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O Avarento estupentada, e de rabicho. Cangalhas no nariz.

No
dedo um belo anel de brilhantes.

Molière (Jean-Baptiste Poquelin) JÚLIO DE SOUSA — Filho de Harpagão. Rapaz


(1622-1673) esbelto e puxado; 25 anos. Amante de D. Mariana.

Tradução TOMÁS — Criado particular, e confidente de


António Feliciano de Castilho* Júlio.
(1800-1875)
D. LUÍSA DE SOUSA — Filha de Harpagão.
Fonte Digital Cerca de 20 anos. Gênio amorável. Traje singelo.
Digitalização do livro em papel
Teatro Francês
Clássicos Jackson SEBASTIÃO — Cozinheiro e cocheiro de
Volume XXVIII Harpagão. Velhaco descambado. Por baixo do
W. M. Jackson Inc. sobretudo de cocheiro traz encoberto o avental de
Rio de Janeiro, 1950 cozinha.

Digitalização, MEALHADA — Outro criado de Harpagão, mais


revisão para o português do Brasil e ordinário que o precedente.
Versão para eBook
eBooksBrasil.org CLAUDINA — Criada da casa de Harpagão.
Mulher quarentena, vestida mais à saloia que à
Capa: L'Avare, Frontispice de l'édition de 1682, par cidade; com seu avental de riscado e lenço amarrado
P. Brissart, gr. par J. Sauvé. na cabeça. Não fala.
Imagem interna: Molière par Coypel d'après
Mignard, Comédie Française ANSELMO — Negociante rico, e orçando pelos
Fonte: www.toutmoliere.net seus 60. Vestuário sério e de luto. Noivo destinado
por Harpagão a D. Luísa. Modos graves e
© 2006 — Jean-Baptiste Poquelin afidalgados.

DUARTE — Mancebo de menos de 30 anos.


ÍNDICE Esperto e simpático. Fingindo mordomo em casa de
ATO PRIMEIRO Harpagão, e amante oculto e correspondido de D.
ATO SEGUNDO Luísa de Sousa.
ATO TERCEIRO
ATO QUARTO D. MARIANA — Menina de 26 anos. Senhoril e
ATO QUINTO naturalmente melancólica, trajada de preto, sem
Nota Editorial galas de espécie alguma.

GUIOMAR DOS ANJOS — Velha casamenteira,


MOLIÈRE adela espertalhona e de grande lábia. Vestido de
roda. Grandes arrecadas e cordão de ouro.

SIMÃO FORTUNA — Traficante de agências de


O AVARENTO todo o gênero.

Tradução de FELISBERTO — Escrivão do regedor.


ANTÔNIO FELICIANO DE CASTILHO*

PESSOAS
DESCRIÇÃO DO TEATRO EM TODOS OS
HARPAGÃO DE SOUSA — Empregado no Paço. CINCO ATOS
Viúvo, com um filho e uma filha; 60 anos puxados.
Gênio ríspido. Fato antiquário e rafado; com seu Sala em casa de Harpagão.
hábito de Cristo. Botas de borla. Cabeleira
Ao fundo porta larga e envidraçada entre duas amei-te, amo-te, hei-de amar-te,
janelas de sempre, sempre; mas não sei
peitos, olhando todas três para o quintal da casa, que o que o peito me adivinha.
fica no mesmo plano. Nas vidraças há seus vidros Não me pesa do que fiz,
quebrados e supridos com papel. Duas portas do lado mas esta imprudência (a minha)
direito; do esquerdo outras duas em correspondência. terá desfecho feliz?
De tudo o que eu mais receio
A primeira da direita, que é a da rua, tem rodízio é que este amor que arde aqui
de campainhas, sendo o peso da corda uma pedra me desgrace um dia.
tosca.
DUARTE
A segunda dá para a casa do jantar, cozinha, Creio
quartos de criados, etc. que ou sonho, ou zombas! Em ti
caber tal pressentimento!
A primeira da esquerda para os aposentos de Júlio pois há razão?!...
e Harpagão.
LUÍSA
A segunda para o de D. Mariana. Mil razões:
Um pai de gênio violento,
o mundo, as murmurações
Ao canto direito do topo da casa, mesa com de estranhos e de parentes...
tinteiro de chumbo, penas e um caderno de papel. e mais que tudo: o poder,
Diante desta mesa, um biombo roto. isso que hoje por mim sentes,
vir ainda a arrefecer.
Entre as duas portas da esquerda, outra mesa Mudar e mudar de escolhas
ordinária de pinho pintado, e sobre ela dois castiçais diz que é nos homens pensão;
desirmanados, com velas de sebo meio gastas. como do álamo as folhas,
reza a trova, os homens são.
Duas ou três cadeiras ordinárias dum e doutro
lado. DUARTE
Os mais sejam muito embora
Entre a primeira e segunda porta da direita, um volúveis, falsos, cruéis;
espelho muito falto d’aço. o coração que te adora,
Luísa, é dos mais fiéis.
Pendente do teto, por uma corda ao meio da sala, Enquanto a vida me dure,
um candeeiro de três bicos apagado. juro que hás-de aqui reinar.

LUÍSA
Não há nenhum que não jure;
e as juras leva-as o ar.
Querem-se obras, não palavras.
ATO PRIMEIRO
DUARTE
CENA I As minhas te farão ver
que na sentença que lavras
DUARTE fazes mal em me abranger.
Luísa! pois a alegria
que me entrou co teu amor, LUÍSA
fez-se em ti melancolia! Não abranjo; sou contente
Que mistério! a que vem dor? de entregar-me à tua fé.
Suspiras! por que suspiras?
Arrependes-te? é pesar
DUARTE
de teres feito acabar
Junto a um anjo é vil quem mente;
a minha isenção?
e Duarte um vil não é.

LUÍSA
LUÍSA
Deliras,
Não por certo; desta parte
meu caro injusto Duarte;
descansar já quero enfim.
e és um mau: não, não mudei:
Hás-de amar-me, e eu sempre amar-te; se arrojou por me acudir?
por ti o juro, e por mim. Posso eu deslembrar-me disto?
Entretanto... (à parte) Não me atrevo. generoso, sem tremer,
sem nunca me haveres visto
DUARTE expores-te...
Fala! deves tudo expor.
DUARTE
LUÍSA Era um dever
Sim, bem sei, bem sei que devo... acudir a quem lutava
mas é custoso. coa morte horrenda, e o cumpri.
Roubo-te a uma fúria brava,
DUARTE e o prêmio acho-o logo em ti.
Valor!
Se tu sabes que eu te adoro, LUÍSA
e sou teu, e todo teu... Mal escapo dos terrores
que receias? coras! de expirar entre escarcéus,
abro os olhos, acho amores:
LUÍSA teus sorrisos, e os dos céus.
Coro. Por ti e em ti renascida
desde então só tua sou,
porque desde então a vida
DUARTE és tu só quem ma enflorou.
Assustas-me; fala! Generoso me salvaste;
mais generoso depois,
LUÍSA a tudo renunciaste
Se eu... por mim só.
pudesse, como desejo,
fazer que os olhos dos mais DUARTE
te vissem qual eu te vejo!... Não; por nós dois.
Se os teus méritos reais Para mim sem ti deserto
pudessem ser conhecidos me era o mundo, e glacial;
de toda a gente!... (oxalá!) dele fora, e de ti perto
Se soubessem quão devidos gozo um Éden perenal.
te são meus afetos!... Ambos sob o mesmo teto!
onde há sorte mais feliz?
DUARTE respirar o teu afeto
Vá; não vale mil céus de huris?
conclui; não vês que me assusta,
Luísa, essa indecisão? LUÍSA
Mas que amargos sacrifícios
LUÍSA te não custa o que me dás!
Diriam que eu fora injusta, eu, desfruto os benefícios;
e um monstro de ingratidão, e tu num martírio estás.
se o que tu por mim tens feito, De senhor, de respeitado,
e estás fazendo por mim, (de mais alto ninguém cai)
não no pagasse este peito transformaste-te em criado,
como o paga. Mas assim, vieste servir meu pai;
quando ninguém te avalia tragas o pão da amargura...
mais que eu só, quando ninguém
senão nós, sabe que um dia DUARTE
tu me salvaste!!... Mas vejo-te; a que vem dó?
Raquel só coa formosura
DUARTE paga o servir de Jacob.
O meu bem
é que eu salvei em salvar-te. LUÍSA
Subir a maior façanha
LUÍSA não podia um fino amor.
Ao mar, que me ia engolir De heroicidade tamanha
quem, senão o meu Duarte sinto bem todo o valor;
mas o mundo por ventura LUÍSA
como eu julgo julgará? Que alegria!

DUARTE DUARTE
Vivas tu de mim segura; Somos o par mais feliz;
do mundo que se me dá? verás que teu pai consente,
e abençoa esta união.
LUÍSA Por isso aguardo impaciente
Uma filha!... uma donzela!... as novas que me virão;
tal mistério!... esta união!... e se tardarem, protesto
que as hei-de ir eu próprio achar.
DUARTE
União tão pura e bela, LUÍSA
esta quase adoração Pelo teu amor te obtesto,
que te eu consagro, o respeito não me hás-de aqui só deixar;
que eu jamais te quebrarei, basta a idéia dessa ausência
mostram bem que achaste um peito para matar-me; e a ti não?
não indigno... Fica, fica; era imprudência
quereres largar por mão
LUÍSA o plano, em que te empenhaste,
Achei, achei, de cativar a meu pai.
mas o mundo maldizente Logra obtê-lo; isso te baste.
que o não sabe como nós, Cuidados meus, sossegai!
e na ação mais inocente Vosso emprego (os meus amores)
sonha um crime, e lhe uiva após, não nos deixa.
não no hei-de eu temer, Duarte? (Para Duarte, com muito afeto)
Não é assim?
DUARTE
Não, Luísa; oh! não; jamais. DUARTE
Quem, quem há-de criminar-te A rogos tão sedutores
vendo o teu e os outros pais? resistir não cabe em mim.
os outros sempre extremosos; Ficarei junto a Luísa;
o teu de avareza tal, fico; ao mais Deus proverá.
de modos tão rigorosos,
de alma tão desnatural, LUÍSA
tão pouco pai, ou tão nada... Aqui é que é mais precisa
(desculpa um falar tão cru, a tua presença; lá
mas a verdade é sagrada) confia no amor paterno
pois assim devias tu que te há-de enfim descobrir.
imolar-lhe a tua dita, Cedo ou tarde se hão-de unir
o meu bem, o nosso amor? o bom filho e o pai mais terno.

LUÍSA DUARTE
Não sei... a consciência hesita; Assim o espero! (exclamando) A coroa
mas enfim... seja o que for... que eu reservo às suas cãs,
depois de dado um tal passo, dando-lhe filha tão boa,
não há já retroceder. e inveja das mais louçãs!!
Se é mal ou bem o que faço,
não sei por ora entender; LUÍSA
fatalmente a ti me entrego; Isso, não; mas toda extremos
o teu braço me conduz; para o pai de um filho tal,
fecho os olhos, e sossego; juro-o eu já.
confio em quem leva a luz.
DUARTE
DUARTE Portanto, iremos,
Sim, sossega; se algum dia té por amor filial,
(como o interior mo prediz) seguindo o mesmo sistema
acho meus pais... que a princípio me propus.
Oxalá que o estratagema
surta efeito! se o produz, LUÍSA
abençoada seja a hora Porém...
em que atrevido e sagaz,
lançadas soberbas fora, DUARTE
e oculto em libré falaz, Não há poréns, nunca viste
consegui ser bem aceito nesta regra uma exceção;
pelo senhor Harpagão! nem o mais forte resiste
aos que no fraco lhe dão.
LUÍSA A lisonja mais rasteira,
E entraste com pé direito mais párvoa, e descomunal,
nesta sua habitação. engole-a num ai, e inteira,
Dentre filhos e criados, e ri do riso geral.
se se confia de alguém, Se a pílula é bem dourada,
se alguém logra os seus agrados, e em bom mel ungida vai,
és tu só, tu, mais ninguém. seja embora asselvajada,
engole-se. Com teu pai
DUARTE (rindo) o tenho visto, e vou vendo.
E que outrem no mundo tinha Verdade é que este papel,
(não sei se é glória ou desar) que eu com ele estou fazendo,
paciência igual à minha este andar tingindo em mel
para assim representar? mentiras continuamente,
cingir-me sempre ao seu gosto? custa ao meu gênio leal;
fazer do seu vício o meu? mas que remédio! a quem mente
ser o espelho em que o seu rosto não se há-de levar a mal,
se mire, e diga: sou eu! se o enganado o precisa,
o agradece, o estima, o quer.
LUÍSA (sorrindo) Tens melindres de mulher
É que possuis o prestígio tenho-os eu também, Luísa;
do maior encantador. mas vou-lhes tapando a boca;
não há remédio, bem vês;
faze como eu: desta vez
DUARTE dize à lealdade que é louca.
Não, não; se aqui há prodígio,
quem no opera é só o amor.
Mas sério — sério, que admira LUÍSA
que eu, tornado outro Harpagão, Quanto a meu pai, já me calo;
logre o crédito e a afeição porém quanto a meu irmão,
do próprio que assim me inspira? devias associá-lo
E olha que de dia a dia à nossa conspiração.
me torno melhor ator, Não achas tu? Se a criada
lhe acrescento a simpatia, violar o arcano, convém
e vou de servo a senhor. que eu, pobre filha sem mãe,
pelo irmão seja escudada.
LUÍSA
O meu receio (confesso) DUARTE
é que possa alguma vez Bem vejo; tendo-o por nosso
meu pai, pelo próprio excesso ganhamos forças...
com que ostentas mesquinhez,
dar na burla, e então caiamos LUÍSA
de um mal noutro inda pior. Então?...

DUARTE DUARTE
Quando a alguém lisonjeamos, Mas prender eu só não posso
nem a hipérbole maior a teu pai e a teu irmão.
o acordaria do pasmo São de gênio tão contrário!
em que o lançou, e o retém, um, avaro em sumo grau;
a idéia do entusiasmo o outro quase perdulário.
que ele excita em nós. Luísa, o que não é mau
é que tu da tua parte
empenhes, quanto em ti for,
o vosso fraterno amor que amor como este meu, quer seja mal, quer bem,
em nosso bem. perderias o tempo em mo impugnar.

LUÍSA LUÍSA
Sim, Duarte. Já deste
Não me falece a vontade; palavra à tua eleita?
mas se o valor falecer?
JÚLIO
DUARTE À minha flor celeste?
Cautela; a sinceridade inda não, mas vou dar-lha; e torno-to a pedir:
não deve indiscreta ser. não me alegues razões que já não posso ouvir.
Convém por ora resguardo;
confio em ti. Ficai sós; LUÍSA
lá vem ele; dessa voz Tão louca me crês tu, ou tão extravagante,
até prodígios aguardo. Júlio?
(Sai pela segunda porta da direita)
JÚLIO
CENA II Não no és, bem sei, mas nunca foste amante.
Um coração isento, um ânimo donzel,
LUÍSA e JÚLIO (que vem da primeira porta da nem sonha o que amor pode, e é muita vez cruel.
direita) Tremo do teu juízo; e se ele fosse acaso...

JÚLIO LUÍSA
Estimo achar-te só; preciso, irmã querida, O meu juízo aqui vem pouco para o caso.
revelar-te um segredo, em que se empenha a vida. Quem há que não doideje ao menos uma vez?
Se chegasses a ler nest’alma, já talvez
LUÍSA (rindo) não falasses assim.
Morte d’homem, talvez; moeda falsa...
JÚLIO
JÚLIO Prouvera aos céus! prouvera
Amor! que em teu seio também...
mas o amor mais profundo, o mais dominador.
LUÍSA
LUÍSA Mas inda estou à espera
Tu! tu amas?! do nome da feliz... (o mais virá depois)
Falemos dela agora; estamos sós os dois,
JÚLIO confessa-te sem pejo. É pois a tua amada...
Oh! se amo!
JÚLIO
LUÍSA (com sorriso irônico) Uma nossa vizinha, uma recém-chegada
Ah! parabéns! não sei donde, um feitiço, um anjo, a perdição
de quem chega a avistá-la; o nome que lhe dão
é Mariana, e mais nada. Está sob a tutela
JÚLIO de uma pobre mulher, mãe sua, que a desvela,
Primeiro bem que enferma e infeliz, com todo o imenso amor
devo-te declarar que é mais que verdadeiro de um coração materno; um par encantador!
o afeto que hoje nutro; e todavia sei Mas como ela lho paga! os mimos, o carinho
que a obediência aos pais é religião, e é lei com que a serve, e a distrai! Parece a casa um ninho
que não deve infringir-se; aos filhos não é dado doido de primavera! e tal, que ali ninguém,
sem outorga paterna o eleger estado; se não fossem as cãs, distinguiria a mãe.
com razão, porque um pai, melhor do que ninguém, Queria, minha irmã, que a visses! com certeza
sabe, julga, deseja, anseia o nosso bem. morrias por Mariana, assim como eu. Beleza,
Quando a paixão nos cega, a experiente idade tem-na como nenhuma; e esse adorável dom
nos acode e nos salva. Aquela autoridade é o mínimo dos seus! a graça, o gênio...
portanto é natural; foi Deus por sua voz
quem aos filhos a impôs, por bem de todos nós.
Tudo isto que te digo é só para tu veres LUÍSA
que escusas de pregar-mo; eu sei quais meus deveres. Bom!
Entretanto, Luísa, hás-de saber também em tudo o non plus ultra; entende-se.
JÚLIO quanto usurário há hi; nem a cento por cento
É divina! querem já mutuar-me. O como eu me apresento!
em quanto diz e faz, na ação mais pequenina, e tu também! faz rir; excita raiva, ou dó.
põe uma graça, um mimo, um bem-querer tão seu, Trajo, apenas decente; e este, ainda assim, é só
que não há resistir-lhe! hás-de o sentir como eu, fiado que se obtém. Que outrem da nossa classe
quando a vires, Luísa, e confessar tudo isto. conheceste jamais que tanto se ralasse?
mas ponto em queixas vãs. Eu vinha-te pedir
LUÍSA que sondes nosso pai, e o movas a anuir
Até já o confesso, inda antes de a ter visto; ao meu consórcio; aliás, se eu vir que o não consigo,
claro o prova a impressão que está fazendo em ti. caso, sem mais tardar, e emigra-se; um abrigo
acha-se em qualquer parte; e quando uma mulher
JÚLIO só ambiciona amor, de pouco se há mister.
A poder de explorar, achei que andava ali
muita desaventura (em mostras de decência LUÍSA (sorrindo)
se escondem muita vez martírios de indigência). Já o li numa novela.
Vê se não era dita, um júbilo, um dever,
salvá-las, reflorir, dourar-lhes o viver. JÚLIO
E é certo, e muito certo.
LUÍSA Num sertão do Brasil! que paraíso aberto
Sim, sim. a quem foge do mundo! ali, calco eu por vil
o ouro que almejo cá. Florestas do Brasil,
JÚLIO ides ter vossa Eva, a quem no ano inteiro
Nem digo tanto; ao menos quereria presenteeis cos dons de um Deus, seu pomareiro.
podê-las de algum modo aliviar; seria
bastante, por agora, o ter com que as vingar LUÍSA
das sumas precisões; que orgulho e que folgar Mas para chegar lá (cuido que não quereis
ir com todo o melindre, e por subtis caminhos, ir a nado; pois não?) do ouro precisareis.
tirando-lhes diante as pedras e os espinhos! Se debaixo dos pés também por cá o houvesse...

LUÍSA JÚLIO
Certamente. Ri, Luísa, do amor; bem ri quem não padece.
Eu não quero pensar; fugir só quero, e pôr,
JÚLIO se meu pai nos for surdo, em salvo o nosso amor;
Mas como? Um pai avaro, e tal, entendes? para isso emprego quanto sei,
que já no coração não tem senão metal!... a ver se a todo o custo ainda alcançarei
que posso eu dele obter? um empréstimo novo (agora é o derradeiro).
Bem franco te falei; franqueza igual requeiro;
suponho que também o coração te diz,
LUÍSA Luísa, alguma coisa em prol de algum feliz...
Dele, por certo nada. Se é certo (praza ao céu!), comigo e Mariana,
Que aflição para ti! deixando esta galé, sereis da caravana.

JÚLIO LUÍSA
Dobrada, tresdobrada Improvisa, poeta; eu, que terrestre sou,
do que se pode crer. Que pai! que situação gemo, curvo a cerviz, invejo-te, e cá vou
a de ambos nós, Luísa! Os pobres, quando o são, remando esta galé, já que uma estrela escura
é por culpa da sorte, ou culpa talvez sua; me quis, órfã de mãe, fadar à desventura.
mas em nós a miséria é culpa minha? ou tua? (Ouve-se dentro confusamente Harpagão a
ou do fado sequer? Sabermos, só por fé, vociferar)
que há ouro em casa, e muito! e com tanto ouro ao Mas saiamos daqui; vem lá o pai. Convém
pé, que em lugar mais seguro a sós falemos. Vem.
e a chave em mão de um pai, raivarmos carecentes (Saem ambos pela segunda porta da esquerda;
de cômodos, de bens, das coisas mais urgentes! fica o teatro vazio por um breve espaço).
Se é para nós que ajunta, a nós que se nos dá
de um haver, que só tarde ou nunca nos virá!
Jejue a mocidade, e tenha paciência CENA III
à espera da velhice; então é que a opulência
se pode desfrutar. Eu por mim já não sei HARPAGÃO e TOMÁS
para onde me volte. Empréstimos? cansei (Vêm ambos da segunda porta da direita, Tomás
fugindo, Harpagão trazendo-o diante si aos TOMÁS
encontrões) Para embrulhar uns pastéis...

HARPAGÃO HARPAGÃO
Rua! rua! já na rua! Pastéis! oh! monstro de gula!
respondão! mal-ensinado!
Criado mais malcriado TOMÁS
nunca o houve. Mandou-me o senhor seu filho,
o senhor Júlio, o meu amo...
TOMÁS (à parte)
Está coa lua. HARPAGÃO
Pois aquele peralvilho
HARPAGÃO gasta pastéis? até bramo!
De mais a mais ratoneiro!
TOMÁS
TOMÁS Nada, foi para um presente
Quem? eu?! que eu lhe levei a umas damas.

HARPAGÃO HARPAGÃO
Pois quem? eu? Tomás, Além de pastéis, madamas!
não se rouba só dinheiro. Cada vez mais excelente.

TOMÁS TOMÁS
Eu que lhe roubo? Isso é com ele; adiante;
que mais lhe pilhei?
HARPAGÃO
És capaz HARPAGÃO
de negar (diz que não rouba) Pilhaste
que me sisaste do almoço a vinte e dois, grande traste!
quase um palmo de alfarroba, depois do almoço, tratante!
e vinte, ou vinte e um tremoço? de dentro do açucareiro
Eu trago tudo contado. três pitadas.

TOMÁS TOMÁS
Que mais, senhor Harpagão? O cigarro
tinha-me feito pigarro...
HARPAGÃO
A quinze do mês passado, HARPAGÃO
um pedaço de sabão; Pois não cigarres, brejeiro,
a dezesseis, sêmeas. perdulário!

TOMÁS TOMÁS
Sêmeas! Uma pessoa
ah! sim; foi pra me lavar; precisa-se distrair.
sempre mãos limpas; livrar
de fazer entejo às fêmeas. HARPAGÃO
Pois cace moscas.
HARPAGÃO
A dezenove uma bula... TOMÁS
É boa!
TOMÁS E quando as não há?
Já rota.
HARPAGÃO
HARPAGÃO Dormir,
E mais uns cordéis. faltando em que trabalhar;
poupam-se solas e fato;
divertimento barato,
e inocente. Mas fumar!!! de andar nos teus conhecidos
fumar!!! fazer do dinheiro espalhando... o que não é:
um fumo, ou coisa nenhuma!!! que há dinheiros escondidos
em minha casa.
TOMÁS
Também o meu amo fuma. TOMÁS
Pois há!?
HARPAGÃO não sabia; estimo.
Fumo e pastéis! guapo herdeiro
que Deus me dá! Tal criado, HARPAGÃO
tal amo. Isto vai bonito! O quê?
Fora já daqui, repito; (à parte) asneei. (alto) Não me dirá
rua! ou levo-te a cajado. o que é que estima você?
É tolo ou faz-se? Eu não disse
TOMÁS que tinha nenhuns dinheiros;
A ordem do meu patrão perguntei se por tolice
foi que eu o esperasse. tu lá cos teus companheiros
não andarias palrando
HARPAGÃO de dinheiros amuados
A sua em minha casa. Era um bando
talvez fosse; a minha então... deitado aos ladrões. Criados,
todos o são.
TOMÁS
Qual é? TOMÁS (à parte)
Que mania!
HARPAGÃO
Que o esperes na rua. HARPAGÃO
Não quero aqui um espia Tu que é que rosnas, Tomás?
de quanto em casa se faz,
do que há e não há, capaz TOMÁS
de alguma malfeitoria! Nada. Vossa Senhoria
não me dirá que me faz,
TOMÁS ou a mim ou a ninguém,
Que malfeitorias? que tenha ou não tenha oculto
algum busilhão de vulto,
se dele não sai vintém?
HARPAGÃO
Roubos,
se o queres mais explicado. HARPAGÃO (ameaçando a Tomás com uma
bofetada)
Galras-me? ateimas na tua?
TOMÁS queres por força provar?
Em curral que não tem gado
não têm que cheirar os lobos.
TOMÁS (recuando e à parte)
Daquilo sabe ele dar.
HARPAGÃO
Sempre resposta prontinha!
HARPAGÃO
Rua! repito-te, rua!
TOMÁS
Pois quer que eu não lhe responda,
se traz tudo à chave, e ronda TOMÁS
noite e dia a casa! E é já.

