse no grupo em torno do primeiro-ministro; convers
avam animadamente, suas cabeças quase juntas. Nathaniel respirou fundo. Conhecia o
s dois na verdade, seus rostos tinham ficado gravados em sua memória desde sua hum
ilhação no ano anterior. O velho com a pele enrugada, corada, mais encarquilhado e c
urvado do que nunca; o mais jovem, com a compleição pegajosa, o cabelo liso tombando
-lhe sobre o colarinho. Os amigos de Lovelace. E, se eles estavam lá, o próprio Love
lace estaria muito longe?
Umas pontadas incômodas prorromperam no estômago de Nathaniel, uma sensação de fraqueza
que o deixava imensamente chateado. Lambeu os lábios secos. Acalme-se. Não havia nad
a a temer. Lovelace não tinha como ligar o amuleto a ele, mesmo que se encontrasse
m cara a cara. Seus batedores teriam de efetivamente entrar na casa de Underwood
para poder detectar sua aura. Estava suficientemente seguro. Não, ele deveria apr
oveitar esta oportunidade, como qualquer bom mago faria. Se chegasse mais perto
de seus inimigos, talvez conseguisse escutar o que eles tinham a dizer.
Deu uma olhada em torno; a atenção da sra. Underwood tinha sido distraída. Estava conv
ersando com um cavalheiro baixinho e atarracado e acabava de cair na gargalhada.
Nathaniel começou a esgueirar-se entre a multidão, seguindo uma trajetória que o leva
ria até as sombras da escada, não longe de onde estavam os dois magos.
À meio do caminho, ele viu o mais velho se interromper no meio de uma frase e ergu
er os olhos para a galeria de entrada. Nathaniel acompanhou seu olhar. Seu coração t
eve um sobressalto.
Lá estava ele: Simon Lovelace, o rosto corado e ofegante. Evidentemente, acabava d
e chegar. Tirou o sobretudo em um gesto exuberante e atirou-o para um serviçal, an
tes de ajeitar as lapelas do paletó e apressar-se rumo à escada. Seu aspecto estava
tal como Nathaniel se lembrava: os óculos, o cabelo puxado para trás, a energia dos
movimentos, a boca larga abrindo e fechando-se em um sorriso para todos que pass
avam. Trotou com vivacidade degraus abaixo, desprezando o champanhe que lhe era
oferecido, seguindo em direção a seus amigos.
Nathaniel apressou-se. Em poucos segundos, chegou a um trecho de assoalho desocu
pado, ao lado de um corrimão da escada, que subia em um majestoso movimento circul
ar. Agora ele não estava longe do pé da escada, perto do ponto onde o final do corri
mão se enroscava, formando um arremate ornamental sobre o pedestal da base, em cim
a do vaso de pedra. Atrás de um dos lados do vaso, avistou a nuca do mago viscoso;
atrás do outro, parte do paletó do velho. Quanto ao próprio Lovelace, já descera a esca
da para juntar-se a eles e estava fora de vista.
O vaso encobria Nathaniel da visão deles. Foi se chegando devagar para trás do pedes
tal de base do corrimão e recostou-se nele com o que esperava ser um jeito jovial
e afável. Então esforçou-se por distinguir suas vozes do burburinho que os cercava.
Sucesso. O próprio Lovelace estava falando, sua voz ríspida e irascível.
... nenhuma sorte absolutamente. Tentei todos os métodos possíveis. Nada do que eu i
nvoquei sabe me dizer quem está no controle.
Ora, bolas, você andou perdendo seu tempo. Era o sotaque carregado do mais velho.
Como os outros demônios iam saber?
Não é meu hábito deixar qualquer possibilidade sem tentar. Mas, não, tem razão. E as esfer
as foram inúteis também. Talvez tenhamos de mudar nossos planos. Recebeu minha mensa
gem? Acho que devíamos cancelar.
Cancelar? Uma terceira voz, provavelmente a do homem viscoso.
Sempre posso culpar a jovem.
Não acho que isso seja sensato. O velho falou baixinho. Nathaniel mal conseguia ou
vir as palavras. Devereaux ia se chatear com você ainda mais, se você cancelasse. El
e está esperando por todos os pequenos luxos que você prometeu lhe proporcionar. Não,
Simon, temos de enfrentar isso com coragem. Continue procurando. Temos alguns di
as. Pode ser que ainda apareça.
Isso vai me arruinar, se for tudo para nada! Sabe quanto custou aquele lugar?
Acalme-se. Você está erguendo a voz.
Tudo bem. Mas sabe o que eu não consigo agüentar? Quem o fez, seja lá quem for, está aqu
i, em algum lugar. Observando-me, rindo... Quando eu descobrir quem é, vou...
Mantenha a voz baixa, Lovelace! Novamente o tipo viscoso.
Talvez, Simon, devêssemos ir para algum lugar um pouco mais discreto...
Por trás do pedestal, Nathaniel sacudiu-se para trás, como empurrado por uma carga e
létrica. Eles estavam se afastando dali. Não ia ser bom que se visse cara a cara com
eles naquele lugar. Sem parar, ele foi saindo de fininho da sombra da escada e
deu alguns passos em meio à multidão. Uma vez que se afastara o suficiente para acha
r-se seguro, olhou para trás. Lovelace e seus companheiros mal haviam se mexido. U
m mago mais velho havia se imposto à companhia do grupo e tagarelava sem parar, pa
ra enorme impaciência deles.
Nathaniel tomou um gole de sua bebida e se controlou. Não tinha entendido tudo que
escutara, mas a fúria de Lovelace era agradavelmente evidente. Para descobrir mai
s, teria de invocar Bartimaeus. Talvez seu escravo estivesse aqui agora mesmo, n
a cola de Lovelace... Nada aparecia em suas lentes, é verdade, mas o djim teria mu
dado sua forma em cada um dos quatro primeiros planos. Qualquer uma dessas pesso
as aparentemente sólidas podia ser uma casca escondendo o demônio em seu interior.
Ele ficou parado, perdido em pensamentos por algum tempo, à margem de um pequeno g
rupo de magos. Gradualmente, a conversa deles foi sendo percebida por ele.
... tão bonito. Ele é ligado a alguém?
Simon Lovelace? Há uma certa mulher. Não me lembro do nome dela.
Melhor para você ficar longe dele, Devina. Ele não é mais o menino de ouro.
Ele estará abrigando a conferência na semana que vem, não é? E ele é tão bonito...
Ele teve de puxar muito o saco de Devereaux para isso. Não, a carreira dele está ind
o depressa para lugar nenhum. O primeiro-ministro o botou no banco dos reservas.
Lovelace tentou o Ministério do Interior um ano atrás, mas Duvall bloqueou. Duvall
o detesta, não consigo lembrar por quê.
Aquele com Lovelace é o velho Schyler, não é? O que será que ele invocou para ficar com
uma cara como aquela? Já vi diabretes de melhor aspecto.
Lovelace escolhe companhias curiosas, para um ministro, é o que eu posso dizer. Qu
em é o sebento?
Visgo de pegar passarinho, eu acho. Agricultura.
É um sujeito esquisito.
Onde vai ser essa conferência, afinal?
Onde Judas perdeu as botas, fora de Londres.
Oh, não, é mesmo? Que coisa desesperadamente tediosa. Provavelmente vamos ser todos
garfados por homens de macacão com seus forcados.
Bem, se essa é a vontade do primeiro-ministro... - Horrível.
Tão bonito, no entanto...
John...
Você é superficial, Devina. E para você ver, eu gostaria de saber onde ele consegui
quele terno.
John!
A sra. Underwood, de rosto corado talvez pelo calor do salão , apareceu na frente d
e Nathaniel. Agarrou-o pelo braço.
John, eu o estou chamando sem parar! O sr. Devereaux já vai fazer seu discurso. Pr
ecisamos ir para o fundo, só os ministros ficam na frente. Apresse-se.
Eles passaram para o lado quando, com um bater de saltos de sapato no chão e um fa
rfalhar de vestidos, um vigoroso instinto de rebanho levou os convidados em direção
a um pequeno palco, drapejado com tecido roxo, que havia sido trazido sobre rodi
nhas de um salão lateral. Nathaniel e a sra. Underwood foram desconfortavelmente a
rrastados na precipitação geral e terminaram no fundo e em um dos lados do público reu
nido para assistir, perto das portas que se abriam para o terraço sobre o rio. O núm
ero de convidados crescera consideravelmente desde que eles chegaram. Nathaniel
calculava que o Hall continha agora várias centenas de pessoas.
Com um salto jovial, Rupert Devereaux subiu para o palco.
Senhoras, senhores, ministros, como fico feliz em vê-los aqui esta noite...
Ele tinha uma voz atraente, grave, mas melodiosa, cheia de um tom de comando inf
ormal. Prorrompeu uma rodada espontânea de vivas e aplausos. A sra. Underwood, em
sua empolgação, quase deixou cair sua taça de champanhe. A seu lado, Nathaniel aplaudi
u entusiasmado.
Fazer O Discurso oficial é sempre uma tarefa particularmente agradável para mim c
inuou Devereaux. Exigindo, como é o caso, que eu me veja cercado por tantas pessoa
s maravilhosas...
Mais exclamações de entusiasmo e vivas irromperam, sacudindo nitidamente a madeira d
o teto do antigo Hall.
Obrigado. Hoje tenho o prazer de poder dar notícias de sucesso em todas as frentes
, tanto no país quanto no exterior. Entrarei em mais detalhes daqui a um momento,
mas posso anunciar que nossos exércitos combateram os rebeldes italianos, imobiliz
ando-os perto de Turim e montaram acampamento para o inverno. Além disso, nossos b
atalhões alpinos aniquilaram uma força expedicionária tcheca. Por um momento, sua voz
foi afogada pelo aplauso geral. E destruíram um grande número de seus djins.
Ele fez uma pausa.
Na frente doméstica, expressa-se novamente preocupação por causa de mais um surto d
urtos insignificantes em Londres: foram dadas queixas de roubo de um grande número
de artefatos mágicos somente nas últimas poucas semanas. Ora, todos sabemos que ess
as são ações de um punhado de traidores, vagabundos insignificantes de nenhuma conseqüênci
a. No entanto, se não acabarmos logo com isso, outros plebeus podem seguir atrás del
es, como o gado desmiolado que são. Vamos, portanto, tomar medidas draconianas par
a fazer parar esse vandalismo. Todos os suspeitos de subversão serão detidos sem jul
gamento. Tenho certeza de que, com esse poder extra, Assuntos Internos logo terá o
s cabeças desse movimento seguramente sob custódia.
O Discurso oficial continuou por muitos minutos, liberalmente entremeado de expl
osões de alegria da multidão reunida. A pouca substância que continha logo degenerou e
m uma massa de banalidades repetidas sobre as virtudes do governo e os vícios de s
eus inimigos. Após algum tempo Nathaniel ficou de saco cheio: quase podia sentir s
eus miolos virando geléia, enquanto fazia força para prestar atenção. Finalmente, desist
iu por completo de tentar e deu uma olhada em torno.
Dando meia-volta, podia ver o terraço através de uma porta aberta. As águas escuras do
Tâmisa estendiam-se por trás da balaustrada de mármore, realçadas aqui e ali por reflex
os das luzes amarelas da zona sul. O rio estava em seu nível mais alto, fluindo pa
ra a esquerda, sob a Ponte de Westminster, rumo às docas e ao mar.
Mais alguém havia evidentemente concluído que o discurso era tedioso demais para agüen
tar e tinha efetivamente saído para o terraço. Nathaniel podia vê-lo logo embaixo do j
orro de luz que brotava do Hall. Era de fato um convidado temerário, esse que igno
rava tão ostensivamente o primeiro-ministro... Mais provavelmente, era só um funcionár
io da segurança.
A cabeça de Nathaniel vagava. Ele imaginava a lama no fundo do Tâmisa. A lata de Bar
timaeus estaria agora semi-enterrada, perdida para sempre na escuridão impetuosa.
Com o canto do olho, percebeu o homem no terraço fazer um movimento súbito e decisiv
o, como se houvesse sacado algo de grande tamanho do casaco ou do paletó.
Nathaniel tentou concentrar o olhar, mas a figura estava envolta pela escuridão. A
trás dele, podia ouvir a voz melíflua do primeiro-ministro ainda ressoando.
... esta é uma era de consolidação, meus amigos. Somos a maior elite mágica do mundo, na
da está além de nós... A figura adiantou-se em direção à porta.
As lentes de Nathaniel registraram um lampejo de cor em meio à escuridão, alguma coi
sa não inteiramente deste plano...
... devemos seguir o exemplo de nossos ancestrais e lutar...
Em dúvida, Nathaniel tentou falar, mas sua língua ficou grudada no céu da boca.
A figura entrou no Hall de um salto. Um jovem de olhos escuros e bravios; usava
jeans pretos, uma jaqueta preta com capuz; seu rosto estava lambuzado com algum ól
eo ou pasta escura. Em suas mãos tinha uma esfera luminosa azul, do tamanho de uma
grande laranja. Ela pulsava de luz. Nathaniel podia ver objetos brancos minúsculo
s rodopiando dentro dela, rodopiando sem parar.
... para ainda mais domínio. Nossos inimigos estão se encolhendo... O jovem ergueu
braço. A esfera reluziu à luz da lanterna.
Um engasgo vindo do meio da multidão. Alguém percebendo...
... Sim, volto a lhes dizer...
A boca de Nathaniel se abriu em um grito silencioso. O braço projetou-se para a fr
ente a esfera deixou a mão.
... eles estão encolhendo...
A esfera azul descreveu um arco no ar, sobre a cabeça de Nathaniel, sobre as cabeças
da multidão. A Nathaniel, petrificado por esse movimento como um rato hipnotizado
pelo colear de uma serpente, a trajetória pareceu durar eternamente. Todos os son
s cessaram no Hall, exceto por um mal perceptível chiado da esfera e, da multidão, o
início agudo e meio engolido de um grito de mulher.
A esfera desapareceu sobre as cabeças da multidão. Então veio o tinido de vidro se que
brando.
E, uma fração de segundo depois, a explosão.
20
O estouro de uma esfera de elementos em um espaço fechado é sempre uma ação aterrorizant
e e destrutiva: quanto menor o espaço ou maior a esfera, piores as conseqüências. Foi
sorte para Nathaniel e para a maioria dos magos que estavam com ele o fato de We
stminster Hall ser tão extremamente grande, e a esfera lançada, relativamente pequen
a. Mesmo assim, os efeitos foram dignos de nota.
Quando o vidro se quebrou, os elementos aprisionados que haviam passado tantos a
nos comprimidos lá dentro, abominando as essências uns dos outros e a conversa limit
ada, se rechaçaram entre si com um coice de força selvagem. Ar, terra, fogo e água: to
dos os quatro tipos explodiram de sua minúscula prisão a toda velocidade, espalhando
o caos em todas as direções. Muitas pessoas paradas perto da eclosão foram a um só temp
o projetadas para trás, crivadas de pedras, laceradas pelo fogo e cobertas por col
unas horizontais de água. Quase todo o grupo de magos caiu ao chão, espalhados como
pinos de boliche em torno do epicentro da explosão. Parado à beira da multidão, Nathan
iel foi protegido do impacto do estouro, mas mesmo assim viu-se projetado pelo a
r e disparado para trás contra a porta que dava para o terraço sobre o rio.
Os magos mais importantes escaparam em grande parte, incólumes. Estavam com os mec
anismos de segurança no lugar, principalmente algum djim cativo com a ordem de se
fazer presente no instante mesmo em que alguma magia agressiva se aproximasse de
seus amos. Escudos protetores absorveram ou desviaram os estilhaços disparados de
fogo, terra e água, e mandaram as rajadas de vento retumbando em direção às vigas do te
to. Alguns dos magos menores e seus acompanhantes não tiveram tanta sorte. Alguns
foram lançados ricocheteando entre as barreiras defensivas existentes, derrubados
inconscientes pelas pancadas dos elementos em contenda; outros foram varridos so
bre as lajes de pedra por pequenas ondas sísmicas de água fumegante e largados em mo
ntinhos encharcados no meio do grande hall.
O primeiro-ministro já tinha ido embora. Mesmo quando a esfera se espatifou nas pe
dras, a três metros do palco, um afrito verde-escuro apareceu no ar e envolveu-o e
m um Manto Hermético que o afrito prontamente carregou para o alto e para fora, at
ravés de uma clarabóia do telhado.
Meio tonto por seu impacto contra a porta, Nathaniel fazia força para se levantar,
quando viu os dois homens de paletós cinzentos correndo em sua direção a uma velocida
de assustadora. Caiu para trás; saltaram por cima dele, passando pela porta e entr
ando no terraço. Quando o segundo passava por cima com um salto prodigioso, soltou
um rosnado peculiarmente gutural que arrepiou os cabelos da nuca de Nathaniel.
Ouviu o arrastar de passos no terraço sobre o rio; um barulho arranhado como de ga
rras sobre pedra; duas pancadas distantes na água.
Levantou a cabeça com muito cuidado. O terraço estava vazio. No hall, a energia cont
ida dos elementos liberados havia seguido seu curso. A água escorria pelas fendas
entre as lajes do chão; torrões de terra e lama ficaram salpicados sobre as paredes
e os rostos dos convidados; algumas chamas ainda lambiam na orla do cortinado ro
xo drapejado sobre o palco. Muitos magos estavam se mexendo agora, botando-se de
pé ou ajudando a levantar outros. Alguns continuavam escarrapachados no chão. Serviça
is desciam correndo a escada, vindo das salas adjacentes. Lentamente, as pessoas
começavam a encontrar suas vozes; houve berros, lamúrias, alguns gritos agudos, atr
asados e bastante redundantes.
Nathaniel pôs-se de pé, ignorando uma dor aguda no ombro, onde havia colidido com a
parede e partiu em busca aflita da sra. Underwood. Suas botinas escorregaram na
sujeira do chão.
O homem gordo de terno branco estava apoiado sobre suas muletas, conversando com
Simon Lovelace e o mago velho e enrugado. Nenhum deles parecia ter sofrido muit
o com o ataque, embora a testa de Lovelace estivesse machucada e seus óculos ligei
ramente rachados. Quando Nathaniel passou por eles, viraram-se juntos e evidente
mente disseram uma invocação conjunta, pois seis djins altos, esguios, usando capas
de prata, subitamente apareceram na frente deles. Ordens foram dadas. Os demônios
ergueram-se no ar e foram embora para o terraço, flutuando, com velocidade.
A sra. Underwood estava sentada apoiada nas costas, com um ar atordoado no rosto
. Nathaniel agachou-se ao lado dela.
A senhora está bem?
Ela tinha com o queixo empastado de lama e o cabelo em torno de uma orelha estav
a ligeiramente chamuscado; de resto, parecia incólume. Nathaniel sentiu virem-lhe
lágrimas de alívio.
Sim, sim, acho que sim, John. Não precisa me abraçar assim. Estou contente que não ten
ha se machucado. Onde está Arthur?
Não sei. Nathaniel correu os olhos pela multidão enlameada. Oh, ali está ele.
Seu mestre evidentemente não tinha tido tempo para montar uma defesa eficaz, caso
sua barba, que agora parecia as metades fendidas de uma árvore atingida por um rai
o, pudesse ser indício de alguma coisa. Sua camisa requintada e seu peitilho engom
ado tinham sido puxados para fora, deixando apenas um colete tisnado e uma grava
ta soltando um pouquinho de fumaça. Suas calças tampouco haviam escapado; elas agora
começavam tarde demais e terminavam cedo demais. O sr. Underwood estava parado pe
rto de um grupo de outros em apuros semelhantes, com um ar ultrajado no rosto, o
lhos arregalados.
Acho que ele sobrevive disse Nathaniel.
Vá ajudá-lo, John. Vá lá. Estou ótima, realmente. Só preciso ficar sentada um pouquinho.
Nathaniel aproximou-se de seu mestre com alguma cautela. Não achava que o sr. Unde
rwood se furtaria a culpá-lo de alguma forma pelo desastre.
O senhor está...?
O mestre não pareceu registrar sua presença. Uma luz intensa de fúria cintilou sob as
sobrancelhas chamuscadas. Com um esforço magistral, ele arrepanhou os restos esfar
rapados de seu paletó e juntou-os no único botão que sobrara. Ajeitou a gravata, pisca
ndo um pouco ao senti-la quente. Então dirigiu-se para o grupo de convidados desga
rrados mais próximo. Inseguro quanto ao que fazer, Nathaniel seguiu atrás dele.
Quem foi? Você viu? o sr. Underwood falava aos arrancos.
Uma mulher, cujo vestido de noite pendia de seu ombro como um pedaço de tecido emp
apado, sacudiu a cabeça.
Aconteceu tão depressa. Vários outros assentiram.
Algum objeto, veio de trás...
Através de um portal, talvez um mago renegado...
Um homem de cabelos brancos, com uma voz lamuriosa os interrompeu.
Dizem que alguém entrou pelo terraço...
Certamente que não... e quanto à segurança?
Queira desculpar, senhor...
Essa Resistência, acha que eles...?
Lovelace, Schyler e Pinn mandaram demônios rastreadores rio abaixo.
Senhor...
O vilão deve ter pulado no Tâmisa e foi carregado.
Senhor! Eu o vi!
Underwood finalmente virou-se para Nathaniel.
O quê? O que disse?
Eu o vi, senhor. O rapaz no terraço...
Pelos céus, se estiver mentindo...
Não, senhor. Foi logo antes de ele atirar a esfera, senhor. Ele tinha na mão um glob
o azul. Entrou correndo pela porta e o atirou, senhor. Era um jovem de cabelos e
scuros, um pouco mais velho do que eu, senhor. Magro, eu acho. Não vi o que lhe ac
onteceu depois que ele jogou a esfera. Era uma esfera de elementos, tenho certez
a, senhor, uma pequena. Então ele não precisava ser mago para quebrá-la...
Nathaniel parou para respirar, de súbito consciente de que, em seu entusiasmo, rev
elara um conhecimento de magia maior do que era adequado a um aprendiz que ainda
estava por invocar seu primeiro bolorento. Mas nem Underwood, nem nenhum dos ou
tros magos pareceu perceber isso. Levaram um momento para absorver suas palavras
, então viraram-se de costas para ele e começaram a bater papo com grande velocidade
, cada qual falando acima dos demais, em sua ânsia de proclamarem suas teorias.
Tem de ser a Resistência... Mas eles são magos ou não? Eu sempre disse...
Underwood, a Assuntos Internos é o seu departamento. Houve registro do roubo de al
guma esfera de elementos? Se houve, o que, diabos, está sendo feito a respeito?
Não posso falar, informação confidencial...
Não fique falando com o que resta das suas barbas, homem. Temos o direito de saber
!
Senhoras, senhores...
A voz era baixa, mas seu efeito foi imediato. O clamor cessou, todas as cabeças se
viraram. Simon Lovelace aparecera às margens do grupo. Seu cabelo estava rearruma
do. Apesar dos óculos quebrados e da testa machucada, estava elegante como sempre.
Nathaniel sentiu a boca seca.
Lovelace girou em torno do grupo, seus olhos escuros e velozes.
Não maltratem o pobre Arthur, por favor disse. Por um instante o sorriso lampejou
em seu rosto. Ele não é responsável por esta atrocidade, coitado. O atacante parece te
r entrado vindo do rio.
Um homem de barbas pretas apontou para Nathaniel.
Foi o que o menino disse.
Os olhos escuros se fixaram em Nathaniel e se arregalaram um pouquinho com o rec
onhecimento.
Jovem Underwood. Você o viu, não foi? Nathaniel assentiu em silêncio.
Isso. Afiado como sempre, vejo. Ele já tem nome, Underwood?
Bem, sim... John Mandrake. Eu o registrei oficialmente.
Bem, John. Os olhos escuros se fixaram nele. Você merece parabéns. Ninguém mais
em falei até agora conseguiu dar uma boa olhada nele. No devido tempo, a polícia há de
querer uma declaração sua.
Nathaniel limitou-se responder: "Sim, senhor." Lovelace voltou-se para os demais
.
O atacante saltou de um bote sob o terraço, depois subiu pela murada do rio e cort
ou a garganta do guarda. Não há um corpo, mas uma boa quantidade de sangue, donde el
e possivelmente baixou o cadáver para o Tâmisa. Ele também parece ter pulado para a água
após o ataque e deixou-se ser levado pela torrente. Pode ter se afogado.
O homem da barba preta fez um muxoxo de impaciência.
Nunca se ouviu falar de uma coisa dessas! Em que Duvall estava pensando? A polícia
devia ter evitado isso.
Lovelace ergueu a mão.
Concordo plenamente. No entanto dois agentes saíram rapidamente no encalço deles, p
dem descobrir alguma coisa, embora a água não ajude em relação ao faro. Mandei djins seg
uirem pelas margens também. Neste ponto, temo não poder lhes dizer mais alguma coisa
. Devemos todos ser gratos porque o primeiro-ministro está a salvo e ninguém importa
nte morreu. Posso humildemente sugerir que vão todos para casa a fim de se recuper
arem, e talvez se proporcionarem uma troca de roupas? Sem dúvida, receberão mais inf
ormações posteriormente. Agora, se me perdoarem...
Com um sorriso ele se afastou e rumou para um outro grupo de convivas. O grupo t
odo o ficou olhando, boquiaberto.
Se há alguém arrogante... disse o mago de barba preta com um esgar de desdém. N
ria que ele é só vice-ministro do Comércio. Qualquer dia desses vai encontrar um afrit
o esperando por ele... Bem, não vou ficar por aqui, ainda que vocês todos fiquem.
Saiu pisando duro. Um a um, os demais seguiram seu exemplo. O sr. Underwood sile
nciosamente recolheu a esposa, que estava ocupada comparando machucados com um c
asal das Relações Exteriores e, com Nathaniel seguindo logo atrás, deixaram a confusão r
esfolegante de Westminster Hall.
A única esperança que eu tenho disse o mestre é que isto os estimule a me destinar ma
s fundos. Se não o fizerem, o que podem esperar? Com um mísero departamento de seis
magos! Não sou operador de milagres!
Durante a primeira metade da viagem, o carro seguiu pesado, com o silêncio e o che
iro de barba chamuscada. Quando saíram do centro de Londres, no entanto, o sr. Und
erwood de repente ficou falastrão. Alguma coisa parecia estar se remoendo em sua m
ente.
A culpa não é sua, querido disse a sra. Underwood, apaziguadoramente.
Não, mas vão me culpar! Você escutou lá dentro, garoto... me acusando, por causa de todo
s os roubos!
Nathaniel arriscou uma rara pergunta.
Que roubos, senhor?
Underwood socou o volante com frustração.
Os executados pela chamada Resistência, é claro! Objetos mágicos roubados de magos
cuidados por toda Londres. Objetos como a esfera de elementos. Alguns deles fora
m recuperados em um armazém em janeiro, se estou me lembrando direito. Nos dois últi
mos anos, crimes assim tornaram-se cada vez mais comuns, e esperam que eu resolv
a isso, com apenas seis outros magos na Assuntos Internos!
Nathaniel sentia-se ousado no banco traseiro, inclinou-se para a frente.
Desculpe, senhor, mas quem é a Resistência?
Underwood virou numa esquina depressa demais, por um triz não pegou uma velha senh
ora, fazendo-a ir parar na sarjeta, de susto e metendo a mão na buzina.
Um bando de traidores que não gostam de nos ver no controle rosnou. Como se não
emos dado a este país toda a sua grandeza e riqueza. Ninguém sabe quem eles são, mas c
om certeza não são numerosos. Um punhado de plebeus angariando apoio em casas de reu
nião, uns poucos agitadores imbecis que têm despeito pela magia e o que ela faz por
eles.
Não são magos, então, senhor?
E claro que não, seu idiota, essa é a questão! São tão plebeus quanto cuspe! Eles odeiam a
nós e a tudo que é mágico, e querem derrubar o governo. Como se isso fosse possível.
Ultrapassou um sinal vermelho acelerando, agitando o braço impacientemente contra
os pedestres que corriam de volta para a segurança da calçada.
Mas por que roubariam objetos mágicos, senhor? Isto é, se eles odeiam coisas mágicas.
Quem sabe? O pensamento deles é todo torto, é claro, são só plebeus. Talvez esperem que
isso reduza nosso poder, como se a perda de uns poucos artefatos fosse fazer a m
enor diferença! Mas alguns podem ser usados por não-magos, conforme você viu hoje. Pod
em estar acumulando armas para algum ataque futuro, talvez a serviço de um governo
estrangeiro... é impossível dizer enquanto não os descobrirmos e dermos fim a eles.
Mas esse foi o primeiro ataque de verdade que eles fizeram, senhor?
O primeiro nessa escala. Houve uns poucos incidentes ridículos... vidros de bolore
ntos jogados sobre carros oficiais: esse tipo de coisa. Magos saíram feridos. Em u
m dos casos, o motorista bateu com o carro; enquanto ele estava inconsciente, su
a pasta, com diversos artigos mágicos, foi roubada do carro... Foi muito constrang
edor para ele, pobre idiota. Mas agora a Resistência foi longe demais. Você diz que
o atacante era jovem?
Sim, senhor.
Interessante... Houve notícia de jovens na cena dos outros crimes também. Mesmo assi
m, jovens ou velhos, esses ladrões vão lamentar o dia em que forem pegos. Depois de
hoje à noite, qualquer um em posse de propriedade roubada de um mago sofrerá as mais
severas penas que nosso governo puder conceber. Eles não vão cair fácil, pode ter cer
teza disso. Falou alguma coisa, menino?
Nathaniel soltara um som involuntário, algo entre um guincho e um engasgo. Uma súbit
a visão do próprio Amuleto de Samarkand roubado, que neste exato momento estava esco
ndido em algum lugar no estúdio do sr. Underwood, passou-lhe diante dos olhos. Ele
sacudiu a cabeça em silêncio.
O carro virou a última esquina e desceu ronronando a rua escura e silenciosa. Unde
rwood meteu-se na vaga em frente da casa.
Guarde as minhas palavras, garoto disse ele , o governo terá de agir agora. Vou
uerer mais pessoal para o meu departamento logo amanhã de manhã cedo. Então talvez com
ecemos a pegar esses ladrões. E, quando os pegarmos, vamos fazer picadinho com ele
s.
Saltou do carro e bateu a porta, deixando em seu rastro um renovado cheiro de ca
belo queimado. A sra. Underwood virou a cabeça para o banco de trás. Nathaniel estav
a sentado ereto, o pescoço rígido, olhando o espaço.
Chocolate quente antes de deitar, meu bem? ela disse.
Bartimaeus
21
A escuridão que me envolvia a mente se dissipou. Instantaneamente, fiquei alerta c
omo sempre, aguçadíssimo em todas as minhas percepções, uma mola enroscada, pronta para
saltar em ação. Era hora de cair fora!
Só que não era.
Minha mente opera em diversos níveis ao mesmo tempo.54 Sou conhecido por poder bat
er papo agradavelmente e ao mesmo tempo dizer as palavras de um feitiço e avaliar
várias rotas de fuga. Esse tipo de coisa costuma ser bem útil. Mas nesse exato momen
to, eu não precisava de mais um nível cognitivo para me dizer que fugir estava total
mente fora de questão. Eu estava numa enorme encrenca.
Mas primeiro o mais importante. Uma coisa que eu podia fazer era ter um bom aspe
cto. No momento em que despertei percebi que minha forma havia escapulido enquan
to eu estivera apagado. Minha forma de falcão se deteriorara em uma névoa espessa, o
leosa, que jogava para lá epara cá, como impelida por uma maré em miniatura. Essa subs
tância era, na verdade, o mais próximo que eu podia chegar de revelar minha verdadei
ra essência55 enquanto escravizado na Terra, mas, apesar de sua natureza nobre, el
a não era absolutamente cativante.56 Assim, transformei-me rapidamente para o aspe
cto de uma mulher esbelta, vestindo uma simples túnica, antes de acrescentar um pa
r de chifrinhos na cabeça, só por botar.
Isso feito, examinei o ambiente com olhos parciais.
Eu estava no alto de um pequeno pedestal ou coluna de pedra, que se erguia a apr
oximadamente dois metros de altura, no meio do chão de lajes de pedra. No primeiro
plano, minha visão estava desimpedida em todas as direções, mas, do segundo ao sétimo,
era bloqueada por algo desagradável: uma pequena esfera de energia, de força conside
rável. Esta era composta de fios de força finos e brancos, entrecruzados, que se exp
andiam partindo do alto da coluna, ao lado de meus pés delgados e voltavam a se en
contrar sobre minha cabeça delicada. Não precisei tocar nos fios para saber que, se
o fizesse, eles me causariam uma dor insuportável e me arremessariam para trás.
Não havia abertura, nenhum ponto fraco em minha prisão. Eu não tinha como sair. Estava
preso dentro da esfera como um peixinho vermelho idiota dentro de um aquário.
Mas, ao contrário do peixinho vermelho, eu tinha uma boa memória. Conseguia me lembr
ar do que havia acontecido depois que saíra precipitadamente da loja de Sholto. A
Armadilha de fios de prata caindo em cima de mim; os cascos ferventes do afrito
derretendo as pedras do pavimento; o cheiro de alecrim e alho rapidamente me suf
ocando, como as mãos de um assassino, até eu perder a consciência. A afronta que foi i
sso... Eu, Bartimaeus, apagar em uma rua de Londres! Mas ainda haveria tempo par
a raiva. Agora tinha de ficar calmo, procurar uma oportunidade.
Sob a superfície da minha esfera havia uma câmara de considerável tamanho e alguma ant
igüidade. Era construída com blocos de pedra cinzenta, com um telhado sustentado por
pesadas vigas de madeira. Uma janela isolada, bem no alto de uma parede deixava
entrar um facho de luz fraca e enfermiça que mal conseguia ultrapassar as partícula
s rodopiantes de poeira para chegar ao chão. A janela era equipada com uma barreir
a mágica semelhante à que me aprisionava. Em outras partes do aposento havia diversa
s outras colunas semelhantes àquela sobre a qual eu estava. A maioria delas era de
solada e vazia, mas tinha uma pequena esfera azul luminosa e muito densa, equili
brada no alto. Era difícil ter certeza, mas achei que podia ver algo contorcido pr
essionado em seu interior.
As paredes não tinham portas, embora isso pouco significasse. Portais temporários er
am bastante comuns em prisões de magos. O acesso à câmara contígua seria impossível, a não
er através de passagens controladas por grupos de magos carcereiros de confiança. Se
ria exaustivamente difícil passar por esse, ainda que conseguisse escapar de minha
esfera-prisão.
Os guardas tampouco ajudavam muito as coisas. Eram dois utukkus57 de bom tamanho
, marchando imperturbáveis em torno do perímetro do aposento. Um deles tinha o focin
ho e a crista de uma águia do deserto, bico curvo muito cruel e plumas eriçadas. O o
utro era um cabeça-de-touro, borrifando nuvens de cuspe pelas narinas. Ambos camin
havam como homens sobre pernas maciças, suas mãos grandes, saltadas de veias brandin
do lanças com pontas de prata. Asas emplumadas dobravam-se pesadamente sobre suas
costas musculosas. Os olhos giravam incessantemente para a frente e para trás, cob
rindo cada centímetro do aposento com seu olhar estúpido e maligno.
Dei um leve suspiro, bastante feminil. As coisas realmente não pareciam muito prom
issoras.
Mesmo assim, eu ainda não estava derrotado. A julgar pela escala impressionante da
prisão, eu provavelmente estava nas mãos do governo, mas era melhor ter certeza. A
primeira coisa a fazer era tentar arrancar de meus guardas o máximo de informações que
eles tivessem.58
Dei um assobio um pouquinho insolente. O utukku mais próximo (o cabeça-de-águia) olhou
atravessado, brandindo sua lança em minha direção.
Sorri cativantemente.
Ô aí, vocês.
O utukku silvou como uma serpente, mostrando sua língua rubra e aguçada de ave. Ele
veio chegando, ainda fazendo de conta, teimosamente, que ia atacar com a lança.
Cuidado com esse troço disse eu. Sempre impressiona muito mais segurar uma arma
ieta. Você parece que está tentando fisgar um marshmallow com um espeto de churrasco
.
Bico-de-águia chegou mais perto. Seus pés estavam no chão, dois metros abaixo de mim,
mas mesmo assim ele era alto o bastante para olhar-me no olho com facilidade. Te
ve cuidado para não chegar perto demais da parede luminosa de minha esfera.
Fale fora de hora outra vez disse o utukku , e o espeto todo, deixando-o cheio d
buracos. Apontou para a ponta de sua lança.
Isto aqui é prata. Pode atravessar a sua esfera fácil, fácil, e espetá-lo direitinho, se
não calar a boca.
Já entendi. Afastei um cacho de cabelo da testa. Dá pra ver que estou à mercê d
Isso mesmo.
O utukku preparou-se para ir embora, mas um pensamento solitário de alguma forma c
onseguiu penetrar no deserto de sua mente.
O meu colega aqui acrescentou, indicando o cabeça-de-touro que à distância nos ob
va com seus olhos vermelhos , ele diz que já o viu em algum lugar.
Creio que não.
Muito tempo atrás. Só que você tinha o aspecto diferente. Ele diz que farejou você, com
certeza. Só não consegue lembrar quando.
Pode ser que ele esteja certo. Ando por aí há um tempo razoável. Tenho uma memória péssima
para rosto, eu temo. Não posso ajudá-lo. Onde estamos agora exatamente?
Eu estava tentando mudar de assunto aqui, desagradável mente cônscio de que essa con
versa poderia em pouco tempo chegar à batalha de Al-Arish. Se Cabeça-de-touro fosse
um sobrevivente, e ficasse sabendo o meu nome...
A crista da cabeça do utukku virou um pouco para trás, enquanto ele ponderava a minh
a pergunta.
Não faz mal nenhum você saber isso disse ele finalmente. Estamos na torre. A To
e Londres. Tinha falado com considerável satisfação, batendo com a base da lança nas laj
es de pedra para enfatizar cada palavra.
Oh. Essa é boa, não é?
Não para você.
Várias observações irreverentes me vieram à ponta da língua, mas forcei-as de volta com di
ficuldade e fiquei calado. Eu não queria ser espetado. O utukku foi embora para re
tomar sua patrulha, mas agora vi Cabeça-de-touro chegando mais perto, farejando e
fungando o tempo todo com o seu nariz úmido e desprezível.
Quando estava tão próximo da beirada da minha esfera que cada perdigoto que ele bufa
va crepitava e espumava contra os fios brancos carregados, soltou um rosnado de
tormento.
Eu conheço você disse. Conheço o seu cheiro. Faz muito tempo, sim, mas eu nunca esqueço
Sei o seu nome.
Amigo de um amigo, talvez? Olhei nervoso para a ponta da lança. Ao contrário de Bico
-de-águia, ele não a brandia contra mim.
Não... um inimigo...
É terrível quando não se consegue lembrar de algo que está na ponta da língua obs
s não é mesmo? E você faz força para lembrar, mas muitas vezes não consegue porque algum i
diota o fica interrompendo, tagarelando sem parar, de forma que você não consegue se
concentrar e...
Cabeça-de-touro deu um berro de raiva.
Cale a boca! Quase me veio agora!
Um tremor percorreu o aposento, vibrando ao longo do chão e coluna acima. Cabeça-de-
touro girou nos calcanhares e veio do outro lado para assumir uma posição de sentine
la contra um pedaço de parede indeterminado. A alguns metros de distância, Bico-de-águ
ia fez a mesma coisa. Entre eles, apareceu no ar uma fenda oval; ela distendeu-s
e na base, virando um arco largo. Dentro do arco havia uma negra escuridão, da qua
l emergiram duas figuras, lentamente ganhando cor e dimensão, enquanto forçavam sua
saída do nada, aquele nada escuro e espesso como melaço do portal. Eram ambos humano
s, embora em suas formas fossem tão diferentes que isso era difícil de acreditar.
Um deles era Sholto.
Esférico como sempre, mas coxeando nitidamente, como se cada músculo lhe doesse. Fiq
uei satisfeito de ver que sua bengala disparadora de plasma tinha sido trocada p
or um par de muletas bem comuns. Seu rosto dava a impressão de que um elefante aca
bara de sair de cima dele e eu jurava que seu monóculo tinha fita adesiva no aro.
Um olho estava preto e fechado. Permiti-me um sorriso. Apesar do apuro em que me
encontrava, ainda restavam umas coisinhas agradáveis na vida.
A imensidão machucada de Sholto fazia a mulher a seu lado parecer ainda mais delga
da do que de fato era. A criatura era uma garça encurvada, usando uma blusa cinza
com uma saia longa preta, cabelos brancos lisos com corte curto e aparado abrupt
amente atrás de suas orelhas. Seu rosto era só olhos e ossos malares, e inteiramente
desprovido de cor até seus olhos eram lavados, duas bolas de gude opacas, da cor
da água da chuva, cravadas em sua cabeça. Dedos longos, de unhas compridas como bist
uris, projetavam-se dos babados de suas mangas. Ela possuía o odor de autoridade e
perigo: os utukkus bateram continência e os calcanhares quando ela passou e, a um
estalo de suas agudíssimas unhas, o portal atrás dela fechou-se em nada.
Preso em minha esfera, eu os observei se aproximando o gordo e a magra, a encurv
ada e o coxo. Durante todo o tempo, atrás de seu monóculo, o olho bom de Sholto esta
va fixo em mim.
Eles pararam a alguns metros de distância. A mulher estalou os dedos de novo e, pa
ra minha ligeira surpresa, as lajes sobre as quais eles estavam parados ergueram
-se lentamente no ar. Os diabretes cativos embaixo das pedras davam grunhidos oc
asionais enquanto enfrentavam a carga, mas de resto foi um movimento bem suave e
uniforme. Mal houve um tremor. Logo as pedras pararam de subir e os dois magos
ficaram me olhando no meu nível de altura. Retornei-lhes o olhar, impassível.
Acordou, não foi? disse a mulher. Sua voz era como cacos de vidro em um balde de
elo.59 Bom. Então talvez você possa nos ser útil. Em primeiro lugar, seu nome. Não vou p
erder meu tempo chamando-o de Bodmin. Examinamos os registros e sabemos que é uma
falsa identidade. O único djim com esse nome pereceu na Guerra dos Trinta Anos.
Dei de ombros, não disse nada.
Queremos seu nome, seu objetivo quando foi à loja do sr. Pinn e tudo que sabe sobr
e o Amuleto de Samarkand. Acima de tudo, queremos conhecer a identidade de seu a
mo.
Afastei o cabelo do olho e alisei-o para trás. Meu olhar vagou pelo aposento de um
modo meio entediado.
A mulher não ficou zangada nem impaciente seu tom de voz permaneceu equilibrado.
Você vai ser sensato? disse ela. Pode nos contar de imediato ou mais tarde. Dep
e inteiramente de você. O sr. Pinn, aliás, não acha que você será sensato. Por isso ele ve
io. Quer ver a sua dor.
Dei ao atropelado Sholto uma piscadela.
Vamos lá estimulei-o (com muito mais ânimo do que realmente sentia) , pisque de
para mim. É um bom exercício para um olho machucado.
O mago arreganhou os dentes, mas não falou. A mulher fez um movimento e sua laje v
eio um pouco para a frente.
Você não está em posição de ser insolente, demônio. Deixe-me esclarecer a situação.
de Londres, para onde todos os inimigos do governo são trazidos, a fim de serem c
astigados. Aposto que já ouviu falar deste lugar. Durante 150 anos, magos e espírito
s de todos os tipos vieram parar aqui; nenhum deles saiu, a não ser por nossa vont
ade. Esta câmara é protegida por três camadas de trancas mágicas; entre cada camada há bat
alhões vigilantes de medonhos e utukkus, patrulhando constantemente. Mas até mesmo p
ara chegar a eles você teria de deixar sua esfera, o que é impossível. Você está em um Glo
bo Fúnebre. Ele despedaçará sua essência, se o tocar. A uma ordem minha, de uma palavra
ela disse uma palavra e os fios de força da esfera pareceram estremecer e crescer ,
o globo se encolherá um pouco. Você pode encolher também, tenho certeza, e então, para
começar, será capaz de evitar bolhas e queimaduras. Mas o globo pode encolher até nada
, e isso você não pode fazer.
Não pude deixar de lançar um olhar para a coluna ao lado, com sua esfera azul densam
ente cheia. Alguma coisa esteve dentro daquele globo e seus restos ainda estavam
lá. O globo havia encolhido até não sobrar mais espaço. Era como olhar uma aranha morta
no fundo de uma garrafa de vidro escuro.
A mulher havia acompanhado o meu olhar.
Exatamente falou. Preciso dizer mais?
E se eu falar perguntei, dirigindo-me a ela pela primeira vez , o que me acontece
então? O que a impedirá de me espremer todo, assim mesmo?
Se colaborar, nós o soltaremos disse ela. Não temos nenhum interesse em matar escrav
os.
Ela fez isso soar tão brutalmente direto, que eu quase acreditei nela. Mas não muito
.
Antes que eu pudesse reagir, Sholto Pinn deu uma tossezinha chiada e ofegante, p
ara chamar a atenção da mulher. Ele falou com dificuldade, como se as costelas o est
ivessem machucando.
O ataque sussurrou. A Resistência...
Ah, sim. A mulher virou-se de costas para mim. Vai ter ainda mais chance de uma s
uspensão de pena, se puder nos dar informações sobre um incidente que aconteceu ontem à
noite, depois da sua captura...
Espere aí disse eu. Quanto tempo vocês ficaram comigo apagado?
Um pouco menos de 24 horas. Nós o teríamos interrogado na noite passada, mas, como e
u disse, o tal incidente... Só conseguimos terminar de retirar a rede de prata cer
ca de trinta minutos atrás. Estou impressionada com a rapidez de sua recuperação.
Nada demais. Tenho prática.60 Então, esse tal incidente... Conte-me o que aconteceu.
Foi um ataque de terroristas, que se intitulam a "Resistência". Eles dizem detesta
r todas as formas de magia, mas, apesar disso, acreditamos que possam ter alguma
s conexões mágicas. Djins como você próprio, talvez invocados por magos inimigos. É possíve
.
Novamente a tal "Resistência". Simpkin também os mencionara. Calculava que eles houv
essem roubado o amuleto. Mas Lovelace fora responsável por isso, talvez ele estive
sse por trás desse mais recente atentado também.
Que espécie de atentado foi?
Uma esfera de elementos. Fútil e fortuito.
Não parecia fazer exatamente o gênero de Lovelace. Eu o via mais como um homem de ag
ir na calada e com intriga, o tipo que autoriza assassinatos enquanto belisca sa
nduíches de pepino em chás no jardim. E também seu bilhete para Schyler sugeria que el
es estavam planejando alguma coisa para um pouco mais adiante.
Meus devaneios foram rudemente interrompidos por um rosnado gutural vindo de meu
velho amigo Sholto.
Já chega disso! Ele não vai lhe contar nada por livre e espontânea vontade. Reduza
lobo, cara Jéssica, para que ele se contorça e fale! Estamos ambos ocupados demais p
ara ficarmos o dia inteiro à toa nesta cela.
Pela primeira vez, o talho de lábios que era a boca da mulher expandiu-se em uma e
spécie de sorriso.
O sr. Pinn está impaciente, demônio disse ela. Ele não liga para se você falar
tanto que o globo seja posto para funcionar. Mas eu sempre prefiro seguir o proc
edimento mais correto. Eu lhe disse o que nós queremos, agora é hora de você falar.
Seguiu-se uma pausa. Gostaria de dizer que era uma pausa prenhe de suspense. Gos
taria de dizer que eu lutava com a minha consciência sobre abrir o jogo quanto a N
athaniel e a minha missão; ondas de dúvida quebravam dramaticamente sobre meus traços
delicados, enquanto meus captores esperavam aflitos qual seria a minha decisão. Go
staria de dizer tudo isso, mas seria mentira.61 Então foi na verdade um tipo de pa
usa muito mais para o carregado, lúgubre e desolado, durante a qual eu tentava me
reconciliar com a idéia da dor que me aguardava.
Nada me teria dado maior prazer do que entregar Nathaniel bonitinho. Eu teria da
do a eles tudo: nome, endereço, quanto calça... teria até arriscado um palpite sobre s
ua medida de entrepernas, se eles quisessem. Eu lhes contaria sobre Lovelace e F
aquarl também, e precisamente onde o Amuleto de Samarkand poderia ser encontrado.
Eu teria cantado como um canarinho... havia muito o que contar. Mas... se o fize
sse, condenaria a mim mesmo. Por quê? Porque: 1) havia uma boa possibilidade de qu
e eles me esmagassem no globo assim mesmo, e 2) ainda que me soltassem, matariam
Nathaniel ou o prejudicariam de alguma outra forma, e eu estaria destinado à lata
de Old Chokey no fundo do Tâmisa. E só pensar em todo aquele alecrim fazia meu nari
z escorrer.62
Melhor uma extinção rápida no globo do que uma desgraça infinita. Esfreguei meu queixo d
elicado e esperei que o inevitável começasse.
Sholto grunhiu e olhou para a mulher. Ela tamborilou no relógio.
Acabou o tempo disse ela. E então?
E então, como escrita por um mau romancista, uma coisa incrível aconteceu. Eu estava
para lhes dar uma última tirada de insolência veemente (embora esperta), quando tiv
e uma sensação familiarmente dolorosa em minha barriga. Uma multidão de tenazes em bra
sa estava me beliscando, cutucando minha essência...
Eu estava sendo invocado!
22
Pela primeira vez na vida, senti-me grato ao menino. Que escolha perfeita do mom
ento! Que coincidência notável! Eu agora poderia desaparecer debaixo dos narizes del
es, desmaterializado pela invocação, enquanto eles se embasbacavam e engasgavam, com
o peixes alarmados. Se eu fosse rápido, teria justo o tempo necessário para fazer-lh
es uma rápida careta, um adeuzinho com o polegar na ponta do nariz e os quatro ded
os estendidos, antes de partir.
Sacudi a cabeça pesarosamente.
Sinto muitíssimo sorri. Adoraria ajudar vocês, realmente adoraria. Mas tenho de ir e
mbora. Talvez em breve possamos retomar o cativeiro e a tortura de onde paramos.
Só que com uma pequena modificação. Eu estarei aí fora e vocês dois estarão amontoadinhos
entro do globo. Então é melhor começar a fazer dieta para valer, Sholto. Nesse meio-te
mpo, vocês podiam os dois, ai, ucha! ir pentear macacos e Aaai... Uui!
Não foi minha réplica mais fluente, admito, mas a dor da invocação estava me pegando. Es
tava sendo pior do que o normal, de alguma forma mais aguda, menos saudável...
E também estava levando mais tempo.
Abandonei qualquer pretensão a uma postura atrevida e insolente e fiquei todo cont
orcido no alto da coluna, desejando que o menino fosse em frente com aquilo. Qua
l seria o problema com ele? Será que não sabia que eu estava sofrendo? Não era tampouc
o o caso de que eu pudesse me contorcer adequadamente as linhas de força do globo
estavam próximas demais para eu poder agir à vontade.
Após dois minutos profundamente desagradáveis, o puxão violento da invocação se abrandou e
acabou. Deixou-me em uma posição indigna agachado e enroscado com forma de uma bola
, a cabeça entre os joelhos, os braços sobre a cabeça. Com a lenta rigidez da agonia a
cumulada, ergui o rosto um pouco e cautelosamente afastei o cabelo dos olhos.
Eu ainda estava dentro do globo. Os dois magos estavam logo ali, rindo escancara
dos para mim por trás das paredes de minha prisão.
Não havia como fazer isto parecer melhor. Amuadamente, com mil dores residuais, eu
me estiquei, levantei-me e devolvi-lhes o olhar implacavelmente. Sholto estava
rindo baixinho consigo mesmo.
Isso sozinho já valeu o preço da entrada, cara Jéssica disse ele, com uma express
ara simplesmente primorosa.
A mulher fez que sim.
Calhou tão bem disse ela. Estou muito contente que estivéssemos aqui para ver isso.
Ainda não entendeu, sua criatura estúpida? Sua laje veio um pouquinho mais para pert
o. Eu lhe disse; é impossível sair de um Globo Fúnebre, e isso inclui invocação. Sua essê
a está presa nele. Nem mesmo seu amo pode chamá-lo para fora daí.
Ela encontra um jeito disse eu, e então mordi o lábio, como se lamentasse tê-lo dito.
Ela? Os olhos da mulher se estreitaram. Seu amo é uma mulher?
Ele está mentindo. Sholto Pinn abanou a cabeça. Um blefe óbvio. Jéssica, estou cansado;
também perdi a hora da minha massagem matinal na Sauna Bizantina. Neste momento eu
devia estar na sala de vapor. Posso sugerir que a criatura precisa de mais estímu
lo e que a deixemos assim?
Uma idéia admirável, caro Sholto.
Ela estalou as unhas cinco vezes. Um. hum, um estremecimento. Hora de reduzir de
tamanho, imediatamente! Usei o que restava de minha energia em uma apressada tr
ansformação e, enquanto as linhas tremeluzentes do globo se fechavam sobre mim, enco
lhi-me em uma nova forma. Um gato elegante, encurvado e sinuoso, recuando das pa
redes do globo, que se apertavam.
Em uma questão de segundos o globo encolheu até cerca de um terço de suas dimensões orig
inais. O zumbido de sua energia obscena era alto para meus ouvidos felinos, mas
ainda havia um saudável espaço entre mim e as paredes. A mulher estalou as unhas e o
ritmo de encolhimento se reduziu drasticamente.
Fascinante... Ela falou com Sholto. Em uma hora de crise, ele vira um gato do d
serto. Muito egípcio. Esse já teve uma longa carreira, eu acho.
Ela virou-se de volta para mim:
O globo vai continuar a encolher, demônio disse. Às vezes depressa, às vezes de
Acabará por chegar a um determinado ponto. Você será observado continuamente, de forma
que, a qualquer momento em que quiser falar, bastará dizê-lo. De resto, adeus.
Em resposta, o gato silvou e cuspiu. Isso era o mais articulado que eu conseguia
ser naquele momento.
As lajes de pedra viraram-se e desceram de volta a sua posição original. Sholto e a
mulher voltaram ao arco e foram engolidos pelo portal. A fenda fechou-se e a par
ede ficou tal como antes. Bico-de-águia e Cabeça-de-touro retornaram sua marcha. Os
fios brancos letais do globo zumbiram, se incandesceram e se fecharam mais um po
uco, imperceptivelmente.
O gato recurvou-se no alto da coluna e fechou a cauda em volta de si mesmo, o ma
is apertado que conseguia.
No decorrer das poucas horas seguintes, minha situação foi ficando cada vez mais incôm
oda. O gato a princípio me serviu muito bem, mas o globo acabou encolhendo tanto q
ue minhas orelhas estavam embaixo de meus bigodes e eu podia sentir a ponta de m
inha cauda começando a fritar. Seguiu-se uma sucessão de transformações. Eu sabia que es
tava sendo vigiado, portanto não fiz a coisa óbvia de simplesmente virar direto uma
mosca isso só resultaria em que o globo encolheria bem depressa, para poder me alc
ançar. Em vez disso, passei por uma série de variações peludas e escamosas, a cada uma d
elas ficando livre das tremeluzentes barras de minha prisão. Primeiro, uma lebre,
depois um sagüi, em seguida uma medíocre ratazana... Junte todas as minhas formas e
terá uma bela loja de bichinhos de estimação, suponho, mas não foi algo exatamente elega
nte.
Por mais que eu tentasse, tampouco conseguia me sair com nenhum grande plano de
fuga. Eu podia conseguir um adiamento inventando alguma mentira longa e complexa
para a mulher, mas ela ia logo descobrir que eu estava contando lorotas e acaba
r comigo ainda mais rápido. Isso não era bom.
Para tornar as coisas ainda piores, o infeliz do garoto tentou me invocar mais d
uas vezes. Ele não desistia fácil, provavelmente calculando que teria cometido algum
erro da primeira vez, e terminou me causando tanto incômodo que quase resolvi ent
regá-lo.
Quase, mas não exatamente; não havia sentido em entregar já os pontos. Sempre havia a
chance de poder acontecer algo.
Você esteve em Angkor Thom? Cabeça-de-touro novamente, ainda tentando me localizar.
O quê? Nesse momento eu era a ratazana. Fiz o possível para parecer pretensiosamente
desdenhoso, mas ratas só conseguem parecer irritadas.
Você sabe, o império Khmer. Eu trabalhava para os magos imperiais, quando conquistar
am a Tailândia. Você teve alguma coisa a ver com isso? Algum rebelde, talvez?
Não.
Tem certeza disso?
Sim! Claro que tenho certeza! Você está me confundindo com alguém mais. Ouça... A
a baixou a voz, bem baixinho, e falou com a pata erguida sobre a boca: Você obviame
nte é um cara inteligente, veterano e escolado, trabalhou para vários dos impérios mai
s violentos. Olhe, eu tenho amigos poderosos. Se puder me tirar daqui, eles mata
m o seu amo para você, livram-no da servidão a ele.
Se Cabeça-de-touro tivesse mais cérebro, eu jurava que ele estava me olhando de modo
cético. Não obstante, continuei a tentar assim mesmo.
Há quanto tempo está engaiolado aqui, dando serviço de guarda? perguntei. Cinqü
? Cem? Isso não é vida para um utukku, é? Assim você podia muito bem estar dentro de um
globo como este.
