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COMEÇOS SURPREENDENTES

No dia 30 de Abril de 1940, o Hauptsturmführer (capi-


tão) das SS Rudolf Hoess realizou uma grande ambição. Aos
39 anos, e após seis anos ao serviço das SS, fora nomeado
comandante de um dos primeiros campos de concentração
nazi no Novo Reich. Nesse dia de Primavera, ele chegou para
assumir os seus deveres numa pequena cidade que, até oito
meses antes, pertencera ao Sudoeste da Polónia e agora fazia
parte da Alta Silésia alemã. O nome da cidade, em polaco, era
Oświęcim – em alemão, Auschwitz.
Embora Hoess tivesse sido promovido a comandante, o
campo que viria a comandar ainda não existia. Tinha de super-
visionar a sua construção a partir de um conjunto de barracas
do Exército polaco, delapidadas e infestadas de bicharada, que
se agrupavam à volta de um campo para o treino de cavalos,
na periferia da cidade. E a área circundante dificilmente podia
ser mais deprimente. Esta terra, entre os rios Sola e Vístula, era
plana e parda; o clima, húmido e doentio.
Ninguém, naquele primeiro dia, de certo incluindo o pró-
prio Rudolf Hoess, poderia prever que o campo viria a ser,
dentro de cinco anos, o lugar da maior mortandade em massa
que o mundo jamais vira. O processo de decisão que levou à
sua transformação é um dos mais chocantes no conjunto da
história e um dos que oferece visões mais profundas sobre o
funcionamento do estado nazi.

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Adolf Hitler, Heinrich Himmler, Reinhard Heydrich,
Hermann Goering, todos estes chefes nazis, e alguns mais
tomaram decisões que levaram ao extermínio de mais de um
milhão de pessoas em Auschwitz. Mas foi também predispo-
sição essencial para o crime a mentalidade de outros funcio-
nários menores como Hoess. Sem a sua liderança sobre
aquele território, até então não regulamentado como local
de assassínio em massa e a tal escala, Auschwitz nunca teria
funcionado como funcionou.
Na verdade, Rudolf Hoess não possuía nada de excepcio-
nal; tinha uma altura média, feições regulares e cabelo preto.
Não era nem feio nem bonito; assemelhava-se pura e simples-
mente – nas palavras do advogado americano Whitney Har-
ris1, que interrogou Hoess em Nuremberga – «a uma pessoa
normal, como um empregado de mercearia». Vários interna-
dos polacos de Auschwitz confirmam esta impressão, recor-
dando Hoess como sendo calmo e controlado, o tipo de
pessoa por quem se passa todos os dias na rua e em quem não
se repara. Na aparência, Hoess estava tão longe quanto pos-
sível de se assemelhar à imagem convencional do monstro das
SS, de face rosada e a cuspir saliva, o que, claro, fez dele uma
figura aterradora.
Quando Hoess transportou a sua mala para o hotel do lado
oposto à estação de comboio de Auschwitz, que seria a base
dos oficiais das SS até que melhores instalações se arranjassem
no campo, trazia também consigo a bagagem mental de um
adulto que devotara a sua vida à causa nacionalista. Tal como
a maioria dos nazis convictos, o seu carácter e as suas crenças
tinham sido moldados em função dos últimos vinte e cinco
anos de história da Alemanha – os mais turbulentos que o país
já experimentara. Nascido na Floresta Negra, em 1900, de
pais católicos, Hoess fora afectado, nos seus primeiros tempos,
por uma série de influências importantes: um pai dominador
que insistia na obediência; a sua participação na Primeira
Guerra Mundial, onde foi um dos mais jovens sargentos do

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Exército alemão; o seu desesperado sentimento de traição, a
seguir à perda da guerra; os serviços prestados nas forças para-
militares denominadas Freikorps, no início dos anos 20, numa
tentativa de se opor à prevista ameaça comunista nas frontei-
ras da Alemanha; e um envolvimento em políticas violentas
de direita que o levaram à prisão em 1923.
Muitos e muitos outros nazis foram moldados numa seve-
ridade similar. E Adolf Hitler foi, sem dúvida, um deles. Filho
de um pai dominador2, alimentava um ódio violento por
aqueles a quem sentia poder atribuir o colapso da Alemanha
numa guerra em que acabara de participar (e durante a qual,
tal como Hoess, lhe tinha sido atribuída uma Cruz de Ferro).
Hitler tentara tomar o poder num violento putsch, exacta-
mente no mesmo ano em que Hoess se envolvia, algures,
num assassínio de inspiração política.
Para Hitler, Hoess e outros da direita nacionalista, a neces-
sidade mais urgente era compreender como é que a Alemanha
tinha perdido a guerra e aceite uma paz tão humilhante. Nos
anos logo a seguir, acreditavam ter encontrado a resposta.
Não era óbvio, tal como sentiam, que os judeus haviam sido
os responsáveis? Chamavam a atenção para o facto de Walther
Rathenau, um judeu, ter sido ministro dos Negócios Estran-
geiros no novo governo pós-guerra de Weimar. E, em 1919,
consideravam que a ligação entre o judaísmo e o temido credo
do comunismo tinha sido provada, para além de quaisquer
dúvidas, quando na Primavera, em Munique, foi transitoria-
mente estabelecido um Räterepublik (Conselho da Repú-
blica) de tipo soviético. Os chefes deste governo dirigido por
comunistas eram, na sua maioria, judeus.
Não importava que um grande número de judeus alemães
leais tenha lutado com bravura (e muitos tenham morrido)
durante a guerra. Nem que milhares deles não fossem nem de
esquerda nem comunistas. Era muito mais fácil, para Hitler
e para os seus seguidores, encontrarem um bode expiatório
para a situação da Alemanha nos judeus alemães. Durante o

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processo, o partido nazi, recentemente formado, fundara-se
em longos anos de anti-semitismo alemão. E, desde o início,
os seus aderentes proclamavam o ódio aos judeus que não era
motivado por um qualquer preconceito baseado na ignorân-
cia, mas por um facto científico: «Lutamos contra as suas
acções [as dos judeus] porque elas são a causa de uma Tuber-
culose Racial das Nações!», declara um dos primeiros car-
tazes nazis, publicado em 1920. «E nós estamos convencidos
de que a convalescença só pode começar quando esta bactéria
for eliminada.»3 Este tipo de ataque pseudo-intelectual aos
judeus produziu um enorme efeito em homens como Hoess,
que declarava desprezar o anti-semitismo primitivo, violento
e quase pornográfico propagado por outro nazi, Julius Strei-
cher, na sua revista Der Stürmer. «A causa do anti-semitismo
é doentiamente servida pela perseguição desenfreada divul-
gada por Der Stürmer»4, escreveu Hoess na prisão, após a
derrota do nazismo. A sua visão era sempre mais fria, mais
«racional». Proclamava ter poucos motivos de conflito pessoal
com os judeus; o problema, para ele, era «a conspiração
judaica no plano internacional», através da qual, imaginava
ele, os judeus secretamente detinham as alavancas do poder e
procuravam ajudar-se uns aos outros através das fronteiras
nacionais. Era isto que ele considerava ter levado à derrota da
Alemanha na Primeira Guerra Mundial; era isto que ele pen-
sava ter de ser destruído: «Como nacional-socialista fanático,
estava completamente convencido de que o nosso ideal podia
ser pouco a pouco aceite e iria prevalecer em todo o mundo…
A supremacia judaica seria, portanto, destruída.»5
Após ter sido libertado da prisão, em 1928, Hoess acalen-
tou outra das convicções caras ao nacionalismo de direita e
que, como o anti-semitismo, ajudaram a definir o movimento
nazi: o amor à terra. Enquanto os judeus eram odiados por,
na sua maioria, viverem em cidades (desprezados, segundo
Goebbels, pela sua «cultura do asfalto»), os «verdadeiros» ale-
mães nunca perderam o amor à natureza. Não é por acaso que

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o próprio Himmler estudara agricultura nem que Auschwitz
se apresentava como um eventual protótipo de uma estação
de investigação agrícola.
Hoess aderiu aos Artamans, umas das comunidades agrí-
colas que na época floresceu na Alemanha, conheceu a mulher
com quem viria a casar e estabeleceu-se com a ideia de se
tornar um agricultor. Depois, acontece o momento que vai
mudar a sua vida. Em Junho de 1934, Himmler, o chefe da
polícia de Hitler, convida-o a desistir da agricultura e a ser um
membro das SS, a tempo inteiro, na Schutzstaffel, a elite que
originalmente fora criada como guarda-costas pessoal do
Führer e que, entre outros deveres, tinha agora o de dirigir os
campos de concentração6. Himmler conhecera Hoess durante
algum tempo e gostou do que viu: Hoess fora, desde o início,
um membro do partido nazi, a que aderiu em Novembro de
1922, com o número 3 240.
Hoess fez uma opção. Não foi forçado a ser voluntário –
ninguém era obrigado a pertencer às SS. Mas ele aderiu. Na
sua autobiografia dá-nos a razão dessa decisão: «Pela perspec-
tiva de uma promoção rápida e de um salário condizente,
convenci-me de que tinha de dar este passo.»7 É apenas meia
verdade. Escrevendo após a derrota do nazismo, o que não
surpreende, Hoess omite o que deve ter sido, para ele, o factor
mais decisivo: o seu estado emocional na altura. Em 1934,
Hoess sentiu que estava a ser testemunha do começo de um
mundo novo e maravilhoso. Hitler estava no poder há um
ano e os inimigos internos dos nazis – os políticos de esquerda,
os «ociosos», os anti-sociais, os judeus – já estavam a ser con-
frontados. Por todo o país, os alemães que não pertenciam a
estes grupos de risco aplaudiam o que se passava. A reacção
de Manfred von Schroeder, o filho de um banqueiro de Ham-
burgo que se filiou no partido nazi em 1933, é típica: «Tudo
estava de novo limpo e em ordem. Havia um sentimento de
libertação nacional, um novo começo… As pessoas diziam:
“Bem, isto é uma revolução, uma revolução surpreendente e

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pacífica, mas uma revolução.”»8 Hoess tinha a opção de ser
parte activa nesta revolução, uma revolução por que ele
ansiara desde o final da Primeira Guerra Mundial. Pertencer
às SS significava estatuto, privilégios, empolgamento e uma
oportunidade de influenciar o curso da nova Alemanha. Con-
tinuar agricultor não era mais do que continuar agricultor.
Será surpreendente que Hoess tenha feito esta opção? Aceita,
pois, o convite de Himmler e, em Novembro de 1934, chega
a Dachau, na Baviera, para começar o seu serviço como
guarda de um campo de concentração.
Na consciência popular de hoje em dia, e decerto tanto na
Grã-Bretanha como na América, há uma confusão sobre a
função dos diversos campos no estado nazi.
Os campos de concentração como o de Dachau (que se
estabeleceu em Março de 1933, menos de dois meses depois
de Adolf Hitler se tornar chanceler alemão) eram, na sua con-
cepção, diferentes dos campos de extermínio como Treblinka,
que existiram a partir do meio da guerra. Para acrescentar à
confusão de muitas pessoas, temos a história complexa de
Auschwitz, o mais ignóbil de todos os campos, que viria a
evoluir nos dois sentidos: um campo de concentração e um
campo de extermínio. Compreender a importância da distin-
ção entre os dois é essencial para o entendimento de como o
povo alemão, nesse tempo, racionalizou a existência de luga-
res como Dachau, durante os anos 30. Nenhum dos alemães
que filmei – mesmo os que antes foram nazis fanáticos – con-
fessou ser um «entusiasta» da existência dos campos de exter-
mínio, mas muitos mostraram-se satisfeitos, durante os anos
30, com a realidade dos campos de concentração. Tinham
acabado de passar pelo pesadelo da depressão económica e
haviam testemunhado a ineficácia da democracia na preven-
ção de uma espiral de declínio no país. O espectro do comu-
nismo continuava a existir. Nas eleições do princípio dos anos
30, a Alemanha parecia estar a dividir-se em dois extremos,
com muitos votantes no partido comunista. E para um

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homem como Manfred von Schroeder que, em 1933, acla-
mava a «revolução pacífica» dos nazis, havia paralelos históri-
cos que explicavam a necessidade da existência de campos de
concentração: «Ser um nobre francês na Bastilha não era de
todo agradável, ou seria?… Havia os campos de concentra-
ção, mas, à época, toda a gente dizia: “Oh! Os Ingleses inven-
taram-nos na África do Sul, com os Bóeres.”»
Os primeiros prisioneiros que entraram em Dachau, em
Março de 1933, eram sobretudo opositores políticos dos
nazis. Os judeus eram escarnecidos, humilhados e atacados
durante esses anos iniciais, mas os políticos de esquerda9 do
antigo regime é que eram vistos como a ameaça imediata.
Hoess, na chegada a Dachau, acreditava absolutamente que
estes «verdadeiros opositores do Estado tinham de estar pre-
sos com segurança»10. Os três anos e meio passados em
Dachau iriam desempenhar um papel decisivo na construção
do seu carácter. De facto, o regime cuidadosamente conce-
bido em Dachau, inspirado por Theodor Eicke, o primeiro
comandante do campo, não era apenas brutal; estava conce-
bido para quebrar a vontade dos prisioneiros. Eicke canali-
zava a violência e o ódio dos nazis para com os inimigos por
meio da organização e da ordem. Dachau é ignóbil pelo
sadismo físico lá praticado: eram comuns os chicoteamentos
e espancamentos. Os prisioneiros podiam ser assassinados e
as suas mortes justificadas como «morto por tentativa de
fuga». Uma significativa minoria dos enviados para Dachau
morreu, de facto, lá. Mas o poder real do regime de Dachau
não se baseava tanto nos maus tratos físicos – terríveis como,
sem dúvida, foram –, mas antes na tortura mental.
A primeira inovação em Dachau consistia em que, contra-
riamente a uma prisão normal, os prisioneiros não faziam a
menor ideia de quanto tempo seriam as suas sentenças.
Enquanto, durante os anos 30, a maioria dos prisioneiros era
libertada depois de uma permanência de cerca de um ano,
todas as sentenças individuais podiam ser mais breves ou lon-

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gas dependendo do capricho das autoridades; não havia uma
data limite que o prisioneiro conhecesse, apenas a incerteza
permanente de nunca saber se a liberdade seria amanhã, no
mês seguinte ou no ano seguinte. Hoess, que já suportara
vários anos de prisão, conhecia bem o poder terrível desta
política: «A incerteza da duração da pena era algo com que
nunca conseguiam lidar», escreveu ele. «Era isso que os fazia
quebrar e destruía mesmo a vontade mais firme… Só isso
tornava a vida no campo um tormento.»11
Aliada a esta incerteza existia ainda o modo como os guar-
das manipulavam a mente dos prisioneiros. Josef Felder,
membro do SPD (partido socialista) do Reichstag, um dos
primeiros ocupantes de Dachau, recorda – quando ele estava
mais em baixo emocionalmente – como o seu guarda prisio-
nal pegou numa corda e lhe demonstrou a melhor maneira
de fazer um laço para se enforcar12. Apenas com um enorme
exercício de autocontrolo e o recordar da frase «Eu tenho uma
família» conseguiu resistir à sugestão. Aos ocupantes exigia-se
que mantivessem os barracões e as roupas meticulosamente
em ordem. Inspecções regulares permitiam aos guardas das
SS descobrir faltas e, se desejassem, punir todo o bloco por
infracções imaginárias. Qualquer um, num bloco, podia ser
«fechado à chave» e obrigado a permanecer em silêncio e imó-
vel, durante dias, nos beliches.
Foi também introduzido em Dachau um sistema de Kapos –
algo que seria adoptado por toda a rede dos campos de con-
centração e que, subsequentemente, veio a ter um papel
importante na direcção de Auschwitz. (O termo Kapo parece
ter derivado do italiano capo, que significa «chefe».) As auto-
ridades do campo nomeavam um prisioneiro para ser o Kapo
em cada bloco ou comando de trabalho, e este ocupante viria
a ter um enorme poder sobre os companheiros de prisão. Não
será surpreendente saber como esse poder foi usado abusiva-
mente. Quase mais do que os guardas das SS, os Kapos, em
contacto minuto a minuto com os outros prisioneiros, usa-

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vam de um comportamento arbitrário de modo a tornar into-
lerável a vida no campo. Mas os Kapos, eles próprios, estavam
em risco se não agradassem aos seus superiores das SS. Eis
como Himmler pôs a questão: «A sua tarefa [do Kapo] é veri-
ficar se o trabalho é feito… por isso tem de puxar pelos seus
homens. Assim que não estivermos satisfeitos com ele, deixa
de ser um Kapo e volta para junto dos outros ocupantes. Ele
sabe que o vão espancar até à morte na primeira noite em que
regressar!»13
Do ponto de vista dos nazis, a vida no campo era um
microcosmo do mundo exterior. «A ideia da luta é tão velha
como a própria vida», disse Hitler num discurso, em 1928.
«Nesta luta, o mais forte, o mais capaz ganha, enquanto o
menos capaz, o fraco, perde. A luta é o pai de todas as coi-
sas… Não é pelos princípios de humanidade que o homem
vive ou é capaz de se preservar para além do mundo animal,
mas, somente, por meio da mais brutal das lutas.»14 Esta ati-
tude quase darwinista, no âmago do nazismo, tornou-se
evidente na administração dos campos de concentração.
Os Kapos, por exemplo, podiam legitimamente maltratar os
que estavam a seu cargo desde que tivessem provado a si pró-
prios serem superiores na «luta» pela vida.
Entre outras coisas, Hoess aprendeu bem o essencial da
filosofia das SS enquanto estava em Dachau. Theodor Eicke
pregava uma doutrina desde o princípio – dureza: «Qualquer
um que mostre o menor vestígio de simpatia por eles [prisio-
neiros] deve ser banido de imediato das nossas fileiras. Só
preciso de homens das SS que sejam duros e totalmente
empenhados. Entre nós não há lugar para pessoas brandas.»15
Assim, qualquer forma de simpatia ou de compaixão era uma
demonstração de fraqueza. Se um homem das SS sentisse
qualquer tipo de emoção em relação aos prisioneiros era sinal
de que o inimigo tinha conseguido ludibriá-lo. A propaganda
nazi pregava que era sobretudo nos lugares mais inesperados
que um inimigo podia espreitar; uma das obras mais difun-