HARPAGÃO HARPAGÃO (correndo a fechar a primeira porta


É minha; da direita)
posso-a rondar quanto eu queira. Primeiro, alto aí;
Espia tudo que faço! hei-de saber se este pilho,
(à parte) Queira Deus que este madraço digno servo do meu filho,
não me aventasse a melgueira! não leva escondida em si
(alto) Capaz eras tu até alguma coisa furtada.
TOMAS HARPAGÃO (apalpando-lhe as botas)
Que coisa furtada? E aqui?
nas botas que enfardelaste?
HARPAGÃO
Eu sei... TOMÁS
mostra cá, e eu to direi, Os pés.
mostra...
HARPAGÃO
TOMÁS Graceja, meu traste,
O quê? não levo nada. e tu verás...

HARPAGÃO TOMÁS (à parte)


Vejo essa algibeira a impar; Nunca vi
mostra... farejar furtos como isto.

TOMÁS (tirando do bolso uma tangerina) HARPAGÃO


É uma tangerina. Botas largas em criados
são alforjes disfarçados,
HARPAGÃO invenção do demo.
Quem ta deu?
TOMÁS
TOMÁS Visto?
Deu-ma a menina
para me eu desjejuar. HARPAGÃO
Pergunte-lho. E o peito? desabotoa;
noto aí certo enchimento...
HARPAGÃO (Desabotoa-lhe o colete, e apalpa-lhe o peito)
Não preciso.
Tudo que há na casa é meu; TOMÁS (dando guinchos agudos e rindo
e se a menina lha deu, convulsivamente)
provou seu pouco juízo. Olhe que sou coceguento;
Dá, dá. basta; largue; esta é que é boa!
(Tira-lhe da mão a tangerina, mete-a na algibeira, e
cobre-a com o lenço) HARPAGÃO (medindo-o com os olhos de alto a
baixo)
TOMÁS (à parte) Que tens nessa mão fechado?
Abafada, (alto) Pronto? restitui-mo.
(à parte) E eu é que sou rapinante!
(alto) Posso-me ir? findou-se o conto? TOMÁS (abrindo a mão)
ou inda vai por diante? Eu, nada; aí tem.

HARPAGÃO HARPAGÃO
E o outro bolso? Mostra a outra.

TOMÁS TOMÁS
Vazio; Aí vai também.
quer que o vire?
HARPAGÃO
HARPAGÃO E a outra?
Pois então?
desse é que eu mais desconfio, TOMÁS
por tais demoras. Não sou dotado
de mais de duas.
TOMÁS (revirando o bolso e sacudindo)
Cotão; HARPAGÃO (depois de meditar)
assente no rol. Tomás,
tens alma?
TOMÁS atabafar-mo? era lindo!
Cuido que sim. Que tal não ficava um homem,
se acordando antes do dia,
HARPAGÃO coas ralações que o consomem,
Crês que há inferno sem fim, achasse a caixa vazia!!
e nele te afundarás Era logo pendurar-se,
se jurares falso? Deus me perdoe!

TOMÁS Se eu pudesse
Creio. por tudo, muito ao disfarce,
(à parte) Fez-se agora padre cura. fora a render! sim, se houvesse
certeza de algum banqueiro,
que não pudesse quebrar...
HARPAGÃO Mas qual! maldito dinheiro!
Então, Tomasinho, jura, como és ruim de guardar!!
jura, sem nenhum receio,
que vais dizer-me a verdade. Dizem então: "burras! burras!
casa-forte chapeada!"
TOMÁS providências de caturras
Juro. que não pescam disto nada.
As burras e casa-forte
HARPAGÃO são até um chamariz...
Tu furtaste, não? Valha-me Deus! triste sorte
a de quem julgam feliz!
TOMÁS
Não senhor. Tenho um milhão a render
no banco inglês; mas se a guerra
toda essa Europa envolver,
HARPAGÃO
não pode ir o banco a terra?
Na realidade?
Então, se estourando as silhas
a burra mãe me abalar,
TOMÁS (com grande intimativa) poder-me-ei sequer tornar
Olhe, senhor Harpagão, a estas burrinhas filhas.
se lhe eu furtei, Deus permita Por isso vou enterrando
que antes de um’hora o senhor já num, já noutro lugar;
tenha um ramo de estupor, isto é: vou multiplicando
ou qualquer coisa esquisita. razões de me atormentar.

HARPAGÃO E este meu costumezinho


Põe-te a andar; sume-te; rua, de falar alto comigo!
ladrão! e não tornes mais. nem que às vezes um vizinho
(Sai Tomás pela primeira porta da direita) não possa ouvir o que eu digo!

CENA IV CENA V

HARPAGÃO só (passeando dessossegado de um O mesmo, LUÍSA e JÚLIO


lado para o outro)
Que inferno é ter cabedais! (Os dois últimos saindo da segunda porta da
Quando a gente os encafua, esquerda, ficam conversando entre si ao fundo do
sempre os supõe bem guardados; teatro sem ser ouvidos)
mas em saindo de ao pé,
são logo dez mil cuidados!
HARPAGÃO (continuando, no primeiro plano
Eu cá, perco o sono até.
sem reparar neles)
Se alguém mos aventaria!
Mas também... por outro lado...
Se adivinhassem! sei lá!
se eu comigo não falar...
há tantos exemplos! se há!
a quem posso revelar
E enquanto a gente vigia,
o que me traz desvelado?
inda lá vai; mas dormindo,
Os quatro contos de réis
não ’stá o que é meu sem dono?
que ontem cobrei, e enterrei
e não pode ir algum mono
ali no quintal... não sei... LUÍSA
O menino dos pastéis Eu não.
tem cara de ter um faro!
E os moços!... valha-me Deus! JÚLIO
que farei? Nem eu.
(reparando nos filhos e sobressaltando-se)
Pecados meus! HARPAGÃO
Jesus! agora reparo Pois sim. Dizia: muitos giram
que não ’stava só. Deus queira com milhões e milhões; e eu, que preciso tanto,
que não me ouvissem; talvez; nem quatro contos posso aí coalhar a um canto!
talvez não!... ou sim!... Que asneira
pensar alto!
(virando-se para os filhos, e fingindo que só agora ê JÚLIO
que os vê) Vínhamos receando acaso interrompê-lo...
Ah! são vocês?...
HARPAGÃO
JÚLIO Interromper-me! qual! chegaram muito a pelo;
Sim, somos nós, meu pai. entre filhos e pai deve reinar franqueza.
O que pensava a sós acerca da pobreza
de novo lho repito, e é bom tê-lo presente:
HARPAGÃO os tempos não vão bem; vão mal; pessimamente;
Não os senti chegar; que será o futuro? ainda se eu tivera
É um sestro que têm de andarem devagar!... quatro contos de réis! quatro contos! quem dera!
Tinham chegado há muito?
JÚLIO
LUÍSA Nenhum de nós, meu pai, lhe pede contas.
Agora mesmo.
HARPAGÃO
HARPAGÃO Não;
Dou bem sei; isto é falar; é uma explicação
que me ouviram falar. que eu a meus filhos devo, a fim de que os meus
tontos
JÚLIO não julguem que esta casa é talvez a dos contos.
Quem? nós? se nos falou,
não ouvimos, meu pai. JÚLIO
Quem pensa tal! que fosse a casa até dos bicos,
LUÍSA nós que temos com isso?
Certo que não.
LUÍSA
HARPAGÃO Eu não invejo aos ricos.
Luísa
não mintas; e nem tu, (para Júlio). Quer-se a verdade HARPAGÃO
lisa: ouviram? E eu sim; só por vocês.

JÚLIO JÚLIO
Nós! o quê, meu pai? Para que está com isso?
graças a Deus, tem muito; um cabedal maciço;
HARPAGÃO ninguém há que o não saiba.
O que eu dizia
cos meus botões. HARPAGÃO
Eu! eu!
JÚLIO
E que era? JÚLIO
Meu pai.
HARPAGÃO
Era que isto hoje em dia HARPAGÃO
in verbo coscorrinho é tudo uma desgraça; Mentira.
não há pilhar ceitil, por mais que um homem faça! Deus permita...
exclamava eu então... (por força que me ouviram)...
JÚLIO JÚLIO (em meia voz, e em rápido aparte para a
Não jure; a praga que se atira irmã)
às vezes ricocheta. Outrem que me afrontasse em minha probidade,
pagava-o logo, e caro; aqui, há imunidade.
HARPAGÃO (alto para Harpagão e afetando serenidade)
A súcia que isso espalha Que lhe posso eu tomar? ou como?
são por força ladrões. Arreda, vil canalha!
Rico! eu rico! HARPAGÃO
Eu sei!
LUÍSA
Meu pai, sossegue; que lhe presta JÚLIO
o estar-se a enraivecer? Mas rogo
que mo ensine.
HARPAGÃO
Eu rico! inda mais esta! HARPAGÃO
agora até são já meus filhos, o meu sangue, E eu pergunto as suas rendas.
que espalham que sou rico, e estranham que me
zangue! JÚLIO
Jogo.
JÚLIO A fortuna (talvez por ver-me desgraçado)
Dizer que tem de seu é ser seu inimigo? favorece-me; ganho; o ouro assim ganhado,
se havia de enterrá-lo ou despendê-lo em vícios,
HARPAGÃO vai logo alimentar as artes e os ofícios,
É. sim senhor, pois que é? Quem vir como este vestindo a minha irmã de um modo mais decente,
amigo e a mim também; não devo inspirar tédio à gente.
por aí pimpa e luxa, e ouvir que eu tenho, assenta
que isto é vaza-barris; vem o diabo, atenta HARPAGÃO
alguma alma perdida, entra-me em casa, à espera O que o senhor devia, uma vez que a fortuna
de ouro em pó; não no acha, assanha-se, pudera! o favorece ao jogo, era, em vez de ir-se à tuna
amordaça-me, e zás! coseu-me de facadas! desbaratar o seu, pô-lo a render. Dinheiro
E a culpa de quem foi? das línguas depravadas, cria dinheiro. Um cento é menos que um milheiro;
e do luxo, repito, aqui do meu peralta. e como cem é bom, mil, que é dez vezes cem,
é dez vezes melhor. Calcula um só vintém
JÚLIO dez vezes a dobrar; (um só vintém; atenta;)
Que luxo? pode-te dar... dez mil duzentos e quarenta!
torna a dobrar por dez; calcula, e pasmarás!
HARPAGÃO são dez contos de réis...
Bom cavalo, anéis, nada lhe falta!
alfinete de peito! alfaiate francês! JÚLIO (sorrindo)
francesa a engomadeira! o sapateiro inglês! Sim senhor! Já me apraz.
teatros! que sei eu! já hoje mesmo eu disse
ali à sua irmã: com tanta garridice HARPAGÃO (continuando)
isto afinal estoura, e muito breve! Quatrocentos...
Ingrilou-se-me toda; acha que um pai não deve
acudir aos seus bens, que vão pela água abaixo! JÚLIO
pois achem muito embora; eu cá é que não acho; Melhor.
e hei-de lhe enfim pôr cobro. Olhem-me aquele fato,
e comparem-no ao meu; sou eu que pago o pato; HARPAGÃO
por força; ele não tem!... não ganha!... não tirou Acrescenta, acrescenta
sorte grande, que eu saiba; eu, certo, lho não dou... oitenta e cinco mil set’centos e sessenta,
(porque o não tenho); então, é claro como o dia, Que tal!
que, seja como for, mo extrai por qualquer via.
Tem as manhas da cobra: a cobra também mama,
tão velhaca e subtil, que não acorda a ama. JÚLIO
Acho bem bom. Quem os cá dera!
(Luísa, notando no irmão movimentos de
impacientado com o insulto, faz-lhe sinal para que HARPAGÃO
tenha mão em si) Aí tens,
filho pródigo, aí tens o que é poupar vinténs.
JÚLIO JÚLIO
Tem razão. Isto era um só instante:
era sobre o casar...
HARPAGÃO
Toda. Então, digo eu, que se emprestasse HARPAGÃO
a cem por cem ao ano os ganhos que apurasse... Ouçam-me pois atentos,
não andava pavão, mas era milionário. que eu não lhes vou falar senão de casamentos.

JÚLIO LUÍSA (muito triste)


São gênios; não nasci no signo de usurário. Ah! meu pai!

HARPAGÃO HARPAGÃO
Bem; não falemos mais em tais matérias. Vejo Que meu pai! nem que ah! Forte esquisita!
que o signo em que nasceu foi o do caranguejo. Mal lhe falo em casar, logo se aterra e grita.
Falemos noutra coisa. Não percebo tal medo. As mais, quando lhes falam
(Reparando em que Júlio e Luísa estão fazendo em casar, vão-se aos céus, e todas se regalam.
sinais um ao outro, querendo cada um que seja o
outro quem encete a declaração; à parte) JÚLIO
Ali anda tratada! Creio que ela também; pois não é assim, Luísa?
Mau! temos peditório. (alto) O que é lá isso? do casar sem amor é que ela se horroriza;
com razão, que até eu, sendo homem, tremeria
LUÍSA de dar à braga o pé; confesso a covardia.
Nada.
HARPAGÃO
HARPAGÃO Vamos devagarinho; eu sei perfeitamente
Como nada? Eu não vi certos sinais?... (e melhor que vocês, por mais experiente)
o que é que lhes convém; mas não atrapalhemos;
LUÍSA vamos por partes.
O mano
precisava... JÚLIO
Bem; pois diga; escutaremos.
HARPAGÃO
De quê? (à parte) Nem chavo castelhano. HARPAGÃO (para Júlio)
Já viste uma senhora, aqui nossa vizinha,
LUÍSA chamada Mariana? (E muito galantinha
E eu também precisava... que ela é, benza-a Deus!)

HARPAGÃO (à parte) JÚLIO


Um dardo. As precisões Vi, vi.
já vêm aos pares! Bravo! esfolem-me, ladrões!
HARPAGÃO (para Luísa)
JÚLIO E tu?
Precisávamos... sim... falar-lhe...
LUÍSA
LUÍSA Já dela
Ele queria tenho ouvido mil bens: que é boa, quanto é bela.
que fosse eu a primeira, e eu que fosse ele; eu ria,
ele teimava... HARPAGÃO (para Júlio)
Que tal te pareceu?
HARPAGÃO
Entendo; era o jogo do empurra. JÚLIO
(à parte) Temia que não fosse uma sangria à burra. Formosa, mui formosa!
(alto) Depois falarão disso; agora é mais instante
o que eu lhes vou dizer. HARPAGÃO
Cara linda, e de esperta.
JÚLIO JÚLIO
Esperta, e mui garbosa. O quê!!?

HARPAGÃO HARPAGÃO
Um ar... uns modos... hein? Que é lá?

JÚLIO JÚLIO
Admiráveis. Pois ousa...
ousa, meu pai?!
HARPAGÃO
Então HARPAGÃO
concordas, certamente, em que era uma união O quë?
muito de apetecer.
JÚLIO
JÚLIO Pois quer?
Oh! se era!
HARPAGÃO (depois de um breve silêncio)
HARPAGÃO Perdeste a fala?
Enfim, mulher acaba; quero o quê?
para bem reger casa, e ser como se quer.
JÚLIO
JÚLIO Deveras desposá-la?
Sem dúvida.
HARPAGÃO
HARPAGÃO Quero.
Só lhe acho um senãozinho. Creio
que tem pouco de seu; parece-me... JÚLIO
Meu pai!? meu pai!?
JÚLIO
É receio HARPAGÃO
que nem deve lembrar. Virtudes e beleza Eu, eu; cem vezes eu.
contrapesam de sobra outra qualquer riqueza. Que admirações! que tem?

HARPAGÃO JÚLIO
Lá tanto, não direi; o que porém te digo, Não sei o que me deu;
é que inda que não traga imenso haver consigo, um vágado, suponho.
paciência! arranjar-se-á por outra qualquer via.
HARPAGÃO
JÚLIO O pote da cozinha
Claro está. há-de ter água; corre, e bebe; está fresquinha;
bebe um púcaro, ou dois, se tanto for preciso;
HARPAGÃO para vágados água; afoga-os de improviso.
Pois meu filho, enches-me de alegria (Sai Júlio pela segunda porta da direita)
com esse teu pensar, que é o meu exatamente.
Muito bem! Mariana... CENA VI

JÚLIO HARPAGÃO e LUÍSA


Ah! meu bom pai!
(à parte com alvoroço, para Luísa) HARPAGÃO
Consente. Rapazinhos de hoje em dia!
Não passam de uns reles nicos.
HARPAGÃO Até fanicos! fanicos!
Mariana, pelos dons que ambos achamos nela, Vistam saia.
de econômica, parca, amável, e singela, Quando eu ia
cativou-me, e há-de ser minha segunda esposa; dizer-lhe o belo casório
quer tenha, quer não tenha. que lhe tenho preparado,
um vágadol! Cebolório!
(para Luísa) HARPAGÃO
Pois filha, tenho assentado: Minha filha,
eu caso com ela; dou repito-lhe que se apronte.
ao Júlio certa viuvinha
em que ontem se me falou, LUÍSA
e a ti o Anselmo, Luisinha. Não me pilha.

LUÍSA HARPAGÃO
Anselmo!! Olé se a pilha!
assim eu pilhasse agora
HARPAGÃO quatro contos.
Varão maduro,
de pouco mais dos sessenta; LUÍSA
uma burra suculenta; Não, não, não.
gênio bom, parco, seguro...
HARPAGÃO
LUÍSA (fazendo mesura) Sim, sim, sim.
Eu, co devido respeito,
meu pai, não quero casar. LUÍSA
Teime ele embora;
HARPAGÃO (fazendo uma cortesia de escárnio, também eu teimo; verão;
e arremedando Luísa) ninguém me pode obrigar.
E eu minha flor, quero-a dar
ao noivo que tenho eleito. HARPAGÃO
Obrigo-te eu; tu verás.
LUÍSA (repetindo a mesura)
Queira meu pai desculpar-me; LUÍSA
não pode ser. Matar-me-ei; sou mui capaz.

HARPAGÃO HARPAGÃO
A menina Não morres, e hás-de casar.
queira também perdoar-me; Viu-se nunca petulante
há-de ser. que assim a seu pai galrasse!

LUÍSA LUÍSA
A minha sina Nem pai que tanto abusasse
não reza de tal. Se quer da força...
que eu lho chame encantador,
e até bruxo, sim senhor;
mas lá ser sua mulher... HARPAGÃO
(fazendo uma mesura) Recalcitrante
sou uma sua criada. contra um arranjo excelente,
que o não há melhor!
HARPAGÃO (fazendo uma cortesia)
E eu um seu humilde servo; LUÍSA
unicamente lhe observo, Não gosto.
que hoje mesmo a Anselmo é dada.
HARPAGÃO
LUÍSA Aposto que toda a gente
Hoje? o há-de aprovar!

HARPAGÃO LUÍSA
Hoje. E eu aposto
que ninguém tal aprovava.
LUÍSA
Meu pai, não conte HARPAGÃO
com tal coisa. Não?
LUÍSA HARPAGÃO (continuando o à parte)
Não. Bravo! o meu confidente! apanho as arrecadas.
(alto) Vem aqui, meu Duarte; e muito boas fadas
HARPAGÃO que te mandaram cá. Vais ser nosso juiz:
Que queres perder? quem é que tem razão? ela, ou eu?
uma apostinha.
LUÍSA (para Duarte)
LUÍSA Meu pai diz...
Apostava.
HARPAGÃO
HARPAGÃO Ela nega.,.
E eu também. Como há-de ser?
eu ponho doze vinténs, LUÍSA
e tu esses brincos de ouro. Eu ateimo...
(vendo Luisa a sorrir)
Se tanta certeza tens... HARPAGÃO
Eu sustento...
LUÍSA (à parte)
Um coelhinho por um touro. DUARTE
(alto) Mesmo assim, aceito. O patrão,
(já percebo) é que tem carradas de razão.
HARPAGÃO
Espera. HARPAGÃO
Sabes de que se trata?
LUÍSA
Que é? DUARTE
Exata, exatamente,
HARPAGÃO não sei; sei que ao senhor nunca lhe entrou na mente
Primeiro deposita. coisa desarrazoada.

LUÍSA HARPAGÃO
Não fujo. E não. Aí vai o caso:

HARPAGÃO DUARTE
Bem sei; pudera! Venha lá.
Enfim, dás palavra? (à parte) Hesita.
HARPAGÃO
LUÍSA Digo-lhe eu que hoje, hoje mesmo, a caso
Dou palavra, dou. cum sujeito de bem, riquíssimo; e a mofina
põe-se em bicos de pés, e diz que não assina.
HARPAGÃO Que me dizes a esta?
Vem gente.
Queres tu? seja quem for, DUARTE
eis o árbitro. Eu?

LUÍSA HARPAGÃO
Excelente. Tu.
(à parte) Venço.
DUARTE
HARPAGÃO (à parte) Hã, hã!
Fico vencedor.
HARPAGÃO
CENA VII Que é?

Os mesmos e DUARTE (que vem da segunda DUARTE


porta da direita) Digo...
(Luísa faz um gesto de enfado) DUARTE
que na essência... o senhor... Eu sei! talvez dissesse: a eleição de um consorte
é coisa muito grave, e não se entrega à sorte;
HARPAGÃO deve-se em todo o caso ouvir o coração;
Que em suma, estás comigo. aliás...

(Durante esta e as seguintes falas de Duarte, HARPAGÃO


fazem contra-cena muda Harpagão e Luísa, Deixa falar. Que é lá inclinação?
carregando cada um deles o semblante, ou novelas; poesia. Ocasiões como esta,
alegrando-se, sempre em sentido contrário do outro, é colhê-las no ar. E inda o melhor da festa
à proporção que os dizeres de Duarte lhes fazem não no sabem vocês: é que ele se me obriga
feição, ou deixam de lha fazer) a tomar (notem bem) sem dote a rapariga.

DUARTE DUARTE
Sim, o senhor na essência era impossível... Sem dote!

HARPAGÃO HARPAGÃO
E era. Sim senhor; sem dote.

DUARTE (continuando) DUARTE


que resolvesse à doida. Essa embatuca.
e mete os tampos dentro.
HARPAGÃO (para Luísa)
Apanha lá, pantera. HARPAGÃO
Agora que retruca?
DUARTE
Mas agora também por outro lado, entendo DUARTE
que o que a menina diz não é despiciendo É de arriar bandeira.
de todo em todo.
HARPAGÃO
LUÍSA (para Harpagão) Economia imensa
Aí tem; aí tem. para quem não é rico.

DUARTE DUARTE
Por conseguinte, Olé se é diferença!
salvo melhor juízo... O que ela há-de objetar talvez (digo eu cá isto)
é que em se dando o nó, nem que viesse Cristo
HARPAGÃO não há mais desatá-lo; e sendo a escolha errada,
Achas que dá no vinte lá fica até à morte a vítima infernada.
uma pobre de Cristo, e que só tem de seu
o palminho da cara, achando... HARPAGÃO (exclamando para si)
Sem dote!!
LUÍSA (à parte)
Um camafeu. DUARTE
É uma razão a que se não replica;
HARPAGÃO (continuando) bem vejo. Alguma gente é que há-de vir coa nica
um marido ricaço, ilustre, já sisudo, de dizer que o casar, não sendo obrigação,
e não mal parecido, enfim (para ter tudo) não se deve fazer sem mútua inclinação;
viuvinho sem nota, e sem filhos? pergunto: e que ninguém se lembra, inda que o demo o queira,
predicados assim onde é que os viu por junto? de unir estio e inverno, um cepo e uma roseira;
e que enlaces assim provam mal, de ordinário.
DUARTE
Não lhe vou contra isso. O que ela poderia HARPAGÃO
retrucar-lhe, era só... Sem dote!!

HARPAGÃO DUARTE
Que me retrucaria? Sim senhor, quem lhe diz o contrário?
isso é uma razão de escacha-pessegueiro;
inda que há muitos pais amigos do dinheiro, DUARTE
que antes de o calcular calculam muito ao sério Oh! Luísa!
onde a filha irá ter: se a céu, se a cemitério. Pois tu não vês que ir-me opor
de cara a cara ao seu plano
HARPAGÃO era matar logo em flor
Sem dote!!! o fruto por que me afano?
Gênios que à razão não saem,
DUARTE não se hão atacar de frente;
A coisa é essa. põe-se-lhes cerco paciente,
mina-se, espera-se, e caem.
HARPAGÃO (olhando para a porta do fundo, e à
parte) LUÍSA (com muita aflição)
A modo que dei fé Mas como esperar, Duarte,
de um vulto no jardim! mau! corro a ver o que é. se é hoje mesmo...
(alto) Não saiam, que eu já venho.
(à parte) Ai! meus dez mil cruzados! DUARTE
Se alguém mos sonharia! isto é que são cuidados!... Não sei;
(Vai-se apressado pela porta do fundo) é procurar traça, ou arte,
de espaçá-lo. Buscarei.
CENA VIII E tu procura igualmente.