A cabeça aproximou-se das barras. Um borrifo de vapor de nariz se espalhou sobre m
im, deixando gotículas pegajosas no meu pêlo.
Que amigos?
Err, um marid dos grandes, e quatro afritos, muito fortes, muito mais fortes do
que eu... Você pode se unir a nós...
A cabeça recuou com um rosnado de desprezo.
Você deve achar que eu sou burro!
Não, não... A ratazana deu de ombros. Isso é o que o Bico-de-águia ali acha. Ele disse
ue você não ia se unir ao nosso plano. Ainda assim, se não está interessado... Com um me
neio do corpo e um meio-salto, a ratazana virou-se de costas.
O quê? Cabeça-de-touro deu a volta depressa até o outro lado da coluna, brandindo a la
nça perto do globo. Não me dê as costas! Xerxes disse o quê?
Oi! Bico-de-águia veio apressado do canto oposto da cela. Ouvi o meu nome. Pare de
conversa com o prisioneiro!
Cabeça-de-touro olhou ressentido para ele.
Falo, se eu quiser. Então acha que sou burro, não é? Pois bem, não sou, está vendo? Qual é
sse plano de vocês?
Não diga a ele, Xerxes! Sussurrei alto. Não lhe diga coisa alguma.
Bico-de-águia fez um som raspado irritante com o bico.
Plano? Não sei de plano nenhum. O prisioneiro está lhe mentindo, Baztuk. O que ele
ndou dizendo?
Está tudo certo, Xerxes gritei animadamente. Eu não mencionei... você sabe.
Cabeça-de-touro brandiu sua lança.
Acho que sou eu que devia estar fazendo as perguntas, Xerxes disse ele. Você an
de tramóia com o preso!
Não, seu burro...
Burro, eu?
Então eles se pegaram: focinho contra bico, músculos posicionados, penas da crista e
riçadas, gritando e assentando golpes nos peitorais blindados um do outro. Há, hum.
Os utukkus sempre foram fáceis de enganar. Em seu entusiasmo, fui totalmente esque
cido, o que para mim era ótimo. Normalmente, eu teria apreciado vê-los se atracando,
mas nesse exato momento era um pobre consolo para a encrenca em que eu me encon
trava.
O globo mais uma vez se tornara desagradavelmente apertado, então voltei a diminui
r de tamanho, desta vez virando um escaravelho. Não que isso fizesse muito sentido
; mas retardava o inevitável e me dava espaço para correr de lá para cá no alto da colun
a, ostentando com raiva minhas asas lisas e rígidas e também com algo assim como des
espero. Aquele garoto, Nathaniel! Se um dia eu escapar, vou descarregar em cima
dele tamanha vingança que vai entrar para as lendas e pesadelos de seu povo! Que e
u, Bartimaeus, que falei com Salomão e Hiawatha, tenha que sair assim como um beso
uro esmagado por um inimigo arrogante demais para ao menos ver isso acontecer! Não
! Agora mesmo eu encontraria um meio...
Eu corria para a frente e para trás, para a frente e para trás, pensando, pensando..
.
Impossível. Eu não tinha como fugir. A morte se aproximava firmemente de todos os la
dos. Era difícil ver como essa situação poderia ficar um pouco pior que fosse.
Uma espuma vaporizada, um rosnado, um olho rubro e furioso baixado até o meu nível.
Bartimaeus!
Bem, esse era um meio. Cabeça-de-touro não estava mais discutindo. Ele de repente se
lembrara de quem eu era.
Agora o estou conhecendo! gritou.
Sua voz! Sim, é você, o destruidor do meu povo! Até que enfim! Esperei 27 séculos p
te momento!
Quando você se defronta com um comentário desses, é difícil pensar em alguma coisa para
dizer.
O utukku ergueu sua lança de prata e soltou o triunfante grito de batalha que a su
a espécie sempre solta com o golpe final.
Ajeitei-me para rufiar minhas asas. Vocês sabem, de um jeito meio desesperado, des
afiador.
Nathaniel
23
O que viria a se tornar o pior dia da vida de Nathaniel começou bem do jeito como
pretendia continuar. Apesar de voltar do Parlamento em hora tão tardia, descobriu
ser quase impossível dormir. As últimas palavras de seu mestre vibravam incessanteme
nte em sua cabeça, instalando-lhe um crescente desassossego: "Qualquer pessoa em p
osse de propriedade roubada sofrerá as penalidades mais severas..." As penalidades
mais severas... E o que era o Amuleto de Samarkand senão propriedade roubada?
É verdade que, por um lado, ele tinha certeza de que Lovelace já havia roubado o amu
leto: foi para conseguir uma prova disso que ele mandara Bartimaeus em sua missão.
Mas, por outro lado, ele ou, rigorosamente falando, o sr. Underwood estava atua
lmente com a mercadoria roubada. Se Lovelace, a polícia ou alguém do governo o encon
trasse aqui em casa... De fato, Nathaniel não gostava nem de pensar nas catástrofes
que poderiam ocorrer se o próprio sr. Underwood descobrisse o amuleto em sua coleção.
O que havia começado como um ataque pessoal contra seu inimigo agora parecia de re
pente um negócio muito mais arriscado. Não era só contra Lovelace que ele estava agora
, mas contra o braço longo do governo também. Ouvira falar dos prismas de vidro cont
endo os restos de traidores, que pendiam das ameias da Torre de Londres. Eles er
am um argumento eloqüente. Não era prudente desafiar a ira oficial.
Na hora em que a luz fantasmagórica que precede a alvorada começou a brilhar no céu, N
athaniel só tinha certeza de uma coisa. Se o djim havia obtido provas ou não, precis
ava livrar-se depressa do amuleto. Ele o devolveria a Lovelace e alertaria as au
toridades de algum modo. Mas para isso precisava de Bartimaeus.
E Bartimaeus se recusava a vir até ele.
Apesar de alerta por causa de seus ossos doendo, Nathaniel executou a invocação três v
ezes naquela manhã, e por três vezes o djim não apareceu. Na terceira tentativa, ele e
stava praticamente soluçando de pânico, tartamudeando as palavras mal tendo o cuidad
o de que uma sílaba mal pronunciada pudesse colocá-lo em perigo. Quando terminou, es
perou, respirando acelerado, observando o círculo. Vamos lá, vamos logo.
Nada de fumaça, nada de cheiro, nada do demônio.
Com um xingamento, Nathaniel cancelou a invocação, chutou um pote de incenso para o
outro lado do quarto e atirou-se em cima da cama. O que estava acontecendo? Se B
artimaeus houvesse encontrado algum meio de libertar-se de sua obrigação... Mas isso
com certeza era impossível nenhum demônio jamais conseguira uma coisa dessas, até ond
e Nathaniel sabia. Bateu inutilmente com os punhos sobre as cobertas. Quando tiv
esse o djim de volta, ele o faria pagar por essa demora ele o submeteria ao Pêndul
o Denteado e o ficaria olhando se contorcer!
Mas nesse meio-tempo, o que fazer?
Usar o espelho mágico? Não, isso podia ficar para depois: as três invocações o tinham deix
ado tenso e primeiro ele tinha de descansar. Em vez disso, havia a biblioteca de
seu mestre. Aquele era o lugar para começar. Talvez houvesse outros métodos de invo
cação, mais avançados, que ele pudesse tentar. Talvez houvesse informação sobre os truques
que djins usavam para evitar retornar.
Levantou-se e chutou o tapete para cima dos círculos de giz no assoalho. Não havia t
empo para limpá-lo agora. Dali a umas duas horas tinha de ir ao encontro do mestre
, para finalmente tentar a tão esperada invocação do diabrete sapo-cururu. Nathaniel g
emeu de frustração não lhe faltava mais nada! Poderia invocar esse diabrete até dormindo
, mas seu mestre exigira que ele conferisse e reconferisse cada frase e cada lin
ha, ao ponto de o processo levar várias horas. Era um desperdício de energia sem o q
ual ele podia muito bem se passar. Como seu mestre era idiota!
Nathaniel partiu para a biblioteca. Desceu as escadas do sótão estalando as solas do
s sapatos.
E bateu de cabeça em seu mestre, que vinha subindo.
Underwood caiu de costas contra a parede, agarrando a parte mais expansiva de se
u colete, que havia se enganchado firmemente a um dos cotovelos de Nathaniel. So
ltou um grito de raiva e levantou a mão para dar um tapa na cabeça do aprendiz.
Seu pequeno rufião. Podia ter me matado!
Senhor! Sinto muito, senhor. Eu não esperava...
Correndo escadas abaixo como algum moleque desmiolado, como algum plebeu! Um mag
o mantém seus modos rigorosamente sob controle, em todas as ocasiões. Está brincando d
e quê?
Lamento terrivelmente, senhor... Nathaniel estava se recuperando do choque; falo
u mansamente. Estava só descendo até a biblioteca para reconferir algumas coisas ant
es de nossa invocação de hoje à tarde. Desculpe, se estava muito afoito.
Seus modos humildes tiveram efeito. Underwood respirou fundo, mas a expressão rela
xou.
Bem, se a intenção era boa, dificilmente poderia lhe atribuir alguma culpa. Na verda
de, eu vinha para dizer que infelizmente não estarei em casa hoje à tarde. Aconteceu
algo sério, e devo... Ele parou, suas sobrancelhas estremeceram e se fundiram na
forma de um cenho franzido. O que é isso que estou cheirando?
Senhor?
Esse cheiro... está agarrado em você, menino. Curvou-se mais para perto e farejou ru
idosamente.
Eu... sinto muito, senhor, esqueci de me lavar esta manhã. A sra. Underwood já me fa
lara sobre isso.
Não estou falando do seu próprio cheiro, garoto, por desagradável que seja. Não, isso es
tá mais para... alecrim... Sim! Louro... e erva-de-são-joão... Seus olhos de repente s
e arregalaram e chisparam à meia-luz da escadaria. Isso é incenso geral de invocação pai
rando sobre a sua pessoa!
Não, senhor...
Não ouse me contradizer, menino! Como foi que isso...? Uma suspeita baixou-lhe sob
re os olhos. John Mandrake, gostaria de dar uma espiada em seu quarto. Vá na frent
e.
Eu preferiria que não, senhor, está uma bagunça terrível. Eu ia me sentir envergonhado..
.
O mestre ergueu-se em toda sua altura, os olhos faiscando, a barba chamuscada se
eriçando. Ele parecia ter de algum modo ficado mais alto do que Nathaniel jamais
vira, embora o fato de estar parado um degrau acima ajudasse um pouco. Nathaniel
, curvando-se, sentiu-se encolher.
Underwood agitou um dedo no ar e apontou para o alto da escada.
Vá!
Desesperançadamente, Nathaniel obedeceu. Em silêncio, seguiu à frente até seu quarto, as
botinas pesadas do mestre seguindo-o bem de perto. Quando abriu a porta, um fed
or inconfundível de incenso e cera de vela assomou-lhe ao rosto. Nathaniel ficou p
arado de lado, sem graça, enquanto, curvando-se sob o teto baixo, seu mestre entra
va no quarto do sótão.
Underwood inspecionou o cenário por alguns segundos. Era uma cena incriminadora: u
m pote virado, com incenso multicolorido ao longo do chão; uma dúzia de velas de inv
ocação com pavios ainda em brasa arrumadas ao longo da parede e debaixo da mesa; doi
s pesados livros de magia, tirados das estantes pessoais de Underwood, deitados
na cama. Os únicos elementos que não se podia ver eram os círculos de invocação. Estavam s
ob o capacho. Nathaniel pensou que isso poderia lhe dar alguma rota de escape. P
igarreou.
Deixe-me explicar, senhor.
O mestre o ignorou. Deu alguns passos em frente e chutou uma das pontas do tapet
e, que virou sobre si própria, revelando o canto de um círculo com diversas runas do
lado de fora. Underwood curvou-se, segurou o tapete e puxou-o para o lado, de f
orma que o diagrama inteiro foi revelado. Por um momento, examinou as inscrições e e
ntão, com uma intenção sinistra nos olhos, virou-se para o aprendiz.
E então?
Nathaniel engoliu em seco. Sabia que nenhuma desculpa o salvaria, mas tinha de t
entar.
Eu estava só treinando fazer as marcas, senhor começou a dizer com voz insegura
tindo como era. Eu de fato não invoquei coisa alguma, senhor. Não ousaria...
Ele vacilou, parou. Com uma das mãos, seu mestre apontava para o centro do círculo m
aior, onde uma destacada marca de queimado havia sido deixada pela primeira apar
ição de Bartimaeus. Com a outra mão apontou as numerosas queimaduras deixadas na pared
e pela explosão do Perímetro Estimulante. Os ombros de Nathaniel descaíram.
Bem...
Por um instante, pareceu como se Underwood fosse perder a pose. Seu rosto se enc
heu de manchas, de tanta raiva, ele deu dois passos rápidos na direção de Nathaniel, a
mão erguida para bater. Nathaniel se encolheu, mas o golpe não veio.
A mão se abaixou.
Não disse o mestre, ofegando muito. - Não. Preciso ponderar sobre o que fazer co
Você me desobedeceu em centenas de modos e, ao fazê-lo, pôs em risco sua própria vida e
a das pessoas desta casa. Você falou superficialmente palavras de magia que não pod
e ter a esperança de compreender. Vejo aí o Compendium de Fausto e A Boca de Ptolome
u! Você invocou ou tentou invocar um djim pelo menos do décimo quarto nível, e até tento
u sujeitá-lo com o Pentagrama de Adelbrand uma proeza diante da qual eu recuaria.
O fato de que indubitavelmente não conseguiu não diminui de modo algum o seu crime.
Garoto estúpido!
Não faz idéia do que tal ser poderia lhe fazer, caso você cometesse mesmo o menor desl
ize? Todas as minhas aulas ao longo dos anos não significaram nada? Devia ter ente
ndido que não se podia confiar em você já no ano passado, quando seu voluntarioso ato
de violência contra os visitantes de minha casa quase arruinou minha carreira. Eu
devia tê-lo dispensado então, quando você ainda não tinha novo nome. Ninguém teria sequer
parado para pensar! Mas agora que tem nome e estará na próxima edição do Almanaque, não po
sso me livrar de você tão facilmente! Farão perguntas, será preciso preencher formulários
e meus critérios de julgamento serão mais uma vez postos em dúvida. Não, devo ponderar o
que fazer com você, embora minha mão esteja coçando para eu chamar um Injurioso agora
mesmo e deixá-lo a seus ternos cuidados.
Ele fez uma pausa para respirar. Nathaniel recuara para sentar-se na beira da ca
ma, toda a energia drenava dele.
Acredite em mim disse o mestre quando lhe digo que nenhum aprendiz meu me desob
dece do modo como você fez. Se eu não tivesse de ir urgentemente ao ministério, cuidar
ia de você agora. Mesmo assim, não deve sair de seu quarto até eu voltar. Mas primeiro
e então atravessou o quarto até o guarda-roupa de Nathaniel e escancarou a porta pr
ecisamos ver se você não tem nenhuma outra surpresa escondida.
Durante os dez minutos seguintes Nathaniel pôde apenas ficar sentado, os olhos tri
stes, enquanto seu mestre revistava o quarto. O guarda-roupa e a cômoda foram revi
rados e saqueados, sua parca quantidade de roupas espalhadas pelo chão. Foram enco
ntrados vários sacos plásticos de incenso e um pequeno sortimento de giz colorido e
um ou dois maços de anotações que Nathaniel fizera durante seus estudos extracurricula
res. Só o espelho mágico, seguro em seu esconderijo sob os beirais, ficou sem ser de
scoberto.
O sr. Underwood recolheu o incenso, os livros, o giz e as anotações.
Lerei seus rabiscos quando voltar do ministério disse , para o caso de precisar
errogá-lo mais sobre suas atividades antes de receber seu castigo. Nesse meio-temp
o, fique aqui e reflita sobre seus pecados e a ruína de sua carreira.
Sem dizer mais uma palavra, saiu depressa do sótão e trancou a porta.
O coração de Nathaniel era uma pedra caindo no fundo de um poço escuro. Ele ficou sent
ado na cama, imóvel, ouvindo o tamborilar da chuva na clarabóia e, mais embaixo, seu
mestre estrondando de quarto em quarto, na sua fúria. Por fim, uma batida ao long
e lhe garantiu que o sr. Underwood tinha saído de casa.
Algum tempo indeterminado depois, ele foi tirado de sua infelicidade ao surpreen
der-se com o som da chave virando na fechadura. Seu coração teve um sobressalto de m
edo. Certamente não era seu mestre de volta...?
Mas foi a sra. Underwood que entrou, trazendo uma tigelinha de sopa de tomate em
uma bandeja. Pousou-a sobre a mesa e ficou parada olhando para ele. Nathaniel não
conseguiu forçar-se a olhar para ela.
Bem ela disse, com voz calma , espero que esteja contente consigo mesmo. Pelo qu
Arthur me contou, você foi de fato muito mau.
Se a torrente de fúria de seu mestre o havia deixado meramente insensível, essas pou
cas palavras da sra. Underwood, entremeadas simplesmente de uma calma decepção, doer
am agudamente em Nathaniel. Seus últimos vestígios de autocontrole o abandonaram. Er
gueu os olhos para ela, sentindo lágrimas ardentes.
Oh, Nat-John! Ele nunca a ouvira tão exasperada. Será que não podia ser paciente? A sr
a. Lutyens costumava dizer que esse era seu principal defeito, e ela tinha razão!
Agora você tentou correr antes de saber andar, e não sei se seu mestre um dia o perd
oará.
Ele nunca vai me perdoar. Ele mesmo disse.
A voz de Nathaniel tinha saído fraca; ele estava contendo as lágrimas.
Seu mestre está extremamente zangado, John, e com razão.
Ele disse que minha... minha carreira estava arruinada.
Eu não me surpreenderia se isso não fosse exatamente o que você merecia.
Sra. Underwood...!
Mas, se você for aberto e honesto com ele sobre o que fez, talvez haja uma chance
de que o ouça quando voltar. Uma chance bem pequena.
Não vai, ele está zangado demais.
A sra. Underwood sentou-se na cama ao lado de Nathaniel e passou o braço em torno
do seu ombro.
Você não acha que é novidade, acha, aprendizes tentarem demais muito cedo? Isso com
eqüência destaca os que têm mais talento. Arthur ficou lívido, mas também impressionado, p
osso lhe dizer. Acho que devia confiar totalmente nele, entregue-se à sua mercê. Ele
gostará disso.
Nathaniel deu uma fungada.
Acha mesmo, sra. Underwood?
Como sempre, o consolo de sua presença e de seu calmo bom senso derrubou suas defe
sas e estimulou-lhe os brios. Talvez ela tivesse razão. Talvez ele devesse contar
a verdade sobre tudo...
Farei o que puder para aplacá-lo também ela continuou. Deus sabe que você não m
he só o estado deste quarto!
Vou limpá-lo imediatamente, sra. Underwood, agora mesmo.
Ele se sentiu um pouco reconfortado. Talvez contasse a seu mestre, chegando até a
suas suspeitas sobre Lovelace e o amuleto. As coisas assim seriam penosas, porém m
ais simples.
Primeiro tome a sua sopa. Ela se levantou. Trate de ter tudo preparado para cont
ar a seu mestre quando ele voltar.
Por que o sr. Underwood foi para o ministério? Hoje é domingo. Nathaniel já estava rec
olhendo algumas das roupas e enfiando-as de volta nas gavetas.
Uma emergência qualquer, querido. Um djim moleque foi preso no centro de Londres.
Um ligeiro estremecimento percorreu a espinha de Nathaniel.
Um djim?
Sim, desconheço os detalhes, mas parece que ele estava se fazendo passar por um do
s diabretes do sr. Lovelace. Invadiu a loja do sr. Pinn e causou um estrago que
não acaba mais. Mas eles mandaram um afrito que o pegou rapidinho. Ele está sendo in
terrogado agora. Seu mestre acha que o mago que enviou esse djim pode ter alguma
ligação com esses roubos de artefatos que tanto o têm perturbado, e talvez com a Resi
stência também. Ele quer estar presente quando lhe arrancarem a informação. Mas essa não é
ealmente a sua principal preocupação agora... é, John? Você precisa se decidir quanto ao
que dizer a seu mestre. E esfregue esse assoalho até estar brilhando!
Sim, sra. Underwood.
Bom menino. Depois venho buscar sua bandeja.
Mal a porta foi fechada, Nathaniel correu para a clarabóia, abrindo-a e enfiando a
mão sob as telhas úmidas e frias para pegar o disco de bronze. Puxou-o e fechou o v
idro contra a chuva aguilhoante. O disco estava frio; levou vários minutos de inti
mação cada vez mais intensa até que a cara do diabrete apareceu relutantemente.
Blimey ele disse. Já faz algum tempo. Pensei que tinha se esquecido de mim. Já está pr
onto para me soltar?
Não. Nathaniel não estava com humor para brincadeiras. Bartimaeus. Encontre-o. Quero
ver onde ele está e o que está fazendo. Ou enterro esse disco no solo.
Alguém saiu hoje da cama com o pé esquerdo? A gente pede as coisas com educação! Bem, fa
rei uma tentativa, mas já tive pedidos mais fáceis na vida, até mesmo seus... Resmunga
ndo e fazendo caretas de esforço, o rosto do bebê se apagou, só para aparecer fracamen
te, como se de muito longe. Bartimaeus, você diz? De Uruk?
Sim! Quantos assim pode haver?
Ficaria surpreso se soubesse, sr. Irritadinho. Bem, não fique ansioso. Isto pode d
emorar um pouco.
O disco ficou vazio. Nathaniel jogou-o em cima da cama, então pensou melhor a resp
eito e escondeu-o embaixo do colchão, fora de vista. Com grande agitação, passou a arr
umar o quarto, esfregando o chão até todos os traços dos pentagramas terem desaparecid
o e até as marcas de cera de vela serem retiradas. Guardou as roupas bem-arrumadas
e devolveu tudo a seus lugares certos. E então tomou sua sopa. Estava fria.
A sra. Underwood voltou para pegar a bandeja e examinou o quarto com aprovação.
Bom menino, John disse. Agora aproveite o embalo, lave-se e arrume-se. O que fo
isso?
O quê, sra. Underwood?
Pensei ter ouvido uma voz chamando.
Nathaniel ouvira também. Um "Oi!" abafado, vindo de sob da cama.
Acho que veio lá do andar de baixo ele disse fracamente. Talvez alguém à porta?
Acha isso? Creio que é melhor eu ir ver.
Ela se foi meio que insegura, trancando a porta. Nathaniel afundou-se no colchão.
E aí? ele rosnou.
O rosto de bebê tinha grandes bolsas sob os olhos e estava agora meio amarfanhado.
Bem disse , fiz o máximo que pude. Não pode me pedir mais do que isso.
Mostre-me!
Então, lá vai.
O rosto desapareceu, sendo substituído por uma vista de longa distância através de Lon
dres. Uma faixa prateada que tinha de ser o Tâmisa serpeava ao fundo entre uma con
fusão cinza-escura de armazéns e cais. Chovia, meio obscurecendo a cena, mas Nathani
el percebeu com facilidade o foco central da imagem: um castelo elegante, proteg
ido por intermináveis arcos de muros altos e cinzentos. No centro havia uma torre
quadrada, com a bandeira britânica tremulando em seu telhado central. Carros preto
s da polícia circulavam embaixo, no pátio do castelo, ao lado de hordas de figuras m
inúsculas. Nem todas elas eram humanas.
Nathaniel sabia para o que estava olhando, mas não queria aceitar a verdade.
E o que isso tem a ver com Bartimaeus? indagou rispidamente. O diabrete estava c
heio, tinha a voz carregada.
E aí que ele está, até onde posso supor. Captei seu rastro no meio de Londres, mas
tava frio e fraco. Ele me trouxe até aqui, e não posso me aproximar da Torre de Lond
res mais do que isso, como você sabe muito bem. Olhos vigilantes demais. Mesmo des
ta distância, algumas esferas circulando quase me pegaram. Estou um bocado cansado
, eu. Algo mais? acrescentou, e como Nathaniel não reagisse: Preciso de uma cama.
Não, não. E só isso.
Primeira coisa sensata que você disse o dia inteiro. Mas o diabrete não se apagou
e estiver lá dentro, Bartimaeus está numa encrenca observou, de modo bem mais animad
inho. Você não o mandou para lá, mandou?
Nathaniel não deu resposta.
Oh, rapaz disse o diabrete. Então, sendo esse o caso, eu diria que você está em
tanta encrenca quanto ele, não é mesmo? Calculo que ele provavelmente esteja cuspind
o o seu nome neste exato momento. Ele expôs os dentes pequenos e afiados em um sor
riso que lhe rasgou o rosto, soltou um alto muxoxo e desapareceu.
Nathaniel ficou sentado muito quieto, segurando o disco entre as mãos. No quarto,
a luz do dia foi lentamente minguando, e sumiu.
Bartimaeus
24
Ponham um escaravelho, aproximadamente do tamanho de uma caixa de fósforos, diante
de um leviatã de cabeça de touro, com quatro metros de altura, e não esperarão ver um g
rande confronto, especialmente quando o escaravelho está preso no interior de um p
equeno globo que incinerará sua essência se tocar-lhe ao menos em uma antena desgarr
ada. E verdade que fiz o máximo para prolongar a questão, pairando logo acima do alt
o da coluna, na vaga esperança de que pudesse disparar para o lado quando a lança de
scesse com ímpeto. Mas, para ser honesto, eu não estava muito animado. Estava a pont
o de ser esmagado por um palerma com o QI de uma pulga e quanto mais rápido acabásse
mos com aquilo, melhor.
Fiquei um pouco surpreso quando o grito de guerra estridente do utukku foi corta
do por uma súbita ordem gritada, justo quando a lança estava para descer sobre minha
cabeça.
Baztuk, pare!
Era Bico-de-águia que havia falado, a urgência em sua voz era nítida. Uma vez decidido
a alguma coisa, um utukku acha difícil mudar de idéia: Cabeça-de-touro deteve com dif
iculdade o impulso da lança para baixo, mas segurou-a erguida bem alto sobre o glo
bo.
O que é agora, Xerxes? rosnou. Não tente me privar da minha vingança! Há 27 séculos eu
ria ter Bartimaeus em meu poder...
Então dá para esperar mais um minuto. Ele não vai embora. Ouça... Está ouvindo alguma cois
a?
Baztuk inclinou a cabeça para um lado. Dentro do globo, aquietei o zumbido de minh
as asas e prestei atenção também. Um som suave de batidas... tão baixo, tão sutil, que era
impossível dizer de que direção vinha.
Não é nada. São só operários lá fora. Ou os humanos marchando de novo. Eles gostam
isso. Agora cale a boca, Xerxes.
Baztuk não estava disposto a dedicar mais um único pensamento a esse assunto. Os ten
dões ao longo de seus braços saltaram e formaram nós, quando pôs novamente a lança em rist
e.
Não são operários. Perto demais. As penas da crista de Xerxes pareceram eriçadas.
tava nervoso. Deixe Bartimaeus para lá, venha e ouça bem. Quero identificar isso.
Com um xingamento, Baztuk afastou-se de minha coluna, batendo firme os pés. Ele e
Xerxes ficaram circulando o perímetro da cela, mantendo as orelhas próximas das pedr
as e um murmurando para o outro que pisasse mais de leve. Todo o tempo o ruído de
batidinhas continuou, suave, irregular e enlouquecedoramente impossível de localiz
ar.
Não consigo localizá-lo. Baztuk raspou a ponta da lança sobre a parede. Pode estar vin
do de qualquer lugar. Espere...! Talvez ele o esteja fazendo... Olhou maldosamen
te em minha direção.
Eu me declaro inocente, meritíssimo disse eu.
Não seja burro, Baztuk disse Bico-de-águia. O globo o impede de usar magia fora de s
ua barreira. Algo mais está acontecendo. Acho que devíamos soar o alarme.
Mas nada aconteceu. Cabeça-de-touro parecia em pânico. Eles vão nos castigar. Ao menos
deixe-me primeiro matar Bartimaeus pediu. Não posso perder esta oportunidade.
Acho que você, definitivamente, devia pedir ajuda aconselhei. Quase com certeza é al
go com que você não pode lidar. Um besouro carpinteiro, talvez. Ou um pica-pau desor
ientado.
Baztuk cuspiu um metro de espuma no ar.
Essa foi a gota d'água, Bartimaeus! Vai morrer! Ele fez uma pausa. Veja só, poderia s
er um besouro carpinteiro, pense nisso...
Em uma sólida construção de pedra? Xerxes riu com desdém. Não creio.
O que, de repente, o torna um profundo conhecedor?
Prorrompeu uma nova discussão. Meus dois captores voltaram a se encarar, se empert
igando um para o outro e se empurrando, inflamados a uma fúria cega pela mútua estup
idez e por minha ocasional e cuidadosa instigação.
Por baixo disso tudo, as pancadinhas tap, tap, tap continuavam. Eu há muito havia
localizado sua origem em um pedaço de pedra no alto de uma parede, não muito longe d
a única janela. Enquanto estimulava a briga, fiquei de olho constante nessa área e f
ui recompensado, após vários minutos, avistando um discreto derramamento de pó de pedr
a escorrendo entre dois blocos. Um momento em seguida apareceu um pequeno buraco
; este rapidamente se alargou, conforme mais pó e lascas caíam dele, empurrados por
alguma coisa pequena, pontuda e preta.
Para meu aborrecimento, após darem a volta na cela em um alvoroço de tapas e gritos
próprios de meninas, Xerxes e Baztuk pararam não longe do misterioso buraco. Era só um
a questão de tempo para notarem o pó de pedra que caía em movimento espiral, então resol
vi que tinha de arriscar tudo em uma última jogada.
Ei, seus dois comedores de areia! gritei. A Lua brilha sobre os corpos de seus
ompanheiros! Os chacais carregam suas cabeças cortadas para a toca a fim de que se
us filhotes brinquem!
Conforme eu esperava, Baztuk instantaneamente parou de puxar as penas do flanco
de Xerxes, e Xerxes tirou o dedo do nariz de Baztuk. Ambos viraram devagar para
mim, com intenções homicidas nos olhos. Até agora, tudo bem. Calculei que eu tinha apr
oximadamente trinta segundos até que aparecesse fosse lá o que fosse que vinha saind
o do buraco. Se demorasse mais, eu morria, se não pelas mãos de Baztuk e Xerxes, então
pelo globo, que agora havia se reduzido ao tamanho de uma laranja minúscula.
Baztuk disse Xerxes educadamente , vou lhe permitir desfechar o primeiro golpe.
Isso é bondade sua, Xerxes respondeu Baztuk. Depois você pode picar o restante a seu
gosto.
Ambos sopesaram suas lanças e vieram em minha direção. Atrás deles, as batidas subitamen
te cessaram e do buraco na parede, que a essa altura havia se alargado bastante,
projetou-se um bico lustroso, pronunciado como uma bigorna. A este seguiu-se um
a cabeça emplumada, preto-azeviche, completada por um olhinho redondo. O olho move
u-se rapidamente para um lado e para o outro, apreendendo a cena, e então, silenci
osamente, a ave por trás do olho começou a se espremer para fora do buraco, contorce
ndo-se para a frente, de um modo nitidamente pouco próprio para uma ave.
Com um salto e uma sacudida, um corvo enorme encarapitou-se na beirada da pedra.
Quando as penas de sua cauda deixaram o buraco, outro bico apareceu atrás dele.
A essa altura, o utukku já chegara à minha coluna. Baztuk lançou o braço para trás.
Eu tossi.
E o que está atrás de você?
Essa não cola comigo, Bartimaeus! gritou Baztuk.
Seu braço projetou-se para a frente, a lança começou a mergulhar. Um lampejo negro atr
avessou seu caminho, pegando a lança pelo cabo com o bico e voou para a frente, ar
rancando-a da mão do utukku. Baztuk soltou um grito de espanto e virou-se. Xerxes
girou também.
Um corvo pousou em uma coluna vazia, a lança firmemente presa em seu bico.
Com insegurança, Baztuk deu um passo em sua direção. Com cuidado deliberado, o corvo d
eu uma bicada no cabo de aço da lança.
Esta estalou em dois; as duas metades caíram ao chão.
Baztuk parou de súbito.
Mais um corvo desceu adejando e veio pousar em uma coluna próxima. Ambos ficaram p
arados em silêncio, observando os utukkus com olhos que não piscavam.
Baztuk olhou para o companheiro.
Bem, Xerxes...?
Bico-de-águia matraqueou a língua em aviso.
Soe o alarme, Baztuk disse. Eu cuido deles.
Curvou as pernas; deu um pulo alto para o ar. Com um som como o de pano se rasga
ndo, suas grandes asas brancas se abriram. Bateram uma vez, duas; ele subiu, sub
iu, quase até o teto. As penas se retesaram em ângulo; ele girou e mergulhou, cabeça p
ara a frente, asas para trás, segurando em uma das mãos a lança estendida; mergulhando
com a rapidez de um relâmpago.
Em direção a um dos corvos, que esperava calmamente.
Um olhar de dúvida tomou os olhos de Xerxes. Agora ele estava quase em cima do cor
vo, e este ainda não havia se mexido. A dúvida foi substituída por súbito medo. Suas asa
s estremeceram para fora; desesperadamente, ele tentou fazer uma curva, evitar c
olidir...
O corvo abriu bem o bico.
Xerxes gritou.
Houve um movimento confuso, um estalo e uma engolida em seco. Algumas penas saíram
voando e desceram lentamente sobre as pedras em torno da coluna. O corvo contin
uava pousado lá, um ar sonhador nos olhos. Xerxes sumira.
Baztuk dirigia-se à parede, onde apareceria o portal. Estava remexendo em uma bols
a presa à sua cintura. O segundo corvo saltou preguiçosamente de uma coluna para out
ra, interrompendo-o. Com um grito de desgosto, Baztuk atirou sua lança. Ela errou
o corvo, enterrando-se até o cabo na lateral da coluna. O corvo sacudiu a cabeça com
o quem diz que lástima e abriu as asas. Baztuk escancarou a bolsa e tirou dela um
pequeno apito de bronze. Levou-o aos lábios...
Mais uma confusão, um redemoinho rápido demais para se seguir. Honra seja feita, Baz
tuk era rápido; vi-o abaixando a cabeça, arremetendo com os chifres e então o redemoin
ho o engoliu. Quando sumiu, Baztuk também havia sumido. Não se podia vê-lo em lugar ne
nhum. O corvo pousou desajeitadamente no chão, sangue verde escorrendo-lhe de uma
asa.
Dentro do globo, o escaravelho se agitou.
Muito bem! gritei, tentando fazer minha voz menos aguda e estridente. Não sei q
vocês são, mas que tal me...
Minha voz foi se extinguindo. Devido ao globo, eu só podia ver os recém-chegados no
primeiro plano, onde, até agora, eles mantinham seu aspecto de corvo. Talvez tenha
m percebido isso, pois de repente, numa fração de segundo, expuseram seu verdadeiro
eu a mim no primeiro plano. Foi só um lampejo, mas eu não precisava de mais. Já sabia
quem eram.
Preso no globo, o besouro deu uma estrangulada engolida em seco.
Oh disse eu. Olá.
Olá, Bartimaeus disse Faquarl.
25
- E Jabor também acrescentei. - Mas que gentileza, terem vindo...
Achamos que podia estar se sentindo solitário, Bartimaeus.
O corvo mais próximo, o que estava com a asa sangrando, teve um estremecimento e a
ssumiu a aparência do cozinheiro. Seu braço tinha um corte feio.
Não, não, eu tive muita atenção.
É o que eu estou vendo. O cozinheiro avançou para examinar o meu globo. Puxa vida, v
ocê está em um aperto.
Dei um inconvincente risinho de desdém.
Ditos espirituosos à parte, meu velho amigo, talvez você pudesse dar um jeito me aj
dando a sair daqui. Posso sentir a comichão das barreiras pressionando.
O cozinheiro deu um tapa no próprio rosto.
Um problema difícil. Mas eu tenho de fato uma solução.
Ótimo!
Você poderia virar uma pulga ou alguma outra forma de inseto desse tipo. Isso lhe
daria mais alguns poucos minutos preciosos de vida antes de sua essência ser destr
uída.
Obrigado, sim, essa é uma sugestão útil. Aqui eu estava arfando um pouco. O globo esta
va se aproximando muito. Ou talvez vocês pudessem desarmar o globo de algum modo e
me libertar. Imaginem a minha gratidão.
O cozinheiro levantou um dedo.
Ocorre-me um outro pensamento. Você podia nos dizer onde escondeu o Amuleto de Sam
arkand. Se falar rapidamente, podíamos então ter tempo para destruir o globo antes q
ue você pereça.
Invertam a seqüência e talvez consigam fechar um acordo comigo. O cozinheiro suspir
u fundo.
Não creio que esteja em posição de... Ele se interrompeu ao som de um distante ruído lam
urioso; ao mesmo tempo, uma reverberação familiar percorreu a cela.
Um portal está para se abrir disse eu apressadamente. Na parede oposta.
Faquarl olhou para o outro corvo, ainda pousado sobre sua coluna, examinando as
garras.
Jabor, você teria a gentileza...?
O corvo deu um passo à frente no espaço e tornou-se um homem alto, com cabeça de chaca
l e pele de um vermelho vivo. Atravessou a cela e assumiu posição em frente à parede o
posta, uma perna para a frente, a outra para trás, as mãos estendidas.
O cozinheiro virou-se de volta para mim.
Então, Bartimaeus...
Minha cutícula estava começando a sapecar.
Vamos ao que interessa disse eu. Nós dois sabemos que se eu lhes contar onde es
ocês vão me deixar morrer. Também sabemos que, em sendo assim, obviamente lhes darei u
ma falsa informação, só para contrariar vocês. Portanto, qualquer coisa que eu disser da
qui por diante será inútil. Isso significa que vocês têm de me deixar sair.
Faquarl bateu na beira de minha coluna irritadamente.
Chato, mas percebo o que você quer dizer.
E esse som lamuriento com certeza é um alarme continuei. Os magos que me puseram a
qui falaram algo sobre legiões de medonhos e utukkus. Duvido que até mesmo Jabor pos
sa engoli-los todos. Então, talvez pudéssemos continuar esta discussão um pouco depois
.
De acordo. Faquarl aproximou o rosto do globo, que agora estava pouco mais que d
o tamanho de uma laranjinha japonesa. Você nunca escapará da torre sem nós, Bartimaeus
, portanto não tente nenhum truque. Devo preveni-lo de que eu tinha duas ordens ao
vir para cá. A primeira era descobrir a localização do amuleto. Se isso for impossível,
a segunda é destruí-lo. Não preciso lhe dizer qual das duas me dará maior prazer.
Seu rosto recuou. Nesse momento, a fenda oval apareceu na parede do fundo e alar
gou-se formando o arco-portal. Da escuridão começaram a surgir diversas figuras de r
osto pálido, trazendo tridentes e redes de prata em seus braços finos como varetas.
Uma vez ultrapassado o portal, os Escudos Protetores em torno de seus corpos fic
ariam invulneráveis; durante a passagem, no entanto, os Escudos estavam fracos e s
uas essências momentaneamente desprotegidas. Jabor tirou plena vantagem disso, dis
parando três rápidas detonações em acelerada sucessão. Explosões de um verde brilhante engo
faram a passagem em arco. Agitados e pipilando de modo digno de pena, os medonho
s caíram amontoados no chão, ainda meio a meio fora do portal. Mas atrás deles veio ou
tro magote, pisando com cuidado fastidioso sobre os corpos dos companheiros caídos
. Jabor disparou de novo.
Faquarl, enquanto isso, não ficou à toa. Tirou de um bolso do casaco um anel de ferr
o, mais ou menos do tamanho de um bracelete, preso à ponta de uma longa vara de ma
deira. Olhei precavidamente para o anel.
E o que espera que eu faça com isso? perguntei.
Salte pelo meio dele, é claro. Faça de conta que é um cachorro treinado de um circo. Não
é difícil para você, tenho certeza, Bartimaeus; você já tentou a maioria dos serviços, nos
seus tempos.
Segurando cautelosamente uma ponta entre o indicador e o polegar, Faquarl posici
onou a vara de tal forma que o anel de ferro fez contato com a superfície do globo
. Com um chiado violento, os fios da barreira se separaram e formaram um arco em
torno da beira do anel, deixando livre o espaço em seu interior.
Lovelace reforçou especialmente o anel para aumentar a resistência mágica do ferro
tinuou Faquarl. Mas não vai durar eternamente, portanto sugiro que salte depressa.
Ele tinha razão. A beirada do anel já estava borbulhando e se derretendo sob a força d
o globo. Como escaravelho, eu não tinha espaço de manobra, portanto convoquei e conc
entrei o que me restava de energia e mais uma vez virei mosca. Sem mais cerimônia,
fiz um rápido circuito do globo para ganhar velocidade e, em um relâmpago, lancei-m
e através do anel que se derretia, para a liberdade!
Maravilhoso disse Faquarl. Se ao menos tivéssemos contado com o acompanhamento
um rufar de tambores.
A mosca pousou no chão e virou um falcão muito irritadiço.
Garanto-lhe que para mim foi dramático o suficiente disse eu. E agora?
Faquarl jogou no chão o que restava do anel.
Sim, é melhor irmos embora.
Um tridente com pontas de prata atravessou voando o ar e caiu com muito barulho
nas lajes de pedra entre nós. Acima, e pelo portal, agora meio entulhado com corpo
s de medonhos, Jabor estava firmemente batendo em retirada. Uma nova onda de gua
rdas, utukkus principalmente, avançou atrás de um forte escudo coletivo, que repeliu
as Detonações cada vez mais enfraquecidas de Jabor e os deixou rodopiando pela cela
. Finalmente, um medonho conseguiu sair do portal e, com sua blindagem plenament
e formada, veio rastejando em torno da beirada do escudo. Jabor disparou contra
ele; a descarga atingiu o medonho em seu peito esguio e foi completamente absorv
ida. O medonho deu um sorriso gelado e projetou-se para a frente, rodopiando sua
rede como boleadeiras.
Faquarl virou um corvo e alçou vôo esforçadamente, uma asa labutando pelo ar. Meu falcão
o seguiu, subindo até o buraco. Uma rede passou logo abaixo de mim; um tridente c
ravou suas pontas na parede.
Jabor! gritou Faquarl. Vamos nessa!
Dei uma olhada lá para baixo. Jabor se atracava com o medonho, sua força aparentemen
te igual. Mas incontáveis outros continuavam chegando. Concentrei meus esforços em a
lcançar o buraco. Faquarl já havia sumido por ele; abaixei o bico e mergulhei dentro
dele também. Atrás de mim, uma explosão colossal abalou a cela e ouvi a fúria selvagem
do grito do chacal.
No túnel estreito e escuríssimo, a voz de Faquarl ressoava estranha e abafada.
Estamos quase saindo. De agora em diante, seria mais apropriado que você fosse um
corvo.
Por quê?
Lá fora há dúzias dessas coisas. Podemos nos misturar com a multidão e ganhar tempo enqu
anto rumamos para os muros.
Por mais que eu detestasse seguir os conselhos de Faquarl sobre qualquer coisa,
eu não fazia idéia do que enfrentaríamos do lado de fora. Escapar da torre era a prior
idade. Escapar dele podia ficar para depois. Então, concentrei-me e mudei de forma
.
Você se transformou?
Sim. Não é um aspecto que eu já tenha tentado antes, mas não parece difícil demais.
Algum sinal de Jabor atrás de nós?
Não.
Ele virá. Certo, a abertura para fora está logo à minha frente. Existe um esconderijo
no buraco de saída, então ainda não devem tê-lo avistado. Voe depressa e desça direto. Verá
um pátio de cozinha onde os corvos se reúnem para recolher migalhas. Nos encontrarem
os lá. Acima de tudo, não seja conspícuo.
Uma barafunda no túnel mais à frente, e então um súbito estouro de luz. Faquarl sumira,
revelando o contorno da saída, coberta com uma malha de fios de ocultamente Pulei
para a frente, até que meu bico atingiu a barreira, fiz pressão contra ela e empurre
i minha cabeça para o ar frio de novembro.
Sem pausa, forcei-me para fora do buraco e comecei a pairar em direção ao pátio lá embai
xo.
Quando eu descia, uma rápida olhada em torno confirmou como eu estava longe da seg
urança: os telhados distantes de Londres mal eram visíveis atrás de uma série de torres
circulares e uma cortina de muros. Guardas rondavam sobre eles, e esferas de bus
ca flutuavam a esmo pelo céu. O alarme já havia sido acionado. De algum ponto bem al
to, tocava uma sirene e, não muito longe, dentro desse pátio, batalhões de policiais e
stavam correndo em direção a um ponto não visível.
Pousei em um pequeno pátio lateral, isolado do pânico generalizado por dois prédios an
exos que se projetavam do corpo da torre principal. As pedras de calçamento do pátio
estavam cobertas com sobras gordurosas de pão e couro de bacon, e com um bando fa
minto de corvos grasnando.
Um dos corvos veio chegando de lado.
Bartimaeus, seu idiota.
O que é que há?
Seu bico está de um azul brilhante. Conserte isso.
Bem, como corvo era a minha primeira vez. E eu tive de mudar no escuro. O que el
e esperava? Mas não era hora nem lugar para discutir. Mudei o bico.
Eles vão manjar esse disfarce, de qualquer modo disse eu com brusquidão. Deve haver
mil sentinelas de um tipo ou de outro lá fora.
É verdade, mas só precisamos de um pouco de tempo. Eles ainda não sabem que estamos co
mo corvos e, como estamos no meio de um bando, levarão alguns segundos extras para
nos descobrir e conferir. Só do que precisamos agora é que o bando levante vôo...
Em um momento, uma centena de corvos estava bicando inocentemente couro frio de
bacon, em paz consigo mesmos e com o mundo. Logo em seguida, Faquarl revelou-lhe
s seu verdadeiro eu no primeiro plano: ele só o fez durante uma fração de segundo, mas
o vislumbre foi o suficiente. Quatro corvos caíram duros na hora, vários outros per
deram o desjejum e o resto levantou vôo do pátio em uma aglomeração tomada de pânico, gras
nando e rasgando o ar com as garras. Faquarl e eu estávamos no miolo do bando, bat
endo as asas com toda a força com que podíamos, girando e mergulhando quando os dema
is o faziam, tentando desesperadamente não ficar para trás.
Subimos bem alto e passamos por cima do telhado da grande torre, onde tremulava
uma bandeira enorme e sentinelas humanas estavam paradas olhando as águas do Tâmisa;
e então descemos e atravessamos em rasante o pátio cinzento do outro lado. Cerca de
vinte pentagramas comuns permanentes haviam sido pintados no centro da praça de a
rmas e, quando passei chispando, tive um vislumbre de uma formidável legião de espírit
os aparecendo dentro deles, invocados naquele momento por uma tropa de magos em
uniformes cinza. Os espíritos eram de classe inferior, na maior parte diabretes en
galanados, mas em massa apresentariam problemas. Eu esperava que o bando de corv
os não pousasse lá.
Mas os pássaros não demonstraram qualquer vontade de parar; o medo ainda os empurrav
a para a frente, em um curso rodopiante através das fortificações da torre. Várias vezes
eles deram a impressão de estar se dirigindo para um muro externo; em cada ocasião
dessas, descreveram uma curva e voltaram. Uma vez senti-me tentado a fazer uma t
entativa solitária, mas fui desestimulado pelo aparecimento, nas ameias, de uma es
tranha sentinela azul e preta com quatro patas de aranha. Não gostei do seu aspect
o e estava cansado demais, depois de meu cativeiro e forçadas mudanças de forma, par
a arriscar sua força desconhecida.
Finalmente, chegamos a mais um pátio, cercado de três lados por construções acasteladas
e no outro por um íngreme talude de grama verdinha que subia até uma alta muralha. O
s corvos pousaram no talude e começaram a ciscar o chão a esmo.
Faquarl veio pulando até onde eu estava, uma asa pendendo do peito. Ela ainda esta
va sangrando.
Esses pássaros nunca vão sair do chão disse eu. Eles se alimentam aqui.
O corvo assentiu.
Eles nos trouxeram o mais longe possível, mas já serve. Este é um muro externo. Ali po
r cima, e estamos fora.
Então, vamos.
Daqui a um minuto. Preciso descansar. E talvez Jabor...
Jabor morreu.
Você o conhece bem o bastante para não cair nessa, Bartimaeus. Faquarl deu uma bicad
a em sua asa ferida, tirando uma pena do sangue em coagulação. Dê-me só um momento. Aque
le utukku! Eu não imaginaria que ele fosse capaz.
Diabretes chegando! disse eu com um silvo.
Um batalhão atravessara correndo um arco até o canto oposto do pátio, e estavam todos
se espalhando em leque para dar início a um meticuloso exame de cada tijolo e cada
pedra. Ainda estávamos ocultos dentro do bando de corvos, mas não por muito tempo.
Faquarl lançou mais uma pena sobre a relva, onde ela rapidamente se transformou em
uma tira gelatinosa retorcida, antes de se dissolver e sumir.
Muito bem. Para o alto, por cima e pra fora. Não se detenha para coisa alguma.
Fiz um gesto educado com a asa.
Você na frente.
Não, não, Bartimaeus, primeiro você. O corvo flexionou um pé grandão e cheio de g
tarei logo atrás de você o tempo todo, então, por favor, seja original e não tente escap
ulir.
Você tem uma mente horrorosa, desconfiada.
Os diabretes estavam se aproximando, farejando o chão como cachorros. Levantei vôo e
disparei para o alto, veloz, em direção às ameias. Quando cheguei ao nível delas, perce
bi uma sentinela patrulhando a passarela. Era um pequeno trasgo, com uma trompa
de bronze toda amassada, amarrada do lado de sua cabeça. Infelizmente, ele também me
percebeu. Antes que eu pudesse reagir, ele já havia levado aos lábios o bocal da tr
ompa e dado um toque curto e agudo, que instantaneamente disparou uma onda de si
nais de resposta ao longo do muro, agudos e graves, altos e baixos, lançados à distânc
ia. Foi o suficiente: nosso disfarce fora pelos ares. Avancei coleando até a senti
nela, que deu um guincho, perdeu o equilíbrio e caiu para trás, por cima da beira do
muro. Projetei-me direto através das ameias, passando sobre um íngreme talude de te
rra e pedras negras desmoronadas, e deixei a torre, entrando na cidade.
Não havia tempo a perder, nem para olhar para trás. Bati asas para a frente, o mais
depressa que eu podia. Abaixo de mim, passava uma larga avenida cinzenta, carreg
ada de tráfego, depois um quarteirão de garagens de teto plano, uma rua estreita, um
chão de cascalho, uma curva do Tâmisa, um atracadouro, uma balança romana, mais uma r
ua... Ei! Isso não era nada mau com meu garbo habitual, eu estava escapando! A Tor
re de Londres já deve ter ficado uma milha para trás. Logo, logo, eu poderia...
Ergui os olhos e pisquei, em choque. O que era isso? A Torre de Londres assomava
diante de mim. Grupos de figuras voadoras se concentravam sobre a torre central
. Eu estava voando de volta para ela! Alguma coisa dera seriamente errado com me
u senso de direção. Com grande perplexidade, fiz uma curva em U em torno de uma cham
iné e voltei a disparar na direção oposta. A voz de Faquarl soou atrás de mim.
Bartimaeus, pare!
Você não os viu? gritei para trás, por cima da asa. Eles vão nos alcançar em se
Redobrei a velocidade, ignorando os chamados urgentes de Faquarl. Telhados passa
vam velozes embaixo de mim, em seguida a expansão suja do Tâmisa, que atravessei em
tempo recorde, e então...
A Torre de Londres, tal como antes. As figuras voadoras agora disparavam em toda
s as direções, cada grupo seguindo uma esfera de busca. Um grupo vinha em minha direção.
Todos os meus instintos me diziam para virar ao contrário e fugir, mas eu estava
confuso demais. Pousei sobre um telhado. Alguns momentos depois, Faquarl aparece
u do meu lado, arfando e xingando, a ponto de explodir.
Seu idiota! Agora estamos de volta ao ponto de partida! Aí, a ficha caiu.
Você quer dizer...
A primeira torre que você viu era uma Ilusão em Espelho. Devíamos ter passado diret
or ela. Lovelace me preveniu a respeito, e você não quis esperar para ouvir! Dane-se
essa minha asa ferida, e dane-se você, Bartimaeus!
O batalhão de djins voadores estava cruzando os muros externos. Mal estávamos separa
dos por uma rua de distância. Faquarl curvou-se desanimadamente por trás de uma cham
iné.
Nunca vamos conseguir voar mais rápido do que eles. Tive uma inspiração.
Então não vamos voar. Passamos por alguns sinais de trânsito lá atrás.
E daí? A urbanidade normal de Faquarl estava ficando um pouco desgastada.
Daí que vamos pegar uma carona.
Mantendo o prédio entre mim e os batedores, saí rápido do telhado e desci até um cruzame
nto, onde havia uma fila de carros formada em frente a um sinal vermelho. Pousei
no asfalto, perto do fim da fila, com Faquarl nos meus calcanhares.
Certo disse eu. Hora de se transformar.
Em quê?
Alguma coisa com garras fortes. Apresse-se, o sinal vai mudar.
Antes que Faquarl pudesse objetar, pulei do asfalto para baixo do carro mais próxi
mo, tentando ignorar o fedor repelente de óleo, os vapores de gasolina e as vibrações
nauseantes que se intensificaram quando o motorista não visível ligou o motor. Sem a
rrependimentos, dei adeus ao corvo e assumi a forma de um diabinho do Estige, o
qual pouco mais é do que uma série de farpas e um emaranhado de músculos. Farpas e gar
ras projetaram-se para fora e cravaram-se no metal imundo do fundo do carro, pre
ndendo-se bem seguro quando o carro começou a se movimentar. Eu tivera a esperança d
e que Faquarl seria lento demais para me acompanhar, mas não dei essa sorte: outro
diabinho estava bem do meu lado, pendurado amuadamente entre as rodas e mantend
o os olhos bem fixos em mim o tempo todo.
Não falamos muito durante a viagem. O motor fazia um barulho alto demais. Além disso
, diabinhos estígios são mais dente do que língua.
Uma infinidade de tempo depois, o carro parou. O motorista saltou e afastou-se.
Silêncio, com um gemido, soltei minhas várias e intricadas pegas e caí pesadamente no
chão pavimentado, tonto de enjôo do movimento e do cheiro de tecnologia.5 Faquarl não
estava melhor do que isso. Sem falar, viramos uma dupla de gatos velhuscos, meio
felpudos e bravios, que saíram manquitolas de debaixo do carro e foram, atravessa
ndo um trecho de gramado, rumo a um espesso amontoado de arbustos. Uma vez lá, fin
almente relaxamos em nossas formas preferidas. O cozinheiro caiu sentado sobre u
m toco de árvore.
Vai me pagar por isso, Bartimaeus disse, arfante. Nunca passei por tortura igual
.
O menino egípcio arreganhou um sorriso.
Mas serviu para nos safar, não foi? Estamos seguros.
Uma de minhas garras furou o tanque de gasolina. Estou coberto dessa droga. Vou
ficar com a pele cheia de bolhas...
Pare de se queixar.
Apertei os olhos para dar uma espiada através da folhagem: uma rua residencial, gr
andes casas geminadas, montes de árvores. Não havia ninguém à vista, exceto uma menininh
a brincando com uma bola de tênis em uma entrada de carro próxima a nós.
Estamos em algum subúrbio disse eu. Nas cercanias de Londres, ou mais além.
Faquarl deu só um grunhido. Lancei-lhe um maroto olhar de esguelha. Ele estava ree
xaminando o ferimento que Baztuk lhe fizera. Parecia feio. Ele devia estar enfra
quecido.
Mesmo com este corte, sou mais do que páreo para você, Bartimaeus, portanto venha e
sente-se. O cozinheiro fez um gesto impaciente. Tenho algo importante a lhe dize
r.
Com minha obediência habitual, sentei-me no chão, de pernas cruzadas, como Ptolomeu
costumava fazer. Não cheguei perto demais. Faquarl fedia a gasolina.
Primeiro disse ele , eu cumpri com a minha parte na barganha: contra meu melhor
ulgamento, salvei a sua pele. Onde está o Amuleto de Samarkand?
Hesitei. Somente a existência daquela lata no fundo do Tâmisa me impediu de entregar
-lhe o nome e o número de Nat. É verdade que eu devia a Faquarl ter escapado, mas o
interesse próprio tinha de vir primeiro.
Olhe disse eu , não pense que não sou grato a você por ter acabado de me botar para for
a. Mas não é fácil para mim atendê-lo. Meu amo...
E consideravelmente menos poderoso do que o meu. Faquarl inclinou-se para a fren
te de um modo urgente. Quero que utilize por um instante esse seu cérebro tolo e m
inúsculo, Bartimaeus. Lovelace quer muito seu amuleto de volta, muito o suficiente
para mandar que Jabor e eu invadíssemos a prisão de maior segurança do seu governo, p
ara salvarmos a infeliz da vida de um escravo como você.
Essa é bem pesada admiti.
