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da existência1
Fernanda Henriques
1
Texto publicado em : Fernanda HENRIQUES (coord), Paul Ricoeur e a Simbólica do Mal, Porto,
Afrontamento, 2005.
2
“Le scandale du mal“, Esprit , 140-141 (1988), pp. 57-63, p. 57.
3
Paul RICOEUR, “Sur le tragique“, in Lectures 3, Paris, Seuil, 1994, pp. 187-209, p. 193.
1
coerente: a tensão entre o ser e a finitude, entre a cólera de Deus e a
culpabilidade, entre o sofrimento e o conhecimento.”4
Nesta medida, a intencionalidade do labor filosófico de Ricoeur
quer manter viva a tensão entre o trágico e o lógico no
desenvolvimento sucessivo e progressivo das mediações imperfeitas
que integram esse labor.
4
Ibidem, p. 194.
5
Jean HYPPOLITE, Logique et existence. Essai sur la logique de Hegel, Paris, PUF, 1953.
6
P. RICOEUR, “Retour à Hegel”, in Lectures 2, Paris, Seuil, 1992, pp. 173-187, p. 177.
7
P.RICOEUR, “Conclusions “, in H L VAN BREDA (ed) Vérité et vérification. Actes du quatrième colloque
international de phénoménologie (1969), La Haye, Martinus Nijhof, 1974, pp. 190-209, p. 204. P.
Ricoeur explica que classifica assim o pensamento de Husserl no mesmo sentido que Lucien Goldmann
se refere a Kant.
2
no horizonte de uma tensão essencial entre o singular em que
emerge e o universal que visa intencionalmente:
“A pesquisa da verdade (...) é ela própria desenvolvida entre dois pólos:
por um lado, uma situação pessoal, por outro, uma intencionalidade
sobre o ser. Por um lado, eu tenho algo muito próprio a descobrir, algo
que mais ninguém a não ser eu tem a tarefa de descobrir; eu tenho uma
posição no ser que representa um convite a pôr uma questão que
ninguém pode colocar em meu lugar; (...). E, contudo, por outro lado,
procurar a verdade quer dizer que aspiro a dizer uma palavra válida
para todos, que se destaca do fundo da minha situação, como um
universal; (...).”8
8
P.RICOEUR, Histoire et vérité, Paris, Seuil, 1955. Segunda edição aumentada, Paris, Seuil, 1964, pp.
54-55.
9
P. RICOEUR, Temps et récit t. III, Paris, Seuil, 1985, pp. 280-299.
10
Ibidem, p. 294.
3
racionalidade e realidade. Ao invés, vai reconhecer a importância da
consciência histórica que introduz a interpretação como a mediação
necessária no processo do saber e da constituição da verdade,
colocando no seu interior a tensão insuperável entre opacidade e
transparência ou entre saber e não-saber.
4
apropriação discursiva da realidade em termos integrais. No final da
sua obra sobre Freud11, ao defrontar-se com a perspectiva freudiana
acerca do valor puramente regressivo dos símbolos, Paul Ricoeur
declara que os símbolos do mal não têm equivalência com nenhuns
outros, mostrando, de uma maneira singular, o seu excesso em
relação a qualquer filosofia e, por isso, evidenciando, de forma
paradigmática, o carácter insuperável da simbólica.12
11
P. RICOEUR De l’interprétation. Essai sur Freud, Paris, Seuil 1965.
12
Cf. Ibidem, pp. 476-529. As suas palavras sobre a irredutibilidade da simbólica do mal são
contudentes: “En bref, le problème du mal nous force à revenir de Hegel a Kant, je veux dire d’une
dissolution du problème du mal dans la dialectique à la reconnaissance de la position du mal comme
inscrutable, irrécupérable par conséquent dans une spéculation, dans un savoir total et absolu.” (506-
507).
13
P.RICOEUR, Le Mal. Un défi à la philosophie et à la théologie, Genève, Labor et Fides, 1986, p. 23.
14
P. RICOEUR, Finitude et Culpabilité II, La symbolique du mal, Paris, Aubier-Montaigne, 1960.
5
Segundo Ricoeur, La symbolique du mal propõe-se repetir em
imaginação e simpatia a confissão do mal feita pela consciência
religiosa ao longo da história e depositada nas diferentes culturas,
através de textos de vários géneros literários, onde estão registados
uma multiplicidade de sentimentos e de perplexidades perante a
existência do mal.
Estará, por isso, em análise nesta obra, um vasto corpus
textual das culturas do Antigo Médio-Oriente, de Israel e da Grécia,
corpus esse pertencendo àquilo que Ricoeur designa por linguagem
plena, ou seja, a linguagem simbólica-poética que representa a
discursividade cuja aproximação da realidade se dá em termos de
maior abertura, nos quadros de uma atitude de escuta, mantendo,
por essa razão, com o real traços de ligação e de enraizamento
insuperáveis.