LUÍSA e DUARTE (depois de darem tempo a que LUÍSA (depois de pausa longa)
o pai já os não possa ouvir, e tendo estado a olhar Não há; não me ocorre nada.
ambos para a porta do fundo)
DUARTE
DUARTE Se te fingisses doente?
E esta!
LUÍSA
LUÍSA (picada, e depois de pausa) Vinha o médico, a tratada
E esta! inda não creio era logo descoberta,
no que lhe ouvi. (pausa) Concordar via-me sã como um pêro.
em tal coisa! (pausa) Não me dar Valha-me Deus! que exaspero!
razão a mim!
DUARTE
DUARTE Pois médico algum acerta
Foi receio co que está dentro da gente!
de exasperá-lo inda mais, pode haver males sem febre;
e abrir-lhe os olhos talvez. qualquer com ar de sapiente
te engole gato por lebre.
O mais que podem fazer,
LUÍSA por não desonrar o emprego,
Fê-la bonita, oh! se fez! é dar ao teu padecer...
E agora? receios tais
num lance extremo! no lance
de nos salvar ou perder! LUÍSA
(em tom irônico) Um remédio?
Adeus! quando não me alcance,
há mais por onde escolher. DUARTE
Um nome grego.
DUARTE
Quanta prudência é precisa CENA IX
para escutar uma injusta,
uma zelosa! Os mesmos e HARPAGÃO (que volta da porta do
fundo)
LUÍSA
Sim; custa; HARPAGÃO (à parte)
por isso a entrega. Nada foi, Deus louvado!
DUARTE (sem haver ainda atentado em obedecer-lhe em tudo, e não me remenique.
Harpagão) (para Duarte)
Enfim, se não houver Faze-lhe a operação da catarata.
outro modo, é fugir, e ser minha mulher. (para Luísa que vai retirar-se)
Tens valor, minha estrela? Fique,
e tenha-me juízo.
LUÍSA (com muita firmeza)
Eu tenho. DUARTE
Isso há-de o ter; sossegue.
DUARTE (reparando em Harpagão, mas Cá está sombra fiel, que a toda a parte a segue.
continuando como se o não tivera visto, e fazendo (Ouve-se da banda do jardim, mas ao longe, um
com os olhos sinal a Luísa para que dissimule assobio dos que o rouxinol expede antes de
também) repenicar a cantiga)
Não me sai
deste argumento: um pai é pai ou não é pai? HARPAGÃO
é pai; quem há que o negue? E a filha não é filha? Ouvi um assobio a modo... Não sentiram?
é; logo, a filha boa ao seu bom pai se humilha. da banda do pomar?
(à parte) Estou como os do grego.
(alto para Luísa, e ainda com mais intimativa) DUARTE
Uma donzela (entende?) Algum pássaro.
aceita, e não escolhe; escolher quê? pretende, (ouve-se segundo assobio)
sem uso algum do mundo, e só cos seus sentidos,
dar a seu pai lições acerca de maridos? HARPAGÃO
(à parte) Bom; cada vez mais grego! eu, se isto dura, Ouviram?
espero tão claro!
vir ainda a desbancar ao próprio padre Homero.
(alto para Luísa, e cada vez com mais fogo)
Pesou já bem, pesou... (senhora não me esgote DUARTE
de todo a paciência) esta razão: sem dote!? O rouxinol (talvez) que este ano veio
Sem dote!! uma menina esperta, e de pudor, morar no laranjal.
lança as mãos ambas logo, e, seja como for,
apanha a veniaga. Amor! essa é que é bela! HARPAGÃO
engorde coa ternura o caldo da panela. Que rouxinol? não creio;
antes algum sinal (sei cá?) de ratoneiro,
HARPAGÃO a convocar mais súcia ao faro de dinheiro.
Bravo! isso é que é falar que nem o melhor livro. Vai ver, Luísa, vai, se da tua janela
avistas novidade; é bom toda a cautela.
(Sai Luísa pela segunda porta da esquerda)
DUARTE (fingindo-se sobressaltado com a
aparição do amo, e confuso)
Tenho este mau costume, e dele não me livro: CENA X
digo sempre o que entendo, e às vezes brutamente;
perdoe-me o patrão, se passo de imprudente DUARTE e HARPAGÃO
em vir intrometer-me onde ninguém me chama,
e em falar tão severo aqui à minha ama; (Ouve-se cantar o rouxinol. HARPAGÃO e
que eu não sei se o senhor ouviu ou não. DUARTE ficam por algum espaço a escutar)

HARPAGÃO DUARTE
Ouvi. Era o rouxinol; pois que era?
Aprovo, e muito louvo; até delego em ti não no ouve? e trina! trina!
o meu poder paterno acerca desta louca, Nada chega à primavera.
já que às minhas razões tem sido sempre mouca;
sê tu seu vice-pai com plena autoridade; HARPAGÃO
tens mais paciência que eu, zelo, e juízo. E o verão? esse é que é mina!
noites tão claras e breves,
LUÍSA que até se dispensa luz.
Eu...
DUARTE
HARPAGÃO E roupa na cama.
Há-de
HARPAGÃO (com entusiasmo) HARPAGÃO
Deves Os cães de fila
ser meu amigo. custam caro; e comem! comem!
cada um mais do que um homem,
DUARTE (com entusiasmo igual) que é o que mais me quizila.
Jesus!
se o sou, senhor Harpagão! DUARTE
isso é uma simpatia!... Também a mim.

HARPAGÃO HARPAGÃO
A gente em irmãos confia; Nota-me isto:
vou-te falar como irmão, (pausa) calculei: come um cãozinho
Tive uma idéia famosa; por ano...
hás-de aprovar-ma.
DUARTE
DUARTE Chagas de Cristo!
Decerto.
HARPAGÃO
HARPAGÃO Dez moedas e um quartinho.
Vem ouvir aqui mais perto;
e segredinho! DUARTE
Fora! que bruto!
DUARTE
Essa prosa HARPAGÃO
é que se pode escusar; É verdade.
sou um cofre de segredo. Deixemo-nos pois de cão.
A idéia! nada de medo.
DUARTE
HARPAGÃO (depois de meditar um instante) Acho-lhe toda a razão.
Duarte, sabes ladrar?
HARPAGÃO (com complacência)
DUARTE Grande homem! já nesta idade!
Ladrar!! Ladraremos no quintal,
tu uma noite, outra eu.
HARPAGÃO Não é que eu tenha de meu
Ladrar. enterrado nem real;
mas sempre é bom.
DUARTE
Imagino DUARTE
que há-de ser fácil; eu sei! Olá se é!
Tem-se a casa mais segura.
HARPAGÃO
Depois examinarei HARPAGÃO
se tens bom órgão canino; Aprovas?
mas hás-de ter.
DUARTE
DUARTE E louvo até.
Suponhamos.
HARPAGÃO
HARPAGÃO Abraça-me! Que ternura
Este grande quintalão que tu me inspiras, Duarte!
tão entaipado de ramos és, és um homenzarrão...
precisa de noite um cão.
DUARTE (à parte)
DUARTE co’uma patente de cão.
E precisa.
HARPAGÃO LUÍSA
Dou-te neste emprego parte, Não?
só porque me vou casar; mas hei-de pensar nisso.
quando não, tomava a mim
todas as noites ladrar; HARPAGÃO (à parte)
não queria outro mastim. Aposto que hoje a bela
vendo-me há-de sorrir, se estiver à janela.
CENA XI Lindas flores que eu vi abertas na roseira!

Os mesmos e LUÍSA (que vem da segunda porta DUARTE (a Luísa)


da esquerda) Pois aí está.

LUÍSA HARPAGÃO
Nada se avista; nada. Vou pôr uma aqui na botoeira.
(Sai pela porta do fundo)
HARPAGÃO
Eu tenho de sair CENA XII
a ver certa pessoa.
DUARTE e LUÍSA
DUARTE (para Harpagão, confidencialmente)
Adeus colega; e é vir DUARTE
depressa; entende? Que me dizes, que me dizes,
Luísa, à nossa ventura?
HARPAGÃO (para Duarte, também
confidencialmente) LUÍSA
Bem; tenho o primeiro dia; Inda a não julgo segura.
amanhã serás tu. (Indicando Luisa) Fica-lhe de vigia;
e eu vou sempre outra vez correr esse quintal. DUARTE
(Conserta diante do espelho o laço da gravata, e E eu já nos dou por felizes.
assenta com o braço o pêlo do chapéu ruçado)
LUÍSA
DUARTE (entretanto a Luísa) Pobre pai! quanto eu não dera
Pois agora, menina, é vida nova; em tal para podê-lo inda amar!
escusa de pensar; quer queira quer não queira, O amar a um pai deve dar
há-de casar. tanto gosto! (e eu sou pantera!)

(Aqui puxa HARPAGÃO do bolso um pente DUARTE


desdentado, e põe-se diante do espelho a riçar com Quando nós formos esposos,
ele a peruca) mãe e pai de netos seus,
vingar-nos-emos ditosos
Um pai, que sob a cabeleira amando-o.
esconde cãs, miolo, e tanta experiência,
e que tão bem lhe quer, tem jus a obediência; LUÍSA
não há mais refilar-lhe. Permita Deus!
é tudo quanto lhe peço.
HARPAGÃO (à parte)
Assim; assim. DUARTE
E hás-de obtê-lo.
DUARTE
E então LUÍSA
sem dote! Ou talvez não.

HARPAGÃO (à parte) DUARTE


Justo. Receios em tanto excesso
não ficam mal?
DUARTE
E pensa o que é sem dote?
LUÍSA tenho um rival; e o pior
Ficarão; é que é meu pai.
mas tu chama-los receios,
e eu remorsos. TOMÁS
Ora essa!
DUARTE ele! o pai! apaixonado!
Quando vês seu rival o pai!!
que tudo aos nossos anseios
corresponde, e é já talvez JÚLIO
para nos coroar, que o maio Sim, sim.
se está desatando em flores, Quando ele mo disse a mim,
(apontando para o jardim, onde o rouxinol está também eu fiquei pasmado;
cantando) quase que tive um desmaio!
e o rouxinol trina amores, custou-me a dissimular!
epitalâmio de ensaio...
TOMÁS
LUÍSA Ele amar! amar! amar!
Ah! como o meu pobre irmão? cantou-lhe o cuco este maio!
também poeta?
(Ouve-se ladrar no quintal) JÚLIO
Escutar; Isto só a mim.
que é aquilo?
TOMÁS
DUARTE (rindo) Diz bem;
Um novo cão, mas ouvindo-lhe esse amor,
que anda aprendendo a ladrar. por que motivo o senhor
lhe não disse o seu também?

ATO SEGUNDO JÚLIO


Pedaço d’asno! Querias
CENA I que eu descobrisse o meu jogo?!
Assim, com mais desafogo
JÚLIO e TOMÁS posso ir procurando vias
por onde sem arruídos
eu vença, e o livre afinal
JÚLIO
da idéia descomunal
Por onde andaste até ’gora?
de entrar no rol dos maridos.
e eu à tua espera aqui
Mas que resposta me trazes?
de empada há mais de uma hora!
TOMÁS
TOMÁS
Pedir emprestado é triste.
Isso logo eu discorri;
Por coisas passam rapazes
mas a culpa não foi minha;
cos usurários!...
foi do senhor Harpagão.
JÚLIO
JÚLIO
Desiste
De meu pai! ele que tinha
da pregação importuna,
co esperares-me ou não?
que não me achas de maré.
Emprestam, ou não?
TOMÁS
Mandou-mo esperar na rua;
TOMÁS
bem sabe o que ele é.
O que é,
é que o tal Simão Fortuna,
JÚLIO (à parte) o do escritório da agência
Sei, sei. que nos foi recomendado,
(alto) O de que eu te encarreguei sujeito de consciência,
faz-se? progride, ou recua? fala mansa...
Dei-te pressa; pois a pressa
agora é muito maior;
JÚLIO mas é noutra de aluguer;
Está louvado; entende?
que fez?
JÚLIO
TOMÁS Menos ainda.
Disse-me que tinha
engraçado co meu amo; TOMÁS
que lhe achava uma carinha... Toda a cautela acha pouca;
quer-lhe ouvir da própria boca
JÚLIO um kyrie que nunca finda:
Sim senhor, também o eu amo; que tem, o que espera ter,
adiante; desempacha; quem é, os seus pais quem são,
arranja os dez mil cruzados? e se há testamento ou não,
e como é o seu viver...
TOMÁS confissão geral em suma;
Arranja, estão arranjados; e depois talvez que não;
mas com cláusulas; se as acha quem diz filho de Harpagão
justas e a seu gosto, aceita, deu mil seguranças numa.
e é logo o ourinho na mão;
aliás... JÚLIO
E minha mãe faleceu;
JÚLIO e eu tenho um quinhão na herança;
Aliás? tem, tem toda a segurança
de que não arrisca o seu.
TOMÁS
Se as rejeita, TOMÁS
fica na mesma. Isso tem; mas se consente,
vou ler o que o mutuador
JÚLIO ao amigo nosso agente
Um pingão! neste papel mandou pôr.
São certas cláusulas prévias,
que podem quadrar-lhe ou não;
TOMÁS se lhe quadram, bem; subscreve-as;
Justo. se não lhe quadram...

JÚLIO JÚLIO
E levou-te a falar Que são?
ao que há-de dar o dinheiro?
TOMÁS (lendo)
TOMÁS Primeiro: exige o mutuante
Devagar; mais devagar; quantas cauções possa haver,
há suas nicas primeiro; para seu sossego.
porque assim como o senhor
deseja oculto o seu vulto,
também o emprestador JÚLIO
quer ter o seu vulto oculto; Avante;
percebe? dou-lhas, e cumpro um dever.

JÚLIO TOMÁS (lendo)


Eu não. Segundo: o mutuário quer-se
que seja maior.
TOMÁS
São mistérios; JÚLIO
coisas lá da sinagoga; Já sou.
cabra-cega que se joga
entre dois sujeitos sérios. TOMÁS (lendo)
Nem diz seu nome, nem quer que não jogue, que não verse,
que lhe fale em sua casa;
hoje a um colóquio o empraza,
JÚLIO (à parte) TOMÁS (falando)
Algum poeta o logrou. Bebe azeite.
(alto) Eu verso, mas não publico;
posso-o negar; fiz a vaza. JÚLIO
Aqui não bebe;
TOMÁS (lendo) não caio em tal ratoeira.
Terceiro: que seja casa
choruda e sólida. TOMÁS
Pense, e faça o que entender.
JÚLIO Eu também acho...
Fico
por que a nossa o satisfaça. JÚLIO
Acha o quê,
TOMÁS (lendo) grande burro? então você
Quarta: quer-se obrigação não acaba de entender
muito clara, e que se faça que neste apuro infernal
por mão do tabelião me é forçoso estar por tudo?
mais honrado, o qual será
da escolha do mutuante. TOMÁS
Isso disse eu mui sisudo
JÚLIO ao nosso amigo, tal qual.
Também não me oponho; vá.
JÚLIO (apontando para o papel)
TOMÁS (lendo) Que mais propõe essa malta?
Quinto: (falando) O quinto é que é chibante essa quadrilha? Que amigo!
(continuando a ler) Conclui.
Declara o emprestador,
por ser bom cristão e humano, TOMÁS
que empresta a soma que for, Concluo; só falta
a cinco por cento ao ano. um tudo-nada de artigo:
(lendo) Sexto enfim: o mutuante,
JÚLIO (contentíssimo) por míngua de numerário,
Bravo! que homem! só dará ao mutuário
metade em metal sonante;
TOMÁS (continuando a ler) mas dá-lhe a outra metade
Todavia, em trastes, móveis, e jóias
como não tenha ao presente de grande valor.
a necessária quantia
para este empréstimo urgente, JÚLIO
e por isso há-de ir tomá-la Tramóias!
doutra mão, em que lhe pês, se eu fosse adelo...
a qual mão só pode dá-la
a cinco por cento ao mês, TOMÁS (falando)
o primeiro mutuário É verdade;
(falando) isto é: vossa senhoria, eu logo o disse também;
(continuando a ler) mas ouça o rol do bazar.
obriga-se...
JÚLIO
JÚLIO Que grande judeu!
Que usurário!
TOMÁS
TOMÁS (lendo) É bem,
por uma e outra quantia; bem da tribo de ensacar.
(falando) pelos dois juros; percebe? (procurando no papel o artigo)
Et cæt’ra, coisas e loisas,
JÚLIO que lhe dá o mais barato
Percebo; que ladroeira! que lhe é possível as coisas,
e inda perde no contrato...
Aqui está; ouça: (lendo) Um armário TOMÁS (falando)
de belo charão da China: O que eu digo
custou em novo a um templàrio é que atenda, (lendo) Esta pintura
quinhentos mil réis. foi noutro tempo magana;
mostrava a casta Susana
JÚLIO (irônico) a entrar no banho; hoje é pura;
Que mina! deu-lhe um poucochinho a traça,
e então deixou-a decente;
TOMÁS de modo que inda tem graça
Só lho carrega em trezentos. sem fazer corar a gente,
(lendo) Uma espada, que se diz (falando) Um ovo por um real.
fora do Mestre d’Avis; (lendo) Cem mil réis; e abate um pinto.
dezoito mil e duzentos.
Três bonecas de alabastro, JÚLIO
que se afirma com certeza Basta; em mais já não consinto.
que estavam sobre uma mesa
na sala de Inês de Castro; TOMÁS (falando)
cada uma, três quartinhos. Pouco falta, (lendo) Um animal
Um viveiro de canários; das Índias, ou dos Brasis,
moeda. Dois relicários que assusta mesmo empalhado.
com seus lavores d’anjinhos; Um lambique em bom estado,
nove mil réis. Uma banca cos competentes funis.
de pau-santo bem lavrado; Cos preços já o não canso;
cem mil. aqui os traz cada objeto.
(lendo) Um gamão quase completo;
JÚLIO um sino; um macaco manso.
Tens reparado O retrato de um penetra;
se aí vem alguma tranca? um cofrezinho vazio;
Um bom tonel, sem bafio;
TOMÁS (falando) um xairel, um xale, etæc’tra.
Mas arranja-se. Destes valores somados
inda abate o mutuante
dois por cento...
JÚLIO
E que mais?
JÚLIO
Oh! sacripante!
TOMÁS (lendo)
Um manicórdio bonito
do gosto mais esquisito. TOMÁS (lendo)
Uma tina e seis missais; pela alma dos seus finados.
trezentos mil réis por tudo;
e inda abate oito tostões. JÚLIO
Um leito coas armações Tudo isso que valeria
bordadas, e de veludo. quando eu pudesse vendê-lo?
a pele desse camelo
JÚLIO é que eu mercava. Queria
Olha que eu já te não vejo! regalar-me a espezinhá-la.
Que infâmia! como se abusa
de quem precisa, e se rala
TOMÁS sem poder!...
Paciência; mais um pouco.
(lendo) Item: mais um realejo
quase inteiro. Item: um coco TOMÁS
esculpido, e co seu cabo. Lá entra a musa
Um painel de autor antigo, coa solfa usada dos pobres.
mas sem nome.
JÚLIO
JÚLIO Caí nas garras de um urso.
Oh! que diabo!
e dizes tu...
TOMÁS (encolhendo os ombros) TOMÁS
E então? Como diacho
se há-de ter muita afeição
JÚLIO a quem nenhuma nos mostra,
Vê lá se descobres, devendo-a ter infinita?
se inventas algum recurso.
JÚLIO
TOMÁS Quem a natureza arrostra
É que não há. não acuse a quem o imita.
Ser um pai que lance a gente
JÚLIO neste lago dos leões!
Nada?
TOMÁS
TOMÁS Não é por eu estar presente,
Nada. nem por ser de presunções,
mas tenho um bom natural.
Mesmo assim, sendo eu pessoa
JÚLIO que nunca furtei real,
Força-me pois o onzeneiro tomava por obra boa
a aceitar pouco em dinheiro, (Deus me perdoe se isto o ofende)
e infinito em tralhoada. roubar ao senhor seu pai,
(depois de pensar um pouco) e dar a meu amo; entende?
Que remédio?
JÚLIO
TOMÁS Dá cá o papel.
Aceita?
TOMÁS
JÚLIO Aí vai.
Aceito.
Que fera! dou-me a partido;
que hei-de fazer? mais perdido JÚLIO
fico ainda, se rejeito. Quero-o ler eu próprio.
E um náufrago não se aferra
a um junco podre? (à parte) Ah! Mariana! TOMÁS
Espero?
TOMÁS
Essa estrada, se a não erra, JÚLIO
leva-o direito a pantana; Espera.
desculpe-me o atrevimento.
TOMÁS
JÚLIO (à parte) Assina?
A culpa é do negro amor.
JÚLIO
TOMÁS Verei.
Sempre assim foi; o avarento
produz o dissipador. TOMÁS
Quer ainda pensar?
JÚLIO
E dizem; maus filhos! JÚLIO
Quero.
TOMÁS Inda não sei bem; não sei.
Acho (Vai sentar-se à mesa, que está por trás do biombo
que às vezes bem sem razão. no fundo do teatro. Tomás fica em pé ao seu lado.)

JÚLIO CENA II
Pois não é?
Os mesmos, HARPAGÃO e SIMÃO FORTUNA
(que vêm ambos da primeira porta da direita)
SIMÃO SIMÃO
Sim senhor, como digo é um rapazote guapo, Nada! zomba!
bem falante, cortês... seus cem contos ou mais.

HARPAGÃO HARPAGÃO
Isso não me enche o papo; Bom; bom; já não é feio.
avante; que pretende?
SIMÃO
SIMÃO O próprio André da Paz deu-me a entender (e eu
Está num grande apuro; creio)
quer por força dinheiro. que o senhor Harpagão, querendo, poderia
pôr entre as condições, que o pai lhe morreria
HARPAGÃO dentro de um mês ou dois; há tempos, num contrato
E acha que irei seguro? já se lembrou de o pôr.
Veja lá, veja lá, senhor Simão Fortuna;
há tanto menino por aí que vive à tuna!... HARPAGÃO
À sua conta o deito; e lembre-lhe que a gente E o cão lambeu-me o prato
só tem dois dias cá, e inferno eternamente. por tal sinal; enfim, senhor Simão, a gente
deve como cristã valer num caso urgente;
SIMÃO foi sempre a minha regra.
Bem se sabe.
SIMÃO
HARPAGÃO É tal qual; eu por mim,
Ora pois, torno-lhe a perguntar: cá no meu fraco giro, a todos falo assim.
acha a coisa sem risco?
TOMAS (em voz baixa para Júlio)
SIMÃO Olhe o Simão Fortuna ali co pai!
Eu ia até jurar.
JÚLIO (baixo para Tomás)
HARPAGÃO Dar-se-á
E apostava? que me denunciasse, e que tu mesmo...

SIMÃO TOMÁS
Isso não, não gosto de apostar. Eu cá!
eu cá trair meu amo!!!
HARPAGÃO
Ele que posses tem? como se chama? disse SIMÃO (reparando em Tomás)
o apelido da casa? o meu amigo ri-se? És tu?! donde soubeste
de que se ri? de quê? que a tal casa era aqui?
(para Harpagão)
SIMÃO Eu não lho disse. Peste
Pudera não me rir! me rape antes de um credo...
já dez vezes ou mais, lhe estive a repetir
que o não conheço a fundo; entrou-me lá na agência HARPAGÃO (baixo para Simão, e sacudindo-o
muito recomendado; aceitei-lhe a incumbência colérico pela gola do vestido)
de achar-lhe emprestador; agora o mais pertence Ah! meu Simão Fortuna,
ao meu ilustre amigo; ouça-o, inquira-o, pense, que te leva o diabo!
e faça o que entender. Lá que o julgo capaz,
isso julgo; abonou-mo o nosso André da Paz; SIMÃO
mas lavo as minhas mãos; caso a coisa se grude; Espere, alma gatuna;
tenho os tantos por cento, aliás haja saúde. não me empolgue; jurei, juro-lhe, e até aposto
O que me dão por certo é ser casão de arromba; que não o descobri.
e a mãe já falecida. (em tom desconfiado)
Eu disto assim não gosto;
HARPAGÃO falemos com juízo, (à parte) Abana cuma gana!...
E ele herda? nem que eu fora figueira.
HARPAGÃO (à parte) JÚLIO
Até este me engana! Coa sua avareza rara
quer-me obrigar a morrer?
SIMÃO
No nome do senhor, nem boquejei, repito; HARPAGÃO
nem falei de tal casa. E ousas inda apresentar-te
a um pai? (De horror me confundo).
HARPAGÃO (à parte)
Arranjo tão bonito JÚLIO
foi-se pela água abaixo! E ousará meu pai dess’arte
jamais presentar-se ao mundo?
SIMÃO
Escusa agoniar-se, HARPAGÃO
e estar-me consumindo; acaba-lhe o disfarce Não te coram essas faces
uma hora mais cedo; isso que tem? Contudo, de tanta relaxação?
falasse quem falasse, eu cá por mim fui mudo. Como é crível que chegasses
O senhor que receia? o meu recomendado a pôr na idéia, ladrão,
é pessoa capaz; verá; pode a seu grado desbaratar de repente
explicar-se com ele; e nada de refolhos! o fruto de mil suores
é pão pão, queijo queijo. dos teus honrados maiores!