Imagine como isso era perigoso, para nós e para ele. Ele estava arriscando tudo. S
omente isso já devia lhe dizer alguma coisa.
Ele precisa do amuleto para quê? indaguei, indo ao que interessava.
Ah, isso não posso contar. O cozinheiro deu tapinhas com o dedo na maçã do rosto e sor
riu com um ar de quem está manjando a jogada. Mas o que posso dizer é que você vai des
cobrir ser do seu maior interesse, Bartimaeus, ficar do nosso lado nesse lance.
Temos um amo que vai longe, se entende o que quero dizer.
Dei um riso escarninho.
Todos os magos dizem isso.
Vai longe muito breve. Estou falando em uma questão de dias. E o amuleto é vital par
a o seu sucesso.
Talvez, mas e nós, vamos participar desse sucesso? Já ouvi todo esse tipo de convers
a fiada. Os magos nos usam para ganhar mais poder para si próprios e, aí, simplesmen
te dobram a nossa servidão! O que levamos nisso?
Eu tenho planos, Bartimaeus...
Sim, sim, e nós todos não temos? Além do que, nada disso muda o fato de que estou obri
gado a minha ordem original. Existem penalidades severas...
Penalidades a gente agüenta! Faquarl deu um tapa na têmpora, em frustração. Min
ainda está se recuperando dos castigos que Lovelace me infligiu quando você sumiu c
om o amuleto dele! Na verdade, nossa existência... e não se atreva a se desculpar, B
artimaeus, você não está ligando a mínima... nossa existência aqui não é nada além de uma s
penalidades! Somente os próprios magos malditos mudam e, assim que um deles embar
ca para o túmulo, surge outro, tira o pó de nossos nomes e nos invoca de novo! Eles
passam, nós duramos e agüentamos.
Dei de ombros.
Acho que já tivemos essa conversa. No Grande Zimbabué, não foi? A raiva de Faquarl
sou. Ele fez que sim com a cabeça.
Talvez sim. Mas sinto mudanças se aproximando e, se você tivesse algum juízo, estaria
sentindo também. O declínio de um império sempre traz dias de instabilidade: tumultos
brotando nas ruas, magos se altercando imprudente e insensatamente, seus cérebros
amolecidos pelo luxo e pelo poder... Já vimos isso com freqüência suficiente, você e eu.
Tais ocasiões nos dão maiores oportunidades de agir. Nossos amos ficam indolentes,
Bartimaeus... eles nos dão mais espaço de manobra.
Dificilmente.
Lovelace é um desses. Sim, ele é forte, não há dúvida, mas é imprudente. Desde que me invoc
u pela primeira vez, sente-se frustrado com as limitações de sua função ministerial. Está
louco para emular os grandes magos do passado, para intimidar o mundo com suas r
ealizações. Como resultado, se agarra aos cordões como um cão a um osso velho. Passa tod
o o seu tempo tramando e intrigando, em incessantes tentativas de ganhar vantage
m sobre seus rivais... nunca sossega com isso. E não está sozinho. Há outros como ele
no governo, alguns ainda mais imprudentes do que ele. Você conhece o tipo: magos,
quando partem para as apostas mais altas, raramente duram muito tempo. Mais cedo
ou mais tarde cometerão enganos e nos darão a nossa oportunidade. Mais cedo ou mais
tarde, nosso dia chegará.
O cozinheiro ergueu os olhos para o céu.
Bem, o tempo está passando disse ele. Eis a minha oferta conclusiva. Guie-me at
muleto e eu prometo que, seja qual for a sua penalidade, Lovelace subseqüentemente
se encarregará de você. Seu amo, seja quem for, não será capaz de interpor-se a ele. En
tão seremos parceiros, Bartimaeus, e não inimigos. Isso vai ser uma bela mudança, não va
i?
Adorável disse eu.
Ou... Faquarl pousou as mãos sobre os joelhos, preparado para agir. Você pode m
aqui e agora, neste medíocre pedaço de mato suburbano. Você sabe que nunca me derroto
u; a sorte sempre salvou a sua pele. Não o salvará desta vez.
Eu estava pensando sobre essa grave declaração e calculando qual o melhor meio de fu
gir, quando fomos interrompidos. Com uma pequena pancada na folhagem, alguma coi
sa atravessou os ramos e, quicando devagarzinho, veio parar a nossos pés. Uma bola
de tênis. Faquarl pulou fora do toco de árvore e eu saltei de pé, mas era tarde demai
s para nos escondermos. Alguém já estava abrindo caminho até o centro do cerrado de mo
itas.
Era a garotinha que eu vira brincando na entrada de carros de sua casa: cerca de
seis anos de idade, rosto sardento, cabelos desgrenhados, uma camiseta larga e
frouxa que se estendia até os seus joelhos encardidos. Ela ficou olhando fixo para
nós, meio fascinada, meio alarmada.
Durante uns dois segundos, nenhum de nós se mexeu. A menina nos olhava. Faquarl e
eu olhávamos para a menina. E então ela falou.
Você cheira a gasolina disse a menina.
Não lhe respondemos. Faquarl mexeu a mão, começando um gesto. Percebi sua lamentável int
enção.
Por que agi então? Puro interesse próprio. Porque com Faquarl momentaneamente distraíd
o, eu tinha a oportunidade perfeita para escapar. E se nisso eu salvasse a garot
a também... bem, seria muito justo. Ela é que me dera a idéia.
Acendi uma pequena Fagulha na ponta de um dedo e joguei-a em cima do cozinheiro.
Um barulho suave, como o de um queimador a gás sendo acendido, e Faquarl virou uma
bola de fogo amarelo-alaranjada. Enquanto ele girava às tontas, rosnando de mal-e
star, botando fogo nas folhas perto dele, a menina deu um gritinho e fugiu corre
ndo. Foi bem pensado: fiz o mesmo.
E em poucos momentos eu estava no ar, bem longe, projetando-me a toda velocidade
rumo a Highgate e o estúpido e vagabundo do meu amo.
Nathaniel
26
Conforme a noite foi caindo, os apertos aflitivos do temor fecharam-se sobre Nat
haniel. Andando pelo quarto como uma pantera na jaula, ele sentia-se como se est
ivesse preso em uma dúzia de modos diferentes. Sim, a porta estava trancada, por i
sso ele não podia escapar fisicamente, mas esse era o menor de seus problemas.
Nesse exato momento seu servidor Bartimaeus estava prisioneiro na torre, sendo s
ubmetido a quaisquer torturas que os maiores magos conseguissem conceber. Se ele
realmente houvesse causado uma carnificina no centro de Londres, isso era exata
mente o que o demônio merecia. Mas Nathaniel era o seu amo. Era responsável por seus
crimes.
E isso significava que os magos estariam procurando por ele também. Sob tortura, a
ameaça do Confinamento Perpétuo seria esquecida. Bartimaeus lhes revelaria o nome d
e Nathaniel, e a polícia viria procurá-lo. E então...
Com um tremor de medo, Nathaniel lembrou-se dos machucados que Sholto Pinn apres
entava na noite anterior. As conseqüências não seriam agradáveis.
Ainda que, por algum milagre, Bartimaeus ficasse calado, seria preciso enfrentar
o sr. Underwood também. O mestre de Nathaniel já prometera rejeitá-lo e talvez coisa
pior. Agora bastava ele ler as anotações rabiscadas que havia tirado do quarto de Na
thaniel para descobrir precisamente o que seu aprendiz havia invocado. E então exi
giria saber a história toda. Nathaniel estremeceu ao calcular que métodos de persuasão
ele poderia usar.
O que podia fazer? A sra. Underwood sugerira uma saída. Ela o aconselhara a simple
smente dizer a verdade. Mas a idéia de revelar seus segredos para a malevolência e o
sarcasmo do seu mestre o fazia sentir-se fisicamente mal.
Pondo de lado esse dilema, Nathaniel chamou o diabrete já saturado e o mandou mais
uma vez dar uma espionada na Torre de Londres, ignorando seus protestos. De uma
distância segura, ele ficou olhando pasmo uma horda furiosa de demônios de asas ver
des sair em espirais como gafanhotos por cima dos parapeitos, para então subitamen
te se dispersar em todas as direções, através do céu que ia escurecendo.
Isso é impressionante comentou o espelho mágico. Classe de verdade. Não se brinca com
esses djins de alta categoria. Quem sabe? ele acrescentou. Talvez alguns deles e
stejam vindo atrás de você.
Encontre o sr. Underwood disse Nathaniel, ríspido. Onde ele está e o que está fazendo?
Puxa, estamos mesmo num aperto, não é? Vejamos, Arthur Underwood... Neca, sinto muit
o. Ele está na torre também. Não posso ter acesso. Mas podemos especular, não podemos? O
diabrete deu um muxoxo. Ele provavelmente está neste exato momento conversando co
m seu amiguinho Bartimaeus.
Mais observação da torre era obviamente inútil. Nathaniel enfiou o disco embaixo da ca
ma. Não adiantava. Ele teria de ser franco sobre tudo. Teria de contar a seu mestr
e uma pessoa por quem ele não tinha respeito, que não conseguia protegê-lo, que havia
se acovardado e se lamuriado diante de Lovelace. Nathaniel podia muito bem imagi
nar como a fúria de Underwood se expressaria em escárnios, troças e temores por sua próp
ria mísera reputação... E quanto ao que aconteceria então...
Talvez uma hora depois ele ouviu o eco de uma porta batendo em algum lugar lá emba
ixo. Gelou, tentando ouvir os temidos passos do seu mestre na escada, mas durant
e um longo tempo ninguém veio. E quando a chave de fato girou na fechadura, ele já s
abia, pela respiração suavemente ofegante, que era a sra. Underwood do lado de fora.
Trazia uma pequena bandeja de chá, com um copo de leite, e um sanduíche de tomate e
pepino razoavelmente murcho.
Lamento que isto esteja chegando tarde, John disse. Sua comida já está pronta h
, mas seu mestre voltou antes que eu pudesse tê-la trazido para cima. Ela respirou
fundo. Não posso parar. As coisas estão um pouco confusas lá em baixo.
O que... o que está acontecendo, sra. Underwood?
Coma seu sanduíche, como um bom menino. Você parece estar precisando, está bastante
do. Seu mestre não vai demorar a chamá-lo, tenho certeza.
Mas ele disse alguma coisa...?
Por Deus, John! Será que nunca vai parar de fazer perguntas? Ele disse muita coisa
, mas nada que eu vá lhe contar agora. Tenho uma panela com água na cozinha e precis
o fazer alguma coisa para ele depressa. Coma o seu sanduíche, meu bem.
O meu mestre está...?
Ele está trancado em seu gabinete, com ordens de não ser incomodado, salvo para sua
comida, é claro. Está havendo uma senhora emergência.
Uma emergência... Nesse instante Nathaniel tomou uma súbita decisão. A sra. Underwood
era a única pessoa em que ele podia confiar, a única que realmente se importava. Con
taria tudo a ela: sobre o amuleto, sobre Lovelace. Ela o ajudaria com o sr. Unde
rwood, até mesmo com a polícia, se necessário; ele não sabia como, mas ela faria ficar t
udo bem.
Sra. Underwood...
Ela ergueu a mão.
Agora, não, John. Não tenho tempo.
Mas sra. Underwood, eu realmente preciso...
Nem mais uma palavra! Tenho de ir.
E, com um sorriso mortificado, ela foi. A porta se fechou. A chave virou. Nathan
iel ficou parado, olhando. Por um instante ele sentiu-se como se fosse chorar, e
então uma raiva persistente cresceu dentro dele. Ele era alguma criança levada para
ser largado feito um palerma no sótão, enquanto preparavam seu castigo? Não. Ele era
um mago! Não ia ser ignorado!
Todo seu equipamento tinha sido tirado. Não lhe restava nada, exceto o espelho mágic
o e só o que ele podia fazer era olhar. Ainda assim, olhar podia levar ao conhecim
ento. E conhecimento era poder.
Nathaniel mordeu um pedaço do sanduíche murcho e imediatamente lamentou tê-lo feito. P
ondo o prato de lado, foi até a clarabóia e olhou Londres, atapetada de luzes amarel
as, estendendo-se à distância sob o céu noturno. Com certeza, se Bartimaeus houvesse m
encionado seu nome, o sr. Underwood ou a polícia já o teriam prendido a esta altura.
Era curioso. E essa emergência... Estaria relacionada a Bartimaeus ou não?
O sr. Underwood estava lá em baixo, sem dúvida ao telefone. A solução era simples: uma p
equena espiada rapidamente esclareceria a questão.
Nathaniel voltou a pegar o espelho mágico.
Meu mestre está em seu estúdio. Vá para perto, de forma a que eu veja tudo; sobretudo,
ouça e transmita para mim tudo o que ele disser, de forma direta e exata.
Quem aqui é um xereta, então? Desculpe, desculpe, muito justo! Sua moral não é da minha
conta. Lá vamos nós, então...
O centro do disco se esvaziou; em seu lugar uma visão clara e nítida do estúdio do mes
tre. O sr. Underwood estava sentado em sua poltrona de couro, curvado para a fre
nte, com os cotovelos sobre a mesa. Em uma das mãos segurava o receptor do telefon
e; a outra meneava e gesticulava enquanto ele falava. O diabrete chegou mais per
to; agora a agitação no rosto do sr. Underwood ficou clara. Ele estava evidentemente
gritando.
Nathaniel deu pancadinhas no disco.
O que ele está dizendo?
A voz do diabrete começou no meio de uma frase. Havia uma leve defasagem entre o m
ovimento dos lábios de Underwood e o som que chegava a Nathaniel, mas dava para ve
r que o diabinho estava relatando tudo com precisão.
...me dizendo? Todos os três escaparam? Fazendo dúzias de baixas? Nunca se ouviu fa
ar de uma coisas dessas! Whitwell e Duvall têm de responder por isso. Sim, bem, eu
de fato tenho sentimentos muito fortes a respeito, Grigori. Esse é um sério golpe e
m minhas investigações. Eu pretendia interrogá-lo pessoalmente. Sim, eu. Porque tenho
certeza de que isso está ligado ao roubo de artefatos... é a mais recente escalada d
os acontecimentos. Todo mundo sabe que os melhores objetos estão na Pinn's; ele es
perava poder roubá-los... Bem, sim, isso significaria que um mago estava envolvido
... Sim, sei que isso é improvável... Mesmo assim, essa era uma de minhas melhores p
istas... A única pista, para ser sincero, mas o que é que esperam, se não me dão fundos
suficientes? E quanto a suas identidades? Nada de bom aí tampouco! Isto vai ser um
tapa na cara para Jessica; é a única coisa boa a sair desse caso lamentável todo... S
im, suponho que sim. E ouça, Grigori, mudando de assunto por um instante, queria s
aber sua opinião sobre algo mais pessoal...
Nesse instante o comentário do diabinho parou, embora o sr. Underwood evidentement
e ainda estivesse falando, a boca bem perto do receptor. Nathaniel aplicou um Ch
oque de estímulo no disco, ao que apareceu a cara do diabinho.
Oi, não havia necessidade disso!
O som, onde está o som?
Ele está sussurrando, não está? Não consigo ouvir coisa alguma. E não é seguro chegar mais
erto.
Deixe-me escutar!
Mas, chefe, sabe que existe um limite de segurança. Magos costumam ter sensores de
proteção; você sabe, até mesmo esse cara...
Nathaniel sentiu o rosto doído e inchado, de tanta tensão. Ele já havia deixado para t
rás a cautela.
Vá e faça. Não vai precisar que eu peça de novo.
O diabrete não respondeu. O rosto de Underwood reapareceu, tão perto que quase preen
chia o centro do disco. Os pêlos saltando de suas narinas eram transmitidos em ext
remoso detalhe tridimensional. O mago assentia com a cabeça.
Concordo. Suponho que eu devia estar lisonjeado... Sim, olhando desse modo, o ga
roto é testemunha do meu forte empenho e inspiração. Ora, o meu velho mestre...
Ele se interrompeu, com um estremecimento e um dar de ombros, como se algo frio
houvesse roçado nele...
Sinto muito, Grigori. Foi só, eu senti...
Nathaniel viu os olhos se estreitarem, o familiar sobrolho se eriçar agudamente. A
isso, a imagem no disco de repente se alargou, como se o diabrete estivesse rec
uando precipitadamente pela sala. Underwood soltou uma sílaba em voz alta; a voz d
o diabinho tentou reproduzi-la, mas interrompeu-se no meio do caminho como se fo
sse um rádio sendo desligado. A imagem continuou lá, trepidando estranhamente.
Nathaniel não conseguiu evitar que sua voz saísse embargada.
Diabrete, o que está acontecendo? Nada. Silêncio do diabinho.
Ordeno-lhe que saia do gabinete e volte para cá.
A imagem no disco não era tranquilizadora. Por trêmula que estivesse, Nathaniel pôde v
er o sr. Underwood pousando o fone no gancho e então levantar-se devagar e dar a v
olta até a frente de sua mesa, durante todo o tempo olhando com atenção para cima, par
a baixo, em todas as direções , como se buscando alguma coisa que ele soubesse estar
presente. A imagem estremeceu com ainda mais força: o diabrete parecia estar redob
rando seus esforços para fugir, mas sem resultado. Com pânico crescente, Nathaniel a
plicou alguns Choques afobados no disco, mas em vão. O diabrete estava imóvel, incap
az de falar ou se mexer.
Underwood foi até um guarda-louça no fundo do estúdio, remexeu dentro dele e voltou ca
rregando um cilindro de metal. Sacudiu-o: de quatro buraquinhos na parte de cima
, foi lançado um pó branco que rapidamente se espalhou, enchendo a sala. Seja lá o que
o pó fizera, teve efeito imediato. Underwood teve um sobressalto e olhou para cim
a diretamente para Nathaniel. Era como se o disco fosse uma janela e ele estives
se olhando direto por ela. Durante um momento, Nathaniel achou que seu mestre po
dia efetivamente vê-lo, e então se deu conta de que era simplesmente o diabinho susp
enso que pendia revelado.
Tomado de horror, Nathaniel viu seu mestre curvar-se até o tapete e puxá-lo por uma
fita presa em forma de laço. Uma grande seção quadrada do tapete soltou-se, foi puxada
para cima e caiu para um lado. Sob ela havia dois pentagramas pintados. Seu mes
tre entrou no menor, nunca nem por um momento tirando os olhos do diabrete imobi
lizado. Ele começou a falar e, em uma questão de segundos, surgiu uma aparição alta e em
baciada dentro do círculo maior. Underwood deu uma ordem. A aparição fez uma mesura e
desapareceu. Para espanto de Nathaniel, o corpo de Underwood pareceu estremecer
e deslizar para fora de si mesmo. Seu mestre continuava dentro do pentagrama, ma
s com uma outra versão dele, fantasmal e transparente, parada ao lado.
A forma fantasmagórica ergueu-se no ar, bateu os calcanhares e começou a flutuar par
a a frente direto para o lugar de onde o desconsolado diabinho ainda estava tran
smitindo a visão do estúdio. Nathaniel gritou ordens e sacudiu o disco com fúria, mas
não podia fazer nada para interromper a lenta aproximação de seu mestre. Mais perto, m
ais perto... As sobrancelhas espectrais estavam abaixadas, os olhos cintilantes
nunca se afastavam. Agora a forma do sr. Underwood cresceu até encher o disco dava
a impressão de que ia extravasá-lo...
E então nada. O disco mostrava o estúdio de novo, com o corpo físico de Underwood aind
a parado imóvel no pentagrama.
Apesar de seu pânico, Nathaniel sabia muito bem o que estava acontecendo. Tendo lo
calizado o espião e o imobilizado com segurança em sua posição, Underwood resolvera segu
ir o cordão astral do diabrete de volta até sua origem e descobrir a identidade do m
ago inimigo. Uma fonte dessas poderia estar a muitas milhas dali; talvez seu mes
tre estivesse esperando uma longa viagem em sua forma controlada por um djim. Se
era assim, ele estava para ter uma surpresa.
Tarde demais Nathaniel deu-se conta do que tinha de fazer. A janela! Se consegui
sse atirar o disco na rua, talvez seu mestre não descobrisse...
Ele deu apenas dois passos na direção da clarabóia quando, sem um som, a cabeça translúcid
a de Arthur Underwood brotou através das tábuas do assoalho. Era transparente e bril
hava com uma fosforescência esverdeada; a ponta da barba dilapidada estendia-se até
o chão. Lentamente, a cabeça deu uma volta de noventa graus, até que finalmente viu Na
thaniel parado, segurando nas mãos o espelho mágico.
Diante disso, apareceu no rosto de seu mestre uma expressão que ele nunca tinha vi
sto. Não era o ar familiar de desdém impaciente que sempre caracterizara a tutelagem
do sr. Underwood. Não era nem a fúria que ele havia testemunhado naquela manhã, em se
guida à descoberta em seu quarto. Em vez disso, foi a princípio um ar de extremo cho
que, e então uma súbita explosão de tamanha maldade que os joelhos de Nathaniel cedera
m. O disco caiu de suas mãos; ele recostou-se na parede; tentou faiar, mas não conse
guiu.
A cabeça fantasmagórica fixou os olhos nele, lá do centro do assoalho. Nathaniel retor
nou o olhar, incapaz de afastar os olhos. Então muito abafada e distante, talvez p
orque emitida pelo corpo físico no estúdio lá em baixo a voz de Underwood ressoou do i
nterior do disco virado para baixo.
Traidor...
A boca de Nathaniel se abriu, mas deixou sair apenas um grasnido estrangulado.
A voz falou de novo.
Traidor! Você me atraiçoou. Descobrirei quem o está orientando para me espionar.
Ninguém... não há ninguém... Nathaniel só conseguiu produzir o mais pálido sussurro.
- Prepare-se! Virei buscá-lo.
A voz se apagou. A cabeça do sr. Underwood desceu e penetrou no chão com um moviment
o em espiral. Com ela, o brilho fosforescente desapareceu do quarto. Com os dedo
s trêmulos, Nathaniel recolheu o disco e deu uma olhada nele. Após alguns segundos,
a visão do estúdio ficou nublada, quando a forma espiritual de seu mestre atravessou
de volta o diabinho; ela vagou por cima do tapete até onde o corpo estava esperan
do. Chegando a seu lado, adotou exatamente a mesma posição e fundiu-se consigo mesmo
. Um momento depois, Underwood era ele próprio de novo e a aparição espectral ressurgi
ra no outro círculo. Com uma batida das mãos, Underwood dispensou o djim; este fez u
ma mesura e desapareceu. Ele saiu do pentagrama, os olhos faiscando, e partiu pa
ra a porta do estúdio.
Com isso, o feitiço sobre o diabrete foi suspenso e o rosto do bebê voltou a preench
er o disco. Soprou com alívio o ar para fora das bochechas.
Ufa! Não me incomoda dizer a você, isso foi ruim para o meu sistema disse. Ter
e velhote passando direto através de mim e subindo pelo meu cordão astral... Fico ne
rvoso só de pensar nisso, realmente fico!
- Cale-se! Cale-se! Fora de si de terror, Nathaniel tentava pensar.
Olhe, faça-nos um favor disse o diabrete. Não lhe resta muito tempo. Não podia
mente libertar-me agora, antes de morrer? A vida fica tão enfadonha dentro desse d
isco, você não sabe como se torna solitário aqui. Vamos lá, chefe. Eu ficaria realmente
agradecido. A tentativa do bebê de dar um sorriso foi interrompida quando o disco
foi atirado contra a parede. Uau! Bem, espero que você goste do que vai lhe aconte
cer!
Nathaniel correu para a porta do sótão e sacudiu desesperadamente a maçaneta. De algum
ponto lá em baixo ouviu os passos de seu mestre subindo apressado as escadas.
Ele está realmente zangado disse o diabrete. Até sua forma astral praticamente
eu minha essência quando passou por mim. Quem dera eu não estivesse de cara para o c
hão, adoraria ver o que vai acontecer quando ele chegar aqui.
Nathaniel saltou para junto do guarda-roupa, empurrando-o todo afobado; planejar
a empurrá-lo para frente da porta, a fim de bloquear a entrada. Pesado demais ele
não tinha força. Sua respiração saía aos arrancos e arquejos.
Qual é o problema? perguntou o diabrete. Você é um grande mago agora. Invoque a
oisa para salvar sua pele. Um afrito talvez, isso deve dar conta do recado. Ou q
ue tal esse Bartimaeus por quem você é tão obcecado? Onde ele está quando você precisa?
Com um soluço, Nathaniel recuou para o centro do quarto e virou-se lentamente para
ficar de frente para a porta.
Horrível, não é? A voz do diabrete babava satisfação. Estar à mercê de alguma o
ora você sabe como é. Encare, garoto, você está sozinho. Não tem ninguém que o ajude.
Algo deu uma batidinha no vidro da clarabóia.
Após um instante em que seu coração quase parou, Nathaniel olhou: um pombo todo desgre
nhado estava pousado do outro lado do vidro, gesticulando urgentemente com as as
as. Na dúvida, Nathaniel chegou mais perto.
Bartimaeus...?
O pombo bateu com o bico várias vezes na vidraça. Nathaniel ergueu a mão para soltar o
trinco...
Uma chave chocalhou na fechadura. Com uma pancada forte, a porta do quarto foi e
scancarada. O sr. Underwood estava lá, parado, o rosto rubro de esforço e emoldurado
por uma furiosa juba branca de cabelo e barba. O braço de Nathaniel tombou ao lad
o do corpo; ele virou-se para seu mestre. O pombo havia desaparecido do vidro.
Underwood levou um momento para recobrar o fôlego.
Garoto miserável! Quem o está controlando? Qual dos meus inimigos?
Nathaniel podia sentir seu corpo inteiro tremendo, mas forçou-se a ficar imóvel e ol
har o mestre nos olhos.
Ninguém, senhor. Eu...
É Duvall? Ou Mortensen? Ou Lovelace?
Os lábios de Nathaniel se franziram à menção deste último nome.
Nenhum desses, senhor.
Quem o ensinou a fazer o espelho? Quem o mandou me espionar?
Apesar do medo, a raiva se inflamou no coração de Nathaniel. Ele falou com desprezo.
Não vai aceitar minha palavra? Eu já disse. Não há ninguém.
Mesmo agora continua com suas mentiras! Muito bem! Dê uma última olhada neste quarto
. Não vai voltar para cá. Iremos para o meu gabinete, onde você desfrutará da companhia
dos meus diabinhos até soltar essa sua língua. Venha!
Nathaniel hesitou, mas não havia o que fazer. A mão do mestre desceu-lhe sobre o omb
ro e o apertou como um torno. Quase literalmente, foi projetado porta afora pela
s escadas do sótão abaixo.
No primeiro patamar, a sra. Underwood, que vinha apressada e sem fôlego, os encont
rou. Quando ela viu o aspecto infeliz de Nathaniel e a fúria no rosto do marido, s
eus olhos se arregalaram de aflição, mas não disse nada.
Arthur ela disse arfando , há uma visita para vê-lo.
Não tenho tempo. Este menino...
É um assunto da maior urgência, ele diz.
Quem? Quem diz?
Simon Lovelace, Arthur. Ele praticamente foi entrando por conta própria.
37
As sobrancelhas de Underwood baixaram. Lovelace? rosnou. O que ele quer? Típico de
le, aparecer no pior momento. Muito bem, vou vê-lo. Quanto a você... Pare de se cont
orcer! Nathaniel estava fazendo movimentos frenéticos súbitos, como tentando escapar
de suas mãos. Você, menino, pode esperar no quarto de guardados, até eu estar pronto
para cuidar de você.
Senhor...
Nem uma palavra! Underwood começou a empurrar Nathaniel com força pelo patamar da es
cada. Martha, ponha a chaleira no fogo para o nosso visitante. Estarei lá embaixo
em alguns minutos. Preciso me ajeitar um pouco.
Sim, Arthur.
Senhor... por favor, ouça! É importante! No gabinete...
Silêncio!
Underwood abriu uma porta estreita e empurrou Nathaniel para dentro de um cômodo p
equeno e frio, cheio de velhas pastas de arquivo e pilhas de papéis do governo. Se
m olhar para trás, seu mestre fechou a porta e virou a chave. Nathaniel ficou soca
ndo a madeira e chamou convulsivamente por ele.
Senhor! Senhor! Nenhuma resposta. Senhor!
Você é muito gentil. Um grande besouro, com mandíbulas enormes, espremeu-se por baixo d
a porta. Eu na verdade acho "senhor" um pouco formal para o meu gosto, mas é melho
r do que "demônio traiçoeiro".
Bartimaeus!
Nathaniel, em choque, deu um passo para trás; diante de seus olhos o besouro cresc
eu, se distorceu... o menino de pele morena estava de pé no quartinho com ele, mãos
nos quadris e a cabeça levemente tombada para um lado. Como sempre, a forma era um
a réplica perfeita: o cabelo balançava conforme ele se mexia, a luz cintilava nos po
ros de sua pele ele não teria meio de ser destacado como falso dentre mil humanos
autênticos. E, no entanto, alguma coisa nele talvez os olhos ternos e escuros que
o fitavam exprimia gritantemente sua diferença alienígena. Nathaniel piscou os olhos
; ele lutava para se controlar. Sentia a mesma desorientação que experimentara em se
u encontro anterior.
O falso menino examinou as tábuas nuas do assoalho e as pilhas de trastes.
Quem é que vem sendo um pequeno mago malcomportado ele disse secamente. Underwo
se entendeu com você, finalmente, pelo que vejo. Ele não se apressou.
Nathaniel ignorou a observação.
Então era você na vidraça começou a dizer. Como foi que você...?
Descendo por uma chaminé, o que acha? E, antes que diga, eu sei que você me invocou,
mas as coisas estavam ocorrendo rápido demais para eu poder esperar. O amuleto...
Nathaniel foi atingido por uma súbita compreensão horrorizada.
Você... você trouxe Lovelace para cá!
O menino pareceu surpreso.
O quê?
Não minta para mim, demônio! Você me traiu! Você o trouxe até aqui.
Lovelace? Ele parecia autenticamente surpreso. Onde ele está?
Lá embaixo. Acaba de chegar.
Se veio, isso não tem nada a ver comigo. Você andou dando com a língua nos dentes?
Eu? Foi você...
Eu nada disse. Tenho uma lata de fumo em que pensar... Franziu o cenho e parecia
estar pensando. É mesmo uma ligeira coincidência, devo admitir.
Ligeira? Nathaniel estava quase pulando de agitação. Você o trouxe aqui, seu idiota! A
gora, depressa... Pegue o amuleto! Tire-o do estúdio antes que Lovelace o encontre
!
O garoto egípcio riu estridentemente.
De jeito nenhum. Se Lovelace está aqui, terá uma dúzia de esferas estacionadas lá f
Elas vão localizar sua aura e cair em cima de mim no momento em que eu sair desta
casa.
Nathaniel se deteve. Com seu servo de volta ele não estava tão indefeso quanto antes
. Ainda havia uma chance de evitar o desastre, contanto que o demônio fizesse o qu
e lhe mandassem.
Eu lhe ordeno que obedeça! começou a dizer. Vá até o escritório...
Oh, esqueça, Nat. O garoto meneou com desdém uma mão fatigada. Você não está no pentagr
gora. Não pode me forçar a obedecer cada nova ordem. Fugir com o amuleto será fatal, a
credite no que estou lhe dizendo. O quanto Underwood é forte?
O quê? Nathaniel estava perplexo.
Quanto ele é forte? Em que nível? Presumo, pelo tamanho daquela barba, que ele não é lá gr
ande coisa, mas posso estar errado. O quanto ele é bom? Poderia derrotar Lovelace?
Essa é a questão.
Oh. Não. Não, acho que não... Nathaniel tinha poucos indícios concretos quanto a se sim o
u não, mas as passadas demonstrações que seu mestre dera de servilismo diante de Lovel
ace deixavam-lhe pouca dúvida. Você acha...
A única chance de vocês é que, se Lovelace encontrar o amuleto, ele queira manter a co
isa toda na surdina. Ele pode tentar chegar a um acordo com Underwood. Se não...
Nathaniel gelou.
Você não acha que ele vá...?
Opa! Com toda essa confusão eu quase me esqueci de lhe contar por que vim até aqui!
O menino assumiu uma voz grave e plangente: Saiba você que desempenhei minha taref
a com dedicação. Espionei Lovelace. Procurei descobrir os segredos do amuleto. Arris
quei tudo por você, ó meu amo. E os resultados são aqui ele adotou um tom mais formal,
sardónico que você é um idiota. Não tem a menor idéia do que fez. O amuleto é tão podero
e estava sob guarda do governo há décadas, até Lovelace o ter mandado roubar, isto é, se
u capanga assassinou um mago da mais alta hierarquia para obtê-lo. Não acho provável q
ue ele hesite em matar Underwood para recuperá-lo, entendeu?
Para Nathaniel, o quartinho pareceu rodar. Sentiu-se muito fraco. Isso era pior
do que qualquer coisa que ele houvesse imaginado.
Não podemos ficar aqui parados balbuciou. Temos que fazer alguma coisa...
É verdade. Eu vou observar os acontecimentos. Enquanto isso, é melhor você ficar aqui,
como um bom menininho, e se preparar para uma saída rápida, se as coisas ficarem de
sagradáveis.
Não vou fugir para lugar nenhum. Ele disse isso com uma vozinha minúscula. Sua cabeça
girava com as implicações. A sra. Underwood...
Vou lhe dar uma dica vinda de longa experiência. Fugir é bom quando se precisa salva
r a pele. Melhor ir se acostumando com a idéia, companheiro. O menino voltou-se pa
ra a porta do quarto de guardados e pôs a palma da mão sobre ela. Com um rangido des
esperador, a fechadura da porta girou e ela se abriu. Suba até o seu quarto e espe
re. Logo, logo, eu lhe conto o que estiver acontecendo. E esteja preparado para
agir rápido.
Com isso, o djim se foi. Quando Nathaniel seguiu, o patamar já estava vazio.
Bartimaeus
28
- Minhas desculpas pela invasão, Arthur disse Simon Lovelace. Underwood acabava de
chegar a sua sala de jantar longa e escura quando o alcancei ele passara alguns
minutos diante do espelho do patamar inferior, abaixando e alisando os cabelos
e ajeitando a gravata. Não fez nenhuma diferença: ele ainda parecia desgrenhado e es
farrapado ao lado do mago mais jovem, que estava de pé, junto à lareira, examinando
as unhas, frio e tenso como uma mola enroscada.
Underwood fez um aceno de mão, em uma afetada tentativa de magnanimidade.
Minha casa é sua, tenho certeza. Lamento pela demora, Lovelace. Não gostaria de sen
ar-se?
Lovelace não se sentou. Usava um terno escuro elegante, com uma gravata verde-escu
ra. Seus óculos captavam a luz da lâmpada vinda do teto e luziam a cada movimento de
sua cabeça. Seus olhos estavam invisíveis, mas a pele por baixo dos óculos era cinzen
ta, carregada, frouxa.
Parece alvoroçado, Underwood disse.
Não, não. Eu estava ocupado lá no alto da casa. Estou um pouco sem fôlego.
Eu atravessara a porta como aranha e me arrastara discretamente por cima da verg
a da porta e subi pela parede, até que cheguei à escuridão recôndita do canto mais sombr
io. Aí desfiei apressadamente vários fios que atravessei para me obscurecerem o mais
plenamente possível. Fiz isso porque podia ver que o mago trazia consigo seu diab
rete no segundo plano, espionando cada fresta e cada cantinho com os olhinhos ag
itados.
Exatamente como Lovelace havia encontrado a casa, era algo que eu não queria imagi
nar. Apesar de todas as minhas negativas para o garoto, era com certeza uma desa
gradável coincidência ele ter chegado exatamente na mesma hora que eu. Mas isso eu p
odia descobrir depois: o futuro do garoto e conseqüentemente o meu dependiam da ra
pidez com que eu reagisse ao que acontecesse agora.
Underwood sentou-se em sua poltrona habitual e adotou um sorriso forçado.
Então... disse. Tem certeza de que não quer se sentar?
Não quero, obrigado.
Bem, pelo menos diga a esse seu diabrete que pare de saracotear. Isso já está me dei
xando enjoado.
Ele falou com uma aspereza súbita e irascível.
Simon Lovelace fez um som de estalo com a língua. O diabrete pairando atrás de sua c
abeça ficou rígido, segurando o rosto em uma expressão deliberadamente infeliz, meio-t
ermo entre o basbaque e o esgar de um sorriso arreganhado.
Underwood fez o possível para ignorá-lo.
Eu de fato tenho alguns outros assuntos para cuidar hoje disse. Talvez você pud
e me dizer em que posso ajudá-lo?
Simon Lovelace inclinou a cabeça com gravidade.
Algumas noites atrás disse ele eu sofri um roubo. Um artigo, uma pequena peça d
certo poder, foi roubado de minha casa enquanto eu estava ausente.
Underwood produziu um som consolador.
Lamento saber disso.
Obrigado. Trata-se de uma peça que me é especialmente cara. Naturalmente, estou louc
o para recuperá-la.
Naturalmente. Você acha que a Resistência...?
E é com relação a isso que vim vê-lo hoje, Underwood...
Ele falou devagar, cuidadosamente, contornando o assunto. Talvez agora mesmo ele
tivesse a esperança de não precisar fazer a acusação diretamente. Os magos são sempre cir
cunspectos com as palavras; palavras precipitadas, mesmo numa crise, podem causa
r infortúnio.
Mas a sugestão passou despercebida pelo mais velho.
Você pode contar com o meu apoio, é claro disse Underwood, tranqüilo. Esses rou
ma abominação. Há algum tempo sabemos que existe um mercado negro para artefatos rouba
dos e, quanto a mim, acredito que a venda deles ajuda a financiar a resistência ao
nosso domínio. Vimos ontem a que atrocidades isso pode levar.
O cenho de Underwood ergueu-se com algo como divertimento.
Devo dizer continuou que estou surpreso em saber que você foi uma vítima. A maioria
dos roubos recentes foi perpetrada contra, posso ser franco? Magos relativamente
menores. Acredita-se que os ladrões com freqüência sejam jovens, até crianças. Eu achava
que as suas defesas podiam ter cuidado deles.
Certamente. Simon Lovelace tinha falado entredentes.
Acha que isso tem qualquer ligação com o ataque ao Parlamento?
Um momento, por favor. Lovelace ergueu a mão. Tenho motivos para suspeitar que o r
oubo do... meu artigo não foi obra da chamada Resistência, mas de um colega mago.
Underwood franziu o cenho.
Acha isso? Como pode ter certeza?
Porque sei o que efetuou o ataque e executou o golpe. Atende pelo desgracioso no
me de Bartimaeus. Um djim de média categoria, de grande insolência e pequena inteligên
cia. Não é nada de especial. Qualquer retardado poderia tê-lo invocado. Isto é, qualquer
mago retardado, não um plebeu.
E, mesmo assim disse Underwood mansamente , esse Bartimaeus escapou com seu artig
o.2
Foi um serviço muito malfeito! Ele se deixou identificar! Lovelace controlava-se c
om dificuldade. Não, não... tem toda a razão. Ele escapou com o artigo.
E quanto a quem o invocou...
Os óculos faiscaram.
Bem, Arthur, é por isso que estou aqui. Para ver você.
Houve uma pausa momentânea, enquanto as células do cérebro de Underwood se esforçavam po
r fazer a ligação. Finalmente, sucesso. Emoções variadas lutavam por assumir o controle
de seu rosto, e então foram todas expulsas por uma espécie de suavidade glacial. A t
emperatura da sala esfriou.
Sinto muito falou baixinho. O que foi que disse?
Simon Lovelace inclinou-se para a frente, apoiando as duas mãos sobre a mesa de ja
ntar. Trazia as unhas muito bem manicuradas.
Arthur disse , Bartimaeus ultimamente não vem sendo discreto. Esta manhã mesmo e
i aprisionado na Torre de Londres, em seguida a seu ataque contra a Pinn's de Pi
ccadilly.
Underwood ficou tonto de espanto.
Aquele djim? Como... como sabe disso? Não conseguimos descobrir seu nome... E... e
le fugiu, esta tarde mesmo...
Fugiu, de fato. Lovelace não explicou como. Após sua fuga, meus agentes... o avistar
am. Seguiram Bartimaeus através de Londres... até ele voltar para cá.
Underwood sacudiu a cabeça, atordoado.
Voltou para cá? Isso é mentira sua!
Não faz dez minutos ele desapareceu descendo pela sua chaminé na forma de uma nuvem
infecta. E surpresa que eu tenha vindo imediatamente para recuperar o meu objeto
? E agora, já que estou aqui dentro... Lovelace ergueu a cabeça, como se estivesse f
arejando alguma coisa boa. Sim, sinto a sua aura. Está por perto.
Mas...
Eu nunca teria imaginado que fora você, Arthur. Não que eu não achasse que você amb
asse os meus tesouros. Só achava que lhe faltava a competência para tomá-los.
O velho abriu e fechou a boca, como um peixinho de aquário, produzindo sons desart
iculados. O diabrete de Lovelace por um instante contorceu o rosto em uma expres
são violentamente diversa e retornou à expressão original. Seu amo tamborilou sobre a
mesa suavemente com o indicador.
Eu poderia ter forçado a entrada em sua casa, Arthur. Estaria bem dentro dos meus
direitos. Mas prefiro ser cortês. E também, essa minha peça, tenho certeza que você não o
ignora, é um tanto... disputada. Nenhum de nós dois ia querer que sua presença em noss
as casas fosse conhecida, não é? Então, se você o devolver para mim com toda rapidez, te
nho certeza de que poderíamos chegar a algum... acerto que beneficiará a nós dois. Ele
recuou, uma das mãos brincando com uma abotoadura. Estou esperando.
Se Underwood tivesse compreendido uma só palavra do que Lovelace estava dizendo, p
oderia ter se salvado. Se ele houvesse se lembrado dos malfeitos de seu aprendiz
e somado dois e dois, tudo poderia ter ficado bem. Mas, em sua confusão, não conseg
uia ver nada além da falsa acusação que estava sendo recaída contra ele e, irado, levant
ou-se da poltrona.
Seu arrivista pomposo e arrogante! gritou. Como ousa me acusar de roubo! Não pegue
i seu objeto, nada sei a respeito dele e o quero ainda menos. Por que eu haveria
de pegá-lo? Não sou um puxa-saco político, como você; não sou nenhum adulador traiçoeiro.
ando fuçando por aí atrás de poder e influência, como um suíno na pocilga! Ainda que o fi
zesse, não ia me dar ao trabalho de roubá-lo. Todo mundo sabe que a sua estrela se a
pagou. Não vale a pena prejudicar você. Não, seus agentes se enganaram ou, mais provav
elmente, estão mentindo. Bartimaeus não está aqui! Não sei nada de seus crimes. E a sua
bugiganga não está na minha casa!
Enquanto ele falava, o rosto de Simon Lovelace parecia mergulhar em profunda som
bra, embora a luz da lâmpada ainda bailasse sobre a superfície de seus óculos. Ele bal
ançou a cabeça devagar.
Não seja tolo, Arthur disse ele. Meus informantes não mentem para mim! Há coisa
osas que se prestam às minhas ordens.
O velho projetou a barba para a frente de forma desafiadora.
Saia da minha casa.
Dificilmente preciso dizer-lhe que recursos tenho à minha disposição Simon Lovela
ntinuou. Mas fale direito comigo e ainda podemos evitar uma cena.
Não tenho nada a dizer. Sua acusação é falsa.
Bem, então...
Simon Lovelace estalou os dedos. Imediatamente seu diabrete apareceu em um pulo
vindo do nada e pousou no tampo de mogno da mesa da sala de jantar. Ele fez uma
careta, tenso. Um bulbo inflou na ponta de sua cauda, finalmente crescendo até for
mar uma garra com um fio serrado. O diabrete abaixou o traseiro meditativamente
e rodopiou a cauda. Então, a garra serrada deu uma pancada em cheio sobre a superfíc
ie lustrosa da mesa, cortando-a como uma faca atravessa manteiga. O diabrete atr
avessou o tampo da mesa, no sentido da largura, arrastando a cauda através da made
ira, cortando-a em dois. Os olhos de Underwood saltaram das órbitas. Lovelace sorr
iu.
Relíquia de família, Arthur? disse ele. Achei que fosse.
O diabrete já havia quase chegado do outro lado da mesa, quando houve uma súbita bat
ida à porta. Os dois se viraram. O diabrete parou instantaneamente. A sra. Underwo
od entrou, trazendo uma bandeja lotada de coisas.
Aqui está o chá disse ela. E alguns biscoitos amanteigados, são os preferidos d
r, sr. Lovelace. Vou pousar tudo aqui, não é mesmo?
Sem uma palavra, magos e diabrete ficaram olhando-a aproximar-se da mesa. Com gr
ande cuidado, pousou a bandeja pesada sobre ela, a meio caminho entre o corte da
serra e a extremidade diante da qual Underwood estava parado. No silêncio pesado,
ela descarregou da bandeja um grande bule de porcelana (obrigando o diabrete in
visível a recuar para evitá-lo), duas xícaras, dois pires, dois pratinhos, uma daquela
s armações de vários andares de prateleiras redondas, com os biscoitos, e diversos exe
mplares de seus melhores talheres. A extremidade da mesa moveu-se perceptivelmen
te sob o peso de tudo isso. Houve um leve rangido.
A sra. Underwood recolheu a bandeja e sorriu para o visitante.
Vamos, sirva-se, sr. Lovelace. Está mesmo precisando ganhar um pouco de peso.
Sob o olhar direto da sra. Underwood, Lovelace pegou um biscoitinho de uma das p
rateleiras. O topo da mesa oscilou. Ele deu um fraco sorriso.
Assim está certo. Chame, se quiser uma nova xícara. Com a bandeja debaixo do braço, a
sra. Underwood saiu afobada. Eles a ficaram olhando sair.
A porta se fechou.
Juntos, magos e diabrete voltaram-se para a mesa.
Com um estrondo retumbante, a única lasca de madeira unindo os dois pedaços de mesa
cedeu. Uma extremidade inteira da mesa, com bule, xícaras, pires, pratinhos, a est
ante de biscoitos, diversos exemplares dos melhores talheres, e tudo foi direto
para o chão. O diabrete pulou fora do caminho e foi pousar sobre a lareira, ao lad
o do arranjo de flores mortas.
Houve um breve silêncio.
Lovelace atirou seu amanteigado na mixórdia espalhada sobre o chão.
O que posso fazer a uma mesa de madeira, Arthur, posso fazer a uma cabeça dura di
se ele.
Arthur Underwood olhou para ele. E falou de forma estranha, como se de uma grand
e distância.
Esse era o nosso melhor bule.
Ele deu três assobios, estridentes, agudos. Ecoou um som de resposta, grave e retu
mbante, e, dos azulejos do frontispício da lareira, saiu um robusto diabrete-duend
e, musculoso e de rosto azulado. Underwood fez um gesto, deu um assobio. O diabr
ete-duende saltou, dando uma cambalhota no ar. Caiu em cima do diabrete menor, q
ue encolheu-se atrás das flores, recolheu-o com as patas sem dedos e começou a espre
mê-lo, sem ligar para a garra serrada que se agitava. A essência do diabrete pequeno
se contorceu, anuviou-se e foi modelada, como massa plástica. Em um instante havi
a sido esmagada, rabo e tudo, na forma de uma polpuda bola amarelada. O diabrete
-duende alisou a superfície da bola, jogou-a para o alto, abriu a boca e a engoliu
.
Underwood virou-se para Lovelace, que observara tudo isso de lábios apertados.
Confesso que o velhote medíocre me surpreendeu... ele estava se saindo bem melhor
do que eu esperava. Não obstante, o esforço de fazer surgir aquele diabrete obedient
e estava cobrando o seu tributo. Sua nuca estava toda suada.
Lovelace sabia disso também.
Uma última chance disse ele bruscamente. Dê-me o que me pertence ou eu aumento a par
ada. Leve-me até o seu gabinete.
Nunca! Underwood estava fora de si, de tensão e raiva. Não seguiu as inspirações do bom
senso.
Observe, então.
Lovelace alisou para trás o cabelo brilhantinado. Disse algumas palavras entredent
es. Um estremecimento percorreu a sala de jantar, tudo dentro dela tremeluziu. A
parede na extremidade oposta da sala tornou-se insubstancial. Ela recuou, indo
cada vez mais para trás, até não poder mais ser vista. Em seu lugar, estendia-se um co
rredor de dimensões imprecisas. Conforme Underwood observava, uma figura apareceu
bem longe no fundo do corredor. Começou a vir em direção a nós, crescendo a grande veloc
idade, mas vinha flutuando, pois suas pernas estavam imóveis.
Underwood engoliu em seco e recuou trôpego. Esbarrou em sua poltrona.
Tinha razão para engasgar. Eu conhecia aquela figura, o corpo grandalhão, a cabeça de
chacal.
Pare! O rosto de Underwood estava feito cera, segurou a poltrona, em busca de ap
oio.
O que foi isso? Simon Lovelace levou a mão em concha ao ouvido. Não consigo ouvi-lo.
5
Pare! Está bem, você venceu! Vou levá-lo ao meu gabinete agora! Mande-o de volta!
A figura cresceu de tamanho. Underwood estava arregalando. O diabrete-duende fez
uma cara lastimosa e voltou apressado para dentro dos azulejos. Eu me remexi em
meu cantinho, imaginando exatamente o que ia fazer quando Jabor finalmente entr
asse na sala.
Imediatamente, Lovelace fez um sinal. O corredor infinito e a figura que se apro
ximava desapareceram. A parede estava de volta no lugar. Como antes, uma fotogra
fia amarelada da sorridente avó de Underwood pendurada em seu centro.
Underwood estava ajoelhado junto às ruínas de seu serviço de chá. Tremia tanto que mal p
odia ficar de pé.
Como se chega ao seu escritório, Arthur? indagou Simon Lovelace.
Nathaniel
29
Nathaniel ficou parado sozinho no patamar, segurando o balaústre como se temesse c
air. Um murmúrio de vozes veio da sala de jantar lá embaixo; aumentou e abaixou, mas
ele mal o registrou. O pânico que lhe invadia a cabeça afogava todos os outros sons
. O único mago ruim é o incompetente. E o que era incompetência? Perda de controle. Le
nta e constantemente, ao longo dos últimos dias, tudo havia fugido ao controle de
Nathaniel. Primeiro, Bartimaeus descobriu seu nome de batismo. Ele havia remedia
do tudo muito bem com a lata de fumo de cachimbo, mas a trégua não durara muito temp
o. Em vez disso, aconteceu desastre após desastre, em rápida sucessão. Bartimaeus havi
a sido capturado pelo governo. O sr. Underwood havia descoberto suas atividades
e sua carreira fora arruinada antes de haver começado. Agora o demônio se recusava a
obedecer a suas ordens, e o próprio Lovelace estava à porta de casa. E só o que ele p
odia fazer era ficar parado e olhar, impotente para reagir. Estava à mercê dos event
os que ele próprio pusera em movimento. Impotente.
Um pequeno ruído atravessou sua autopiedade e o fez saltar de pé. Era o suave murmúrio
produzido pela sra. Underwood enquanto atravessava o vestíbulo da cozinha para a
sala de jantar. Estava trazendo chá: Nathaniel ouviu o tilintar da louça na bandeja
que ela carregava.
Seguiu-se uma batida à porta; mais tilintar, enquanto ela entrava, e então silêncio.
Nesse momento Nathaniel esqueceu completamente seus próprios apuros. A sra. Underw
ood estava em perigo. O inimigo estava na casa. Em alguns momentos, ele sem dúvida
forçaria ou convenceria o sr. Underwood a abrir seu gabinete para inspeção. O amuleto
seria encontrado. E então... O que Lovelace poderia fazer ao sr. Underwood ou a s
ua esposa?
Bartimaeus lhe dissera que esperasse lá em cima e estivesse pronto para o pior. Ma
s Nathaniel já estava cheio de esperas impotentes. Ainda não estava derrotado. A sit
uação era desesperadora, mas ele ainda podia agir. Os magos estavam na sala de janta
r. O estúdio de Underwood estava vazio. Se ele pudesse esgueirar-se lá para dentro e
retirar o amuleto, talvez pudesse escondê-lo em algum lugar, não importa o que Bart
imaeus pudesse dizer.
Silenciosa e rapidamente, ele escapuliu lá para baixo, até o patamar inferior, no níve
l do gabinete e das salas de estudo de seu mestre. As vozes abafadas vindo do an
dar térreo agora haviam se erguido: ele achava que podia ouvir o sr. Underwood gri
tando. O tempo era curto. Nathaniel passou correndo pelas salas até a porta que da
va para as escadas do escritório. Então, parou. Não pisava aí desde que tinha seis anos
de idade. Foi assaltado por lembranças distantes que o fizeram estremecer, mas liv
rou-se delas. Seguiu em frente, desceu os degraus...
E parou de súbito.
Diante dele estava a porta do gabinete de Underwood, pintada com sua estrela de
cinco pontas. Sabia o suficiente agora para reconhecer um feitiço de fogo quando o
via. Seria incinerado no momento em que tocasse na porta. Sem proteção não podia avança
r, e proteção exigia um círculo, uma invocação, cuidadosos preparativos...
E ele não tinha tempo para isso. Estava impotente! Inútil! Bateu com o punho na pare
de. De algum ponto distante da casa veio um barulho que poderia ter sido um grit
o de medo.
Nathaniel voltou correndo escadas acima, e daí até o patamar, e, enquanto o fazia, o
uviu a porta da sala de jantar se abrir e passos soando no vestíbulo.
Eles estavam vindo.
E então, vindo de baixo, a voz da sra. Underwood, ansiosa e inquisitiva, atravessa
ndo Nathaniel com um frêmito de dor.
Está tudo bem, Arthur?
A resposta foi desanimada, deprimida, quase irreconhecível.
Estou só mostrando ao sr. Lovelace alguma coisa em meu gabinete. Obrigado, não prec
samos de nada.
Eles estavam subindo as escadas agora. Nathaniel encontrava-se em uma agonia de
indecisão. O que devia fazer? Exatamente quando alguém virava a esquina do corredor,
ele se enfiou atrás da porta mais próxima e a fechou quase inteiramente. Respirando
arfante, posicionou o olho contra a pequena fresta que lhe dava uma visão do pata
mar.
Passou uma lenta procissão. O sr. Underwood vinha na frente. Tinha as roupas e os
cabelos desalinhados, os olhos frenéticos, as costas curvadas como sob um grande p
eso. Atrás dele vinha Simon Lovelace, os olhos escondidos atrás dos óculos, a boca um
talho fino e cruel. Atrás dele vinha uma aranha, andando depressa nas sombras da p
arede.
A procissão desapareceu na direção do estúdio. Nathaniel recostou-se na parede, a cabeça g
irando, nauseado de culpa e de medo. O rosto de Underwood... Apesar do extremo d
esagrado com seu mestre, vê-lo nesse estado ia contra tudo que havia sido ensinado
a Nathaniel. Sim, ele era fraco; sim, era medíocre; sim, havia tratado Nathaniel
com consistente desdém. Mas o homem era ministro, um dos treze do governo. E ele não
havia roubado o amuleto. Nathaniel havia.
Mordeu o lábio. Lovelace era um criminoso. Quem saberia dizer o que ele poderia fa
zer? Deixar o sr. Underwood ficar com a culpa. Ele merecia. Ele nunca havia defe
ndido Nathaniel, ele havia despedido a sra. Lutyens... deixe-o sofrer também. Por
que Nathaniel pusera o amuleto no estúdio, para início de conversa, senão para se prot
eger quando Lovelace viesse? Ele ficaria fora do caminho como o djim dissera. Pr
eparado para fugir, se necessário...
Nathaniel afundou a cabeça nas mãos.
Não podia fugir. Não podia se esconder. Esse tinha sido o conselho de um demônio, traiço
eiro e ladino. Fugir e se esconder não eram as ações de um mago digno. Se deixasse seu
mestre enfrentar Lovelace sozinho, como voltaria a conviver consigo mesmo? Quan
do seu mestre sofresse, a sra. Underwood sofreria também, e isso não seria possível su
portar. Não, não havia jeito. Agora que a crise estava sobre ele, Nathaniel descobri
u, para sua surpresa e horror, que tinha de agir. Independentemente das conseqüência
s, ele tinha de intervir.
Só pensar em fazer o que ele agora tinha feito o deixava fisicamente doente. Não obs
tante, conseguiu, pouco a pouco, passo arrastado após passo arrastado. Saiu de det
rás da porta, atravessou o patamar seguiu rumo às escadas do escritório... Desceu os d
egraus, um de cada vez...
A cada degrau, seu bom senso gritava-lhe que voltasse e saísse correndo, mas ele r
esistiu. Fugir seria abandonar a sra. Underwood. Ele entraria e contaria a verda
de, a despeito do que acontecesse.
A porta estava aberta, o feitiço ígneo neutralizado. Luz amarela jorrava lá de dentro.
Nathaniel fez uma pausa no limiar. Seu cérebro parecia ter se fechado. Não entendia
inteiramente o que estava a ponto de fazer.
Empurrou a porta e entrou, bem a tempo de testemunhar o momento da descoberta.