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didas da propaganda anti-semita, dirigida às crianças, era um
livro intitulado O Cogumelo Envenenado, que alertava para o
perigo insidioso dos judeus, usando a metáfora de um cogu-
melo que, à vista, parece atraente mas que, na realidade, é
venenoso. Da mesma forma, os SS eram condicionados a
desprezar os seus sentimentos de pena quando, por exemplo,
assistiam ao espancamento de um prisioneiro. Ensinavam-
-lhes que qualquer sentimento hesitante de compaixão era
provocado por um ardil da vítima. Esses «inimigos do
Estado», criaturas astuciosas, tinham sido instruídos para usar
qualquer método – e o não menos eficaz era o apelo à piedade
em relação aos que os mantinham cativos – numa tentativa
de prosseguir os seus objectivos maldosos. A memória do
«golpe traiçoeiro», o mito de que judeus e comunistas tinham
conspirado para que a Alemanha perdesse a Primeira Guerra
Mundial, nunca ficou arredada e ajustava-se perfeitamente a
essa visão de um inimigo perigoso mas escondido.
A única certeza para os membros das SS residia na justiça
essencial das ordens que lhes eram dadas. Se um superior
ordenava que se prendesse uma pessoa ou que outra fosse
executada – mesmo que para o indivíduo encarregado de a
levar a cabo parecesse incompreensível –, a ordem devia ser
cumprida. A única protecção contra o cancro da autodúvida,
face às ordens que não eram imediatamente explicáveis, era a
dureza, que, portanto, se tornou um culto em todas as SS.
«Temos de ser duros como granito, de outro modo o trabalho
do nosso Führer perecerá»16, disse Reinhard Heydrich, a
figura mais poderosa das SS depois de Himmler.
No processo de aprendizagem do eliminar de emoções,
como a compaixão e a piedade, Hoess interiorizou o sentido
de irmandade, também forte nas SS. Precisamente porque
um homem das SS sabia que poderia vir a ser chamado a fazer
coisas que os homens «mais fracos» não seriam capazes, desen-
volveu-se um poderoso esprit de corps, em que a lealdade dos
camaradas se tornou um pilar vital de apoio. Valores tão pri-

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mários como lealdade inquestionável, dureza, protecção do
Reich contra o inimigo tornaram-se quase um substituto de
um credo religioso, uma visão do mundo distinta e facilmente
adoptada. «Foi total a minha gratidão às SS pela orientação
intelectual que me deu», disse Johannes Hassebroeck, coman-
dante de um outro campo de concentração das SS. «Ficámos
todos muito gratos, pois muitos de nós estávamos terrivel-
mente desnorteados antes de aderir à organização. Não per-
cebíamos o que se estava a passar à nossa volta – era tudo
muito confuso. As SS indicaram-nos uma série de ideias sim-
ples que compreendíamos e em que acreditámos.»17
Hoess também aprendeu, em Dachau, uma lição signifi-
cativa que viria a ter consequências para Auschwitz. Ele obser-
vara como os prisioneiros suportavam melhor a prisão porque
lhes era permitido trabalhar. Relembrou a sua própria prisão
em Leipzig e como, apenas por lhe ter sido permitido traba-
lhar (colava sacos de papel), conseguira enfrentar cada dia
com uma estrutura mental mais ou menos positiva. Via agora
como o trabalho representava um papel similar em Dachau,
permitindo aos prisioneiros «disciplinarem-se, tornando-se
assim capazes de melhor suportarem o efeito desmoralizante
da prisão»18. Hoess estava tão convicto do efeito paliativo do
trabalho no campo de concentração que chegou mesmo a
importar o slogan que fora muito usado em Dachau – Arbeit
macht frei (o trabalho liberta) – e adornou com ele o portão
de ferro à entrada de Auschwitz.
Hoess era um membro modelo das SS e foi emergindo
nas fileiras em Dachau até que, em Abril de 1936, se tornou
Rapport-führer, assistente-chefe do comandante do campo.
Depois, em Setembro de 1936, foi promovido a tenente e
transferido para o campo de concentração de Sachsenhausen,
onde permaneceu até ser elevado a comandante do novo
campo de concentração em Auschwitz. Era este, portanto, o
homem que chegou ao Sudoeste da Polónia, na Primavera de
1940 – um produto da sua herança genética, como é óbvio,

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mas também alguém fortemente moldado pela história dos
tempos, com seis anos de serviço atrás dele como guarda de
campo. Sentia-se pronto para avançar com o maior dos desa-
fios: criar um campo de concentração modelo, no novo impé-
rio nazi. No seu espírito, sabia bem o que esperavam dele,
conhecia o objectivo do lugar que estava prestes a construir.
A sua experiência em Dachau e Sachsenhausen oferecia-lhe
um claro exemplo a seguir. Mas os seus superiores tinham
outros planos e, nos meses e anos seguintes, o campo que
Hoess construiu em Auschwitz viria, de facto, a trilhar um
caminho muito diferente.
Na mesma época em que Hoess começara o trabalho em
Auschwitz, a quatrocentos quilómetros a noroeste, o seu chefe
fazia qualquer coisa de extremamente invulgar – compunha
um memorando para o Führer. Heinrich Himmler estava em
Berlim e escrevia sob o cauteloso título «Alguns Pensamentos
sobre o Tratamento da População Estrangeira do Leste».
Himmler, um dos mais astutos agentes do poder do estado
nazi, sabia ser pouco sensato passar os pensamentos para o
papel. Ao mais alto nível, a política nazi era, muitas vezes,
formulada verbalmente. Uma vez escritas, Himmler com-
preendeu que as suas opiniões podiam ser dissecadas pelos
seus rivais e, como qualquer chefe nazi, tinha muitos inimi-
gos prontos a apoderarem-se de algum do seu poder em bene-
fício próprio. Mas a situação na Polónia, que os alemães
ocuparam desde o Outono de 1939, era tal que ele sentiu ter
de fazer uma excepção e preparar um documento para Hitler.
O documento por ele escrito é um dos mais significativos na
história da política racial nazi, principalmente porque eram
palavras que acabariam por clarificar o contexto em que o
novo campo, em Auschwitz, viria a funcionar.
Nesse momento, na sua qualidade de comissário do Reich
para o Fortalecimento do Sentimento de Nação alemã,
Himmler foi envolvido na maior e mais rápida reorganização
étnica de um país alguma vez realizada, e todo o processo

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prosseguia de modo muito pouco satisfatório. Longe de trazer
ordem à Polónia, um país cuja suposta ineficiência os nazis
desprezavam, Himmler e os seu colegas trouxeram apenas
violência e caos.
Não houve qualquer divergência sobre a atitude básica a
ter para com os polacos: repugnância. A questão era o que
fazer. Um dos «problemas» mais importantes que os nazis
sentiam que tinham de resolver referia-se aos judeus polacos.
Ao contrário da Alemanha, onde os judeus representavam
muito menos do que um por cento da população (cerca de
300 000, em 1940) e onde a maioria estava assimilada pela
sociedade, na Polónia havia 3 milhões de judeus – a maioria
dos quais vivia nas suas próprias comunidades – que eram,
rápida e frequentemente, identificados pelas barbas e outras
marcas da sua fé. Após a Polónia ter sido dividida entre a
Alemanha e a União Soviética, na sequência imediata da eclo-
são da guerra (nas condições da parte secreta do pacto de não
agressão germano-soviético de Agosto de 1939), mais de
2 milhões de judeus polacos ficaram na zona do país ocupada
pelos nazis. Qual deveria ser o seu destino?
Um outro problema, criado pelos próprios nazis, era o de
arranjar alojamento para as centenas de milhares de alemães
de outras etnias que estavam a ser, naquele momento, envia-
dos para a Polónia. Segundo um acordo entre a Alemanha e
a União Soviética, os alemães dos estados bálticos, Bessarábia
(Roménia do Norte) e outras regiões, agora ocupadas por
Estaline, podiam emigrar para a Alemanha – para voltarem
para o seu Reich – como dizia o slogan. Obcecados como
estavam por noções da pureza racial do sangue alemão, era
um acto de fé para homens como Himmler ser capaz de alojar
todos os alemães que quisessem voltar ao seu país, à sua terra
natal. A dificuldade era: para onde é que eles poderiam, de
facto, ir? A acrescentar a isto, havia uma terceira e última
questão que os nazis tinham de resolver: como deveriam ser
tratados os 18 milhões de polacos, agora sob o domínio ale-

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mão, que não eram judeus? Como deveriam organizar o país
de modo a nunca se tornarem uma ameaça?
Hitler fizera um discurso, em Outubro de 1939, que ofe-
recia algumas directrizes para lutar contra estas questões polí-
ticas. Tornou claro que a «tarefa principal era criar uma nova
ordem étnica, isto é, restabelecer as nacionalidades para que
no final existissem, mais do que hoje, melhores linhas de
demarcação»19. Na prática, isto significava que a Polónia,
ocupada pela Alemanha, viria a ser dividida: numa parte iria
viver a maioria dos polacos, a outra parte iria ser incorporada
na Alemanha. Os recém-chegados alemães seriam então esta-
belecidos não no «velho Reich», mas nesse «novo Reich»; na
verdade, eles voltaram para o seu Reich – só que não era aquele
que esperavam. Ficara de fora a questão dos judeus polacos.
Até ao começo da guerra, a política nazi para com os judeus a
viver debaixo do seu controlo tinha sido baseada numa cres-
cente perseguição oficial, através de inúmeros regulamentos
restritivos, com momentos de abusos de violência não oficial,
embora sancionada. A opinião de Hitler sobre os judeus pouco
tinha mudado desde meados dos anos 20, quando, no seu
livro Mein Kampf (A Minha Luta), expressa a convicção de que
teria sido vantajoso para a Alemanha, durante a Primeira
Guerra Mundial, ter usado «gás venenoso» sobre «10 a 12 mil
destes hebreus destruidores da nação!». Porém, enquanto
Hitler odiava claramente os judeus, tendo-o demonstrado
desde o fim da Primeira Guerra Mundial e talvez até, em pri-
vado, tenha expresso o desejo de os ver todos mortos, não
existia ainda qualquer plano escrito para o seu extermínio.
Lucille Eichengreen20, nascida numa família judia em
Hamburgo, durante os anos 30, lembra-se demasiado bem
das circunstâncias em que os judeus eram forçados a viver.
«Até 1933 tive uma vida boa e confortável», diz ela, «mas,
assim que Hitler chegou ao poder, as crianças que viviam no
nosso prédio nunca mais nos falaram; atiravam-nos pedras e
chamavam-nos nomes. E nós não sabíamos o que tínhamos

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feito para merecer isso. A pergunta era sempre: “Porquê?”
E quando perguntávamos algo em casa, a resposta era sempre:
“É uma fase passageira. Vai voltar tudo ao normal.”» Em mea-
dos dos anos 30, os Eichengreen foram informados de que
não poderiam permanecer naquele edifício. Eram obrigados
a ir viver para «casas de judeus», cujos proprietários eram, na
maioria, judeus. O primeiro apartamento era quase tão
grande como o anterior, mas, ao longo dos anos, foram for-
çados a mudar para alojamentos cada vez mais pequenos, até
acabarem num único quarto mobilado para toda a família.
«Penso que fomos aceitando isso», diz Lucille. «Era a lei, eram
essas as regras, não se podia fazer nada contra.»
A ilusão de que a política nazi anti-semita viria um dia a
«normalizar» foi destruída pela chamada Kristallnacht (Noite
de Cristal), que ocorreu a 9 de Novembro de 1938. As vio-
lentas tropas a cavalo nazis destruíram bens e cercaram milha-
res de judeus alemães num acto de vingança motivado pelas
notícias de que um estudante judeu, Herschel Grynszpan,
tinha morto Ernst von Rath, um diplomata alemão, em Paris.
«Ao irmos para a escola, víamos as sinagogas a arder», conta
Lucille Eichengreen, «os vidros das lojas dos judeus partidos,
mercadorias na rua e os alemães a rirem… Tivemos tanto
medo. Pensei que nos iam agarrar e fazer sei lá o quê.»
Com a eclosão da guerra, em 1939, já não era permitido
aos judeus terem cidadania alemã, casar com não judeus,
serem negociantes ou trabalharem em certas profissões; nem
sequer podiam obter cartas de condução. A discriminação
regulamentada, ligada à explosão violenta da Kristallnacht em
que mais de 1000 sinagogas foram destruídas, 400 judeus
mortos e cerca de 30 000 homens aprisionados durante meses
nos campos de concentração, levou à emigração de muitos
judeus. Em 1939, cerca de 450 000 tinham saído da área do
novo «Grande Reich alemão» (Alemanha, Áustria e a região
dos Sudetas), mais de metade dos judeus que lá viviam.
Os nazis estavam contentes, especialmente desde que, em 1938,

41
seguindo o trabalho pioneiro do «perito» em judeus das SS,
Adolf Eichmann, e após a anexação (Anschluss) da Áustria, foi
delineado um sistema que permitia confiscar a maior parte
do dinheiro dos judeus, antes de lhes ser dada permissão para
deixarem o país.
No entanto, de início, foi difícil para os nazis descortina-
rem como é que a solução que tinham desenvolvido para o
seu autocriado «problema» dos judeus alemães poderia ser
transferida para a Polónia. Não só porque tinham agora, sob
o seu controlo, milhões de judeus e já não as poucas centenas
de milhares, mas porque, para além disso, sendo a maioria
pobre e estando a meio de uma guerra, para onde podiam ser
forçados a emigrar? Como consequência, no Outono de
1939, Adolf Eichmann pensou ter a resposta: os judeus não
deveriam ser obrigados a emigrar para outro país, mas para a
zona menos hospitaleira do império nazi. Mais ainda, pensou
que tinha encontrado esse lugar ideal – o distrito de Lublin,
nos subúrbios da cidade de Nisko, na Polónia. Esta zona
remota, no longínquo extremo oriental do território nazi,
parecia-lhe a localização perfeita para uma «reserva judia».
A Polónia alemã ocupada seria, assim, dividida em três: uma
parte alemã, uma parte polaca e uma parte judaica, todas elas
assentes num nítido eixo geográfico que se movia de oeste
para leste. O ambicioso plano de Eichmann foi aprovado e
milhares de judeus da Áustria começaram a ser embarcados
para a zona. As condições eram pavorosas. A preparação da
sua chegada foi pouca ou mesmo nula e muitos morreram.
Esta questão não preocupava os nazis. De facto, era até enco-
rajada. Tal como Hans Frank, um dos nazis mais velhos a
trabalhar na Polónia, tratou da questão com o seu pessoal em
Novembro de 1939: «Não percam tempo com os judeus.
Finalmente, é um prazer tratar desta raça. Quantos mais mor-
rerem, melhor.»21
Contudo, quando Himmler redigiu o seu memorando,
em Maio de 1940, sabia bem de mais que a emigração interna

42
dos judeus para o extremo leste da Polónia tinha sido um
sinistro fracasso. Em grande medida, isso devia-se ao facto de
os nazis estarem a empreender, simultaneamente, três emi-
grações em separado. Os alemães acabados de chegar tinham
de ser transportados para a Polónia e era necessário arranjar-
-lhes um lugar para viver. Isto significava que os polacos
tinham de ser mandados embora das suas casas e transporta-
dos para outro lado. Ao mesmo tempo, os judeus estavam a
ser transportados para leste, para propriedades donde os pola-
cos também tinham de ser expulsos. Seria francamente de
espantar que tudo isto não levasse ao caos e à confusão, numa
escala épica.
Na Primavera de 1940, o Plano Nisko, de Eichmann, fora
abandonado e a Polónia foi, por fim, dividida em apenas duas
categorias de território separadas. Existiam os distritos que se
tinham oficialmente tornado «alemães» e faziam parte do
Novo Reich: a Prússia Ocidental, em torno de Danzig
(Gdańsk); oWarthegau, na Polónia Ocidental, em torno de
Posen (Poznań) e Lódź; a Alta Silésia, em torno de Katowice
(a área que incluía Auschwitz). E, depois, havia a maior área
de todas, a chamada de Governo Geral, que correspondia às
cidades de Varsóvia, Cracóvia e Lublin, que foram designadas
como espaços habitacionais para a maioria dos polacos.
O problema mais premente que Himmler tinha de enfren-
tar era o de providenciar habitações necessárias para as cente-
nas de milhares de alemães acabados de chegar – uma
dificuldade que iria, por sua vez, ter impacte no modo como
ele pensara que deviam ser tratados quer os polacos quer os
judeus. O caso de Irma Eigi22 e da sua família ilustra como
era implacável o modo como os nazis tentavam, aparente-
mente, resolver esta situação intrincada em que eles próprios
se tinham envolvido e também como os problemas da popu-
lação se tinham voltado contra eles, numa espiral em direcção
à crise. Em Dezembro de 1939, Irma Eigi, uma alemã da
Estónia, de dezassete anos, viu-se, juntamente com a família,

43
num alojamento temporário em Posen, anteriormente Poló-
nia e que era, agora, a parte da Alemanha conhecida como
Warthegau. Quando aceitaram a oferta de uma passagem
segura para o Reich, pensaram que iam ser mandados para a
Alemanha: «Quando nos disseram que íamos para Warthe-
gau, bem, foi um grande choque, pode ter a certeza.» Pouco
antes do Natal de 1939, um nazi encarregado do alojamento
deu ao seu pai as chaves de um apartamento que tinha, até
poucas horas antes, pertencido a uma família polaca. Dias
mais tarde, um restaurante foi, à força, tirado ao dono polaco
para que os recém-chegados também pudessem gerir um
negócio. Os Eigi estavam horrorizados: «Não tínhamos qual-
quer suspeita antes de isto ter acontecido… Não se pode viver
com esta culpa. Mas, por outro lado, todas as pessoas têm
instinto de defesa. Que mais poderíamos fazer? Para onde
havíamos de ir?»
Este caso individual de expropriação deve ser multiplicado
por mais de 100 000, para dar uma ideia do que se estava a
passar na Polónia durante este período. A escala da operação
de realojamento foi enorme – num ano e meio chegou cerca
de meio milhão de alemães para serem realojados na parte
nova do Reich e centenas de milhares de polacos foram desa-
lojados para lhes darem lugar. Muitos foram simplesmente
atirados para camiões de gado e levados para o Sul, para o
Governo Geral, onde eram descarregados sem comida nem
abrigo. Não é de surpreender que Goebbels tenha registado
no seu diário, em Janeiro de 1940: «Himmler está agora a
deslocar populações. Nem sempre com sucesso.»23
Mas tudo isto não resolvia a questão dos judeus polacos.
Ao descobrir que tentar recolocar simultaneamente os judeus,
os polacos e os alemães oriundos de países estrangeiros era
absolutamente impraticável, Himmler encarou outra solução;
se era necessário espaço para estes alemães – e disso não havia
dúvida –, então os judeus deveriam ser forçados a viver com
muito menos espaço. Os guetos foram a resposta.