(Júlio, ao levantar-se arrebatadamente para JÚLIO


aparecer, deixa cair o biombo) E meu pai? meu pai não sente
vergonha de deslustrar
HARPAGÃO seu sangue, e o nosso apelido,
Enganam-me estes olhos, com esse trato escondido?
ou sonho?!! Pois é Júlio?!!... com essa usura sem par?
com essa falta de entranhas?
SIMÃO com essa mesquinheria?
Aqui o tem presente, com má fé, burlas e manhas,
meu senhor Harpagão, o nosso pretendente. de que até Judas riria?

HARPAGÃO HARPAGÃO
E és tu, filho malvado? Sai-te já de ante os meus olhos,
patifão! Quem tem um filho...
JÚLIO
E é meu pai?!... JÚLIO
Já sei de cor o estribilho:
HARPAGÃO (continuando a fala) tem um c’roa de abrolhos.
quem se liga E quem tem pai que o imola,
com estes tratos? tê-la-á talvez de flores?

JÚLIO (continuando a sua) HARPAGÃO


quem a tratos tais me obriga? Que falar de mariola!

(Fogem, Simão pela primeira porta da direita, JÚLIO (ironicamente)


Tomás pela segunda do mesmo lado) A um pai, que é todo ele amores!
(enérgico) Quem merece mais censura?
quem necessita dinheiro,
CENA III e a todo o custo o procura,
ou quem por gosto onzeneiro
HARPAGÃO e JÚLIO (a sós) rouba o que não necessita,
o que de nada lhe serve?
HARPAGÃO
Queres deitar-me a perder, HARPAGÃO
vergonha da minha cara? Que raiva que me referve!
sai-te já já, monstro! Evita
que este vulcão arrebente.
(Sai Júlio pela segunda porta da esquerda) para poder viver fiar na Providência;
é preciso ajudá-la, e fazer diligência.
CENA IV Já não chove maná, que baste a boca aberta
para encher a barriga. Uma pessoa esperta
HARPAGÃO só mantém-se da esperteza; arranja namorados,
alborca, empresta, vende; aí tens os meus morgados;
traz-se a carinha à mostra, e a consciência em paz.
HARPAGÃO (depois de ter estado por algum
tempo cogitando)
Para a outra vez vai a pau. (pausa) TOMÁS
Deixá-lo. O caso presente Quer falar ao patrão, já vejo.
assim mesmo não foi mau;
deixou-me mais sobreaviso GUIOMAR
para andar co olho alerta Isso é, Tomás.
sobre aquela besta esperta, E estou à sua espera; há certo arranjozito
que o caso é de cão e guizo. que ele há-de pagar bem.

CENA V TOMÁS
Quem? ele?
O mesmo e GUIOMAR (que vem da primeira
porta da direita) GUIOMAR
Ele, repito,
GUIOMAR (toda mesureira) ele próprio.
Senhor Harpagão de Sousa,
meu senhor... TOMÁS
Pagar?
HARPAGÃO
Viva, Guiomar. GUIOMAR
Já venho, (à parte) Torno ao pomar, Pagar.
ver não ande por lá coisa.
TOMÁS
(Sai Harpagão pelo fundo) Tia Guiomar,
se quiser pescaria há de ser noutro mar;
CENA VI daqui, nem alforreca.

GUIOMAR e TOMÁS (que vem da segunda porta GUIOMAR


da direita) Ora verás.

TOMÁS (sem ver a Guiomar) TOMÁS


Inda me estou a rir, sem perceber nem nada. Grande isca
Mas onde terá ele a imensa trapalhada tenta pôr-lhe no anzol!
de que rezava o rol? Um armário da China
não se traz na algibeira; a casa não tem mina GUIOMAR
(que eu saiba); e que a tivesse, o tal macaco manso E ponho.
pelo menos guinchava. Em suma, não alcanço.
TOMÁS
GUIOMAR Não a arrisca;
É você, Tomasinho? aqui! perde-a; protesto.

TOMÁS GUIOMAR
Que admiração, E eu sei que o tubarão, e juro,
tia Guiomar! Que a trouxe a esta habitação? cai.

GUIOMAR TOMÁS
O meu modo de vida; esta ralada vida Não cai.
de andar sempre a girar, numa contínua lida,
a servir, a arranjar coisas de toda a casta
a quanto freguês há. Bem sabes que não basta
GUIOMAR TOMÁS
Se não há engodo mais seguro! O que valeu (não houve outro embaraço)
verás. foi achar muito caro o preço do baraço.

TOMÁS GUIOMAR
Verá. Pois verás mesmo assim se eu lhe não prego o calo.
Mas chitom, lá vem ele; abala.
GUIOMAR
Pois sim; eu sou Guiomar dos Anjos, TOMÁS
a mestra examinada em seduzir marmanjos; Abalo, abalo.
inda não dei com um, que é um, que me fugisse.
Bem sabes tu do amor! o amor é uma doidice; (Sai Tomás pela segunda porta da direita)
e um doido está por tudo.
CENA VII
TOMÁS
O nosso é diferente; GUIOMAR e HARPAGÃO (que volta do jardim
falando-se-lhe em dar tem fúrias! come gente! pela porta do fundo)
Primeiro tirarão de um tronco seco azeite,
vinho de um pedernal, de uma pescada leite,
banhas de um esqueleto, afagos de um leão, HARPAGÃO (à parte)
que um único ceitil do senhor Harpagão. Por ora tudo está bem.
Tem um horror ao dar, que nem nos dá bons dias. (alto) Ora salve-a Deus, Guiomar;
Ouvindo-o, não parece; as falas são macias, enfim; chegou; inda bem!
(quando o são); muita prosa; e quando se descuida
té promessas ameaça. Um que não sabe, cuida GUIOMAR
que tudo sai de dentro; e sai; mas da algibeira Viva.
é que não sai real, por mais que se requeira.
Se se chegasse a ver na triste colisão HARPAGÃO
de apanhar pontapés ou dar meio tostão, Mande-se assentar.
não se punha a hesitar; e (creia no que digo)
levava os pontapés até... até no umbigo. GUIOMAR
Quando aí lhe morreu de fome uma jumenta, Não faz míngua; agradecida.
chorou, e até pôs luto. Este senhor Harpagão!
nunca vi na minha vida!
GUIOMAR benza-o Deus! que rapagão!
Era talvez parenta. Tomara-lhe eu a receita,
que não chegava a carcaça!
TOMÁS Que saúde tão perfeita!
E só se consolou, por ver que o sapateiro que rostinho!
comprava a pele.
HARPAGÃO
GUIOMAR Ora! tem graça!
E a carne? não faça escárnio.

TOMÁS GUIOMAR
A carne, um chanfaneiro. Quem? eu?
Quando este ano passado o vento co granizo Pela minha salvação,
matou a uva em flor, turvou-se-lhe o juízo. que nunca me pareceu
tão moço, tão guapo e são.
GUIOMAR
Se o tinha. HARPAGÃO
Deveras?
TOMÁS
Nisso tinha. E esteve decidido GUIOMAR
a pendurar-se ali no parreiral despido. Com dez mil veras.

GUIOMAR HARPAGÃO
Bom cacho! Qual! isso é brincar.
GUIOMAR Dê-me licença; desejo
Não brinco. observá-lo mais de perto;
Há moços de vinte e cinco não bula; aqui já lhe eu vejo
muito mais velhos. entre os olhos sinal certo.

HARPAGÃO HARPAGÃO
Quimeras. Que é? pois a tia Guiomar
Eu cá sinto no cachaço também lê a buena-dicha?
a carga dos meus sessenta.
GUIOMAR
GUIOMAR Sou curiosa. A mão.
Sessenta, e mesmo setenta, (pega-lhe a mão, e examina-lhe a palma)
para um senhor como um maço, Que bicha
que são? cá em nós, coitadas, esta linha a andar... a andar...
é que isso faz diferença. vai lá não sei até onde!
Quem quiser ter boas fadas
há-de nascer homem. HARPAGÃO
Mostre, mostre, onde é?
HARPAGÃO
Pensa GUIOMAR
que sessenta invernos... Aqui;
depois toma por ali
GUIOMAR e acolá é que se esconde.
Petas! Cento e dez dizia-lhe eu!
Sessenta, segundo eu acho, agora é que eu prego um trinco!
são para um ditoso macho (dá um estalo com os dedos)
o seu florir das violetas. Figas, morte! senhor meu,
mais de cento e vinte e cinco.
HARPAGÃO E para maior certeza,
Assim será; todavia, em casa o verei nas cartas.
com menos vinte este macho Que idadezinhas tão fartas!
por mais feliz se daria; benza-o Deus! que fortaleza!
digo eu cá.
HARPAGÃO
GUIOMAR Pois deveras sou tão forte?
Também não acho;
olhe; o senhor Harpagão GUIOMAR
(e não lhe estou com enganos) O que eu de tudo isto infiro
é de uma tal compleição, é que se ria da morte;
que há-de deitar aos cem anos. só se o matarem a tiro.
Indícios dos mais seletos,
HARPAGÃO que não costumam falhar.
Hu!... tu!... tu!...
HARPAGÃO
GUIOMAR Ora essa!
Ou cento e dez;
há muitos exemplos. GUIOMAR
Há-de enterrar
HARPAGÃO bisnetos e tetranetos.
Sim?
HARPAGÃO
GUIOMAR Inda bem; dava-lhe agora...
Pois não! eu entendo assim.
Para andar por balancés, GUIOMAR
não digo: isso era demais; O quê?
mas enfim, para andar bem,
rir, comer, beber; se tem
todos todos os sinais!
HARPAGÃO HARPAGÃO
Agradecimentos, Sobre mim?
cum abraço, e um beijo.
GUIOMAR
GUIOMAR E sobre o amor.
Fora!
como é pródigo! HARPAGÃO
Sim?
HARPAGÃO
Os momentos GUIOMAR
são preciosos. Então Pois então!
que há sobre os nossos arranjos?
vão bem? HARPAGÃO
E ela! ela!
GUIOMAR
Com Guiomar dos Anjos GUIOMAR
haviam de ir mal? pois não! É bem curioso; em castigo,
Nisto de casamenteira por ora é que eu lhe não digo
peço meças a qualquer. o que tenho ouvido à bela.
Mau é que eu deveras queira. Atenda, e tenha juízo.
Primeiramente entendi
HARPAGÃO que era decente e preciso
Mas vamos nós, a mulher falar à mãe.
querer-me-á?
HARPAGÃO
GUIOMAR Por aí,
Devagarinho; por aí é que era a estrada;
ouça-me; e julgue. sabe-a toda.

HARPAGÃO (dando-lhe, a rir, com dois dedos na GUIOMAR


face) Nada! brinca!
Cigana! pois o mais era dar cinca
logo na primeira entrada;
GUIOMAR e às vezes, casinhos vêm,
O nosso bendito anjinho... em que reviro a mantilha,
falando primeiro à filha,
HARPAGÃO e só tarde ou nunca à mãe.
Qual?
HARPAGÃO
GUIOMAR E a mãe que disse?
Qual!? a Dona Mariana!
Tomou-me uma simpatia, GUIOMAR
que nem lhe eu posso dizer. Alegrou-se
Em me não vendo um só dia, que nem gato com bogalho.
já perde o rir, e o comer.
Eu aproveito-me disso, HARPAGÃO
e vou quantas vezes posso. E uma notícia tão doce
Parece que até remoço não ma trazer logo!! eu ralho,
ao pé daquele feitiço! tia Guiomar.

HARPAGÃO GUIOMAR
Por força. O senhor
faz lá idéia da lida
GUIOMAR em que ando há dias metida
A nossa conversa, por causa do negro amor?
bem imagina o senhor Que azáfama! tudo casa,
sobre que versa ou não versa. e tudo cá vem bater.
Não tenho tido lazer
para vir à sua casa. HARPAGÃO (tossindo para fingir que não ouviu)
(com intenção) O caso é este, Guiomar;
E casamentos bem pagos! hoje aqui há-de se dar
Casei uma baronesa um beberete.
cum almocreve de Lagos;
uma avó, com uma perna tesa; GUIOMAR
um juiz, com um peixeira Acho bem.
um mono, e uma frangainha
de treze ou quatorze... HARPAGÃO
Para quem joga de fora
HARPAGÃO e não se vê nos tornilhos;
E a minha? meto-me enfim nesta nora
que disse? que disse? para pôr com dono os filhos.
Quero ao meu genro futuro,
GUIOMAR que é todo parlapatão,
Queira fazer esta distinção.
ter paciência, e já lá chego:
a mãe assim que lhe eu disse... GUIOMAR
Ele é já homem maduro;
HARPAGÃO não é?
Estou num desassossego!
HARPAGÃO
GUIOMAR E podre de rico,
que era bom que ela assistisse chama-se Anselmo.
hoje aqui às escrituras
dos outros dois casamentos, GUIOMAR
pois eram dois anjos bentos Já sei.
que lhe iam fadar venturas, um enxalmo, a penca em bico;
e que o senhor Harpagão mora ao chafariz del-rei.
era o próprio que me tinha
para ela e Marianinha HARPAGÃO
dado esse recado... Justo. Foi um achadão!
quintas, navios no mar!...
HARPAGÃO (depois de uma pausa)
E então? GUIOMAR
vem? Quer dar-lhe então de cear?

GUIOMAR (com cara alegre) HARPAGÃO


Vem, vem, cara magana. Deus me livre! cear, não;
bem sabe o nosso ditado;
HARPAGÃO e é certo: de largas ceias
Ambas? Que santa Guiomar! ’stão as sepulturas cheias.
Basta merenda.
GUIOMAR
Ambas, não. Vem só Mariana; GUIOMAR
a mãe já lhe custa a andar. Aprovado.
Fia de mim a menina
que eu sou-lhe muito obrigada; HARPAGÃO
isso é verdade. Lembrou-me então, que não vindo
daí aumento à despesa,
HARPAGÃO ornar eu a minha mesa
Ladina! co’aquele anjinho era lindo.

GUIOMAR GUIOMAR
Trá-la esta sua criada; Cantou, que nem a sereia!
mereço alvíssaras; hein? Pois bem; depois de jantar
cá lha trago.
HARPAGÃO em nome de um moço, e às vezes
Olhe, Guiomar, anda todo o dia fora
que é merenda, e não é ceia; em serviço de fregueses.
fale-lhe claro.
GUIOMAR
GUIOMAR Pois muito bem; vou-me embora.
Entendi.
Pois a Dona Mariana... HARPAGÃO
a senhora Dona... (aqui Espere: sondou a mãe
dobra-se a língua). (às vezes, nem tudo acode)
sobre o que pode ou não pode
HARPAGÃO (lambendo-se de gosto) dar à filha? entende bem
Magana! que nestas ocasiões,
inda que a gente se torça,
GUIOMAR tira da fraqueza força,
Faz tenção de vir primeiro e alarga à bolsa os cordões.
visitar cá a menina, Casar cuma rapariga
a enteadinha. de todo em todo sem nada,
não é coisa que se diga,
HARPAGÃO nem é praxe costumada.
E destina
passar a tarde? GUIOMAR
Ai! que ratão de encomenda!
GUIOMAR (rindo maliciosamente) Daí perca os seus cuidados;
Matreiro! tem mais de dez mil cruzados.
destina passar a tarde
na feira, que está bonita, HARPAGÃO
e tornar. De dote?!!

HARPAGÃO GUIOMAR
Então não tarde; Pois não! de renda.
jantem lá qualquer coisita,
e venham cedo. De cá HARPAGÃO
para a feira (que é distância) Ora essa! e eu às escuras!
a nossa Mariana irá, Explique-me isso, Guiomar.
irão com toda a flamância
na minha sege, que faço GUIOMAR
muito gosto em lha emprestar. Não tem muito que explicar;
contas claras e seguras;
GUIOMAR senão, calcule: a primeira
Pois tem sege! é que ela in verbo comer
não é nada invencioneira.
HARPAGÃO (com um grande suspiro) Chego-me até a benzer
Sim, Guiomar. de ver o seu passadio!
uns feijões e uma sardinha;
GUIOMAR batata e bacalhau frio;
Não sabia. e isto sem sumo de vinha;
aqui estão os seus jantares;
grande coisa é a criação!
HARPAGÃO Outras sem grandes manjares,
É que no paço, sem massas com parmesão,
como eu lá tenho um emprego, pombos, perus, empadinhas,
todos (e archeiros até) arroz de substância, Porto,
riam de eu andar a pé, doces, frutas...
e chamavam-me o galego;
vê? por isso é que eu caí
em mercar a capoeira, HARPAGÃO
e não fiz de todo asneira; Que bestinhas!
a sege está para aí
GUIOMAR (continuando) co tal joguinho!! Eu se fosse
é logo focinho torto. varão, casar não casava
Prescindir de tudo aquilo, (nem por um milhão que fora!)
cristais, criados de mesa, cuma mulher jogadora;
muita prata, e cera acesa antes cuma gata brava.
em honra do gorgomilo, Tornando ao ponto: já quero
deixa ao canto da gaveta pôr a perda por metade;
anualmente, pelo baixo, ponho três contos; não há-de
oitocentos mil réis. Acho dizer-me que lhe exagero.
que inda o cálculo é forreta. Na economia co buxo
tínhamos nós oitocentos;
HARPAGÃO cos tais dois contos do luxo,
Adiante. dezoito; cos acrescentos
poupados da jogatina,
GUIOMAR é mais de dez mil cruzados;
De catita quatorze mil bem contados,
não tem nada; muito asseio e mais quinhentos. Que China!
isso sim, mas sempre chita
ou paninho. Aqui no seio HARPAGÃO
qualquer florinha, se a há, Com que a tal renda anual
de graça; e outra aqui. era isso?
(apontando para o cabelo)
Diz ela GUIOMAR
que o luxo a quem não é bela E então?
inda mais feia a fará;
por isso aborrece as modas, HARPAGÃO
modistas, rendas, brilhantes, Então?!
vestidos de grandes rodas, Pois alguém dá quitação,
penteados coruscantes, não tendo visto real?
pós d’ouro, sinais, unturas, Metam-me o dedo na boca!
aromas de toda a casta. engana preto com gaita!
Fê-la Deus assim; não gasta Não jogar, comida pouca,
lá com essas imposturas. e não andar sirigaita
Isto na roda do ano, isso vê-se?! isso chocalha?!!
(como que calculando mentalmente) isso encartucha-se?!!!
sedas, toucados, anéis,
mete em caixa, (não me engano) GUIOMAR
uns bons dois contos de réis. Bom;
Jogar, não joga, que o jogo se só crê no que dá som,
(diz ela) é o que mais arrasa; também há.
mulher jogadora em casa
é pior que um grande fogo.
No andar por baixo do meu HARPAGÃO
mora uma, e nem dois pontos Pois venha à balha;
sabe dar, a qual perdeu por aí é que devia
no outro ano ao jogo seis contos. principiar.
Foi coisa muito falada;
por tal sinal, que o marido GUIOMAR
endoideceu. Pois senhor,
não sei se ao pé de Leiria,
HARPAGÃO Coimbra, ou Penamacor,
Não duvido; ouvi a modo que tinha
e deu-lhe muita pancada; muito de seu: pinheirais,
não deu? vinhas, gados, olivais,
(se lhos deixar a madrinha).
GUIOMAR
Qual deu! atirou-se HARPAGÃO
ao poço, que é muito fundo. Pois sim, sim, depois veremos.
Desgraças vão pelo mundo Agora, minha Guiomar,
um ponto mais grave temos
em que será bom falar. nunca imaginei. Tem graça
Mariana é uma criança; o diabrete, e siso.
pois não é?
GUIOMAR
GUIOMAR Olé!
Por certo que é.
HARPAGÃO
HARPAGÃO Bom.
Lé com lé e cré com cré;
sempre ouvi; esta aliança GUIOMAR
talvez que lhe não agrade! Com ela não se faça
mais rapazinho do que é;
GUIOMAR não queira o caldo entornado;
Agrada, fique seguro. mostre-lhe bem ter sessenta,
e inda mais.
HARPAGÃO
Um homem da minha idade! HARPAGÃO
e se lá para o futuro... Estou pasmado!
sei cá!...
GUIOMAR
GUIOMAR Também eu pasmei; assenta
Lembrou muito bem. que eu era como ela em nova?
E a mim que já me esquecia pois não! mesmo agora (e estou
falar-lhe disso também! com estes pés para a cova)
e mais na idéia o trazia! prefiro os moços. Tomou
Ninguém, ninguém imagina lá aquela antipatia
a mania singular cos rapazes; que lhe quer?
que tem aquela menina
lá nesse particular. HARPAGÃO
Eu quando era rapariga Alguma algum lhe faria.
nunca tive tal aquela.
Gente moça para ela? GUIOMAR
pois não! faz-lhe logo figa; Pois não! achou-a; é mulher
só gosta de velhos. que infunde a todos respeito;
mas quer saber? uma vez,
HARPAGÃO pedindo-a um certo sujeito,
Essa se bem me lembra irlandês...
inda eu estava para ouvir! irlandês? não era, não;
explique-me isso depressa: cuido que era italiano,
pode ser? está-se a rir!! francês, ou hanoveriano;
fosse o que fosse; alemão;
GUIOMAR alemão é que era (e isto
Custa a crer, bem vejo, custa; correu pela minha mão;
mas ouvi-lho eu mesmo a ela. afirmo-lho, por ter visto
Um ancião de cara augusta, com estes que inda aqui estão)
neve a barba, o casco à vela, ao assinar da escritura,
val mais que uns impertinentes vemo-la a nós cor de goivo!
torcidos, alfanadinhos,
de queixos barbiponentes, HARPAGÃO
e cabelos carapinhos! A Marianinha?
nunca os vê sem cuspir fora;
chama-os bonecos de feira; GUIOMAR
tem lá aquela cenreira; A futura,
vê? são gênios. sim senhor, por ver que o noivo
só tinha cinqüenta e oito,
HARPAGÃO e lia sem pôr cangalhas;
Ora! ora! apesar de ter biscoito,
e as barbas já bem grisalhas,
e tomar muito simonte, HARPAGÃO
roeu-lhe a corda; o infeliz Assim?
ficou, como o outro que diz, (continua a passear com a cabeça muito levantada)
como o esparguinho no monte.
GUIOMAR
HARPAGÃO Assim. Que perfeito!
É célebre! Inda bem que a minha idade
já não é de tentações.
GUIOMAR
Isso é. HARPAGÃO
Hei-de agradar-lhe?
HARPAGÃO
Juízo GUIOMAR
até hi. Olé! se há-de!
eu, tendo tais perfeições,
GUIOMAR se fosse ao senhor, havia
No quarto dela mandar tirar o retrato,
vê lá painéis de Narciso? e dava-lho.
ou de Adônis? Uma cela
de abadessa escrupulosa HARPAGÃO
não tem maiores recatos; É mais barato
os seus painéis são retratos dar-lhe o original.
só de gente muito idosa;
o pai Adão já na espinha, GUIOMAR (à parte, mas com um suspiro, e
Matusalém, Abraão, querendo ser ouvida)
Noé de gatas na vinha, E eu tia!
e outros que tais. Cada um para o que nasce.
Aquela é que teve dita;
HARPAGÃO não ser eu moça e bonita!
Sem questão
é tal e qual como eu sou. HARPAGAO
Pois quem pode suportar A coisa portanto faz-se;
esses cabeças de grou, não acha?
esses focinhos no ar,
vaidosos, pintalegretes, GUIOMAR
que por terem vinte e tantos Ai! posso jurá-lo.
se julgam logo uns encantos? E a saudezinha?
Que fatos! e que topetes!
provocam-me cada engulho!
antes um velho saloio. HARPAGAO
Cá isto é trigo sem joio; Boa.
e eles palhiço, e gorgulho. Não há mais cá na pessoa
que o reumático, algum calo,
e o catarro.
GUIOMAR
Diz muito bem. Homem, isso.
Que figura! que vigor! GUIOMAR
desempenado, maciço! Bagatelas!
Passeie, faça favor. Isso que admira em varões?
(Harpagão passeia todo empertigado) mostre-me uma entre mil belas
Vejam-me aquilo! direito que não tenha os seus senões.
como um fuso; a cabecinha (Harpagão tosse)
mais alta; olhe bem a minha. Catarro! catarro! eu digo
que nem quero tal ouvir.
O senhor tem no tossir
(Aqui podem fazer ad libitum o que se chama um uma tal graça consigo...
jogo de cena, executando Guiomar com modos de
homem os movimentos e posições que recomenda a
Harpagão, imitando-a este, sem esquecer que se HARPAGAO (continuando a tossir)
trata de namorar à antiga, olho piscado, lencinho ao Terei, mas é pesadinha.
nariz, etc.)
GUIOMAR HARPAGÃO
Lá isso é que ninguém vê. Deixe estar que inda algum dia
espero talvez pensar
HARPAGAO em lhe dar provas, Guiomar,
Mas diga-me cá você, do que eu sou em bizarria!
tia Guiomar, a lindinha
terá reparado em mim GUIOMAR
quando lhe eu passeio a rua? Quem o duvida? o pior
conhece-me bem? é que antes desse futuro
me acho hoje num tal apuro,
GUIOMAR que nunca o tive maior.
Sim, sim, (Harpagão tosse fingindo que é da sua asma)
conhece; que teima a sua! Trago aí uma demanda
forte idear impedimentos que, se a tempo não lhe acudo
a uma ventura tão certa! com dinheiro (que é quem manda)
Tem sempre a janela aberta, perco-a a ela, e foi-se tudo.
e os olhinhos muito atentos, O senhor é que podia
a ver se o bispa. É verdade; valer-me nesta aflição.
sabe quando é que ela o viu (Harpagão repica mais a tosse)
a vez primeira, e sentiu Mariana inda hoje o dizia:
render-se-lhe a liberdade? como o senhor Harpagão
foi uma tarde de abril; não há outro. O regozijo
chovia, se Deus a dava! que ela há-de ter quando entrar
todo o ar era um fuzil, por hi dentro coa Guiomar!
trovões, pedrisco... (Harpagão alegra-se e cessa de tossir)
e o vir tão flamante e rijo,
HARPAGÃO coa sua venera ao peito,
E ela estava co seu rabicho às laçadas,
cum tempo assim na varanda? seu chapéu às três pancadas,
um antiquário perfeito!
GUIOMAR
Sortes já predestinadas; HARPAGÃO
venturas que Deus nos manda Ouvir isso e chupar favos
no meio das trovoadas! tudo é um.
Vinha o senhor Harpagão
rua abaixo, mui direito, GUIOMAR
co seu corpinho bem feito, Não ter de meu
cana da índia na mão, hoje nem sequer dois chavos!
e apesar da água do céu, O escrivão, que é um fariseu,
e do frio que era imenso, se não lhe unto as mãos já já,
carola ao vento, e o chapéu há-de tocar os pausinhos;
embrulhadinho no lenço. depois açudam-lhe lá!
Tal rasgo de economia asno morto, adeus vizinhos!
fez-lhe tão viva impressão, (Harpagão escuta-a de viseira caída)
que ficou desde esse dia Eu não queria, senão
mortinha do coração. que pudesse haver maneira
A cada instante mo jura, para o senhor Harpagão
e nunca, nunca mo diz espreitar a feiticeira,
que não chore de ternura, quando está lá só comigo
que parece um chafariz! bordando ao seu bastidor!
E eu sempre mais lenha ao lume, O que ela diz e o que eu digo
que não se apague. a respeito do senhor!
Parece mesmo doidinha,
HARPAGÃO à espera da benta hora
Obrigado. em que há-de vir por hi fora,
que nem princesa ou rainha!
vestido de fustão novo!
GUIOMAR c’roa de flor de laranja!
Ponho nisto mais cuidado
do que ela e o senhor presume.
sem galas vindas da estranja, GUIOMAR
que é isso o que eu mais lhe louvo! Salve-me.