Lovelace e Underwood estavam parados diante de um armário de parede, de costas par
a ele. As portas do armário estavam escancaradas. No momento mesmo em que olhou, a
cabeça de Lovelace pendia para a frente, ávida como a de um felino na caça; sua mão est
endeu-se e empurrou algo para o lado. Deu um grito de triunfo. Lentamente, virou
-se e ergueu a mão diante da palidez cadavérica do rosto de Underwood.
Os ombros de Nathaniel descaíram.
Como parecia pequeno o Amuleto de Samarkand, como parecia insignificante, penden
do dos dedos de Lovelace em seu fino cordão de ouro. Oscilava suavemente, cintilan
do à luz do estúdio.
Lovelace riu.
Bem, bem. O que temos aqui?
Underwood sacudia a cabeça em confusão e incredulidade. Naqueles poucos segundos seu
rosto havia envelhecido.
Não sussurrou. Um truque... Você está armando para mim... Lovelace não estava n
o para ele. Tinha os olhos fixos em seu tesouro.
Não consigo imaginar o que você achava que podia fazer com isto disse. Somente invoc
ar Bartimaeus teria sido suficiente para esgotá-lo.
Continuo dizendo balbuciou Underwood que não sei nada sobre esse Bartimaeus, e não s
ei nada sobre o seu objeto nem como ele veio parar aqui.
Nathaniel ouviu uma nova voz falando, aguda e trêmula. Era a sua própria.
Ele está dizendo a verdade disse Nathaniel. Eu o peguei. A pessoa que você quer
eu.
O silêncio que se seguiu a essa declaração durou quase cinco segundos. Os dois magos v
iraram-se para ele no mesmo instante, só para o ficarem olhando boquiabertos, em c
hoque. As sobrancelhas do sr. Underwood subiram bem alto, afundaram bem baixo, e
ntão subiram de novo, expressando sua profunda perplexidade. Lovelace franziu um c
enho de incompreensão.
Nathaniel aproveitou a oportunidade para entrar um pouco mais no aposento.
Fui eu disse, sua voz um pouco mais firme agora que já fizera a façanha. Ele nã
nada a respeito. Pode deixá-lo em paz.
Underwood piscou e sacudiu a cabeça. Ele parecia duvidar do testemunho de seus sen
tidos. Lovelace ficou muito quieto, seus olhos escondidos fixos em Nathaniel. O
Amuleto de Samarkand balançava suavemente entre seus dedos imóveis.
Nathaniel limpou a garganta, que estava seca. O que ia acontecer agora ele não ous
ava calcular. Não havia pensado no depois de sua confissão. Em algum lugar do aposen
to, seu servo se escondia, portanto ele não estava inteiramente indefeso. Ele espe
rava que, se necessário, Bartimaeus viria em seu socorro.
Seu mestre finalmente encontrou a voz.
Está tagarelando sobre o quê, seu tolo? Você não pode fazer idéia do que estamos di
o. Saia daqui imediatamente! Ocorrera-lhe um pensamento. Espere. Como saiu do qu
arto?
A seu lado, o cenho fechado de Lovelace de repente se fraturou em um sorriso con
traído.
Um momento, Arthur. Talvez você esteja sendo apressado demais.
Por um instante, um fugidio vislumbre da irascibilidade de Underwood retornou.
Não seja absurdo! Este frangote não pode ter cometido o crime! Ele teria precisado u
ltrapassar meu feitiço de fogo, só para começar, para não mencionar as suas próprias defes
as.
E invocar um djim do décimo quarto nível murmurou Lovelace. Isso também.
Exatamente. A idéia é abs... Underwood engasgou. Uma súbita compreensão baixou-lhe sobre
os olhos. Espere aí... talvez... Será possível? Ainda hoje mesmo, Lovelace, eu peguei
esse moleque com equipamento de invocação e o Pentagrama de Adelbrand traçado a giz e
m seu quarto. Ele estava com livros sofisticados, A Boca de Ptolomeu, por exempl
o. Presumi que ele não tinha conseguido, que fora ambicioso em excesso... Mas e se
eu estiver errado?
Simon Lovelace não disse nada. Em nenhum momento afastou os olhos de Nathaniel.
Na hora que passou continuou Underwood eu o peguei me espionando em meu gabinete
. Ele tinha um espelho mágico, algo que eu nunca lhe dera. Se ele é capaz disso, que
m sabe que outros crimes poderia tentar?
Mesmo assim disse Lovelace baixinho , por que o roubaria de mim?
Nathaniel podia ver, pelo comportamento do seu mestre, que ele não havia reconheci
do o amuleto como o que era e deu-se conta de que essa ignorância ainda poderia sa
lvá-lo. Lovelace acreditaria que o mesmo valia para Nathaniel também? Ele falou rapi
damente, tentando parecer o mais infantil possível.
Foi só uma peça que eu preguei, senhor disse. Uma brincadeira. Eu queria ir à f
r haver me batido daquela vez. Pedi ao demônio que tirasse algo seu, qualquer cois
a que fosse. Eu ia guardar essa coisa comigo até ficar mais velho, e, hãã, poder desco
brir o que era e como usá-la. Espero que não seja valioso, senhor. Lamento ter lhe c
ausado algum problema...
Ele saiu de fininho, penosamente cônscio de como sua história era fraca. Lovelace só o
lhava para ele; e Nathaniel não conseguia concluir nada da expressão do homem.
Mas o mestre acreditou nele. Desencadeou-se sua plena fúria.
Esta foi a última gota, Mandrake! gritou. Vou levá-lo ao tribunal! Mesmo que escape
da prisão, será destituído de seu aprendizado e posto na rua! Vou expulsá-lo! Todos os t
rabalhos estarão fechados para você! Vai virar um indigente entre os plebeus!
Sim, senhor. Qualquer coisa, contanto que ao menos Lovelace vá embora.
Posso apenas pedir desculpas, Lovelace. Underwood tinha-se aprumado e inflado o
peito. Fomos ambos estorvados. Ele me traiu, e de você subtraiu um tesouro de fort
e poder, este amuleto. Ele olhou para o pequeno oval dourado pendendo da mão de Lo
velace e naquele instante súbito e fatal percebeu o que era. Uma tomada de fôlego, c
urta e reprimida fez barulho contra os seus dentes. Foi um ruído pequeno, mas Nath
aniel o ouviu bem claramente. Lovelace não se moveu.
A cor fugiu do rosto de Underwood. Seus olhos dardejaram para a cara de Lovelace
, para ver se ele percebera alguma coisa. Da mesma forma, os olhos de Nathaniel.
Através do sangue que pulsava em sua cabeça, ele ouviu Underwood fazendo força para c
ontinuar de onde havia interrompido: E... ambos cuidaremos para que seja adequad
amente punido, sim, cuidaremos disso. Ele vai lamentar o dia que pensou em...
O outro mago ergueu a mão. Instantaneamente, Underwood fez silêncio.
Bem, John Mandrake disse Simon Lovelace , estou quase muito impressionado. Sim,
ui estorvado; os últimos dias foram difíceis para mim. Mas, veja, tenho meu tesouro
de volta e agora vai ficar tudo bem. Por favor, não peça desculpas. Invocar um djim
como Bartimaeus na sua idade não é pouca coisa, e controlá-lo durante vários dias é ainda
mais surpreendente. Você me deixou frustrado também, o que é caso raro, e Underwood, i
gnorante de tudo, o que é um tanto menos incomum. Tudo muito inteligente. Só no fina
l você deixou a peteca cair. Por que confessou o que fez? Eu podia ter cuidado cal
mamente de Underwood e tê-lo deixado em paz. Sua voz era baixa e razoável.
Underwood tentava urgentemente falar, mas Lovelace o interrompeu.
Silêncio, homem. Quero ouvir as razões do garoto.
Porque não foi culpa dele disse Nathaniel, teimosamente. Ele não sabia de nada. Sua
diferença era comigo, quer você soubesse ou não. Ele devia ficar fora disso. Foi por i
sso que desci até aqui. Uma percepção da profunda futilidade de sua ação pesava sobre ele
Lovelace fez um muxoxo.
Algum conceito infantil de nobreza, não é? disse. Foi o que imaginei. A linha de ação h
nrosa. Heróico, porém estúpido. De onde tirou essa idéia? Não de Underwood aqui, aposto.
Eu o roubei porque você me injuriou Nathaniel continuou. Eu queria ir à forra. Foi só
isso. Castigue-me, se quiser. Não estou ligando.
Sua atitude de mal-humorada resignação escondia uma crescente esperança. Talvez Lovela
ce não houvesse percebido que eles sabiam sobre o amuleto, talvez ele aplicasse al
gum castigo para constar e fosse embora.
Underwood evidentemente tinha a mesma esperança. Segurou Lovelace avidamente pelo
braço.
Como viu, Simon, sou inteiramente inocente nesse caso. Foi este garoto ruim, ard
iloso. Deve cuidar dele como desejar. Seja qual for a sentença adequada ao crime,
pode administrá-la. Deixo isso inteiramente em suas mãos.
Delicadamente, Lovelace eximiu-se.
Obrigado, Underwood. Eu lhe administrarei o castigo daqui a pouco.
Ótimo.
Depois que me livrar de você.
O quê...?
Por um segundo, Underwood imobilizou-se e, em seguida, com um lance de velocidad
e inesperado em um homem da sua idade, correu para a porta aberta. Justo quando
passava por Nathaniel, uma rajada de vento vindo de parte alguma bateu a porta c
om força. Underwood sacudiu a maçaneta e puxou com toda a sua força, mas ela continuav
a presa. Com uma rosnada de medo, girou. Ele e Nathaniel ficaram olhando Lovelac
e do outro lado da sala. As pernas de Nathaniel tremiam. Ele olhou freneticament
e em torno, procurando Bartimaeus, mas a aranha não estava visível em lugar nenhum.
Com fastidioso cuidado, Lovelace pegou o Amuleto de Samarkand pelo cordão e pendur
ou-o no pescoço.
Não sou burro, John disse. É possível que você não saiba mesmo o que este objet
camente não posso correr esse risco. E, com certeza, o pobre Arthur sabe.
A isso, Underwood estendeu uma das mãos em garra e puxou Nathaniel pelo pescoço. Sua
voz estava dissonante de pânico.
Sim, mas não vou dizer nada! Pode confiar em mim, Lovelace! Pelo que me diz respei
to, você pode ficar com o amuleto por toda a eternidade! Mas o garoto é um idiota in
trometido, deve ser silenciado antes de sair por aí falando. Mate-o agora e a ques
tão está liquidada!
Suas unhas se cravaram na pele de Nathaniel, enquanto ele o empurrava para a fre
nte. Nathaniel deu um grito de dor. Um sorriso escarninho cruzou o rosto de Love
lace.
Quanta lealdade da parte de um mestre para com seu aprendiz! Muito tocante. Veja
você, John, Underwood e eu estamos lhe dando uma última lição da arte de ser mago e, ta
lvez, com a nossa ajuda, você entenderá seu erro ao confessar-me hoje o que fez. Você
acreditou no conceito do mago honrado, que assume responsabilidade por suas ações. M
era propaganda. Não existe uma coisa dessas. Não há honra, nem nobreza, nem justiça. Tod
o mago age apenas para si próprio, agarrando cada oportunidade que pode. Quando el
e é fraco, evita o perigo (razão pela qual tipos inferiores avançam dentro do sistema.
Arthur sabe tudo sobre isso, não sabe, Underwood?). Mas quando ele é forte, ele gol
peia. Como acha que o próprio Rupert Devereaux chegou ao poder? O mestre dele mato
u o primeiro-ministro anterior em um golpe vinte anos atrás e ele herdou o título. E
ssa é a verdade da história. É assim que as coisas sempre são feitas. Quando eu usar o a
muleto, na semana que vem, estarei dando continuidade a uma grande tradição que remo
nta a Gladstone. Os óculos faiscaram, a mão se ergueu, pronta para iniciar um gesto.
Talvez o console saber que, antes mesmo de você ter chegado, eu estava decidido a
matar você e todos mais nesta casa. Não posso deixar nada ao acaso. Então, a sua estu
pidez vindo para cá, na realidade não mudou nada.
Uma imagem da sra. Underwood lá embaixo, na cozinha, passou veloz pela mente de Na
thaniel. Lágrimas lhe afloraram aos olhos.
Por favor...
Você é fraco, garoto. Tal como seu mestre.
Lovelace bateu palmas. A luz do estúdio subitamente se obscureceu. Um tremor perco
rreu o assoalho. Nathaniel pressentiu alguma coisa aparecendo no extremo oposto
do aposento, mas o medo o deixou imobilizado onde estava ele não ousou virar os ol
hos para ver. A seu lado, Underwood recitou as palavras de um encanto defensivo.
Uma rede verde tremeluzente de fios protetores ergueu-se para envolvê-lo. Nathani
el ficou excluído, indefeso.
Mestre...!
Nesse momento, como um poço de mina desmoronando, uma voz terrível ecoou pela sala.
VOSSO DESEJO?
A voz de Lovelace:
Destrua os dois. E qualquer outra coisa viva nesta casa. Queime-a e arrase-a com
todo o seu conteúdo.
Underwood deu um grande grito.
Pegue o garoto! Deixe-me!
Ele empurrou Nathaniel corri uma força frenética. Nathaniel esparramou-se para a fre
nte, tropeçou e caiu. Seus olhos estavam cegos de lágrimas. Tentou se levantar, cons
ciente apenas de seu total desamparo. Perto dele ressoou um barulho de algo se e
stilhaçando. Ele abriu a boca para gritar. Então, garras desceram e o pegaram pela g
arganta.

Bartimaeus
30
Dou o crédito à mesa de Underwood. Era um negócio grandalhão, antiquado, e felizmente Ja
bor se materializara em sua extremidade mais afastada. Os três segundos que ele le
vou para abrir caminho esmagando-a e atravessando-a de ponta a ponta deram-me te
mpo para me mexer. Eu tinha ficado à toa no teto, em uma fenda sobre o globo da lu
z; agora, deixei-me descer direto, transformando-me em uma gárgula enquanto caía. At
errissei bem em cima de meu amo, agarrei-o sem qualquer cerimônia passando-lhe o b
raço em volta do pescoço e, uma vez que Jabor bloqueava a janela, saltei em direção da p
orta.
Minha reação passou quase despercebida: os magos estavam ocupados com outras coisas.
Envolto em sua rede defensiva, Underwood mandou um raio de fogo azul crepitando
em direção a Lovelace. O raio atingiu Lovelace direto no peito e desapareceu. O Amu
leto de Samarkand absorvera seu poder.
Atravessei a porta com o garoto debaixo do braço e disparei escadas acima. Eu aind
a não tinha chegado ao alto quando uma explosão colossal prorrompeu de trás, pela pass
agem, e nos atirou com força contra uma parede do outro lado. O impacto me deixou
tonto. Caído no chão, momentaneamente atordoado, pude ouvir uma série de estrondos ens
urdecedores. Talvez o ataque de Jabor tenha sido excessivamente empenhado: o bar
ulho era como se todo o chão do gabinete houvesse cedido sob seu peso.
Não levei muito tempo para pôr minha essência em ordem e ficar de pé, mas, acreditem se
quiserem, nesses poucos momentos o boçal do garoto se mandou. Avistei-o no patamar
, dirigindo-se para as escadas. E descendo.
Sacudi a cabeça em descrédito. O que eu dissera a ele sobre manter-se fora de encren
ca? Ele já havia se entregado direto nas mãos de Lovelace e arriscado, no processo,
as vidas de nós dois. Agora ei-lo que estava, com toda a probabilidade, seguindo d
ireto para Jabor. Está muito certo correr para salvar a própria vidinha, mas pelo me
nos, corra na direção certa. Bati as asas e parti cheio de mau humor para buscá-lo.
A segunda regra de ouro de uma fuga é: não produzir sons desnecessários. Quando o garo
to chegou ao andar térreo, eu o escutei quebrar essa regra em termos bastante cate
góricos com um berro que ecoou pelo vão da escada de baixo!
Sra. Underwood! Sra. Underwood! Onde a senhora está? Seus gritos ressoavam acima
té mesmo dos barulhos estrondosos que reverberavam pela casa.
Revirei os olhos para o alto e desci o último lance de degraus para descobrir o ve
stíbulo já começando a se encher de grossos rolos de fumaça. Uma luz vermelha dançante tre
meluzia vindo do fundo da passagem. O garoto estava diante de mim, podia vê-lo seg
uindo aos tropeções na direção do fogo.
Sra. Underwood!
Houve um movimento ao longe na fumaça. Uma forma encurvada em um canto por trás de u
ma barreira de chamas que lambiam. O garoto a viu também. Caminhou em direção a ela. E
u acelerei o passo, as garras estendidas.
Sra. Underwood? A senhora está...?
A forma se ergueu, aprumou-se. Tinha a cabeça de uma fera.
O garoto abriu a boca para gritar. Nesse exato momento eu o alcancei e o agarrei
passando-lhe o braço em torno da cintura. Ele ia dar um grito de sufoco.
Sou eu, seu idiota! Puxei-o para trás em direção à escada. Ele está vindo para
morrer com o seu mestre?
Seu rosto se esvaziou. As palavras o chocaram. Não creio que até esse momento ele ho
uvesse compreendido realmente o que estava acontecendo, apesar de ter visto tudo
se desenrolar diante de seus olhos. Mas fiquei contente em dizê-lo claramente, já e
ra tempo dele conhecer as conseqüências de suas ações.
Saindo de uma muralha de fogo, veio vindo Jabor. Sua pele luzia como se houvesse
passado óleo nela, as chamas dançantes refletiam nele enquanto vinha ao longo do ve
stíbulo.
Recomeçamos a subir a escada. Meus membros forcejavam sob o peso do meu amo. Os de
le se arrastavam ele parecia incapaz de se mover.
Para cima rosnei. Esta casa tem terraço. Vamos tentar o telhado.
Ele conseguiu um murmúrio.
Meu mestre...
Morreu disse eu. Engolido inteiro, muito provavelmente. Era melhor ser exato.
Mas a sra. Underwood...
Sem dúvida está com o marido. Não pode ajudá-la agora.
E aqui, acreditem se quiserem, o idiota começou a se debater, agitando para todos
os lados os punhos franzinos.
Não! gritou. É minha culpa! Preciso encontrá-la!
Ele se contorcia como uma enguia, escorregando de minhas mãos. Mais um movimento,
e ele teria se lançado à volta do balaústre, diretonos braços acolhedores de Jabor. Solt
ei um forte xingamento63 e, agarrando-o pelo lóbulo da orelha, puxei-o para cima e
empurrei-o para a frente.
Pare de se debater! disse eu. Será que não fez gestos inúteis suficientes para
A sra. Underwood...
Não ia querer que você também morresse arrisquei.64 Sim, é sua culpa, mas, hã,
A vida é para os viventes... e, bem... Oh, tanto faz. Acabou minha energia.65
Tenham sido ou não meus sábios conselhos, o menino parou de se debater comigo. Eu ti
nha o braço em torno de seu pescoço e o estava arrastando para cima e virando cada âng
ulo do caminho, meio voando, meio andando segurando-o mais firme que eu podia. C
hegamos ao segundo patamar e continuamos subindo as escadas do sótão. Diretamente em
baixo, os degraus estalaram e se estilhaçaram sob os pés de Jabor.
Quando chegamos ao alto, meu amo havia se recuperado o suficiente para seguir em
frente, trôpego e quase sem ajuda. E assim como uma dupla sem qualquer esperança em
uma corrida de saco, que se arrastava em último lugar sob uma rodada de aplausos
solidários, chegamos ao quarto do sótão ainda vivos. O que era alguma coisa, suponho.
A janela! disse eu. Precisamos chegar ao telhado! Fui empurrando Nathaniel pe
quarto até a clarabóia e abri-a com um soco. Ar frio entrou aos golfos. Saí voando pel
a abertura e, encarapitando-me no telhado, estendi a mão de volta para dentro do q
uarto. Vamos lá disse. Saia.
Mas, para meu espanto, o infernal garoto hesitou. Ele seguiu até um canto do quart
o, curvou-se e pegou alguma coisa. Era seu espelho mágico. Digam vocês! A morte com
a cabeça de chacal em seus calcanhares, e ele se atrasava por aquilo? Só então veio pa
ra a clarabóia, o rosto sem qualquer expressão.
Uma coisa boa de Jabor. Lento. Ele levou tempo para ultrapassar o negócio problemáti
co das escadas. Se tivesse sido Faquarl na perseguição, teria conseguido nos alcançar,
nos trancar, bloquear a clarabóia e talvez até equipá-la com uma bela persiana nova,
antes de chegarmos lá. E, no entanto, meu amo estava tão letárgico, que eu mal o tinha
à distância de poder alcançá-lo com a mão, quando Jabor finalmente apareceu no alto das e
scadas, centelhas de fogo emanando de seu corpo e incendiando a estrutura da cas
a à sua volta. Ele avistou o menino, ergueu uma das mãos e avançou.
E bateu forte com a cabeça no portal, que era baixo.
Isso me deu o instante de que eu precisava. Desci com um giro de corpo da clarabói
a, pousando firme sobre os pés, como um símio, segurei o garoto embaixo do braço e vol
tei a subir pela abertura, projetando-me com um novo giro do corpo. Quando caímos
deitados sobre as telhas, um jorro de fogo irrompeu da clarabóia. A construção inteira
estremeceu.
O menino teria ficado deitado ali a noite inteira, se eu deixasse, fitando com o
lhar vítreo as estrelas. Ele estava em estado de choque, eu acho. Talvez fosse a p
rimeira vez que alguém tentava seriamente matá-lo. Eu, ao contrário, tive reações nascidas
de uma longa prática: num instante eu estava de novo em pé, arrastando-o comigo e s
eguindo estrépito pelo telhado inclinado, agarrando-me firme com minhas garras.
Rumei para a chaminé mais próxima e, pousando o garoto atrás dela, olhei para trás, de o
nde tínhamos vindo. O calor lá de baixo estava causando seu efeito: telhas saltavam
do lugar, pequenas chamas dançando através das fendas entre elas. Em algum lugar, um
a massa de madeira estalou e se mexeu.
Na clarabóia, um movimento: um pássaro negro, batendo as asas para sair do fogo. Ele
pousou na cumeeira do telhado e mudou de forma. Jabor olhou para trás e para a fr
ente. Abaixei-me atrás da chaminé e dei uma rápida espiada para cima e à frente.
Não havia sinal de nenhum dos outros escravos de Lovelace: nenhum djim, nem esfera
s de vigilância. Talvez, com o amuleto de novo em suas mãos, ele não sentisse nenhuma
necessidade deles. Estava contando com Jabor.
A rua era disposta em terraços: isso nos dava uma rota de fuga estendendo-se ao lo
ngo de uma sucessão de casas interligadas. A esquerda, os telhados eram uma obscur
a prateleira sobre a expansão iluminada da rua. À direita, podia-se ver a massa somb
ria dos jardins, cheios de árvores e arbustos crescidos demais. Um pouco mais além d
eixaram uma árvore particularmente grande crescer perto da casa. Essa tinha potenc
ial.
Mas o menino ainda estava molenga. Eu não podia contar com ele para uma fuga veloz
. Jabor nos acertaria com uma Detonação antes de termos avançado cinco metros.
Arrisquei uma olhada rápida sobre a beirada dos tijolos. Jabor se aproximava, a ca
beça um pouco abaixada, farejando a nossa pista. Não muito tempo antes ele manjara n
osso esconderijo e vaporizara a chaminé. Agora era mais do que hora de pensar em u
m plano brilhante, infalível.
A falta disso, improvisei.
Deixando o menino deitado, saí de detrás da chaminé em forma de gárgula. Jabor me viu; q
uando ele disparou, fechei minhas asas por um momento, permitindo-me cair moment
aneamente pelo ar. A Detonação passou chispada por cima de minha cabeça em queda e des
viou-se fazendo uma curva sobre o telhado para explodir inofensivamente em algum
ponto da rua atrás. Voltei a bater asas e alcei-me para mais perto de Jabor, obse
rvando durante todo o tempo as pequenas línguas de fogo lambendo em torno de seus
pés, rachando as telhas e alimentando-se das vigas ocultas que seguravam o telhado
no lugar.
Ergui minhas garras em um gesto de submissão.
Não podíamos discutir isso? Seu amo pode querer o menino vivo.
Jabor nunca foi chegado a um bate-papo. Um outro tiro que passou perto quase enc
errou a discussão para mim. Voei numa espiral em volta dele o mais rápido que podia,
mantendo-o o mais próximo possível no mesmo ponto. Toda vez que ele disparava, a fo
rça do disparo enfraquecia a seção do telhado sobre a qual ele se encontrava. Toda vez
que isso acontecia, o telhado estremecia um pouco mais violentamente. Mas minha
energia estava se esgotando meus truques ficaram menos enganosos. A orla de uma
Detonação me cortou uma asa e eu caí sobre as telhas.
Jabor deu um passo à frente.
Ergui uma mão e fiz um disparo em resposta. Saiu fraco e baixo, baixo demais para
perturbar Jabor. Acertou as telhas logo em frente a seus pés. Ele nem sequer titub
eou. Em vez disso, soltou um riso triunfante, cortado no ato pela seção inteira do t
elhado desabando. A viga-mestra, que sustentava o telhado ao comprido, partiu-se
ao meio; os caibros cederam, e madeira, gesso e telha em cima de telha se preci
pitaram no inferno que era a casa, levando Jabor junto. Ele deve ter sofrido uma
queda longa daquele ponto descendo quatro andares em chamas até o porão no subterrâne
o. A maior parte da casa deve ter caído em cima dele.
Chamas crepitaram através do buraco. Para mim, que agarrava a beira da chaminé e me
balançava tomando impulso até saltar para o outro lado, elas mais pareceram uma roda
da de aplausos.
O garoto ficou lá, agachado, olhos embaciados fitando a escuridão.
Ganhei alguns minutos para nós disse eu , mas não há tempo a perder. Trate de se mexer
Tenha ou não sido o tom amigável de minha voz, o fato é que ele rapidinho pôs-se de pé com
algum esforço. Mas então pôs-se em movimento, seguindo ao longo do topo do telhado caíd
o com a velocidade e a elegância de um cadáver ambulante. Nesse passo, ele teria lev
ado uma semana para se aproximar da árvore. Um velho com dois olhos de vidro conse
guiria alcançá-lo, quanto mais um djim zangado. Olhei para trás. Até agora não havia sinal
de perseguição somente chamas que subiam rosnando do buraco. Sem desperdiçar um momen
to, reuni o que me restava de força e joguei o menino sobre meu ombro. Corri o mai
s rápido que pude sobre o telhado.
Quatro casas mais adiante, alcançamos a tal árvore, um pinheiro do tipo sempre-verde
. Os ramos mais próximos estavam a apenas quatro metros de distância. Dava para pula
r. Mas primeiro eu precisava de um descanso. Larguei o garoto em cima das telhas
e dei uma conferida às nossas costas novamente. Nada. Jabor estava com problemas.
Imaginei-o debatendo-se no calor branco do porão, enterrado sob toneladas de esco
mbros em chamas, lutando para sair...
Houve um súbito movimento entre as chamas. Estava na hora de dar no pé.
Não deixei ao menino a opção de entrar em pânico. Agarrando-o pela cintura, atravessei c
orrendo o telhado e pulei da beirada. O garoto não fez um som, enquanto descrevíamos
um arco no ar, realçados em laranja pela luz do incêndio. Minhas asas batiam frenet
icamente, mantendo-nos no ar justo o tempo necessário, até que com uma chicotada, um
a estocada e um estalido de galhos, afundamos na folhagem da conífera sempre-verde
.
Agarrei-me ao tronco, para não cairmos. O menino firmou-se contra um galho. Olhei
para a casa lá atrás. Uma silhueta negra movia-se lentamente, recortada contra o fog
o.
Afrouxando a pega no tronco, deixei-nos escorregar. A casca foi sendo arrancada
por cada garra, enquanto descíamos. Pousamos em relva úmida na escuridão do pé da árvore.
Botei o garoto de novo em pé.
Agora, silêncio absoluto! sussurrei. E mantenha-se sob as árvores.
E saímos correndo, meu amo e eu, para a escuridão úmida do jardim, enquanto o gemido a
gudo dos carros de bombeiros aumentava de volume na rua e mais uma grande viga d
esabava sobre a ruína em chamas da casa seu mestre.
Parte Três
Nathaniel
31
Do outro lado do vidro quebrado, o céu clareou. A chuva persistente que vinha cain
do desde a madrugada virou garoa e parou. Nathaniel soltou um espirro.
Londres despertava. Pela primeira vez, apareceu tráfego na rua lá embaixo: ônibus verm
elhos encardidos, com os motores rosnando, carregando os primeiros viajantes par
a o centro da cidade; uns poucos carros esporádicos, tocando suas buzinas para qua
lquer um que atravessasse correndo à sua frente; bicicletas também, com ciclistas en
curvados e mourejando dentro de seus sobretudos pesados.
Devagar, as lojas em frente começaram a se abrir. Os donos saíam e, com um áspero estrép
ito, abriam as portas metálicas que protegiam à noite suas vitrines. Mostruários foram
arrumados: o açougueiro pousou peças de carne rosada na vitrine esmaltada; o homem
da tabacaria pendurou uma armação de revistas sobre o balcão. No vizinho ao lado, os f
ornos da padaria já estavam aquecidos há horas; ar quente, cheirando a pão e roscas açuc
aradas, atravessou a rua e chegou a Nathaniel, trêmulo e faminto no aposento vazio
.
Uma feira livre começava em uma rua lateral próxima. Gritos reverberavam, alguns ale
gres e animados, outros roucos e guturais. Meninos passavam vagabundeando, rolan
do latões metálicos ou empurrando carrinhos de mão empilhados de legumes. Um carro da
polícia passou ao norte, descendo a rua, reduziu a marcha ao passar pela feira e e
ntão aqueceu o motor com grande alarde e saiu veloz.
O sol pendia baixo sobre os telhados, um disco amarelo-ovo pálido encoberto por névo
a.
Em qualquer outra manhã, a sra. Underwood estaria ocupada preparando o desjejum.
Podia vê-la à sua frente: miúda, ocupada, resolutamente alegre, circulando azafamada p
ela cozinha, mexendo nas panelas barulhentas e as passando sobre o fogão, picando
tomates, enfiando pão na torradeira... Esperando que ele descesse.
Em qualquer outra manhã teria sido assim. Mas agora a cozinha havia sumido. E a sr
a. Underwood, a sra. Underwood havia...
Sentiu vontade de chorar, seu rosto pesava com essa vontade. É como se uma enchent
e de emoção estivesse represada ali, pronta para arrebentar. Mas seus olhos permanec
iam secos. Não havia alívio. Olhou de cima a atividade que se acumulava na rua, não en
xergando nada, insensível ao frio que lhe atingia os ossos. Sempre que fechava os
olhos, uma sombra branca bruxuleante dançava contra a escuridão a lembrança das chamas
.
A sra. Underwood havia...
Nathaniel respirou fundo, trêmulo. Enfiou as mãos nos bolsos da calça e sentiu o toque
do disco de bronze, liso e macio contra seus dedos. Teve um sobressalto e tirou
a mão. Seu corpo inteiro tremia de frio. Seu cérebro parecia congelado também.
Seu mestre... ele havia tentado ao máximo ajudá-lo. Mas ela... Ele a devia ter preve
nido, tirando-a de dentro de casa antes que aquilo acontecesse. Em vez do que, e
le...
Tinha de pensar. Não havia tempo para... Tinha de pensar o que fazer, ou estava pe
rdido.
Metade da noite ele passara correndo como um louco pelos jardins e ruelas do nor
te de Londres, os olhos vazios, boquiaberto. Lembravase disso apenas como uma séri
e de corridas na escuridão, de muros escalados com dificuldade, de passagens apres
sadas sob os postes de luz, de ordens sussurradas a que ele obedecera automatica
mente. Teve uma sensação de se apertar contra frias paredes de tijolos e em seguida
espremer-se para atravessar cercas, todo cortado, machucado e molhado até os ossos
. Em uma ocasião, antes de estar tudo livre, ele ficou escondido durante o que lhe
pareceram horas na base de uma pilha de adubo, o rosto comprimido contra o húmus
lodoso. Não parecia mais real do que um sonho.
No decorrer dessa fuga, ele ficara repassando na cabeça o rosto aterrorizado de Un
derwood, vendo uma cabeça de chacal erguendo-se das chamas. Irreal também. Sonhos de
ntro de um sonho.
Ele não tinha lembrança da perseguição, embora às vezes ela tivesse sido muito rente e opr
essiva. O zumbido de uma esfera de busca, um estranho odor químico trazido pelo ve
nto: isso era tudo que ele sabia a respeito até que pouco antes da manhã eles haviam
topado com uma área de becos com casas estreitas de tijolos vermelhos e encontrad
o este prédio fechado com tábuas.
Aqui, por enquanto, ele estava seguro. Tinha tempo para pensar, calcular o que f
azer...
Mas a sra. Underwood havia...
Frio, não está? disse uma voz.
Nathaniel virou-se e afastou-se da janela. Um pouco distante, do outro lado da s
ala arruinada, o menino que não era um menino o observava com olhos luzidios. Ele
se proporcionara algo semelhante a pesadas roupas de inverno uma jaqueta fofa, c
alças jeans novas, pesadas botinas marrons, um gorro de lã. Parecia bem aquecido.
Você está tiritando disse o menino. Mas, aí, você não está exatamente vestido p
o inverno. O que está usando debaixo dessa blusa de malha? Apenas uma camisa, espe
ro. E olhe para esses sapatos frágeis. Devem estar completamente empapados.
Nathaniel mal o escutou. Sua cabeça estava longe.
Isto não é lugar para se estar seminu continuou o menino. Olhe só para isso! Ra
s nas paredes, um buraco no teto... Estamos expostos aos elementos aqui. Brrrr!
Gelado.
Estavam no último andar do que evidentemente tinha sido um prédio público. A sala era
cavernosa, despojada e vazia, com paredes brancas de alvaiade manchadas de amare
lo e verde com o bolor. Ao longo de cada parede estendia-se fileira após fileira d
e estantes vazias, cobertas de pó, sujeira e titica de passarinho. Pilhas descorad
as de madeira que um dia podem ter sido mesas ou cadeiras estavam entulhadas em
um ou dois cantos. Janelas altas davam para a rua e degraus largos de mármore leva
vam lá para baixo. O lugar cheirava a mofo e decomposição.
Quer que eu o ajude quanto ao frio? disse o menino, olhando de lado para ele. S
recisa pedir.
Nathaniel não respondeu. Seu hálito virava fumaça gelada diante de seu rosto. O djim c
hegou um pouco mais perto.
Eu podia fazer um fogo disse. Um bem quentinho. Tenho muito controle sobre esse
elemento. Olhe! Uma pequena chama tremeluziu no centro de sua palma. Toda essa m
adeira aqui, indo para o lixo... O que era este lugar? Uma biblioteca? Acho que
sim. Não creio que os plebeus tenham mais permissão para ler muito, têm? Geralmente é as
sim mesmo que é. A chama cresceu um pouco. Você só tem que pedir, ó meu amo. Faço-o com
m favor. É para isso que servem os amigos.
Os dentes de Nathaniel tiritavam em sua cabeça. Mais do que qualquer outra coisa m
ais até do que a fome que roía em sua barriga como um cachorro ele precisava de calo
r. A pequena chama dançava e girava.
Sim ele disse com voz rouca. Faça-me uma fogueira.
A chama se apagou instantaneamente. O menino franziu o cenho.
Ora, isso não foi muito educado.
Nathaniel fechou os olhos e deu um fundo suspiro.
Por favor.
Muito melhor.
Uma pequena fagulha saltou e acendeu uma pilha de madeira que estava perto. Nath
aniel andou até lá e encolheu-se ao lado dela, suas mãos a centímetros das chamas.
Durante alguns minutos, o djim permaneceu em silêncio, andando para lá e para cá. As s
ensações lentamente foram voltando aos dedos de Nathaniel, embora seu rosto continua
sse insensível. Aos poucos, ele foi se tornando consciente de que o djim se aproxi
mara de novo. Estava de cócoras, remexendo à toa uma comprida lasca de madeira no fo
go.
Como está se sentindo? perguntou. Derretendo que é uma beleza, eu espero. Ele espero
u educadamente por uma resposta, mas Nathaniel não disse nada. Vou lhe dizer uma c
oisa o djim continuou, em tom coloquial , você é um espécime interessante. Conheci uns
poucos magos nos meus tempos, e não há muitos que sejam exatamente tão suicidas quanto
você. A maioria ia achar que aparecer para contar a um inimigo poderoso que você af
anou o seu tesouro não foi uma idéia terrivelmente brilhante. Em especial quando você
está totalmente indefeso. Mas você? Tudo em um dia só.
Tive de fazer aquilo disse Nathaniel, curto e seco. Ele não queria conversar.
Mm. Sem dúvida, você tinha um plano brilhante, que eu, e Lovelace também, aliás, não conse
guimos perceber de jeito nenhum. Importa-se de me dizer o que era?
Fique calado!
O djim franziu o nariz.
Era esse o seu plano? E um plano muito simples, isso eu posso dizer. Mesmo assim
, não se esqueça de que era a minha vida que você estava arriscando também, lá na casa, ex
ercendo aquela sua estranha convulsão de consciência. De repente, ele levou a mão ao f
ogo e retirou um tição de brasa, que ficou segurando pensativamente entre o indicado
r e o polegar. Eu tive um outro amo como você, certa vez. Tinha a mesma obstinação de
uma mula, raramente agia de acordo com seu maior interesse. Não viveu muito tempo.
Ele suspirou e jogou o tição de volta dentro das chamas. Não tem importância, tudo est
em quando acaba bem.
Nathaniel olhou para o djim pela primeira vez.
Tudo está bem!
Você está vivo. Isso não conta como bom?
Por um momento, Nathaniel viu o rosto da sra. Underwood olhando-o de dentro do f
ogo. Ele esfregou os olhos.
Odeio dizer isto o djim falou , mas Lovelace tinha razão. Você estava totalmente desn
orteado na noite passada. Magos não agem desse jeito. Foi uma sorte eu estar lá para
salvá-lo. Então, para onde vai agora? Praga?
O quê?
Bem, Lovelace sabe que você escapou. Estará procurando por você e você, viu o que ele fa
rá para mantê-lo em silêncio. Sua única esperança é sumir de cena e deixar Londres de vez.
o exterior será mais seguro. Praga.
Por que eu iria para Praga?
Os magos lá poderiam ajudá-lo. Boa cerveja também, foi o que me disseram.
Nathaniel franziu o lábio.
Não sou nenhum traidor.
O menino deu de ombros.
Se isso não serve, então resta-lhe fazer uma vida nova e sossegada aqui. Há um mont
e possibilidades. Vejamos... Olhando para você, eu diria que levantar peso está fora
de questão, você é muito magricela. O que elimina ser um trabalhador braçal.
Nathaniel franziu o cenho com indignação.
Não tenho a menor intenção...
O djim o ignorou.
Mas você podia fazer esse seu tamanho nanico funcionar a seu favor. Sim! O rapaz l
impador de chaminés, essa é a resposta. Estão sempre precisando de moleques novos em f
olha para subir nas chaminés.
Espere! Eu não...
Ou podia tornar-se aprendiz de rato de esgoto. Você pega uma escova de crina, um g
ancho e um desentupidor de pia, e então se contorce pelos túneis mais estreitos, pro
curando entupimentos.
Eu não...
Há um mundo de oportunidades esperando lá fora! E todas elas melhores do que ser um
mago morto.
Cale a boca! O esforço de erguer a voz fez Nathaniel sentir que sua cabeça estava pa
ra se partir em dois. Não preciso de suas sugestões!
Ele se pôs de pé, os olhos inflamados de raiva. As ironias do djim haviam-lhe penetr
ado o cansaço e a dor, incendiando uma fúria contida que subitamente o consumiu. Ela
originava-se de sua culpa, seu choque e sua angústia mortal, e os usava como seu
combustível. Lovelace dissera que não existia esse negócio de honra, que todo mago agi
a só para si mesmo. Muito bem. Nathaniel o pegaria pela língua. Não voltaria a cometer
semelhante erro.
Mas Lovelace cometera um erro todo seu. Havia subestimado seu inimigo. Chamara N
athaniel de fraco e em seguida tentara matá-lo. E Nathaniel havia sobrevivido.
Quer que eu disfarce e saia de fininho? gritou. Não posso! Lovelace assassinou a úni
ca pessoa que já gostou de mim Ele parou: sua voz estava embargada, mas seus olhos
ainda estavam secos.
Underwood? Você deve estar brincando! Ele o desprezava! Era um homem de bom senso!
A esposa dele, quero dizer. Quero justiça para ela. Vingança pelo que ele fez.
O efeito dessas palavras vibrantes foi levemente estragado pelo djim fazendo um
alto ruído de muxoxo. Ele se ergueu, sacudindo a cabeça tristemente, como sentindo o
peso de grande sabedoria.
Não é justiça que está procurando, garoto. E esquecimento. Tudo que você tinha se d
m chamas na noite passada. Então agora não tem nada a perder. Posso ler os seus pens
amentos como se fossem os meus próprios: você quer sair em arroubo de glória contra Lo
velace.
Não, quero justiça.
O djim riu.
Seria tão fácil seguir seu mestre e a esposa até a escuridão, tão mais fácil do que
vida de novo. Seu orgulho está dominando sua cabeça, arrastando-o para a morte. A no
ite passada não lhe ensinou nada? Você não é páreo para ele, Nat. Desista.
Nunca.
Não é nem como se você ainda fosse realmente um mago. Ele abrangeu com um gesto a
edes arruinadas. Olhe à sua volta. Onde estamos? Isto aqui não é nenhuma confortável res
idência no centro da cidade, cheia de livros e papéis. Onde estão as velas? Onde está to
do o incenso? Onde está o conforto? Goste ou não, Nathaniel, você perdeu tudo de que u
m mago precisa. Dinheiro, segurança, respeito próprio, um mestre... Vamos encarar, v
ocê não tem nada.
Tenho meu espelho mágico disse Nathaniel. E tenho você.
Apressadamente, voltou a sentar-se ao lado do fogo. O frio da sala ainda lhe che
gava aos ossos.
Ah, sim, eu já estava chegando lá. O djim começou a abrir um espaço em meio ao en
o chão com a lateral de sua botina. Quando tiver se acalmado um pouco, vou lhe tra
zer um pouco de giz. Então você poderá desenhar um círculo e me liberar.
Nathaniel olhou bem para ele.
Eu concluí minha tarefa... E mais, muito mais. Espionei Lovelace para você. Descobr
sobre o amuleto. E salvei a sua vida.
Nathaniel sentia a cabeça estranhamente leve e confusa, como se estivesse recheada
de pano.
Por favor! Não se apresse em me agradecer! disse. Só vai me deixar sem graça. Só o que e
u quero é vê-lo desenhar aquele pentagrama. É só do que preciso.
Não disse Nathaniel. Ainda não.
Como disse? replicou o outro menino. Minha audição deve estar diminuindo, por causa
daquele salvamento dramático que fiz na noite passada. Achei que você tinha acabado
de dizer que não.
Disse. Não vou liberá-lo. Ainda não.
Fez-se um silêncio pesado. Enquanto Nathaniel olhava, sua pequena fogueira começou a
minguar, como se estivesse sendo chupada pelo chão.
Sumiu por completo. Com pequenos ruídos de estalos, gelo começou a se formar sobre o
s pedaços de madeira que um momento antes estavam ardendo que era uma beleza. O fr
io lhe empolava a pele. Sua respiração foi ficando áspera e penosa. Ele ergueu-se camb
aleante.
Pare com isso! falou, arfando. Traga o fogo de volta. Os olhos do djim faiscara
.
É para o seu próprio bem ele disse. Acabo de me dar conta de como eu estava sen
refletido. Você não quer ver mais um fogo, não depois do que você ocasionou na noite pas
sada. Sua consciência deve estar lhe doendo muito.
Imagens bruxuleantes ergueram-se diante dos olhos de Nathaniel: chamas irrompend
o da cozinha arruinada.
Não comecei o incêndio ele sussurrou. Não foi minha culpa. - Não? Você escondeu o amul
Você armou para Underwood.
Não! Eu não pretendia que Lovelace viesse. Foi por segurança... O menino sorriu escarn
inho.
Claro que foi... sua segurança.
Se o sr. Underwood valesse alguma coisa, ele teria sobrevivido! Teria rechaçado Lo
velace, dado o alarme!
Você não acredita nisso. Vamos encarar, você matou todos os dois. O rosto de Nathan
retorceu-se em fúria.
Eu ia denunciar Lovelace! Eu ia fazê-lo ser pego com o amuleto, ia mostrar às autori
dades!
E daí? Você demorou demais. Não conseguiu.
Graças a você, demônio! Se não os houvesse guiado até a casa, nada disso teria acontecido!
Nathaniel agarrou-se a essa idéia como um afogado se agarra a uma tábua. É tudo sua c
ulpa, e eu vou lhe dar o troco! Acha que vai ser liberado? Pense melhor. Vai fic
ar permanentemente. É Confinamento Perpétuo para você!
Então é assim? Nesse caso o falso menino deu um passo à frente e súbito estava muito per
to eu podia muito bem matá-lo eu mesmo, neste momento. O que tenho a perder? Vou f
icar na lata de qualquer maneira, mas terei a satisfação de primeiro quebrar o seu p
escoço. Sua mão desceu suavemente sobre o ombro de Nathaniel.
A pele de Nathaniel se arrepiou. Ele resistiu ao forte ímpeto de encolher-se assus
tado e fugir, e, em vez disso, olhou de volta bem dentro dos olhos escuros, vazi
os.
Durante um longo momento, nenhum dos dois disse nada.
Finalmente, Nathaniel lambeu os lábios secos.
Isso não será necessário disse, guturalmente. Vou libertá-lo antes de acabar o
O djim puxou-o mais para perto.
Liberte-me agora.
Não. Nathaniel engoliu. Primeiro temos trabalho a fazer.
Trabalho? Ele franziu o cenho, sua mão sacudiu-lhe o ombro. Que trabalho? O que há p
ara fazer?
Nathaniel forçou-se a ficar bem quieto.
Meu mestre e sua esposa morreram. Preciso vingá-los. Lovelace deve pagar pelo que
fez.
A boca sussurrante agora estava bem perto, mas Nathaniel não sentia nenhum hálito co
ntra seu rosto:
Mas eu lhe disse, Lovelace é poderoso demais. Você não tem nem esperança de superá-lo. Esq
ueça a questão, como eu. Libere-me e esqueça seus problemas.
Não posso.
E por quê?
Eu... devo isso a meu mestre. Ele era um bom homem...
Não, não era. Esse não é absolutamente o motivo. O djim sussurrou diretamente no ouvido
dele. Não é justiça nem honra que o impele agora, garoto, mas culpa. Não consegue aceita
r as conseqüências de suas ações. Busca apagar o que fez a seu mestre e à esposa dele. Bem
, se é assim que os humanos preferem sofrer, que seja. Mas deixe-me fora dessa equ
ação.
Nathaniel falou com uma firmeza que não sentia.
Enquanto seu mês não se completar, você vai me obedecer se é que quer ter um dia a sua l
iberdade.
Ir atrás de Lovelace praticamente equivale a suicídio, em qualquer caso... seu e meu
. O menino deu um sorriso malicioso. Sendo assim, não vejo por que não deveria matá-lo
agora...
Haverá meios de desmascará-lo! Nathaniel não conseguia se segurar, estava falando depr
essa demais. Só precisamos ponderar tudo cuidadosamente. Vou fazer um acordo com v
ocê. Ajude-me a vingar-me de Lovelace, e o liberto imediatamente em seguida. Então não
poderá haver dúvidas sobre nossas posições. É do interesse de nós dois que dê certo.
Os olhos do djim brilharam.
Como sempre, um acerto louvavelmente justo, ditado a partir de uma posição unilatera
l de poder. Muito bem. Não tenho escolha. Mas se em algum momento você expuser qualq
uer de nós dois a um risco indevido, eu o aviso, vou tirar minha vingança primeiro.
De acordo.
O menino deu um passo para trás e soltou o ombro de Nathaniel.
Nathaniel recuou, os olhos arregalados, respirando com dificuldade. Cantarolando
suavemente, o djim andou até a janela, reacendendo casualmente o fogo ao passar.
Nathaniel fez força para se acalmar, recuperar o controle. Foi varrido por mais um
a onda de aflição, mas não sucumbiu. Não havia tempo para isso. Devia mostrar-se forte n
a frente de seu escravo.
Bem, então, amo disse o djim. Esclareça-me. Diga-me o que faremos.
Nathaniel manteve a voz o mais equilibrada possível.
Primeiro, preciso de comida e talvez roupas novas. Então devemos reunir nossas inf
ormações sobre Lovelace e o amuleto. Também precisamos saber o que as autoridades acha
m sobre... sobre o que aconteceu na noite passada.
Essa última é fácil disse Bartimaeus, apontando para fora da janela. Olhe só, ali.
32
- Times! Edição matinal!
O pequeno jornaleiro empurrava sua carrocinha lentamente pela calçada, parando sem
pre que passantes estendiam moedas em sua direção. A multidão era compacta e o avanço do
menino era lento. Ele mal havia chegado até a altura da padaria quando Nathaniel
e Bartimaeus saíram, meio de viés, do beco ao lado da biblioteca abandonada e atrave
ssaram a rua, indo ao seu encontro.
Nathaniel ainda tinha no bolso o restante do dinheiro que havia roubado do vidro
da sra. Underwood, alguns dias antes. Ele olhou para a carrocinha: tinha uma al
ta pilha de exemplares de The Times o jornal oficial do governo. Quanto ao peque
no jornaleiro, usava uma boina grande, de pano axadrezado, luvas sem dedos e um
sobretudo escuro, comprido, que lhe chegava quase até os tornozelos. As pontas de
seus dedos estavam rosadas de frio. De vez em quando ele trovejava o mesmo recla
mo rouco:
Times! Edição matinal!
Nathaniel tinha pouca experiência em lidar com plebeus. Dirigiu-se ao pequeno com
sua voz mais grave e firme.
O Times. Quanto custa?
Quarenta pence, guri.
Friamente, Nathaniel estendeu-lhe os trocados e recebeu em troca o jornal. O peq
ueno jornaleiro olhou para ele, a princípio sem curiosidade, e então com o que parec
ia um súbito interesse intenso. Nathaniel fez como quem ia seguir adiante, mas o p
equeno dirigiu-se a ele.
Você parece ralado, cara disse ele todo animado. Passou a noite toda na rua?
Não.
Nathaniel adotou uma expressão severa que, ele esperava, desestimularia maiores cu
riosidades. Não funcionou.
É claro que não, claro que não disse o pequeno jornaleiro. E eu não o criticari
dmiti-lo, caso tenha passado. Mas devia ter cuidado, já que está vigorando o toque d
e recolher. A polícia anda xere-tando por aí mais do que de costume.
Que toque de recolher é esse? perguntou o djim.
O garoto arregalou os olhos.
Por onde tem andado, companheiro? Desde aquele infame ataque contra o Parlamento
, há um toque de recolher às oito horas todas as noites desta semana. Não vai servir d
e nada, mas as esferas de busca estão aí, e a Polícia Noturna também, então você terá que s
ncafuar em algum lugar, antes que eles o encontrem e o peguem. Tenho a impressão d
e que até agora você deu sorte. Vou lhe dizer uma coisa: eu poderia descolar um bom
lugar para você passar esta noite, se precisar. É uma espelunca segura, e o lugar ao
nde se deve ir ele fez uma pausa, olhou para os dois lados da rua e abaixou a vo
z caso tenha alguma coisa que possa querer vender.
Nathaniel olhou-o sem expressão.
Obrigado. Não tenho.
O pequeno coçou a nuca.
Como quiser. Bem, não posso ficar de papo. Alguns de nós têm trabalho a fazer. Estou s
aindo.
Tomou nas mãos os tirantes da carrocinha e se afastou, mas Nathaniel percebeu que
olhou para trás, para eles, por cima do ombro, mais de uma vez.
Estranho disse Bartimaeus. O que terá sido isso? Nathaniel deu de ombros. Já ha
irado o episódio da cabeça.
Vá buscar-me um pouco de comida e roupas mais quentes. Vou voltar para a bibliotec
a e ler isto.
Muito bem. Tente mesmo não arrumar encrenca enquanto eu estiver fora.
O djirn virou-se e dirigiu-se para o meio da multidão.
O artigo estava na página dois, espremido entre o apelo mensal do Ministério do Trab
alho por novos aprendizes e um breve relato da campanha da Itália. Tinha três coluna
s. Registrava com pesar as mortes, em um grave incêndio doméstico, do ministro para
os Assuntos Internos, Arthur Underwood, e sua esposa, Martha. O fogo começara apro
ximadamente às 10h15 da noite e só foi totalmente extinguido por equipes de bombeiro
s e magos dos serviços de emergência três horas depois, quando a casa inteira já tinha s
ido destruída. Duas casas vizinhas haviam sido gravemente atingidas, e seus ocupan
tes evacuados em segurança. A causa do incêndio era desconhecida, mas a polícia estava
ansiosa por interrogar o aprendiz do sr. Underwood, John Mandrake, de doze anos
, cujo corpo não havia sido encontrado. Algumas notícias confusas o davam como tendo
sido visto fugindo do local. Corriam histórias de que Mandrake era um menino de d
isposição instável; sabia-se que havia atacado alguns magos proeminentes no ano anteri
or e aconselhava-se o público a abordá-lo com cautela. A morte do sr. Underwood, con
cluía o artigo, fora uma perda lamentável para o governo; ele servira a seu ministério
com competência durante toda a vida e fizera muitas contribuições importantes, nenhum
a das quais o jornal tinha espaço para descrever.
Sentado sob as janelas, Nathaniel deixou o jornal cair no chão. Afundou a cabeça bem
baixa sobre o peito; fechou os olhos. Ver impressa em letras claras e frias a c
onfirmação do que ele já sabia atingiu-o como um novo golpe. Isso o deixou meio zonzo,
querendo que as lágrimas viessem, mas seu pesar continuou reprimido, elusivo. Iss
o não era nada bom. Ele estava também cansado demais para qualquer coisa. Só o que ele
queria era dormir...
Uma botina o cutucou, não delicadamente. Ele teve um sobressalto e despertou.
O djim estava parado olhando para ele, arreganhando um sorriso. Trazia um saco d
e papel do qual saía vapor em espirais promissoras. Uma fome feroz subjugou a dign
idade de Nathaniel passou a mão no saco, quase derramando no colo a xícara de isopor
com café quente. Para seu alívio, havia dois pacotes muito bem embrulhados em papel
-manteiga, cada um contendo um sanduíche quente de bife com salada. A Nathaniel pa
receu nunca ter comido algo nem metade tão bom em sua vida inteira. Em dois minuto
s cravados ambos os sanduíches haviam sumido, e ele ficou sentado, fazendo render
o café entre seus dedos inflamados de frio, respirando com dificuldade.
Que espetáculo disse o djim.
Nathaniel sorveu o café com barulho.
Como conseguiu isto?
Roubei. Pedi ao homem da delicatessen que preparasse tudo, e fugi correndo enqua
nto ele estava no caixa. Nada especial. A polícia foi chamada.
Nathaniel soltou um gemido.
Era só o que faltava...
Não se preocupe. Vão estar procurando uma loura alta metida em um casaco de peles.
alando nisso ele apontou para um montinho em meio aos destroços no chão , vai encontr
ar roupas melhores ali. Casaco, calças, gorro e luvas. Espero que sirvam. Peguei o
s tamanhos mais magrinhos que consegui encontrar.
Alguns minutos depois Nathaniel estava mais bem alimentado, mais bem vestido e p
arcialmente recuperado. Sentou-se junto ao fogo e aqueceu-se. O djim ficou de cóco
ras por perto, olhando as chamas.
Eles acham que fui eu. Nathaniel apontou o jornal.
Bem, o que esperava? Lovelace não diria a verdade, diria? Que mago faria uma estup
idez dessas? Bartimaeus fitou-o significativamente. Todo o objetivo de atear o i
ncêndio foi o de ocultar qualquer traço da visita dele. E, uma vez que não conseguiu m
atá-lo, armou para você receber a punição.
A polícia está atrás de mim.
É mesmo. A polícia de um lado, Lovelace do outro. Ele vai botar seus escoteiros todo
s na rua, tentando descobri-lo. Um belo movi-mentozinho de torquês. É isso que ele q
uer, manter você em fuga, isolado, largando do pé dele.
Nathaniel rangeu os dentes.
Quanto a isso, veremos. E se eu próprio for à polícia? Eles podiam dar uma batida na c
asa de Lovelace, encontrar o amuleto...
Acha que vão lhe dar ouvidos? Você é um homem procurado. Uso "homem", aí, no sentido mai
s amplo possível, obviamente. Mesmo que não fosse, eu seria cauteloso quanto a entra
r em contato com as autoridades. Lovelace não está agindo sozinho. Há o mestre dele, S
chyler...
Schyler? E claro... o velho enrugado, de rosto vermelho. Schyler é o mestre dele?
Sim... eu o conheço. Ouvi uma conversa deles sobre o amuleto no Parlamento. Há um ou
tro também, chamado Lime.
O djim assentiu com a cabeça.