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Os guetos, que viriam a ser uma das características mais
marcantes da perseguição dos judeus na Polónia, nunca foram
planeados para serem como vieram a ser. Como muito do que
se passou na história de Auschwitz e da Solução Final, desen-
volveram-se de maneira inicialmente não prevista. Já em
Novembro de 1938, quando se começaram a discutir as ques-
tões relacionadas com o alojamento, surgidas pelo despejo
dos judeus alemães das suas casas, Reinhard Heydrich, das
SS, dizia: «Quanto à questão dos guetos, gostaria de esclare-
cer a minha posição. Do ponto de vista da polícia, não penso
que um gueto, na forma de um distrito completamente segre-
gado onde só os judeus vivam, seja viável. Não podemos con-
trolar um gueto onde os judeus se juntem ao povo judeu. Iria
ser um esconderijo para criminosos, além das epidemias e
tudo o resto.»24
Apesar disso, como outras saídas pareciam estar-lhe veda-
das, mesmo que temporariamente, os nazis procuraram arran-
jar guetos para os judeus polacos. Não se tratava apenas de uma
medida prática com vista a libertar mais casas (muito embora
Hitler, em Março de 1940, tenha feito notar que a «solução da
questão judaica é uma questão de espaço»25). Foi também
motivada pelo ódio visceral e pelo medo dos judeus que estava
no âmago do nazismo, desde o início. No plano ideal, era con-
vicção dos nazis que os judeus deviam ser obrigados a «ir-se
embora» mas, se tal não fosse imediatamente praticável, então,
uma vez que – especialmente os judeus do Leste – se julgava
serem portadores de doenças, deviam ficar separados de toda
a gente. A intensa repugnância física dos nazis pelos judeus
polacos foi algo que Estera Frenkiel26, uma jovem judia a viver
em Lódź, sentiu desde logo: «Estávamos habituados ao anti-
-semitismo… o anti-semitismo polaco era também mais de
ordem financeira. Mas o anti-semitismo nazi dizia: “Por que é
que existem? Não deviam! Têm mesmo é de desaparecer!”»
Em Fevereiro de 1940, à medida que as deportações de
polacos para o Governo Geral sucediam regularmente, foi

45
anunciado que os judeus de Lódź teriam de ser «recolocados»
num gueto dentro da cidade. No princípio, a intenção era de
que estes guetos fossem uma medida temporária, um lugar
onde os judeus fossem encarcerados antes de serem deporta-
dos para outro local. Em Abril de 1940, o gueto de Lódź foi
fechado e os judeus deixaram de poder sair dessa área sem
permissão das autoridades alemãs. Nesse mesmo mês, o Gabi-
nete Central para a Segurança do Reich anunciou que as
deportações dos judeus para o Governo Geral deviam ser
reduzidas. Hans Frank, antigo advogado que geriu o Governo
Geral, fizera campanha durante meses para parar todas as
emigrações obrigatórias «não autorizadas», porque a situação
se tornara insustentável. Tal como o Dr. Fritz Arlt27, chefe do
Departamento para os Assuntos da População no Governo
Geral, mais tarde afirmou: «As pessoas eram atiradas dos
comboios, para as praças ou estações de comboios ou para
onde quer que fosse, e ninguém se importava… Recebemos
um telefonema do oficial do distrito que dizia: “Já não sei o
que fazer. Desta vez, chegaram centenas e centenas. Não
tenho abrigos nem comida nem nada.”» Frank, que não sim-
patizava com Himmler, queixou-se a Hermann Goering, que,
na Polónia, na qualidade de chefe do Plano Económico Qua-
drienal, se interessou pelo caso da política de deportação e
pelo uso do Governo Geral como «caixote do lixo racial». Foi
num período de difíceis tréguas que Himmler e Frank «acor-
daram os procedimentos para uma futura evacuação».
Foi esta confusão que Himmler tentou abordar no seu
memorando de Maio de 1940. Em resposta, procurou reforçar
a divisão da Polónia nas áreas alemã e não alemã e definir
como haviam de ser tratados os polacos e os judeus. Himmler,
numa afirmação de fé racial, escreveu que queria que os pola-
cos se tornassem uma nação de escravos pouco educados e que
o Governo Geral devia ser a casa de uma «classe trabalhadora
sem liderança»28. «A população não alemã dos territórios
orientais não deve receber uma educação superior à da escola

46
primária», escreveu Himmler. «O objectivo da escola primária
deve ser ensinar aritmética simples, como contar até quinhen-
tos no máximo, escrever o nome e aprender que é vontade de
Deus obedecer aos alemães, ser honesto, trabalhador e bem-
-comportado. Considero que é desnecessário aprender a ler.»
A par desta política de tornar a Polónia uma nação de
gente pouco instruída, havia uma tentativa proactiva de
«separar os que têm sangue valioso dos que têm sangue que
não presta». As crianças polacas, entre os seis e os dez anos,
deviam ser avaliadas. Aquelas que fossem racialmente aceitá-
veis seriam retiradas às famílias e educadas na Alemanha, não
podendo voltar a ver os pais biológicos. A política nazi de
roubo de crianças, na Polónia, é bastante menos conhecida
do que a do extermínio dos judeus. Mas segue o mesmo
padrão. Demonstra que um homem como Himmler acredi-
tava, seriamente, na identificação do valor do ser humano
através da composição racial. Retirar estas crianças não era,
para ele, como pode parecer hoje, uma excentricidade demo-
níaca, mas uma parte essencial da sua deformada visão do
mundo. Já que, do seu ponto de vista, se permitisse que essas
crianças lá ficassem, os polacos «poderiam formar uma classe
dirigente a partir dessas pessoas com bom sangue».
Significativamente, Himmler escreveu sobre essas crianças:
«Por muito cruel e trágico que seja cada caso individual, se se
rejeitar o método bolchevique do extermínio físico de um
povo, como fundamentalmente não alemão, então este
método é o mais razoável e melhor.» Embora Himmler escreva
isto no contexto imediato do caso das crianças polacas, uma
vez que se refere ao extermínio físico de um povo como sendo
fundamentalmente não alemão, torna-se claro que ele deve
alargar esta reprovação a outros «povos» – incluindo os judeus.
(Outra confirmação desta interpretação é fornecida pela decla-
ração de Heydrich, no Verão de 1940, directamente quanto
ao contexto dos judeus: «O extermínio biológico é indigno
para o povo alemão como nação civilizada.»29)

47
No seu vastíssimo memorando, Himmler também anun-
ciou o que queria para o destino dos judeus: «Espero que o
termo “judeus” seja completamente eliminado através da pos-
sibilidade de uma emigração, em grande escala, dos judeus
para África ou para uma colónia qualquer.» O retorno à ante-
rior política de emigração era, agora, viável por causa do con-
texto de guerra alargada. Himmler contava quer com a
derrota iminente da França quer com a consequente e ime-
diata capitulação dos britânicos, que iriam pedir paz separa-
damente. Com o final da guerra, os judeus polacos podiam
ser despachados de barco, possivelmente para uma das antigas
colónias africanas de França.
Por muito inconcebível que pareça a ideia de embarcar
milhões de pessoas para África, não há dúvida de que, naquela
altura, era encarada muito seriamente pelos nazis. Há anos
que os anti-semitas radicais sugeriam a deslocação dos judeus
para África e, agora, o curso da guerra parecia estar prestes a
solucionar o «problema» dos judeus. Seis semanas após o
memorando de Himmler, Franz Rademacher, ministro dos
Negócios Estrangeiros alemão, escreveu um documento que
anunciava a proposta do destino africano dos judeus – a ilha
de Madagáscar30. Contudo, é importante lembrar que este
plano, tal como outras soluções em tempo de guerra para o
problema judaico, implicava para os judeus inúmeras mortes
e sofrimento. Um governador nazi de Madagáscar iria, muito
provavelmente, presidir à gradual eliminação dos judeus, pas-
sada uma geração ou duas. A Solução Final dos nazis, tal como
a conhecemos, não teria ocorrido, mas teria havido, com cer-
teza, outro tipo de genocídio.
Himmler fez chegar o seu memorando a Hitler, que o leu
e lhe disse que, na sua opinião, era «gut und richtig» («bom e
correcto»). Faz todo o sentido que Hitler não tenha dado a
sua opinião por escrito. Para Himmler, bastava estar armado
com a aprovação verbal do Führer sobre o seu conteúdo.
Assim era decidida a alta política no estado nazi.

48
Rudolf Hoess e o seu embrionário campo de concentra-
ção, em Auschwitz, não passaram de uma pequena parte deste
quadro mais geral. Auschwitz situava-se numa das zonas da
Polónia a ser «germanizada» e, assim, o futuro imediato do
campo seria decidido, em grande medida, pela sua localiza-
ção. A região da Alta Silésia já antes pertencera, várias vezes,
quer aos polacos, quer aos alemães e, imediatamente antes da
Primeira Guerra Mundial, fizera parte da Alemanha para,
logo a seguir, ser perdida no Tratado de Versalhes. Os nazis
queriam, agora, reclamá-la para o Reich. Porém, ao contrário
de outras áreas a serem «germanizadas», a Alta Silésia era for-
temente industrializada e uma grande parte pouco apropriada
para o estabelecimento dos alemães acabados de chegar. Isto
queria dizer que muitos polacos teriam de continuar como
força de trabalho escravo, o que, por outro lado, queria dizer
que um campo de concentração se via como particularmente
necessário na área, a fim de subjugar a população local. Ori-
ginalmente, Auschwitz tinha sido concebido como um campo
de concentração de passagem – um campo de «quarentena»,
no calão nazi –, onde os prisioneiros ficavam antes de serem
enviados para outros campos no Reich. Em poucos dias, tor-
nou-se claro que o campo iria funcionar, por direito próprio,
como lugar de prisão permanente.
Hoess sabia como a guerra tinha radicalizado tudo, incluindo
os campos de concentração. Embora concebido como Dachau,
este novo campo teria de lidar com um problema mais intrin-
cado do que as instituições do Velho Reich. O campo de Aus-
chwitz precisava de aprisionar e aterrorizar os polacos, num
tempo em que todo o país estava a ser reordenado do ponto de
vista étnico, e a Polónia a ser destruída intelectual e politica-
mente. Assim, mesmo na primeira concepção como campo de
concentração, Auschwitz tinha proporcionalmente uma taxa
mais alta de mortes do que qualquer campo «normal» no Reich.
Dos 20 000 polacos logo no início mandados para o campo,
mais de metade tinha morrido no começo de 1942.

49
Os primeiros prisioneiros a chegarem a Auschwitz, em
Junho de 1940, não eram polacos, mas alemães – 30 crimi-
nosos transferidos do campo de concentração de Sachsenhau-
sen. Viriam a ser os primeiros Kapos, os ocupantes que iriam
actuar como agentes de controlo entre as SS e os prisioneiros
polacos. A visão destes Kapos era a primeira impressão, fortís-
sima, sentida por muitos polacos que chegaram nos transpor-
tes iniciais ao campo. «Pensámos que eram todos marinheiros»,
diz Roman Trojanowski31, que chegou a Auschwitz com deza-
nove anos, no Verão de 1940. «Tinham barretes como os
marinheiros e, afinal, tratava-se de criminosos. Eram todos
criminosos. Chegámos, e lá estavam os Kapos alemães. Sau-
davam-nos e batiam-nos com uns bastões curtos.» Wilhelm
Brasse32, que chegara pela mesma altura, diz: «Quando alguém
se demorava a descer do camião de gado, era espancado ou,
noutras situações, morto ali mesmo. Fiquei aterrorizado. Toda
a gente estava aterrorizada.»
Estes primeiros prisioneiros polacos, em Auschwitz, foram
mandados para o campo por diversas razões: podiam ser sus-
peitos de trabalhar no movimento de resistência polaco; ser
membros de um grupo alvo dos nazis, como padres ou per-
tencentes à intelligentsia ou, simplesmente, alguém que tivesse
chamado a atenção de um alemão. De facto, os elementos do
primeiro grupo de prisioneiros polacos que chegaram ao
campo em 14 de Junho de 1940, transferidos da prisão de
Tarnów, eram estudantes universitários.
A tarefa imediata para os recém-chegados era simples:
tinham de ser eles a construir o campo. «Usávamos instru-
mentos muito primitivos», relembra Wilhelm Brasse. «Os pri-
sioneiros tinham de carregar pedras. Era muito difícil, um
trabalho pesado, e batiam-nos!» Mas, como não tinham sido
providenciados os materiais de construção suficientes para
completar a tarefa, encontrou-se uma solução típica dos nazis:
o roubo. «Trabalhei na demolição de casas que antes perten-
ciam a famílias polacas!», continua Brasse. «Uma das outras

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ordens era a de levar materiais de construção como tijolos,
tábuas e todo o género de madeira. Ficávamos surpreendidos
porque os alemães queriam construir depressa, mas não
tinham materiais.»
O campo desenvolveu rapidamente uma cultura do roubo,
não só a partir da população local, mas mesmo dentro da
instituição. Os Kapos alemães mandavam os ocupantes saírem
e diziam: «Vão e roubem cimento a outro comando de traba-
lho. Estamo-nos nas tintas para os outros tipos», diz Brasse.
«Era o que fazíamos. A madeira ou o cimento eram roubados
de outro comando. No dialecto do campo chamava-se a isso
“organizar”. Mas tínhamos de ter muito cuidado para não
sermos apanhados.» Esta cultura de «organizar» não se confi-
nava aos ocupantes. Nos primeiros tempos, Hoess também
roubava o que fosse necessário: «Uma vez que não podia espe-
rar nenhuma ajuda do inspector dos campos de concentração,
tinha de fazer o melhor para o conseguir. Era obrigado a sur-
ripiar carros e camiões, e a gasolina necessária. Tinha de con-
duzir mais de cem quilómetros até Zakopane e Rabka para
arranjar umas simples panelas para a cozinha dos prisioneiros
e fazer todo o percurso até à região dos Sudetas para conseguir
armação para as camas e sacos de palha… Em qualquer sítio
que encontrasse depósitos de materiais que fossem precisos
com urgência, transportava-os sem me preocupar com as for-
malidades… Nem sequer sabia onde arranjar cem metros de
arame farpado. Nada a fazer, tinha mesmo de furtar o tão
necessário arame farpado.»33
Enquanto Hoess andava a «organizar» o que ele conside-
rava ser necessário para fazer de Auschwitz um campo «útil»,
para além do arame farpado acabado de roubar, logo se tor-
nou claro para os polacos que as suas hipóteses de sobrevivên-
cia dependiam, principalmente, de um factor: o tipo de Kapo
para quem trabalhavam. «Apercebi-me muito rapidamente
de que nos “bons” comandos de trabalho os prisioneiros
tinham em geral caras cheias e redondas», diz Wilhelm Brasse.