HARPAGÃO HARPAGÃO
E eu também. Viva, Guiomar.

GUIOMAR (em tom suplicante) GUIOMAR


Meu freguesinho! Não fuja...
pela boa sorte dela
que me valha! HARPAGÃO
(Harpagão torna-se a anuvear; Guiomar, que o vê, Estão-me a chamar.
fala consigo) (grita para dentro)
Ih! que focinho! Eu vou! cá vou! (à parte) Que oratório!
(Sai pela porta do fundo)
HARPAGÃO (à parte)
É sanguessuga esta adela. CENA VIII
(torna a tossir sobreposse)
GUIOMAR só (voltada para a porta por onde
GUIOMAR (alto) Harpagão desapareceu)
Salve-me da tentação
em que estou (cruzes! diacho!) O diabo te leve, a asma que te abafe,
de me atirar como um cão um raio que te parta, um touro que te estafe,
de alguma trapeira abaixo! um credor que te apanhe, um fila, mas danado,
seja meu pai, seja, seja, às pernas se te aferre, esqueleto esbrugado!
que bem o pode! O chupista pantesma! fona! vil! cainho! sem vergonha!
com duas peças à vista tolo! e queres amor com essa carantonha!?
tenho fé... sume-te, coisa má! eu te enguiço! eu te enguiço,
bruxo velho, socancra, imundo! má sumiço
HARPAGÃO te leve, unhas de fome! inda querias Sintra
Pois veja, veja e lua de melado? espera lá, pelintra!
se as arranja. Estou com pressa,
que são horas do correio; CENA IX
preciso obter uma peça,
e tenho a carta inda em meio.
A mesma, JÚLIO e TOMÁS (que deitam a cabeça
para fora, o primeiro da primeira porta da
GUIOMAR esquerda, o segundo da segunda da direita)
Nunca me vi tão aflita!
TOMÁS
HARPAGÃO Sempre pescou, tiazinha?
Vá, e não tardem; a feira
diz que este ano está bonita;
e contem coa capoeira. JÚLIO
Senhora Guiomar!
GUIOMAR
Pelo amor de Deus lhe rogo, GUIOMAR (para o lado de Tomás)
meu senhor... Que é lá?
(voltando-se para o lado de Júlio)
Quem me chama?
HARPAGÃO
Faça de conta
que em voltando é logo logo JÚLIO (estendendo para ela o braço, com uma
a nossa merenda pronta. peça de ouro, e entregando-lhe após a peça três
cartas umas atrás das outras)
Hoje é que eu tinha
GUIOMAR (simulando a maior aflição) mais pressa. Esta carta já;
Mal sabe... e mais esta; e também esta.
Não quero senão Mariana;
HARPAGÃO dou baixa às mais.
Adeus! regalório!
GUIOMAR nas ordens que lhes vou dar:
Não se engana? quer-se tudo em seu lugar;
e o bródio o mais bem servido.
JÚLIO (para Claudina)
Servir a doidas que presta? Começo por ti, Claudina;
digo à vadiice adeus. bem; já vens coa arma pronta;
deixo o asseio à tua conta;
TOMÁS varre, casqueia, examina
Mas então pescou, pescou? não fique algum cortinado
das aranhas. A limpeza
Deus a amou, diz o ditado
GUIOMAR (quando não entra em despesa).
Pesquei um diabo; estou Toda a mobília esfregada,
mais perra que dez judeus. mas com amor (está visto);
fica a teu cargo além disto
TOMÁS a mesa bem preparada.
Não pescou. Louça, talheres, garrafas,
tudo a ponto; e já to digo:
GUIOMAR (batendo com as cartas na mão com a se houver quebras coas moafas,
maior intimativa) depois te hás-de haver comigo:
Arrebentada desconto-to nas soldadas,
acabe Guiomar dos Anjos, mais duro que ossos; verás.
se o rei dos velhos macanjos
ma não pagar bem pagada. SEBASTIÃO (à parte)
Lá disso é ele capaz;
HARPAGÃO (chamando apressadamente da e até de multas dobradas.
banda do quintal, mas ainda sem ser visto)
Ó Guiomar! Guiomar! HARPAGÃO
Andar já, Claudina; à vida.
JÚLIO (Sai Claudina pela segunda porta da direita)
Ai!
CENA II
TOMÁS
Fujo. Os precedentes menos CLAUDINA
(Desaparecem os dois, ao mesmo tempo que já se
avista Harpagão à porta do fundo) HARPAGÃO
Mealhada, Sebastião,
GUIOMAR vocês os dois ficarão
Lá me torna o centopéia. co encargo da bebida.
(Sai arrebatadamente pela primeira porta da direita,
fazendo traquinar rijo as campainhas. Quando se MEALHADA
acha já da banda de fora exclama) De bebermos?
Renego do porco sujo!
HARPAGÃO
HARPAGÃO (tornando a abrir a mesma porta) Faz-se tolo!
Venham breve. E não é ceia. De dar de beber à gente;
porém com modo prudente,
que não se turve o miolo.
ATO TERCEIRO Muitos criados de mesa
têm a maldita mania
CENA I de andar numa roda acesa
perseguindo a companhia.
Mal um pobre convidado
HARPAGÃO, JÚLIO, LUÍSA, DUARTE,
vazou o seu copo, bumba!
CLAUDINA, de vassoura de pau ao ombro;
é logo outro cheio; a tumba
SEBASTIÃO e MEALHADA
que lhe agradeça o cuidado.
Cá em casa é que eu não quero
HARPAGÃO desgraças dessas; se alguém
Vamos lá, muito sentido pedir de beber, mui bem;
dêem-lhe; inda assim não tolero Os mesmos menos MEALHADA
que seja logo à primeira;
a primeira muita vez HARPAGÃO
é engano do freguês; Tu, Luísa, olhinho atento,
esperem pela terceira. do princípio ao fim da festa,
E água bastante no vinho, fazendo de cor assento
que a água é que não faz mal; do que resta ou que não resta;
o homem e o irracional muitas vezes cos sobejos
só os dif’rença o juizinho. mantém-se uma casa dias.

MEALHADA LUÍSA
Tiramos o balandrau? Tenho pejo...

HARPAGÃO HARPAGÃO
Pois então? isso é decente? Olha que pejos!
mas basta em chegando gente; de fazer economias!!
por hora assim não está mau; Há coisa que melhor fique,
fato bom quer-se poupado. e mais proveitosa seja
a quem casar se deseja?
SEBASTIÃO
Lembro a vossa senhoria LUÍSA
que o meu casaco outro dia Mas...
ficou aqui todo untado
cuma larada de azeite HARPAGÃO
daquele candeeiro roto. Já disse, e não replique.
(indicando o candeeiro pendente ao meio da sala) E agora vá-se arranjar,
que tem logo uma visita;
HARPAGÃO vem aí a Marianita
Que esperdício! que maroto! com a senhora Guiomar,
não sei disso; lá se ajeite. para irem todas três
à feira.
MEALHADA
Vossa senhoria sabe LUÍSA
como eu tenho as calças novas. Pois sim, meu pai.

HARPAGÃO HARPAGÃO
É do muito que as escovas. Sempre é tua mãe, bem vês;
deves comprazer-lhe. Vai.
MEALHADA (continuando)
Rotas atrás, que lhe cabe LUÍSA (à parte, sorrindo furtivamente para Júlio
este meu punho fechado. e Duarte, e já a caminho para sair pela segunda
porta da esquerda)
HARPAGÃO A mãe da idade da filha!
Não sei; deita-lhe uma rede, pois hei-de a amar eu também,
ou serve sempre virado (o mano Júlio é quem brilha
de costas contra a parede. quando eu falar coa tal mãe).
(Faz o mesmo que lhe recomenda para ensinar com (Sai pela segunda porta da esquerda)
o seu exemplo)
Já se não vê. (Para Sebastião) E tu lá! CENA IV
a nódoa pode ocultar-se
co chapéu; traz-se ao disfarce; Os mesmos menos LUÍSA
assim.
(exemplifica-lhe comicamente o preceito)
Muda-te-me já. HARPAGÃO
(Sai Mealhada pela segunda porta da direita) Júlio, olhe cá você: enfim, sou pai, e esqueço
o agravo e a ingratidão do seu furioso excesso;
mas noutra não me caia; intimo-lhe se porte,
CENA III coa dama em quem seu pai respeita uma consorte,
cortês, obsequioso, amável, cavalheiro;
nem sombra de má cara. É pobre de dinheiro, não pode ser. Um dos dois
bem vejo; mas no mais, em tudo mais, não acho há-de, apesar do conjunto,
quem lhe deite água às mãos; e tem juízo macho. ir primeiro, o outro depois;
qual o primeiro? pergunto.
JÚLIO
Eu fazer-lhe má cara! em toda a minha vida HARPAGÃO
nunca a damas a fiz; por quê? meu pai duvida? O cozinheiro.

HARPAGÃO SEBASTIÃO
Não duvido de nada; o que eu digo é que às vezes Paciência,
quando um viúvo casa, há filhos tão más reses, queira esperar um momento.
que o tomam em trambolho; e monstros de tal casta, (despe o sobretudo de cocheiro, e fica em traje de
que à sua nova mãe dão nome de madrasta. cozinheiro)

JÚLIO HARPAGÃO
Nunca lho eu chamarei. Que história é essa?

HARPAGÃO SEBASTIÃO
E ela (fia-te em mim) Apresento
nunca te há-de chamar senão seu Benjamim; mestre-cuque na audiência.
bem que em geral a anoje a muita mocidade, Fale vossa senhoria.
há-de fazer contigo uma exceção; oh! se há-de!
Para a render de todo, o ouro sobre o azul HARPAGÃO
sei eu como era. Pois, mestre Sebastião,
saberá que hoje há função
JÚLIO cá em casa.
Como?
SEBASTIÃO
HARPAGÃO Não sabia.
O andar menos taful.
HARPAGÃO
JÚLIO Dou um bródio.
Isso para depois. Agora o seu preceito
de a tratar muito bem, completamente o aceito. SEBASTIÃO
(Sai pela segunda porta da esquerda) Ceia lauta?

CENA V HARPAGÃO
Merenda, apenas merenda.
HARPAGÃO, DUARTE e SEBASTIÃO
SEBASTIÃO (à parte)
HARPAGÃO (baixo para Duarte) Já me eu admirava!
Hás-de ajudar-me, Duarte.
(alto) Vem tu cá, Sebastião; HARPAGÃO
quis para o fim reservar-te Atenda;
de propósito. risquemos bem esta pauta;
a coisa é séria.
SEBASTIÃO
O patrão SEBASTIÃO
a quem é que vai falar? E mui séria.
ao Sebastião cozinheiro,
ou ao Sebastião cocheiro? HARPAGÃO
Um bom festim; fá-lo-ás?
HARPAGÃO
Aos dois Sebastiões. SEBASTIÃO
Sou muitíssimo capaz;
SEBASTIÃO venham pintos sem miséria,
A par verá que mesa lhe eu ponho.
HARPAGÃO DUARTE
É sempre aquilo: dinheiro! Diga;
muito dinheiro! suponho desembuche.
que julga que eu sou mineiro.
Olha que grande milagre SEBASTIÃO
fazer galinhas de pintos? Não me acirre;
até eu, mestre vinagre! olhe que eu falo.

DUARTE (baixo para Harpagão) DUARTE


Atire esse mono aos quintos. Prossiga.

HARPAGÃO (baixo para Duarte) SEBASTIÃO


Quando este se me acabar, Deixe-me, homem, não embirre.
não quero mais cozinheiro.
(alto para Sebastião) HARPAGÃO
Bruto! a glória era arranjar Que tens tu que lhe dizer?
muito por pouco dinheiro.
SEBASTIÃO
SEBASTIÃO Tenho, senhor Harpagão:
Barato e bom? que na minha obrigação
não se torne a intrometer.
DUARTE Vai lá abaixo por costume
Sim senhor; gritar que se poupe o sal,
bom e barato; pois quê? tirar-me carvão do lume,
pôr tudo num badanal.
SEBASTIÃO Já estive por duas vezes
Pois faça-o sua mercê, de acha na mão, vai não vai,
se é capaz; faça favor; que se dali me não sai
tome a seu cargo a cozinha cheirava-lhe a camoeses.
que eu sem saudades lha largo. Qué-lo mais claro?

DUARTE HARPAGÃO
Se eu a tomasse a meu cargo.. E a razão
outro galo... estava da sua parte.

SEBASTIÃO SEBASTIÃO
Adeus, vizinha; Nas coisas da minha arte
temos conversado; estou não torne ele a pôr a mão.
a modo já não sei como!
desde que aí se encaixou DUARTE (à parte para Harpagão)
este tal senhor mordomo, Tudo, só porque abomino
é ele quem quer ser tudo, ver desperdícios!
e quer de tudo entender.
SEBASTIÃO
HARPAGÃO Já disse:
Cale essa boca. trate lá da mordomice,
e não se me faça fino.
SEBASTIÃO Mas vamos nós: o brekfeste
Estou mudo; como quer então que seja?
pois tinha bem que dizer!
HARPAGÃO
DUARTE Coisa barata, e que preste;
Então diga-o. propõe tu.

SEBASTIÃO SEBASTIÃO
Digo? Lembro isto; veja:
(Durante a seguinte fala de Sebastião, os três podíamos recheá-lo,
atores fazem um curioso jogo de cena, porque à e impingi-lo por perua.
proporção que o cozinheiro está de olhos no teto e
unha no dente considerando a lista das iguarias, e HARPAGÃO
por isso sem atentar nos outros dois, Duarte vai Que mais?
fazendo gestos cada vez de mais furioso, e Harpagão
cada vez de mais divertido. Duarte dá mostras de DUARTE
querer atirar-se a Sebastião, e Harpagão segura-o Pois quer mais? salada.
pelo braço a rir.)
HARPAGÃO
Primeira entrada: rabiolos, Que mais? vem Dona Mariana,
couve-flor à provençal, bem vês.
maionesa com miolos,
borrachos, frangos, e tal.
Segunda entrada: crevetes DUARTE
com molho russo; lampreia, Lembro uma chanfana
salmão à turca, e croquetes, de orelheira e feijoada;
um pastelão com grangeia; é um prato que empanzina,
uma matelota inglesa, e dispensa tudo mais;
um gigote à prussiana, em atenção à menina,
um volovam à princesa, vão lá mais esses reais.
um chocolate da Havana. Sobremesa, tangerinas
Sobremesa: sobremesas (que as há no quintal à farta);
temos nós (vai rol sucinto, são próprias para meninas,
para fugir de despesas) e não carregam a carta.
doce, passas de Corinto,
frutas, e queijo, e champanhe, HARPAGÃO
licores, café, pralinas. Fiquemos nisso; e de flores
na mesa a maior fartura;
DUARTE (à parte, para Harpagão) tantos cheiros à mistura
Mato-o? e tão variadas cores
fazem que a gente se esqueça
do comer e do beber.
HARPAGÃO (à parte, para Duarte)
Não; se o exterminas
não sei onde igual se apanhe. DUARTE
Bom doido! Senhor Harpagão, com essa
deu-me um quinau de tremer.
Chanfana, salada e galo
DUARTE bastam portanto, e é demais;
E envenenador. não se arrasam cabedais,
e brilha muito o regalo.
HARPAGÃO (como acima) Quantos hão-de ser à mesa?
Matava-me os convidados.
HARPAGÃO
DUARTE Oito ou dez.
Depois de morto o senhor,
e reduzido a guisados. DUARTE
Bem; a comida
HARPAGÃO (alto para Sebastião) que é para oito, bem servida
Tudo isso é muito bonito; chega a dez.
merece os maiores gabos.
Mas vai-te com mil diabos HARPAGÃO
co teu menu. Meu Duartito, Pois com certeza.
que propões?
SEBASTIÃO (à parte)
DUARTE Cambalhota no rifão.
Temos o galo,
que aí anda a pastar na rua;
DUARTE (para Sebastião)
Que rosna você?
SEBASTIÃO DUARTE
Eu nada. Não sei;
não me lembra, mas seria.
DUARTE
Cuida talvez, mestre empada, HARPAGÃO
que é bom comer muito? Com que o tal sábio dizia...

SEBASTIÃO DUARTE
Eu não. Tal qual o que lhe citei.

DUARTE HARPAGÃO
Nem ele há coisa pior: É viver para comer.
indigestões, estupores
(tome bem isto de cor DUARTE
para seu governo), dores, Viver para comer — não.
cólicas, apoplexias,
mau saibo, cabeça obtusa, HARPAGÃO
pesadelos, dispepsias... Enganei-me; tens razão;
é comer para viver.
SEBASTIÃO Bem; na casa do jantar,
O que ali vai! corre a musa. para impedir barrigadas,
hei-de o mandar entalhar
DUARTE (continuando) em maiúsculas d’our...adas.
Quebreira de corpo; em suma,
quanto há mau tudo origina (Harpagão ia dizendo por engano "maiúsculas
a maldita gulosina. d’ouro" e emenda a palavra no meio, e ainda a
tempo)
HARPAGÃO
Ai! sem dúvida nenhuma. DUARTE
Pelo que toca à merenda,
DUARTE tomo eu tudo a meu cuidado.
E já não falo nos gastos.
HARPAGÃO
HARPAGÃO Assim; fico descansado.
Que isso é o que não tem cura;
fica uma casa de rastos; SEBASTIÃO (à parte)
até o diz a escritura. E também eu; é fazenda.

DUARTE HARPAGÃO (para Sebastião)


Foi dito de um sábio antigo: A sege limpa.
é comer para viver,
não viver para comer. SEBASTIÃO
Aí vou já;
HARPAGÃO isso agora é co’o cocheiro.
Grande sábio era esse amigo. (Torna a vestir a libré)
Pronto; que me ordena?
SEBASTIÃO
E talvez fosse algum bruto HARPAGÃO
quando comia sozinho; Está
como os que ralham do vinho bem limpa a sege?
depois do copázio enxuto.
Lá com sentenças de sábios SEBASTIÃO
ninguém me embaça. Que pensa? E o palheiro
também.
HARPAGÃO
Quem foi que soltou dos lábios HARPAGÃO
essa divina sentença? Cale-se. Tem de ir
Talvez Salomão.
levar esta tarde à feira DUARTE
três damas. Sabe as manhas desta súcia;
de palha, de verde, e grão,
SEBASTIÃO andam sempre esfomeados;
Na capoeira? lá se entendem.
coa parelha?! está-se a rir.
Os cavalos, coitadinhos, SEBASTIÃO
não digo que estão de cama, Meu amigo,
porque a não têm; têm só lama; há criados e criados.
’stão ali ’stão cos anjinhos. Não jogue dessas comigo,
Podem lá sair!! só vê-los se tem amizade às costas.
corta os fios d’alma à gente; Já o aviso.
são dois montinhos de pêlos
que estão para ali. (Chora) DUARTE
Agradecido.
HARPAGÃO Com que então, fazes-me em postas
Doente se eu?...
a minha parelha?
SEBASTIÃO
DUARTE (à parte para Harpagão) Duvida? e eu não duvido.
Qual! Supor que eu furte aos cavalos,
quimeras! não creia. eu que já tenho chegado
a arrancar para esteiá-los
HARPAGÃO da própria boca o bocado!
E não. Não lhe estou com mais aquelas.
Eles e eu...
SEBASTIÃO
Metam-na à sege, e verão. DUARTE
Meta-a antes no hospital. Que somam três.
Fazer mal aos animais...
SEBASTIÃO (sem fazer caso da interrupção)
DUARTE parecemos (quanta vez!)
Bem se sabe. a chorar três Madanelas;
tudo coa fome! O rabão
SEBASTIÃO ontem, já quase nas vascas,
Cá por mim, fez um olhar de aflição,
tratar o próximo assim só de ouvir folhas e cascas,
repugna-me. Não digo mais nada. Agora
se querem deles dar cabo,
que o dêem; espicham o rabo;
DUARTE acabou-se; e eu vou-me embora.
Isto é demais:
se não quer ir à boleia
não faltará quem o faça. DUARTE
Ih! que desgraça tamanha!
perde-se o rei dos cocheiros;
SEBASTIÃO
Belo. Entrego-lhe a almofaça,
e lá se avenha. SEBASTIÃO
Mas fica o mestre da manha;
fica a flor dos lisonjeiros;
DUARTE o mordomo espertalhão.
Não creia,
senhor Harpagão, repito,
nestas exagerações. HARPAGÃO
Tem dois soberbos frisões, Basta; basta; nem mais pio.
e de um vigor infinito;
podem ir daqui à Rússia. SEBASTIÃO
Tantos zelos! desconfio
SEBASTIÃO (sorrindo) de tanto zelar, patrão;
Podem, se for num caixão. Deus me perdoe! tudo aquilo,
que o não faz pobre nem rico, SEBASTIÃO (à parte)
leva alguma água no bico. Este maldito!
Quer-lhe agradar e iludi-lo; se agarro o pau da boleia
o para quê não sei eu; sempre leva uma tareia...
mas que ele o tenta é de fé. (alto) Senhor Harpagão, repito
Chego-me a danar até que se lhe eu contasse tudo
de ver a baixa que deu quanto se diz do senhor,
o respeito de meu amo, danava-se.
desde a entrada deste amigo;
porque eu (sem lisonja o digo) HARPAGÃO
ao senhor venero e amo; O falador
amo e venero ao senhor, timbra-me agora de mudo;
(para si mesmo) por obséquio, desembucha,
(apesar de andar faminto) desejo tudo saber.
quase tanto como sinto
às nossas bestas amor. SEBASTIÃO
Que lhe quer? são simpatias; Quer? (à parte) Eu vou ver uma bruxa.
birrei para aqui.
HARPAGÃO
DUARTE Quero, e até me dás prazer.
Bem sei.
SEBASTIÃO
SEBASTIÃO Já que o deseja, e me obriga,
Não uso lisonjarias: e promete não zangar-se,
mas lá que birrei, birrei. aí vai tudo sem disfarce.
Tanto, que ouvindo a insolência
com que falam desta casa,
até perco a paciência. HARPAGÃO
Era já tempo.
HARPAGÃO
Pois que dizem? DUARTE
Vá, diga.
SEBASTIÃO
Põem-no à rasa. SEBASTIÃO
Pois bem: para toda a gente,
mesmo em casas mui capazes,
HARPAGÃO meu amo é continuamente
Faze favor de explicar-te; a tourinha dos rapazes.
que têm que dizer de mim? Todos nós, os seus criados,
Não ouves isto, Duarte? andamos até corridos
cos ditos desaforados
DUARTE que vêm aos nossos ouvidos.
Deixe falar. — É tal pinga — dizem uns
que em atenção à cozinha,
HARFAGÃO acrescentou na folhinha
Mas enfim... as têmporas e os jejuns.
que é que dizem? quero, mando, Outros, que em chegando o prazo
que te expliques. de amêndoas ou pão por Deus,
arma tais pegas cos seus,
SEBASTIÃO que tudo em casa vai raso;
Para quê? por modo, que a boa usança,
para se agastar? tão digna de se observar,
o pão por Deus e o folar,
DUARTE nem passam pela lembrança.
Não vê Este afirma que uma vez,
que ainda o está inventando? por um carapau furtado,
dê-lhe tempo. foi por meu amo citado
um pobre gato maltês.
Que à missa é todo fervores,
com os olhos sempre pregados,
não nos bem-aventurados, malcriadão, atrevido,
mas só nos seus resplendores. descambado, intrometido,
Que em noites que não faz lua comilão, bêbado, roto.
o tem visto à faca sola
sozinho de rua em rua SEBASTIÃO
chorando a pedir esmola. Eu bem dizia, o patrão,
Aquel’outros, que o senhor se lhe eu dissesse a verdade,
de outra vez chegou até havia arder.
a descer, pé ante pé,
alta noite... DUARTE
(Pára, não se atrevendo a progredir) Pois não há-de
arder!
HARPAGÃO (incitando-o a ir por diante)
Onde? HARPAGÃO
Ele é que arde; eu não.
SEBASTIÃO (Sai Harpagão pela porta do fundo)
Que horror!
numa noite endiabrada CENA VI
de trovões...
(reparando na cara de riso de Duarte)
Aquele ri-se? DUARTE e SEBASTIÃO
desceu à cavalharice,
descalço, a empalmar cevada DUARTE (rindo)
da ração posta aos brutinhos, Que tal, Sebastião, se o corpo te comia,
que estavam entusiasmados agora há-de estar bom; mesmo ótimo!
a regalar os focinhos
com quatro grãos avariados. SEBASTIÃO
Por sinal, que foi sentido Não ria,
pelo moço da boleia, pássaro arribadiço, espertalhão, tratante,
que levou duma correia, enredador; não ria, ou neste mesmo instante
e o zurziu mui bem zurzido; vamos ver se uma tunda em paga das tratadas
tudo calado e sem luz; também lhe desafia as mesmas gargalhadas.
sem se ouvir entre os estalos,
senão rinchar os cavalos, DUARTE (sempre em tom de gracejo e ironia)
e o senhor nem chus nem bus. Não vai a arrenegar, mestre Sebastião;
Para um bom servo é custoso sossegue, por quem é.
ouvir uns contos assim;
e os nomezinhos enfim
SEBASTIÃO (à parte)
que lhe têm posto! eu nem ouso!...
Já tem medo o pimpão!
Então posso galrar-lhe, e até (sei lá) sová-lo.
HARPAGÃO (alto) Você ri, e eu não rio; o seu grimpar de galo
Dize. para cá vem barrado; e acabe-me cos brincos,
se não quer que lhe troque os brincos em chorincos.
SEBASTIÃO
Chamam-lhe o sovina, (Sebastião arregaçando as mangas vai crescendo
o esfomeado, o lazarento, para Duarte, e faz com que este, sem desmentir o
o socancra, o alma-mofina, tom e cara de brincadeira vá recuando diante dele
o unhas-de-fome, o avarento, até ao fundo da sala)
o sem-barriga, o mesquinho,
o mísero, o lambe-pratos,
DUARTE
o perro que cita os gatos,
Devagar; devagar.
o porco, o fona, o cainho.
SEBASTIÃO
HARPAGÃO
Qual devagar! não quero.
Sim? pois a esses senhores
levarás da minha parte,
em paga desses favores, DUARTE
o que eu agora vou dar-te. (Soqueia-o) Tem mão.
Biltre, patife, maroto,
SEBASTIÃO DUARTE
Tenho até mãos. O que eu te recomendo,
é que não tornes mais comigo...
DUARTE
Espera. SEBASTIÃO
Entendo, entendo.
SEBASTIÃO
Não espero. DUARTE
Torne a rir se é capaz. Faltares-me ao respeito! ameaçar-me! canalha!
vá lá ser ferrabrás entre os da sua igualha.
DUARTE (Sai pela segunda porta da direita)
Senhor Sebastião!
CENA VII
SEBASTIÃO
Não há cá nem senhor, nem Sebastião; e então SEBASTIÃO, D. MARIANA e GUIOMAR (as
para o velhaco mor!... Ai quem me dera aqui quais vêm da primeira porta da direita)
um bom cacete!!
GUIOMAR
DUARTE (mudando para tom sério, ameaçador, Saber-nos-á dizer, mestre Sebastião,
e decidido, e fazendo recuar deveras Sebastião até se está cá o seu amo, o senhor Harpagão?
ao proscênio)
O que, maroto? espera aí SEBASTIÃO
que eu te ensino. Há pouco inda cá ’stava; e por sinal bem forte.
Há de andar no quintal a vigiar o corte
SEBASTIÃO da ramaria seca, a fim que o podador
Dispenso. não sise alguma lenha.