Isso pode ser só a ponta do iceberg. Um número enorme de esferas de busca ficou me
açando quando roubei o amuleto naquela primeira noite, aquilo foi obra de vários mag
os. Se for uma ampla conspiração, e você procurar as autoridades, não poderá confiar que n
inguém em uma posição de poder não irá dar o serviço para ele e matar você. Por exemplo, Sh
o Pinn, o comerciante de artefatos, pode estar envolvido. E um dos amigos mais ínt
imos de Lovelace e na verdade esteve almoçando com ele no outro dia. Descobri isso
pouco antes de ter sido inevitavelmente detido na loja de Pinn.
A raiva de Nathaniel se inflamou.
Você foi imprudente demais! Pedi-lhe que investigasse Lovelace, não que me pusesse e
m perigo!
Calma com esse gênio. Era precisamente o que eu estava fazendo. Foi na Pinn's que
descobri sobre o amuleto. Lovelace fez com que o roubassem de um mago do governo
chamado Beecham, cuja garganta foi cortada pelo ladrão. O governo quer muito o am
uleto de volta. Eu teria sabido mais, mas apareceu um afrito e carregou-me para
a torre.
Mas você fugiu. Como?
Ah, bem, essa foi a parte interessante prosseguiu Bartimaeus. Foi o próprio Lovela
ce que me tirou de lá. Ele deve ter sabido, por Pinn ou por alguém, que um djim de i
ncrível virtuosismo havia sido capturado e calculou imediatamente que era eu, o qu
e roubara o seu amuleto. Ele mandou seus djins Faquarl e Jabor em uma missão de re
sgate, um empreendimento extremamente arriscado. Por que acha que ele fez isso?
Ele queria o amuleto, claro.
Exatamente, e ele vai precisar usá-lo em breve. Disse isso mesmo na noite passada.
Faquarl disse a mesma coisa: ele vai ser usado para alguma coisa importante nos
próximos dois dias. Tempo é essencial.
Uma lembrança já meio enterrada agitou-se na mente de Nathaniel.
Alguém no Parlamento disse que Lovelace daria um baile ou um encontro, em breve. E
m um lugar fora de Londres.
É, eu soube disso também. Lovelace tem uma esposa, namorada ou conhecida chamada Ama
nda. Ela é que será a anfitriã da reunião, em algum salão por aí. O primeiro-ministro compa
ecerá. Vi essa Amanda na casa de Lovelace, quando roubei o amuleto. Ele estava mui
to empenhado em seduzi-la, portanto não pode ser sua esposa. Duvido que se conheçam
há muito tempo. Nathaniel ponderou por um momento.
Eu escutei Lovelace dizendo a Schyler que queria cancelar o encontro. Isso foi q
uando ele estava sem o amuleto.
Sim. Mas agora ele o recuperou.
Um novo ímpeto de raiva fria fez a cabeça de Nathaniel girar.
O Amuleto de Samarkand. Você descobriu suas propriedades?
Pouco mais do que já sabia. Há muito tem a fama de ser um artigo de enorme força e pod
er. O xamã que o fez era de fato um mago poderoso, bem mais do que qualquer um des
sa turma que só diz bobagens. A tribo dele ou dela não tem livros nem pergaminhos: o
conhecimento deles era passado adiante oralmente e de memoria apenas. De qualqu
er modo, o amuleto protege quem o usa de ataques mágicos, é mais ou menos simples as
sim. Não é um talismã, não pode ser usado agressivamente para matar seus rivais. Só funcio
na como proteção. Todos os amuletos...
Nathaniel cortou rispidamente.
Não fique querendo me ensinar! Eu sei o que os amuletos fazem.
Estava só garantindo. Não sei bem o que ensinam às crianças hoje em dia. Bem, eu testemu
nhei um pouco dos poderes do amuleto quando o estava plantando no gabinete de Un
derwood para você.
O rosto de Nathaniel se contorceu.
Eu não o estava plantando!
E claro que não. Mas ele cuidou de um feitiço de fogo muito do fraquinho sem qualque
r dificuldade. Absorveu-o sem mais nem menos. Fácil. E também deu cabo do ataque inc
apaz de Underwood na noite passada, como você pode ter visto enquanto estava depen
durado debaixo do meu braço. Um dos meus informantes afirmou que corre a história de
que o amuleto contém uma entidade do cerne do Outro Lugar: se for assim, ele há de
ser poderoso de fato.
Os olhos de Nathaniel ardiam. Ele os esfregou. Mais do que qualquer outra coisa,
precisava dormir.
Seja qual for a capacidade exata do amuleto insistiu o djim , está claro que Lov
ce vai usá-lo nos próximos dias, na tal conferência que ele organizou. Como? Difícil dar
um palpite. Por quê? Fácil. Ele vai tomar o poder. Ele bocejou. A mesma velha históri
a.
Nathaniel praguejou.
Ele é um renegado, um traidor!
Ele é um mago normal. Você é exatamente a mesma coisa.
O quê? Como ousa! Eu vou...
Bem, talvez ainda não. Espere alguns anos. O djim parecia um pouco entediado. Então,
o que se propõe a fazer?
Um pensamento passou pela cabeça de Nathaniel.
Fico pensando... ele disse. O Parlamento foi atacado dois dias atrás. Acha que
elace esteve por trás disso também?
O djim pareceu dúbio.
Duvido. Amador demais. Além disso, a julgar pela correspondência de Lovelace, ele e
Schyler não estavam esperando nada para aquela noite.
Meu mestre achava que foi a Resistência, gente que odeia magos. Bartimaeus arregan
hou um sorriso.
Muito mais provável. Você tome cuidado... Eles podem ser desorganizados agora, mas vão
pegá-lo no final. Sempre acontece. Olhe o Egito, olhe Praga...
Praga está decadente.
Os magos de Praga estão decadentes. E eles não mandam mais. Olhe ali...
Em uma área da biblioteca, as prateleiras podres haviam tombado. As paredes tinham
murais de camadas de grifos e certos hieróglifos cuidadosamente desenhados.
Imprecações do Velho Reino disse Bartimaeus. Tem-se uma classe de delinqüentes
formada por aqui. "Morte aos Dominadores", diz aquele grande ali. Isso é você, menin
o Nat, se não me engano.
Nathaniel ignorou essa, estava tentando organizar seus pensamentos.
É perigoso demais ir procurar as autoridades para falar sobre Lovelace disse ele
entamente. Então só existe uma alternativa. Eu próprio assistirei à sua conferência e den
nciarei a trama lá.
O djim tossiu significativamente.
Achava que tínhamos mencionado algo sobre riscos indevidos... Tenha cuidado... A i
déia me parece suicida.
Não, se planejarmos com cuidado. Primeiro, precisamos saber quando e onde ocorrerá o
encontro. Isso vai ser complicado... Você deverá sair por aí e descobrir essa informação
para mim. Nathaniel praguejou. Mas levará tempo! Se ao menos eu tivesse alguns liv
ros e o incenso adequado, poderia organizar uma tropa de diabretes para espionar
todos os ministros ao mesmo tempo! Não, eles seriam difíceis de controlar. Ou eu po
deria...
O djim pegara o jornal e o estava folheando.
Ou você poderia só ler a informação que saiu aqui.
O quê?
Aqui, na Circular do Parlamento. Ouça: "Quarta-feira, 2 de dezembro, Heddleham Hal
l. Amanda Cathcart recebe para a Conferência Parlamentar Anual e o Baile de Invern
o. Comparecerão, entre outros, Sua Excelência Rupert Devereaux, Angus Nash, Jéssica Wh
itwell, Chloe Baskar, Tim Hildick, Sholto Pinn e outros membros de nível da elite.
"
Nathaniel arrancou-lhe o jornal das mãos e leu tudo de cabo a rabo.
Amanda Cathcart, a namorada de Lovelace. Não há dúvida. Tem de ser ela.
Pena não sabermos onde é o Heddleham Hall.
Meu espelho mágico o encontrará. Nathaniel tirou do bolso o disco de bronze.
Bartimaeus olhou de esguelha para o objeto.
Duvido. Isso é a mercadoria mais falsificada que eu já vi.
Eu fiz esta peça.
Sim.
Nathaniel passou a mão duas vezes sobre o disco e murmurou a invocação. À terceira chama
da, a cara do diabrete apareceu, girando como se estivesse em um carrossel. Ele
ergueu uma sobrancelha em leve surpresa.
Você não morreu? ele disse.
Não.
Pena.
Pare de girar Nathaniel rosnou. Tenho uma missão para você.
Espere aí um segundo disse o diabrete, parando de repente com um rangido de derrap
ada. Quem é esse aí com você?
É Bartimaeus, mais um de meus escravos.
Ele bem que gostaria disso disse o djim. O diabinho franziu o cenho.
Esse é Bartimaeus? O tal lá da torre?
Sim.
Ele não morreu?
Não.
Pena.
Ele é muito agitado. Bartimaeus espreguiçou-se e bocejou. Diga a ele para tomar
ado. Diabretes do tamanho dele eu uso para palitar os dentes.
O bebê fez uma cara cética.
E mesmo? Eu já comi djins como você no desjejum, companheiro. Nathaniel deu um chut
sobre o assoalho.
Querem os dois só calar a boca e me deixar dar a minha ordem? Eu dou as ordens aqu
i. Certo. Diabrete: quero que você me mostre o prédio conhecido como Heddleham Hall.
Em algum lugar nas cercanias de Londres. Propriedade de uma mulher chamada Aman
da Cathcart. Então! Vá cumprir a sua tarefa!
Espero que não seja muito afastado, esse hall. Meu cordão astral tem um comprimento
limitado, como você sabe.
O disco se enevoou. Nathaniel esperou pacientemente que ele clareasse. E esperan
do ficou.
Esse é um espelho mágico bem lento disse Bartimaeus. Tem certeza que está funcionando?
E claro que tenho. E um objetivo difícil, por isso está demorando. E não ache que você e
stará se livrando fácil. Quero que vá dar uma examinada. Ver se está rolando alguma cois
a. Lovelace pode estar montando algum tipo de armadilha.
Teria de ser uma armadilha sutil, a fim de enganar todos aqueles magos que vão par
a lá na quarta-feira. Por que não tenta dar uma sacudida nesse espelho?
Ele funciona, estou lhe dizendo! Veja você, lá vamos nós.
O diabrete reapareceu, bufando e chiando, como se estivesse horrivelmente sem fôle
go.
O que há com você? ele disse arfante. A maioria dos magos usa seus espelhos par
pessoas por quem sentem atração, no chuveiro. Mas não você, oh, não. Isso seria fácil dema
s. Nunca cheguei tão perto de um lugar tão bem guardado. O hall é quase tão difícil quanto
a própria torre. Redes sensíveis a um fio de cabelo, sentinelas que se materializam
a esmo, o pacote todo. Tive de bater em retirada assim que me aproximei. Esta é a
melhor imagem que pude conseguir.
Uma imagem muito fora de foco encheu o centro do disco. Era possível discernir um
prédio castanho todo enfarruscado com diversos torreões e torres, cercado por um bos
que, com uma longa entrada de automóveis de um dos lados. Era possível ver dois pont
os pretos atravessando rapidamente o céu por trás da construção.
Está vendo essas coisas? disse a voz do diabrete. Sentinelas. Pressentiram-me a
m que me materializei. Isso aí são elas, vindo me pegar. Rápidas, não? Não surpreende que
eu tenha tido de cair fora imediatamente.
A imagem desapareceu, o bebê tomou o seu lugar.
Que tal foi essa?
Inútil disse Bartimaeus. Continuamos sem saber onde fica o hall.
Aí é que você se engana. O rosto do bebê assumiu uma expressão inconcebivelmente presunço
Fica cinqüenta milhas diretamente ao sul de Londres e nove milhas a oeste da linh
a ferroviária de Brighton. Uma propriedade enorme. Não há como errar. Posso ser vagaro
so, mas sou meticuloso.
Pode ir embora. Nathaniel passou a mão por sobre o disco, deixando-o de novo vazio
. Agora estamos começando disse. A quantidade de proteção mágica confirma que deve ser
lugar da reunião. Quarta-feira... Temos dois dias para chegar lá.
O djim desinflou as bochechas grosseiramente.
Dois dias para estarmos de novo à mercê de Lovelace, Faquarl, Jabor e uma centena d
magos perversos achando que você é um incendiário criminoso. Beleza. Mal posso espera
r.
O rosto de Nathaniel se endureceu.
Temos um acordo, lembra-se? Só precisamos de planejamento adequado. Vá agora para He
ddleham Hall, chegue o mais perto que puder e descubra um meio de entrar. Espero
por você aqui. Preciso dormir.
Os humanos realmente não têm energia. Muito bem: eu vou. O djim se levantou.
Quanto tempo vai levar?
Algumas horas. Estarei de volta antes do anoitecer. Há o toque de recolher e as es
feras estarão por aí, portanto não saia deste prédio.
Pare de ficar me dizendo o que fazer! Vá embora e pronto! Espere. Antes de ir, com
o é que eu faço fogo?
Alguns minutos depois o djim partiu. Nathaniel deitou-se no chão, perto das chamas
crepitantes. Seu pesar e sua culpa deitaram-se com ele como sombras, mas o cans
aço foi mais forte do que as duas coisas juntas. Em menos de um minuto, estava dor
mindo.
33
Em seu sonho ele viu um jardim no verão, com uma mulher ao seu lado. Pairava sobre
ele uma agradável sensação de paz: ela estava falando e ele ouvia, o som da voz dela
fundindo-se com o canto do pássaro e o toque do Sol sobre seu rosto. Sobre seu col
o havia um livro fechado, mas ele o ignorava: ou não o tinha lido, ou não queria fazê-
lo. A voz da mulher aumentava e abaixava; ele riu e sentiu-a passar o braço em tor
no de seus ombros. Ao que uma nuvem passou na frente do Sol e o ar esfriou. Uma
súbita lufada de vento abriu a capa do livro e virou suas páginas com barulho. A voz
da mulher ficou mais grave; pela primeira vez, olhou na direção dela... Sob uma jub
a de cabelo louro comprido, ele viu os olhos do djim, sua boca maliciosa. A pres
são em torno de seus ombros aumentou, e ele foi puxado para junto do inimigo, cuja
boca se abriu...
Ele acordou todo retorcido, um dos braços erguido defensivamente sobre o rosto.
O fogo havia se consumido e a luz se apagara no céu. A sala da biblioteca estava c
arregada de penumbra. Várias horas devem ter se passado desde que adormecera, mas
não se sentia refeito, apenas rígido e frio. A fome lhe comprimia o estômago; quando t
entou se levantar, seus membros estavam fracos. Seus olhos estavam quentes e sec
os.
A luz da janela, consultou o relógio. Três e quarenta: o dia quase havia se acabado.
Bartimaeus ainda não tinha voltado.
Quando a noite começou a cair, homens segurando longas varas com ganchos na ponta
saíram das lojas em frente e baixaram as grades de proteção das vitrines. Durante vários
minutos o barulho ecoou ao longo da rua, vindo de ambas as direções, como portas le
vadiças sendo baixadas em cem entradas de castelos. Os postes de iluminação das ruas a
cenderam suas luzes amarelas, um a um, e Nathaniel viu cortinas finas sendo fech
adas nas janelas em cima das lojas. Ônibus com luz saindo das janelas passavam ron
cando; pessoas seguiam apressadas pelas calçadas, ansiosas por chegar em casa.
Bartimaeus ainda não chegara. Nathaniel ficou andando impacientemente pela sala fr
ia e escura. A demora o enraivecia. No entanto, eis que mais uma vez ele sentia-
se impotente, à mercê dos acontecimentos. Era como as coisas sempre tinham sido. Em
toda crise, desde a primeira agressão de Lovelace, no ano anterior, até ele matar a
sra. Underwood, Nathaniel fora incapaz de reagir sua fraqueza lhe custara caro t
odas as vezes. Mas as coisas agora seriam diferentes. Ele não tinha nada que o det
ivesse, não lhe restara nada a perder. Quando o djim voltasse, ele ia...
Edição vespertina! As últimas notícias!
A voz chegou fracamente, vindo da rua que escurecia. Apertando a cabeça contra o v
idro da janela mais à esquerda, ele viu uma luz fraquinha que vinha balouçando pela
calçada. Pendia de uma vara comprida sobre uma carrocinha oscilante. O pequeno jor
naleiro estava de volta.
Durante alguns minutos Nathaniel ficou olhando-o se aproximar, deliberando consi
go mesmo. De qualquer jeito, não havia sentido em comprar um novo jornal, pouco te
ria mudado desde a manhã. Mas o Times era seu único elo com o mundo exterior; ele po
deria dar-lhe mais informação sobre os passos da polícia em seu encalço, ou sobre o enco
ntro. Além do que, enlouqueceria se não fizesse alguma coisa. Remexeu em um bolso e
conferiu os trocados. Dava. Andando cuidadosamente à meia-luz, foi até a escada, des
ceu ao térreo e passou espremido pela tábua solta para o beco lateral.
Um exemplar, por favor.
Alcançara o pequeno jornaleiro justo quando ele ia virando uma esquina com a carro
cinha, saindo da rua principal. A boina do pequeno pendia da sua nuca, uma mecha
de cabelo branco caía-lhe sobre a testa. Ele olhou em volta e arreganhou um sorri
so levemente desdentado.
Você outra vez. Ainda aí pelas ruas?
Um jornal. A Nathaniel pareceu que o garoto o estava encarando. Ele estendeu as
moedas, impaciente. Tudo bem eu tenho o dinheiro.
Nunca disse que não tinha, companheiro. O problema é que acabo de vender tudo. Apont
ou para o interior vazio da carrocinha. Por sorte sua, meu colega ainda terá algum
. O grito dele não é tão lucrativo quanto o meu.
- Não tem importância. Nathaniel virou-se para ir embora.
Oh, ele já deve estar chegando. Não vai levar um minuto. Sempre me encontro com ele
perto do Nag's Head66 no final do dia. É logo virando a próxima esquina.
Bem... Nathaniel hesitara. Bartimaeus poderia voltar a qualquer momento, e ele l
he mandara ficar lá dentro. Mandara? Quem era o amo aqui? Era logo virando a esqui
na, estaria tudo ótimo. Está bem disse.
Beleza. Vamos, então.
O menino partiu, a roda de sua carroça rangendo e se sacudindo sobre as pedras irr
egulares. Nathaniel seguiu ao lado dele.
A rua lateral era menos freqüentada do que a via principal e poucas pessoas passar
am por eles antes de chegarem à próxima esquina. A viela adiante era ainda mais soss
egada. Um pouco à frente ficava uma taverna, uma construção atarracada com telhado pla
no e paredes cinzentas de seixos incrustados em argamassa. Havia um cavalo igual
mente feio e atarracado retratado em uma tabuleta muito mal pintada pendurada so
bre a porta. Nathaniel ficou desconcertado ao ver uma pequena esfera de vigilância
pairando tranqüilamente ao lado da tabuleta.
O pequeno jornaleiro pareceu sentir a hesitação de Nathaniel.
Não se preocupe, não vamos chegar perto da vigia. Ela não toma conta da porta, apen
age como um desestímulo. Não funciona, veja você. Todo mundo na Nag's Head simplesment
e entra pelos fundos. De qualquer maneira, aí está o velho Fred.
Uma viela estreita saía daquela rua em um ângulo entre duas casas, e uma outra carro
cinha estava estacionada à sua entrada. Atrás dela, nas sombras da rua, um jovem alt
o, usando uma jaqueta de couro preto descansava encostado na parede. Estava come
ndo metodicamente uma maçã e olhando para eles por sob os cílios abaixados.
Oi, Fred disse o pequeno jornaleiro animadamente. Trouxe um chapa para ver você
Fred nada disse. Deu uma mordida gigante na maçã, mastigou-a lentamente, com a boca
um pouquinho aberta, e engoliu. Olhou Nathaniel de cima a baixo.
Ele está atrás de um exemplar do vespertino explicou o pequeno.
É mesmo? disse Fred.
É. Eu não tenho mais. E ele é o tal de quem eu estava lhe falando e tudo o mais o
eno jornaleiro acrescentou rapidamente. Está com ele agora.
Ao ouvir isso, Fred empertigou-se, espreguiçou-se, atirou os restos da maçã na rua e v
irou-se para encará-los. Sua jaqueta de couro rangeu quando ele se mexeu. Ele era
cabeça e ombros mais alto do que Nathaniel, e forte, além disso; um mar de manchas e
m seu queixo e bochechas não ajudava a melhorar a aparência levemente ameaçadora. Nath
aniel sentiu-se um pouco inquieto, mas conteve-se e falou com confiança tão brusca q
uanto lhe foi possível.
Bem, você tem um jornal? Não quero perder meu tempo. Fred olhou para ele.
Os meus também acabaram disse.
Não se preocupe. Eu não precisava realmente do jornal. Nathaniel estava louco de
tade de ir embora dali.
Espere aí. Fred estendeu uma mão grandona e agarrou-o pela manga. Não há necessidade de
e mandar tão depressa. Ainda não está no toque de recolher.
Solte-me! Largue de mim! Nathaniel tentou desvencilhar-se. Sua voz lhe parecia t
ensa e aguda.
O pequeno jornaleiro deu-lhe tapinhas nas costas de modo amigável.
Não entre em pânico. Não estamos querendo encrenca. Não levamos jeito de magos, levamos?
Então, bem. Só queremos lhe fazer umas perguntas, não é, Fred?
Isso mesmo. Fred parecia não estar fazendo nenhum esforço, mas Nathaniel viu-se arra
stado para a viela, fora da visão da taverna mais adiante. Fez o máximo possível para
aplacar seu medo crescente.
O que vocês querem? disse. Não tenho nenhum dinheiro. O pequeno jornaleiro riu.
Não estamos tentando assaltá-lo, meu chapa. Só umas perguntas, como eu disse. Como
chama?
Nathaniel engoliu.
Hmm... John Lutyens.
Lutt-chans, somos chiques, não somos?67 Então, o que anda fazendo por aqui, John? On
de é que você mora?
Hmm, Highgate. Assim que falou, calculou que tinha sido um erro.
Fred assobiou. O tom de voz do pequeno jornaleiro foi educadamente cético.
Muito fino. Esse é um bairro de magos, John. Você é mago?
Não.
E quanto ao seu amigo?
Nathaniel foi momentaneamente pego de surpresa.
Meu-meu amigo?
O garoto moreno bonito que estava com você hoje de manhã.
Ele? Bonito? E só um cara que conheci. Não sei onde está.
Onde conseguiu suas roupas novas? Isso foi demais para Nathaniel agüentar.
O que é isto? disse, rispidamente. Não tenho de responder a tudo isso! Deixem-me em
paz! Um vestígio de imperiosidade havia voltado aos seus modos. Ele não tinha nenhum
a intenção de ser interrogado por uma dupla de plebeus. A situação toda era absurda.
Abaixa essa fervura disse o pequeno jornaleiro. Só estamos interessados em você, e n
o que tem aí no casaco.
Nathaniel piscou. A única coisa que tinha no bolso era o espelho mágico, e ninguém o t
inha visto usá-lo, tinha certeza. Só o tirara do bolso na biblioteca.
Meu casaco? Não há nada nele.
Mas há disse Fred. Stanley sabe, não é, Stanley?
O pequeno jornaleiro assentiu.
É.
Se ele diz que viu alguma coisa, está mentindo.
Oh, eu não o vi disse o pequeno. Nathaniel franziu o cenho.
Está dizendo absurdos. Solte-me, por favor.
Aquilo era intolerável. Se ao menos Bartimaeus estivesse à mão, ensinaria a esses pleb
eus o que queria dizer respeito. Fred deu uma olhada no relógio à luz fraca da viela
.
Deve estar para começar o toque de recolher, Stanley. Vamos ter de tomar dele?
O pequeno jornaleiro suspirou.
Olhe, John ele disse pacientemente. Só queremos ver o que você roubou, é só iss
s tiras nem magos, então você não precisa ficar de rodeios. E, quem sabe? Talvez possa
mos fazer valer a pena o incômodo. O que iria fazer com ele, aliás? Usá-lo? Então... mos
tre-nos só o objeto que você tem no bolso esquerdo do sobretudo. Senão vou ter de deix
ar o velho Fred aqui entrar em ação.
Nathaniel podia ver que não tinha escolha. Enfiou a mão no bolso, tirou o disco e, s
em uma palavra, o entregou.
O pequeno jornaleiro examinou o espelho mágico à luz de sua lanterna, virando-o várias
vezes em suas mãos.
O que acha, Stanley? perguntou Fred.
Moderno disse por fim. Feito muito rudemente. Peça feita em casa, eu diria. Nad
special, mas vale a pena ter.
Passou-o a Fred para que o examinasse.
Uma suspeita subitamente tomou forma na cabeça de Nathaniel. A recente onda de rou
bos de artefatos estava sendo uma grande preocupação para os ministros. Devereaux o
havia mencionado em seu discurso, enquanto seu mestre ligava os crimes à misterios
a Resistência que havia atacado o Parlamento dois dias antes. Achava-se que plebeu
s haviam praticado esses roubos, e que os objetos mágicos eram então postos à disposição d
e inimigos do governo... Nathaniel lembrou-se do jovem de olhos frenéticos no terr
aço de Westminster Hall, a esfera de elementos girando no ar. Aqui talvez estivess
e prova em primeira mão da Resistência em ação. Seu coração batia depressa. Ele precisava a
ora pisar em ovos um pouco.
Isso é... é valioso? perguntou.
É disse Stanley. Nas mãos certas é útil. Como o conseguiu?
Nathaniel pensou depressa.
Você tem razão disse. Eu, bem... eu o roubei. Estava em Highgate (eu próprio não moro l
obviamente) e passei por uma casa grandona. Havia uma janela aberta, e vi algo b
rilhando lá dentro, na parede. Por isso entrei de fininho e o peguei. Ninguém me viu
. Só achei que talvez pudesse vendê-lo, só isso.
Tudo é possível, John disse o pequeno jornaleiro. Tudo é possível. Você sabe o que isso
z?
Não.
É um disco de adivinhação de um mago, um espelho mágico, algo assim.
Nathaniel estava agora ganhando confiança. Ia ser bastante fácil tapeá-los. Sua boca s
e abriu no que ele imaginou ser o ar de estupefação de um plebeu.
O que... dá pra ver o futuro nele?
Talvez.
Sabe como usá-lo?
Stanley cuspiu violentamente sobre a parede.
Sujeitinho atrevido! Devia dar-lhe um soco por causa disso. Nathaniel recuou, co
nfuso.
Sinto... eu não tinha a intenção... Bem, hã, se ele tem valor, sabe de alguém que p
querer comprá-lo? O negócio é que estou precisando muito de uma grana.
Stanley olhou para Fred, que assentiu devagar.
Você está com sorte! disse Stanley, em um tom mais animado. Fred está aí para i
sempre sigo com o velho Fred. Nós conhecemos mesmo alguém que poderia lhe fazer um
bom preço e talvez ajudá-lo quando você estiver sem sorte. Venha conosco e podemos pro
videnciar um encontro.
Isso era interessante, mas inconveniente. Ele não podia agora sair flanando por Lo
ndres afora para um encontro às cegas já estava ausente da biblioteca há tempo demais.
Chegar à conferência de Lovelace era muito mais importante. Além disso, precisaria te
r Bartimaeus com ele para poder se envolver com esses criminosos. Nathaniel sacu
diu a cabeça.
Não posso ir agora disse. Digam-se quem é ou onde devo ir, e encontro vocês lá
Os dois olharam para ele inexpressivamente.
Lamento disse Stanley. Não é esse tipo de encontro nem esse tipo de pessoa. O que te
m para fazer, aliás, que é tão importante assim?
Tenho de, hã, encontrar o meu amigo. Soltou uma imprecação silenciosa. Foi um erro. Fr
ed mexeu-se; sua jaqueta rangeu.
Mas se acabou de dizer que não sabia onde ele estava...
Eu, sim... preciso achá-lo.
Stanley olhou para o relógio.
Lamento, John. É agora ou nunca. O seu amigo pode esperar. Achei que queria vender
essa coisa.
E quero, mas não esta noite. Estou realmente interessado no que você sugere. Só não poss
o fazê-lo. Ouçam, encontro vocês aqui amanhã. Mesmo lugar, mesma hora.
Ele estava ficando desesperado agora, falando rápido demais. Podia sentir a suspei
ta e incredulidade crescentes deles; só o que importava era escapar deles o mais ráp
ido possível.
Não dá pé. O pequeno jornaleiro ajeitou a boina em posição certinha na cabeça.
e mato tem coelho, Fred. O que diz de irmos nessa?
Fred fez que sim com a cabeça. Sem conseguir acreditar, Nathaniel o viu enfiar o e
spelho mágico no bolso de seu casaco. Soltou um grito de raiva.
Ei! Isso é meu! Devolva!
Perdeu a sua chance, John, se é mesmo esse o seu nome. Caia fora.
Stanley estendeu a mão para os tirantes da carrocinha. Fred deu em Nathaniel um em
purrão que o mandou todo espalhado de costas contra as pedras molhadas da parede.
A isso Nathaniel sentiu toda contenção desaparecer; com um grito estrangulado, preci
pitou-se sobre Fred, batendo nele com os punhos e chutando furiosamente em todas
as direções.
De-vol-va o meu dis-co!
O bico de sua botina entrou em contato fortemente com o queixo de Fred, provocan
do um berro de dor. O punho de Fred se agitou e acertou Nathaniel bem na cara; q
uando ele viu, estava caído na imundice do chão do beco, a cabeça girando, vendo Fred
e Stanley desaparecer apressadamente pelo beco, com suas carrocinhas quicando e
pulando atrás deles.
A fúria subjugou sua tontura, assumindo o controle do seu senso de cautela. Fez um
esforço para pôr-se de pé e partir tropegamente em perseguição.
Não conseguia ir depressa demais. A noite pairava pesadamente sobre o beco, suas p
aredes eram cortinas cinzentas quase nada mais claras do que o nada negro à frente
. Nathaniel foi tateando o caminho, passo febril a passo febril, a mão roçando os ti
jolos à sua direita, tentando ao máximo ouvir o rangido e o arrastar revelador das c
arrocinhas logo adiante. Parecia que Fred e Stanley haviam sido forçados a reduzir
a velocidade também os sons de seu avanço mão iam embora; ele ainda podia dizer que c
aminho tomaram a cada esquina.
Mais uma vez, sua impotência o enfureceu. Maldito djim. Nunca estava quando ele ma
is precisava! Se um dia pegasse esses ladrões, eles iam levar uma... E agora, para
onde? Fez uma pausa ao lado de uma janela alta protegida por barras e cheia de
sujeira agarrada. Percebeu ao longe o ruído de rodas de carroça batendo com força sobr
e pedras. A bifurcação à esquerda. Seguiu por ela.
Um pouco depois percebeu que o som à sua frente havia mudado. Vozes murmuradas sub
stituíam o barulho de movimento. Ele seguia mais cautelosamente agora, andando ape
rtado junto à parede, pousando cada passo com cuidado para evitar fazer barulho ch
apinhado na água.
O beco terminava em uma viela estreita, pavimentada de pedras arredondadas, orla
da de míseras pequenas oficinas, todas abandonadas e fechadas com tábuas. Sombras ob
struíam os vãos das portas, como teias de aranha. Um fraco cheiro de serragem pairav
a no ar.
Ele viu as carrocinhas paradas no meio da viela. A vara com a luz, de Stanley, t
inha sido retirada de sua carrocinha e agora podia ser vista brilhando débilmente
em um portal abrigado. Dentro do seu halo pálido, três figuras conversavam baixinho
Fred, Stanley e mais alguém: uma figura franzina, vestida de preto. Nathaniel não co
nseguia distinguir-lhe o rosto.
Nathaniel mal respirava: fazia força para ouvir as palavras. Não adiantava. Ele esta
va muito distante. Não podia combatê-los agora, mas qualquer fragmento de informação pod
eria ser útil no futuro. Valia a pena arriscar. Esgueirou-se um pouco mais para pe
rto.
Continuava sem sorte. Só conseguiu saber que Fred e Stanley estavam a maior parte
do tempo em silêncio, que a outra figura é que comandava o espetáculo. Tinha uma voz j
ovem, cortante e aguda.
Um pouco mais perto...
No passo seguinte, sua botina bateu em uma garrafa de vinho vazia que tinha sido
deixada encostada na parede. Ela oscilou, tilintou fracamente contra os tijolos
e se endireitou. Não caiu. Mas o tinido foi o suficiente. A luz no vão da porta se
sacudiu, três rostos viraram-se para ele: o de Stanley, o de Fred e...
No instante em que foi possível, Nathaniel captou apenas um vislumbre, mas que imp
rimiu-se indelevelmente em sua cabeça. O rosto de uma garota, pálido e jovem, emoldu
rado de cabelo escuro liso. Seus olhos eram grandes, surpresos, mas não assustados
, ferozes também. Ouviu-a gritar uma ordem, viu Fred dar um golpe para a frente, a
vistou algo pálido e brilhante sair disparado da escuridão em sua direção. Nathaniel aga
chou-se impetuosamente e bateu com o lado da cabeça nos tijolos da parede. Bile su
biu-lhe à garganta; viu luzes diante de seus olhos. Caiu na poça de lama junto à base
da parede.
Nem totalmente inconsciente nem acordado, ele ficou caído imóvel, os olhos fechados,
o corpo relaxado, tenuemente consciente do que o cercava. Um tropel de passos s
e aproximou, ele ouviu uma raspada metálica, couro rangeu. Sentiu uma presença perto
dele, algo leve roçando-lhe o rosto.
Você não o acertou. Ele está apagado, mas vivo. Uma voz de mulher.
Posso cortar a garganta dele para você, Kitty. Fred falando.
A pausa que se seguiu pode ter sido de qualquer duração, Nathaniel não saberia dizer.
Não... Ele é só um garoto idiota. Vamos embora.
A viela obscura ficou em silêncio. Muito tempo depois de sua cabeça parar de flutuar
, muito tempo depois de a água ter encharcado seu sobretudo, penetrando até gelar-lh
e a carne, Nathaniel permanecia totalmente parado. Não ousava se mexer.
Bartimaeus
34
Eu já tinha voltado há quase cinco horas, quando soou um arrasta-pé desanimado na tábua
solta, e meu amo, triste, emporcalhado de lama e extremamente fedorento, voltou
derrubado à biblioteca. Deixando em seu rastro uma trilha do que eu tinha a espera
nça que fosse lama, veio subindo manco, as escadas como uma lesma gigante até a sala
do primeiro andar, onde prontamente se deixou cair contra a parede. Por um espíri
to de curiosidade científica, acendi uma pequena chama e o examinei minuciosamente
. Ainda bem que eu tinha experiência em lidar com diabretes estígios e coisas do gêner
o, porque ele não estava nada bonito de ver. Parecia ter sido agarrado fisicamente
e rolado sobre um lamaçal particularmente fedido ou sobre o chão de um estábulo, ante
s de ser enfiado de cabeça para baixo e remexido em um barril de terra e aparas de
grama. Tinha o cabelo eriçado como o traseiro de um porco-espinho. Seus jeans est
avam rasgados e ensangüentados nos joelhos. Tinha um grande machucado na bochecha
e um corte feio acima da orelha. Melhor de tudo, porém, seus olhos estavam furioso
s.
Teve uma boa noite, senhor? indaguei.
Uma fogueira rosnou ele. Faça-me uma fogueira. Estou congelando.
Esses modos de patrão mandão pareciam um pouco fora de lugar vindo de algo que um ch
acal teria rejeitado, mas nada objetei. Estava achando tudo muito divertido. Então
juntei pedaços variados de madeira, acendi um fogo revigorante e sentei-me (ao mo
do de Ptolomeu) o mais perto dele que meu estômago conseguia agüentar.
Bem disse eu animadamente , esta é uma agradável inversão de papéis. Geralmente
e volta esgotado e coberto de sujeira. Taí uma inovação que eu aprovo. Por que saiu da
biblioteca? As forças de Lovelace o encontraram? Jabor apareceu?
Ele falou devagar, entredentes.
Fui comprar um jornal.
Estava ficando cada vez melhor! Sacudi a cabeça, como lastimando.
Você deveria deixar incumbência tão perigosa para pessoas mais qualificadas. Da próxima
vez, peça a uma velha vovozinha ou a um bebê de gatinhas...
Cale a boca! Os olhos dele faiscavam. Foi aquele pequeno jornaleiro! E seu amigo
, Fred! Dois plebeus! Eles roubaram o meu disco, o que eu fiz. E me atraíram para
fora daqui. Eu os segui e eles tentaram me matar, e teriam mesmo feito isso, se
não fosse a garota...
Uma garota? Que garota?
Mas mesmo assim rachei a cabeça e caí em uma poça de lama, e então, quando eles se foram
, não consegui achar o caminho de volta e já era depois do toque de recolher e havia
esferas de busca nas ruas, e tive de ficar me escondendo enquanto elas passavam
. No final, encontrei um riacho sob uma ponte e fiquei séculos lá deitado, na lama,
enquanto as luzes patrulhavam para cima e para baixo na rua acima de mim. E então,
quando elas sumiram, eu ainda tinha de encontrar o caminho de volta. Levei hora
s! E machuquei o joelho.
Bem, não era exatamente Shakespeare, mas foi a melhor história para neném dormir que e
u tinha ouvido em muito tempo. Ela me reanimou bastante.
Eles fazem parte da Resistência continuou ele, olhando fixo para o fogo. Tenho cer
teza. Eles vão vender o meu disco, dá-lo às mesmas pessoas que atacaram o Parlamento!
Ahh! Ele cerrou os punhos. Por que não estava lá para me ajudar? Eu poderia tê-los peg
ado, forçado-os a me contar quem é o seu líder.
Se bem se lembra observei friamente , eu havia saído em uma missão que você me deu. Que
m era essa garota que você mencionou?
Não sei. Só a vi por um segundo. Era quem os comandava. Um dia, porém, eu a encontrare
i e a farei pagar!
Achei que disse que ela os impediu de matá-lo.
Mesmo assim, ela levou o meu disco! É uma ladra e traidora.
O que mais a garota fosse, ela me parecia muito familiar. Um pensamento me ocorr
eu:
Como eles sabiam que você tinha o disco? Tinha mostrado a eles?
Não. Acha que sou idiota?
Isso não vem ao caso. Tem certeza de que não o tirou enquanto procurava por dinheiro
trocado?
Não. O pequeno jornaleiro simplesmente sabia, de alguma forma. Como se fosse um dj
im ou um diabrete.
Interessante...
Parecia exatamente o mesmo bando que me atacara na noite em que peguei o Amuleto
de Samarkand. A minha garota e seus coleguinhas tampouco precisaram ver o amule
to para saber que ele estava comigo. E mais tarde me descobriram atrás de meu feit
iço de Ocultamento. Capacidades úteis... que evidentemente estavam sendo postas em b
om uso. Se eles eram parte desse movimento, a Resistência, parecia que a oposição aos
magos era mais desenvolvida e potencialmente mais formidável do que eu havia imagi
nado. Os tempos estavam avançando em Londres...
Não compartilhei tais idéias com o garoto. Ele era o inimigo, afinal de contas, e a úl
tima coisa de que magos precisam são percepções inteligentes.
Deixando um pouco de lado seus infortúnios disse eu , talvez você queira ouvir m
latório.
Ele grunhiu.
Encontrou Heddleham Hall?
Encontrei e, se quiser posso levá-lo até lá. Margeando o Tâmisa, há uma ferrovia pa
l, passando sobre o rio e saindo de Londres. Mas primeiro devo contar-lhe sobre
as defesas que Lovelace armou em torno da casa da namorada. São formidáveis. Trasgos
voadores patrulham o campo nas cercanias da propriedade, enquanto entidades de
maior distinção se materializam aleatoriamente pelo terreno. Há pelo menos duas cúpulas
protetoras sobre a própria casa, que também mudam de posição. Não pude ultrapassar esse li
mite em minha incursão, e será ainda mais difícil consegui-lo carregando um peso morto
como você.
Ele não aceitou a provocação. Estava cansado demais.
E, no entanto, continuei consigo sentir em minha essência que estão escondendo
a coisa lá no hall. Essas esferas foram postas no lugar com dois dias de antecedênci
a, o que envolve um dispêndio de energia colossal. Isso implica que rola alguma tr
avessura.
Quanto tempo se leva para chegar lá?
Podemos chegar à orla da propriedade ao cair da noite se pegarmos o trem de manhã ce
do. Há uma longa caminhada ao chegar. Mas precisamos começar a ir agora.
Muito bem. Ele começara a se levantar, rangendo e vazando enquanto se mexia.
Você tem certeza desse plano? perguntei. Em vez disso, eu podia levá-lo até as docas.
Vai haver vagas para cabineiros de navio lá. É uma vida dura, mas boa. Pense em todo
aquele ar salgado.
Não houve resposta. Ele estava a caminho da saída. Dei um suspiro, apaguei o fogo e
fui atrás dele.
O caminho que escolhi foi uma faixa de terrenos baldios que corria a sul e a les
te entre as fábricas e armazéns, seguindo um afluente estreito do Tâmisa. Embora o ria
cho mesmo fosse muito parco, coleava excessivamente através de sua meio encharcada
planície, criando um labirinto decômoros pantanosos, brejos e pequenas poças, levamos
o resto da noite para vencer. Nossos sapatos afundavam em lama e água, caniços pont
udos nos picavam as pernas e as mãos e insetos zumbiam ocasionalmente em torno de
nossas cabeças. Já o menino quase não parava de chiar. Após suas aventuras com a Resistênc
ia, ele estava de muito mau humor.
Isto é pior para mim do que para você retruquei asperamente, após um rompante de parti
cular petulância. Eu poderia ter atravessado isso voando, em cinco minutos, mas oh
, não, tenho de fazer-lhe companhia. Andar se retorcendo em lodo e na lama é direito
natural seu, humano, não meu.
Não consigo ver onde estou pondo os pés disse ele. Não pode criar um pouco de luz?
Sim, se quiser atrair a atenção de um djim que voa pela noite. Os caminhos andam bem
vigiados, como você já descobriu, e não se esqueça que Lovelace pode ainda estar procur
ando por nós. O único motivo pelo qual escolhi este caminho é porque ele é tão escuro e de
sagradável.
Ele não pareceu grandemente consolado com isso, mas seus protestos pararam.68
Enquanto seguíamos aos tropeços, ponderei nossa situação com minha habitual lógica impecáve
. Fazia seis dias que o garoto me havia invocado. Seis dias de incômodo e mal-esta
r ganhando corpo dentro de minha essência. E nenhum final imediato à vista.
O garoto. Como ele se classificava em minha lista de meus momentos baixos com hu
manos em toda a minha existência? Ele não era o pior amo que eu tinha suportado,69 m
as apresentava alguns problemas peculiares, só dele. Todos os magos sensatos, bem
versados em crueldade inteligente, sabem quando é o momento certo de lutar. Eles a
rriscam a si próprios (e seus servidores) de modo comparativamente raro. Mas o gar
oto nem fazia idéia de nada disso. Tinha sido esmagado por um desastre causado por
sua própria intromissão, e sua reação foi revidar investindo contra seu inimigo como um
a cobra ferida. Fosse qual fosse seu ressentimento original contra Lovelace, ago
ra havia sido substituído por um desespero movido a desgosto. Coisas simples como
autopreservação eram deixadas de lado em seu orgulho e fúria. Ele estava caminhando pa
ra a morte. O que seria ótimo, se não estivesse me levando junto nessa viagem.
Eu não tinha solução para isso. Estava preso à meu amo. Só o que podia fazer era mantê-lo v
vo.
Ao amanhecer já tínhamos descido a faixa de terreno baldio do norte de Londres até qua
se chegar ao Tâmisa. Aqui o riacho se alargaria um pouquinho antes de derramar-se,
sobre uma série de açudes, dentro do rio principal. Estava na hora de retomar as ru
as. Subimos um talude de margem até uma cerca de arame (na qual abri, queimando, u
m discreto buraco), atravessamos e saímos em uma rua pavimentada de pedra. O coração p
olítico da cidade ficava à nossa direita, o bairro da torre à nossa esquerda, o Tâmisa e
stendia-se à frente. O toque de recolher havia tranquilizadoramente acabado, mas a
inda não havia ninguém nas ruas.
Certo disse eu, parando. A estação fica perto daqui. Antes de irmos para lá, pre
resolver um problema.
Que é?
Fazê-lo parar de parecer e de feder como um guardador de porcos.
Os variados fluidos dos terrenos baldios tinham aderido a ele em um complexo pad
rão salpicado. Poderia ser emoldurado e pendurado em uma parede de um lugar da mod
a.
Ele franziu o cenho.
Sim. Limpe-me primeiro. Deve haver um meio.
Há.
Talvez eu não devesse tê-lo pegado e enfiado no rio. O Tâmisa não é muito mais limpo do qu
e o pântano que havíamos atravessado. Mesmo assim, lavou o grude pior. Após um minuto
de vigorosa lavagem, deixei-o ficar de pé, água vertendo-lhe das narinas. Ele fez um
som gorgolejante, difícil de identificar. Eu fora xingado, no entanto.
De novo? Você é insistente.
Mais uma boa enxaguada o fez parecer novo em folha. Aprumei-o de pé nas sombras de
um talude de concreto e sequei suas roupas com o uso discreto de uma Chama. Est
ranhamente, seu humor não havia melhorado como o fedor, mas não se pode ter tudo.
Com isso resolvido, fomos em frente e chegamos à estação ferroviária a tempo de pegar o
primeiro trem matinal para o sul. Roubei duas passagens do quiosque e, enquanto
diversos funcionários se ocupavam revistando as plataformas em busca de uma minist
ra anglicana de rosto vermelho e modos respeitáveis, recostei-me em meu banco just
o quando o trem começava a andar. Nathaniel sentou-se em uma parte diferente do va
gão muito ostensivamente, achei. Seu ajeito improvisado ainda parecia amargurá-lo.
A primeira parte da viagem, saindo da cidade, foi assim a meia hora mais sossega
da e menos problemática que passei desde a primeira vez que ele me invocara. O tre
m arrastou-se em um ritmo artrítico através dos intermináveis arredores de Londres, um
a confusa e deprimente vastidão de tijolos que parecia morena largada pela passage
m de uma geleira gigantesca. Passamos por uma sucessão de fábricas em ruínas e usinas
de cimento abandonadas; para além delas estendiam-se estreitas ruas com terraços, co
m fumaça de chaminé subindo ao céu aqui e ali. Certa vez, bem alto contra a nebulosida
de luminosa e descolorida que encobria o Sol, vi uma tropa de djins rumando para
oeste. Mesmo àquela distância, era possível perceber a luz cintilando em suas placas
peitorais.
Poucas pessoas tomaram ou saltaram do trem. Relaxei, djins não tiram sonecas, mas
fiz o equivalente disso, vagando de volta nos séculos e meditando em alguns dos me
us momentos mais felizes erros de magos, meus atos de vingança preferidos...
Esse devaneio foi finalmente interrompido pelo garoto, deixando-se cair no banco
da frente.
Creio que seria melhor planejarmos alguma coisa disse ele amuadamente. Como pode
mos passar pelas defesas?
Com cúpulas que se movem aleatoriamente e sentinelas a postos disse eu , não há meio de
entrar sem sermos molestados. Vamos precisar de algum tipo de Cavalo de Tróia. El
e fez uma cara inexpressiva. Você sabe, alguma coisa que pareça inocente e que eles
permitam passar pelos portões. Na qual estaremos escondidos. Honestamente, o que e
les ensinam a vocês magos hoje em dia?70
Então precisamos nos esconder em alguma coisa grunhiu. Alguma idéia?
Neca.
De cenho fechado, ele ficou matutando. Dava quase para ouvir as entranhas polpud
as seu cérebro fazendo força.
Os convivas chegarão amanhã refletiu. Terão de deixar que eles entrem, então deverá hav
um fluxo contínuo de tráfego passando pelos portões. Talvez possamos pegar uma carona
no carro de alguém.
Talvez disse eu. Mas todos os magos estarão cobertos até o pescoço com Escudos Proteto
res e diabretes de olhos saltados. Íamos ter grande dificuldade para chegarmos sor
rateiramente a algum lugar perto deles sem sermos percebidos.
E quanto a empregados? disse ele. Esses devem entrar de algum modo.
Honra seja feita... até que ele teve uma idéia.
A maioria deles já estará lá disse eu , mas tem razão, alguns podem chegar no di
deverá haver entregas de novos alimentos, e talvez cheguem artistas para diversão,
músicos ou jograis...
Ele fez um ar de zombaria.
Jograis?
Quem aqui tem mais experiência de magos, você ou eu? Sempre há jograis.71 Mas a que
que haverá estranhos não magos entrando no solar. Então, se nos pusermos em posição cedo o
suficiente, podemos muito bem ter a chance de descolar uma carona com alguém. Val
e a pena tentar. Agora... nesse meio tempo você devia dormir. Temos uma longa cami
nhada pela frente, depois que chegarmos à estação.
Seus cílios pareciam feitos de chumbo. Ao menos dessa vez, ele não discutiu.
Já vi geleiras cobrirem terreno mais depressa do que aquele trem, então, no final, e
le conseguiu uma soneca bem decente. Mas chegamos à estação mais próxima de Heddleham Ha
ll. Sacudi meu amo para que despertasse e descemos trôpegos em uma plataforma que
estava sendo rapidamente tomada pelas forças da natureza. Diversas variedades de m
ato cresciam saindo do concreto, enquanto uma empreendedora trepadeira daninha c
olonizava as paredes e o teto do salão de espera caindo aos pedaços. Pássaros haviam f
eito ninhos sob as luminárias enferrujadas. Não havia bilheteria e nenhum sinal de v
ida humana.
O trem saiu vacilante, como se estivesse indo morrer sob uma cerca. Do outro lad
o dos trilhos, um portão branco dava direto para uma rua não pavimentada. Campos est
endiam-se para todos os lados. Reanimei-me: era agradável estar livre das garras m
alignas da cidade e cercado pelos contornos naturais de árvores e lavouras.72
Seguimos pela rua disse eu. O hall fica a pelo menos uns quatorze quilômetros d
i, portanto não precisamos ficar em guarda ainda. Eu... Qual é o problema agora?
O garoto parecia pálido e perturbado.
Não é nada. E só... que não estou acostumado a tanto... espaço. Não vejo casa algum
Nenhuma casa é bom. Significa ninguém. Nenhum mago.
Isso faz com que eu me sinta estranho. É tão parado.
Fazia sentido. Até agora ele nunca tinha saído da cidade. Provavelmente nunca estive
ra sequer em um grande parque. O vazio o aterrorizava. Atravessei a linha e abri
o portão.
Há uma aldeia depois dessas árvores. Lá você pode conseguir comida e aconchegar-se
a algumas construções.
Meu amo levou algum tempo para perder o nervosismo. Era quase como se ele espera
sse que os campos vazios e os arbustos de inverno se erguessem como inimigos e c
aíssem em cima dele, e sua cabeça se virava constantemente contra ataques de surpres
a. Ele estremecia a cada canto de pássaro.
Inversamente, fiquei relaxado durante essa primeira parte da viagem, precisament
e porque o campo parecia totalmente deserto. Não havia atividade mágica de qualquer
espécie, mesmo nos céus distantes.
Quando chegamos à aldeia, atacamos seu solitário armazém e pegamos mantimentos suficie
ntes para manter o estômago do garoto contente pelo resto do dia. Era um lugar bem
miúdo, uns poucos chalés amontoados em torno de uma igreja arruinada, nem de perto
grande o suficiente para ter seu próprio mago residente. Os poucos humanos que vim
os andavam por lá tranqüilamente, sem ao menos um diabrete a tiracolo. Meu amo demon
strou muito desdém por eles.
Não se dão conta de como estão vulneráveis? disse, com uma fungada, quando passam
último chalé. Eles não têm defesas. Qualquer ataque mágico os vitimaria.
Talvez isso não esteja no alto da lista de prioridades deles sugeri. Há outras coisa
s com que se preocupar: ganhar a vida, por exemplo. Não que lhe tenham ensinado al
guma coisa sobre isso.73
Oh, não? disse ele. Ser mago é a mais extraordinária vocação. Nossas habilidades e noss
sacrifícios mantêm o país coeso, e esses tolos deviam dar graças a Deus por existirmos.
Graças a Deus por gente como Lovelace, é o que quer dizer? A isto ele franziu o cen
o, mas não respondeu.
Eram meados da tarde, antes de entrarmos em perigo. O primeiro sinal que meu amo
teve disso foi eu me atirando sobre ele e nos fazendo rolar juntos para dentro
de uma vala rasa à margem da rua. Mantive-o bem apertado contra a terra, um pouco
mais firme do que o necessário.
Ele estava com a boca cheia de lama.
Que está fazendo?
Fale baixo. Há uma patrulha voando sobre nós. Norte-sul.
Apontei para uma brecha na barreira. Um pequeno bando de estorninhos podia ser v
isto ao longe, voando através das nuvens. Ele esvaziou a boca com uma cuspida.
Não consigo enxergá-los.
Do quinto plano em diante, são trasgos.74 Confie em mim. Daqui para frente temos d
e prosseguir com cuidado.
Os estorninhos desapareceram para o sul. Com cautela, pus-me de pé e examinei o ho
rizonte. Um pouco adiante, um monte de árvores dispersas marcava o início de uma área
de bosque.
Melhor sairmos da estrada disse eu. É muito exposto aqui. Depois que a noite ca
podemos chegar mais perto da casa.
Com infinita cautela, nos esprememos através de um buraco na sebe e, após contornar
o perímetro do campo do outro lado, ganhamos a relativa segurança das árvores. Nada am
eaçava em nenhum plano.
O bosque foi ultrapassado sem incidentes; logo depois nos agachamos em sua extre
midade, supervisionando o terreno à frente. Diante de nós o chão fazia uma descida sua
ve e tínhamos uma nítida visão sobre os campos outonais, intensamente arados e de um c
astanho-arroxeado.
A cerca de dois quilômetros de distância, os campos esbarravam em um velho muro divi
sório, de tijolos, muito desgastado e esboroado. Isso e um amontoado baixo e escur
o de pinheiros por trás, marcavam a margem da propriedade Heddleham. Uma cúpula verm
elha era visível (no quinto plano) elevando-se a partir dos pinheiros. Enquanto eu
olhava, ela desapareceu; um momento em seguida uma outra cúpula, azulada, tomou f
orma no sexto plano, um tanto mais afastada.
Recurvado dentro das árvores havia a sugestão de um alto arco talvez a entrada ofici
al para o terreno da mansão. Desse arco estendia-se um caminho, direto como um tir
o de lança atravessando os campos, até chegar a uma encruzilhada ao lado de um aglom
erado de carvalhos, a uns oitocentos metros de onde estávamos. O caminho que recen
temente vínhamos seguindo também terminara nessa encruzilhada. Dois outros caminhos
levavam dela para alguma outra parte.
O sol não havia exatamente desaparecido atrás das árvores e o menino apertou os olhos
contra o seu clarão.
Aquilo é uma sentinela? Ele apontou para um cotoco distante, a meio caminho da enc
ruzilhada. Alguma coisa indefinida estava sobre ele: talvez uma figura negra, imóv
el.
Sim disse eu. Uma outra acaba de ganhar forma na margem daquele campo triangular
.
Oh! A primeira sumiu.
Eu lhe disse, estão se materializando aleatoriamente. Não podemos prever onde aparec
erão. Vê aquela cúpula?
Não.
Suas lentes são piores do que inúteis. O garoto imprecou.
O que espera? Não tenho a sua visão, demônio. Onde está ela?
Linguagem grosseira não vai levá-lo a parte alguma. Não vou lhe dizer.
Não seja ridículo! Preciso saber.
Este demônio não vai dizer.
Onde ela está?
Cuidado quando bater o pé. Pisou em alguma coisa.
Basta me dizer!
Eu pretendia falar sobre isso há algum tempo. Não gosto que me chamem de demônio. Ente
ndeu?
Ele respirou fundo.
Ótimo.
Só para seu conhecimento.
Está certo.
Sou um djim.
Sim, está certo.Onde está a tal abóbada?
Está no bosque. No sexto plano agora, mas logo vai mudar de posição.
Eles tornaram a coisa difícil para nós.
Sim. E isso que as defesas fazem.
Seu rosto estava cinzento de cansaço, mas ainda firme e determinado.
Bem, o objetivo é claro. O portão é para marcar a entrada oficial da propriedade, a únic
a abertura nas abóbadas protetoras. É onde eles vão conferir as identidades e os passe
s das pessoas. Se conseguirmos passar por ele, teremos entrado.
Prontos para sermos enfiados no espeto e mortos disse eu. Hurrah.
A questão continuou ele , é como entraremos...
Ele ficou um longo tempo sentado, fazendo sombra para os olhos com a mão, observan
do enquanto o Sol afundava atrás das árvores e os campos se envolviam em fria sombra
verde. À intervalos irregulares, sentinelas iam e vinham sem deixar vestígio (estávam
os muito distantes para sentir o cheiro do enxofre).
Um som distante chamou nossa atenção de volta para os caminhos. Ao longo daquele que
levava até o horizonte, algo que a uma milha de distância parecia uma caixa de fósfor
os negra vinha roncando: o carro de um mago, correndo entre as sebes, tocando im
periosamente sua buzina a cada esquina. Chegou à encruzilhada; reduziu até parar e c
om segurança de que nada vinha dobrou à direita ao longo da estrada para Heddleham.