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«Comportavam-se de maneira bem diferente dos que eram
obrigados a trabalhos pesados e pareciam escanzelados, como
esqueletos a usar um uniforme. E logo se notava que um
determinado Kapo era melhor, porque os prisioneiros tinham
melhor aspecto!»
Roman Trojanowski sofreu muito sob o comando de um
dos Kapos mais cruéis. Este, um dia, puniu-o por uma trans-
gressão menor, dando-lhe socos na cara e fazendo-o estar aga-
chado, durante duas horas, a segurar um banco. A dureza de
vida desse comando de trabalho estava a destruí-lo. «Não
tinha força para andar, todo o dia, de um lado para o outro
com o carrinho de mão», diz ele. «Uma hora com o carrinho
e ele caía-me das mãos. Tombava-se sobre o carro e magoa-
vam-se as pernas. Tinha de salvar a pele.» Tal como muitos
ocupantes de Auschwitz, antes e depois dele, Roman Troja-
nowski sabia que, ou arranjava maneira de sair daquele
comando de trabalho, ou morreria.
Uma manhã fizeram um anúncio durante a chamada para
reunir: precisavam de carpinteiros experientes. Trojanowski
apresentou-se como voluntário e, mesmo nunca tendo sido
carpinteiro na vida, disse que possuía sete anos de prática.
Mas o plano falhou: como é óbvio, quando começou o tra-
balho na carpintaria, não conseguia dar conta da tarefa.
«O Kapo chamou-me, levou-me para o seu gabinete e ficou de
pé segurando um grande bastão. Quando vi o bastão, senti-me
enfraquecer. Então disse-me que, por ter estragado o material,
ia levar vinte e cinco bastonadas. Ordenou-me que me incli-
nasse e bateu-me. Fê-lo especialmente devagar para que eu
pudesse sentir bem cada pancada. Era um tipo grande, tinha
uma mão forte e um bastão pesado. Tive vontade de gritar,
mas mordi os lábios e não produzi qualquer som uma única
vez. E fui bem recompensado porque, à décima quinta basto-
nada, ele parou. “Estás-te a portar bem”, disse, “vou-te perdoar
as últimas dez.” Das vinte e cinco bastonadas, só apanhei
quinze. Mas quinze foram suficientes. O meu rabo ficou às

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cores durante duas semanas, passou de preto a violeta e depois
a amarelo, e não me pude sentar durante muito tempo.»
Despedido da carpintaria, Trojanowski continuou, mesmo
assim, a procurar um trabalho num recinto coberto. «Era deci-
sivo», diz ele. «Para sobreviver, era preciso estar debaixo de um
telhado.» Falou com um amigo que conhecia um Kapo relati-
vamente simpático, chamado Otto Küsel. Ele e o amigo encon-
traram-se com Küsel. Exagerou sobre o muito que sabia de
alemão e conseguiu um trabalho na cozinha, a preparar comida
para os alemães. «Foi assim que salvei a vida», comenta.
Nesta luta pela sobrevivência dentro do campo, havia dois
grupos de pessoas, assinalados desde o momento da chegada,
que haviam de ter um tratamento particularmente sádico: os
padres e os judeus. Embora, nesta fase da sua evolução, Aus-
chwitz não fosse um lugar para onde enviavam grande
número de judeus – a política dos guetos estava ainda em
marcha –, alguns membros da intelligentsia, da resistência e
prisioneiros políticos que eram mandados para o campo eram
judeus. Juntamente com os padres polacos, tinham muito
mais probabilidades do que os outros de caírem nas mãos da
unidade de comando penal dirigida por Ernst Krankemann,
um dos Kapos mais temíveis.
Krankemann chegou ao campo na segunda fornada de cri-
minosos alemães, transferido de Sachsenhausen a 29 de Agosto
de 1940. Muitos dos SS não gostavam dele, mas tinha dois
apoiantes poderosos: Karl Fritzsch, o Lagerführer (chefe do
campo e delegado de Hoess), e Gerhard Palitzsch, o Rapport-
führer (assistente-chefe do comandante). Krankemann, que era
muito gordo, sentava-se no cimo de um cilindro gigante, usado
para aplanar a praça no centro do campo. «A primeira vez que o
vi», diz Jerzy Bielecki34, um dos primeiros prisioneiros a chegar
a Auschwitz, «estavam a aplanar a praça entre dois blocos. Como
era um cilindro muito pesado, as vinte ou vinte e cinco pessoas
da unidade não eram capazes de o fazer rolar. Krankemann tinha
um chicote e batia-lhes. “Mais depressa, cães!”, dizia ele.»

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Bielecki viu como estes prisioneiros eram forçados a tra-
balhar durante todo o dia, sem intervalo, para aplanar a praça.
Ao cair da noite, um deles teve um colapso, caiu de joelhos e
não conseguia levantar-se. Krankemann ordenou ao resto do
comando penal para fazerem rolar o cilindro gigante por cima
do camarada prostrado. «Estava habituado a ver mortes e
espancamentos», diz Bielecki. «Mas aquilo que presenciei fez-
-me estremecer. Senti-me gelado.»
Longe de serem espectadores indiferentes a este tipo de bru-
talidade, os SS encorajavam-no activamente. Como Wilhelm
Brasse, e de facto, todos os sobreviventes de Auschwitz o certi-
ficaram, foram os SS que criaram no campo a cultura da bruta-
lidade assassina (eram eles próprios a cometer, muitas vezes,
assassínios). «Àqueles Kapos que eram especialmente cruéis», diz
Brasse, «os SS davam-lhes prémios – uma porção adicional de
sopa, pão ou cigarros. Vi com os meus olhos. Os SS incitavam-
-nos; ouvi muitas vezes dizer: “Espanquem-no bem.”»
Não obstante a pavorosa brutalidade prevalecente no
campo, Auschwitz era, na perspectiva nazi, uma espécie de
contracorrente na barafunda da brutal reorganização da Poló-
nia. O primeiro sinal de que tudo iria mudar surgiu no
Outono de 1940. Em Setembro, Oswald Pohl, presidente da
Administração Central e do Departamento de Economia das
SS, inspeccionou o campo e disse a Hoess para incrementar
a sua capacidade. Pohl achava que a areia e as jazidas de pedra
das redondezas permitiam ao campo vir a ser integrado nos
empreendimentos das SS, como empresa de trabalhos em
pedra (DESt). Porque, para Himmler e para as SS, as questões
económicas se tornaram cada vez mais importantes desde
1937, altura em que a população dos campos de concentra-
ção na Alemanha desceu para 10 000 dos mais de 20 000 em
1933, ele encontrou uma solução inovadora para proteger o
futuro dos campos: as SS iam dedicar-se ao negócio.
Foi, desde o início, um negócio estranho. Himmler não
queria uma empresa capitalista, mas antes uma série de com-

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panhias que operarassem de acordo com as ideias filosóficas
nazis ao serviço do Estado. Os campos de concentração pro-
videnciavam as matérias-primas para a nova Alemanha, tais
como vastas quantidades de granito necessárias para a nova e
gigantesca chancelaria do Reich, em Berlim. No prossegui-
mento deste objectivo, após a anexação da Áustria, em 1938,
as SS abriram um novo campo de concentração em Mauthau-
sen, especificamente para ficar perto de uma pedreira de gra-
nito. Supunha-se ser particularmente eficaz que os opositores
ao regime contribuíssem para o seu crescimento. Como Albert
Speer, o arquitecto preferido de Hitler, explicou: «Afinal de
contas, os judeus já faziam tijolos às ordens dos faraós.»35
O entusiasmo de Himmler pela produção industrial não
se limitava ao provimento de materiais de construção para o
Reich. Deu também o seu aval a um conjunto de outros pro-
jectos. Foi fundada uma unidade experimental para a inves-
tigação de medicamentos naturais e novas formas de produção
agrícola (dois assuntos queridos a Himmler) e, em breve, as
SS estavam também envolvidas na produção de vestuário,
bebidas vitaminadas e mesmo porcelana (faziam figuras de
pastores e de outros temas racialmente adequados). Como as
recentes investigações vieram a demonstrar36, os SS gerentes
de muitas dessas empresas eram incompetentes, a um ponto
quase cómico.
Mal Pohl ordenou que Auschwitz se dedicasse à produção
de areia e cascalho para o estado nazi, logo o campo adquiriu
outra função. Em Novembro de 1940, Rudolf Hoess teve uma
reunião com Himmler, durante a qual conseguiu que os planos
que engrendrara para Auschwitz entusiasmassem a imaginação
do seu chefe. Num ápice, o interesse comum pela agricultura
criou uma ligação entre eles. Hoess evocou a nova visão de
Himmler para o campo: «Todas as experiências agrícolas neces-
sárias iriam ser ali tentadas. Era preciso construir, em massa,
laboratórios e departamentos para o cultivo de plantas… Era
da maior importância a criação de gado de todos os tipos…

55
As terras pantanosas tinham de ser drenadas e tratadas…
E prosseguia com a conversa sobre planos de agricultura até ao
mais pequeno detalhe, só parando quando o seu adjunto lhe
chamou a atenção para o facto de uma pessoa muito impor-
tante estar à espera há muito tempo para o ver.»37
Este encontro entre Hoess e Himmler, há muito eclipsado
pelo horror que iria gerar-se em Auschwitz, dá uma visão
profunda da mentalidade das duas figuras-chave da história
do campo. É demasiado fácil e errado catalogá-los como dois
«doidos» movidos por sentimentos irracionais que nunca
conseguiremos compreender. Neste encontro, vemo-los como
dois entusiastas, quase excêntricos, que num contexto de
guerra foram capazes de ter visões que, em tempo de paz, não
passariam de ideias impraticáveis. Todavia, em consequência
de agressão nazi, Himmler, ali sentado a matutar com Hoess
sobre os planos para Auschwitz, era um homem já com expe-
riência directa na transformação dos seus sonhos em reali-
dade. Tinha passado a mão pelo mapa e reordenado a vida de
centenas de milhares de alemães e polacos. Durante esse pro-
cesso, proferira juízos nos termos mais radicais que se possa
imaginar.
É vital recordar que sempre que Himmler falava tão elo-
quentemente sobre o seu desejo de que Auschwitz se tornasse
um centro de investigação agrícola o fazia no prosseguimento
de uma visão coerente – visão repulsiva, claro, mas contudo
coerente.
Nesse encontro de Novembro de 1940, entusiasmou-se
com a visão da Silésia como uma utopia agrícola alemã, quase
um paraíso. Para trás, ficava o falso brilho das propriedades
rurais polacas do Sul; no seu lugar iriam emergir quintas ale-
mãs, sólidas e bem geridas. Hoess e Himmler tinham sido
agricultores, ambos possuíam uma ligação emocional, quase
mística, à terra. Portanto, a ideia de que Auschwitz pudesse
tornar-se um centro de desenvolvimento agrícola deve ter
sido profundamente apelativa para ambos.

56
Ofuscado por este súbito entusiasmo, era para Himmler de
menor importância que Auschwitz estivesse localizado no sítio
errado para tal tarefa. Situado na confluência dos rios Sola e
Vístula, o campo ficava numa área caracterizada por inunda-
ções. Apesar de tudo, a partir de agora e até ao dia em que o
campo fechou, os prisioneiros de Auschwitz iriam trabalhar
para cumprir a visão de Himmler, cavando minas, drenando
pântanos, escorando as margens dos rios – tudo isto porque
para o Reichsführer era muito mais excitante cumprir um
sonho do que discutir coisas práticas. A ideia de que milhares
de pessoas iriam morrer ocorreu, vagamente, ao espírito de
Himmler quando, de forma entusiástica, sublinhou a sua fan-
tasia perante o fiel subordinado que era Rudolf Hoess.
No final de 1940, Hoess estabelecera muitas das estruturas
e princípios básicos com que o campo iria funcionar nos qua-
tro anos seguintes: os Kapos, efectivamente, controlariam os
prisioneiros a cada momento; a total brutalidade do regime
seria capaz de infligir castigos arbitrários; no interior do
campo, e sob um comando perigoso, um ocupante arriscava-
-se a uma morte rápida e iminente, se não aprendesse a auto-
controlar-se. Mas criou-se uma fantasia final, nos primeiros
meses, que simbolizou a cultura do campo de modo ainda
mais concreto: o Bloco 11.
Visto do exterior, o Bloco 11 (primeiro, denominado
Bloco 13 e, depois, renumerado 11) parecia-se com qualquer
outro dos edifícios feitos de tijolo vermelho e com ar de bar-
racão que se enfileirava no campo. Mas tinha um objectivo
singular – e todos no campo o sabiam. «Eu próprio fiquei
aterrorizado quando passei em frente do Bloco 11», diz Józef
Paczyński38. «Tive mesmo medo.» Os prisioneiros sentiam
isso porque o Bloco 11 era uma prisão dentro de uma pri-
são – um lugar de tortura e de assassínio.
Jerzy Bielecki foi um dos poucos que experimentou o que
aconteceu no Bloco 11 e viveu para contar a história. Foi
mandado para lá porque uma manhã acordou a sentir-se tão

57
doente e exausto que não conseguia trabalhar. Em Auschwitz
não era possível pedir um dia de descanso para recuperar e daí
que tivesse tentado esconder-se no campo, esperando que
ninguém desse pela sua falta. No começo, escondeu-se nas
latrinas, mas sabia que havia um forte risco de ser apanhado
se ficasse ali o dia inteiro e, assim, saiu e tentou fingir que
estava a fazer limpezas pelo campo. Infelizmente, foi apa-
nhado pelo guarda e mandado de castigo para o Bloco 11.
Foi conduzido pelas escadas até ao sótão. «Fui andando e
percebi que as telhas estavam quentes», diz ele. «Era um lindo
dia de Agosto. Cheirava mal e ouvi alguém murmurar: “Jesus!
Ai Jesus!” Estava escuro, a única luz que havia vinha através
das telhas.» Olhou para cima e viu um homem, suspenso
pelas mãos atadas atrás das costas da trave do telhado. «Um
SS trouxe um banco e disse: “Sobe!” Pus as mãos atrás das
costas, ele pegou numa corrente e prendeu-mas.» Depois de
o ter prendido à trave com a corrente, o SS deu, subitamente,
um pontapé no banco. «Só senti… Jesus, Maria… que era
uma dor terrível! Eu estava a gemer e ele disse-me: “Cala-te,
cão! Mereces sofrer!”» Depois, o SS foi-se embora.
A dor enquanto estava suspenso, com as mãos e os braços
puxados para trás, era insuportável. «E, claro, o suor caía-me
pelo nariz, fazia muito calor e eu dizia: “Mãezinha!” E, depois
de uma hora, os meus ombros começaram a desencaixar-se
das articulações. O outro tipo não dizia nada. A seguir, entrou
outro guarda das SS, dirigiu-se ao outro preso e libertou-o.
Fechei os olhos. Eu tinha estado suspenso sem espírito… sem
alma. Mas o que me atingiu foram as palavras do SS. Dizia:
“Só mais quinze minutos.”»
Jerzy Bielecki lembra-se de pouco mais até este último
SS voltar. «“Levanta as pernas!” Mas não era capaz. Pegou-me
nas pernas, pôs uma no banco, depois a outra, desapertou a
corrente e eu caí do banco, de joelhos, e ele ajudou-me. Levan-
tou-me a mão direita e disse: “Aguenta!” Mas eu não sentia os
braços. Ele continuou: “Isso passa ao fim de uma hora!” E eu

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comecei a andar só com a ajuda dele. Era um guarda muito
compassivo.»
A história de Jerzy Bielecki é notável por várias razões.
A primeira, e não menos importante, é a sua coragem pessoal
sob tortura, mas talvez o mais surpreendente seja o contraste
entre os dois guardas das SS – aquele que, sem avisar, deu
sadicamente um pontapé no banco em que ele se apoiava e o
guarda «compassivo», que o ajudou a descer quando a tortura
terminou. É importante relembrar que, tal como em relação
aos Kapos, havia uma grande diferença de temperamentos, o
mesmo acontecendo com os SS. Um tema comum nas remi-
niscências dos sobreviventes dos campos é que não havia um
modelo idêntico nos captores. Crucial à sobrevivência no
campo era ter habilidade para ler as diferenças de personali-
dade tanto dos Kapos como dos SS. Neste talento poderia
basear-se a vida.
Embora Jerzy Bielecki tenha saído estropiado do Bloco
11, ainda assim teve sorte, pois era muito provável, após pas-
sar por todos estes episódios concretos para lá da porta de
entrada, que não saísse de lá vivo. Durante os interrogatórios,
os nazis torturavam ocupantes do Bloco 11 de diversos modos
horríveis, não só usando o método quebra-costas de suspen-
são, sofrido por Bielecki, mas também chicoteando os prisio-
neiros, praticando a tortura da água, pondo agulhas debaixo
das unhas, marcando-os com ferros a arder e derramando
petróleo sobre os ocupantes e depois atiçando fogo. As SS, em
Auschwitz, também dispunham de iniciativa própria para
descobrir novas torturas, tal como o antigo prisioneiro Boles-
law Zbozień observou quando um ocupante foi trazido do
Bloco 11 para o hospital do campo: «Um dos métodos favo-
ritos, sobretudo no Inverno, era manter a cabeça do prisio-
neiro dentro do fogão de aquecimento para o fazer falar.
A cara ficava completamente queimada… Esse homem (tra-
zido do Bloco 11 para o hospital) estava todo queimado, os
olhos queimados, mas, mesmo assim, conseguiu aguentar-se…

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Os funcionários do Politische Abteilung (Departamento Polí-
tico) ainda precisavam dele… Esse prisioneiro morreu, após
alguns dias, sem nunca ter perdido a consciência.»39
Naquela altura, o Bloco 11 era o império do Unterstur-
mführer (segundo-tenente) das SS Max Grabner, um dos
oficiais mais proeminentes do campo. Antes de se juntar aos
SS, fora tratador de vacas mas, agora, tinha o poder sobre a
vida e a morte dos prisioneiros do seu bloco. Todas as sema-
nas ele devia «limpar a casa», processo que consistia em Gra-
bner e os seus colegas decidirem o destino de cada um dos
prisioneiros do Bloco 11. Alguns iam ser deixados nas suas
celas; outros sentenciados ao Relatório Penal 1 ou ao Relató-
rio Penal 2. O Relatório Penal 1 significava chicoteamento ou
qualquer outra tortura. O Relatório Penal 2 significava exe-
cução imediata. Os sentenciados à morte eram primeiro leva-
dos para salas de lavagem no rés-do-chão do Bloco 11 e
mandados despir-se. Uma vez nus, eram levados, por uma
porta lateral, para um pátio isolado, o pátio entre o Bloco
11 e o Bloco 10, que tinha paredes de tijolo e estava separado
do resto do campo. Era o único espaço, entre blocos, com
estas características. Neste pátio, os prisioneiros eram exe-
cutados. Eram levados, por um Kapo, até à parede de tijolo
– conhecida, na gíria do campo, com «o ecrã» –, longe da
entrada do bloco, com os braços atados. Uma vez chegados a
esta parede distante, um dos executores das SS encostava-lhes
uma arma de pequeno calibre (para minimizar o barulho) à
cabeça e disparava o tiro.
Mas não eram apenas os ocupantes de Auschwitz que
sofriam no Bloco 11; era também ali que se situava o Tribunal
Sumário de Polícia da Kattowitz alemã (a antiga área da Kato-
wice polaca). Assim era possível que polacos presos pela Ges-
tapo fossem directamente para o Bloco 11 sem passar pelo
resto do campo. Um dos juízes em tais casos era o Dr. Mild-
ner, um Obersturmbannführer das SS (tenente-coronel) e con-
selheiro de Estado. Perry Broad, um membro das SS que