DUARTE GUIOMAR
Olha que se até’gora Então faça favor
me divertiu o ouvir-te e o ver-te de ti fora, de lhe ir dizer, que tem aqui à sua espera
já pus ponto na farsa; e racho-te a caveira. Guiomar, e a tal senhora.
Lembra-te de quem és, vasculho de cocheira,
rodilhão de cozinha. Eu se te ponho os pés, SEBASTIÃO
esmago-te. Ele já vem.

SEBASTIÃO GUIOMAR (à parte)


Bem sei. Pudera.
(Sebastião sai pela porta do fundo)
DUARTE
Um bruto é que tu és. CENA VIII

SEBASTIÃO D. MARIANA e GUIOMAR


Sou, sou!
D. MARIANA
DUARTE Não sei que tenho, Guiomar;
Um malcriado, um tolo. sinto-me tão agitada!...
temo...
SEBASTIÃO
Isso é verdade. GUIOMAR
O quê? não tema nada.
DUARTE
Por isso te não mato. D. MARIANA
Tremo de vê-lo chegar.
SEBASTIÃO Imagina uma pessoa
É generosidade! que está sentenciada à morte,
e muito agradecido. quando a hora fatal soa,
e entra o algoz: por mais forte
que busque ostentar-se, o lance liberdade; pode então,
não é para sucumbir, solta do que está na cova,
Guiomar? co valor do caldeirão
comprar a caldeira nova.
GUIOMAR
Decerto que o trance D. MARIANA
não é muito para rir; É triste coisa a ventura
não é; mas que paridade que há-de custar uma vida.
têm um casamento e a morte?
Sei que era outro o consorte GUIOMAR
da sua escolha e vontade; Todos morrem; desventura
preferia o mocetão é caduquez mui comprida.
de quem sempre anda a falar-me. Digo até que o seu dever,
para ser bom e cortês,
D. MARIANA era obrigar-se a morrer
Tu mesma havias de dar-me, dentro em dois meses ou três;
se o visses, toda a razão. e isso expresso no contrato.
Dois meses há, pouco mais, Ri? tem razão, que era arranjo;
nos visita dia a dia. mas diga-me cá, meu anjo
Ante os olhos maternais se o seu rapaz lhe é tão grato,
nasceu esta simpatia. o velho tão repugnante
Nele e em mim foi gradualmente e a mãezinha tão amiga,
florindo em perfeito amor; não percebo quem na obriga
amor puro e amor fervente, a ser deste sacripante;
luz celeste e ameno ardor. não é o amor, nem sou eu;
Minha mãe ao contemplá-lo o que é pois?
nos bendizia em segredo;
éramos duas a amá-lo; D. MARIANA
mas foi sonho, acabou cedo. O meu dever.
Minha mãe quase a morrer,
GUIOMAR sem mais abrigo que o meu!
E soube quem ele fosse? tudo quanto em casa havia,
vendido já; que me resta
D. MARIANA em situação tão funesta?
Não sei; sei que tem um ar imolar-me. Pois devia
tão grave, tão bom, tão doce, ver morrer ao desamparo
que obriga por força a amar; quem me dera tudo e a vida?
e que obtê-lo por marido jamais; estou decidida;
me fora a maior mercê. vou salvá-la; aceito o avaro.

GUIOMAR. CENA IX
Se ele tivesse com que,
pode ser; assim... duvido. As mesmas e HARPAGÃO (que vem da porta do
Conheço mil puxadinhos, fundo)
dos que mais floreiam; têm
por fora brilho e carinhos; GUIOMAR (em voz baixa para D. Mariana)
por dentro, nem um vintém. Chitom, que lá vem ele.
Então digo eu que a menina,
que não é nenhuma louca, D. MARIANA (em voz baixa para Guiomar)
deve antepor esta mina Oh! que figura!
a fazer cruzes na boca.
Eu bem sei que a mocidade
não se dá bem coa velhice; HARPAGÃO (para D. Mariana)
e que há-de ter, ora se há-de! Às plantas
muita maré de perrice. de vossa senhoria, altar de graças tantas.
Mas adeus! consorte idoso Não há-de reparar nos óculos; é certo
não é marido de dura; que a sua formosura é clara ao longe e ao perto,
morto ele, nasce a ventura; nem adquire mais graus com óculo de aumento;
vem-lhe riqueza, repouso, mas os astros também são sóis do firmamento,
e a sábia astronomia os óculos lhe assesta. Acha a morgada
Digo e sustento pois, que estrela igual a esta talvez bastante espigada?
não há no céu; nem mesmo a estrela luzidia,
chamada Vênus, chega a vossa senhoria. D. MARIANA
(Depois de estar por alguns minutos à espera de Acho-a um palmito de rosas;
resposta, em voz baixa para Guiomar) galantíssima.
Então ela não fala?
HARPAGÃO
GUIOMAR (em voz baixa) Favores!
Ai! fala o que é preciso, é dos olhos com que a vê.
mas como tem de seu muitíssimo juízo,
entende que o falar, não sendo necessário, D. MARIANA (baixo para Guiomar)
é despender sustância em ato perdulário. Que tosco é sua mercê!
De mais (e penso que este é o principal motivo)
bem vê que uma donzela é um ente muito esquivo,
e a qualquer expressão que cheire a requestá-la, HARPAGÃO (para Guiomar, baixo)
assusta-se, estremece, e perde logo a fala; Que te disse os meus amores?
depois aquilo passa.
GUIOMAR (baixo para Harpagão)
HARPAGÃO (em voz baixa) Que o acha admirável.
É verdade.
(em voz alia para D. Mariana) HARPAGÃO (baixo para Guiomar)
Aí vem Acha?
minha filha Luísa abraçar sua mãe. (alto para D. Mariana)
Muito obrigado, lindinha.
CENA X (à parte) E é magnífica de facha.
Quem viu sorte igual à minha?
(alto) Juro-lho, anjinho inocente;
Os precedentes e D. LUÍSA (que sai da segunda se me caíssem do céu
porta da esquerda) vinte peças no chapéu,
não ficava mais contente.
D. MARIANA (caminhando com ar prazenteiro
para D. Luísa) D. MARIANA (em voz baixa para Guiomar)
Senhora D. Luísa! Nem o posso ouvir.

D. LUÍSA (idem) GUIOMAR (em voz baixa para D. Mariana)


Minha senhora! Sossego.

D. MARIANA D. MARIANA (como acima)


Este dia... E dizer que este panal
tem entrada e exerce emprego,
D. LUÍSA Deus meu! na casa real!
Os meus votos realiza.
CENA XI
D. MARIANA
Inunda-me de alegria! Os mesmos, JÚLIO e DUARTE (que vêm da
Eu devia, e desejava segunda porta da direita)
ter vindo há muito.
HARPAGÃO
D. LUÍSA Ora aí vem o meu Júlio, o meu filho, também
O dever beijar humilde a mão da sua nova mãe.
da minha parte é que estava.
D. MARIANA (à parte para Guiomar)
HARPAGÃO (à parte) Guiomar, que raro encontro! o homem que a todo o
Chegaram-se enfim a ver; instante
e ambas se mostram gozosas; tu me ouvias louvar, é este, é o meu amante.
ainda bem!
(para D. Mariana)
GUIOMAR (à parte para D, Mariana) Creia que não sou eu (posso jurar-lho) a autora
Coisas que arma a fortuna! da nossa situação.

HARPAGÃO JÚLIO
Acho-as a modo estranhas Não?
de lhes eu presentar crianças já tamanhas!
Isto da filharada alembra-me o escalracho; D. MARIANA
crescem que tem demônio! embora! pouco empacho Não.
nos hão-de já fazer; saberá que tenciono
pôr já este com dona, e Luísa com dono. JÚLIO
Pois quem, senhora?
JÚLIO
Minha senhora, é este um acontecimento, D. MARIANA
que inda me custa a crer! ser tal do pai o intento Uma estrela, um destino, um fado, uma potência
sabíamos nós já por lho termos ouvido; que a todos nos arrasta, e ri da resistência.
mas duvidava então, e agora inda duvido. Se eu, sabendo a aversão que tinha a este enlace
Não compreendo bem... o pudesse evitar, não crê que lho evitasse?
Supõe que por meu gosto eu punha os pés num trilho
D. MARIANA que levava a um abismo? ódio entre um pai e um
Nem eu por ora; a sorte filho?
é quem dispõe da gente.
HARPAGÃO (a D. Mariana)
JÚLIO Muito bem! muito bem! (a Júlio) Apanha, traste,
Oh! que feliz consorte apanha.
que não vai ser meu pai! confesso que a alegria (a D. Mariana)
que lhe enche o coração me encanta, me inebria! Não se esteja a agastar. Inda que foi tamanha
Contudo (serei franco) um não sei quê me afasta a audácia cá do meco, há-de perdoar-lhe o excesso;
de lhe dar parabéns por ser minha madrasta; por seu bom coração, por nosso amor, lho peço.
é esse um parentesco... um título... (não sei....)
desagradável, feio, e nunca lho darei. D. MARIANA
Ser madrasta é ser velha; é ter de mais dez anos; Eu perdoar-lhe o quê? reputa-me ofendida
é passar de rainha à lista dos tiranos; porque me falou claro? estou-lhe agradecida.
é ter na alma rabuge, e ali... Em vez de me enganar e vir com fingimentos,
(apontando-lhe para o coração) quis que eu soubesse bem quais são seus
coisa nenhuma; sentimentos.
é... é... o ser madrasta é ser madrasta em suma.
Alguém dirá talvez, que este falar, que exprime
o que eu sinto aqui dentro, é duro, é torpe, é crime; HARPAGÃO
mas se o seu coração me absolve, isso me basta; Desculpa-o!! que bondade!! aquela rebeldia,
e absolve-me; por ora, inda não é madrasta. meu tudo, tenha fé que há-de passar-lhe um dia.
Finalmente, senhora, este consórcio fere
int’resses meus, bem sabe; e meu pai que tolere JÚLIO
o que lhe vou dizer. Um casamento assim Quem? eu? mudar! jamais.
nunca se realizará, a depender de mim. (para D. Mariana)
No que hoje est’alma sente,
HARPAGÃO juro que hei-de morrer, senhora, impenitente.
Que belos parabéns! que alarve! é à cara dela
atirar tudo aquilo assim sem mais aquela! HARPAGÃO
(para D. Mariana) Tem diabo no corpo: em vez de entrar em si,
Vá, responda-lhe, vá; confunda-me esta fera. acirra-se, e refina.

D. MARIANA JÚLIO
Se o senhor Júlio é franco, eu sou também sincera; Eu sinto o que senti,
bem dizem que não há corações enganados. e hei-de senti-lo sempre.
O que sente, e o que eu sinto é o mesmo; os
desagrados HARPAGÃO
que acha em lhe eu ser madrasta, encontro-os eu tais Ateimas? não consinto
quais nem mais uma palavra.
em chamar-lhe enteado; e talvez que inda mais.
JÚLIO HARPAGÃO
Enfim, como o que eu sinto Estas damas à feira; e tu, a pé.
me não é dado expor, vou-lhe falar, senhora,
de um modo em tudo avesso, e tal, como se eu fora SEBASTIÃO
no lugar de meu pai. Tomo esta penitência Não monto?!
para me castigar da pouca obediência.
HARPAGÃO
HARPAGÃO Não monta não senhor; leve à rédea os cavalos;
Ora graças a Deus! (à parte) Estimo que o tratante Lembre-lhe o que me disse; escusa-me estafá-los.
lhe expresse o que eu não sei, pois nunca fui amante. (Sai Sebastião pela segunda porta da direita)
Para tal nunca eu tive inclinação nem ócio;
ou bem namorações, ou bem fazer negócio. HARPAGÃO (para D. Mariana)
Peço-lhe mil perdões, noivinha idolatrada,
JÚLIO de a deixar ir assim sem ter comido nada;
Pois, senhora, é verdade: objeto mais perfeito quem anda, como eu, ébrio...
nunca o vi neste mundo! o empenho deste peito
seria o merecê-la; e o ser o seu esposo D. MARIANA
me era mais que empunhar o cetro mais fastoso. Ébrio!?

HARPAGÃO (baixo para Júlio) HARPAGÃO


Devagar, meu senhor; mais devagar. Sim; de ventura;
não pensa em merendar; mantém-se de ternura.
JÚLIO (baixo para Harpagão)
Estou JÚLIO
a falar por meu pai; acha que exorbitou Pensei eu por meu pai; mandei buscar ao Mata,
acaso o meu dizer do que em sua alma sente? cum bilhete em seu nome, uns cem pastéis de nata.
outros tantos de fruta, um bom peru trufado,
HARPAGÃO doces finos, Madeira, et caet’ra.
Eu também tenho língua, estou aqui presente,
e não o nomeei por meu procurador. HARPAGÃO (baixo para Júlio)
Venham cadeiras. Oh! desalmado!

JÚLIO JÚLIO
Bem; calo-me. Acha pouco? a senhora há-de ser indulgente
de certo; um copo de água armado de repente.
HARPAGÃO
Sim senhor. D. MARIANA
(gritando para dentro) Nem tanto era preciso.
Cadeiras.
JÚLIO
GUIOMAR Está, minha senhora,
O melhor entendo que seria reparando, cuido eu, na jóia encantadora
irmos já para a feira; está tão belo o dia! que meu pai tem no dedo?
quem vai cedo vem cedo; e então conversaremos.
D. MARIANA
HARPAGÃO (chamando para a segunda porta É verdade; que brilho!
da direita)
Sebastião! Sebastião!
JÚLIO
Pois visto mais ao pé?!
SEBASTIÃO (entrando) (Tira de repente o anel do dedo a Harpagão)
Cá estou, patrão; que temos? Perdão, meu pai.

HARPAGÃO HARPAGÃO (muito assustado e à parte)


Os cavalos à sege. Meu filho!

SEBASTIÃO (à parte) D. MARIANA (pegando no anel, e observando-o


Aluguei outros. (alto) Pronto. com mais individuação)
Nunca vi outro assim! Aquilo é que é diamante! D. MARIANA
que fogo! bem lhe quadra o nome de brilhante. Em outra ocasião
É lindo; e de um valor!... restituirei o anel ao senhor Harpagão.
Fico depositária.
JÚLIO
De pouco mais de um conto; HARPAGÃO (para D. Mariana, alegrando-se-lhe
mas a meu pai ficou-lhe aí, por um desconto, o rosto, mas em voz baixa)
nuns trezentos mil réis; não foi, meu pai? Oh! coração preclaro!

HARPAGÃO (à parte) JÚLIO


Trezentos Caro pai!
que te levem a ti, judeu. (alto) Mais de quinhentos
me custou ele. HARPAGÃO (olhando-o de revés)
Sim senhor, de um filho muito caro.
JÚLIO (opondo-se a que D. Mariana restitua o
anel a Harpagão) CENA XII
O quê, senhora? isso é brinquedo,
mas ofende a meu pai; não tire o anel do dedo. Os mesmos e SEBASTIÃO (que aparece à
São dignos um do outro, e iguais em formosura; segunda porta da direita)
não rejeite essa prenda emblema de ternura.
SEBASTIÃO
HARPAGÃO (baixo para Júlio) Um homem que procura ao senhor Harpagão.
Tu que fazes, maroto?
HARPAGÃO
JÚLIO Agora a ninguém falo; escolha outra monção,
Ande, meu pai; bem vê e volte, se quiser, daqui a meia hora.
que a senhora inda hesita; implore por mercê
se digne de aceitar-lhe aquela bagatela,
que, se algum valor tem, é só no dedo dela. SEBASTIÃO
Diz que lhe traz dinheiro, e quer falar-lhe agora.
(Sai)
D. MARIANA
Mas...
HARPAGÃO (para D. Mariana)
Com licença; eu já venho.
JÚLIO
Não há mas; meu pai, co seu acanhamento,
não ousa... (Vai correndo para a segunda porta da direita por
onde Sebastião saiu; mas ao chegar a ela,
Sebastião, que torna correndo, esbarra nele e vira-o
HARPAGÃO (baixo para Júlio) de pernas ao ar)
Ah! cão!
SEBASTIÃO
JÚLIO Ai Jesus! que o matei!
Mas eu, que à própria o represento, Matei-o sem querer!
e que entendo os sinais que a furto me tem feito,
em seu nome lhe rogo aceite a prenda.
HARPAGÃO (no chão)
Socorro! aqui del-rei!
D. MARIANA
Aceito,
e agradeço. (Júlio e Duarte lançam-lhe as mãos para o
levantar, enquanto as senhoras aproximando-se
representam susto e cuidado)
GUIOMAR
Era tempo. Os mimos de um marido
não se recusam nunca, e é ele o agradecido. JÚLIO
Que tem?
HARPAGÃO (à parte)
Pois não é! forte corja! DUARTE
O que lhe dói?
HARPAGÃO sou o seu delegado. Aqui faz calma horrenda!
Ai! O arvoredo é mais fresco, (chama) Olá!
(À Mealhada, que assoma à segunda porta da
SEBASTIÃO direita)
Fiz-lhe prejuízo? Venha a merenda;
quebrou? para a mesa de pedra à sombra das nogueiras.
Eu conduzo a senhora, e levem-nos cadeiras.
HARPAGÃO
Isto hoje aqui é o dia de juízo! (Desaparece Mealhada pela porta da direita.
quebrei, sim. Júlio oferece o braço a D. Mariana, e saem pela
porta do fundo seguidos de D. Luísa e Guiomar.)
DUARTE
O espinhaço? CENA XIII

HARPAGÃO HARPAGÃO e DUARTE


O vidro do relógio,
que o senti estalar. Todo o martirológio! HARPAGÃO
venha mais! (indicando Sebastião) Meu precioso Duarte,
Este monstro... aposto... (ai! ai! que dores!) já que em ti vejo outro eu,
que se deixou peitar de alguns meus devedores e meu filho é um fariseu,
para me destruir. vela-os tu da minha parte.
Um não sei quê me anuncia
JÚLIO (oferecendo-lhe um copo d’água) que este amor corre perigo.
Ficou muito pisado?
DUARTE
HARPAGÃO Nenhum; sou eu que lho digo.
Vejam se o fato ali me não ficou rasgado.
HARPAGÃO
DUARTE (fingindo examinar) E eu só te digo: vigia.
Não lhe fez mal; não fez. Vamos também para a mesa;
e olho vivo meu Duartinho.
HARPAGÃO Sobrando pastéis ou vinho,
Estimo, agradecido. guarda tudo.

GUIOMAR DUARTE
Coitadinho, há-de estar com o lombo bem moído. Ah! com certeza.

HARPAGÃO HARPAGÃO
Oh se estou! (para Sebastião) Os restos não babujados
Tu, ladrão, que estás a remirar-me? deve o Mata e o confeiteiro
achas que inda foi pouco? tomá-los como dinheiro.