Ao aproximar-se do portão, duas sentinelas lançaram-se em direção a ele em grande veloci
dade através dos campos agora escuros, suas capas adejando às suas costas como trapo
s e farrapos. Chegados às sebes que bordejavam a estrada, não se aproximaram mais, a
ntes seguiram a passo ao lado do carro, que nesse momento aproximava-se do portão
de entrada nas árvores. As sombras aí eram muito espessas, e ficava difícil avistar o
que acontecia. O carro estacionou na frente do portão. Algo se aproximou dele. As
sentinelas recuaram até a beira das árvores. O carro seguiu seu caminho, atravessou
o arco e sumiu de vista. O ronco do motor foi morrendo no ar do anoitecer.
As sentinelas voltaram rapidamente para os campos.
O garoto recostou-se e esticou os braços.
Bem disse , isso nos diz o que precisamos fazer.
35
A encruzilhada era o lugar para a emboscada. Quaisquer veículos aproximando-se del
a tinham de reduzir a velocidade, por medo de acidentes, e ela ficava escondida
do distante portão de Heddleham por um espesso amontoado de carvalhos e loureiros.
Isso também prometia boa cobertura para se ficar à espreita.
Conseqüentemente, seguimos para lá naquela noite. O menino arrastou-se ao longo da b
ase das sebes à beira da estrada. Fui mais rápido na frente dele, transformando em u
m morcego.
Nenhuma sentinela tomou forma ao nosso lado. Nem vigias voaram sobre nossas cabeça
s. O menino chegou à encruzilhada e enfiou-se sob as moitas embaixo do carvalho ma
ior. Quanto a mim, fiquei pendurado em um galho, de vigia.
Meu amo dormiu, ou tentou dormir. Eu observava os ritos da noite: os movimentos
fugazes de coruja e roedor, a agitação de ouriços procurando comida, a vigilância do inq
uieto djim. Nas horas antes do amanhecer, a cobertura de nuvens passou e as estr
elas brilharam. Fiquei imaginando se Lovelace estaria lendo seu significado no t
elhado do hall, e o que as estrelas lhe diziam. A noite esfriou. Geada cintilou
através dos campos.
Imediatamente bateu-me a idéia de que meu amo estaria sofrendo muito com o frio.
Uma hora agradável se passou. Então ocorreu-me outra idéia. Ele podia efetivamente mor
rer de frio em seu esconderijo. Isso não seria nada bom: eu nunca escaparia da lat
a. Relutantemente entrei em espiral pelos arbustos e fui em busca dele.
Para meu alívio, ele ainda estava vivo, embora com o rosto meio azulado. Estava to
do encolhido dentro de seu casaco, sob uma pilha de folhas, que farfalhavam sem
parar por causa da sua tremedeira.
Quer um pouco de calor? sussurrei.
Sua cabeça moveu-se um pouco. Era difícil dizer se foi um tremor ou uma sacudida.
Não?
Não.
Por quê?
Seu queixo estava tão apertado que mal conseguiu se soltar para falar.
Poderia chamar a atenção deles para nós.
Tem certeza de que não é orgulho? Não querer ajuda de um demônio nojento? É melhor
r cuidado com todo esse gelo por aí, pedaços podem se soltar de você. Já vi acontecer.75
D-deixe-me.
Como quiser.
Voltei para minha árvore. Um pouco depois, quando o céu no oriente começou a se ilumin
ar, eu o ouvi espirrar, mas ele, de resto, permaneceu teimosamente em silêncio, tr
ancado em seu auto-infligido desconforto.
Com a chegada do amanhecer, ficar pendurado como morcego tornou-se uma ocupação meno
s convincente. Enfiei-me sob as moitas e me transformei em um rato do campo. O g
aroto estava onde eu o havia deixado, duro como uma tábua e com o nariz escorrendo
. Encarapitei-me em um galho próximo.
Que tal um lenço, ó meu amo? disse eu.
Com alguma dificuldade, ele ergueu um braço e limpou o nariz na manga. Fungou.
Ainda há alguma coisa?
Ainda tem um pouquinho embaixo da narina esquerda. No mais, está limpo.
Eu queria dizer na estrada.
Não. Cedo demais. Se lhe resta algum alimento, deveria comê-lo agora. Precisamos est
ar com tudo em cima quando o primeiro carro aparecer.
Acabou que não precisávamos ter nos apressado. Todas as quatro estradas permaneceram
quietas e silenciosas. O garoto comeu o final de sua comida e então ficou agachad
o sobre a grama empapada, sob uma moita, de olho em um dos caminhos. Ele parecia
ter pegado um pouco de friagem e tremia incontrolavelmente dentro do casaco. Eu
corria para lá e para cá sempre de olho vivo para qualquer encrenca, mas finalmente
voltei para o lado dele.
Lembre-se disse , não se deve ver o carro parado por mais do que alguns segundos ou
uma das sentinelas pode farejar tramóia. Temos de subir a bordo dele assim que ch
egar à encruzilhada. Terá de ser rápido.
Estarei preparado.
Quero dizer realmente rápido.
Estarei preparado, já disse.
Sim. Bem. Já vi lesmas percorrerem distâncias mais depressa do que você. E arranjou de
ficar doente ao recusar minha ajuda na noite passada.
Não estou doente.
Lamento, mas essa não dá pra engolir. Você batia os dentes tão alto.
Vou ficar ótimo. Agora deixe-me em paz.
Esse seu resfriado pode nos atrapalhar bastante, se entrarmos na casa. Lovelace
poderia seguir o rastro da cori... Ouça!
O quê?
Um carro! Vindo de detrás de nós. Perfeito. Ele vai reduzir bem aqui. Espere pela mi
nha ordem.
Corri em meio à grama alta até o outro lado do arvoredo e esperei, atrás de uma pedra
enorme no talude de terra acima da estrada, o ruído do veículo chegando aumentar. Ex
aminei o céu. Não se via nenhum vigia, e as árvores escondiam a estrada para quem esta
va na casa. Preparei-me para pular...
E agachei-me atrás da pedra. Não estava bom. Uma limusine preta lustrosa: carro de m
ago. Era arriscado demais tentar. Ela passou disparada em uma nuvem agitada de p
oeira e cascalho, toda freios guinchando e capo reluzindo. Tive um vislumbre de
seu ocupante: um homem que eu não conhecia, lábios largos, pálido, com o cabelo puxado
para trás. Não havia sinal de um diabrete ou outro guardião, mas isso não queria dizer
nada. Não fazia sentido emboscar um mago.
Voltei para o garoto, ainda imóvel sob o arbusto.
Não dá disse eu. Mago.
Eu tenho olhos. Ele fungou, fazendo a maior sujeira. Eu o conheço também. Aquele é Lim
e, um dos chapinhas de Lovelace. Não sei por que ele está na trama, pois não é muito pod
eroso. Certa vez eu o piquei com alguns miúdos. Inchou feito um balão.
Foi mesmo? Confesso que fiquei impressionado. O que aconteceu?
Ele deu de ombros.
Eles me bateram. Isso é alguém chegando?
Apareceu uma bicicleta fazendo a curva à nossa frente. Montava-a um homem baixinho
, gordo, as pernas girando com um zumbido como se fossem pás de helicóptero. Sobre a
roda da frente da bicicleta havia uma cesta enorme, coberta por um pano branco
com um peso em cima.
Açougueiro disse eu.
O garoto deu de ombros.
Talvez. Vamos pegá-lo?
Dá para você usar as roupas dele?
Não.
Então deixa passar. Há outras opções.
O rosto vermelho e transpirando à vontade, o ciclista chegou à encruzilhada, parou c
om uma derrapada, limpou a testa com as costas da mão e prosseguiu em direção ao hall.
Ficamos olhando-o seguir, os olhos do garoto principalmente na cesta.
Devíamos tê-lo pegado disse ele, pensativo. Estou faminto.
O tempo passou, e o açougueiro ciclista voltou. Pedalava assobiando, para alegrar
a viagem. Sua cesta agora estava vazia, mas sua carteira sem dúvida tinha sido bem
recheada. Depois da sebe, uma das sentinelas seguiu em seu rastro com grandes c
ambalhotas, seu corpo e sua capa esfarrapada quase translúcidos à luz do sol.
O açougueiro distanciou-se só nas rodas, sem segurar o guidão. O garoto conteve um esp
irro. A sentinela também foi se afastando. Arranquei um talo espinhento que percor
ria o arbusto e dei uma olhada para o alto. O céu estava limpo, o sol de inverno b
anhava os campos com um calor fora de estação. As estradas estavam vazias.
Mais duas vezes, durante a hora seguinte, veículos chegaram à encruzilhada. O primei
ro foi a van do florista, dirigido por uma mulher desleixada, fumando um cigarro
. Eu estava para saltar sobre ela quando, com o canto de meu olho de rato, avist
ei um trio de melros sentinelas navegando descansadamente sobre o arvoredo, a ba
ixa altitude. Seus olhinhos redondos lampejavam para lá e para cá. Nada feito: eles
veriam tudo. Escondi-me e deixei a mulher seguir com o carro.
Os melros foram embora, mas o próximo passante não foi melhor: um carro de mago, a c
apota levantada, desta vez vindo da direção do hall. O rosto do motorista estava qua
se todo obscurecido sob um quepe e um par de óculos de piloto: só captei um lampejo
de barba avermelhada, bem-aparada e certa, quando ele passou disparado.
Esse quem é? perguntei. Mais um cúmplice?
Nunca o vi. Talvez seja o que chegou de carro ontem à noite.
Esse não está esquentando lugar aqui, seja lá quem for.
A frustração do garoto o estava dominando. Ele bateu com o punho na relva.
Se não entrarmos logo, todos os demais convidados vão começar a chegar. Precisamos
tempo lá dentro para descobrir o que está rolando. Ahh! Se ao menos eu tivesse mais
poder!
O eterno clamor de todos os magos disse eu, entediado. Tenha paciência.
Ele me lançou um olhar selvagem.
É preciso tempo para ter paciência rosnou ele. Nós não temos tempo.
Mas na verdade foram só vinte minutos depois que tivemos a nossa chance.
Mais uma vez o som de um carro; atravessei de novo até o outro lado do arvoredo e
dei uma olhada do alto do talude. Assim que o fiz, entendi que chegara a hora. E
ra a van verde-escura da mercearia, alta e com os ângulos do baú quadrados, com eleg
antes pára-lamas pretos, e um aspecto de recém-lavada. Na lateral, em letras pretas
e presunçosas, estavam pintadas as palavras: SQUALLS E FILHO, MERCEARIA DE CROYDON
, COMESTÍVEIS SABOROSOS PARA O SOÇAITE e, para o meu grande prazer, parecia que Squa
lls e Filho em pessoa estavam sentados na cabine. Um homem idoso e careca estava
ao volante. A seu lado um jovem animadinho, usando um boné verde. Ambos pareciam
ansiosos e bem-arrumados para o seu grande dia; a cabeça do velho parecia ter sido
lustrada até brilhar.
O rato do campo flexionou os músculos atrás da sua pedra de emboscada.
A van aproximou-se, o motor chocalhando e roncando sob o capô. Examinei o céu nenhum
melro ou outros perigos. Tudo livre.
A van passou pela lateral do arvoredo, fora da visão do distante portão de entrada d
e Heddleham.
Tanto Squalls quanto Filho haviam abaixado o vidro das janelas para tomar o ar f
resco. Filho cantarolava uma feliz melodia.
Passando a meio caminho do arvoredo, Filho captou um ligeiro ruído farfalhante, vi
ndo de fora da cabine. Olhou à direita.
E viu um rato do campo atravessar o ar silvando em posição de ataque de caratê, as gar
ras de fora, as pernas traseiras à frente direto para cima dele.
O rato atravessou em linha reta a janela aberta. Nem Squalls nem Filho tiveram t
empo de reagir. Houve um torvelinho de movimentos inexplicáveis dentro da cabine;
ela sacudiu violentamente para um lado e para o outro. A van deu uma suave guina
da e subiu sobre o talude de terra na margem da estrada, onde derrapou e escorre
gou. O motor ficou fraco e apagou de vez.
Um momento de silêncio. A porta do passageiro se abriu. Um homem muito parecido co
m Squalls saltou, enfiou o braço lá para dentro e puxou para fora os corpos inconsci
entes de Squalls e Filho. Filho havia perdido a maior parte de suas roupas.
Foi questão de um momento atravessar a estrada arrastando a dupla, subir o talude
e entrar nas profundezas do arvoredo. Eu os escondi lá, sob uma moita de amoreiras
e voltei para a van.76
Essa foi a pior parte para mim. Djins e veículos simplesmente não se misturam; é uma s
ensação estranha estar preso em uma mortalha de lata, cercado pelos cheiros de gasol
ina, óleo e couro artificial, pelo fedor de pessoas e suas criações. Isso lembra da se
nsação de fraqueza e inferioridade que deve dar o fato de ser um humano, precisando
de mecanismos tão decrépitos para longas locomoções.
Além disso, eu realmente não sabia dirigir.77
Não obstante, dei a partida no motor e consegui dar uma ré do talude para o meio da
estrada. E daí em diante até a encruzilhada. Isso tudo mal levou um minuto, mas admi
to que eu estava ansioso: uma sentinela alerta podia muito bem se perguntar por
que a van estava demorando tanto a ultrapassar as árvores. Na encruzilhada eu redu
zi, dei uma olhada rápida em torno e me inclinei para a janela do passageiro.
Depressa! Entre!
Uma moita próxima farfalhou veementemente, houve um puxão na maçaneta da porta e o gar
oto entrou, respirando como um elefante cansado. A porta se fechou com uma panca
da; um instante em seguida, estávamos a caminho, virando à direita e pegando a estra
da para Heddleham.
E mesmo você? disse ele arfando e olhando firme para mim.
É claro. Agora troque de roupa o mais rápido que puder. As sentinelas estarão em ci
de nós em instantes.
Ele se remexeu no banco, arrancando o casacão e pegando a camisa, o paletó e as calças
verdes do Filho, que estavam largados.
Que roupa alinhada aquilo era cinco minutos atrás; agora estava tudo amarrotado.
Depressa! Elas estão chegando.
Atravessando os campos, vindo de ambos os lados, as sentinelas se aproximavam, p
ulando e saltitando, os trapos pretos adejando. O garoto estava atrapalhado com
a camisa.
Os botões são tão apertados! Não consigo soltá-los!
Tire pela cabeça!
A sentinela à minha esquerda era a que se aproximava mais rápido. Podia ver seus olh
os dois ovais negros com salpicos de luz no centro. Tentei acelerar, apertei o p
edal errado; a van deu uma forte sacudida para a frente e quase parou. Nesse mom
ento a cabeça do garoto estava quase saindo pelo colarinho da camisa. Ele foi para
a frente, batendo no painel.
Opa! Fez isso de propósito?
Apertei o pedal certo. Aceleramos mais uma vez.
Ponha o paletó ou estaremos fritos. E o boné.
E as calças?
Esqueça. Não há tempo.
O garoto já estava com o paletó e acabara de enfiar o boné na cabeça descabelada quando
as duas sentinelas chegaram ao seu lado.
Eles ficaram do outro lado das sebes, examinando-nos com seus olhos cintilantes.
Lembre-se, nós não devíamos poder vê-los disse eu. Fique olhando direto para a frente.
Estou olhando. Um pensamento lhe ocorreu. Eles não vão perceber o que você é?
Não têm poder para isso. Eu esperava ardentemente que isso fosse verdade. Achava que
eram papa-defuntos,78 mas hoje em dia nunca se sabe.79
Por algum tempo rodamos pela estrada, em direção ao grupo de árvores. Nós dois olhávamos d
ireto para a frente. As sentinelas acompanhavam a lateral da van.
Nesse momento o garoto voltou a falar:
O que vou fazer a respeito das calças?
Nada. Vai ter de ficar como está. Logo estaremos no portão. Sua metade superior está b
em-alinhada, aliás.
Mas...
Alise o paletó, livre-se de qualquer amassão que consiga ver. Vai ter de servir. Cer
to, eu sou Squalls e você é meu filho. Estamos entregando comestíveis frescos em Heddl
eham Hall para o dia da reunião. O que me lembra que é melhor conferirmos o que esta
mos realmente trazendo. Pode ir dar uma olhada?
Mas...
Não se preocupe, não há nada estranho em você ficar olhando dentro do baú. Aqui entre nós
a parede de trás da cabine havia umaportinhola de metal. Fiz um gesto, apontando p
ara ela. Dê uma olhada rápida. Eu olharia, mas estou dirigindo.
Muito bem. Ele ajoelhou-se no banco e, abrindo a portinhola, enfiou a cabeça por e
la. Está bastante escuro... tem um monte de troços aqui...
Consegue distinguir alguma coisa? Dei uma olhada para ele e quase perdi o contro
le do volante. A van derrapou violentamente em direção à sebe; ajeitei-a bem a tempo.
Suas calças! Volte a sentar-se! Onde estão as suas calças?
Ele sentou-se de novo. A visão à minha esquerda melhorou decididamente.
Eu tirei as minhas, não tirei? Você me disse para não vestir as novas
Não percebi que você se desfez das outras! Vista-as.
Mas a sentinela verá...
A sentinela já viu, acredite em mim. Basta vesti-las.
Enquanto ele se atrapalhava com os sapatos contra o painel, sacudi minha cabeça lu
strosa.
Vamos ter de torcer para que papa-defuntos não sejam espertos demais no que diz re
speito à etiqueta do vestuário humano. Talvez eles achem normal você estar trocando de
roupa agora. Mas os guardas no portão serão mais perspicazes, pode ter certeza diss
o.
Estávamos quase nos limites da propriedade. Arvores cobriam a visão através do pára-bris
a. A estrada à frente penetrava por elas em curva, de uma forma bem sossegada; qua
se imediatamente o grande arco ficou à vista. Construído com blocos maciços de arenito
amarelado, erguia-se dos arbustos na margem da estrada com a mesma portentosa s
olidez de cem mil arcos semelhantes em todo o mundo.80 Qual fidalgote em particu
lar havia pago para se fazer este, e por que o fizera, duvido que alguém soubesse.
Os rostos das cariátides que sustentavam o telhado haviam se desgastado, os detal
hes das inscrições igualmente. A trepadeira que subia agarrada a tudo acabaria por d
estruir a estrutura de pedra também.
Acima e em torno do arco, a cúpula vermelha elevava-se no céu e se expandia pelos bo
sques. Somente passando pelo arco o caminho estava livre.
Nossas sentinelas acompanhantes olhavam para a frente vigilantes.
A alguns metros do arco, reduzi a velocidade da van até ela parar, mas deixei o mo
tor ligado. Ele zumbia suavemente. Ficamos sentados na cabine, esperando.
Uma porta de madeira abriu-se em um lado do arco e por ela saiu um homem. A meu
lado, o garoto teve um leve estremecimento. Olhei para ele. Pálido como era, ficar
a mais pálido ainda. Seus olhos estavam redondos como pratos de jantar.
O que foi? silvei.
É ele... o sujeito que eu vi no disco, o tal que trouxe o amuleto para Lovelace.
Não havia tempo para responder, nem tempo para agir. Caminhando casualmente, e com
um sorrisinho, o assassino aproximou-se da van.
36
Aqui estava ele o homem que havia roubado o Amuleto de Samarkand e desaparecido
sem deixar vestígio, o homem que havia cortado a garganta do guardador do amuleto,
deixando-o jazendo sobre seu próprio sangue. O capanga mercenário de Lovelace.
Para um humano, ele era de tamanho considerável, uma cabeça mais alta do que a maior
ia dos homens, e forte, ainda por cima. Usava uma jaqueta comprida de botões, de t
ecido escuro e calças amplas, no estilo oriental, frouxamente enfiadas em botas de
couro, de cano alto. Sua barba era negro-azeviche, o nariz largo, os olhos de u
m azul penetrante sob um cenho carregado. Movia-se com graça elegante para um home
m grandão, uma das mãos balançando frouxa ao lado do corpo, a outra enfiada no cinto.
O mercenário deu a volta ao capo, em direção a minha janela, os olhos o tempo todo em
nós. Ao se aproximar, afastou o olhar e fez um aceno de dispensa; vislumbrei nosso
s papa-defuntos acompanhantes desaparecerem recuando para os campos.
Enfiei a cabeça só um pouco para fora da janela.
Bom dia disse eu animadamente, no que esperava fosse um adequado sotaque londrin
o. Ernest Squalls e Filho, com uma entrega de alimentos para o hall.
O homem parou e nos avaliou silenciosamente por um momento.
Squalls e Filho...
A voz era lenta, grave; os oinos azuis pareciam me atravessar enquanto ele falav
a. Era um efeito desconcertante; à meu lado o garoto deu uma involuntária engolida e
m seco; esperava que ele não fosse entrar em pânico.
Squalls e Filho... Sim, vocês são esperados.
Sim, chefia.
O que trouxeram?
Alimentos, chefia.
A saber?
Umm... Eu não fazia idéia. Todos os tipos, chefia. Gostaria de inspecioná-los?
Uma lista será suficiente. Droga.
Muito bem, chefia. Umm, nós temos caixas, temos latas... montes de latas, senhor..
. pacotes de coisas, garrafas...
Os olhos se estreitaram.
Você não está sendo muito específico.
Uma voz aguda soou por trás de mim. Nathaniel inclinou-se para a minha janela.
Ele não trouxe a lista, senhor, eu trouxe. Temos caviar do Báltico, ovos de pavonci
o, aspargos frescos, salame bolonhês curado, azeitonas, vagens de baunilha da Améric
a Central, pasta fresca, línguas de cotovia em galantina, caramujos gigantes marin
ados nas próprias conchas, tubos de pimenta-do-reino e sal grosso recém-moídos, ostras
de Wirral, carne de avestruz...
O mercenário ergueu a mão.
Basta. Agora quero examiná-los.
Sim, chefia.
Taciturno, desci da cabine e fui até a traseira da van, desejando ardorosamente qu
e o garoto não houvesse se deixado levar demais pela imaginação. O que aconteceria qua
ndo se revelassem produtos completamente outros, eu não queria nem pensar. Mas ago
ra não havia o que fazer. Com o capanga assomando impassível ao meu lado, destranque
i a traseira e abri-a alguns centímetros.
Ele examinou o interior por uns momentos.
Muito bem. Podem continuar até a casa.
Quase sem conseguir acreditar, dei uma espiada no conteúdo da van. Um caixote de v
idros no canto atraiu meu olhar: azeitonas sírias. Meioescondida atrás delas, uma pe
quena caixa de línguas de cotovia, folhas de pasta embrulhadas em camadas... Feche
i a porta e voltei à cabine.
Alguma orientação para nós, chefia?
O homem pousou a mão na beirada de minha janela aberta: o dorso da mão era todo risc
ado de cicatrizes brancas finas.
Siga o caminho até que ele se divida, pegue a bifurcação da direita até os fundos da cas
a. Alguém lá os receberá. Façam o seu negócio e voltem. Antes de irem, vou lhes dar um avi
so: estão entrando agora em propriedade particular de um grande mago. Não se percam,
nem invadam, se dão valor às suas vidas. As penalidades são severas e lhes gelariam o
sangue.
Sim, chefia.
Com um assentimento de cabeça, ele recuou um passo e nos fez sinal para passarmos.
Liguei o motor e passamos lentamente sob o arco. Logo em seguida atravessamos s
ob as abóbadas de proteção; ambas fizeram minha essência formigar. Então conseguimos entra
r e seguimos uma pista de areia, que passava sinuosa entre as árvores.
Olhei para o garoto. Seu rosto estava impassível, mas uma solitária gota de suor lhe
escorreu da têmpora.
Como sabia todos os artigos? perguntei. Você só teve uns dois segundos para olh
trás.
Ele deu um sorriso apertado.
Eu sou treinado. Leio depressa e gravo na memória com precisão. Então, o que achou del
e?
O assassinozinho de Lovelace? Curioso. Não é um djim e não creio que é mago, tampouco; e
le não tem exatamente o cheiro de corrupção de vocês.81 Mas sabemos que foi capaz de peg
ar o amuleto, portanto deve teralgum poder... E ele transmite grande confiança. No
tou como os papa-defuntos obedeciam a ele? O garoto coçou a testa.
Se não é mago nem demônio, que tipo de poder ele teria?
Não se engane disse eu sombriamente , existem outros tipos. Eu estava pensando
arota da Resistência e seus companheiros.
Fui poupado de mais interrogatórios, quando o caminho do carro subitamente ficou r
eto e saímos do cinturão de árvores. E bem à nossa frente vimos Heddleham Hall.
O garoto teve um engasgo.
Não produziu exatamente o mesmo efeito em mim. Quando você ajudou na construção de vários
dos prédios mais majestosos do mundo e, em algumas instâncias, deu dicas bastante útei
s aos arquitetos envolvidos,82 uma mansão vitoriana de segunda classe no estilo góti
co não o faz exatamente vibrar. Vocês sabem que tipo de coisa é: montes de detalhes re
curvos e torrinhas.83 Era cercado por uma grande extensão de gramado, no qual esta
vam decorativamente espalhados pavões e pequenos cangurus.84 Dois toldos listrados
haviam sido armados na grama, para os quais diversos criados já estavam carregand
o bandejas de garrafas e copos de vinho. Vindo do terraço, na frente da casa havia
um teixo antigo e maciço; sob seus galhos espalhados, o caminho do carro se divid
ia. A bifurcação da esquerda fazia elegantemente um giro na frente da casa; a da dir
eita contornava humildemente em direção aos fundos. Seguindo nossas ordens, tomamos
o caminho dos comerciantes.
Meu amo ainda estava absorvendo a vista toda, com um olhar voluptuoso.
Esqueça esses seus devaneios patéticos disse eu. Se quiser acabar com uma desta
i ter primeiro de sobreviver ao dia de hoje. Agora que estamos dentro, temos de
formular nosso plano. Qual é ele exatamente?
Em um instante o garoto estava novamente concentrado.
Pelo que pudemos saber de Lovelace disse ele, imaginamos que ele vai atacar os m
inistros de alguma maneira, mas não sabemos como. Acontecerá uma vez que tenham cheg
ado, quando estiverem mais relaxados e desprevenidos. O amuleto é vital para a tra
móia dele, seja qual for.
Sim. Concordo. Dei um tapinha no volante Mas e quanto ao nosso plano?
Temos dois objetivos: achar o amuleto e descobrir que arapuca Lovelace está prepar
ando. Lovelace provavelmente estará com a amuleto em sua pessoa. De qualquer modo,
estará bem guardado. Seria útil localizá-lo, mas não devemos tirá-lo dele antes de terem
todos chegado. Temos de mostrar-lhes que ele o possui: provar que é um traidor. E
se pudermos revelar-lhes a arapuca também, tanto melhor. Teremos todas as provas d
e que precisamos.
Você faz parecer tão simples. Pensei em Faquarl, Jabor e todos os outros escravos qu
e Lovelace provavelmente teria à mão, e suspirei. Bem, primeiro temos de nos livrar
desta van e destes disfarces.
O caminho de automóveis chegava a um súbito final em uma área circular de cascalho nos
fundos da casa. A van do florista estava estacionada lá. Havia um grupo de portas
brancas duplas abertas ali perto com um homem de uniforme escuro parado do lado
de fora. Ele nos fez sinal para estacionarmos.
Tudo bem disse o garoto. Descarregamos a van e agarramos a primeira oportunidad
que tivermos. Espere por minhas ordens.
Ei, quando é que eu faço outra coisa além disso?
Consegui fazer a van parar derrapando a alguns milímetros dos arbustos ornamentais
e saltamos. O lacaio se aproximou.
Sr. Squalls?
Eu mesmo, chefia. Este aqui é... o meu filho.
Está atrasado. O cozinheiro está precisando dos seus artigos. Por favor, leve-os par
a a cozinha com a máxima rapidez.
Sim, chefia. Uma sensação inquieta percorreu minha essência e fez estremecer os cabelo
s de minha nuca. O cozinheiro... Não, não seria. Ele estaria em outra parte, com cer
teza. Abri a porta da van. Filho, seja rápido, ou vai sentir o peso da minha mão!
Tive um certo prazer sinistro em carregar o garoto com tantos vidros de azeitona
s sírias e de caramujos gigantes quanto pude, em seguida empurrando-o para seguir
seu caminho. Ele saiu trôpego sob sua carga, não muito diferente de Simpkin na loja
de Pinn.85 Escolhi um pequeno tubo de línguas de cotovia e o segui através da porta
por uma passagem fresca e caiada. Vários servos de todas as formas, sexos e tamanh
o se azafamavam como lebres assustadas, envolvidos em uma centena de tarefas; ha
via em toda parte grande estrépito e rebuliço. Pairava no ar um cheiro de pão no forno
e de carnes assando, vindo de um largo arco que levava à cozinha.
Dei uma olhada através do arco. Dúzias de auxiliares de cozinha usando roupas branca
s, picando, regando os assados, lavando e fatiando... Algo girava no espeto da l
areira. Sobre as mesas, altas pilhas de legumes, ao lado de caixas abertas de ma
ssas de confeitaria sendo enchidas com frutas glaçadas. Era um enxame de atividade
. Orquestrando tudo estava um chef principal, de considerável tamanho, que no mome
nto estava gritando com um menino que usava um uniforme azul.
O chef estava com as mangas enroladas. Ele tinha uma grossa atadura branca enfai
xando um braço.
Saltei para o sétimo plano.
E voltei me agachando, para não ser visto. Eu conhecia aqueles tentáculos bem demais
para haver alguma dúvida.
Meu amo havia entrado na cozinha e colocado sua carga precária sobre uma superfície
de trabalho próxima e voltava a sair, sem saber de nada. Quando ele ultrapassou a
porta, enfiei as línguas de cotovia na mão dele.
Leve isto aqui também silvei. Não posso entrar.
Por quê?
Leve, só isso.
Ele teve o bom senso de obedecer, e rápido, pois o criado do uniforme escuro reapa
recera no corredor e nos observava atentamente. Voltamos atrás, para buscar nova c
arga.
O cozinheiro chefe sussurrei, enquanto tirava uma caixa de patê de javali da tras
ira da van é o djim Faquarl. Não me pergunte por que ele gosta desse disfarce, que e
u não faço idéia. Mas não posso entrar. Ele me reconhecerá imediatamente.
Os olhos do garoto se estreitaram.
Como sei que está dizendo a verdade?
Vai ter de confiar em mim nessa. Pegue aí, você agüenta mais um saco de bifes de avest
ruz, não agüenta? Opa. Talvez não. Ajudei-o a pôr-se de pé. Eu descarrego a van, você l
s negócios lá para dentro. Nós dois pensamos no que fazer.
No decorrer de várias viagens de ida e volta do garoto, discutimos um plano de cam
panha. Foi preciso um volume razoável de discussão para chegarmos a um acordo. Ele q
ueria que nós dois nos esgueirássemos para além da cozinha, a fim de explorarmos a cas
a, mas eu estava extremamente relutante de ir a qualquer lugar perto de Faquarl.
A minha idéia era descarregar, nos livrarmos da van nas árvores em algum ponto e en
gatinhar de volta para começarmos nossas investigações, mas o guri não quis nem saber di
sso.
Isso é ótimo para você disse ele. Você pode atravessar o gramado como uma lufad
o tóxico ou algo assim, eu não posso, vão me pegar antes que eu chegue à metade do camin
ho. Agora, que estou na casa, tenho de entrar.
Mas você é o garoto da mercearia. Como vai explicar isso quando for visto?
Ele deu um sorriso desagradável.
Não se preocupe. Não serei o garoto da mercearia por muito tempo.
Bem, passar pela cozinha é arriscado demais para mim disse eu. Agora mesmo foi
a sorte que eu dei. Faquarl pode geralmente me sentir a uma milha de distância. Is
so não serve. Terei de descobrir outro meio de entrar.
Não gosto disso disse ele. Como vamos nos reunir?
Eu encontro você. Só não seja pego nesse meio-tempo.
Ele deu de ombros. Ainda que estivesse apavorado, estava se saindo muito bem em
escondê-lo. Empilhei as últimas cestas de ovos de pavoncino em suas mãos e fiquei olha
ndo-o seguir gingando casa adentro. Então fechei as portas da van, deixei as chave
s no banco do motorista e considerei a situação. Logo abandonei a idéia de largar a va
n entre as árvores: era muito provável que isso chamasse mais atenção do que simplesment
e deixá-la tranqüilamente ali. Afinal, ninguém estava se preocupando com a van do flor
ista.
Havia janelas demais na casa. Alguma coisa poderia estar a qualquer uma delas, v
igiando. Caminhei em direção à porta, como se fosse entrar, uma patrulha de sentinelas
passou sobre as árvores, dentro da abóbada interna; tudo bem não teriam visto nada. A
casa em si mesma parecia tranqüila.
Quando me aproximava da porta, dei um passo de lado, para fora de vista lá de dent
ro e me transformei. O sr. Squalls virou um pequeno lagarto que caiu ao chão, prec
ipitou-se sobre o pedaço de parede mais próximo e subiu correndo até chegar ao primeir
o andar. Minha pele de um casta-nho-creme ficava idealmente camuflada sobre a pe
dra. Os espetos minúsculos em meus pés davam-me excelente pega. Meus olhos giratórios
enxergavam acima, atrás e em torno. Tudo considerado, fora mais uma escolha perfei
ta de forma. Lancei-me parede acima, imaginando como meu amo estaria se saindo c
om seu disfarce tão mais cômodo.
Nathaniel
37
Quando pousou a cesta de ovos sobre a superfície mais próxima, Nathaniel olhou a coz
inha em torno, procurando a vítima que pretendia. Havia tanta gente se azafamando
por ali que a princípio não conseguiu ver nenhum sinal do menino com o uniforme azul
-escuro e temeu que ele já houvesse ido embora. Mas então, à sombra de uma grande chef
confeiteira, viu-o. Ele estava transferindo uma montanha de canapés tamanho coque
tel para uma bandeja de prata de dois andares.
Era claro que o menino uniformizado planejava levar esse prato a algum lugar da
casa. Nathaniel pretendia estar presente quando ele o fizesse.
Nathaniel ficou sorrateiro pela cozinha, fingindo estar só esvaziando suas cestas
e caixas, ganhando tempo e ficando cada vez mais impaciente enquanto o menino co
locava esmeradamente cada canapé de queijo cremoso e lagostins na bandeja.
Algo duro e pesado bateu-lhe no ombro. Ele se virou. O cozinheiro-chefe estava p
arado junto a ele, o rosto corado e a pele brilhando do calor do espeto de assar
. Dois olhos pretos brilhantes fitavam-no do alto. O chef estava segurando um cu
telo de carne na mão rechonchuda; tinha sido com a parte não afiada da lâmina que ele
batera no ombro de Nathaniel.
E o que perguntou o chef com uma voz gentil você está fazendo na minha cozinha?
Nada naquele homem, em nenhum dos planos a que Nathaniel tinha acesso, sugeria r
emotamente que ele não fosse humano. Não obstante, tendo em mente o aviso de Bartima
eus, resolveu não correr riscos.
Estou só recolhendo uma ou duas cestas do meu pai disse ele educadamente. Não te
uitas, veja o senhor. Lamento se fiquei no caminho.
O chef apontou o cutelo para a porta.
Saia.
Sim, senhor. Já estou indo.
Mas somente até onde a passagem levava diretamente porta afora, onde Nathaniel rec
ostou-se contra a parede e esperou. Sempre que alguém saía da cozinha, ele se abaixa
va, como se estivesse amarrando os sapatos. Era um negócio precário, e ele temia a a
parição do chef, mas, de resto, sentia um estranho entusiasmo. Após o choque inicial d
e ver o capanga no portão, seu medo passara e fora substituído por uma excitação que ele
raramente havia sentido a emoção da ação. Acontecesse o que fosse, não haveria mais espe
a impotente enquanto seus inimigos agiam com impunidade. Ele estava assumindo o
controle dos acontecimentos agora. Ele estava à caça. Ele estava fechando o cerco.
Passos leves, ligeiros. O pequeno pajem saiu pelo arco, equilibrando na cabeça a b
andeja dupla de canapés. Firmando-se com uma das mãos, ele virou à direita, indo diret
o para a passagem. Nathaniel seguiu ao lado dele.
Olá. Falou de forma extra-amigável; ao fazê-lo, olhou o menino de alto a baixo. P
to. O tamanho exatamente certo.
O jovem não pôde deixar de notar esse interesse.
Bem, quer alguma coisa?
Sim, há um lavabo por aqui? Fiz uma longa viagem e... você sabe como é.
Ao pé de uma grande escadaria, o menino parou. Apontou para uma passagem lateral.
Por aí.
Pode me mostrar? Tenho medo de abrir a porta errada.
Eu já estou atrasado, colega.
Por favor.
Com um resmungo de relutância, o menino virou para o lado e conduziu Nathaniel ao
longo do corredor. Andava tão rápido que a bandeja sobre sua cabeça começou a oscilar pr
ecariamente. Ele deu uma parada, ajeitou-a e continuou a caminho. Nathaniel o se
guiu, parando apenas para tirar de sua cesta o rolo de abrir massa que havia rou
bado da cozinha. Na quarta porta, o menino parou.
Aí.
Tem certeza que é o lugar certo? Não quero esbarrar em ninguém.
Estou lhe dizendo que é. Olhe.
O garoto deu um chute na porta. Esta se abriu. Nathaniel vibrou o rolo de massa.
Menino e bandeja de prata foram para a frente, desabando no chão do lavabo. Ating
iram o azulejo com um som como o estalo de um fuzil, e por toda volta caiu uma t
empestade de canapés de cream-cheese e lagostins. Nathaniel entrou rapidamente e t
rancou a porta.
O menino desmaiou direto, por isso Nathaniel não encontrou resistência para tirar-lh
e as roupas. Teve dificuldade infinitamente maior para recolher os canapés, que ha
viam se espalhado e se esborrachado todos, em cada fenda e fresta do lavabo. O q
ueijo era macio e, na maioria dos casos, podia ser passado de volta no pequeno cír
culo de massa, mas nem sempre era possível ressuscitar os lagostins.
Quando terminou de recompor as bandejas o melhor que pôde, rasgou a camisa da merc
earia em tiras que usou para amarrar e amordaçar o menino. Então enfiou-o em um dos
cubículos reservados, trancou a porta por dentro e saiu pelo alto do cubículo, escal
ando e equilibrando-se sobre a caixa da descarga.
Com a prova do crime escondida em segurança, Nathaniel ajeitou o uniforme no espel
ho, equilibrou a bandeja sobre a cabeça e saiu do lavabo. Raciocinando que dificil
mente algo que valesse a pena desçobrir estaria nos cômodos dos empregados, refez se
us passos e foi-se escada acima.
Vários empregados passaram apressados em ambas as direções, carregando bandejas e engr
adados de garrafas, mas nenhum o contestou.
No topo da escada, uma porta se abria para um vestíbulo iluminado por uma fileira
de janelas altas em arco. O chão era de mármore lustroso, coberto a intervalos por t
apetes da Pérsia e do Oriente em geral, de magnífica urdidura. Bustos de alabastro,
retratando grandes líderes de eras antigas, ficavam em nichos especiais, ao longo
de paredes imaculadamente brancas. O efeito total, mesmo à fraca luz do sol de inv
erno, era de um brilho deslumbrante.
Nathaniel atravessou o vestíbulo, mantendo os olhos bem abertos.
Ouviu adiante vozes altas e risos que se elevavam em saudação. Achou mais prudente e
vitá-las. Uma porta aberta a um lado deixava ver um vislumbre de livros. Ele entro
u...
...em uma bela biblioteca circular, que subia dois andares inteiros, encimada po
r uma cúpula de vidro no teto. Uma escada em espiral ondulava até um passadiço de meta
l que acompanhava a parede em círculo, bem ao alto de sua cabeça. De um lado, grande
s portas de vidro com janelas em cima davam vista para os gramados e um lago orn
amental distante. Cada centímetro de parede estava coberto de livros: grandes, car
os, antigos, trazidos de cidades do mundo inteiro. O coração de Nathaniel, maravilha
do, falhou uma batida. Um dia, ele também teria uma biblioteca como essa...
O que está fazendo?
Um painel abrira-se para a frente, revelando uma porta em frente a ele. Nela est
ava parada uma moça de cabelos escuros, de cara fechada. Por algum motivo, ela rec
ordava a sra. Lutyens; faltou-lhe a iniciativa, e ele abriu e fechou a boca sem
nenhum propósito.
A mulher aproximou-se. Usava um vestido elegante; jóias cintilavam em seu pescoço ma
gro. Nathaniel recompôs-se.
Hannn... gostaria de um negocinho de lagostim?
Quem é você? Ainda não o tinha visto. Sua voz era dura como pedra.
Ele deu tratos à bola para agir.
Sou John Squalls, moça. Ajudei meu pai a fazer algumas entregas de provisões para v
cês hoje de manhã. Só que o menino-pajem sentiu-se mal, agorinha mesmo, moça, e acabaram
me pedindo dar uma mãozinha. Não queria que os senhores ficassem com falta de serviço
em um dia importante como este. Parece que me enganei de caminho, não estando fam
iliari...
Assim está bem.
Ela continuava hostil; seus olhos apertados percorreram a bandeja.
Olhe só o estado disso! Como ousa trazer semelhante...
Amanda! Um homem jovem a seguira até a biblioteca. Você está aí... e, graças, c
xe-me pegar um pouco!
Ele passou por ela e pegou três ou quatro dos canapés mais lastimáveis da bandeja de p
rata de Nathaniel.
A salvação da lavoura! Viagem esfaimante de Londres até aqui Mmm, tem um lagostim n
e aqui. Ele mastigou com apetite. Sabor interessante. Muito fresco. Então, Amanda,
diga-me... é verdade, sobre você e Lovelace? Todo mundo anda falando...
Amanda Cathcart começou a dar um risinho gorjeante, e então fez um gesto curto e sec
o para Nathaniel.
Você, saia daqui e sirva esses canapés no hall de entrada. E prepare os próximos melho
r.
Sim, senhora. Nathaniel fez uma leve mesura, copiando o gesto dos criados no Par
lamento, e saiu da biblioteca.
Tinha sido por pouco, e seu coração batia acelerado, mas sua cabeça estava calma. A cu
lpa que experimentara depois do incêndio assumia agora a forma de uma fria aceitação d
e sua situação. A sra. Underwood morrera porque ele havia roubado o amuleto. Ela hav
ia morrido, e Nathaniel sobrevivido. Que seja. Agora ele destruiria Lovelace, po
r sua vez. Sabia ser pouco provável que ele sobrevivesse a esse dia. Isso não o preo
cupava. As possibilidades estavam acumuladas a favor do seu inimigo, mas era ass
im que devia ser. Ele conseguiria ou ia morrer tentando.
Havia nessa equação um certo heroísmo, que lhe era atraente. Era claro e simples; isso
o ajudava a bloquear a desordem da sua consciência.
Ele seguiu o burburinho até o hall de entrada. Os convidados agora chegavam aos ba
ndos. As pilastras de mármore ecoavam com o barulho deles tagarelando. Ministros d
e Estado cruzavam a porta aberta, tirando luvas e desenrolando grandes cachecóis d
e seda, seus alentos pairando no ar frio do hall de entrada. Os homens usavam sm
okings, as mulheres, vestidos elegantes. Havia criados de pé em volta deles, receb
endo seus casacos e servindo champanhe. Nathaniel ainda recuou um instante e, se
gurando a bandeja bem alto, mergulhou na multidão.
Senhor, senhora, gostariam...?
Uns negócios de queijo e lagostins, senhora...
Estariam interessados em...?
Ele girou pelo ambiente, sendo atirado de um lado para o outro por uma bateria d
e mãos que se estendiam para saquear sua bandeja, como gaivotas adejando e bicando
uma rede cheia de peixe. Ninguém falava com ele, sequer pareciam vê-lo: diversas ve
zes sua cabeça foi atingida por um braço ou mão que se estendia às cegas em direção à bande
ou levando um canapé até a boca aberta. Em segundos, a bandeja de cima estava vazia
, salvo por umas poucas migalhas, e só uns poucos pedaços soltos restavam embaixo. N
athaniel viu-se expelido do grupo, sem fôlego e com o colarinho entortado.
Um criado alto, de aspecto lúgubre, estava de pé perto dele, com uma garrafa, enchen
do copos.
Parecem animais, não parecem? disse entredentes. Malditos magos.
Sim.
Nathaniel mal estava escutando. Observava a multidão de ministros, suas lentes per
mitindo-lhe enxergar a plena extensão da atividade no vestíbulo. Quase todo homem e
mulher presente tinha um diabrete pairando atrás deles, e enquanto seus amos se de
dicavam a um sorridente bate-papo social, falando uns por cima da fala dos outro
s e remexendo com os dedos em suas jóias, os criados levavam sua própria conversa. C
ada diabrete posava, se ajeitava e se inflava a graus ridículos, muitas vezes tent
ando esvaziar seus rivais espetando-os sub-repticiamente em lugares delicados co
m uma cauda espinhenta. Alguns mudavam de cor, passando por uma seleção de arco-íris,
antes de terminarem com um escarlate chamativo ou amarelo brilhante. Outros se c
ontentavam em fazer caretas, imitando as expressões ou os gestos dos amos de seus
rivais. Se os magos notavam tudo isso, davam mostra de ignorá-los, mas a combinação do
s sorrisos falsos dos convidados com as papagaiadas de seus diabretes fazia a ca
beça de Nathaniel girar.
Você está servindo esses canapés ou levando-os para passear?
Uma mulher carrancuda, de quadris e cintura largos, com um diabrete ainda mais l
argo flutuando atrás dela. E ao seu lado o coração de Nathaniel estremeceu ele reconhe
ceu os olhos aquosos, a cara de peixe do senhor Lime, o companheiro de Lovelace,
com o diabrete menor e mais desajeitado imaginável tentando ficar escondido atrás d
e sua orelha. Nathaniel permaneceu inexpressivo e curvou a cabeça, erguendo a band
eja em oferecimento.
Sinto muito, minha senhora.
Ela pegou dois canapés. Lime pegou um. Nathaniel olhava submissamente para o chão, m
as sentia o olhar do homem sobre ele.
Já não o vi em algum lugar? disse o homem pegajoso. A mulher puxou a manga de seu
mpanheiro.
Vamos, Rufus. Por que falar com um plebeu, quando há tanta gente de verdade com qu
em conversar? Olhe, lá está a Amanda!
O mago deu de ombros e deixou-se ser puxado embora. Olhando constrangido para as
costas dele, Nathaniel notou o diabrete de Rufus Lime ainda olhando para trás e p
ara ele, a cabeça virada noventa graus, até que se perdera na multidão.
O criado a seu lado estava alheio a tudo isso; os diabretes eram invisíveis para e
le.
Você terminou a sua porção ele disse. Dê um giro com esta bandeja de bebidas. E
os como camelos. Com modos piores, a maioria deles.
Alguns convivas estavam vagando pelo vestíbulo afora, em direção a uma galeria mais no
interior da casa, e Nathaniel ficou satisfeito de ter uma desculpa para ir embo
ra com eles. Precisava afastar-se da multidão para explorar outras regiões da casa.
Até agora nem sinal de Lovelace, do amuleto ou de qualquer possível armadilha. Mas n
ada aconteceria ainda, uma vez que o primeiro-ministro não havia chegado.
Quase no meio do vestíbulo, a mulher da biblioteca estava parada no meio de um gru
pinho, pontificando. Nathaniel deu um tempo por ali, deixando que os convidados
trocassem copos vazios da sua bandeja.
... Vocês o verão em alguns minutos, ela disse. E a coisa mais maravilhosa que eu já v
i na vida. Simon o mandou trazer da Pérsia especialmente para esta tarde.
Ele a está tratando muito bem, disse um homem secamente, bebericando seu drinque.
Amanda Cathcart enrubesceu.
Ele está ela disse. Ele é muito bom comigo. Oh... mas é simplesmente a coisa ma
hante que existe! Tenho certeza que vai virar moda instantaneamente. Vejam vocês,
não foi fácil instalá-lo, os homens dele vêm trabalhando nisso a semana inteira. Vi o ap
osento pela primeira vez somente hoje de manhã. Simon disse que ia me deixar sem fôl
ego, e tinha razão.
O primeiro-ministro chegou alguém gritou.
Com gritinhos de empolgação, os convidados voltaram correndo em direção às portas, Amanda
Cathcart à frente deles. Nathaniel copiou os outros criados e postou-se respeitosa
mente ao lado de uma coluna, pronto para ser chamado.
Rupert Devereaux entrou, batendo com as luvas juntas em uma das mãos e dando aquel
e meio sorriso. Ele se destacava da multidão de adoradores, não só por sua vestimenta
elegante e sua graça pessoal (que continuavam tão impressionantes quanto Nathaniel s
e lembrava), mas por seus acompanhantes: uma guarda de quatro magos carrancudos,
de ternos cinza e mais assustadoramente um maciço afrito de dois metros de altura
com a pele de um negro-esverdeado luminoso. O afrito ficava diretamente atrás de
seu amo, lançando olhos rubros malignos sobre todo mundo.
Todos os diabretes tiritaram de medo. Os convivas curvaram as cabeças respeitosame
nte.
Nathaniel deu-se conta de que o primeiro-ministro estava fazendo uma exibição ostens
iva de poder para todos os seus ministros reunidos, alguns dos quais talvez aspi
rassem à sua posição. Foi com certeza suficiente para impressionar Nathaniel. Como Lov
elace poderia esperar superar algo tão forte quanto aquele afrito? A mera idéia era
certamente loucura.
Mas eis que chegava o próprio Lovelace, saltitando pelo vestíbulo para recepcionar s
eu líder. O rosto de Nathaniel ficou impassível; seu corpo todo ficou tenso de ódio.
Bem-vindo, Rupert!
Muitos apertos de mãos. Lovelace parecia alheio à presença do afrito a seus ombros. El
e virou-se para falar à multidão.
Senhoras e senhores! Com nosso querido primeiro-ministro presente, a conferência p
ode começar oficialmente. Em nome de Lady Amanda, dou-lhes as boas-vindas a Heddle
ham Hall. Por favor, tratem a casa como se fosse a de vocês próprios! Seus olhos fit
aram na direção de Nathaniel. Este encolheu-se mais na sombra da coluna. Os olhos de
Lovelace passaram adiante. Em pouco tempo ouviremos os primeiros discursos no G
rande Salão, que Lady Amanda redecorou especialmente para hoje. Enquanto isso, por
favor, dirijam-se ao anexo, onde novas iguarias serão servidas.
Ele acenou com a mão. Os convidados começaram a se deslocar. Lovelace inclinou-se pa
ra a frente, para falar com Devereaux. Por trás da coluna, Nathaniel captou as pal
avras:
Preciso só pegar alguns subsídios para o meu discurso de abertura, senhor. Pode me
esculpar? Estarei com o senhor em poucos minutos.
É claro, é claro, Lovelace. Vá com calma.
Os acompanhantes de Devereaux deixaram o vestíbulo, o afrito atrás, com um olhar fur
ibundo. Lovelace os observou por um momento e então partiu sozinho na direção oposta.
Nathaniel ficou onde estava, fazendo questão de se deixar ver recolhendo copos usa
dos que tinham sido largados sobre a mobília antiga e os pedestais de mármore que or
lavam o vestíbulo. E então, quando o último criado foi embora, ele pousou tranqüilamente
sua bandeja sobre uma mesa e, como um fantasma na noite, saiu silenciosamente n
a cola de Lovelace.
38
Simon Lovelace atravessou sozinho os corredores e galerias da mansão. Ele caminhav
a com a cabeça abaixada, as mãos frouxamente unidas nas costas. Não deu nenhuma atenção às
ileiras de pinturas, esculturas, tapeçarias e outros artefatos pelos quais passava
, nunca olhava para trás.
Nathaniel esgueirou-se de coluna a portal, de estante a escrivaninha, escondendo
-se atrás de cada um, até convencer-se de que o mago estava à frente o bastante para e
le continuar. Seu coração batia com força, tinha nos ouvidos um barulho latejante isso
o fazia lembrar-se de um tempo em que esteve de cama com febre. Não se sentia doe
nte agora. Mas muito vivo.
Aproximava-se depressa o momento em que Lovelace atacaria. Sabia disso como se e
le próprio houvesse planejado tudo. Ainda não sabia que forma o ataque assumiria, ma
s podia ver sua iminência no contorno tenso dos ombros do mago, em seu modo rígido e
distraído de caminhar.
Quem dera Bartimaeus o achasse! O djim era sua única arma.
Lovelace subiu uma estreita escadaria e desapareceu após atravessar um arco aberto
. Nathaniel subiu atrás dele, pousando os pés silenciosamente sobre os escorregadios
degraus de mármore.
No arco, ele olhou em torno. Era uma pequena biblioteca ou galeria de algum tipo
, fracamente iluminada por janelas no telhado. Lovelace seguia ao longo de uma a
la central entre diversas fileiras de estantes salientes. Aqui e ali havia mesas
baixas para exposição de coisas, contendo uma variedade de objetos de formas estran
has. Nathaniel deu mais uma espiada, concluiu que sua presa estava quase à porta d
o outro lado e entrou no aposento, pé ante pé. De repente, Lovelace falou.
Maurice!
Nathaniel enfiou-se atrás da estante mais próxima. Espremeu-se, colado contra ela, f
orçando-se a respirar silenciosamente. Ouviu a porta distante se abrir. Furtivamen
te, com cuidado para não fazer o menor ruído, virou a cabeça, centímetro a centímetro, até
onseguir olhar por cima dos livros mais próximos. Outras estantes o separavam do l
ado oposto da galeria, mas, encaixado num espaço aberto entre duas prateleiras, pôde
discernir o rosto rubro e enrugado de Schyler, o velho mago. Quanto ao próprio Lo
velace, não estava ao alcance de sua visão.
Simon, o que há de errado? Por que veio?
Trouxe-lhe um presente. A voz de Lovelace parecia descontraída, divertida. O garot
o.
Nathaniel quase desmaiou com o choque. Seus músculos ficaram tensos, prontos para
sair correndo...
Lovelace deu um passo à frente, saindo de detrás do final da estante.
Não se dê ao trabalho. Morrerá antes de conseguir sair desta sala. Nathaniel imobil
u-se. Oscilando à beira do pânico, ficou absolutamente quieto.
Venha cá, até o Maurice. Lovelace fez um gesto de ostensiva cortesia. Nathaniel cheg
ou um pouco à frente.
Isso é que é um bom menino. E pare de tremer como um inválido. Mais uma lição para você: um
mago nunca demonstra seu medo.
Nathaniel passou para a ala principal e se deteve, encarando o velho mago. Seu c
orpo tremia de raiva, não de medo. Virou os olhos para a esquerda e para a direita
, buscando caminhos de fuga, mas não viu nenhum. A mão de Lovelace deu-lhe um tapinh
a nas costas, ele se encolheu ao toque.
Temo não ter tempo para conversar disse Lovelace. Vou deixá-lo aos ternos cuida
e Maurice. Ele tem uma proposta a lhe fazer. Perdão, isso foi um resmungo?
Como soube que eu estava aqui?
Rufus Lime o reconheceu. Duvidei que você tentasse algo muito precipitado lá embaixo
, dado que a polícia o está procurando em relação àquele... lamentável incêndio. Então, ach
lhor simplesmente atraí-lo para longe das multidões antes que pudesse causar-me prob
lemas. Agora, perdoe-me, tenho um compromisso urgente. Maurice, está na hora.
O rosto de Schyler fez dobras de satisfação.
Rupert chegou, não foi?
Chegou, e por sinal seus homens conjuraram um afrito formidável. Acha que ele susp
eita?
Ora! Não. Isso é a paranóia normal, aguçada por aquele maldito ataque contra o Parlament
o. A Resistência tem muito pelo que responder, eles não tornaram a missão de hoje nem
um pouco mais fácil. Uma vez no poder, Simon, devemos erradicá-los, toda essa garota
da estúpida, e prendê-los em correntes na Colina da Torre.
Lovelace resmungou:
O afrito estará presente durante o discurso. Os homens de Rupert vão insistir.
Você terá de ficar perto dele, Simon. Ele deverá receber o primeiro impacto com plena
força.
Sim. Espero que o amuleto...
Ora! Pare de perder tempo! Já falamos sobre isso. Você sabe que ele vai agüentar firme
. Alguma coisa na voz do velho mago lembrou a Nathaniel a fria impaciência de seu
próprio mestre. O rosto enrugado contorceu-se desagradavelmente. Você não está nervoso p
or causa da mulher, está?
Amanda? Claro que não! Ela para mim não é nada. Então Lovelace respirou fundo , está tud
ronto?
O pentagrama está pronto. Tenho uma boa visão das salas. Rufus acaba de botar a trom
pa em posição, isso está resolvido. Vou ficar de vigia. Se algum deles resistir enquan
to estiver acontecendo, faremos o que pudermos. Mas duvido que será necessário. O ve
lho deu uma ligeira oscilada. Estou esperando tanto por isso.
Vejo-o em breve. Lovelace virou-se e dirigiu-se para o arco. Ele parecia haver s
e esquecido da existência de Nathaniel.
De repente, o velho disse às costas dele:
O Amuleto de Samarkand. Já o está usando?