60
trabalhou em Auschwitz, descreveu como o sádico Mildner
gostava de actuar: «Um jovem de dezasseis anos foi conduzido
à sua presença. Uma fome insuportável levara-o a roubar
comida numa loja; claro que caiu logo na categoria dos casos
criminosos. Depois de ler a sentença de morte, Mildner pôs
o papel sobre a mesa e dirigiu o seu olhar penetrante ao rapaz,
miseravelmente vestido e de pé, junto à porta. “Tens mãe?”
O rapaz baixou o olhar e respondeu em voz baixa: “Sim.”
“Tens medo de morrer?”, perguntou o carniceiro de pescoço
de touro, que parecia retirar um prazer sádico do sofrimento
da vítima. O jovem mantinha-se em silêncio, mas o seu corpo
tremia ligeiramente. “Vais ser fuzilado hoje”, afirmou Mild-
ner, tentando dar à voz um significado cheio de fatalidade.
“Irias ser enforcado, de qualquer modo, um dia destes. Daqui
a uma hora estás morto.”»40
Segundo Broad, Mildner divertia-se, de modo particular,
quando falava com mulheres, imediatamente antes de as sen-
tenciar à morte. «Contava-lhes, do modo mais dramático, o
momento iminente do disparo.»
Contudo, apesar dos horrores do Bloco 11, Auschwitz,
nesta altura do seu desenvolvimento, continuava a ter alguns
dos atributos dos campos tradicionais, como Dachau. Ao
contrário da crença popular, nada ilustra melhor esta falta de
diferença conceptual que o facto de ser possível, nestes pri-
meiros meses, ser encarcerado em Auschwitz, estar lá e depois
ser libertado.
Pouco antes da Páscoa de 1941, Wladyslaw Bartoszewski41,
um prisioneiro político polaco, estava no hospital do Bloco
20 quando dois homens das SS se aproximaram dele. «Disse-
ram-me: “Sai!” Não me deram qualquer explicação, não per-
cebi o que se estava a passar. Foi um choque, pois havia uma
mudança na minha situação e os colegas mais perto de mim
não sabiam o que iria acontecer. Estava aterrado.» Em breve
se apercebeu de que iria ser levado a uma junta de médicos
alemães. Quando ia a caminho, um ocupante, médico polaco,

61
sussurrou-lhe: «Se te perguntarem, diz que estás saudável, que
te sentes bem, porque se disseres que estás doente não te liber-
tam.» Bartoszewski ficou chocado com a repentina notícia de
que poderia vir a sair do campo. «Eles vão libertar-me?», per-
guntou aos médicos polacos, excitado e cheio de admiração.
Mas eles responderam: «Cala-te!»
Um obstáculo da maior importância surgia agora no cami-
nho da libertação de Wladyslaw Bartoszewski – o seu estado
físico. «Tinha umas bolhas enormes nas costas, nas coxas,
atrás da cabeça e no pescoço. Os médicos polacos tinham-me
posto imenso bálsamo e pó para aquilo ficar com melhor
aspecto. Disseram-me: “Não tenhas medo que não te vão
observar assim de tão perto, mas não digas nada que vá contra
as regras porque aqui não há ninguém doente, percebes?”
Depois levaram-me ao médico alemão e eu nem olhei para
ele. Os médicos polacos estavam impacientes e disseram:
“Está tudo bem!” E o alemão limitou-se a abanar a cabeça.»
Depois de ter passado por esse temível exame médico,
Bartoszewski foi levado até à chancelaria do campo, onde lhe
restituíram as roupas com que entrara no campo. «Não me
devolveram a minha cruz de ouro», disse. «Guardaram-na
como recordação!» A seguir, quase como numa paródia à
libertação de uma prisão normal, o SS perguntou se tinha
alguma queixa a fazer sobre a sua estada ali. «Armei-me em
esperto», diz ele, «e respondi: “Não!” Perguntaram: “Está
satisfeito com a sua estada no campo?” Eu retorqui: “Sim!”
Tive então de assinar um formulário em como não tinha
queixas e não agiria contra a lei. Não percebi de que lei esta-
vam a falar porque, como polaco, não estava nada interessado
na lei alemã. A nossa lei era representada pelo nosso governo
no exílio, em Londres. Mas, claro, esse não era o género de
conversa que ia ter com aqueles tipos.»
Juntamente com outros três polacos libertados nesse dia,
Bartoszewski foi escoltado por um guarda alemão até à estação
de Auschwitz e metido num comboio. Assim que o comboio

62
começou a andar, sentiu vivamente «aqueles primeiros minu-
tos de liberdade». À sua frente, havia uma longa viagem até
casa da mãe, em Varsóvia. «No comboio, as pessoas abanavam
a cabeça. Algumas mulheres sustinham as lágrimas. Era visível
a sua emoção. Perguntaram: “De onde vêm?” E nós dissemos:
“De Auschwitz.” Não houve comentários – apenas um olhar,
apenas medo.» Finalmente, já tarde nessa noite, Bartoszewski
chegou ao apartamento da mãe, em Varsóvia. «Ela ficou espan-
tada de me ver. Correu para mim e abraçou-me. Olhando de
cima, vi-lhe uma mancha de cabelo branco na cabeça e essa foi
a primeira mudança de que me apercebi. Não estava com bom
aspecto. Ninguém tinha bom aspecto naquela época.»
Na totalidade, várias centenas de prisioneiros foram liber-
tadas do mesmo modo de Auschwitz. Ninguém sabe ao certo
por que é que estas pessoas foram escolhidas. Mas, no caso de
Bartoszewski, tudo indica que a pressão pública possa ter tido
o seu papel, uma vez que a Cruz Vermelha e outras institui-
ções fizeram campanha pela sua libertação. É certo que os
nazis, nessa altura, estavam susceptíveis à pressão internacio-
nal relativa aos prisioneiros, o que é confirmado pela sorte de
um grupo de académicos polacos presos em Novembro de
1939. Os professores da Universidade Jagelão, na Cracóvia,
foram, no âmbito de uma purga aos intelectuais, arrebanha-
dos das suas salas de aula e feitos prisioneiros em diversos
campos de concentração, incluindo Dachau. Catorze meses
mais tarde, os académicos que conseguiram sobreviver foram
libertados, muito provavelmente devido à pressão do mundo
exterior, incluindo representantes do papa.
Entretanto, Auschwitz entrou numa fase nova e crucial da
sua evolução, na mesma altura em que um outro alemão teve
uma «visão» que acabaria por influenciar o desenvolvimento
do campo. O Dr. Otto Ambros, da I. G. Farben, um gigante
empreendimento industrial, andava à procura, no Leste, de
um local adequado para uma fábrica de borracha sintética.
A única razão por que ele procurava tal localização, em vez da

63
prevista antes da liderança nazi, devia-se à mudança de rumo
que a guerra tomara. Tal como Himmler imaginara, em Maio
de 1940, que seria possível transportar os judeus para África
porque a guerra iria acabar em breve, também a I. G. Farben
concluiu, nessa altura, que seria desnecessário prosseguir o
difícil e dispendioso processo de produção de borracha sinté-
tica e combustível. Uma vez a guerra acabada – digamos, nos
finais do Outono de 1940 –, estariam disponíveis enormes
quantidades de matéria-prima vindas do exterior do Reich e,
de não menos importância, das novas colónias alemãs con-
quistadas ao inimigo.
Porém, em Novembro de 1940, era claro que a guerra não
tinha terminado. Churchill recusara-se a fazer a paz e a RAF
tinha repelido os ataques aéreos alemães durante a batalha de
Inglaterra. Mais uma vez, os planos alemães tinham de se
ajustar ao inesperado. De facto, é tema recorrente desta época
histórica que a liderança nazi tenha tido sempre de lidar com
acontecimentos não rigorosamente previstos. Os alemães
nazis são sempre conduzidos por um enorme sentimento de
ambição e optimismo – tudo se pode conseguir apenas pela
«vontade» – e são levados a retrair-se quer pela falta de plane-
amento e previsão quer porque o seu inimigo é mais forte do
que alguma vez admitiu o seu empolgado sentido de si pró-
prios.
Quanto à I. G. Farben, os planos de expansão, que tinham
sido adiados por causa do previsto fim iminente da guerra,
não foram implementados com a rapidez necessária. Embora
não sendo uma companhia nacionalizada, a I. G. Farben tor-
nou-se muito favorável às necessidades e desejos da liderança
nazi. O plano quadrienal nazi contratou a construção, no
Leste, de uma fábrica de borracha sintética (Buna), e era agora
a altura, depois de várias conversações, de a I. G. Farben con-
cordar em estabelecer-se na Silésia42. A borracha sintética
produzia-se a partir da extracção do carvão que era submetido
a um processo designado por hidrogenação, que implicava

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passar-se gás de hidrogénio pelo carvão a altas temperaturas.
Sem calcário, água e, basicamente, carvão, nenhuma Buna
poderia funcionar. Seria pré-condição de qualquer local, por-
tanto, ter acesso directo a essas matérias-primas. Mais ainda,
a I. G. Farben fazia questão em que houvesse transporte apro-
priado e infra-estruturas de alojamento na zona próxima ou
circundante a qualquer destas fábricas propostas.
Depois de ter estudado mapas e planos, Otto Ambros jul-
gou ter chegado ao local certo para a nova instalação da I. G.
Farben, a cerca de cinco quilómetros a leste do campo de
Auschwitz. Mas a proximidade do campo de concentração
não foi um factor essencial na decisão de localização da
Fábrica Buna, na área de Auschwitz. A I. G. Farben estava
mais interessada nos recém-chegados alemães como trabalha-
dores do que ter por base apenas o trabalho escravo.
A atitude de Himmler quanto ao facto de a I. G. Farben
estar interessada em se aproximar de Auschwitz não pode
senão ser descrita como esquizofrénica. Como Reichsführer
das SS, Himmler tinha dúvidas sobre este processo, até por-
que ele já tinha assegurado que os prisioneiros do campo de
concentração trabalhariam exclusivamente para empresas das
SS. O precedente de os prisioneiros trabalharem para a indús-
tria privada – cujo salário era, de facto, canalizado para o
estado nazi em vez de ficar, na totalidade, de posse das
SS – não era coisa que Himmler quisesse encorajar. Embora
as SS tivessem lucros com a venda de pedra à I. G. Farben,
Himmler tinha, claramente, objectivos mais ambiciosos para
a sua organização do que esse negócio prometia.
Contudo, na sua qualidade de comissário do Reich para o
Fortalecimento do Sentimento de Nação alemã, Himmler era
um bom negociador, menos pessimista. Conhecia bem a
necessidade da I. G. Farben quanto aos recém-chegados ale-
mães e punha todo o seu empenho em satisfazê-la. Arranjar
acomodações para as novas forças de trabalho, recém-chega-
das, não seria um problema. As autoridades de Auschwitz

65
sentiam-se satisfeitas por «resolver»43 a questão dos judeus e
polacos que viviam na cidade, de modo que eles pudessem ter
o seu próprio espaço. Por fim, a última decisão foi tomada
por Goering, como chefe do Plano Económico Quadrienal:
a I. G. Farben iria construir a sua fábrica perto do campo
de concentração de Auschwitz e tanto Himmler como as
SS deviam colaborar44.
Este interesse da I. G. Farben transformou Auschwitz, de
um campo menor dentro do sistema das SS, num dos poten-
cialmente mais importantes de todas as suas estruturas. Sin-
tomática desta alteração do estatuto do campo foi a decisão
de Himmler de fazer a sua primeira visita ao campo no dia
1 de Março de 1941. Nas suas memórias, e durante o seu
interrogatório, depois da guerra, Hoess relatou com todos os
pormenores esta visita, durante a qual Himmler deu livre
expressão às suas tendências megalómanas. Se a visão de
Himmler sobre Auschwitz como uma estação de pesquisa
agrícola já fora ambiciosa em Novembro, o seu sonho, em
Março, era positivamente desmedido. Com as suas dúvidas
iniciais sobre a vantagem da presença da I. G. Farben agora
postas de lado, Himmler anunciou, com toda a ligeireza, que
o campo deixava de ter 10 000 ocupantes para passar a expan-
dir-se até aos 30 000. O Gauleiter da Alta Silésia, Fritz Bracht,
que o acompanhava, levantou objecções a uma expansão tão
rápida. Um outro oficial local fez notar que os problemas de
drenagem da zona estavam por resolver. Ele disse-lhes, pura
e simplesmente, que consultassem peritos e resolvessem o
problema. Resumiu a conversa com estas palavras: «Meus
senhores, o campo vai expandir-se. As minhas razões são
muito mais importantes do que as vossas objecções.»45
Subserviente em relação a Himmler como era, Hoess sen-
tiu tão fortemente a dificuldade de implementar esta nova
visão do seu mestre que esperou até que ele, Himmler e o
chefe supremo das SS e da Polícia para o Sudeste, Erich von
dem Bach-Zelewski, se encontrassem sozinhos no carro para,

66
então, avançar com uma ladainha de queixas. Tinha falta de
materiais de construcção, objectava, falta de pessoal, falta de
tempo – de facto, tinha falta de tudo. Himmler reagiu de
modo previsível. «Não quero ouvir falar mais de dificuldades!
Para um oficial das SS não há dificuldades! Quando surgem,
só têm de se livrar delas. Como o vão fazer é da vossa conta,
não da minha.»
O que é significativo, nesta troca de palavras, não é tanto
a resposta de Himmler aos queixumes de Hoess, mas o facto
de Hoess se ter sentido capaz de falar com o chefe das SS nes-
ses termos. No sistema soviético, qualquer um que falasse
assim com Estaline ou com Beria (chefe da polícia secreta
NKVD e equivalente mais próximo de Himmler, em Mos-
covo) arriscava a vida. Por muito estranho que possa parecer
à primeira vista, as chefias nazis toleravam muito mais as crí-
ticas internas dos seus subalternos do que o sistema estalinista.
E esta é uma das razões por que o Terceiro Reich era o mais
dinâmico dos dois regimes políticos em que os funcionários
mais baixos da cadeia de comando eram livres de usar a sua
iniciativa e de dar voz às suas opiniões. Diferentemente da
maioria dos que cometiam crimes às ordens de Estaline, Hoess
nunca actuava sob o medo de uma terrível retaliação se ques-
tionava alguma ordem. Alistara-se nas SS porque acreditava,
de todo o coração, na globalidade da visão nazi e isso queria
dizer que se sentia livre para criticar os pormenores da sua
implementação. Ele era o mais poderoso dos subordinados,
alguém que faz o seu trabalho não porque obedece a ordens,
mas porque acredita que o que está a fazer está certo.
É claro que sentir-se livre para criticar os superiores sobre
detalhes e, na realidade, conseguir alguma coisa através de tal
crítica são duas coisas diferentes. E Hoess não conseguiu nada
pelo facto de se ter queixado a Himmler. A visão do Reichs-
führer quanto à expansão do campo de concentração de Aus-
chwitz era para ser concretizada, independentemente de tudo.
Tal como Hoess concluiu, lamentando-se: «O Reichsführer

67
estava sempre mais interessado em ouvir os relatórios positi-
vos do que os negativos.»
No início da decisão de a I. G. Farben construir uma
Fábrica Buna em Auschwitz, Himmler não confinou as suas
grandiosas ideias ao campo, antes alargou o seu projecto à
cidade e à área circundante. Numa reunião de planeamento
em Kattowitz, a 7 de Abril, o seu representante anunciou:
«É intenção do Reichsführer estabelecer aqui, no Leste, uma
instalação exemplar e a que se preste especial atenção à fixação
de homens e mulheres alemães particularmente qualifica-
dos.»46 Foram delineados planos para a criação de uma nova
cidade alemã de Auschwitz, com cerca de 40 000 pessoas, e
estes planos iam a par do desenvolvimento do campo de con-
centração ali perto.
Por esta altura, Hoess vem a reconhecer a utilidade, em
potência, da ligação à I. G. Farben. As minutas de uma reu-
nião havida a 27 de Março de 194147, entre oficiais de Aus-
chwitz e representantes da empresa, revelaram como ele
procurava tirar partido disso para o campo. Depois, um dos
engenheiros da empresa perguntou quantos prisioneiros
podiam ser dispensados nos anos seguintes. «O Sturmbann-
führer (major) Hoess apontou as dificuldades de alojamento
de um número significativo de ocupantes no campo de con-
centração, em Auschwitz, sendo que o principal problema
consistia na impossibilidade de continuar a construir aloja-
mentos com rapidez.» O obstáculo era, segundo Hoess, a falta
de matérias-primas. A mesma dificuldade, claro, de que se
queixara a Himmler e que já previamente tentara, ele próprio,
resolver, quando, nas suas voltas pelo campo, surripiara o
arame farpado que podia. Hoess contrapôs que se a I. G.
Farben ajudasse a «acelerar a expansão do campo, isso seria,
afinal, no seu próprio interesse, pois só assim haveria dispo-
nibilidade para conseguir um número suficiente de prisionei-
ros». Finalmente, parecia que ele tinha interlocutores que
atendiam às suas dificuldades, já que os empresários da I. G.