SEBASTIÃO DUARTE
Eu? queira perdoar-me; Perca daí os cuidados.
se lhe dei o boléu foi por casualidade; (Vão a caminhar para o fundo, quando se ouve do
vinha desenfreado, e à bruta; isso é verdade, quintal cantar o mesmo rouxinol do fim do primeiro
mas havia razão: desferrou-se um cavalo; ato)
e a sege assim, bem vê...
DUARTE
HARPAGÃO O rouxinol no pomar!
Vá mais! corre a ferrá-lo; que música tão suave!
o ferrador é perto, e sume-te, tratante.
HARPAGÃO
JÚLIO Não sei se é bem esta a ave
Enquanto vai e vêm, há o tempo bastante que hoje me deve cantar.
para se merendar. Eu, se meu pai consente,
faço as honras da casa à dama aqui presente;
ATO QUARTO D. LUÍSA
E tu o teu também.
CENA I
GUIOMAR
JÚLIO, D. MARIANA, D. LUÍSA, GUIOMAR São dignos um do outro: é um raminho feito
de um cravo, uma rosinha, e muito amor-perfeito.
JÚLIO
Bom! Nesta sala agora há toda a segurança; D. LUÍSA
ninguém nos ouve; viva a quádrupla aliança! O pior, Mariana, é que ao vosso desejo
A alma do negócio é a diplomacia. há tantas objeções, tais penas vos prevejo,
que chego a esmorecer.
GUIOMAR
Quem preside? JÚLIO
Tem fé!
JÚLIO
Sou eu. Luísa, principia! D. MARIANA
Nesse cuidado
D. LUÍSA (para D. Mariana) de me veres ditosa, e Júlio afortunado,
Pois sim, minha senhora. O amor de meu irmão nesse mesmo temer, em suma, se divisa
já mo ele tinha dito. o que eu mais ambiciono: o afeto de Luísa.
Ser chorada por ti, aliviar-me-ia as dores,
se o destino afinal calcasse estes amores.
JÚLIO (interrompendo em tom de presidente) (D. Mariana beija enternecidamente a D. Luísa, que
À ordem! lhe corresponde do mesmo modo)

D. LUÍSA GUIOMAR
Minto? Foi mau, foi, muito mau, o não me terem posto
em pratos limpos tudo a tempo. Este desgosto
JÚLIO podia-se evitar. As arcas encouradas,
Não, sem causa, muita vez dão destas trapalhadas.
nem és capaz de tal. O que eu digo é que fora Se me tivessem dito — ele que a amava a ela
melhor chamar-lhe irmã do que minha senhora; — e ela quanto era dele — eu tinha mais cautela,
e entre irmãs dá-se tu. e não levava ao ponto em que hoje as coisas são,
este casório insulso, esta abominação.
LUÍSA (para D. Mariana) Enfim quem mal não usa... (finge que chora)
Consente?
JÚLIO
D. MARIANA Escusas de chorar:
Se consinto?! a culpa é do meu fado, e não de ti, Guiomar!
e em já chamar-te irmã, que júbilo que eu sinto! (para D. Mariana)
Mariana, que decide? o tudo é o seu querer.
D. LUÍSA
Como eu te ia dizendo, o mano já me havia D. MARIANA
contado o vosso amor. Eu que posso? eu que sei? como? que hei-de eu
fazer?
D. MARIANA (para Júlio) Digam-mo, e pronta o cumpro. Em tudo dependente,
Já? de meu só tenho a prece, a muda prece ardente.

JÚLIO JÚLIO
Já. A prece, e nada mais? mais nada em meu favor
posso achar em Mariana? oh fino, oh raro amor!
Nem fé, nem compaixão, nem força, ao que parece,
D. LUÍSA
cabem já nesse peito? unicamente a prece!
Tive alegria
em ver que ele empregava o seu amor tão bem.
D. MARIANA
Ponha-se em meu lugar! Ensine-me; conduza
D. MARIANA
uma fraca mulher em selva tão confusa!
E eu o meu, não, Luísa?
Tem juízo; tem honra; e sei que é nosso amigo; JÚLIO
seja o meu conselheiro; o seu conselho sigo. Discorre! idéia! inventa,
e propõe tu!
JÚLIO
Segue-o, se for conforme em tudo ao que essa gente D. MARIANA
costuma chamar honra, e sendo estritamente Guiomar!
conforme coa decência, ou co que assim se alcunha.
Muito confia em mim! bem haja! não supunha. D. LUÍSA
Minha Guiomar!
D. MARIANA
Enfim, que hei-de eu fazer? Bem vê que há mil D. MARIANA
respeitos Assenta
que o mundo nos impôs, e nos tornou preceitos: no que se há-de fazer: eu só em ti confio,
que donzela jamais impune os quebraria? pois tens experiência, e estás a sangue-frio.
E depois minha mãe, o meu exemplo e guia,
a minha companheira... a minha mãe! não devo JÚLIO
imolar-me por ela? Ah! Júlio! Eu nem me atrevo, Desata o nó que deste!
quando a vejo num leito, e em véspera talvez
de a perder para sempre, ajuntar-lhe à viuvez
a falta de uma filha, a fome, o desamparo. D. LUÍSA
Sacrifico-me; perco o ente que me é mais caro, E Deus há-de pagar-to!
e uno-me ao que detesto. É duplicado inferno,
mas não vejo refúgio. Ao seu coração terno D. MARIANA
incumbo o procurar-mo; até, se for preciso E eu, podendo, também.
contar-se tudo à mãe, a tanto o autorizo.
Pode dar-lhe a saber que o doce e puro afeto JÚLIO
que a namorava em nós, era um vulcão secreto; Venha o ditoso parto;
que eu morria por Júlio. E se é conveniente e verás, se põe fim ao nosso horrendo apuro,
que eu vá também, eu mesma, expor-lhe que como eu hei-de florir, Guiomar, o teu futuro!
impiamente
até hoje a enganei calando-lhe a verdade, GUIOMAR
e encobrindo a paixão com o manto da amizade, Realmente é custoso.
embora que me custe, embora que me exponha (Depois de estar pensando por algum tempo)
à censura de ingrata, humilho-me à vergonha. A mãe desta senhora
Fá-lo-ei, fá-lo-ei, fá-lo-ei: não fujo ao sacrifício. (indicando D. Mariana)
Crê possível que, ao ver-me em tão cruel suplício, é pessoa de tino (entendo eu cá); não fora
ela se não condoa? Um coração materno impossível talvez resolvê-la a entregar
perdoa sempre e tudo. Ela... Júlio... eu... que terno! ao filho em vez do pai, a nossa flor. Que par!
Nessa hora de perdão, hora inefável, santa, que parzinho bendito! (para Júlio) O mau, meu
hora em que Deus se alegra, e o anjo mau se espanta, cavalheiro,
sentiremos em nós alguma inspiração, é seu pai ser seu pai.
alguma luz do céu, que dentre a cerração
nos descubra um caminho.
JÚLIO
Que faz isso?
JÚLIO
Algum milagre?!
GUIOMAR
Em primeiro,
D. MARIANA era preciso impô-lo e não lhe dar motivo
Embora: para se ele ofender: é seco, é vingativo,
o amor tem feito mil, faça mais este agora! egoísta, e inda por cima...

JÚLIO JÚLIO
Guiomar, minha Guiomar, queres valer-nos? Explica-te!

GUIOMAR GUIOMAR
Eu Avarento.
se lhes quero valer? pois que outro empenho o meu? Portanto, se ele vê falhar-lhe o casamento
sempre fui serviçal. assim sem mais nem mais, assanha-se por força,
e então não haverá poder algum que o torça
a dar consentimento ao novo matrimônio: D. MARIANA
fecha inda mais a burra, e nem que Santo Antônio Não.
desça dos céus à terra (e mais nem a Guiomar Fala tu, fala tu, que és muito experiente,
excede ao bom do santo em coisas de casar), e nisto hás-de saber mais que esta pobre gente.
não; nem ele, que é ele, é capaz de amansá-lo,
nem que traga consigo o próprio S. Gonçalo. GUIOMAR (a D. Mariana)
Quem desmama um menino, o que é que põe no
D. LUÍSA peito?
Porém...
D. MARIANA
D. MARIANA Diz que azebre, não é?
Visto isso...
GUIOMAR
JÚLIO É. Logo o que eu receito
Então... (que amor naquela idade é já segunda infância)
é fazer que ele tome à noiva repugnância.
GUIOMAR
Esperem mais um pouco. JÚLIO
Nada de provocar o velho a algum descoco. Mariana repugnar-lhe!!
O melhor, quanto a mim, é vermos se se alcança
que desdê, ele próprio, o nó desta aliança. D. LUÍSA
Ela, inspirar-lhe tédio!
D. MARIANA
Isso vinha do céu; mas como? JÚLIO
Impossível.
JÚLIO
Impraticável. GUIOMAR (a D. Mariana)
Menina! Use do meu remédio,
D. LUÍSA que há-de tirar proveito.
Coisa mais espinhosa!
D. MARIANA
GUIOMAR E como se prepara?
Espinhas tem o sável, de que é? e quem o faz?
mas deixa-se comer.
GUIOMAR
JÚLIO Aí ’stá, prendinha cara,
— "Ate-se o guizo ao gato" — o difícil da coisa. Há-de ser preparado
diz-se depressa e bem. pela menina mesma, e co maior cuidado.
Sei que deve custar-lhe.
GUIOMAR
Que gente! um vil regato D. MARIANA
afoga a todos três. (Para D. Mariana) Menina! tome Eu não percebo; explica
tento! depressa o teu enigma!
Para livrar-se dele há um remédio bento.
GUIOMAR
D. LUÍSA Estamos na botica.
Ervas? "Recipe: Manipule! — A sua formosura,
"o seu modo elegante, esse ar, essa frescura...
D. MARIANA "reduza tudo a pó.
Alguma reza?
D. LUÍSA
JÚLIO A pó!
Algum feitiço?
GUIOMAR
GUIOMAR Ao pó mais fino!
Então
se falam, calo-me eu, e lá se avenham.
JÚLIO GUIOMAR
Não pode. Ai! juro que há-de achar-se
uma, e duas, e dez, e mil, com bem o diga.
GUIOMAR (depois de meditar)
Pode, pode. E cale-se, mofino; Cáspite! Há certa dama, esperta, minha amiga,
deixe-nos trabalhar em santa paz. já seu tanto madura e ainda não sorvada;
se há uma abelha mestra ao nosso empenho azada
JÚLIO é ela! uma finura...
Vá lá!
JÚLIO
GUIOMAR (a D. Mariana) Igual à tua?
"O seu metal de voz fascinador, fará
"pelo enferrujar bem, por modo que um eu te amo GUIOMAR
"soe mais a ralhar que ao mimo de um reclamo. À minha;
"O que era discrição, troque-se em frioleiras, pode-o dizer; e um porte, um ar, que nem rainha
"narcótico mortal, feito de dormideiras." em cena de tragédia. Inculco-a pois ao pai
— Assim, jarreta, párvoa, e sensabor, consegue por uma fidalgona.
que o homem peça a Deus que o ensurdeça e cegue,
e fuja a bom fugir. JÚLIO
É laço em que não cai:
JÚLIO Fidalga sem real!
Pois tens razão.
GUIOMAR
GUIOMAR Sem real! quem lho disse?
Pudera! Inventa-se-lhe um trem de toda a garridice;
um título, um solar na Beira ou nos Algarves;
D. LUÍSA (a D. Mariana) são redes de arrastar a espertalhões e a alarves.
Tem razão, tem. Cai, cai; fie-se em mim! Verá se o não convenço
de que esta viscondessa aveza um dote imenso:
vinte contos de réis.
GUIOMAR
Se tenho! Escute mais: — Ser fera;
soberbona ao falar; — nariz sempre torcido; JÚLIO
— muito quero e não quero; — o pé muito batido, Será melhor quarenta.
et caet’ra... é pôr em fuga, e logo de repente
ao próprio Ferrabrás, que fosse pretendente. GUIOMAR
Por cima de tudo isto, o que eu mais lhe encomendo, Pois, quarenta. E que traz uma paixão violenta
porque já claramente o efeito lhe estou vendo desde que um dia o viu tão guapo e bizarraço
(e com esta, acabei de a aperfeiçoar, senhora!) num dos bailes da corte, entre os moços do paço.
é ostentar-lhe em tudo índole gastadora: Desde que ela enviuvou, jamais no coração
que não dispensa o luxo, as modas, nem o jogo, homem nenhum lhe fez tal desatinação.
que isso lá para ele é como em casa um fogo. Ora se eu conseguir meter-lhe na cabeça
que esta amante infeliz, tão rica e viscondessa,
D. LUÍSA não tem dúvida alguma em pôr nas escrituras
É verdade. E que mais? que desde já lhe cede, alto e malo, às escuras,
tudo quanto possui, acham que ele rejeita?
Sei que Dona Mariana é muito mais perfeita,
D. MARIANA (para D. Luísa, sorrindo) muito mais de encantar que a minha viscondessa;
Mais! nome de Jesus! mas há-de ser vencida, e Deus a favoreça.
Os dotes mais reais, o encanto verdadeiro
GUIOMAR para aquele amador, consistem no dinheiro.
Tudo isto é já bem bom; mas o que era de truz Bem vejo que a tramóia, antes de consumada,
era, além de tudo isto, armar-se alguma idéia por força se descobre; isso que importa? nada;
com que o homem, perdida a sua Dulcineia, quando ele conhecer que os prédios, os morgados,
com outra mais real folgasse em desforrar-se. os cofres de ouro, o amor, a glória, os viscondados,
era tudo fingido, e por último termo
D. MARIANA o que só adquiria era um grande estafermo,
Que mulher se prestava...? o essencial para nós estava conseguido:
— Tomaste outra mulher? eu tomo outro marido.
JÚLIO JÚLIO
Deu no vinte a Guiomar. O que se quer agora Induze-a a todo o custo
é o plano posto em obra e já. a romper esse enlace hediondo além de injusto.
Custo, disse... enganei-me: em filha tão querida
GUIOMAR rogar é logo obter. Emprega decidida
Num quarto de hora com ela todo o amor que o céu te pôs no olhar,
tenho a mulher falada, e a farsa em movimento. todo o meigo do riso, as graças do falar,
o tudo, o não sei quê, de que és só tu senhora,
JÚLIO condão que Deus te deu para triunfadora.
Se levas esta nau a porto e salvamento, (Mariana indica pelo gesto que anui; Júlio beija-lhe
verás como to pago. (para D. Mariana) a mão de agradecido, no momento em que, da
E nós, senhora minha... primeira porta da esquerda, vem saindo Harpagão)

D. LUÍSA CENA II
À ordem.
Os mesmos e HARPAGÃO
JÚLIO
Eu! por quê? HARPAGÃO (à parte)
Já lá vamos! O enteado
D. LUÍSA beijando a mão da madrasta,
Por quê? Se a Marianinha e ela sofre-o, e não se afasta!...
é minha irmã, e eu sou a irmã de meu irmão, creio que estou arranjado.
somos irmãos os três; e o uso entre os que o são,
foi sempre tutear-se. (para Júlio) Apanha, D. LUÍSA (que é a primeira que repara em
presidente! Harpagão, em voz alta, para advertir os outros)
É meu pai.
JÚLIO (para D. Mariana) (Júlio larga sobressaltado a mão de D. Mariana)
Aprova?
HARPAGÃO
D. MARIANA Já está ferrado;
Muito, muito; aprovo intimamente. e pronta à porta a capoeira.
Vamos; se têm de ir à feira,
é descer.
JÚLIO (Tirando da algibeira um tostão, e examinando-o; à
Mas que te ia eu dizendo? parte)
Ele é safado,
D. MARIANA mas passa, (levantando a voz) Toma, Luísa!
És tu que o sabes. Podes gastar.

JÚLIO D. LUÍSA (sorrindo e à parte)


Eu? Um tostão?!
O alvoroço do tu da idéia mo varreu...
Ah! sim... já me recordo. É isto... se a Guiomar, HARPAGÃO
a quem baixo a cabeça, a idéia me aprovar. Emprega-o com discrição
nalguma coisa precisa.
GUIOMAR Vão, vão!
Ouvirei.
JÚLIO
JÚLIO Eu as acompanho
Mariana, em vez de mim, será por meu pai.
quem disponha ao milagre a santa mãe já já.
HARPAGÃO
GUIOMAR Qual por meu pai!
Concordo.
JÚLIO
D. LUÍSA Depois de um boléu tamanho
Também eu. como hoje aqui deu...
HARPAGÃO HARPAGÃO
Não sai. Quanto a beleza, a corpo, a graça, este brunido
É cá preciso, e está dito. da casquinha de fora.

JÚLIO JÚLIO
Mas três damas irem sós A formosura; entendo.
quando podia um de nós... ... Receio que se ofenda.
Não acho bom, nem bonito.
HARPAGÃO
HARPAGÃO (ironicamente) Ai, fala! Não me ofendo.
Nem eu! Por essas florestas Cada qual tem seu gosto.
que daqui à feira vão
pode encontrar-se um leão, JÚLIO
e outras mil coisas funestas. Acho que em formosura
Ontem mesmo uma serpente há pior e há melhor; agora de figura
devorou lá três polícias, pior é que não há: veste sem tom, sem graça;
se por acaso não mente e, calada, ainda vai; falando é uma desgraça.
o meu Jornal das notícias. Isto o que me parece. Agora lá se é boa,
Mas as nossas amazonas sabe-o Deus; muita feia é ótima pessoa.
não são medrosas, (para as senhoras) Vão, vão! Co’o coração nas mãos, é isto; e não lho digo
(Para Júlio) co’o fim de o dissuadir. De si para consigo
Tu fica! acha-a linda, não acha? espose-a, se quiser:
Madrasta por madrasta, ela, ou outra qualquer.
JÚLIO
Mas... HARPAGÃO
Pois, homem, faz-me zanga o não gostares dela.
HARPAGÃO ... Mas... (se me não engano) achavas-lhe a mão bela,
Se me entonas mesmo aqui, há bem pouco; e nesta mesma sala
a grimpa, azedo-me. uma hora haverá que te eu vi requebrá-la,
e com bastante fogo.
JÚLIO
Ai, não! JÚLIO
(Saem as damas pela primeira porta da direita) Ah, sim, bem sei. Tudo isso
foi querer a meu pai fazer um bom serviço.
CENA III Via-o mudo, vexado, inerte por virtude;
parecia um galucho, um novicinho rude,
HARPAGÃO e JÚLIO um atadinho enfim, destes por quem mulheres
não queimam a alcachofra, ou deitam malmequeres.
Que devia eu fazer? Em vez de me estar quedo
HARPAGÃO junto a meu pai, penedo ao pé de outro penedo,
Isto assim não vai bem, meu filho; é necessário forcei o gênio, e disse a Dona Mariana
seguirmos d’hoje avante um método contrário: o que a boa razão ensina a gente urbana.
franqueza e mais franqueza. Assim é que a amizade Tudo só por meu pai; que dúvida! por ela,
pode ter duração e dar felicidade. bem empregava eu tempo em tanta incensadela!
Responde-me leal.
HARPAGÃO
JÚLIO Portanto, inclinação...
Prometo.
JÚLIO
HARPAGÃO Inclinação, nenhuma,
Isso me basta. nem por onde ela passe.
— Como achas tu Mariana? O ser ou não madrasta
é um mero acidente, e nada tem coa essência;
... e mesmo o sê-lo ou não ’stá ainda em HARPAGÃO
contingência. O teu juízo, em suma?
Como a achas, enfim?
JÚLIO
JÚLIO Que pode servir mui bem para madrasta;
Eu! Como? em que sentido? mas para me eu casar, desejo-as de outra casta.
HARPAGÃO JÚLIO
É pena. O seu desejo
era esse realmente?
JÚLIO
O que é que é pena? HARPAGÃO
Era; mas como vejo
HARPAGÃO o teiró que lhe tens, o antojo, a antipatia
É pena ser tão forte que Mariana te infunde...
a aversão que lhe tens.
JÚLIO
JÚLIO Eu, grande simpatia
Uma aversão de morte! não lha tenho; concordo; entretanto, se quer
livrar-se dela e impor-ma, aceito-a por mulher.
HARPAGÃO Sou filho obediente...
Pois aí ’stá. Desse modo é renunciar o intento
que eu tinha de ceder-te a moça em casamento. HARPAGÃO
E eu bom pai. Nada, nada.
JÚLIO Deus me livre! exigir-te inclinação forçada!
Como assim? Só se eu fosse algum doido.

HARPAGÃO JÚLIO
É verdade. Há pouco, entrando aqui, Aqui não há doidice.
e vendo-te beijar-lhe a mão... Para o servir... pois não! Resigno-me, já disse.

JÚLIO HARPAGÃO
Não viu. Obrigado, obrigado. Eu é que não aceito.
Casar, não sendo a gosto! é péssimo, e sujeito
a mil tribulações.
HARPAGÃO
Vi, vi.
JÚLIO
Meu pai, reúna os dois,
JÚLIO que é o ponto essencial; o amor virá depois.
Mera civilidade...
HARPAGÃO
HARPAGÃO Bem se vê que és novato. Um homem quando casa
Estou por isso. Enfim, mal sabe a que se expõe; mete um inferno em casa.
civilidade ou não, vi-o e caí em mim. E havia de amarrar, eu mesmo, nessa nora
— Tate, tate, Harpagão! — disse eu cos meus botões o meu Júlio, o meu sangue, um filho que me adora!
— Lá, se eu te descobrisse um grande fatacaz...
se não queres expor-te a trinta mil baldões, (bastava alguma queda) era muito capaz
não teimes em juntar as cãs e os desenganos de preferir-te a mim, e dar-te a rapariga;
coas ilusões, o viço, a flor dos verdes anos. mas assim, não senhor. Descansa! E pois me obriga
Que não diria o mundo? e além do que diria a palavra que dei, torno ao primeiro trilho.
quantos motivos mais para falar teria! Dê lá por onde der, esposo-a, e poupo o filho.
Valor pois! e fugir, enquanto se não lavra
e assina uma escritura. É certo que a palavra
que eu mandei por Guiomar à mãe de Mariana JÚLIO
me obriga em certo modo... Histórias! a cigana Não há, não há remédio: é vinda a extremidade
há-de, e a filha inda mais, achar melhor partido de lhe eu dever expor, meu pai, toda a verdade.
do que o unirem-se a mim, ter Júlio por marido. Saiba pois, meu bom pai...

JÚLIO HARPAGÃO
Eu seu marido? O quê?

HARPAGÃO JÚLIO
Tu, tu mesmo. Que eu a idolatro.

HARPAGÃO
E ela?
JÚLIO HARPAGÃO
Ela a mim também. Desde que no teatro Até quê? fala...
pela primeira vez a vi, linda e singela, (à parte)
ser inveja das mais, e os olhos todos nela, Estou na grelha a assar! (alto) Chegou (franqueza)
e os óculos ao longe e ao perto a devorá-la, até até quê?
e um murmúrio de amor e assombro enchendo a sala,
senti-me escravizado. O seu olhar enfim, JÚLIO
que a ninguém procurava, acertou sobre mim. Por mostrar-lhe a minha boa fé,
Senti que era feliz, e que nesse momento e que um homem de bem nunca a inocência engana,
se me acendia um sol de amor no firmamento. a revelar por longe à mãe de Mariana
Que noite! nas ficções da cena apaixonada assim confusamente esta resolução.
coa música e poesia andou benigna fada
a levar-lhe e a trazer-me em continuados giros, HARPAGÃO
confidencias, ventura, esp’ranças e suspiros; E ouviu-te; não ouviu?
sorri no sorrir dela; em mim senti seu pranto.
Ninguém mais do que nós amou jamais, nem tanto.
— Era a minha intenção, conforme aos votos dela, JÚLIO
declarar tudo ao pai, rogando-lhe... A procela, Não lhe direi que não.
que há pouco sobre nós caiu inesperada,
obrigou-me a conter-me, e não lhe disse nada. HARPAGÃO
Temi desagradar-lhe, opondo intempestivo E vamos nós; a moça, achas que está deveras
àquele seu consórcio o nosso amor tão vivo. perdidinha por ti? ele há tantas quimeras
no bichinho mulher!
HARPAGÃO
Tens-lhe ido a casa? JÚLIO
Bem sei; mas a Mariana
JÚLIO (salvo se ela é um monstro, e bárbara me engana)
Tenho. em quanto mostra e diz, julgo, meu pai, que posso
crer que é, de parte a parte, igual o afeto nosso.
HARPAGÃO
E muita vez? HARPAGÃO (mudando de tom)
Ora pois, senhor meu, meu filho, e caro amigo!
Foi franco; serei franco. Escute o que lhe digo!
JÚLIO Ponto — e já — nesse amor! Há-de ter a bondade
Bastantes, de não me pôr mais pé em casa da beldade;
para o tempo que isto há. nem vê-la, nem falar-lhe, ou de qualquer maneira
fazer-se-lhe lembrado. A fada trapaceira
HARPAGÃO que lá viu na comédia, era uma mentirosa
É natural: amantes... e você um basbaque, e a moça uma dengosa.
E recebem-te bem, pois não? Mariana é a minha esposa; a sua, não o ignora,
é a que eu lhe destino... E põe-te-me já fora!
JÚLIO
Otimamente, JÚLIO
sem saberem quem sou; por isso é que a inocente Ah! Pois ele é assim? Assim se ludibria
ind’agora pasmou de ver-me nesta casa. e se espezinha um filho, um homem que podia
ter já filhos também?! Pois juro-lhe e rejuro
HARPAGÃO que não deixo a Mariana, e estou de a obter seguro,
Hás-de lhe ter pintado o fogo que te abrasa? em que pese a meu pai. Não há, não sei, não vejo
força alguma que possa opor-se ao meu desejo.
JÚLIO Julga contar coa mãe, por vê-la desgraçada?
Claro está. pode ser que se engane. E a minha amante amada,
dos cálculos a exclui?
HARPAGÃO
E a tenção que tinhas de esposá-la? HARPAGÃO
Pois tens o atrevimento,
JÚLIO patifão, de encarar aquela...
Sem dúvida, e cheguei até...
JÚLIO
Antes assento
que, se houve usurpação, foi de meu pai, não minha. TOMÁS
Tive a prioridade. Mas não se altere! A palavra
faz mais que a pancadaria.
HARPAGÃO Sempre é filho: se o escalavra
Esqueces-te, bestinha, dá em si.
que eu, teu pai, tenho jus a todo o teu respeito!
HARPAGÃO
JÚLIO Patifaria!
Em concursos de amor faz rir um tal preceito. Eu vou-me a ele.

HARPAGÃO JÚLIO
E fará rir um pau no lombo de um tratante? Meu pai,
eu já não ’stou bom, confesso.
JÚLIO Não me obrigue a algum excesso
Escusa ameaçar-me. cos seus excessos!

HARPAGÃO TOMÁS (à parte)


Há-de largar a amante. Ai, ai,
que, se isto se não atalha,
temos bulha e mais que bulha.
JÚLIO Quero evitar à patrulha
Nunca. o vir pôr termo à batalha.