Não. Rufus está com ele. Aquele afrito o farejaria a uma milha de distância, se tiver
tempo. Eu o porei assim que entrar.
Bem, então... boa sorte, meu rapaz.
Nenhuma resposta. Nathaniel logo em seguida ouviu passos estalando nos degraus,
descendo a escada.
Então Schyler sorriu. Todas as rugas e sulcos de seu rosto pareciam brotar-lhe dos
cantos dos olhos, mas os olhos, eles próprios, eram fendas em branco. Seu corpo e
ra tão encurvado pela idade que ele mal era mais alto do que Nathaniel; a pele do
dorso de suas mãos parecia de cera, polvilhada de manchas hepáticas. E no entanto Na
thaniel conseguia sentir poder nele.
John Schyler disse. E esse o seu nome, não é? John Mandrake. Ficamos muito surp
em encontrá-lo na casa. Onde está o seu demônio? Será que o perdeu? Isso é um descuido.
Nathaniel comprimiu os lábios. Olhou para o lado, para a mesa de exposição mais próxima.
Havia alguns objetos estranhos sobre ela: tigelas de pedra, cachimbos de osso e
um turbante grande e velhusco, talvez usado um dia por um xamã norte-americano. T
udo inútil para ele.
Eu era a favor de matá-lo imediatamente disse Schyler, mas Simon enxerga mais long
e do que eu. Ele sugeriu que eu lhe fizesse uma proposta.
Qual? Nathaniel estava olhando para a mesa de exposição seguinte; sobre ela havia un
s pequenos cubos de metal, enrolados em tiras de papel desbotadas.
O mago acompanhou-lhe o olhar.
Ah, está admirando a coleção da sra. Cathcart? Não vai achar aqui nada que tenha po
Está na moda entre plebeus ricos e idiotas possuir artigos mágicos em suas casas, em
bora bastante fora de moda saber alguma coisa sobre eles. Ora! Ignorância é felicida
de. Sholto Pinn está sempre sendo infernizado por tolos da sociedade em busca de b
ugigangas como estas.
Nathaniel deu de ombros.
Você falou em uma proposta.
Sim. Em alguns minutos, os cem ministros mais poderosos e eminentes do governo t
erão morrido, bem como nosso sacrossanto primeiro-ministro. Quando o novo governo
de Simon assumir o controle, as ordens mágicas inferiores nos seguirão sem questiona
mentos, uma vez que seremos mais fortes do que elas. E no entanto não somos numero
sos, e logo haverá espaços e vagas a preencher nos postos mais elevados do governo.
Precisaremos de magos novos e talentosos que nos ajudem a governar. Grande rique
za e os relaxamentos do poder aguardam nossos aliados. Bem, agora você é jovem, Mand
rake, mas reconhecemos sua habilidade. Você tem a marca de um grande mago. Una-se
a nós e lhe proporcionaremos o aprendizado que sempre almejou. Pense nisso: acabad
as as experiências de solidão, as mesuras e os serviços a tolos que não servem para lhe
lamber as botas! Vamos testá-lo e inspirá-lo, faremos brotar o seu talento e vamos d
eixá-lo respirar. E um dia, talvez, quando Simon e eu não existirmos, você será supremo.
..
A voz foi sumindo e deixou a imagem em suspenso. Nathaniel estava calado. Seis a
nos de ambição frustrada se desenharam em sua mente. Seis anos de desejo reprimido o
de ser reconhecido pelo seu valor, de exercer o seu poder abertamente, de ir pa
ra o Parlamento como um importante ministro de Estado. E agora, seus inimigos of
ereciam tudo para ele. Deu um suspiro profundo.
Você está tentado, John, estou vendo isso. Bem o que você diz? Ele olhou o velho mago
direto nos olhos.
Simon Lovelace realmente acha que eu vou me unir a ele?
Acha.
Depois de tudo que aconteceu?
Mesmo assim. Ele sabe como a sua mente funciona.
Então Simon Lovelace é um tolo.
John...
Um tolo arrogante!
Você deve...
Depois do que ele me fez? Ele poderia me oferecer o mundo, que recusaria. Unir-m
e a ele? Preferiria morrer!
Schyler assentiu com a cabeça, como satisfeito.
Sim. Eu sei. Isso foi o que eu disse a ele que você responderia. Eu o entendi tal
como você é: uma criança tola, meio pateta. Ora! Você não foi criado corretamente, sua men
te está confusa. Você não nos serve para nada.
Ele deu um passo à frente. Seus sapatos rangeram no chão lustroso.
Bem, não vai fugir, garotinho? O seu djim sumiu. Você não tem outro poder. Não gost
de ter um tempo de vantagem?
Nathaniel não fugiu. Sabia que isso seria fatal. Lançou um rápido olhar às outras mesas,
mas não conseguia ver claramente que objetos elas exibiam, seu inimigo bloqueava
o caminho até elas.
Você sabe disse o velho , fiquei impressionado quando nos conhecemos, tão novo e
eio de conhecimento. Achei que Simon foi muito duro com você, mesmo o caso dos miúdo
s foi divertido e revelava uma natureza empreendedora. Normalmente, eu o mataria
de modo lento, isso me divertiria ainda mais. Mas temos negócios importantes dent
ro de poucos minutos e não posso perder tempo.
O mago ergueu a mão e disse uma palavra. Apareceu uma brilhante auréola negra, reluz
indo e flutuando em torno de seus dedos.
Nathaniel atirou-se para um lado.
Bartimaeus
39
Eu torcia para que o garoto conseguisse ficar sem arrumar encrenca tempo o basta
nte para eu alcançá-lo. Entrar estava demorando mais do que eu havia pensado.
Parede acima e abaixo o lagarto correu; em torno de cornijas, sobre arcos, atrav
essando pilastras, seu avanço cada vez mais rápido e irregular. Cada janela a que ch
egava e havia montes delas na mansão estava firmemente fechada, levando-o a estala
r a língua em frustração. Lovelace e Cia. nunca tinham ouvido falar nos benefícios do ar
fresco?
Muitos minutos se passaram. Continuava sem sorte. A verdade era que eu não estava
disposto a forçar a entrada, a não ser como último recurso. Era impossível dizer se os a
posentos do outro lado não teriam vigias que pudessem reagir ao mais leve barulho
impróprio. Se ao menos eu conseguisse achar uma rachadura, uma fenda por onde me e
sgueirar... mas o lugar estava muito bem selado.
Não havia nada que servisse: eu teria de tentar uma chaminé. Com isso em mente, part
i na direção do telhado, só para ter minha atenção atraída por um conjunto de janelas muito
altas e ornamentadas, um pouco distante, numa ala saliente da casa. Sugeriam um
aposento de bom tamanho atrás delas. Não só isso, mas uma possante rede de fios
mágicos se entrecruzavam sobre as janelas no sétimo plano. Nenhuma das outras janela
s do hall tinha defesas assim. Minha curiosidade foi aguçada.
O lagarto atravessou correndo, para dar uma espiada, as escamas raspando sobre a
s pedras. Agarrou-se a uma coluna e projetou a cabeça em direção da janela, tendo o cu
idado de manter-se bem afastado dos fios luminosos. O que viu lá dentro era intere
ssante, sem dúvida. As janelas davam vista para um vasto salão circular ou auditório,
brilhantemente iluminado por uma dúzia de lustres pendurados do teto. No centro, f
icava um pequeno pódio elevado, com tudo, incluindo copo e jarra d'água. Evidentemen
te, esse era o local para a conferência.
Tudo na decoração do auditório dos lustres de cristal aos luxuosos ornamentos dourados
era projetado para agradar ao (vulgar) senso de riqueza e de status dos magos.
Mas o que era realmente extraordinário naquela sala era o chão, que parecia feito in
teiramente de vidro. De parede a parede ele cintilava e reluzia, refratando a lu
z dos lustres em dúzias de tonalidades e matizes incomuns. Como se isso não fosse su
ficientemente incomum, abaixo do vidro estendia-se um tapete imenso e muito boni
to. Fora feito na Pérsia, mostrando em meio a uma abundância de dragões, quimeras, gri
fos e pássaros uma cena de caça fantasticamente detalhada. Um príncipe em tamanho real
e sua corte entravam a cavalo em uma floresta, cercados por cães, leopardos, gaviõe
s francelhos e outros bichos treinados; adiante deles, entre os arbustos, um gra
nde número de cervos de patas ligeiras fugia às pressas. Trompas eram tocadas, estan
dartes agitados. Era uma idealizada corte oriental de contos de fadas, e eu teri
a ficado bastante impressionado se não houvesse olhado para um dos rostos dos cort
esãos. Isso estragou bastante o efeito. Um deles exibia a cara medonha de Lovelace
; o outro era igual a Sholto Pinn. Em outra parte avistei minha anterior captora
, Jéssica Whitwell, cavalgando uma égua branca. Lovelace não podia deixar de estragar
uma obra de arte perfeitamente boa com semelhantegracinha extravagante.86 Sem dúvi
da, o príncipe era Devereaux, o primeiro-ministro, e todo mago importante estava r
etratado entre a sua multidão bajuladora.
Esse soalho curioso não era a única coisa estranha do salão circular. Todas as outras
janelas que davam vista para ele tinham defesas tremeluzentes semelhantes àquela a
través da qual eu espiei. Bastante razoável: em breve a maior parte do governo estar
ia lá dentro o salão tinha de ser seguro contra ataques. Mas, ocultas entre as pedra
s da moldura de minha janela, havia coisas que pareciam varas metálicas embutidas,
e seu propósito não era nada claro.
Eu estava justamente ponderando isso, quando uma porta na extremidade do auditório
se abriu e um mago entrou caminhando rápido. Era o homem pegajoso que eu vira pas
sando de carro: Lime, o garoto o havia chamado, um dos comparsas de Lovelace. Tr
azia um objeto na mão, envolto em um pano. Com passos apressados e olhos lampejand
o nervosamente para um lado e para o outro, ele atravessou até o pódio, subiu nele e
aproximou-se da plataforma do orador. Havia dentro da plataforma uma prateleira
, oculta da platéia logo abaixo, e o sujeito botou o objeto dentro dela.
Antes de fazer isso, ele tirou o pano e um tremor percorreu minhas escamas.
Era a trompa de invocação que eu vira no estúdio de Lovelace, na noite em que roubei o
Amuleto de Samarkand. O marfim estava amarelo com os anos e fora reforçado com fi
nas tiras de metal, mas as enegrecidas marcas de dedos na lateral87 ainda eram b
astante visíveis.
Uma trompa de invocação...
Eu começava a ver a luz. Os fios mágicos na janela, as varas de metal embutidas na p
edra, prontas para se fecharem... As defesas do auditório não eram para manter as co
isas fora mas para manter todo mundo dentro.
Definitivamente, era hora de eu entrar.
Dando pouca atenção a quaisquer sentinelas voadoras, subi precipitadamente a parede
até a cobertura de telhas vermelhas da mansão e até a chaminé mais próxima. Disparei até a
eirada do tubo e estava para pular lá dentro, quando recuei, assustado. Uma rede d
e fios faiscantes estava suspensa logo abaixo de mim, atravessada no buraco. Blo
queado.
Corri para a próxima. Novamente.
Em considerável agitação atravessei e reatravessei o telhado de Heddleham Hall, checan
do cada chaminé. Estavam todas seladas. Mais de um mago tinha ido a extremos para
proteger o lugar contra penetras.
Finalmente parei, imaginando o que fazer. Esse tempo todo, na frente da casa, lá e
mbaixo, um fluxo constante de carros com chofer88 havia parado em fila, despejad
o seus ocupantes e seguido para um estacionamento na lateral. A maioria dos conv
idados agora havia chegado; a conferência estava para começar.
Olhei para os gramados. Uns poucos convidados atrasados aceleravam em direção à casa.
E não eram os únicos.
No meio do gramado havia um lago adornado com uma fonte ornamental, retratando u
m amoroso deus grego tentando beijar um golfinho.89 Atrás do lago, o caminho do ca
rro serpenteava para dentro do arvoredo, em direção ao portão de entrada. E, ao longo
dele, três figuras vinham andando a passos largos, dois indo depressa, o terceiro
mais depressaainda. Para um homem recentemente atingido e derrubado por um rato
do campo, o sr. Squalls estava correndo a toda. Filho estava se saindo ainda mel
hor: possivelmente sua falta de roupas o estimulava (à distância, ele parecia um gra
nde pedaço de pele arrepiada).
Mas nenhum deles igualava o passo do mercenário barbado, cuja capa se agitava atrás
dele, enquanto saía rápido do caminho dos carros para o gramado.
Ah. Isso podia ser um grande problema.
Encarapitei-me na beira do tubo da chaminé, maldizendo minha contenção com Squalls e F
ilho90 e ponderando se eu poderia ignorar o trio distante. Mas uma outra olhada
me fez decidir. O barbado estava correndo mais rápido do que nunca. Estranho seus
passos pareciam comuns, mas comiam terreno a uma velocidade cegante. Ele já havia
superado quase metade da distância até o lago. Em mais um minuto estaria na casa, pr
onto para dar o alarme.
Entrar na casa ia ter de esperar. Não havia tempo para ser discreto. Virei um melr
o e resolutamente saí voando do telhado da mansão.
O homem de preto se aproximava. Notei um bruxuleio no ar, em torno de suas perna
s, uma estranha discrepância, como se o movimento delas não estivesse adequadamente
contido dentro de nenhum dos planos. E então entendi: ele estava usando botas de s
ete léguas.91 Após mais alguns passos, sua trajetória seria rápida demais para ser segui
da ele poderia viajar uma milha com cada passo. Acelerei o meu vôo.
A margem do lago era um belo local (caso não se contasse a estátua do indecoroso vel
ho deus com o golfinho). Um jovem jardineiro catava as ervas daninhas das margen
s. Uns poucos patos inocentes flutuavam sonhadores na água. Juncos e papiros se ag
itavam à brisa. Alguém plantara um pequeno caramanchão de madressilva junto ao lago: s
uas folhas brilhavam com um verde pacífico e agradável ao sol da tarde.
Isso foi só para constar. Minha primeira Detonação errou o mercenário (sendo difícil avali
ar a velocidade de alguém usando botas de sete léguas), mas atingiu o caramanchão, que
se vaporizou instantaneamente. O jardineiro deu um grito e pulou dentro do lago
, empurrando os patos para longe em uma onda gigante. Os juncos e papiros pegara
m fogo. O mercenário ergueu os olhos. Ele não me havia notado ainda, provavelmente e
stando concentrado em manter suas botas sob controle; então não era rigorosamente de
ntro do espírito esportivo, mas, ei, eu estava atrasado para uma conferência. Minha
segunda Detonação o acertou diretamente no peito. Ele desapareceu em uma massa de ch
amas cor de esmeralda.
Por que não podem ser todos os problemas tão fáceis de resolver?
Fiz um rápido circuito, espiando o horizonte, mas não havia vigias nem nada perigoso
à vista, a não ser que se conte o traseiro rosado do filho de Squalls, enquanto ele
e o pai davam nos calcanhares e corriam para o portão de entrada. Ótimo. Eu estava
justo a ponto de partir de volta para a casa, quando a fumaça de minha detonação se di
ssipou, revelando o mercenário sentado em uma depressão cheia de lama, de um metro d
e profundidade, todo sujo, piscando, mas muito vivo. Hmm. Isso era algo com que
eu não tinha contado.
Parei chispando em pleno ar, virei-me e soltei mais uma Detonação, mais concentrada.
Foi do tipo que teria feito até os joelhos de Jabor tremer um pouco; com certeza
teria transformado a maioria dos humanos em um fiapo de fumaça voando no vento.
Mas não o barbudo. Quando as chamas voltaram a morrer, ele estava simplesmente pon
do-se de pé, tão à vontade quanto possível! Tinha o aspecto de quem estava tirando uma s
oneca. É bem verdade que boa parte de sua capa se consumira, mas o corpo sob ela c
ontinuava em excelente forma.
Nem me dei o trabalho de tentar outra vez. Sei entender uma indireta.
O homem meteu a mão dentro da capa e tirou de um bolso oculto um disco de prata. C
om velocidade inesperada ele recuou o braço e arremessou não pegou o meu bico por mu
ito pouquinho e voltou girando para a mão dele, em um arco preguiçoso.
Essa foi a conta. Eu tinha passado o diabo nos últimos dias. Todo mundo com que me
deparava parecia querer um pedaço meu: djins, magos, humanos... não fazia diferença.
Eu tinha sido invocado, maltratado, alvo de disparos, capturado, apertado, manda
do indiscriminadamente, e geralmente desprezado. E agora, para cúmulo de tudo, ess
e cara estava entrando para o time, quando eu só estava tentando matá-lo.
Perdi a paciência.
O melro mais furioso que vocês já viram mergulhou em direção à estátua no meio do lago. Ele
pousou na base do rabo do golfinho, estendeu as asas em torno da pedra e, enquan
to a levantava, assumi mais uma vez a forma de uma gárgula. O golfinho e o deus92
foram arrancados de suas fundações. Com um estalo quebradiço e o som irritante de chum
bo se rasgando, a estátua se soltou. Um jato de água jorrou dos encanamentos rompido
s em seu interior. A gárgula ergueu a estátua acima da própria cabeça, deu um salto e po
usou na beira do lago, perto de onde o mercenário estava parado.
Ele não parecia tão abalado quanto eu gostaria. Voltou a arremessar o disco. Este fe
riu-me no braço, envenenando-me com prata.
Ignorando a dor, atirei a estátua, como um daqueles escoceses fortões arremessam tro
ncos de árvore. Dei umas duas cambalhotas elegantes e aterrissei sobre o mercenário
com um macio som de esmagamento.
Ele pareceu ficar sem fôlego, isso eu reconheço. Mas mesmo assim não era nem de perto
o achatamento que eu desejava. Podia vê-lo, se esforçando sob o deus de bruços, tentan
do pegá-lo, para poder jogá-lo longe. Isso estava ficando tedioso. Bem, se eu não podi
a fazê-lo parar, com certeza podia retardá-lo. Enquanto ele ainda estava se debatend
o, pulei para cima dele, desfiz os laços de suas botas de sete léguas e arranquei-as
de seus pés. Então atirei-as com força no meio do lago, onde os patos estavam afobada
mente se reagrupando. As botas caíram sonoramente no meio deles e imediatamente af
undaram e sumiram.
Vai me pagar por isso disse ele.
Ainda estava às voltas com a estátua, retirando-a lentamente de cima do seu peito.
Você não sabe quando parar, não é? disse eu, coçando irritadamente um chifre.
Estava imaginando o que mais fazer, quando senti minhas entranhas sendo-me sugad
as pelas costas. Minha essência se torceu e retorceu. Engasguei. O mercenário ficou
olhando, enquanto minha forma foi ficando vaporosa e fraca.
Ele deu um impulso e jogou fora a estátua. Em meio à dor que eu sentia, vi-o ficar d
e pé.
Pare, covarde! gritou ele. Deve ficar e lutar!
Sacudi para ele uma garra que se dissolvia.
Considere-se com sorte grunhi. Estou largando de você. Eu o tinha preso, e não
.
E então sumi, e minha reprimenda comigo.

Nathaniel
40
A descarga de plasma preto-azeviche atingiu a mesa de exposição mais próxima. O turban
te de xamã, as tigelas e cachimbos, a própria mesa e uma seção do assoalho desapareceram
com um barulho como o de alguma coisa sendo fortemente sugada por um ralo abaix
o. Um vapor fétido subiu do buraco aberto no chão.
A cerca de um metro de distância, Nathaniel deu uma cambalhota e pousou imediatame
nte de pé. Sentia a cabeça tonta da cambalhota, mas não hesitou. Correu até a próxima mesa
de exposição, a que tinha os cubos de metal. Quando o velho mago tornou a erguer a
mão, ele agarrou tantos cubos quanto conseguiu e desapareceu atrás de uma estante vi
zinha. A segunda descarga de plasma acertou logo atrás dele.
Ele parou por um momento. Atrás das estantes, o velho mago fez um barulho estalado
, como cacarejos, com a língua.
O que está fazendo? Está pensando em atirar mais miúdos em cima de mim?
Nathaniel olhou para os objetos em suas mãos. Não eram nem miúdos nem nada muito melho
r. Cubos de Praga: brinquedos de bruxos vendidos por magos de baixa categoria. C
ada cubo era pouco mais do que um miúdo preso a uma casca de metal, com uma varied
ade de pós minerais. Quando liberados, mediante uma simples ordem, miúdos e pós entrav
am em combustão de um modo divertido. Diversão boba, nada mais. Certamente não eram ar
mas.
Cada cubo tinha invólucro de papel impresso com o famoso logotipo da garrafa de de
stilação dos alquimistas de Golden Lane. Eram velhos, provavelmente século XIX. Talvez
não funcionassem mais.
Nathaniel pegou um e o atirou, com invólucro e tudo por sobre o alto das estantes.
Ele gritou a Ordem de Liberação.
Com uma brilhante chuva de fagulhas prateadas e uma pequenina melodia, o diabret
e dentro do cubo entrou em combustão. Uma fraca porém inconfundível fragrância de lavand
a encheu a galeria.
Ele ouviu o velho mago prorromper em uma gostosa risada.
Por favor, mais um pouco! Quero estar cheirando o melhor possível quando tomarmos
o poder no país! Você tem fragrância de sorveira-brava? Essa seria a minha preferida!
Nathaniel escolheu outro cubo. Brinquedos de festa ou não, era a única coisa que ele
tinha.
Podia ouvir o rangido dos sapatos do velho, enquanto este descia a galeria rumo
ao fim da ala em que estava. O que ele poderia fazer? De ambos os lados, estante
s lhe bloqueavam a saída.
Será que bloqueavam mesmo? Cada prateleira era aberta no fundo: em cada fileira po
dia enxergar a ala seguinte por cima dos livros. Se ele se espremesse por ali...
Atirou o próximo cubo e correu para a estante.
Maurice Schyler virou na esquina da ala, sua mão invisível dentro de seu vacilante b
ulbo de energia.
Nathaniel atingiu a segunda prateleira de livros como um saltador em altura venc
endo uma barra. Ele disse a Ordem de Liberação.
O cubo explodiu na cara do velho. Faíscas roxas chisparam e rodopiaram, como uma c
huva de estrelas, chegando até o teto; uma marchinha tcheca do século XIX tocou brev
emente em acompanhamento.
Ao longo da próxima ala, cinqüenta livros desabaram como uma parede caindo. Nathanie
l estatelou-se em cima deles.
Sentiu, mais do que viu, a terceira descarga de plasma destruir a ala atrás dele.
A voz do mago agora tinha uma leve nota de irritação.
Garotinho, o tempo é curto! Fique quieto, por favor.
Mas Nathaniel já estava de pé e lançando-se em direção à próxima estante. Ele se movimentav
epressa demais para pensar, nunca se permitindo um momento de pausa, para que se
u terror não o dominasse. Seu único objetivo era chegar à porta na outra extremidade d
a galeria. O velho dissera que lá havia um pentagrama.
John, ouça! Ele aterrissou de costas na próxima ala, em meio a uma chuva de livro
dmiro sua firmeza de decisão. Um dicionário encadernado em couro caiu batendo em sua
têmpora, fazendo luzes brilhantes atravessarem piscando seu campo de visão. Ele luto
u para aprumar-se. Mas é besteira buscar vingança em nome de seu mestre. Mais uma ex
plosão de força mágica: mais uma seção de estantes desapareceu. Agora, se o seu Underwood
fosse um homem digno disso, eu entenderia. Nathaniel atirou o terceiro cubo atrás
dele; ele quicou inofensivamente sobre uma mesa e não detonou. Esquecera-se de diz
er a Ordem. Mas ele não era um homem digno disso, era, John? Era um idiota de baba
r na gravata. Agora você vai perder a sua vida por ele. Devia ter ficado fora diss
o.
Nathaniel chegara à última ala. Ele não estava longe da porta no final do aposento fal
tavam algumas passadas. Mas aqui, pela primeira vez, ele parou por completo. Uma
grande fúria cresceu dentro dele e abafou seu medo.
Sapatos rangeram baixinho. O velho caminhava de volta pela galeria, seguindo o r
astro de livros espalhados, checando cada ala lateral enquanto avançava. Não viu sin
al do garoto. Chegando perto da porta ele virou para a última ala, a mão preparada,
erguida...
E estalou a língua em exasperação. A ala estava vazia.
Nathaniel, que havia escalado silenciosamente pelas estantes para voltar à ala ant
erior, agora havia se esgueirado por trás dele e assim tinha o elemento surpresa.
Três cubos atingiram o mago ao mesmo tempo e explodiram juntos a uma única ordem. Er
am uma Roda de Catarina verde-limão, um ricocheteante Canhão Vienense e uma Fogueira
Ultramarina, e, embora o efeito de cada um isoladamente fosse modesto, juntos e
les se tornaram muito possantes. Um pot-pourri de baladas populares baratas soou
e o ar ficou instantaneamente pesado com os odores de sorveira-brava, edelweiss
e cânfora. A explosão conjunta levantou o velho do chão e o arremessou direto contra
a porta no final da galeria. Ele bateu nela com força, de cabeça. A porta desabou; e
le a atravessou, o pescoço torcido de uma forma esquisita. A energia negra pulsand
o em sua mão instantaneamente se apagou.
Nathaniel caminhou lentamente em direção a ele através da fumaça, segurando frouxamente
um último cubo na palma da mão em copa. O mago não se mexia.
Talvez ele estivesse fingindo: dali a um momento iria se levantar, pronto para o
combate... Isso era possível. Tinha de estar preparado para ele.
Mais perto... ainda nenhum movimento. Agora ele estava junto aos sapatos de cour
o do velho, virados para fora, esparramados em ângulo...
Mais um meio passo... com certeza ele ia se levantar agora.
Maurice Schyler não se levantou. Seu pescoço havia se quebrado. Seu rosto pendia mol
e contra um painel da porta, os lábios ligeiramente abertos. Nathaniel estava pert
o o suficiente para contar todas as linhas e sulcos em sua face; podia ver peque
nas veias rubras atravessando-lhe o nariz e sob o olho...
O olho estava aberto, mas vítreo, sem enxergar. Parecia o olho de um peixe na banc
a da peixaria. Sobre ele atravessava-se uma fina mecha frouxa de cabelo branco.
Os ombros de Nathaniel começaram a tremer. Por um momento, achou que ia chorar.
Em vez disso, forçou-se a permanecer imóvel, esperando que sua respiração se acalmasse,
para que o tremor passasse. Quando sua emoção estava contida em segurança, ele passou
por cima do corpo do velho.
Você cometeu um erro ele disse baixinho. Não é pelo meu mestre que estou fazendo isso
O aposento contíguo era pequeno e sem janelas. Talvez um dia tenha sido um depósito.
Um pentagrama havia sido desenhado no centro do chão, com velas e potes de incens
o cuidadosamente arrumados em torno. Duas velas tinham sido derrubadas pelo impa
cto da porta caindo, e Nathaniel cuidadosamente as pôs de pé, em posição.
Em uma das paredes havia uma moldura dourada, pendurada por uma corda em um preg
o. Não havia nem pintura nem tela dentro da moldura; em vez disso era preenchida p
ela bela imagem de uma sala grande, circular, ensolarada, em que muitas figuras
se movimentavam. Nathaniel entendeu instantaneamente o que era a moldura: um esp
elho mágico, muito mais útil e possante do que seu disco de bronze perdido. Chegou m
ais perto para examiná-lo. Mostrava um vasto auditório cheio de cadeiras, cujo chão, c
oberto com um tapete, brilhava estranhamente. Os ministros vinham entrando por u
m lado, rindo e batendo papo, ainda segurando seus copos, recebendo elegantes pa
stas e canetas pretas de uma fila de criados junto à porta. Lá estava o primeiro-min
istro, no centro de uma multidão que o comprimia, o afrito sinistro ainda atentame
nte a tiracolo. Lovelace ainda não havia chegado.
Mas agora a qualquer momento ele faria sua entrada no salão e poria seu plano em ação.
Nathaniel observou uma caixa de fósforos caída no chão. Apressadamente, ele acendeu as
velas, reconferiu o incenso e entrou no pentagrama admirando, apesar de sua pre
ssa, a elegância com que tinha sido traçado. Então fechou os olhos, preparou-se e busc
ou na memória a fórmula.
Após alguns segundos, tinha-a pronta. Sua garganta estava um pouco bloqueada, por
causa da fumaça; ele tossiu duas vezes e então disse as palavras.
O efeito foi instantâneo. Fazia tanto tempo que Nathaniel não concluía uma invocação que e
le teve um ligeiro sobressalto quando o djim apareceu. Ele estava em sua forma d
e gárgula e tinha uma expressão aborrecida.
Você realmente tem um senso de oportunidade perfeito, não é? ele disse. Acabo de conse
guir ter o assassino onde eu o queria e de repente você se lembra de me chamar!
Está para começar! O esforço de chamar Bartimaeus deixara Nathaniel meio tonto. Ele re
costou-se na parede para se firmar. Olhe, ali no espelho! Eles estão se reunindo.
Lovelace está a caminho agora e estará usando o amuleto, para não sofrer os efeitos de
seja lá o que acontecer. A-acho que é uma invocação.
Não me diga! Essa eu já tinha calculado. Bem, então, vamos lá, renda-se a minhas garras
ternas. Ele as flexionou experimentalmente; elas soltaram um som de estalos.
Nathaniel ficou lívido. A gárgula revirou os olhos.
Vou ter de carregar você disse ele. Temos de nos apressar, se o quisermos imped
de entrar no salão. Uma vez que ele tiver entrado, o lugar será selado, pode apostar
nisso.
Cuidadosamente, Nathaniel avançou um passo. A gárgula bateu pé, impaciente.
Não se preocupe por minha causa disse bruscamente. Não vai me doer as costas, n
da. Estou zangado e minha força voltou. Com isso, ele fez um gesto para pegar, aga
rrou Nathaniel pela cintura e virou-se para sair, só para tropeçar no corpo caído à entr
ada. Veja bem onde larga suas vítimas! Dei uma topada com o dedão nisso aí. Com um sal
to, ele ultrapassou os destroços e atravessou a galeria aos saltos, impulsionando-
se com vigorosas batidas de suas asas pétreas.
O estômago de Nathaniel sacudia-se horrivelmente a cada passada.
Mais devagar! disse, arfante. Está me deixando enjoado!
Então não vai gostar disto.
Bartimaeus saltou através do arco ao final da galeria, ignorou completamente o pat
amar e a escada e mergulhou direto para o vestíbulo, dez metros abaixo. O grito de
Nathaniel ecoou entre as vigas.
Meio voando, meio saltando, a gárgula venceu o próximo corredor.
Quer dizer , disse ele, agradavelmente que você cometeu sua primeira morte direta.
. Como se sente? Muito mais masculino, tenho certeza. Isso ajuda a apagar a mort
e da mulher de Underwood?
Nathaniel estava nauseado demais para ouvir, quanto mais para responder.
Um minuto depois a corrida chegou ao fim tão abruptamente que os membros de Nathan
iel balançaram como os de uma boneca de trapo. A gárgula se detivera na esquina de u
m longo corredor, deixou-o cair no chão e apontou silenciosamente para a frente. N
athaniel sacudiu a cabeça, para sua visão parar de girar e olhou.
Na outra extremidade do corredor havia uma porta aberta para o auditório. Nela três
pessoas estavam paradas: um criado de ar altivo, que mantinha a porta aberta; o
mago com cara de peixe, Rufus Lime; e Simon Lovelace, que abotoava o colarinho.
Em seu pescoço via-se um leve lampejo de ouro, e então o colarinho foi ajeitado e a
gravata posta direito no lugar. Lovelace pousou a mão no ombro de seu companheiro
e seguiu porta adentro.
Estamos atrasados demais! Nathaniel silvou. Você não pode...? Olhou surpreso
lado, a gárgula tinha sumido.
Uma vozinha sussurrou em seu ouvido.
Ajeite os cabelos e vá até a porta. Você pode entrar como um criado. Apresse-se!
Nathaniel ignorou o forte desejo de coçar o lóbulo da orelha; podia sentir algo pequ
eno e cosquento pendurado nele. Aprumou os ombros, puxou o cabelo para trás e segu
iu à frente pelo corredor.
Lime tinha ido para alguma outra parte. O criado estava puxando a porta para fec
há-la.
Espere! Nathaniel gostaria que sua voz fosse mais grave e imperiosa. Aproximou-se
veloz do criado. Deixe-me entrar também! Eles querem alguém extra para servir bebid
as!
Não o estou reconhecendo o homem disse, franzindo o cenho. Onde está o jovem William
?
Bem, ele teve uma dor de cabeça, fui convocado no último minuto. Passos ao longo do
corredor; uma voz dando uma ordem.
Esperem!
Nathaniel virou-se. Ouviu Bartimaeus xingando, na ponta de sua orelha. O mercenári
o de barba preta aproximava-se depressa, descalço, a capa esfarrapada se sacudindo
, os olhos azuis flamejando.
Depressa! A voz do djim era urgente. A porta tem uma fresta aberta, entre depre
sa!
O capanga acelerou o passo.
Detenham esse menino!
Mas Nathaniel já estava apertando o salto da bota com força sobre o sapato do criado
. O homem deu um grito de dor e a mão que segurava a porta deu um puxão para trás. Com
uma contorção e um meneio do corpo, evitou que ele o pegasse e, forçando-se contra a
porta, espremeu-se lá para dentro.
O inseto em sua orelha pulava agitado.
Feche-a na cara deles!
Empurrou com toda a sua força, mas o criado agora aplicava todo o seu peso do outr
o lado. A porta começou a fazer o movimento de abrir. E então, atrás dela, soou a voz
do mercenário, calma e macia.
Não tem importância ele disse. Deixe-o entrar. Ele merece seu destino.
A força contra a porta diminuiu e Nathaniel conseguiu fechá-la. Trancas estalaram em
posição dentro da madeira. Ferrolhos foram passados. A vozinha falou de novo em seu
ouvido.
Ora, essa foi terrível ela disse.

Bartimaeus
41
Desde o momento em que entramos no fatídico salão e sua fronteira foi selada, as coi
sas aconteceram depressa. O próprio garoto nunca deu uma boa olhada na arrumação lá dent
ro antes que ela mudasse para sempre, mas meus sentidos são mais avançados, é claro. A
bsorvi tudo, cada detalhe, em mínimos instantes.
Em primeiro lugar, onde estávamos? Junto à porta trancada, na beira mesma do chão circ
ular de vidro. Esse vidro tinha recebido uma superfície levemente áspera, para que o
s sapatos aderissem a ela, mas continuando límpida, o suficiente para o tapete emb
aixo aparecer em toda a sua beleza. O garoto estava parado bem sobre a beira do
tapete uma ourela retratando trepadeiras entrelaçadas. Perto dali, e em intervalos
em torno do salão, inteiro, havia criados impassíveis, cada um ao lado de um carrin
ho carregado de bolos e bebidas. No centro disso ficava o semicírculo de cadeiras
que eu vira da janela, agora todas gemendo sob os traseiros reunidos dos magos.
Eles estavam bebericando seus drinques e meio escutando a mulher, Amanda Cathcar
t, que estava de pé no pódio no centro do salão; recepcionando a todos. A seus ombros,
o rosto inexpressivo, estava Simon Lovelace, esperando.
A mulher arrematava o seu discurso.
... E, finalmente, espero que não se importem se chamo sua atenção para o tapete qu
e vê logo abaixo. Nós o encomendamos na Pérsia e acredito que seja o maior na Inglater
ra. Acho que descobrirão vocês próprios, todos incluídos, se olharem com atenção. Murmúri
aprovação, alguns vivas e saudações. As discussões desta tarde durarão até as seis. Farem
tão uma pausa para jantar nos toldos aquecidos do gramado, onde serão divertidos por
alguns acrobatas espadachins letões. Vivas entusiásticos. Obrigada. Permitam-me pas
sá-los para seu verdadeiro anfitrião, o sr. Simon Lovelace! Palmas contidas e soltas
, desiguais.
Enquanto ela continuava sua lengalenga, eu estava ocupado sussurrando no ouvido
do garoto.93 A essa altura era um piolho, razoavelmente o menor que eu conseguia
ficar. Por quê? Porque queria que o afrito só me percebesse quando isso não pudesse m
ais ser evitado. Ela [pois era uma afrita] era o único ser do outro mundo no momen
to em evidência (em nome da educação, todos os diabretes dos magos haviam sido dispens
ados enquanto durasse a reunião), mas estava fadada a me ver como uma ameaça.
Esta é a nossa última chance, disse eu. Seja lá o que Lovelace vai fazer, acredit
mim que ele o fará agora, antes que a afrita capte a aura do amuleto. Está pendurado
no pescoço dele: pode esgueirar-se por trás dele e puxá-lo para todos verem? Isso des
pertará os magos.
O garoto fez que sim. Começou a seguir de lado pela margem da multidão. No pódio, Love
lace começava uma fala obsequiosa.
Primeiro-ministro, senhoras e senhores, permitam-me dizer como estamos honrados.
..
Estávamos agora na lateral da platéia com caminho livre orlando a borda das cadeiras
dos magos na direção do pódio. O garoto começou a avançar a passo lento, eu o instigando
como um jóquei faz com um cavalo bem-disposto (embora imbecil).
Mas quando ele passou pelo primeiro delegado uma mão ossuda se projetou e agarrou-
o pela nuca.
E onde acha que vai, criado?
Eu conhecia essa voz. Ela me trouxe lembranças desagradáveis de seu globo fúnebre. Era
Jéssica Whitwell, toda bochechas cadavéricas e cabelo branco picado curtinho. Natha
niel fez força contra sua pega. Eu não perdi tempo, mas subi pela orelha dele e de lá
desci para a pele branca macia atrás, rumo à mão que agarrava.
Nathaniel se contorcia.
Solte-me!
... é um prazer e um privilégio... Até agora Lovelace não ouvira nada.
Como ousa procurar interromper esta reunião? Suas unhas afiadas enfiaram-se cruelm
ente no pescoço do garoto. O piolho aproximava-se de seu punho fino e pálido.
Você não... compreende... Nathaniel arfava. Lovelace tem...
Silêncio, moleque!
... feliz por vê-los aqui. Sholto Pinn manda pedir desculpas, está indisposto...
Ponha-o em uma Restrição, Jéssica. Quem tinha dito isso foi o mago na cadeira ao lado.
Cuide dele depois.
Eu estava no pulso dela. Por trás, ele era todo atravessado de veias azuis.
Piolhos não são grandes o suficiente para o que eu tinha em mente. Virei um escarave
lho, com pinças extra-afiadas. Piquei com vontade.
O grito agudo da mulher fez os lustres tilintarem. Ela soltou Nathaniel, que tom
bou para a frente, quase me derrubando de sua nuca. Lovelace fora interrompido e
le deu um giro, os olhos arregalados. Todas as cabeças se viraram.
Nathaniel ergueu a mão e apontou.
Cuidado! grasnou (o aperto em seu pescoço quase o esganara). Lovelace está com o
..
Uma teia de fios brancos ergueu-se em torno de nós e fechou-se sobre a cabeça de Nat
haniel. A mulher abaixou a mão e sugou a picada sangrando no pulso.
...leto de Samarkand! Ele vai matar vocês todos! Não sei como, mas vai ser horrível
..
Chateado, o escaravelho deu umas batidinhas no ombro de Nathaniel.
Não se dê o trabalho disse eu. Ninguém pode ouvi-lo. Ela nos isolou.94 Seu ol
e quem nada entendera. Nunca esteve em uma destas? Vocês fazem isso com os outros
o tempo todo.
Eu estava de olho em Lovelace. Este tinha os olhos fixos em Nathaniel, e captei
dúvida e raiva chispando por eles antes que o mago voltasse lentamente a seu discu
rso. Ele tossiu, esperando que o burburinho dos demais fosse morrendo. Enquanto
isso, uma mão esgueirou-se para a prateleira oculta na tribuna.
O menino agora estava entrando em pânico. Voltou-se contra as paredes elásticas da r
estrição, golpeando-as fracamente.
Mantenha a calma disse eu. Deixe-me examiná-la: a maioria das Restrições tem el
os. Se eu conseguir achar um, talvez possa nos tirar daqui. Virei uma mosca e, c
omeçando pelo alto, passei a circular atentamente pelas membranas da Restrição, procur
ando uma falha.
Mas nós não temos tempo... Falei mansamente, para tranqüilizá-lo.
Olhe só, e ouça.
Não demonstrei, mas eu próprio estava preocupado agora. O garoto tinha razão: nós realme
nte não tínhamos tempo.
Nathaniel
Mas nós não temos tempo Nathaniel começou.
Cale a boca e observe! A mosca zumbia freneticamente em torno da prisão em que es
avam. Ela parecia decididamente em pânico.
Nathaniel mal tinha espaço suficiente para mexer as mãos e nem perto do suficiente p
ara fazer alguma coisa com os pés ou as pernas. Era como estar dentro do caixão de u
ma múmia ou da dama de ferro... Quando lhe ocorreu esse pensamento, o terror de to
das as coisas comprimidas inflamou-se dentro dele. Reprimiu uma crescente urgência
de gritar, respirou fundo e, para ajudar a se distrair, concentrou-se nos acont
ecimentos à sua volta.
Após a lamentável interrupção, os magos haviam voltado sua atenção de novo para o orador, q
e ia em frente como se nada houvesse acontecido:
Por minha parte, gostaria de agradecer a Lady Amanda pelo uso deste maravilhoso
salão... Aliás, posso chamar sua atenção para o teto notável, com sua coleção de inestimáve
stres? Eles foram trazidos das ruínas de Versalhes, depois das guerras francesas,
e são feitos de cristal inquebrável. Seu criador...
Lovelace tinha muito a dizer sobre os lustres. Todos os delegados esticaram os p
escoços para cima, fazendo ruído de aprovação. A opulência do teto do salão os interessou e
ormemente.
Nathaniel falou com a mosca:
Já achou um ponto fraco?
Não. Foi muito bem-armada a mosca zumbiu com raiva. Por que tinha de se deixar peg
ar? Estamos impotentes aqui.
Impotente, mais uma vez. Nathaniel mordeu o lábio.
Estou presumindo que Lovelace vai invocar alguma coisa disse.
E claro. Para isso ele tem a trompa, de forma que não tenha de pronunciar a fórmula
encantatória. Poupa-lhe tempo.
O que será?
Quem sabe? Algo grande o suficiente para poder cuidar da afrita, pode-se presumi
r.
Novamente o pânico se apoderou de garganta de Nathaniel, lutando para se soltar em
um grito. Do lado de fora, Lovelace ainda descrevia as complexidades do teto. O
s olhos de Nathaniel corriam para lá e para cá, tentando captar o olhar de um dos ma
gos, mas eles continuavam absortos nos lustres maravilhosos. Deixou a cabeça pende
r em desespero.
E notou algo estranho com o canto do olho.
O chão... Era difícil ter certeza, com a luz fulgurando no vidro, mas ele achou ter
visto um movimento no chão, como uma onda branca varrendo-o rapidamente, vinda da
parede oposta. Ele franziu o cenho; as membranas da restrição estavam se atravessand
o em sua visão não conseguia ter certeza do que estava efetivamente vendo. Mas era q
uase como se algo estivesse cobrindo o tapete.
A mosca estava girando perto do lado de sua cabeça.
Uma migalha de consolo ela disse. Não pode ser nada poderoso demais ou Lovelace
ria de usar o pentagrama. O amuleto é ótimo para proteção pessoal, mas as entidades real
mente fortes precisam ser cuidadosamente contidas. Você não pode se permitir deixá-las
à solta ou arrisca total devastação. Veja o que aconteceu com a Atlântida.
Nathaniel não fazia idéia do que tinha acontecido com a Atlântida. Ele ainda estava ol
hando o chão. De súbito ele tomara consciência de que havia uma sensação de movimento por
todo o salão o chão todo parecia estar se mexendo, embora o vidro, em si, permaneces
se sólido e firme. Ele olhou entre seus pés e viu o rosto sorridente de uma jovem ma
ga passar rapidamente sob o vidro, seguido de perto pela cabeça de um garanhão e as
folhas de uma árvore decorativa...
Foi então que ele se deu conta da verdade. O tapete não estava sendo coberto. Ele es
tava sendo puxado, rápida e furtivamente. E ninguém mais havia notado. Enquanto os m
agos fitavam boquiabertos o teto, o chão embaixo deles mudava.
A-r-ham, Bartimaeus ele disse.
O quê? Estou tentando me concentrar.
O chão...
An... A mosca pousou em seu ombro. Isso é mau. Enquanto Nathaniel olhava, a ourela
em volutas ornamentais passou
sob ele, e então a própria beira franjada do tapete. Este se afastou, revelando emba
ixo uma superfície lustrosa talvez feita de gesso caiado sobre a qual grandes runa
s estavam gravadas com tinta preta brilhante. Nathaniel entendeu imediatamente e
m cima do que eles estavam e uma olhada pelo saião o confirmou. Ele viu seções de círcul
os perfeitamente traçados, as elegantes linhas curvas de caracteres rúnicos, tanto v
ermelhos quanto pretos...
Um pentagrama gigante sussurrou. E estamos todos dentro.
Nathaniel disse a mosca , lembra-se de que eu lhe disse para ficarmos calmos e n
se incomodar de acenar ou gritar?
Sim.
Esqueça isso. Faça tanto movimento quanto puder. Talvez consigamos atrair a atenção
m desses idiotas.
Nathaniel saracoteou, agitou as mãos e sacudiu a cabeça de um lado para o outro. Gri
tou até sua garganta doer. Em volta dele rodopiava a mosca, seu corpo faiscando em
uma centena de cores luminosas de advertência. Mas os magos próximos nada notaram.
Até Jéssica Whitwell, que estava mais próxima, ainda olhava para o teto, com olhos cin
tilantes.
A terrível impotência que Nathaniel sentira na noite do incêndio voltou a inundá-lo. Ele
sentia sua energia e decisão se esvaindo.
Por que eles não olham? lamentou-se.
Pura ganância disse a mosca. Eles estão fixados nas aparências da riqueza. Isso
bom. Eu tentaria uma detonação, mas a esta distância, isso o mataria.
Sim, não faça isso disse Nathaniel.
Se ao menos você já houvesse me libertado do feitiço do Confinamento Indefinido a
a refletiu, pensativa. Então eu poderia escapar e atacaria o problema Lovelace. Vo
cê morreria, claro, mas eu salvaria todos os demais, honestamente falando, e conta
ria a eles todos sobre o seu sacrifício. Seria... Veja! Está acontecendo!
Os olhos de Nathaniel já tinham sido atraídos para Lovelace, que fizera um súbito movi
mento. Suas mãos que apontavam para o teto agora haviam descido para a parte de trás
da tribuna com pressa febril. Ele tirou alguma coisa, atirou no chão o pano que a
cobria e levou o objeto até os lábios: uma trompa, velha, manchada e rachada. Gotas
de suor enchiam sua fronte; ela reluzia à luz dos lustres.
Alguma coisa na multidão deu um rosnado de raiva inumano. Os magos abaixaram as ca
beças, chocados.
Lovelace soprou.
Bartimaeus
Quando o tapete recuou e revelou-se o gigante pentagrama de invocação, entendi que e
stávamos preparados para algo desagradável. Lovelace tinha tudo calculado. Todos nós,
ele inclusive, estávamos presos dentro do círculo com fosse o que fosse que ele esti
vesse convocando do Outro Lugar. Havia barreiras nas janelas e, sem dúvida, nas pa
redes também, então nenhuma chance de que algum de nós escapasse. Lovelace tinha o Amu
leto de Samarkand e, com seu poder, ele estava imune , mas o restante de nós estari
a à mercê do ser que ele havia invocado.
Eu não tinha mentido para o garoto. Sem o pentagrama sujeitante, havia um limite p
ara o que qualquer mago pode intencionalmente invocar. Os seres maiores atacam d
escontroladamente caso recebam qualquer liberdade,95 e o desígnio oculto de Lovela
ce significava que a única liberdade que esse ser ia ter seria dentro apenas deste
salão.
Mas o mago só precisava disso. Quando seu escravo fosse embora, somente ele entre
os grandes do governo teria ficado vivo, pronto para assumir o controle.
Ele soprou a trompa. Ela não produziu qualquer som em nenhum dos sete planos, mas
no Outro Lugar deve ter vibrado bem alto.
Como era de esperar, a afrita foi quem agiu mais rápido. No momento mesmo em que a
trompa de invocação surgiu à vista, ela soltou um grande berro, segurou Rupert Devere
aux pelos ombros e voou para o grupo de janelas mais próximo, ganhando velocidade
enquanto subia. Chocou-se contra o vidro: as barreiras mágicas que o atravessavam
inflamaram-se em um azul elétrico e, com um impacto como um trovão, ela foi projetad
a de volta para o salão, de cabeça para baixo, com Devereaux girando molemente em su
as mãos.
Lovelace tirou a trompa dos lábios, sorrindo levemente.
Os magos mais inteligentes haviam entendido a situação no momento em que a trompa fo
i soprada. Com um alvoroço de lampejos coloridos, diabretes apareceram junto a div
ersos ombros. Outros invocaram mais forte assistência a mulher ao nosso lado estav
a murmurando uma fórmula encantatória, chamando o seu djim.
Lovelace desceu cuidadosamente do pódio, seus olhos voltados para algum ponto bem
acima. Luz dançava na superfície de seus óculos. Seu terno era elegante, sem um amassão.
Ele não tomou conhecimento da consternação a toda volta. Vi um bruxuleio no ar.
Desesperadamente, atirei-me contra as beiradas da teia que nos cercava, procuran
do um ponto fraco e encontrando nenhum.
Mais um bruxuleio. Minha essência teve um estremecimento.
Nathaniel
Muitos magos estavam de pé agora, suas vozes erguidas em alarme, as cabeças virando
para lá e para cá, desnorteados, enquanto grossas barras de ferro e de prata desliza
vam em posição, atravessando-se sobre cada porta e janela. Nathaniel há muito deixara
de se dar o trabalho de se mexer: estava claro que ninguém lhe daria a menor atenção.
Ele só podia ficar olhando, enquanto um mago um pouco à frente jogou sua cadeira de
lado, ergueu a mão e disparou uma bola de chama amarela sobre Lovelace, de uma dis
tância de apenas uns dois metros. Para surpresa do mago, a chama alterou levemente
seu curso em pleno ar e desapareceu no centro do peito de Lovelace. Este, que e
stava olhando atentamente para o teto, parecia nada ter notado.
A mosca zumbiu para a frente e para trás, batendo com a cabeça contra a parede da Re
strição.
Isso é obra do amuleto ela disse. Ele pegará qualquer coisa que eles lançarem.
Jéssica Whitwell havia terminado sua fórmula encantatória: um djim pequeno e atarracad
o pairou no ar, ao lado dela; ele assumiu a forma de um urso negro. Ela apontou
e gritou uma ordem. O urso avançou pelo ar, batendo os membros como se estivesse n
adando.
Outros magos mandaram ataques na direção de Lovelace: durante talvez um minuto ele f
icou no centro de uma tempestade elétrica de energia furiosa estalando. O Amuleto
de Samarkand absorveu tudo. Lovelace não foi afetado. Ele cuidadosamente alisou o
cabelo para trás.
A afrita reerguera-se de onde havia caído e, tendo deixado o primeiro-ministro ref
estelado em uma poltrona, saltou para dentro da briga. Ela voou com as asas bril
hantes velozes, mas Nathaniel notou que ela aproximou-se de Lovelace em um percu
rso peculiarmente circular, evitando o ar diretamente acima do pódio.
A essa altura, vários magos haviam chegado à porta do salão e lutavam em vão contra as m
açanetas.
A afrita mandou uma mágica poderosa em direção a Lovelace. Ou foi rápida demais, ou foi
basicamente em um plano que ele não podia ver, mas Nathaniel só a viu como a sugestão
de um jato de fumaça que atravessou o ar em direção ao mago em um instante. Nada acont
eceu. A afrita jogou a cabeça um pouco de lado, como perplexa.
Do outro lado de Lovelace, o djim urso negro se aproximara rápido. De cada pata pr
ojetaram-se duas garras como cimitarras.
Os magos estavam correndo precipitadamente, indo para as janelas, para a porta,
para qualquer lugar, acompanhados por sua hoste de diabretes soltando gritinhos
agudos.
Então algo aconteceu com a afrita. Para Nathaniel, foi como se ele estivesse olhan
do o reflexo da afrita em um lago e a superfície da água fosse de repente agitada. A
afrita pareceu se despedaçar, sua forma partindo-se em mil caquinhos trêmulos que f
oram sugados para uma seção de ar acima do pódio. Um momento depois haviam sumido.
O djim urso negro parou de dar remadas para a frente. Suas garras recuaram para
dentro das patas, sumindo de vista. Muito sutilmente, ele virou ao contrário.
A mosca zumbiu alto contra o ouvido de Nathaniel, gritando em puro pânico.
Está acontecendo! gritou. Não está vendo?
Mas Nathaniel não via nada.
Uma mulher passou correndo, a boca aberta em pânico. Seu cabelo estava de uma pálida
nuança de azul.
Bartimaeus
A primeira coisa que a maioria deles notou foi a afrita. Isso foi o espetáculo, o
verdadeiro número de abertura, mas na verdade muita coisa vinha acontecendo nos se
gundos anteriores. A afrita não deu sorte, só isso; em sua ânsia de destruir a ameaça a
seu amo, ela chegou perto demais da brecha.
A abertura no ar tinha cerca de quatro metros de largura e só era visível no sétimo pl
ano. Talvez alguns diabretes a tenham vislumbrado, mas nenhum dos humanos poderi
a tê-lo feito.96 Não era o tipo de brecha limpa, nítida, vertical, mas vertical com as
beiradas denteadas, como se o ar houvesse sido rasgado como pano grosso, fibros
o. De minha prisão, observei-a formar-se: após o primeiro bruxuleio acima do pódio, o
ar havia vibrado, distorcendo-se descontroladamente, e finalmente se rasgou ao l
ongo daquela risca.97
Assim que a brecha apareceu, as mudanças começaram.
A tribuna no pódio se alterou: sua substância virou de madeira para barro e então para
um metal estranho, alaranjado, e depois para algo que parecia duvidosamente com
cera de vela. Ela descaiu um pouco, como derretendo ao longo de um dos lados.
Algumas folhas de relva brotaram da superfície do pódio.
As gotas de cristal do lustre diretamente acima dele viraram gotas d'água, que pen
deram por um segundo suspensas, em posição, tremeluzindo em muitas cores, e então caíram
ao chão, como chuva.
Um mago corria para uma janela. Cada linha do riscadinho do seu paletó ondulava co
mo uma cascavel do deserto, dessas que se movimentam de lado sobre a areia.
Ninguém notou essas primeiras mudanças de menor monta ou uma dúzia de outras semelhant
es. Seria preciso o destino que teve a afrita para que eles percebessem.
Um pandemônio tomou conta do salão com humanos e diabretes guinchando e tagarelando
em todas as direções. Como alheios a isso, Lovelace e eu observávamos a brecha. Esperáva
mos que algo saísse por ela.
Bartimaeus
42
E então aconteceu. Os planos próximos à brecha de repente saíram de sincronia, como se e
stivessem sendo puxados de lado a velocidades variadas. Era como se meu foco de
visão houvesse enguiçado, como acontece após uma pancada na cabeça de repente vi as jane
las além multiplicadas por sete, todas em posições ligeiramente diferentes. Foi extrem
amente desconcertante.
Se o que Lovelace havia invocado, fosse lá o que fosse, era forte o suficiente par
a desintegrar assim os planos, isso era um mau presságio para todos nós, dentro do p
entagrama. Devia estar muito próximo agora. Fiquei de olho na brecha no ar...
Amanda Cathcart passou por nós, gritando, seu cabelo de um azul fascinante. Mais a
lgumas mudanças foram observadas por todo mundo: dois magos, que haviam chegado mu
ito perto do pódio, numa vã tentativa de atacar Lovelace, encontraram-se com seus co
rpos se alongando de-sagradavelmente; o nariz de um homem cresceu a um comprimen
to ridículo, enquanto o de um outro desapareceu por completo. O que está acontecendo
? sussurrou o garoto. Não respondi. A brecha estava se abrindo.
Todos os sete planos se distorceram, como calda batida. A brecha se alargou e al
go como um braço projetou-se por ela. Era todo transparente, como se fosse feito d
o vidro mais perfeito; na verdade, teria sido totalmente invisível, não fosse pelas
convulsões rodopiantes e retorcidas dos planos à sua volta. O braço mexeu-se para trás e
para a frente, de modo experimental: ele parecia estar testando as estranhas se
nsações do mundo físico. Avistei quatro finas protuberâncias ou dedos na ponta do braço: e
ssas, como ele mesmo, não tinham sua própria substância, e só recebiam forma dos distúrbio
s ondulatórios do ar em torno.
Lá embaixo Lovelace recuou, seus dedos tateando nervosamente entre os botões da cami
sa, em busca do toque tranqüilizador do amuleto.