68
Farben concordaram em «procurar saber se seria ou não pos-
sível ajudarem o campo».
No decorrer da mesma reunião, a I. G. Farben concordou
em pagar uma soma diária, incluindo tudo, de 3 marcos ale-
mães por cada trabalhador não qualificado e 4 por cada tra-
balhador com qualificação. Pela «execução do trabalho foi
estimado o valor de 75 por cento do preço de um trabalhador
alemão normal». Também chegaram a acordo quanto ao valor
que a empresa pagaria por metro cúbico de pedra extraída
pelos ocupantes do campo do rio Sola, ali ao lado. No plano
global, «as negociações decorreram em cordial harmonia.
Ambos os lados salientaram o desejo de se ajudarem mutua-
mente em tudo o que fosse possível».
Sendo, como eram, vastos os planos de Himmler e da I. G.
Farben para Auschwitz, pareciam menores face às longínquas
decisões tomadas pelos estrategos nazis em Berlim. Durante
alguns meses, os oficiais do Alto-Comando das Forças Arma-
das alemãs concentraram-se nos planos para a invasão da
União Soviética – nome de código Operação Barbarossa.
Numa reunião no seu retiro da Baviera, o Berghof, já em Julho
de 1940, Hitler anunciou aos seus comandantes militares que
a melhor maneira de pôr um fim rápido à guerra era destruir
a União Soviética. Estava convencido de que a Grã-Bretanha
só continuava a lutar na esperança de que Estaline pudesse, de
facto, quebrar o pacto de não agressão assinado com os nazis
em Agosto de 1939. Se os alemães destruíssem a União Sovié-
tica, então acreditava que a Grã-Bretanha faria a paz e os nazis
seriam donos incontestáveis da Europa. Esta simples decisão
havia de moldar o decurso da guerra e, na verdade, o de toda
a história da Europa até ao final do século. Em consequência
da invasão, 27 milhões de cidadãos soviéticos viriam a morrer,
perdas de tal modo grandes que jamais alguma nação tinha
sofrido ao longo da história e em consequência de um único
conflito. E a guerra iria, ainda, produzir o contexto para a
implementação da Solução Final nazi: o extermínio dos

69
judeus. É, assim, impossível compreender o modo como Aus-
chwitz iria desenvolver-se sem situar as alterações do campo
no contexto quer do plano da Operação Barbarossa quer na
evolução da guerra, no Verão e Outono de 1941. De facto,
desde esse momento até ao suicídio de Hitler, a 30 de Abril de
1945, os avanços e recuos da guerra, no Leste, iriam dominar
o pensamento nazi.
Os nazis acreditavam que não se tratava de uma guerra
contra as nações «civilizadas» do Ocidente, mas de uma luta
de morte contra os «sub-humanos» judeo-bolcheviques. Por
isso, Franz Halder, chefe do Estado-Maior do Exército, regis-
tou no seu diário, a 17 de Março de 1941, que na Rússia
«deve ser usada a força, na sua forma mais brutal» e «a intelli-
gentsia activada por Estaline tem de ser destruída». Esta ati-
tude significava que era exequível, para os estrategos
económicos, avançarem com uma solução devastadora para
o problema de alimentação do exército, durante a sua incur-
são na União Soviética. Um documento de 2 de Maio de
1941 oriundo do Departamento Económico central da
Wehrmacht diz que «todo o Exército alemão» teria de «ser
alimentado às custas da Rússia». A consequência disto era
óbvia: «Dezenas de milhões de homens irão, sem dúvida,
morrer à fome se retirarmos do país tudo o que necessita-
mos.»48 Três semanas mais tarde, a 23 de Maio, outro docu-
mento, ainda mais radical, foi produzido pelo mesmo
departamento. Intitulado «Guia Político-Económico para a
Organização Económica do Leste», esclarecia que o objectivo
actual era utilizar os recursos russos não apenas para alimen-
tar o Exército alemão mas, também, para sustentar a Europa
controlada pelos nazis. Assim sendo, 30 milhões de pessoas,
no Norte da União Soviética, podiam vir a morrer à fome49.
Investigações recentes demonstraram que estes documen-
tos, tão chocantes, não representam um processo elaborado
como mero expediente; existia uma corrente de pensamento
intelectual dentro do movimento nazi que via esta redução da

70
população economicamente justificável. Sustentada numa teo-
ria da «dimensão optimizada da população», os estrategos eco-
nómicos examinavam qualquer zona e baseavam-se, apenas,
no número de pessoas que ali vivia, quer a comunidade fosse
lucrativa quer desse prejuízo. Por exemplo, o economista ale-
mão Helmut Meinhold, do Instituto para o Desenvolvimento
no Leste, calculou em 1941 que 5,83 milhões de polacos
(incluindo idosos e crianças) eram «excedentários» para as
necessidades50. A existência desta população excedentária
representava uma «verdadeira erosão de capital». As pessoas
que constituíam este excesso de população eram Ballastexisten-
zen – um «desperdício de espaço». Nesta fase, estes economis-
tas não tinham seguido a sua própria lógica – não reclamavam
o extermínio físico destes Ballastexistenzen na Polónia. Con-
tudo, faziam notar o modo como Estaline tinha lidado com
uma sobrepopulação semelhante na União Soviética. Na Ucrâ-
nia, durante os anos 30, uma política de deportação da classe
dos cúlaques (camponeses ricos) e a colectivização dos que
ficaram levara à morte cerca de 9 milhões de pessoas.
Esta teoria também dava suporte intelectual às mortes de
civis que se esperava, resultariam da invasão alemã da União
Soviética. Para os estrategos nazis, o facto de 30 milhões de
pessoas virem a morrer de fome não seria apenas uma vanta-
gem imediata para o avanço do Exército alemão, representa-
ria também um benefício a longo prazo para o povo alemão.
Menos pessoas a serem alimentadas na União Soviética não
significava só que mais comida podia ser transportada para o
Ocidente, para os cidadãos de Munique ou Hamburgo, mas
facilitava ainda a rápida germanização dos territórios ocupa-
dos. Himmler já chamara a atenção para o facto de a maioria
das quintas ou propriedades polacas ser demasiado pequena
para sustentar uma família alemã e, agora, acreditava sem
dúvida que a morte, em massa, pela fome iria facilitar a cria-
ção de grandes estados alemães na União Soviética. Pouco
antes de ser iniciada a invasão, Himmler falou com toda a

71
franqueza aos seus colegas, durante uma reunião de fim-de-
-semana: «O objectivo da campanha russa [é] dizimar
30 milhões de eslavos.»51
A perspectiva da guerra contra a União Soviética continha
todas as ideias mais radicais possíveis de imaginar pelas men-
tes dos líderes nazis. Quando Hitler escreveu a Mussolini para
lhe comunicar a decisão de invadir a União Soviética, confes-
sou-lhe que se sentia «espiritualmente livre» e que a «liber-
dade espiritual» consistia na capacidade de agir, durante o
conflito, como lhe apetecesse. Tal como Goebbels, o chefe da
propaganda de Hitler, escreveu no seu diário, a 16 de Junho
de 1941: «O Führer diz que temos de chegar à vitória quer o
façamos a bem ou a mal. De qualquer maneira, temos tanto
sobre que responder…»
Era também claro, nesta fase do planeamento da guerra,
que os judeus da União Soviética iriam sofrer horrivelmente.
Num discurso no Reichstag em 30 de Janeiro de 1939, Hitler
tinha feito uma ligação explícita entre uma futura guerra
mundial e a eliminação dos judeus: «Quero ser hoje, de novo,
um profeta: se as finanças internacionais e o judaísmo dentro
e fora da Europa conseguirem lançar as nações, mais uma vez,
numa guerra mundial, o resultado será não a bolchevização
da terra e a vitória dos judeus, mas a aniquilação da sua raça
na Europa.»52 Hitler usou o termo «bolchevização» para, de
acordo com a teoria racial nazi, salientar a ligação entre comu-
nismo e judaísmo. Para ele, a União Soviética era a sede da
conspiração judeo-bolchevique. Não interessava que o pró-
prio Estaline tivesse claras tendências anti-semitas. A fantasia
nazi concebia que os judeus puxavam secretamente os corde-
linhos por todo o império de Estaline.
Para lidar com a perceptível ameaça dos judeus da União
Soviética, foram formados quatro Einsatzgruppen. Pelotões
operacionais, do mesmo tipo do Serviço de Segurança (parte
das SS) e da Polícia de Segurança, tinham anteriormente
actuado no início quer da anexação da Áustria, quer na inva-

72
são da Polónia. Operando imediatamente antes da linha da
frente, a sua missão consistia em exterminar «inimigos do
Estado». Na Polónia, os Einsatzgruppen conduziram opera-
ções de terror em que cerca de 15 000 polacos – a maioria
judeus ou elementos da intelligentsia – foram mortos. Esse
número iria ser, em muito, ultrapassado pelas acções dos Ein-
satzgruppen na União Soviética.
O efeito mortífero destas unidades não era, de início, pro-
porcional à sua dimensão. O Einsatzgruppe A, ligado ao
Exército do Grupo Norte, era o maior, com um contingente
de 1000 homens. Os restantes três (B, C e D), ligados aos
outros grupos do exército, tinham, cada um, entre 600 e 700
soldados. Pouco antes da invasão, os chefes destes Einsatzgru-
ppen receberam instruções de Heydrich sobre as suas tarefas.
As ordens por ele emitidas foram, mais tarde, compiladas
numa directiva de 2 de Julho de 1941, que determinava que
os Einsatzgruppen ficavam encarregues de assassinar políticos
comunistas, comissários políticos e «judeus ao serviço do par-
tido ou do Estado». A obsessão nazi sobre a ligação entre o
judaísmo e o comunismo ficava, assim, explicitada na direc-
tiva de Heydrich.
Durante os primeiros dias da invasão, os Einsatzgruppen
movimentaram-se para a União Soviética misturados com o
Exército alemão. A progressão era rápida e, a 23 de Junho, a
apenas um dia antes do ataque, o Einsatzgruppe A, sob o
comando do general da Polícia e Brigadeführer (brigadeiro)
das SS Dr. Walter Stahlecker, chegou a Kaunas, na Lituânia.
Imediatamente após a chegada, deram início a perseguições e
a assassínios de judeus da cidade. Não deixa de ser significativo
que a directiva de Heydrich contivesse estas palavras: «Não
serão tomadas medidas que interfiram com as purgas que
venham a ser feitas por anticomunistas ou antijudeus nos ter-
ritórios recém-ocupados. Pelo contrário, serão secretamente
encorajadas.» O que esta instrução demonstra é que matar
«judeus ao serviço do partido ou do Estado» era o mínimo que

73
se esperava da acção dos Einsatzgruppen. Tal como Stahlecker
escreveu num relatório subsequente: «A tarefa da polícia de
segurança era pôr em marcha estas purgas e com toda a eficá-
cia, de modo que se assegurasse que os objectivos preestabele-
cidos se pudessem atingir no mais curto espaço de tempo.»53
Em Kaunas, os lituanos que tinham acabado de ser libertados
da prisão espancaram os judeus até à morte, nas ruas, sob o
olhar benevolente dos alemães. Uma boa parte da multidão
que presenciou estas mortes gritava: «Espanquem os judeus»,
a fim de encorajar os assassinos. Depois do morticínio, um dos
assassinos subiu para cima dos cadáveres, pegou num acordeão
e tocou o hino nacional lituano. Este era, sem dúvida, preci-
samente o tipo de acção que Heydrich desejava que os seus
homens «encorajassem secretamente».
Predominantemente longe das principais cidades, os Ein-
satzgruppen levavam a cabo o seu trabalho de seleccionar
«judeus ao serviço do partido ou do Estado» e de os matar. Na
prática, isto queria dizer muitas vezes que todos os judeus do
sexo masculino de uma localidade seriam mortos a tiro. Afi-
nal, de acordo com a teoria nazi, qual era o judeu que, na
União Soviética, não estava implicitamente «ao serviço do
partido ou do Estado»?
À medida que os Einsatzgruppen e as unidades SS associa-
das continuavam a mortandade de judeus soviéticos, o Exér-
cito regular alemão também participava nos crimes de guerra.
Com base no ignóbil decreto da Operação Barbarossa e na
ordem do comissário, os resistentes eram indiscriminada-
mente abatidos a tiro e eram ordenadas represálias colectivas
contra comunidades inteiras. Além disso, os oficiais políticos
soviéticos – os comissários – eram mortos, mesmo depois de
serem capturados como prisioneiros de guerra. E foi por causa
da atitude nazi em relação a estes comissários que Auschwitz
viria a estar envolvido no conflito. Ao abrigo de um acordo
com as SS, o Exército alemão permitiu a entrada dos homens
de Heydrich nos campos de prisioneiros de guerra a fim de

74
extirpar os comissários que tivessem escapado à selecção ini-
cial de prisioneiros na linha da frente. A questão que então se
punha era: para onde se vão levar estes comissários? Do ponto
de vista nazi, não seria certamente ideal assassiná-los à frente
dos seus camaradas, e é essa a razão por que, em Julho de
1944, várias centenas de comissários encontrados nos campos
de prisioneiros de guerra foram enviados para Auschwitz.
Desde o momento da sua chegada, estes prisioneiros foram
tratados de forma diferente da dos outros ocupantes. Por incrí-
vel que pareça, face ao sofrimento já existente no campo, este
grupo recebia um tratamento ainda pior. Jerzy Bielecki ouviu
o som dos maus tratos ainda antes de poder ver: «Ouviam-se
imensos gritos, gemidos e choros.» Ele e um amigo dirigiram-
-se às pedreiras na extremidade do campo onde viram os pri-
sioneiros soviéticos. «Estavam a empurrar os contentores
cheios de areia e pedra em passo de corrida», diz. «Era muito
difícil. Os suportes com que puxavam os contentores dança-
vam de um lado para o outro. Não era um trabalho normal,
era um inferno criado pelas SS para aqueles prisioneiros de
guerra.» Os Kapos, encorajados pelos SS que estavam a assistir,
batiam com bastões nos comissários, enquanto estes trabalha-
vam: «Cheguem-lhes, rapazes!» Mas foi o que viu a seguir que,
muito particularmente, chocou Jerzy Bielecki: «Havia quatro
ou cinco homens das SS com armas. De entre estes, um ou
outro, de vez em quando, carregava-a, olhava para baixo, fazia
pontaria e disparava para a mina de pedra. Nessa altura, o meu
amigo disse: “O que é que aquele filho-da-puta está a fazer?”
Foi quando vimos um dos Kapos à bastonada a um moribundo.
O meu amigo, que tinha treino no exército, observou: “Aque-
les homens são prisioneiros de guerra. Têm direitos!” O que é
certo é que estavam a ser abatidos enquanto trabalhavam.» Foi
desta maneira, durante o Verão de 1941, que a guerra na frente
leste – a guerra sem regras – chegou a Auschwitz.
O assassínio dos comissários soviéticos era, claro, apenas
uma pequena parte das tarefas de Auschwitz durante este

75
período. Acima de tudo, o campo permanecia um lugar para
oprimir e instilar terror nos prisioneiros polacos. E no esforço
tenaz de fazer com que a instituição realizasse esse serviço
para o estado nazi, Hoess tentava constantemente limitar o
número de fugas. Apenas 2 pessoas tentaram fugir em 1940.
Mas esse número aumentou para 17 em 1941 (e viria a subir
para 173 em 1942, 295 em 1943 e 312 em 1944)54. Dado
que nos anos iniciais a grande maioria de ocupantes era
polaca, e os locais simpatizavam com a sua causa, quando um
prisioneiro escapava à segurança do campo, tentavam sempre
impedir-se a sua recaptura – fazendo-o desaparecer no meio
das movimentações da população que eram suscitadas pelas
reorganizações étnicas. Uma vez que muitos dos prisioneiros
trabalhavam longe do campo, durante o dia, nem sequer era
necessário ultrapassar o arame electrificado que o circundava.
Precisavam, apenas, de passar um único obstáculo, o períme-
tro da vedação exterior, a chamada Grosse Postenkette.
A política de Hoess para evitar estas fugas era simples: reta-
liação brutal. Se os nazis não conseguissem capturar a pessoa
que se tinha evadido, prendiam os seus familiares. Selecciona-
vam ainda dez prisioneiros do bloco a que ele pertencera e
levavam-nos para a morte de um modo deliberadamente
sádico. Roman Trojanowski participou em três selecções dis-
tintas em 1941, após terem sido detectadas fugas do seu bloco.
«O Lagerführer e outros olhavam os prisioneiros nos olhos e
escolhiam», conta ele. «Claro que os que apresentavam pior
aspecto, os mais fracos, eram os que tinham maior probabili-
dade de ser escolhidos. Não faço ideia em que é que pensei,
durante a selecção. A única coisa que queria era não os olhar
nos olhos – podia ser perigoso. O melhor era ficar direito para
não dar nas vistas. E quando Fritzsch parava em frente de
alguém e apontava o dedo, não havia a certeza para onde estava
a apontar, e era como se o coração deixasse de bater.» Trojano-
wski lembra-se de uma selecção que sintetizava a mentalidade
de Karl Fritzsch, o Lagerführer: «Durante essa selecção,

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Fritzsch reparou num homem que estava de pé, a tremer, perto
de mim. Perguntou-lhe: “Por que é que estás a tremer?” E, atra-
vés do tradutor, o homem disse: “Estou a tremer porque estou
com medo. Tenho vários filhos e quero criá-los, não quero
morrer.” E Fritzsch respondeu: “Presta bem atenção, e que isto
não volte a acontecer porque, se não, mando-te para ali.”
E apontou para a chaminé do crematório. O homem não
compreendeu e, por causa daquele gesto, deu um passo em
frente. Então, o tradutor disse: “O Lagerführer não te está a
seleccionar, dá um passo atrás.” Mas Fritzsch emendou:
“Deixa, se deu este passo é porque é o destino dele.”»
Os ocupantes seleccionados eram levados para uma cela,
onde ficavam até morrerrem à fome, num processo lento e
agonizante. Roman Trojanowski soube que uma pessoa que
ele conhecia, à falta de alimentos, acabou por comer os pró-
prios sapatos. Mas, no decorrer do Verão de 1941, as celas da
fome eram ainda o lugar de um dos poucos acontecimentos
nesta história que ofereciam algum consolo para os que acre-
ditavam na possibilidade redentora do sofrimento. Maksymi-
lian Kolbe, um padre de Varsóvia, da Igreja Católica Romana,
foi forçado a participar numa selecção para a cela da fome,
depois de um ocupante do seu bloco se ter, aparentemente,
evadido. Um homem que estava junto dele, Franciszek Gajo-
wniczek, fora seleccionado por Fritzsch, mas alegou que tinha
mulher e filhos e queria viver. Kolbe ouviu-o e ofereceu-se
para o substituir. Fritzsch concordou e Kolbe foi atirado para
a cela da fome entre os outros dez seleccionados. Duas sema-
nas depois, os quatro que sobreviveram, incluindo Kolbe,
acabaram por ser assassinados com uma injecção letal. Kolbe
foi canonizado pelo papa polaco João Paulo II, em 1982.
A sua história causou uma grande controvérsia, e não é de
somenos importância o facto de uma revista que ele editava,
antes de ser preso, conter matéria anti-semita. O que perma-
nece inalterável, contudo, é a bravura de Kolbe ao sacrificar
a sua própria vida por outrem.