Apesar de o conjunto da obra em questão constituir um
percurso hermenêutico sistemático, mostrando que os símbolos do
mal se constituem por meio de um processo recapitulativo e
rememorador em que os designados símbolos primários do mal –
mancha, pecado e culpabilidade – são, sucessivamente reelaborados
a partir de um esquema primitivo15, no entanto, a figura da tragédia
emerge na totalidade da obra como o lugar por excelência da
abordagem do mal.
A tragédia com que La symbolique du mal se ocupa é a
tragédia grega, tomada como a expressão maior da visão trágica da
existência, sendo definida por Ricoeur como sendo” a manifestação
repentina e completa da essência do trágico”16 e protagonizando o
15
Esse esquema remete para três traços caracterizadores do mal: a positividade do mal, a exterioridade
do mal e a infecção.
1. A positividade do mal. A simbólica do mal constrói-se segundo o esquema que mostra o mal como
algo e não apenas como uma carência.
2. A exterioridade do mal. A simbólica do mal dá a ver que o mal vem ao ser humano de fora, como
um já dado, que atrai e seduz.
3. A infecção. É este esquema que denuncia a tragédia do humano como, simultaneamente, seduzido
pelo mal e responsável da sua emergência, mas, ao mesmo tempo, salva a natureza humana, que
apenas é infectada pelo mal, e não destruída por ele.
16
P. RICOEUR, La symbolique du mal, op. cit., p. 199.
6
carácter absolutamente insuperável da simbólica do mal. A tragédia
aparece aqui não como um género literário sem relevância específica
para o conteúdo, mas sim como a única forma literária que poderia
expressar o conteúdo que está em causa, pondo de manifesto a
impossibilidade intrínseca da especulação e da discursividade perante
a explicação do mal. Na verdade, enquanto simbólica do mal, a
tragédia evidencia o carácter constitutivamente aporético do mal ao
mesmo tempo que desoculta a incomensurabilidade entre a vocação
expressiva da linguagem e a intencionalidade ontológica que a habita.
A análise que La symbolique du mal efectua da significação
simbólica da tragédia mostra que ela é invencível como tragédia,
representando a vitória do teatro sobre a teoria17 ; isto quer dizer
18
que, segundo Ricoeur, não há superação do trágico mas no trágico ,
uma vez que, ao contrário dos outros símbolos do mal analisados na
obra que contêm uma vertente referindo-se à origem do mal e outra
ao seu fim, a tragédia não apresenta a saída salvífica. Em termos de
uma visão trágica da existência, apenas a participação no espectáculo
pode permitir a transformação dos sentimentos de temor pela
maldade dos deuses e de compaixão pela derrota dos heróis e,
através dessa catarse, possibilitar uma relação mais positiva com o
mal. Ou seja, a vivência e o reconhecimento do carácter escandaloso
do mal que o espectáculo trágico proporciona são os únicos caminhos
humanos de reconciliação com uma visão do mal ligada à maldade
dos deuses.
Algo desta perspectiva da dimensão paradigmática da tragédia
como simbólica do mal permanece no pensamento de Ricoeur
sustentando, de alguma maneira, a sua posição no seu texto de
referência sobre o tema: Le Mal. Un défi à la philosophie et à la
théologie. Neste texto, onde se faz uma recusa cerrada de todas as
17
Cf. P.RICOEUR, La symbolique du mal, op. cit., pp. 200-201.
18
Cf. Ibidem, pp. 213-217.
7
respostas explícita ou implicitamente gnósticas e, simultaneamente,
de todas as formas de teodiceia, defende-se, claramente, que a
abordagem da questão do mal tem de fazer-se operando uma
dinâmica entre as esferas do pensamento, da acção e do sentimento,
assumindo-se plenamente a incapacidade da razão especulativa para
se acercar do mal sem lhe retirar a sua raiz trágica.
8
Tomar a sério o Livro de Job implica, pois, reconhecer o mal
como um dado opaco em si mesmo, o que significa, ao mesmo
tempo, confessar um irredutível não-saber acerca da origem do mal.
Nessa medida, a verdadeira atitude relevando da fé consiste em não
querer consolar as vítimas do mal com nenhum tipo de explicação
causal:
“Às pessoas que sofrem e que são tão prontas a acusar-se de qualquer
falta desconhecida, o verdadeiro pastor das almas dirá: Deus,
19
certamente, não quis isto; eu não sei porquê; eu não sei porquê…”
19
Paul RICOEUR, “Le scandale du mal“, op. cit., p. 60.
20
Ibidem, p. 62.
21
Ibidem, p. 63.
9
responsabilidade divina, permitindo mesmo encontrar “[…] em Deus a
fonte de indignação contra o mal”22.
Mas se é verdade que não podemos, nem devemos dizer nada
aos outros sobre a causa do seu sofrimento, isso não implica que
perante o escândalo do mal só nos reste o silêncio. Pelo contrário,
cabe à linguagem o dever de fazer memória das vítimas do mal, de
as desocultar, de narrar o seu sofrimento e, por essa via, resgatá-las
de um mau silêncio: o silêncio que voltaria a fazê-las vítimas,
apagando o escândalo do seu sofrimento da memória das culturas.
22
Ibidem.
10