Com a distorção dos planos, os outros magos começaram a ver o braço pela primeira vez.98
Eles soltaram variados gritos de espanto que, desde o homem maior e mais cabelu
do até a mulher menor e mais esganiçada, cobriam uma escala harmônica de diversas oita
vas. Vários dos homens mais corajosos correram para o centro do salão e forçaram seus
djins de serviço a mandar Detonações e muitas outras mágicas na direção da brecha. O que ac
bou sendo um erro. Nem uma única descarga ou rajada chegou ao menos perto do braço;
todas ou guinaram em ângulos, indo se chocar contra as paredes ou o teto, ou escor
reram para o chão como água gotejando de uma mangueira, a energia extraída delas.
A boca do garoto estava tão aberta e frouxa, que um rato poderia usá-la como balanço d
e parquinho.
Aquela co-coisa gaguejou. O que é aquilo?
Pergunta muito justa. O que era aquilo, aquela coisa que distorcia os planos e d
esmontava a magia mais poderosa, quando na verdade apenas um braço havia atravessa
do? Eu poderia ter respondido algo dramático e sinistro, como "A morte de todos nós!
", mas isso não nos teria levado muito longe. Além do mais, ele só iria perguntar de n
ovo.
Não sei exatamente disse eu. A julgar por sua cautela para atravessar, ele rara
te foi invocado. Provavelmente está surpreso e zangado, mas sua força é bastante clara
. Olhe em volta! Dentro do pentagrama a magia está dando errado; as coisas estão com
eçando a mudar de forma... Todas as leis normais estão sendo deturpadas, suspensas.
Os maiores de nós sempre trazem consigo o caos do outro lugar. Não surpreende que Lo
velace precisasse do Amuleto de Samarkand para se proteger.99
Enquanto olhávamos, o braço gigantesco e translúcido foi seguido por um ombro vigoroso
, transparente, com mais de um metro. E agora algo como uma cabeça começou a emergir
da brecha. Mais uma vez, foi apenas um contorno: através dela, as janelas e as árvo
res distantes se viam perfeitamente; à volta de seu contorno os planos estremeciam
em um inédito frenesi.
Lovelace não pode ter invocado isso sozinho disse eu. Ele deve ter tido ajuda.
estou me referindo apenas àquele velho espantalho que você matou ou ao tal seboso n
a porta. Alguém com real poder deve ter participado.100
O grandioso ser saiu pela abertura. Agora apareceu um outro braço, e a sugestão de u
m torso. A maioria dos magos estava amontoada contra a periferia do salão, mas alg
uns perto das janelas foram pegos por uma ondulação que atravessava os planos. Seus
rostos mudaram o de um homem virou o de uma mulher, o de uma mulher, o de uma cr
iança. Enlouquecido por sua transformação, um mago correu às cegas em direção ao pódio em
nstante seu corpo pareceu tornar-se líquido: ele entrou pela brecha torcendo-se em
um movimento de saca-rolhas e sumiu de vista. Meu amo engasgou de horror.
Agora emergia uma perna enorme, transparente, com uma postura e um movimento fur
tivo quase felinos. As coisas estavam realmente de desesperar. Não obstante, no fu
ndo sou um otimista. Notei que as ondulações emanando do ser mudavam a natureza de c
ada feitiço que atingiam. E isso me deu esperança.
Nathaniel disse eu. Ouça aqui.
Ele não respondeu a princípio. Estava paralisado à visão dos lordes e damas seu reino co
rrendo de um lado para o outro como galinhas dementes. Depois de todos os aconte
cimentos dos últimos dias, eu tinha quase me esquecido de como ele era jovem. Ness
e exato momento, ele não parecia nada com um mago, era só um garotinho aterrorizado.
Nathaniel.
Ouça. Se sairmos desta restrição, sabe o que temos de fazer?
Mas como podemos sair?
Não se incomode com isso. Se escaparmos, o que devemos fazer? Ele deu de ombros.
Então vou lhe dizer. Precisamos conseguir duas coisas. Primeiro, tirar o amuleto d
e Lovelace. Isso é função sua.
Por quê?
Porque eu não posso tocar no amuleto agora que ele o está usando: o amuleto absorve
qualquer coisa mágica que se aproxime dele e eu não quero ser incluído acidentalmente.
Tem de ser você. Mas tentarei distraí-lo enquanto você se aproxima.
Gentileza sua.
A segunda coisa disse eu, é que devemos reverter a invocação para mandar embora nosso
amigo muito grande. Isso é função sua.
Minha função de novo?
Sim. Vou ajudar surrupiando a trompa de invocação de Lovelace. Ela precisa ser parti
da, caso se queira fazer o serviço. Mas você vai ter de reunir alguns dos outros mag
os para dizer o feitiço de dispensa. Alguns dos mais fortes hão de saber o necessário,
contanto que ainda estejam conscientes. Não se preocupe, você não terá de fazer tudo pe
ssoalmente.
O garoto franziu o cenho.
Lovelace pretende dispensá-lo sozinho. Ele disse isso com um toque de seu vigor no
rmal.
Sim, e ele é um mestre, extremamente habilidoso e poderoso. Certo, isso está resolvi
do. Nós vamos atrás do amuleto. E se o conseguirmos, você parte para buscar a ajuda do
s outros, enquanto eu cuido de Lovelace.
O que o garoto teria respondido nunca saberei, porque nesse momento a grandiosa
entidade saiu da brecha e uma ondulação particularmente forte percorreu os planos. E
la correu até as cadeiras largadas, transformando algumas em líquido, botando fogo e
m outras e finalmente atingindo a restrição branca e bruxuleante onde estávamos prisio
neiros esse tempo todo. Ao seu toque, a membrana que nos encerrava explodiu com
um bang cacofônico que me mandou voando para um lado e o garoto para o outro. Ele
caiu pesadamente, cortando o rosto.
Não muito longe, a grande cabeça translúcida estava se virando lentamente.
Nathaniel! gritei. Levante-se!
Nathaniel
Sua cabeça tinia com a força da explosão e ele sentiu algo úmido contra sua boca. De per
to, em meio ao clamor estridente do salão, uma voz chamou seu nome de batismo. Ele
pôs-se de pé.
O ser agora estava plenamente presente: Nathaniel sentia sua forma, muito alta,
erguendo-se até o teto. Atrás dela, à distância uma multidão de magos se amontoava desampa
radamente com seus diabretes. E lá, na frente dele, estava parado Simon Lovelace,
gritando ordens a seu escravo. Tinha uma mão apertada sobre o peito; a outra, esti
cada, ainda segurando a trompa de invocação.
Está vendo, Ramuthra? gritou. Eu tenho o Amuleto de Samarkand e, assim, estou a
e seu poder. Qualquer outra coisa viva neste salão, seja humano ou espírito, lhe per
tence! Eu lhe ordeno que os destrua!
O grandioso ser inclinou a cabeça em aceitação; e voltou-se contra o grupo de magos ma
is próximos mandando ondas de choque que atravessaram o aposento. Nathaniel começou
a correr em direção de Lovelace. Um pouco distante, ele viu uma mosca feia atravessa
ndo o chão zumbindo e voando baixo.
Lovelace notou a mosca; franziu o cenho e a ficou olhando em seu progresso colea
nte, disparado, pelo ar primeiro, ela chegou perto dele, então recuou, para depois
aproximar-se de novo , e durante todo esse tempo Nathaniel se esgueirava por trás.
Mais perto, mais perto...
A mosca deu um mergulho agressivo contra o rosto de Lovelace, o mago se esquivou
e nesse momento Nathaniel pulou. Deu um impulso para cima e saltou nas costas d
o mago, seus dedos agarrados ao seu colarinho. Quando ele fez isso, a mosca viro
u um sagüi, que agarrou a trompa com dedos ágeis e ávidos. Lovelace soltou um grito e
deu um bofetão que mandou o sagüi rodopiando de cabeça para baixo; e então, curvando as
costas, atirou Nathaniel por cima de sua cabeça, fazendo-o cair pesadamente ao chão.
Nathaniel e o sagüi jaziam esparramados lado a lado, com Lovelace parado acima del
es. Os óculos do mago pendiam tortos de uma orelha. As mãos de Nathaniel lhe haviam
arrancado metade do colarinho. O cordão de ouro do Amuleto de Samarkand estava exp
osto em torno de seu pescoço.
Então, Lovelace disse, ajeitando os óculos e dirigindo-se a Nathaniel você reje
nha oferta. Uma pena. Como escapou de Maurice? Com a ajuda dessa coisa? Apontou p
ara o sagüi. Possivelmente, esse é Bartimaeus.
Nathaniel estava sem fôlego; tentar se levantar lhe doía.
O sagüi estava sobre as patas, crescendo, mudando de contorno.
Vamos silvou para Nathaniel.
Lovelace fez um sinal e proferiu uma sílaba. Uma forma maciça se materializou a seus
ombros tinha uma cabeça de chacal.
Não pretendia invocá-lo disse o mago. Bons escravos são difíceis de encontrar e
u djim, suspeito que serei o único a sair vivo deste salão. Mas, vendo que Bartimaeu
s está aqui, me parece errado negar-lhe a chance de acabar com ele. Lovelace fez u
m gesto indulgente para a gárgula, que agora estava agachadinha e alerta ao lado d
e Nathaniel. Desta vez, Jabor ele disse , não me decepcione.
O demônio de cabeça de chacal deu um passo à frente. A gárgula praguejou e disparou no a
r. Duas asas marcadas com veias vermelhas brotaram das costas de Jabor. Elas bat
eram uma vez, fazendo um barulho estalado, como de ossos se quebrando, e o alçaram
em perseguição.
Nathaniel e Lovelace foram deixados olhando um para o outro. A dor no diafragma
de Nathaniel havia melhorado um pouco, e ele conseguiu colocar-se de pé. Mantinha
os olhos fixos no reflexo dourado no pescoço do mago.
Sabe, John disse Lovelace, batendo descontraidamente a trompa contra a palma da
mão , se você tivesse tido a sorte de ser meu aprendiz desde o começo poderíamos ter feit
o grandes coisas juntos. Reconheço que há algo em você; é como olhar em um espelho os me
us dias jovens, temos em comum o mesmo desejo de poder. Ele sorriu, mostrando os
dentes brancos. Mas você foi corrompido pela moleza de Underwood, pela mediocrida
de dele.
Ele foi interrompido nesse ponto por um mago uivante que chegou aos tropeços e pôs-s
e entre eles, sua pele brilhando com minúsculas escamas azuis iridescentes. De tod
o o salão vinham os sons confusos e perturbadores de magia se distorcendo e dando
errado ao deparar-se com as ondas de choque emanando de Ramuthra. A maioria dos
magos com seus diabretes estava amontoada contra a parede oposta, quase um em ci
ma do outro em seu esforço para fugir. O grande ser foi em direção a eles, deixando a
sua passagem uma trilha de destroços alternados: cadeiras transformadas, bolsas e
pertences espalhados tudo esticado, torcido, reluzindo com tons e cores anormais
. Nathaniel tentou apagar aquilo da mente. Olhou para o cordão do amuleto, prepara
ndo-se para uma nova tentativa. Lovelace sorriu.
Mesmo agora você não desistiu ele disse. E é exatamente disso que estou falando
a vontade de ferro em ação. Isso é muito bom. Mas, se tivesse sido meu aprendiz, eu o
teria treinado a se controlar até ter a habilidade de poder exercer essa vontade.
Se quiser sobreviver, um mago autêntico deve ser paciente.
Sim Nathaniel disse roucamente , já me haviam dito isso.
Devia ter dado atenção... Bem, é tarde demais para salvá-lo agora, você me prejudic
is, e mesmo que eu estivesse disposto não há mais nada que eu possa fazer por você. O
amuleto não pode ser compartilhado.
Por um momento, ele ficou apreciando Ramuthra: o demônio havia acuado um grupo de
magos mais afastado e se abaixava em direção a eles com dedos sôfregos. Uma gritaria e
stridente foi de súbito cortada.
Nathaniel fez um pequeno movimento. Imediatamente, os olhos de Lovelace dardejar
am sobre ele.
Ainda lutando? ele disse. Se não posso confiar que você vai ficar caído aí e mo
todos esses outros tolos e covardes, terei de me desfazer de você primeiro. Aceite
isso como um elogio, John.
Ele levou a trompa aos lábios e soprou brevemente. A pele de Nathaniel se arrepiou
, sentiu uma transformação atrás dele.
Ramuthra se deteve ao som da trompa. O distúrbio nos planos, que marcava seus cont
ornos, se intensificou, como se ele irradiasse uma forte emoção, talvez raiva. Natha
niel o observou virar-se, ele parecia estar encarando Lovelace através da extensão d
o salão.
Não hesite, escravo! Lovelace gritou. Fará o que estou mandando! O garoto deve
r primeiro.
Nathaniel sentiu um olhar alienígena sobre ele. Com uma clareza estranha e distanc
iada, notou uma bela tapeçaria dourada pendendo na parede atrás da cabeça do gigante;
ela parecia maior do que devia em foco extremamente nítido, como se a essência do de
mônio a engrandecesse.
Venha!
A voz de Lovelace saiu seca e rachada. Uma grande onda saiu do demônio, transforma
ndo um lustre próximo em um bando de minúsculos passarinhos amarelos, que se espalha
ram e saíram voando entre as vigas do teto do salão antes de se dissolver. Dando as
costas com gravidade aos magos restantes, Ramuthra partiu na direção de Nathaniel.
Os intestinos de Nathaniel viraram água. Ele recuou.
A seu lado, ouviu Lovelace dar um risinho.
Bartimaeus
Então lá estávamos nós outra vez, Jabor e eu, como um casal em um baile eu caindo fora,
ele perseguindo, sincronizados passo a passo. Atravessamos voando o salão caótico, e
vitando os humanos em correria, as explosões de mágica mal apontada e as ondas de ch
oque que irradiavam do grande ser andando pesadamente pelo meio. Jabor ostentava
uma careta que podia ser de chateação ou insegurança, uma vez que até sua extrema flexi
bilidade seria posta à prova neste novo ambiente. Resolvi solapar seu moral.
Como se sente, sendo inferior a Faquarl? gritei, enquanto me agachava atrás de um
dos poucos lustres restantes. Não vejo Lovelace arriscando a vida dele, invocando-
o para cá hoje.
Do outro lado do lustre, Jabor tentou lançar uma Pestilência sobre mim, mas uma ondu
lação de energia a desmanchou e ela virou uma nuvem de lindas flores derivando para
o chão.
Encantador disse eu. Agora você precisa aprender a arrumá-las elegantemente. Pos
e emprestar um belo vaso, se quiser.
Não creio que a compreensão de insultos por Jabor chegasse ao ponto de perceber exat
amente esse, mas ele entendeu o tom, e este de fato o levou a uma reação verbal.
ELE ME INVOCOU PORQUE SOU MAIS FORTE! berrou, arrancando o lustre do teto e atir
ando-o em mim. Desviei-me com um quê de balé e ele se arrebentou contra a parede, fa
zendo chover pedacinhos de cristal sobre as cabeças apavoradas dos magos.
Jabor não pareceu impressionado com essa graciosa manobra.
COVARDE! gritou. VOCÊ SEMPRE SAI DE FININHO, RASTEJA, FOGE E SE ESCONDE.
Isso se chama inteligência disse eu, fazendo uma pirueta em pleno ar, pegando um p
au lascado das vigas do teto e atirando-o contra ele como um dardo. Ele nem se d
eu o trabalho de se mexer, mas deixou-o partir-se contra seus ombros e cair na c
hão. E então avançou. Apesar de minhas excelentes palavras, nada do meu sair de fininh
o, do meu rastejar, fugir e me esconder estava tendo muito efeito no momento e,
olhando para o salão, vi que a situação na verdade estava se deteriorando rapidamente.
Ramuthra101 havia se virado e atravessado o salão até onde o mago e meu amo estavam
parados. Não era difícil ver o que Lovelace pretendia: o garoto se tornara irritant
e demais para que ele o deixasse viver mais um momento. Eu entendia o seu ponto
de vista.
E Lovelace ainda segurava a trompa, ainda usava o amuleto. Até agora ele não havia g
anhado nada. De alguma forma, tinha de ser distraído, antes que Ramuthra chegasse
perto o suficiente parta destruir o garoto. E uma idéia me veio livremente à cabeça. I
nteressante... Mas, primeiro, euprecisava me livrar de Jabor por algum tempo. Er
a mais fácil falar do que fazer, sendo Jabor o tipo do cara persistente.
Evitando seus dedos estendidos, atravessei o ar descendo em um mergulho, indo na
vaga direção do centro do salão. O pódio há muito havia sido reduzido a uma espécie de sub
tância tipo manjar de coco pela proximidade da brecha. Sapatos largados e cadeiras
estavam espalhados a toda a volta, mas não restava ninguém vivo nessa área.
Desci com velocidade. Atrás, ouvi Jabor precipitando-se pelo ar em perseguição feroz.
Quanto mais perto eu chegava da brecha, maior a tensão sobre a minha essência podia
sentir uma sucção começando a puxar-me para a frente; o efeito era desagradavelmente s
emelhante ao de ser invocado. Quando cheguei ao limite de minha resistência, parei
em pleno ar, dei uma rápida cambalhota e fiquei de frente para Jabor, que se apro
ximava. Lá estava ele, que descia silvando, os braços estendidos, e zangado, sem se
dar conta do perigo logo atrás de mim. Ele só queria cravar suas garras em minha essên
cia, deixar-me como uma de suas vítimas na velha Ombos102 ou na Fenícia.
Mas eu não era nenhum mero humano, acovardado e intimidado na escuridão do templo. E
u sou Bartimaeus, e nenhum covarde tampouco. Finquei pé no meu terreno.103
E lá veio Jabor descendo. Agachei-me em uma pose de luta.
Ele abriu a boca e deu aquele grito de chacal...
Bati as asas uma vez e alcei-me no ar uma fração de altura. No que ele passou dispar
ado embaixo de mim, girei e dei-lhe com os pés nas costas, com toda a minha força. E
le ia depressa demais para parar rapidamente, especialmente com a minha amigável a
ssistência. As asas dele se apertaram para a frente, em um esforço para parar... Ele
diminuiu a velocidade... começou a virar, rosnando...
A brecha exerceu seu puxão sobre ele. Em sua cara apareceu uma súbita expressão de dúvid
a. Ele tentou bater as asas, mas elas não se mexiam da maneira adequada. Era como
se estivessem imersas em melaço derretido; vestígios de uma substância negro-acinzenta
da eram puxados das beiras de suas asas e sumiam, sugados. Isso era sua essência c
omeçando a ser tirada. Ele fez um tremendo esforço e de fato conseguiu avançar um pouc
o em minha direção. Fiz-lhe um sinal de polegar para cima.
Muito bem disse eu. Calculo que você fez cerca de cinco centímetros agora. Continue
tentando. Ele fez mais um esforço hercúleo. Mais um centímetro! Valeu a tentativa! Log
o porá as mãos em cima de mim.
Para estimulá-lo, estendi um pé atrevido em sua direção e o sacudi na frente da sua cara
, imediatamente fora de alcance. Ele rosnou e tentou me acertar uma pancada, mas
agora a essência estava se desenroscando da superfície de seus membros e sendo puxa
da para dentro da brecha; seu tônus muscular estava se transformando visivelmente,
afinando a cada instante. Conforme sua força recuava, o empuxo da brecha ficava m
ais forte e ele começou a ir para trás, devagar a princípio, depois mais depressa.
Se Jabor tivesse metade de um cérebro, ele podia ter se transformado em um mosquit
o ou algo assim: talvez, com menos volume, pudesse ter feito força para se liberta
r do puxão gravitacional da brecha. Uma palavra amigável de conselho poderia tê-lo sal
vado mas, ai de mim, eu estava ocupado demais observando-o se desmanchar e só cons
egui pensar nisto quando já era tarde demais. Agora seus membros traseiros e asas
estavam se soltando em um fluxo líquido de um material negro-cinzento que entrava
espiralando pela brecha adentro e para fora da Terra. Aquilo não pode ter sido agr
adável para ele, especialmente com a incumbência de Lovelace ainda prendendo-o aqui,
mas seu rosto não demonstrou nenhuma dor, somente ódio. E assim foi, bem até o fim. M
esmo quando a parte de trás de sua cabeça perdeu a forma, seus olhos vermelhos chame
jantes ainda estavam fixos nos meus. E então eles sumiram dentro da brecha e eu fi
quei sozinho, acenando-lhe um carinhoso adeus.
Não perdi muito tempo com minhas despedidas. Tinha outros assuntos.
Nathaniel
- Uma coisa surpreendente, o Amuleto de Samarkand.
Fosse por medo ou por um prazer cruel em reafirmar seu controle, Lovelace insist
ia em manter uma conversa unilateral com Nathaniel, mesmo enquanto Ramuthra cami
nhava pesada e impiedosamente em direção a eles. Parecia que ele não conseguia se forçar
a calar a boca. Nathaniel recuava lenta e desesperançadamente, sabendo que não havi
a nada que pudesse fazer.
Ramuthra desagrega os elementos, veja você. Lovelace continuou. Por onde quer q
passe, os elementos se rebelam. E isso arruina a ordem cuidadosa de que toda mágic
a depende. Nada que qualquer de vocês possa tentar pode deter isso: todo esforço mágic
o errará o alvo, você não pode me atingir nem pode fugir. Ramuthra vai pegar vocês todos
. Mas o amuleto contém uma força igual e oposta à de Ramuthra, assim, estou em segurança
. Ele poderia até me levar à sua boca, de forma que o caos se desencadearia sobre mi
m, e eu não ia sentir nada.
O demônio havia reduzido à metade a distância até Nathaniel e estava acelerando o passo.
Um de seus grandes braços transparentes estava esticado. Talvez estivesse ávido par
a degustá-lo.
Meu caro mestre me sugeriu este plano disse Lovelace e, como sempre, estava bem
foi inspirado. Ele estará nos observando neste momento.
Schyler, você quer dizer? Mesmo no limiar da morte, Nathaniel não conseguiu conter u
ma satisfação selvagem. Duvido. Ele está caído lá em cima, morto.
O autocontrole de Lovelace faltou-lhe pela primeira vez. Seu sorriso vacilou.
Isso mesmo Nathaniel disse. Não me limitei a fugir. Eu o matei.
O mago riu.
Não minta para mim, menino...
Uma voz atrás de Lovelace: uma voz de mulher, baixa e queixosa.
Simon!
O mago olhou para trás. Amanda Cathcart estava ali, parada, pertinho dele, o vesti
do rasgado e enlameado, o cabelo desgrenhado e agora levemente avermelhado. Apro
ximou-se claudicante os braços abertos, desnorteamento e terror gravados em seu ro
sto.
Oh, Simon disse. O que você fez?
Lovelace empalideceu, virou-se para encarar a mulher.
Para trás! gritou. Havia uma nota de pânico em sua voz. Afaste-se!
Lágrimas afloraram aos olhos de Amanda Cathcart.
Como pôde fazer isso, Simon? Devo morrer também?
Ela cambaleou para a frente. Embaraçado, o mago ergueu a mão para afastá-la.
Amanda, e-eu sinto muito. Ti... tinha de ser.
Não, Simon, você me fez tantas promessas.
Vindo de lado, Nathaniel aproximou-se furtivamente.
A confusão de Lovelace transformou-se em raiva.
Afaste-se de mim, mulher, ou chamo o demônio para fazer picadinho de você!
Amanda Cathcart não se mexeu. Ela parecia não ligar mais.
Como pôde me usar desse modo, Simon? Após tudo o que me disse. Você não tem honra n
a.
Nathaniel deu mais um passo arrastado. O contorno de Ramuthra assomava sobre ele
agora.
Amanda, eu a estou prevenindo...
Nathaniel pulou para a frente e agarrou. Seus dedos rasparam pela pele do pescoço
de Lovelace e então fecharam-se em torno de algo frio, duro e flexível. O cordão do am
uleto. Puxou-o com toda a sua força. Por um instante, a cabeça do mago foi sacudida
na direção dele, então um elo em algum ponto do cordão estalou e a peça veio solta para a
sua mão.
Lovelace deu um grande grito.
Nathaniel, soltando-se dele, caiu para trás e rolou para o chão, os elos do cordão bat
endo em seu rosto. Agarrou-o com as duas mãos, segurando entre os dedos a pequena
coisa fina e oval que pendia do meio do cordão partido. Ao fazê-lo, teve consciência d
e um peso tirado de cima dele, como se um olhar impiedoso houvesse de repente se
desviado para outra parte.
Lovelace ficou tonto ao primeiro choque do ataque e então fez como se fosse pular
em cima de Nathaniel, mas dois braços finos o puxaram para trás.
Espere, Simon, você não vai machucar um pobre e doce garotinho, vai?
Você está louca, Amanda! Largue-me! O amuleto... eu preciso...
Por um instante, ele lutou para livrar-se do agarrão desesperado da mulher, e então
a presença imponente diretamente sobre ele captou seu olhar horrorizado. Suas pern
as amoleceram. Ramuthra agora estava muito perto dos três: na plena força de sua pro
ximidade, o tecido de suas roupas tremulou descontroladamente, os cabelos deles
voaram sobre seus rostos. O ar em torno deles estremeceu, como se tivesse eletri
cidade. Lovelace recuou, quase caindo.
Ramuthra! Eu lhe ordeno, pegue o garoto! Ele roubou o amuleto! Não está realmente p
otegido!
Sua voz não tinha convicção. Uma mão grande e translúcida se estendeu. Lovelace redobrou s
eus pedidos.
Então esqueça o garoto, pegue a mulher! Pegue a mulher primeiro!
Por um momento, a mão fez uma pausa. Lovelace fez um grande esforço e soltou-se das
mãos da mulher.
Sim! Está vendo? Aí está ela! Pegue-a primeiro!
De toda parte e de lugar nenhum chegou uma voz como uma grande multidão falando em
uníssono.
NÃO ESTOU VENDO MULHER NENHUMA. SÓ UM DJIM SE ESCANCARANDO DE RIR.
O rosto de Lovelace virou pedra, ele voltou-se para Amanda Cathcart, que o vinha
fitando com um olhar de dolorosa súplica. Quando ele olhou, os traços dela se alter
aram lentamente. Um sorriso de maldade e triunfante abriu-se em seu rosto de ore
lha a orelha. Em um lampejo, um dos braços dela se projetou coleando e arrancou a
trompa de invocação da mão de Lovelace, que afrouxara sua pega, e carregou-a. Com um s
alto, Amanda Cathcart sumiu, e um sagüi apareceu pendurado pela cauda em uma luminár
ia a vários metros de distância. Ele agitou a trompa alegremente para o mago estupef
ato.
Importa-se se eu ficar com isto? ele gritou. Não vai precisar dela lá para onde
ai.
Toda a energia pareceu fugir do mago; sua pele pendia frouxa e cinzenta sobre os
ossos. Seus ombros descaíram; ele deu um passo na direção de Nathaniel, como se fosse
tentar, sem entusiasmo, recuperar o amuleto... E então uma mão enorme desceu e agar
rou-o, e Lovelace foi levantado no ar. Para o alto, cada vez mais alto ele foi,
seu corpo se deslocando e se alterando no processo. A cabeça de Ramuthra inclinou-
se para recebê-lo. Viu-se algo que poderia ser uma boca se abrindo.
Um instante depois, Simon Lovelace havia desaparecido.
O demônio fez uma pausa para encontrar o sagüi gozador, mas por enquanto ele estava
desaparecido. Ignorando Nathaniel, que ainda estava esparramado no chão, virou-se
pesadamente de volta para os magos na outra porta do salão.
Uma voz familiar falou ao lado de Nathaniel.
Dois já foram, e ainda falta um disse ela.
Bartimaeus
Eu estava tão eufórico com o sucesso da excelente peça que havia pregado, que arrisque
i mudar para a forma de Ptolomeu no momento em que a atenção de Ramuthra estava dist
raída. Jabor e Lovelace haviam sumido e agora só restava a grande entidade para cuid
ar. Cutuquei meu amo com uma botina. Ele estava deitado de costas, ninando o Amu
leto de Samarkand em suas mãos encardidas, como uma mãe com o seu bebê. Eu pousara a t
rompa de invocação ao seu lado.
Ele esforçou-se por passar à posição de sentado.
Lovelace... Você viu?
Vi, e não foi nada bonito.
Quando ele se pôs rigidamente de pé, seus olhos luziam com um brilho estranho, metad
e horror, metade exaltação.
Eu peguei sussurrou. Peguei o amuleto.
Sim repliquei apressado. Bom serviço. Mas Ramuthra ainda está conosco e, se qui
s conseguir ajuda, nosso tempo está se esgotando.
Olhei para o lado oposto do auditório. Minha euforia diminuiu. Os ministros de Est
ado reunidos eram a essa altura uma pilha lamentável, ou se encolhendo em estúpida e
stupefação, socando as portas, ou lutando ferozmente uns com os outros por uma posição o
mais distante possível de Ramuthra, que se aproximava. Era um espetáculo pouco edif
icante, algo como ficar olhando um monte de ratos transmissores da peste brigand
o em uma sarjeta. Era também altamente preocupante: uma vez que nenhum deles parec
ia em estado adequado para recitar um complexo feitiço de dispensa.
Vamos lá disse eu. Enquanto Ramuthra pega alguns, podemos estimular os outros.
m é mais provável de se lembrar da contra-invocação?
Ele franziu o lábio.
Nenhum deles, pelo que parece.
Mesmo assim, temos de tentar. Puxei-o pela manga. Ora, vamos. Nenhum de nós con
e a fórmula.104
Fale por si próprio disse ele devagar. Eu a conheço.
Você? Eu estava um pouco surpreso. Tem certeza?
Ele fechou a cara para mim. Fisicamente, ele era bem azedo pele branca, machucad
o e sangrando, oscilando ao ficar parado. Mas um fogo brilhante de determinação ardi
a em seus olhos.
Essa possibilidade nem tinha lhe ocorrido, tinha? disse ele. Sim, eu a aprendi.
Havia mais que uma sugestão de dúvida na voz, e nos olhos também eu a percebi lutando
com seu espírito decidido. Tentei não parecer cético.
É de muito alto nível disse eu. E complexa; e você vai precisar quebrar a trompa no mo
mento exatamente certo. Isto não é hora para falso orgulho, garoto. Você ainda podia..
.
Pedir ajuda? Não creio. Fosse por orgulho ou espírito prático, ele tinha absoluta razão.
Ramuthra estava agora quase em cima dos magos; não tínhamos nenhuma chance de conse
guir ajuda deles. Fique afastado disse ele. Preciso de espaço para pensar.
Hesitei por um instante. Por admirável que fosse sua força de caráter, eu podia ver co
m a maior clareza para onde ela levava. Com ou sem amuleto, as conseqüências de uma
dispensa malfeita são sempre desastrosas, e dessa vez eu sofreria bem ao lado dele
. Mas eu não conseguia pensar em nenhuma alternativa.
Desconsoladamente, recuei. Meu amo pegou a trompa de invocação e fechou os olhos.
Nathaniel
Ele fechou os olhos para o caos no salão e respirou tão fundo e devagar quanto pôde. S
ons de sofrimento e de terror ainda lhe chegavam mas ele, com força de vontade, af
astou-os da cabeça.
Isso foi relativamente fácil. Mas um grande volume de vozes interiores falava com
ele, e esse era um clamor que não conseguia afastar. Aquele era o momento dele! O
momento em que mil insultos e privações seriam postos de lado e esquecidos! Conhecia
a fórmula encantatória, ele a tinha aprendido muito tempo atrás. Ele a diria e todos
veriam que ele não poderia voltar a ser depreciado. Sempre, sempre fora subestimad
o! Underwood achava-o um imbecil, um tolo que mal tinha força para traçar um círculo.
Recusava-se a acreditar que seu aprendiz pudesse invocar um djim de qualquer tip
o. Lovelace achava-o fraco, infantilmente sentimental, e no entanto passível de se
r tentado pela primeira oferta superficial de poder e status. Recusara-se a acei
tar que Nathaniel havia também matado Schyler: fora para a morte negando-o. E agor
a até mesmo Bartimaeus, seu próprio servo, duvidara que ele conhecesse a fórmula de di
spensa! Sempre, sempre faziam pouco dele.
Agora era o momento em que tudo estava em suas mãos. Muitas vezes ele havia sido d
eixado impotente trancado em seu quarto, afastado do incêndio, roubado pelos plebe
us, preso na restrição... As lembranças dessas indignidades ardiam dentro dele. Mas ag
ora ele ia agir ia mostrar a eles!
O clamor de seu orgulho ferido quase o sufocou. Latejava no interior de seu crânio
. Mas no mais íntimo de seu ser, sob esse desespero de conseguir vencer por si própr
io, um outro desejo lutava por se expressar. À distância, ouviu alguém gritar de medo
e um arrepio de piedade percorreu-lhe o corpo. A não ser que conseguisse se lembra
r do encanto, os magos desamparados iam morrer. Suas vidas dependiam dele. E ele
tinha o conhecimento para os socorrer. A contra-invocação, a dispensa. Como era mes
mo? Ele tinha lido a fórmula, sabia que tinha guardara-a na memória há meses. Mas não co
nseguia se concentrar agora, não conseguia lembrar-se dela.
Isso era ruim. Eles iam todos morrer, tal como a sra. Underwood tinha morrido, e
mais uma vez ele estava a ponto de lhes faltar. Como Nathaniel gostaria de ajudá-
los! Mas só o desejo não bastava. Mais do que qualquer outra coisa, ele gostaria de
haver salvado a sra. Underwood, tirá-la das chamas. Teria dado sua vida pela dela,
se pudesse. Mas não conseguira, havia sido levado embora do incêndio, e ela desapar
ecera para sempre. Seu amor não servira para nada.
Por um momento, sua perda passada e a urgência do seu desejo atual misturaram-se e
cresceram dentro dele. Lágrimas lhe rolaram pelo rosto.
Paciência, Nathaniel,
Paciência...
Aspirou o ar lentamente. Seu pesar recuou. E, atravessando um grande abismo, che
gou-lhe a recordação da paz do jardim de seu mestre voltou a ver os arbustos de rodo
dendros, suas folhas luzindo ao sol seu verde-escuro. Viu as macieiras dando sua
florada branca; um gato deitado sobre o muro de tijolos vermelhos. Sentiu o líque
n sob seus dedos; viu o musgo sobre a estátua; sentiu-se novamente protegido do mu
ndo enorme lá fora. Imaginou a sra. Lutyens sentada silenciosamente, desenhando se
u lado. Uma sensação de paz derramou-se sobre ele.
Sua mente clareou, sua memória brotou.
Vieram-lhe as palavras necessárias, tal como ele as aprendera, sentado no banco de
pedra, há um ano ou mais.
Abriu os olhos e as pronunciou, a voz alta, clara e forte. Ao final da décima quin
ta sílaba, ele partiu a trompa de invocação em duas sobre seu joelho. Quando o marfim
rachou e as palavras ressoaram, Ramuthra parou instantaneamente. As ondulações treme
luzentes no ar, que definiam seus contornos, estremeceram, primeiro suavemente e
depois com maior força. A brecha no centro do salão abriu-se um pouco. Então, com esp
antosa brusquidão os contornos do demônio encolheram e se desmancharam, foram atraídos
para dentro da brecha e desapareceram.
A brecha se fechou: uma cicatriz formando-se a uma incrível velocidade.
Com ele sumido, o salão parecia cavernoso e vazio. Um candelabro e diversas pequen
as luminárias de parede voltaram a acender, lançando uma fraca iluminação aqui e ali. Lá f
ora, o céu do fim da tarde estava cinzento, virando azul escuro. Podia-se ouvir o
vento atravessando as árvores no bosque.
Fez-se um silêncio absoluto no salão. A multidão de magos e um ou dois diabretes machu
cados e amassados ficaram absolutamente quietos. Só uma coisa se mexia: um menino
que atravessava mancando o centro do salão com o Amuleto de Samarkand pendendo de
seus dedos. A pedra de jade em seu centro reluzia fracamente à meia luz do recinto
.
Em profundo silêncio, Nathaniel foi até onde Rupert Devereaux estava esparramado, se
mi-enterrado sob o ministro do Exterior, e colocou o amuleto cuidadosamente em s
uas mãos.
Bartimaeus
43
Isso foi típico do garoto. Tendo executado a ação mais importante de sua pobre vidinha
, era de esperar que ele se largasse no chão, exausto e aliviado. Mas ele fez isso
? Não. Essa era a sua grande chance e ele a aproveitou da forma mais teatral possíve
l. Com todos os olhos sobre ele, atravessou o auditório arruinado como um pássaro fe
rido, frágil como se possa conceber, direto até o centro do poder. O que ele ia faze
r? Ninguém sabia, ninguém ousava imaginar (vi o primeiro-ministro se encolher quando
o garoto estendeu a mão). E então, no momento culminante dessa pequena charada, tud
o se revelou: o lendário Amuleto de Samarkand seguro bem alto, para que todos o pu
dessem ver devolvido ao coração do governo. O garoto lembrou-se até de baixar a cabeça r
everencialmente ao fazê-lo.
Sensação no salão!
Que desempenho, hein? Na verdade, quase mais do que sua capacidade de intimidar
djins, essa instintiva adulação da multidão me sugeriu que o garoto estava provavelmen
te destinado ao sucesso mundano.105 Certamente suas ações aqui tiveram o efeito dese
jado: em momentos, ele era o centro de uma multidão admiradora.
Despercebido em toda essa agitação, abandonei a forma de Ptolomeu e assumi a aparência
de um diabrete de menor importância, que logo (quando o rolo se desfez) foi paira
ndo para o lado do garoto de um modo meio humilde. Não tinha nenhum desejo de que
minhas verdadeiras capacidades fossem notadas. Alguém poderia fazer uma ligação com o
djim bagunceiro que recentemente fugira da prisão do governo.
O ombro de Nathaniel era o ponto de observação ideal para eu apreciar as conseqüências d
a tentativa de golpe, uma vez que, por algumas horas pelo menos, o garoto era o
centro das atenções. Onde o primeiro-ministro e seus companheiros mais importantes i
am, meu amo ia também, atendendo a questões urgentes e se enchendo dos acepipes revi
gorantes que os serviçais lhe traziam.
Quando uma contagem sistemática das pessoas foi feita, a lista dos desaparecidos,
como se descobriu, incluía quatro ministros (todos, por sorte, de postos razoavelm
ente pouco importantes) e um único subsecretário.106 Além disso, vários magos tinham sof
rido graves distorções faciais e corporais ou haviam sido molestados de alguma outra
forma.
O alívio geral bem depressa se tornou raiva. Com Ramuthra fora dali, os magos pude
ram mandar seus escravos contra as barreiras mágicas nas portas e paredes e rapida
mente irromperam casa adentro. Foi feita uma busca minuciosa em Heddleham Hall,
mas, fora os diferentes tipos de criados, o cadáver do velho e um menino furioso p
reso em um banheiro, ninguém foi descoberto. Não foi surpresa que o mago com cara de
peixe, Rufus Lime, houvesse desaparecido; nem havia sinal do homem da barba neg
ra que havia cuidado do portão de entrada. Ambos pareciam ter sumido no ar.
Nathaniel também orientou os investigadores para a cozinha, onde um grupo espremid
o de auxiliares de cozinha foi achado tremendo em uma dispensa. Eles informaram
que por volta de meia hora antes,107 o cozinheiro-chefe deu um forte grito, esto
urou em uma chama azul e inchou até um tamanho enorme e aterrador, antes de desapa
recer em uma lufada de enxofre. Após alguma inspeção, um cutelo de carne foi achado fo
rtemente cravado na pedra da lareira, uma última lembrança da servidão de Faquarl.108
Com os principais conspiradores mortos ou desaparecidos, os magos passaram a int
errogar os criados do hall. Estes, no entanto, mostraram-se ignorantes da conspi
ração. Informaram que durante as semanas anteriores, Simon Lovelace havia organizado
a extensa reforma e redecoração do auditório, proibindo-os de lá entrar por longos períod
os. Operários que nunca eram vistos, acompanhados por muitos sons e luzes estranha
mente coloridas, haviam construído o chão de vidro e colocado o novo tapete,109 supe
rvisionado por um certo cavalheiro bem-vestido, com um rosto redondo e barba ave
rmelhada.
Essa era uma nova pista. Meu amo ansiosamente informou ter visto essa pessoa sai
ndo do hall naquela manhã mesmo, e foram mandados imediatamente mensageiros com su
a descrição para alertar a polícia de Londres e dos condados do interior.
Quando tudo que podia ser feito já tinha sido feito, Devereaux e seus ministros ma
is ilustres se restabeleceram com champanhe, carnes frias e frutas cristalizadas
e ouviram direito a história do meu amo. E que história era aquela! Que rosário choca
nte desfiou! Até mesmo eu, com minha longa experiência da falsidade humana, fiquei p
asmo com as lorotas com que aquele garoto se saiu. Para ser franco, ele tinha me
smo muito o que esconder: seu próprio roubo do amuleto, por exemplo, e meu pequeno
confronto com Sholto Pinn. Mas muitas de suas lorotas eram absolutamente desnec
essárias. Tive de ficar sentado caladinho em seu ombro e ouvir referências a mim com
o um "diabrete menor" (cinco vezes), uma "espécie de trasgo" (duas vezes) e até (uma
vez) como um "homúnculo".110 Pergunto a vocês: até onde insultos podem chegar?
Mas isso não foi nem a metade. Ele narrou (com olhos enormes e tristonhos) como se
u querido mestre, Arthur Underwood, sempre suspeitara de Simon Lovelace, mas nun
ca conseguiu prova de qualquer transgressão dele. Isto é, até o dia fatídico em que o sr
. Underwood por acaso percebeu o Amuleto de Samarkand em posse de Lovelace. Ante
s que ele pudesse alertar as autoridades, Lovelace e seu djim haviam chegado à cas
a deles, dispostos a matá-lo. Underwood, acompanhado por John Mandrake, seu fiel a
prendiz, opôs forte resistência, enquanto até a sra. Underwood se meteu, tentando hero
icamente enfrentar Lovelace ela própria. Tudo em vão. O sr. e a sra. Underwood foram
assassinados e Nathaniel fugiu para salvar a vida, com apenas um diabrete menor
para ajudá-lo. Enquanto contava isso, ele tinha de fato lágrimas nos olhos; era qua
se como se ele acreditasse nos disparates que estava dizendo.
Esse foi o grosso de sua mentira. Não tendo como provar a culpa de Lovelace, Natha
niel então fora para Heddleham Hall na esperança de, de alguma forma, impedir seu cr
ime horrível. Agora estava muito feliz por ter conseguido salvar as vidas dos nobr
es governantes de seu país etc. etc.; honestamente, era o bastante para fazer um d
iabrete chorar.
Mas eles engoliram. Não duvidaram de uma única palavra. Ele comeu mais uma coisinha às
pressas, bebericou um gole de champanhe, e então meu amo foi mandado embora em um
a limusine ministerial, de volta a Londres para dar mais informações.
Fui junto também, é claro. Não ia perdê-lo de vista por coisa alguma. Ele tinha uma prom
essa a cumprir.
44
Os passos do criado recuaram escadas abaixo. O garoto e eu olhamos em torno.
Preferiria o seu antigo quarto disse eu. Este aqui cheira mal, e você ainda nem se
mudou.
Ele não cheira mal.
Cheira mal, sim: a tinta fresca, plástico e tudo que é coisa nova e fabricada. O que
, suponho, é bastante adequado para você, não acha, sr. Mandrake?
Ele não respondeu. Estava a caminho da janela, para olhar a vista.
Era a noite do dia seguinte à grande invocação em Heddleham Hall, e pela primeira vez
meu amo estava sendo deixado por sua própria conta. Ele havia passado boa parte da
s 24 horas anteriores em reuniões com ministros e a polícia, repassando sua história e
sem dúvida acrescentando mentiras a cada nova narrativa. Enquanto isso, fiquei do
lado de fora, na rua,111 tiritando de impaciência. Minha frustração só fez aumentar, qu
ando o garoto passou a primeira noite em um dormitório especialmente providenciado
em Whitehall, em um prédio fortemente guardado de inúmeros modos. Enquanto ele ronc
ava lá dentro, fui forçado a ficar escondido do lado de fora, incapaz de bater com e
le o papo necessário.
Mas agora mais um dia se passara e seu futuro havia sido decidido. Um carro ofic
ial o levara à casa seu novo mestre um moderno projeto de prédios de apartamentos à be
ira do rio, na margem sul do Tâmisa. O jantar seria servido às oito e meia; seu mest
re estaria esperando na sala de jantar às oito e quinze. Isso significava que Nath
aniel e eu tínhamos uma hora para nós. E eu pretendia fazer com que essa hora valess
e.
O quarto continha o habitual: cama, escrivaninha, guarda-roupa (este um closet o
nde se podia entrar que luxo), estante, mesa-de-cabeceira, cadeira. Uma porta de
ligação levava a um minúsculo banheiro dentro do quarto. Havia uma poderosa luminária e
létrica montada no teto impecável e uma pequena janela em uma das paredes. Lá fora, a
lua brilhava sobre as águas do Tâmisa. O garoto olhava para as Casas do Parlamento,
quase diretamente em frente, com uma expressão estranha no rosto.
Elas estão muito mais perto agora disse eu.
Sim. Ela ficaria muito orgulhosa. Ele virou-se, só para descobrir que eu adotara
forma de Ptolomeu e estava reclinado em sua cama. Caia fora daí! Não quero esse seu
horrível... Ei! Ele avistou um livro enfurnado em uma prateleira ao lado da cama.
O Compendium de Fausto! O meu exemplar. Isso é espantoso! Underwood me proibia de
tocar nisto.
Lembre-se só que ele não fez bem nenhum a Fausto. Ele estava virando as páginas.
Brilhante... E meu mestre me disse que posso fazer invocações menores no meu quarto.
Ah, sim o seu belo e amado novo mestre. Você está satisfeito com ela, não está?
Ele fez que sim animadamente.
A sra. Whitwell é muito poderosa. Ela vai me ensinar um monte de coisas. E vai me
tratar com o devido respeito também.
E o que você acha? Uma maga honrada, não é? Fiz uma cara azeda.
Minha velha amiga Jéssica Whitwell, a ministra da Segurança, magra como uma vassoura
, diretora da Torre de Londres, controladora dos Globos Fúnebres... Sim, ela era m
esmo poderosa. Era, sem dúvida, um sinal da alta conta em que as autoridades tinha
m Nathaniel o fato de estar sendo confiado a seus ternos cuidados. Certamente el
a seria um mestre muito diferente de Arthur Underwood e cuidaria para que o tale
nto do garoto não fosse desperdiçado... O que isso faria com o seu temperamento era
outra questão. Bem sem dúvida ele estava tendo exatamente o que merecia.
Ela disse que tenho uma grande carreira à minha frente continuou ele , se eu jogar
minhas cartas direito e trabalhar com afinco. Disse que supervisionaria minha in
strução e que, se tudo corresse bem, eles me poriam no centro da ação e logo eu estaria
trabalhando em um departamento ministerial, para ganhar experiência. Ele tinha de
novo nos olhos aquele ar triunfante, do tipo que me dava vontade de pô-lo sobre me
us joelhos. Bocejei e afofei o travesseiro ostensivamente, mas ele foi em frente
. Não há restrições de idade, ela disse, só de talento. Eu disse que queria me envolver c
m o Ministério dos Assuntos Internos, o que está à caça da Resistência. Sabe que houve um
outro ataque enquanto estivemos fora de Londres? Um gabinete em Whitehall foi ex
plodido. Ainda não se fez nenhuma descoberta mas aposto que eu poderia achá-los. Em
primeiro lugar pegarei Fred e Stanley e aquela garota. Então os obrigarei a falar,
e vou...
Vamos com calma disse eu. Não acha que já fez o bastante para uma vida só? Pense a res
peito: dois magos loucos por poder mortos, uma centena de magos loucos por poder
salvos... Você é um herói.
Meu ligeiro sarcasmo com ele foi um desperdício.
Foi isso que disse o senhor Devereaux.
Sentei-me ereto subitamente e fechei a mão em copa em torno da orelha, voltada par
a a janela.
Ouça isso! exclamei.
O quê?
É o som de um monte de gente não dando vivas. Ele fechou a cara.
O que isso quer dizer?
Quer dizer que o governo está mantendo tudo muito na moita. Onde estão os fotógrafos?
Onde estão os jornalistas? Eu esperava vê-lo na primeira página do Times hoje de manhã.
Estariam lhe pedindo a história da sua vida, lhe dando medalhas em lugares públicos,
pondo você em vistosas edições limitadas de selos dos Correios... Mas não estão fazendo n
ada disso, estão?
O garoto deu uma fungada.
Eles têm de manter tudo na moita por motivos de segurança. Foi o que me disseram.
Não, é pelo motivo de não quererem parecer idiotas. "GAROTO DE DOZE ANOS SALVA O GOVER
NO"? Iam rir deles na rua. E isso é algo que mago nenhum suportaria, pode acredita
r em mim. Quando isso acontecer, será o princípio do fim.
O garoto deu um sorriso irônico. Ele era jovem demais para entender.
Não são os plebeus que temos de temer disse ele. São os conspiradores os que se safara
m. A sra. Whitwell diz que pelo menos quatro magos devem ter invocado o demônio. L
ogo, além de Lovelace, Schyler e Lime, deve haver pelo menos mais um. Lime sumiu e
ninguém viu o tal mago de barba avermelhada em nenhum dos portos ou aeródromos... é u
m verdadeiro mistério. Tenho certeza que Sholto Pinn está metido também, mas não posso d
izer nada sobre Sholto.... Depois do que você fez à loja dele...
Sim disse eu, pondo as mãos atrás da cabeça e falando de um jeito meio como quem medit
a , suponho que você tenha mesmo muito a esconder. Tem a mim, seu "diabrete de meno
r importância" e todas as minhas façanhas. E há você, roubando o amuleto e armando para
o seu mestre... Ele enrubesceu a essas palavras. Fez questão de ser ostensivo em s
air para investigar o closet das roupas. Levantei-me e fui atrás dele. Aliás acresce
ntei , noto que você deu à sra. Underwood um papel de estrela na sua versão dos acontec
imentos. Isso o ajuda a livrar a sua consciência, não é?
Ele virou-se para mim, o rosto rubro.
Se tem algo a dizer falou bruscamente, diga logo. Olhei-o seriamente.
Você disse que se vingaria de Lovelace disse eu e fez o que se dispôs a fazer.
z isso tire um pouco da sua dor, quer dizer espero que tire não tenho como saber.
Mas também prometeu que, se eu o ajudasse contra Lovelace, me libertaria. Bem, a a
juda foi devidamente dada. Acho que salvei a sua vida várias vezes em seguida. Lov
elace morreu e você está melhor, a seus olhos, do que já esteve. Agora é hora de honrar
a sua promessa, Nathaniel, e me deixar ir embora.
Por um momento ele ficou em silêncio.
Sim disse ele por fim , você me ajudou... Você me salvou...
Para minha eterna vergonha.
E eu estou... Ele parou.
Envergonhado?
Não.
Encantado?
Não.
Um pouquinho agradecido? Ele respirou fundo.
Sim. Estou agradecido. Mas isso não altera o fato de que sabe o meu nome de batism
o.
Já era hora de resolvermos isso de uma vez por todas. Eu estava cansado minha essênc
ia doía, pelo esforço de nove dias no mundo. Eu precisava ir embora.
É verdade disse eu. Sei o seu nome e você sabe o meu. Você pode me invocar. Eu
prejudicar. Isso nos deixa quites. Mas enquanto eu estiver no Outro Lugar, a qu
em vou contar? A ninguém. Você devia querer que eu voltasse para lá. Se tivermos sorte
, nem mesmo voltarei a ser invocado durante a sua vida. E, no entanto, seu eu fo
r fiz uma pausa, dei um fundo suspiro , prometo que não revelarei o seu nome.
Ele nada disse.
Quer que seja oficial? gritei. E que tal isto? "Caso eu quebre este juramento, q
e eu seja pisoteado na areia por camelos e espalhado entre o esterco dos campos.
"112 Ora, não posso dizer melhor do que isso, posso?
Ele hesitou. Por um instante, ia concordar.
Não sei murmurou. Você é um de... um djim. Juramentos para vocês não querem dizer nada.
Está me tomando por um mago! Tudo bem pulei para trás, com raiva , e quanto a isto? S
e não me dispensar, aqui e agora, irei direto lá embaixo contar à sua querida sra. Whi
twell exatamente o que aconteceu. Ela vai ficar muito interessada em ver-me, na
minha verdadeira forma.
Ele mordeu o lábio e estendeu a mão para o livro.
Eu podia...
Sim, você podia fazer um monte de coisas disse eu. Esse é o seu problema. Você é sabido
demais para o seu próprio bem. Muita coisa aconteceu porque você era sabido demais p
ara deixar as coisas quietas. Você queria vingança, invocou um nobre djim, roubou o
amuleto, deixou que outros pagassem o preço. Você fez o que queria, e eu o ajudei po
rque era obrigado. E sem dúvida, com sua sabedoria, poderia, com o tempo, conceber
algum novo aguilhão para mim, mas não rápido o suficiente para me impedir de contar i
mediatamente a sua mestra sobre você, o amuleto, Underwood e eu.
Imediatamente? disse ele baixinho.
Imediatamente.
Você terminaria na lata.
Pior para nós dois.
Por alguns momentos sustentamos dignamente o olhar um do outro, talvez pela prim
eira vez. E então, com um suspiro, o garoto desviou o olhar.
Dispense-me, John disse eu. Já fiz bastante. Estou cansado. E você também.
A isto, ele deu um sorrisinho.
Eu não estou cansado disse. Há muitas coisas que eu quero fazer.
Exatamente disse eu. A Resistência... os conspiradores... Você vai querer ter mão livr
e para caçá-los. Pense em todos os outros djins que vai precisar invocar, quando emb
arcar em sua grandiosa carreira. Eles não terão a minha classe, mas lhe dirão menos in
solências.
Alguma coisa nisso pareceu ferir uma corda sensível nele.
Muito bem, Bartimaeus disse finalmente. Concordo. Você vai ter de esperar enquanto
desenho o círculo.
Isso não é problema! Eu era a animação em pessoa. Na verdade, ficaria feliz de distraí-
enquanto você desenha! Do que gostaria? Eu poderia cantar como um rouxinol, fazer
tocar música maviosa no ar, criar mil perfumes celestiais... Creio que poderia até f
azer um pouco de malabarismo, se for do seu agrado.
Obrigado. Nada disso será necessário.
O chão em um canto do quarto tinha sido propositalmente deixado sem tapete e tinha
uma ligeira elevação. Lá, com grande precisão e apenas uma ou duas olhadas ligeiras em
seu livro de fórmulas, o garoto desenhou um pentagrama simples e dois círculos, com
um pedaço de giz preto que achou na gaveta da sua escrivaninha. Fiquei quieto enqu
anto ele desenhava. Não queria que ele fizesse qualquer erro.
Por fim, acabou e se ergueu, duro, segurando as costas.
Está pronto disse ele, se espreguiçando. Entre. Examinei as runas cuidadosamente.
Isso cancela o Pentagrama de Adelbrand não cancela?
Sim.
E quebra o Confinamento Perpétuo?
Sim! Vê aquele hieróglifo ali? Isso parte o fio. Agora, quer ser dispensado ou não?
Estava só conferindo. Passei para o círculo de dentro e virei-me para encará-lo. Ele s
e preparou, arrumando as palavras na cabeça, e então olhou-me severamente.
Tire esse riso estúpido sua cara disse. Você está me deixando sem graça.
Desculpe. Adotei uma expressão horrível de mal-estar e lástima.
Isso não é muito melhor.
Desculpe, desculpe.
Tudo bem, prepare-se. Ele respirou fundo.
Só uma coisa disse eu. Se for invocar alguém em breve, recomendo Faquarl. Ele é
trabalhador. Ponha-o para fazer algo construtivo, como drenar um lago com uma p
eneira ou contar grãos de areia em uma praia. Ele seria bom para isso.
Olhe, você quer ir ou não?
Oh, sim. Quero. E muito.
Bem, então...
Nathaniel uma última coisa.
O quê?
Ouça: para um mago, você tem potencial. E não quero dizer no sentido que está pensa
Só para começar, você tem muito mais iniciativa do que a maioria deles, mas eles vão esp
remê-la para fora de você se não tomar cuidado. E tem consciência também, outra coisa que é
rara e se perde com facilidade. Conserve-a. Isso é tudo. Oh, e eu tomaria cuidado
com sua nova mestra, se eu fosse você.
Ele me olhou por um momento, como se quisesse falar. E então sacudiu a cabeça, impac
ientemente.
Vou ficar bem. Não precisa se preocupar comigo. Esta é a sua última chance. Tenho d
escer para o jantar em cinco minutos.
Estou pronto.
Então o garoto disse a contra-invocação rapidamente e sem erros. Senti o peso das pala
vras que me prendiam à Terra diminuir a cada sílaba. Quando ele se aproximou do fina
l, minha forma se estendeu, se espalhou, borbotou dos limites do círculo. Múltiplas
portas se abriam nos planos, convidando-me a passar. Virei uma densa nuvem de fu
maça que trovejou para o alto e para fora, enchendo um quarto que se tornava menos
real para mim a cada instante que passava.
Ele terminou. Sua boca fechou-se. O elo final se rompeu como uma corrente partid
a.
Então fui embora, deixando para trás um pungente cheiro de enxofre. Apenas algo pelo
qual ser lembrado.

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