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Nesse mesmo mês, Julho de 1941, uma série de decisões
tomadas a milhares de quilómetros levou a que Auschwitz se
tornasse um lugar ainda mais sinistro. Os prisioneiros estavam,
pela primeira vez, sujeitos a ser mortos por meio de gás –
mas não do modo pelo qual o campo se tornou ignobilmente
conhecido. Esses ocupantes viriam a ser mortos porque se
tornaram vítimas do programa nazi da «eutanásia de adultos».
Esta operação assassina teve a sua raiz num decreto do Führer
de Outubro de 1939, que permitia que os médicos seleccio-
nassem pacientes mentais crónicos, ou fisicamente deficien-
tes, e os matassem. No começo, foram usadas injecções
químicas que matavam os deficientes, mas, mais tarde, prefe-
riram o método das garrafas de monóxido de carbono. Câma-
ras de gás, feitas de modo a parecerem cabinas de duche,
foram instaladas como centros especiais de morte, na maioria
em antigos hospitais psiquiátricos. Poucos meses antes da
publicação do decreto de Outubro de 1939, Hitler autorizara
a selecção e a morte de crianças deficientes. Ao fazê-lo, estava
a seguir a lamentável lógica da sua própria visão ultradarwi-
nista do mundo. Essas crianças perdiam a vida porque eram
fracas e constituíam como que um dreno para a sociedade
alemã. Como crente profundo da teoria racial, preocupava-o
que essas crianças viessem a reproduzir-se na vida adulta.
O decreto que alargou o programa da eutanásia aos adul-
tos já vinha datado de 1 de Setembro e do início da guerra –
outro sinal de que o conflito funcionava como catalisador, a
fim de radicalizar as teorias nazis. Os deficientes eram, para
os nacionais-socialistas fanáticos, outro exemplo de Ballaste-
xistenzen, agora um verdadeiro peso para um país em guerra.
O Dr. Pfannmüller, uma das figuras mais destacadas dentro do
programa para a eutanásia de adultos, expressava os seus senti-
mentos desta maneira: «É-me insuportável a ideia de que o
melhor, a flor da nossa juventude, perca a vida na linha da frente
para que os mentecaptos e os elementos associais e irresponsá-
veis possam ter uma existência segura num asilo.»55 Não é de

78
todo surpreendente, dado este tipo de mentalidade, que os cri-
térios de selecção não incluíssem apenas a gravidade da doença
mental ou física, mas, também, o passado religioso ou étnico
dos pacientes. Assim, os judeus dos hospitais psiquiátricos eram
gaseados sem qualquer selecção e, no Leste, métodos draconia-
nos semelhantes eram usados para exterminar os pacientes pola-
cos dos asilos. Entre Outubro de 1939 e Maio de 1940, cerca
de 10 000 doentes mentais foram mortos na Prússia Ocidental
e no Warthegau, muitos por meio de uma nova técnica – uma
câmara de gás volante. As vítimas eram despejadas para um
compartimento, hermeticamente fechado, na parte de trás de
um camião reconvertido e, depois, asfixiadas com monóxido de
carbono engarrafado. Muito importante ainda é que o espaço,
assim libertado, servia para alojar os alemães recém-chegados.
No princípio de 1941, a campanha para a eutanásia de
adultos estendeu-se aos campos de concentração numa acção
denominada 14f13 e o programa chegou a Auschwitz em
28 de Julho. «À noite, enquanto se ouvia o toque para reunir,
diziam que os doentes podiam sair para se tratarem», relata
Kazimierz Smoleń56, na altura um prisioneiro político do
campo. «Alguns acreditavam. Todos tinham esperança. Mas
eu não estava assim tão convencido das boas intenções dos
SS.» Nem Wilhem Brasse estava, que ouviu o seu Kapo, um
comunista alemão, descrever o que pensava ser o destino dos
doentes: «Ele disse-nos que no campo de Sachsenhausen as
pessoas eram levadas dos hospitais e, depois, pura e simples-
mente desapareciam.»
Cerca de 500 doentes – num grupo de voluntários e selec-
cionados – foram encaminhados para fora do campo, para
um comboio que os esperava. «Estavam todos exaustos», diz
Kazimierz Smoleń. «Não havia ninguém saudável. Era uma
caminhada de espectros. No fim da fila viam-se enfermeiras
a levarem pessoas em padiolas. Era macabro. Ninguém os
saudava ou lhes sorria. Os doentes estavam contentes e
diziam: “Informem a minha mulher e os meus filhos sobre

79
mim.”» Para grande alegria dos prisioneiros que permanece-
ram, dois dos Kapos mais importantes do campo também
foram transportados, um deles, o odiado Krankemann.
Ouvia-se no campo o rumor de que tinha caído em desgraça
junto do seu protector, o Lagerführer Fritzsch. Ambos os
Kapos, tal como Himmler tinha previsto, de volta à vida pri-
sional, seriam quase de certeza assassinados no comboio antes
de chegarem ao seu destino. Todos os outros ocupantes que
deixaram o campo, nesse dia, morreram numa câmara de gás
de um hospital psiquiátrico reconvertido, em Sonnenstein,
perto de Danzig. Os primeiros prisioneiros de Auschwitz a
serem gaseados não foram, portanto, mortos no campo, mas
transportados para a Alemanha, e não foram assassinados por
serem judeus, mas porque já não podiam trabalhar.
O Verão de 1941 não foi apenas um tempo crucial no
desenvolvimento de Auschwitz, foi também um momento
decisivo, quer no decurso da guerra contra a União Soviética,
quer na política nazi em relação aos judeus soviéticos. À pri-
meira vista, durante Julho, a guerra parecia estar a correr
muito bem, com a Wehrmacht a fazer grandes progressos
contra o Exército Vermelho. Logo a 3 de Julho, Franz Halder,
do Alto-Comando alemão, escrevia no seu diário: «Não é
provavelmente nenhum exagero dizer que a campanha russa
foi ganha em duas semanas.» Goebbels fez ecoar estas decla-
rações no seu próprio diário, a 8 de Julho, quando escreve: «Já
ninguém tem dúvidas de que sairemos vitoriosos na Rússia.»
Em meados de Julho, as Unidades Panzer tinham avançado
mais de quinhentos quilómetros para o interior da União
Soviética e, perto do final do mês, um oficial dos serviços
secretos soviéticos – às ordens de Beria, o homólogo soviético
de Himmler – contactava o embaixador búlgaro em Mos-
covo, para lhe propor actuar como intermediário com os ale-
mães, a fim de pedir a paz57.
Contudo, no terreno, a situação era mais complexa.
A política de fome que fora o aspecto central da estratégia da

80
invasão levara a que, por exemplo, Vilnius, capital da Lituâ-
nia, tivesse abastecimento de alimentos apenas para duas
semanas. Goering foi muito claro ao proclamar a política
nazi, quando disse que as únicas pessoas que tinham direito
a alimentos, dados pelas forças invasoras, eram aquelas que
«desempenhavam funções importantes para a Alemanha»58.
Havia ainda por resolver a questão dos familiares dos judeus
do sexo masculino que tinham sido assassinados pelos Ein-
satzgruppen. Estas mulheres e crianças, que, na maioria,
tinham perdido quem as sustentava, encontravam-se sujeitas
a morrer muito rapidamente. Não estavam, decerto, «a
desempenhar funções importantes para a Alemanha».
Entretanto, previa-se uma crise de fornecimento de ali-
mentos, não apenas na frente leste, mas também na Polónia,
no gueto de Lódź. Em Julho, Rolf-Heinz Hoeppner, das SS,
escreveu a Adolf Eichmann, encarregado da secção que geria
as questões judaicas do Departamento Central de Segurança
do Reich: «Este Inverno há o perigo de os judeus não pode-
rem continuar a ser alimentados. Talvez devêssemos ponderar,
honestamente, se a solução mais humana não seria acabar
com os que não servem para trabalhar, por meio de um qual-
quer estratagema rápido. De qualquer forma, seria mais apro-
priado do que deixá-los morrer à fome.» (É importante notar
que Hoeppner escreve sobre a eventual necessidade de matar
os judeus «que não servem para trabalhar» – e não todos os
judeus. De modo cada vez mais notório, desde a Primavera
de 1941 que os nazis vinham a fazer uma distinção entre os
judeus que eram úteis aos alemães e os que não eram, distin-
ção que viria a ser, mais tarde, cristalizada nas ignóbeis «selec-
ções» de Auschwitz.)
No final de Julho, Himmler deu ordens que vinham resol-
ver a questão daqueles judeus que, para os nazis, fossem con-
siderados «comedores sem utilidade», pelo menos em relação
à frente leste. Reforçou os Einsatzgruppen com unidades de
cavalaria das SS e batalhões de polícia. Por fim, cerca de

81
40 000 homens estariam envolvidos na matança, um aumento
dez vezes superior ao das estruturas iniciais dos Einsatzgru-
ppen. Este reforço maciço de homens obedecia a uma razão:
a política de morte, no Leste, devia alargar-se de modo a
incluir mulheres e crianças judias. A ordem para esta acção
foi chegando, nas semanas seguintes, a vários comandantes
dos Einsatzgruppen e era, muitas vezes, dada pelo próprio
Himmler, quando fazia rondas pelos campos. Porém, a meio
de Agosto, todos os comandantes dos esquadrões da morte já
estavam cientes do alargamento das suas funções.
Este momento marca um ponto de viragem no processo.
Uma vez que as mulheres e as crianças também deviam ser
abatidas, a perseguição aos judeus entrou numa fase concep-
tual completamente diferente. Quase todas as políticas nazis
antijudaicas, durante a guerra e até este momento, haviam
sido potencialmente genocidas, e tanto as mulheres como as
crianças tinham vindo a ser vitimizadas, quer nos guetos quer
na falhada emigração de Nisko. Mas isto era diferente.
Os nazis decidiram juntar as mulheres e as crianças, fazê-las
despirem-se, alinhá-las junto a um poço aberto e abatê-las a
tiro. Não era possível pretender que um bebé representasse
um perigo iminente para o esforço de guerra, mas o soldado
alemão, agora, olharia para a criança pequena e não hesitaria
em puxar o gatilho.
Nesta época crucial, a alteração política ficou a dever-se à
conjugação de inúmeros factores. Uma pré-condição impor-
tante foi decerto o facto de as mulheres e as crianças judias,
na União Soviética, constituírem um «problema» para os
nazis – problema que os próprios criaram com o assassínio
dos homens e o fomento da política da fome, no Leste. Mas
não era esta a única razão por que se alargou o domínio da
morte. Em Julho, Hitler anunciou que queria um «Jardim do
Éden» alemão, no Leste, e isso implicava não haver lugar para
judeus nesse paraíso. (E não é certamente acidental que
Himmler tenha ordenado que se incluíssem as mulheres e as

82
crianças logo a seguir a diversas reuniões que teve com Hitler,
em Julho; esta iniciativa não ocorreria se não fosse essa a sua
vontade.) Já no decurso destas acções praticadas pelos esqua-
drões da morte sobre os homens judeus, tudo indica ser um
passo lógico, na perspectiva ideológica nazi, reforçar estes
esquadrões com mais homens com o intuito de «limparem»,
completamente, o novo «Jardim do Éden».
Hans Friedrich59 foi membro de uma das unidades de
infantaria das SS enviada para leste no Verão de 1941, para
reforçar os Einsatzgruppen. A sua brigada operou primeiro
na Ucrânia e ele diz que não encontraram qualquer espécie
de resistência por parte dos judeus que iam matar… «Eles [os
judeus] estavam em completo estado de choque, profunda-
mente assustados e petrificados. Podia-se fazer deles o que se
quisesse. Tinham-se resignado ao seu destino.» Os SS e os
seus colaboradores ucranianos forçavam os judeus a sair das
suas aldeias e obrigavam-nos a alinharem junto a uma vala
«funda e larga. Tinham de se colocar de modo que, quando
fossem abatidos, caíssem directamente para dentro da vala.
Isto acontecia vezes sem conta. Era preciso também que
alguém descesse à vala e verificasse, rigorosamente, se havia
algum vivo, pois nunca acontecia que fossem todos mortos
ao primeiro tiro. E se alguém estivesse apenas ferido, davam-
-lhe um tiro de pistola».
Friedrich admite que ele próprio matou judeus nessas
valas60. Disse que não tinha pensado em «nada» quando viu
as suas vítimas a uns metros à frente: «Pensei, apenas “Con-
centra-te para acertares.” E só isso! Quando se chega ao ponto
de estar ali com uma arma, pronta para atirar… só há uma
coisa, uma mão calma para o tiro ser certeiro. Mais nada.»
A consciência nunca o perturbou quanto às mortes cometi-
das, nunca teve um pesadelo sobre isso ou acordou de noite,
questionando-se sobre o que tinha feito.
Documentos confirmam que Friedrich era um membro
da Primeira Brigada de Infantaria das SS que entrou na Ucrâ-

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nia a 23 de Julho. Pela distância no tempo ou pela falta de
vontade de se incriminar ainda mais, não especifica os locais
exactos onde levou a cabo essas matanças. Os registos revelam
que a sua brigada participou num sem-número de assassínios
de judeus em vários lugares conhecidos. Uma dessas acções
ocorreu no Oeste da Ucrânia, a 4 de Agosto de 1941. Mais
de 10 000 judeus, das aldeias vizinhas, foram forçados a sair
de casa e reunidos na cidade de Ostrog. «Cedo, pela manhã
[de 4 de Agosto], chegaram os carros e os camiões», diz Vasyl
Valdeman61, nessa altura com doze anos e membro de uma
família judia. «Estavam armados e traziam cães.» Tendo cer-
cado a cidade, os SS forçaram milhares de judeus a saírem em
direcção a uma aldeia onde havia uma área de solo arenoso.
«Todos percebemos que íamos ser fuzilados», diz Vasyl Val-
deman, «mas era impossível os SS conseguirem atirar sobre
tanta gente. Chegámos lá às dez [da manhã] e mandaram-nos
sentar. Estava muito calor. Não havia comida nem água e as
pessoas, pura e simplesmente, urinavam no chão. Foram
momentos muito duros. Alguém disse que era preferível levar
um tiro do que ficar sob aquele calor. Uma pessoa desmaiou
e algumas outras morreram, simplesmente, de medo.»
Oleksiy Mulevych62, um aldeão não judeu, presenciou o
que aconteceu a seguir. Subiu ao telhado de um celeiro e viu
pequenos grupos, de 50 ou 100 judeus, a serem levados do
campo e obrigados a despir-se. «Alinharam-nos em redor de
uma vala e os oficiais ordenaram aos seus soldados que fizes-
sem mira, cada um ao seu judeu… Os judeus choravam e
gritavam. Sentiram que estavam a ver a própria morte…
Depois, todos os soldados disparam e os judeus caíram de
imediato. O oficial escolheu, então, judeus possantes para
atirar os outros para dentro da vala.»
Os tiros continuaram pelo dia fora. Vários milhares de
judeus – homens, mulheres e crianças – foram assassinados,
mas, na prática, havia judeus de mais para que os SS conseguis-
sem matar toda a gente numa única acção. Assim, ao cair da

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noite, os que restavam, incluindo Vasyl Valdeman e a sua famí-
lia, foram obrigados a regressar a Ostrog. Nesta e noutras acções
subsequentes, Vasyl perdeu o pai, a avó, o avô, dois irmãos e
dois tios, mas ele e a mãe conseguiram fugir do gueto e foram
escondidos por aldeões locais, durante três anos, até que o Exér-
cito Vermelho libertou a Ucrânia. «Não sei nada sobre as outras
aldeias, mas as pessoas da nossa ajudaram muito os judeus.»
Uns dias depois, Oleksiy Mulevych saiu em direcção aos cam-
pos de morte e teve uma visão terrível: «A areia estava a mover-
-se. Julgo que havia pessoas feridas que se mexiam debaixo da
areia. Fiquei com muita pena. Quis ajudar, mas era claro que,
mesmo que tirasse alguém da vala, não a poderia tratar.»
«Tínhamos cães em casa», diz Vasyl Valdeman, «mas nunca
fomos tão cruéis com eles como os nazis foram connosco…
Pensava nisto o tempo todo: “O que torna estas pessoas tão
cruéis?”» Hans Friedrich tinha resposta para esta questão –
o ódio: «Para ser honesto, não tenho simpatia [pelos judeus]
porque eles prejudicaram-me tanto, a mim e aos meus pais,
que não posso esquecer.» Como resultado, Friedrich «não
lamenta» os judeus que matou. «O meu ódio aos judeus é
demasiado forte.» Quando pressionado, admite que sentiu, e
ainda sente, uma justificação para a morte deles: «vingança».
Um olhar sobre o passado de Friedrich é crucial para com-
preender como se sentiu capaz de tomar parte nestas matan-
ças, quer como se sente, ainda hoje, com coragem para
justificar as suas acções. Nascera em 1921, numa parte da
Roménia dominada por alemães. Durante o seu crescimento,
ele e a família habituaram-se a odiar os judeus. O pai era
camponês e os judeus da localidade funcionavam como inter-
mediários. Compravam-lhes os produtos e vendiam-nos no
mercado. Friedrich aprendeu com os pais que os judeus
tinham demasiados lucros com os seus negócios e que ele e a
família eram, muitas vezes, enganados. «Gostava de o ter
visto», acrescenta, «se tivesse tido as experiências que nós tive-
mos… se fosse camponês e quisesse vender, por exemplo, um

85
porco e não pudesse. Só era possível através do mercado
judeu. Tente pôr-se na nossa posição. Já não éramos donos da
nossa própria vida.»
Como adolescente, nos anos 30, ele e os amigos pintaram
cartazes que diziam: «Não comprem aos judeus. Os judeus
são a nossa desgraça.» E penduraram-nos à entrada de uma
loja judia. Sentiu-se «orgulhoso» ao fazê-lo, porque tinha
«alertado contra os judeus». Leu a propaganda do estado nazi,
em particular o violentamente anti-semita Der Stürmer, e
achou que se ajustava perfeitamente à sua visão do mundo.
Em 1940, alistou-se nas SS «porque o Reich alemão estava
em guerra» e ele queria «participar». Acredita que «havia liga-
ções entre os judeus e o bolchevismo – havia evidências sufi-
cientes que o provavam». Já como membro das SS, avançou
pela Ucrânia, no Verão de 1941, achando que não estava a
entrar num país «civilizado como a França», mas algures, no
melhor dos casos, «meio civilizado» e «muito para lá da
Europa». Depois, quando lhe ordenaram que matasse judeus,
fê-lo com toda a vontade, não esquecendo nunca que estava
a vingar-se dos comerciantes que, alegadamente, tinham
enganado a família. Que aqueles fossem judeus diferentes
– judeus, na verdade, de outro país – não tinha importância.
Tal como ele explica: «São todos judeus.»
Longe de lamentar ter participado no extermínio dos
judeus, Hans Friedrich não mostra o menor constrangi-
mento. Embora nunca tenha posto isto nestes termos, revela
todos os sinais de estar orgulhoso do que ele e os seus corre-
ligionários fizeram. A justificação para as suas acções é muito
clara e consciente: os judeus prejudicaram-no, bem como à
sua família, e o mundo é um lugar melhor sem eles. Num
momento de franqueza, Adolf Eichmann fez notar que só o
facto de saber que tinha participado no assassínio de milhões
de judeus lhe deu uma tal satisfação que havia de «morrer
feliz». É fácil prever como Hans Friedrich deve ter sentido
exactamente a mesma emoção.

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Contudo, enquanto no Verão de 1941 este morticínio
aumentava na frente leste, não é tão claro que haja sido este o
momento em que a Solução Final – abarcando mais milhões
de judeus em que também se encontravam os alemães, os po-
lacos e os da Europa Ocidental – tenha sido decidida. Há um
documento que talvez sugira a ligação entre ambos. A 31 de
Julho, Heydrich obteve a assinatura de Goering num
documento que determinava: «Em complemento da missão
referente à solução do problema judaico, por meio da emigra-
ção e evacuação, por si ordenada em 24 de Janeiro de 1939,
encarrego-o de apresentar um projecto global sobre as medidas
para a organização e execução da Solução Final que se pretende
para a questão judaica, bem como de todo o material prepara-
tório necessário.» A oportunidade deste documento é crucial:
Goering assina a autorização para a Solução Final dos judeus
sob o controlo alemão exactamente no momento que os esqua-
drões da morte fuzilam mulheres e crianças judias no Leste.
Porém, uma descoberta recente, no Arquivo Especial de
Moscovo, lança dúvidas sobre o significado particular desta
autorização de 31 de Julho. Este documento contém uma
nota de Heydrich, datada de 26 de Março de 1941, que
afirma: «No que diz respeito à questão judaica, dei conheci-
mento sumário ao marechal do Reich [Goering] e submeti à
sua apreciação o meu novo projecto que ele autorizou, com
uma modificação respeitante à jurisdição de Rosenberg, e
para que pediu reapreciação.»63 O «novo projecto» de
Heydrich estava muito próximo de ser uma resposta nazi à
nova política antijudaica, suscitada pela iminente invasão da
União Soviética. A ideia de transportar os judeus para África
fora abandonada e, no começo de 1941, Hitler deu ordens a
Heydrich para que preparasse um esquema de deportação dos
judeus para qualquer lugar sob controlo germânico. Uma vez
que se esperava que a guerra contra a União Soviética não
durasse mais do que umas poucas semanas e terminasse antes
do Inverno russo, seria razoável, tal como pensaram Heydrich

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e Hitler, que os judeus fossem arrastados para leste, nesse
Outono, o que os levaria à solução interna do autocriado
problema judaico. Na terra de ninguém da Rússia do Leste,
os judeus haveriam de sofrer atrozmente.
Tal como a autorização de 31 de Julho torna claro,
Heydrich foi o primeiro responsável pela tarefa de planificar
a «solução do problema judaico pela emigração e evacuação»
no início de 1939, e isso eventualmente justifica, a partir
desse momento, a ocorrência de discussões sobre a sua juris-
dição e espaço de manobra dentro do estado nazi. Alfred
Rosenberg (mencionado no documento de 26 de Março),
que fora formalmente designado por Hitler para ministro dos
Territórios Ocupados do Leste, em 17 de Julho de 1941, era
uma ameaça potencial ao poder de Heydrich na região, e a
autorização de 31 de Julho pode ter sido emitida para permi-
tir a Heydrich clarificar a sua própria posição.
Fazendo o balanço, os novos factos não sustentam a preva-
lência da ideia inicial de que houvesse, da parte de Hitler, na
Primavera e Verão de 1941, qualquer decisão conclusiva
quanto à eliminação de todos os judeus da Europa, sendo a
autorização de 31 de Julho uma peça fundamental. A hipótese
mais provável é que todas as chefias nazis focassem a sua aten-
ção na guerra contra a União Soviética, sendo a decisão de
matar mulheres e crianças, no Leste, vista como uma medida
prática de resolver um problema imediato e específico.
Apesar de tudo, esta solução particular iria criar novos
problemas e, em consequência, novos métodos de extermínio
teriam de ser delineados, a fim de permitir que judeus e outros
fossem abatidos ainda em muito maior escala. Um dos
momentos vitais neste processo de transformação ocorreu a
15 de Agosto, quando Heinrich Himmler visitou Minsk e
viu, em primeira mão, o trabalho dos seus esquadrões da
morte. Com ele a assistir a uma execução estava Walter
Frentz64, um oficial da Luftwaffe que trabalhava como opera-
dor de câmara nos quartéis-generais de Hitler. Não foi Frentz

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o único a ficar abalado pelas mortes, ele teve bem a noção de
que o mesmo aconteceu a outros membros do esquadrão.
«Andei pelo local da execução», diz ele, «e, pouco depois, o
comandante da polícia auxiliar aproximou-se de mim por eu
ser da força aérea. “Meu tenente”, disse, “não aguento mais.
Pode-me tirar daqui?” Respondi: “Bom! Eu não tenho qual-
quer influência na polícia. Sou da força aérea, o que é que
acha que posso fazer?” “Certo!”, replicou. “Eu não aguento
mais isto. É horrível!”»
Este não foi o único oficial a ficar particularmente trauma-
tizado depois dos fuzilamentos de Minsk. O Obergruppen-
führer (tenente-general) das SS von dem Bach-Zelewski, que
também testemunhou estes acontecimentos, comentou com
Himmler: «Reichsführer, estes foram apenas umas centenas…
Veja o olhar dos homens deste Kommando, veja como estão
profundamente perturbados! Estes homens estão condenados
para o resto das suas vidas. Que tipo de seguidores estamos a
treinar aqui? Só neuróticos ou selvagens!»65 A consequência
para o próprio Bach-Zelewski foi ter ficado psicologicamente
afectado por estas mortes, sofrendo de «visões» relacionadas
com os assassínios em que ele próprio participara.
Como resultado destes protestos e do que ele, pessoal-
mente, testemunhara, Himmler ordenou que se encontrasse
um método que provocasse menos danos psicológicos aos
seus homens. Com esse intuito, o Dr. Albert Widmann, um
Untersturmführer (segundo-tenente) das SS, do Instituto Téc-
nico da Polícia Criminal, viajou poucas semanas mais tarde
para leste a fim de se encontrar com Artur Nebe, o coman-
dante do Einsatzgruppe B, no seu quartel-general, em Minsk.
Widmann já anteriormente tinha colaborado nos projectos
da técnica de gasear utilizada para matar doentes mentais. Era
agora a vez de trazer os seus conhecimentos para leste.
Por incrível que pareça, um dos primeiros métodos que
Widmann tentou, na perspectiva de «melhorar» o processo
na União Soviética, foi o de fazer explodir as vítimas. Vários

89
doentes mentais eram colocados num buraco cheio de explo-
sivos. Wilhelm Jaschke, capitão no Einsatzkommando 8,
testemunhou o que aconteceu a seguir: «A visão era aterra-
dora. A explosão não tinha sido suficientemente eficaz e
alguns feridos, aos gritos, iam-se arrastando para fora do bún-
quer…66 O búnquer ruíra… Havia pedaços de corpos espa-
lhados pelo chão, outros pendurados nas árvores. No dia
seguinte, recolhemos todos os pedaços e atirámo-los para
dentro do buraco. Os que estavam nos ramos mais altos das
árvores ficaram lá.»67
Com isto, Widmann percebeu que esta experiência com
explosivos não era, claramente, o que Himmler pretendia e,
assim, tentou outro método. O programa da eutanásia para
adultos, utilizando garrafas de monóxido de carbono, fora
usado com sucesso, mas tornava-se impraticável transportar
grandes quantidades de contentores ao longo de milhares de
quilómetros para leste. Talvez ele e o seu pessoal tenham pen-
sado num modo diferente de usar o monóxido de carbono.
Umas semanas antes, Widmann e o seu chefe, o Dr. Walter
Hess, numa carruagem do metropolitano de Berlim, conver-
saram algum tempo sobre a desgraça que quase acontecera a
Artur Nebe. Ele voltava de uma festa onde tinha bebido de
mais. Estacionou na garagem sem desligar o motor e adorme-
ceu. O resultado foi que quase morreu lá dentro, devido ao
monóxido de carbono exalado. Foi, tudo indica, a lembrança
da bebedeira de Nebe que levou Widmann a tentar uma
experiência com gás usando um escape de automóvel ligado,
por um tubo, à cave de tijolo de um hospital psiquiátrico em
Mogilev, a leste de Minsk. Um grupo de doentes mentais foi
fechado no compartimento ao mesmo tempo que se pôs o
motor a trabalhar. Do ponto de vista nazi, no início, não
pareceu um sucesso: o monóxido de carbono que saía do
carro não era suficiente para matar os pacientes. Tudo foi
rectificado quando substituíram o automóvel por um camião.
Esta experiência, de novo na perspectiva nazi, foi um sucesso.

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Widmann descobrira uma maneira barata e eficiente para
matar pessoas, que minimizava o impacte psicológico do
crime nos assassinos.
Assim, no Outono de 1941, no Leste, Widmann promo-
veu uma mudança significativa nos métodos nazis – isto, com
toda a certeza. Mas como e quando foi tomada a decisão de
Auschwitz vir a tornar-se uma componente essencial do exter-
mínio em massa dos judeus continua a ser um tema contro-
verso. Uma parte desta dificuldade reside no testemunho de
Hoess. Não só porque, por um lado, ele pretendeu apresen-
tar-se como vítima das exigências de Himmler e do seu pes-
soal incompetente, como, também, as datas por ele apontadas
são, por vezes, pouco fiáveis. Hoess afirma: «No Verão de
1941, Himmler chamou-me e explicou: “O Führer ordenou
a Solução Final para a questão dos judeus – e temos de levar
a cabo esta tarefa. Por questões de transporte e de isolamento,
escolhi Auschwitz.”»68 Na realidade, Hoess encontrou-se com
Himmler em Junho de 1941 para explicar ao Reichsführer das
SS como é que os planos para Auschwitz estavam a desenvol-
ver-se, de acordo com a expansão já começada pela I. G. Far-
ben, mas não é crível que, nessa altura, lhe tivesse sido
comunicado que Auschwitz faria parte da Solução Final. Em
primeiro lugar, não há qualquer outra evidência de que a
Solução Final, no sentido do extermínio mecanizado dos
judeus, em campos de morte, já estivesse nesta fase planeada.
A reunião prevê tanto o assassínio inicial dos judeus do sexo
masculino pelos Einsatzgruppen, no Leste, como o subse-
quente aumento dos mesmos e que começaram no fim de
Julho. Em segundo, Hoess contradiz-se nas datas, acrescen-
tando que «nessa altura, já havia no Governo Geral outros
três campos de extermínio: Belżec, Treblinka e Sobibór». Mas
nenhum deles existia ainda no Verão de 1941, e nenhum viria
a funcionar antes do início de 1942.
Alguns estudiosos argumentam que, apesar da contradição
interna desta afirmação, talvez Hoess já tivesse recebido

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ordens, em Junho de 1941, no sentido de providenciar algu-
mas estruturas para o extermínio em Auschwitz. Mas os fac-
tos que levaram ao desenvolvimento da capacidade de matar,
no campo, durante o Verão e o início do Outono de 1941, só
de modo muito vago confirmam que tudo isto tenha sido
decidido na reunião de Junho com Himmler. A explicação
mais plausível para a afirmação de Hoess é que ele tenha, pura
e simplesmente, esquecido a data. As conversações com
Himmler, tal como ele as descreve, podiam ter acontecido,
mas apenas no ano seguinte, nunca em 1941.
Isto não significa, evidentemente, que o campo de Aus-
chwitz não estivesse implicado nos processos de morte desse
Verão. Na realidade, com a expulsão dos doentes como parte
do programa 14f13 e o fuzilamento dos comissários soviéti-
cos nas pedreiras, as autoridades de Auschwitz enfrentaram
um problema não muito diferente daquele que os Einsatzgru-
ppen já tinham enfrentado no Leste: a necessidade de encon-
trar métodos de extermínio mais eficazes. O momento
decisivo para a escolha de Auschwitz parece ter ocorrido
quando Hoess não estava no campo, numa ocasião indeter-
minada entre final de Agosto e princípio de Setembro. Frit-
zsch, o seu delegado, concebeu um novo fim para uma
substância química geralmente utilizada para desinfestar o
campo de insectos – ácido prússico cristalizado (cianeto),
vendido em latas e comercializado sob o nome de «Zyklon»
(de ciclone) «Blausäure» (de ácido prússico), popularmente
conhecido por Zyklon B. Fritzsch transpôs, para Auschwitz,
a mesma lógica que Widmann estava a utilizar no Leste. Se o
Zyklon B podia ser usado para matar piolhos, por que não
usá-lo para acabar com pragas humanas? E já que o Bloco
11 era o local de execução do campo em que as caves podiam
ser seladas, por que não usá-lo como lugar natural para fazer
uma experiência?
Nessa altura, Auschwitz não era um campo em que esta
acção pudesse ocorrer secretamente. A distância entre os

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blocos era de escassos metros e a curiosidade era imensa. Daí
que as experiências de Fritzsch se tornassem logo do conhe-
cimento comum. «Eu vi-os carregar terra em carrinhos de
mão para isolarem as janelas», diz Wilhelm Brasse. «E um dia
vi-os trazer do hospital, em macas, os que estavam grave-
mente doentes e levá-los para o Bloco 11.» Mas não eram
apenas os doentes que eram levados para o Bloco 11. Eram
também elementos do outro grupo alvo que as autoridades
de Auschwitz tinham previamente definido e que queriam
matar: os comissários soviéticos. «Juntaram os prisioneiros de
guerra soviéticos na cave», diz August Kowalczyk. «Mas acon-
tecia que o gás não funcionava sempre bem e muitos deles
ainda estavam vivos no dia seguinte. Assim, reforçavam a dose
e lançavam mais cristais.»
Quando Hoess voltou, Fritzsch relatou-lhe as novidades
das experiências. Hoess assistiu às novas emanações de gás no
Bloco 11. «Protegido por uma máscara contra o gás, eu pró-
prio assisti ao morticínio. No exacto momento em que o
Zyklon B foi disseminado, a morte chegou às celas apinhadas
de gente. Um grito breve, quase suave, e era o fim.» Mas era
um facto que a morte, no Bloco 11, estava longe de ser ins-
tantânea. Era, no entanto, certo para os nazis em Auschwitz
que o uso do Zyklon B tornava o processo mais «suave».
A partir de então, os assassinos já não tinham de olhar as víti-
mas nos olhos, enquanto as matavam. Hoess relatou como
estava «aliviado» por se ter encontrado aquele novo método e
como isso o «poupava» a um «banho de sangue». Estava enga-
nado. O verdadeiro banho de sangue mal tinha começado.

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