HARPAGÃO HARPAGÃO
Nunca, maroto! Um pau, uma bengala, Cão! cão! eu dou-lhe...
um fueiro.
TOMÁS (chegando-se a Harpagão em voz baixa)
JÚLIO Senhor!
Jamais, jamais hei-de deixá-la.
HARPAGÃO
CENA IV Derreti-o!

Os mesmos e TOMÁS (acudindo a carrer da TOMÁS


segunda porta da direita) Ouça-me!

TOMÁS HARPAGÃO
Que tem, patrão? são ladrões? Nada;
dou-lhe tamanha maçada,
HARPAGÃO que o ponho em mãos do doutor.
Pior. Tenho um peralvilho,
que eu dava oitenta dobrões TOMÁS
por não ser pai de tal filho. Pagando-lhe... e ao boticário.
Faltar-me ao respeito!
HARPAGÃO
TOMÁS Lembras bem: não pode ser.
É mau. Se eu ’stou co juízo vário!

HARPAGÃO TOMÁS
Dizer-me que não! Sente-se, é o que há-de fazer.
(Conduz a Harpagão para uma cadeira, junto à
TOMÁS parede do lado esquerdo, e perto do proscênio)
Pior. Tem já o rosto assanhado,
que parece um caranguejo.
HARPAGÃO Sossegue! Isso é mau.
A um pai, que o não há melhor!
Não é de o matar a pau? HARPAGÃO
Se o vejo,
ou torno a ouvir o altanado...
\\\\\\(Tomás faz sinal a Júlio para que se retire HARPAGÃO
para o fundo da sala, do lado direito, onde está a Heim?
mesa. Tira-lhe de diante o biombo, e vem colocá-lo
no meio do teatro, interceptando mutuamente a vista TOMÁS
do pai e do filho) Continue! E depois?
que fizeram?
JÚLIO (entre si)
Para serenar um pouco, HARPAGÃO
vou escrever a Mariana. O que eu fiz,
Meu pai está louco; e um louco fê-lo ele também.
tem privilégios. (Começa a escrever)
TOMÁS
TOMÁS (experimentando se o biombo está firme) Bom filho:
Abana, seguiu o exemplo paterno.
mas não cai. O essencial, Deixe-o ir sempre nesse trilho,
para evitarmos quezílias, e tem-no livre do inferno.
e pôr este antemural
ao filho e ao pai de famílias. HARPAGÃO
Não é isso, homem!
HARPAGÃO
Vem cá, Tomás! Tu entendes TOMÁS
de pulso? Toma este pulso. Não!

TOMÁS HARPAGÃO
Acho-o seu tanto convulso... Ama
Se quer, chamo o doutor Mendes. a mesma dama que eu amo.

HARPAGÃO TOMÁS
Não é preciso; isto passa, Para dois... uma só dama
se Deus quiser. É o efeito é pouco; não é, meu amo?
das zangas que me tem feito
um filho, a minha desgraça.
HARPAGÃO
Pois aí está; e o bruto quer
TOMÁS que à fina força eu desista,
Talvez que não seja tanto. que lha deixe; e à minha vista
Eu sei? ele a gente, às vezes... recebê-la por mulher.

HARPAGÃO TOMÁS
Vá lá! Dize que é um santo Lá nisso não pensa bem.
e eu um diabo.
HARPAGÃO
TOMÁS Um filho ao progenitor...
Os seis meses
que eu fui criado e escrevente
de um grande juiz de paz TOMÁS
deram-me luzes assaz, Tem razão; olé se tem!
e não trovo de repente.
É preciso ouvir as partes, HARPAGÃO
pesar com toda a atenção, Fazer concurso no amor!
e às vezes por boas artes
se chega à conciliação. TOMÁS
Fique-me aqui sentadinho,
HARPAGÃO enquanto o juiz de paz
Bem. Arvoro-te em juiz. vai falar co seu rapaz,
Eu e ele... e trazer-lho ao bom caminho.

TOMÁS HARPAGÃO (consigo mesmo, enquanto Tomás


Somam dois. vai falar a Júlio)
Se mo traz a mandamento não é como se cuidava:
cuido até que sou capaz em vez de serpente brava,
de mencionar o Tomás achei cordeiro em tomilho.
nas deixas do testamento. Diz que está por quanto queira
o caro autor dos seus dias;
JÚLIO (para Tomás sem ser ouvido de Harpagão) que se teve demasias,
Meu pai fez-te árbitro; aceito... disse ou fez alguma asneira,
e aceito a quem quer que for. de tudo pede perdão,
Decide, e breve, este pleito! e promete nunca mais
falar ao melhor dos pais
TOMÁS senão de chapéu na mão;
Graças! que honra, meu senhor! que, se o quiser ver contente
lhe mostre carinha boa,
e o case enfim com pessoa
JÚLIO não medonha inteiramente.
Sabes que há uma donzela Aceita?
por quem morro e por quem vivo.
HARPAGÃO
TOMÁS Aceito gostoso.
Não há-de ser sem motivo. Vai-lhe dizer, em meu nome,
que, se quer mulher a tome
JÚLIO que o possa tornar ditoso.
Sou adorado por ela; Corra toda a espécie humana:
suspiramos pelo dia tem raparigas a rodo.
que há-de sagrar estes laços; Só exceto a Mariana;
vem meu pai... no mais dou-lhe o mundo todo.

TOMÁS TOMÁS
Que tirania! Bom. Deixe o caso comigo! (Vai para Júlio)

JÚLIO HARPAGÃO (entretanto, consigo mesmo)


e quer-ma arrancar dos braços. Lá me fazia estranheza
Propõe por certa emissária ver num filho um inimigo.
à pobre mãe da menina Viva o sangue e a natureza!
que rompa o que o céu destina...
JÚLIO (a Tomás)
TOMÁS Então?
E ela?
TOMÁS
JÚLIO Às mil maravilhas.
Não sei. Vai tudo em maré de rosas.

TOMÁS JÚLIO
Que alimária! Que disse?
Mas pode estar descansado.
Prometo-lhe que o patrão, TOMÁS (imitando a voz e o tom de Harpagão)
quando eu lhe tiver falado, "Se mo acepilhas,
há-de chegar-se à razão. "tens alvíssaras famosas!"
Deixe isso por minha conta.
(Volta para ao pé de Harpagão)
JÚLIO
" Acepilhares-me! como
JÚLIO (entretanto, falando entre si) se entende isso?
Co meu gênio de vinagre
não se tempera o negócio.
Cum parvo manso por sócio TOMÁS
talvez se arranje o milagre. Diz que o acha
sempre com ar de mordomo;
que nunca a seu pai se abaixa;
TOMÁS (a Harpagão) que nunca nunca lhe fala
Sabe que mais? O seu filho
sem sete pedras na mão; TOMÁS
e a um paternal coração Não me confunda! O que eu fiz
é isso o que mais o rala; qualquer bom moço o faria.
que seja com ele afável
e verá o pai que tem, JÚLIO (dando-lhe dinheiro)
manso, risonho, amorável... Toma! por ti sou feliz;
quero-te ver alegria.
JÚLIO (à parte)
Se lhe não pedir vintém. TOMÁS (conduzindo-o pelo braço para o
proscênio)
TOMÁS Aqui vem o filho pródigo.
Que há-de fazer-lhe a vontade Julgo que fui bom causídico,
em tudo quanto puder. e fiz a vontade ao código
sem aparato jurídico.
JÚLIO
Logo, dá-ma por mulher... HARPAGÃO
Mereces recompensado.
TOMÁS Que dúvida!
Dá, dá; forte novidade! (Mete a mão na algibeira, e depois de remexer por
algum tempo, estando Tomás com a mão estendida à
JÚLIO espera, tira o lenço para se assoar)
Então podes-lhe afirmar
que há-de encontrar sempre em mim TOMÁS
um José, um Benjamim; São mercês.
um filhinho de invejar.
HARPAGÃO
TOMÁS (caminhando de Júlio para Harpagão. Será para outra vez.
Considerando entre si) ’Stou tão encatarroado!
Tais conciliações são justas;
mas, meu bom juiz de paz! TOMÁS
não sei se não pagarás Então que fazem, senhores?
tu mesmo afinal as custas. Não entendo o acanhamento.
Adeus! Eu já tenho casa Em tanto contentamento
de menos lida e mais pão. sérios como dois doutores!
Mal soe aqui o trovão Saltem-me já aos abraços,
nem pio dou, bato a asa. que o manda o juiz de paz.
(chegando ao pé de Harpagão)
Tudo inteiramente assina. HARPAGÃO
Vem, meu bom filho aos meus braços!
HARPAGÃO
Santo filho! JÚLIO
Meu bom pai!
TOMÁS
Sai ao pai. TOMÁS
Não sou capaz
HARPAGÃO de ver estas cenas ternas
Venha aos meus braços! Que mina... sem chorar. Oh parentesco!
(à parte) ... E portanto, oh minhas pernas,
TOMÁS (à parte) para que vos quero? ao fresco!
que estourar-te agora vai! (Vai-se pela primeira porta da direita)
(corre para Júlio)
Parece fora de si CENA V
co prazer de o recobrar.
Voe a abraçá-lo! HARPAGÃO e JÚLIO

JÚLIO JÚLIO
Abraçar Peço-lhe mil perdões dos arrebatamentos
te devo eu primeiro a ti (abraça-o).
que tive com meu pai. É que eu, nesses momentos, HARPAGÃO
não me sentia em mim; deveras. Quem te diz que eu ta dou?

HARPAGÃO JÚLIO
Já lá vai. Disse-o meu pai.

JÚLIO HARPAGÃO
Se meu pai mo perdoa, eu é que não, meu pai. Quem? eu!
Sinto aqui um remorso...
JÚLIO
HARPAGÃO Pois quem?
E eu dentro uma alegria...
HARPAGÃO
JÚLIO Pelo contrário, ele é que prometeu
Que bondade! esquecer, assim, no próprio dia... Ceder-ma.

HARPAGÃO JÚLIO
Pais esquecem depressa. Eu! eu! ceder-lha!

JÚLIO HARPAGÃO
E nem um leve espinho É verdade.
da minha extravagância...
JÚLIO
HARPAGÃO É mentira.
Erraras no caminho;
estás nele outra vez. A tua obediência HARPAGÃO
e sujeição filial são mais do que inocência. Visto isso, teima?!

JÚLIO JÚLIO
Prometo-lhe que até o derradeiro instante, Teimo.
me há-de achar sempre o mesmo, obediente e
amante. HARPAGÃO
E aspira...
HARPAGÃO
E eu também te prometo, e se faltar, má peste JÚLIO
dos devedores meus dê cabo... Aspiro.

JÚLIO HARPAGÃO
Não proteste; Aspira
não é preciso tal. a tê-la por mulher?

HARPAGÃO JÚLIO
Pois sim, mas asseguro Sem falta.
amenizar, meu filho, em tudo o teu futuro,
HARPAGÃO
JÚLIO Recomeças
Que posso eu mais querer, meu pai, de hoje em a tentar-me, ladrão?
diante,
se em me dar Mariana...
JÚLIO
Não ouço injúrias dessas.
HARPAGÃO Quer delirar, delire. Ignora o seu delírio
Em dar-te...? que um puro e santo amor sai vivo do martírio?

JÚLIO HARPAGÃO
A minha amante. Deixa! Eu te farei ver...
JÚLIO TOMÁS
Quanto quiser. Alvíssaras!

HARPAGÃO JÚLIO
Tratante, Que é, Tomás?
roubador de seu pai, ingrato, petulante!...
TOMÁS
JÚLIO (com toda a brandura) Venha depressa! Está salvo.
Que mais?
JÚLIO
HARPAGÃO Salvo! Explica-te, rapaz!
Que nunca mais me tenha a confiança
de me chamar seu pai. TOMÁS
Lá fora. Acertou-se o alvo.
JÚLIO (à parte)
’Stá órfã a criança. JÚLIO
Qual alvo? Não compreendo.
HARPAGÃO
Desamparo-te. TOMÁS
Era um tesouro enterrado,
JÚLIO que seu pai desconfiado
Bom. guardava, olhando e tremendo.
Pela cara eu bem lhe via
HARPAGÃO que era acolá no quintal.
Renego-te de filho. Sigo-o; coco; espreito-o (Ria!),
acho e empalmo o cabedal.
JÚLIO
Bem. JÚLIO
Como é possível?
HARPAGÃO
Deserdo-te. TOMÁS
Fujamos!
JÚLIO Toda a melgueira aqui vai.
Vá. Fuja ou perdidos estamos.
Ouço gritar... É seu pai!
(Fogem ambos correndo pela primeira porta da
HARPAGÃO direita)
Deserdo-te, e perfilho
o primeiro tunante.
CENA VII
JÚLIO
É ótima eleição. HARPAGÃO (vindo a gritar desde o quintal até
entrar em cena, com as feições desconcertadas, e no
auge do terror)
HARPAGÃO
Vai-te, e dou-te...
Aqui del-rei, ladrões! Ladrões, aqui del-rei!
Querem-me assassinar. Mataram-me. Acabei.
JÚLIO Justiça, Deus do céu! Oh da ronda! oh da guarda!
Oh prodígio! Estou perdido e morto. Um chuço! uma espingarda!
Roubaram-me o meu sangue, os meus dez mil
HARPAGÃO cruzados.
A minha maldição. Quem seria? quem foi? persigam-me os malvados!
(Harpagão sai pela primeira porta da esquerda. Quem mos trouxer co roubo, of’reço-lhe um
Júlio fica pensativo. Da porta do fundo vem Tomás quartinho...
com um cofre debaixo do braço) meia moeda... mais, que eu nunca fui mesquinho.
Para onde fugiu? Onde está ele? aonde?
CENA VI Corram, vasculhem tudo, a ver onde se esconde.
Ali não!... Aqui não!... Agarra o bandoleiro!
JÚLIO e TOMÁS Vê-lo cá vai... Agarra, agarra o meu dinheiro!
(Agita-se bracejando à doida, e agarra com a mão Aferventa! atiça! atiça!
direita o braço esquerdo) aliás há-de a justiça
Filei-te, mariolão! Larga o que não é teu!... pagar-me perdas e danos.
Estou perdido e doido; o que apanhei, fui eu.
E eu quem sou? onde estou? que hei-de fazer? que FELISBERTO
posso? Sossegue... senhor...
Ah, meus ricos dobrões, se eu era todo vosso,
como pudestes vós deixar-me só no mundo!! HARPAGÃO
Que situação! que horror! que inferno tão profundo! Roubado
Ninguém tem dó de mim; sou Lázaro; sou Job. servo seu.
(Chora e soluça despropositadamente)
Perdi tudo, e ninguém, ninguém de mim tem dó.
(Na maior explosão do delírio) FELISBERTO
Enforcar tudo a esmo, até que surda alguém Pois, meu amigo,
co meu cofre; aliás enforco-me eu também. lá nisso conte comigo,
.................................... que não no há mais apressado.
De quem me hei-de eu valer! Demônio! Eu te Entremos no labirinto;
requeiro: mas dê-me primeiro o fio.
Leva-me um olho... e os dois, mas dá-me o meu
dinheiro. HARPAGÃO
Que fio? (à parte) Mau! Desconfio
que é já pedir-me algum pinto.
ATO QUINTO
FELISBERTO
O fio é o conhecimento
CENA I do caso, das circunstâncias,
suspeitas, concomitâncias,
HARPAGÃO e FELISBERTO do roubo astuto ou violento.

FELISBERTO HARPAGÃO
Não me ensine o meu ofício! Diga os pontos separados!
Sou há muito ano escrivão. Tantas perguntas de chofre...
Sei descobrir um ladrão,
até sem sombra de indício. FELISBERTO
Tenho a experiência e o faro. Bem. Disse-nos que o tal cofre
Tomara tantos milhões continha oito mil cruzados.
como já pus de ladrões
à dependura, meu caro!
HARPAGÃO
Dez, dez.
HARPAGÃO
Isso mesmo: à dependura;
FELISBERTO
e assim é que deve ser.
Dez.
É o primeiro dever
de toda a magistratura.
Ora o regedor, que o manda, HARPAGÃO
recomendou-lhe decerto, Dez. Quatro contos.
senhor... senhor...
FELISBERTO
FELISBERTO Roubo grande em realidade.
Felisberto,
para o servir. (Felisberto puxa para fora da parede a mesa que
está do lado esquerdo; põe entre ela e a parede uma
HARPAGÃO cadeira, e assenta-se; Harpagão vai buscar à mesa
Que a demanda do fundo o tinteiro e o papel, e põe-lhos diante.
se apressasse o mais possível, Claudina vem acender as duas velas, e retira-se)
até se dar co dinheiro
e enforcar-se o réu. Requeiro HARPAGÃO
não façam como no cível, Ponha bem nos is os pontos.
onde as causas levam anos. (Depois de olhar para o que o escrivão assentou)
Dez mil: a pura verdade. quer de calças quer de saia,
Não há para um crime assim (pense bem!) na qual recaia
castigo que igual lhe seja. alguma suspeita boa?
Roubar ao pobre de mim Se lhe ocorre, é nomeá-la:
é mais que roubar igreja. catrafila-se, e veremos
se uns anjinhos que nós temos
FELISBERTO a fazem ou não ter fala.
Em que moeda era a soma? Não é preciso mais potro,
nem mais nada. Se é culpado,
HARPAGÃO declara-o; se o réu foi outro,
Metade, em belas loirinhas que o nomeie.
de vários reis e rainhas
que eu posso nomear-lhe. HARPAGÃO
É bem lembrado.
FELISBERTO
Toma! FELISBERTO
que memorião! E o resto? Um ou outro hão-de lhe pôr
para ali o cofrezinho.
HARPAGÃO
Um conto em bons soberanos; HARPAGÃO
trinta dobrões mexicanos. Bela idéia, sim senhor.
Vou ver, vou ver se adivinho.
FELISBERTO (repetindo-lhe as últimas sílabas
que escreveu) CENA II
Canos...
Os mesmos e SEBASTIÃO (que, entrando da
HARPAGÃO segunda porta
Pronto? da direita, se revira para trás gritando)

FELISBERTO (sorrindo-se) SEBASTIÃO


Pronto e lesto. Eu já torno. Olhem lá: matem-mo sem tardança;
enterrem-lhe o facão no peito; abram-lhe a pança;
HARPAGÃO (à parte) as unhas dos pés fora; o corpo chamuscado;
E inda há no mundo quem ria! escaldado; e na corda até o teto içado!

FELISBERTO HARPAGÃO
Que mais? Quem? o que me roubou?

HARPAGÃO SEBASTIÃO
O mais era tudo É um leitão; mandou-mo
em muito ourinho miúdo, matar e preparar o senhor seu mordomo.
tão limpo que reluzia. Verá como eu lho arranjo.

FELISBERTO HARPAGÃO
O senhor de quem suspeita? O que me importa agora
são leitões! O senhor... (indicando o escrivão)
HARPAGÃO
Não sei; suspeito de todos: SEBASTIÃO
dinheiro tem tais engodos, Se é coisa de demora,
que todos lhe andam à espreita. não posso; logo venho.

FELISBERTO HARPAGÃO
Sim, mas no caso presente, Espera! Este senhor,
dizer todos ou ninguém que é o digno escrivão do nosso regedor,
vem a dar na mesma; alguém precisa interrogar-te.
o roubou, não toda a gente.
Não lhe ocorrerá pessoa, SEBASTIÃO
O que eu souber, direi.
FELISBERTO SEBASTIÃO
Escusas de tremer. Nós cumprimos a lei, E não.
mas não comemos gente; ergo por conseqüência...
fala desassombrado! FELISBERTO
Caso negado,
SEBASTIÃO (para Harpagão em voz baixa) provando-se, é pior. Vá lá. Confessa tudo,
Este sua excelência que ninguém te faz mal. Eu sou homem sisudo:
também cá ceia? o que prometo, cumpro; e, além da impunidade,
o patrão há-de dar-te o prêmio da verdade.
FELISBERTO Roubaram-lhe hoje um cofre, e tu, que não és curto,
Aqui, meu rico amigo, deve antes bastante esperto, hás-de saber do furto.
dizer tudo a seu amo: exato, claro e breve.
SEBASTIÃO (baixo, consigo mesmo)
SEBASTIÃO Cai-me a sopa no mel. Agora é que o mordomo
A respeito da ceia? ele bem sabe o homem paga tudo por junto; eu já lhe mostro o como.
que em mim tem: o que faço, os serafins o comem.
HARPAGÃO
HARPAGÃO Que está ele a rosnar?
Mas não se trata disso.
FELISBERTO (baixo a Harpagão)
SEBASTIÃO Tape a boquinha; deixe!
O bródio bem podia Se não o amedrontar, temos no anzol o peixe.
sair muito melhor; mas a pirangaria A cara não mentia; eu bem lho tinha dito;
do senhor seu mordomo... é pessoa capaz.

HARPAGÃO SEBASTIÃO
Acaba já com isso! Ver já meu amo aflito
Dá-me novas... e vi-lo afligir mais, confesso que é custoso.
... Enfim, quem deve, paga. Esse furto horroroso
SEBASTIÃO quer-me a mim parecer, que ninguém mais o fez
De quê? senão o seu mordomo. Eu falo português,
não ’stou ó tio, ó tio.
HARPAGÃO
Do que levou sumiço, HARPAGÃO
do meu cofre. O Duarte!

SEBASTIÃO SEBASTIÃO
O seu cofre! e tinha lá dinheiro? Sim senhor.

HARPAGÃO HARPAGÃO
Se mo não repões logo, enforcam-te, brejeiro! Cum falar tão honrado!

FELISBERTO (baixo a Harpagão) SEBASTIÃO


Olhe que espanta a caça. O homem não tem má cara. Oui.
Com bons modos, verá que tudo nos declara.
Como é a tua graça? HARPAGÃO
Cum tamanho amor
SEBASTIÃO a tudo que era meu!
A alcunha que me dão
é Sebastião Pacato. SEBASTIÃO
Aí tem. Forte macaco!
FELISBERTO
Ora, Sebastião, HARPAGÃO
um conselho de amigo, e amigo exp’rimentado, Dize: forte ladrão! ladrão pior que um Caco.
não se há-de desprezar. Mas por que julgas tu, já agora hás-de explicar-te,
sim, por que é que supões que o monstro foi Duarte?
SEBASTIÃO fora do uso... esquisita... (para Harpagão) O nome
Se põe por ele a mão no fogo, eu cá não ponho. por favor;
Suponho que foi ele... enfim... porque suponho. veja se mo recorda... eu sei, mas não atino;...
vermelha, não?
FELISBERTO
Mas por que é que o supões? se há fundamento, HARPAGÃO
emite-o. Cinzenta. Acabarás, mofino?

HARPAGÃO SEBASTIÃO
Viste acaso o Duarte andar rondando o sítio Cinzenta, é o que eu dizia: um certo acinzentado,
onde eu tinha o dinheiro? de um reflexo tirante a modo a avermelhado.

SEBASTIÃO HARPAGÃO
Ai, vi; por tal sinal... Já se vê que era a mesma. Agora estou já certo
o dinheiro onde estava? (para Felisberto)
Lavre este depoimento! Ah senhor...?
HARPAGÃO
Ali, no meu quintal. FELISBERTO
Felisberto,
SEBASTIÃO para o servir.
No quintal, justo, ali; nesse próprio lugar
é que eu vi muita vez o malandrim rondar. HARPAGÃO
E o dinheiro em que estava? Achou-se a ponta da meada.
Quem há-de nunca mais fiar-se em gente honrada?
HARPAGÃO E ver que por aí há tanto quem suponha
Estava numa arquinha. que se pode viver sem forca!

SEBASTIÃO FELISBERTO
Cuma arquinha o vi eu. É uma vergonha.

HARPAGÃO HARPAGÃO
E essa como era? Dizem que era melhor que os tais facinorosos
vivessem numa cela!
SEBASTIÃO
Tinha FELISBERTO
o feitio... sei lá? a modo assim... de arqueta Olha os religiosos!
(se me apertam demais, atolo-me na peta).
SEBASTIÃO
FELISBERTO Lá vem ele! O que eu peço é se lhe não delate
Claro está, mas descreve-a. quem lhe armou esta cama: é doido, e às vezes bate.

SEBASTIÃO CENA III


Era grande bastante.
Os mesmos e DUARTE
HARPAGÃO
A minha era pequena. HARPAGÃO
Venha, venha, meu senhor,
SEBASTIÃO que temos de ajustar contas.
Isto é, exorbitante
também eu não na achei; o grande é no sentido DUARTE
do grande dinheirão que estava lá metido. Seja em que matéria for,
as minhas sempre estão prontas.
FELISBERTO
E a cor? a cor? HARPAGÃO
Vem confessar, desgraçado,
SEBASTIÃO o teu crime, a desleal
A cor?... Era uma certa cor... ação mais descomunal,
o mais nefando atentado DUARTE
que jamais foi cometido. No muitíssimo que o estimo,
e em saber que não mereço
DUARTE o título de ladrão.
Não percebo.
HARPAGÃO (ironicamente)
HARPAGÃO Brincos de rapaz travesso;
Ih! que inocência! coisas de nonada.
Não percebe!!
DUARTE
DUARTE Não.
A consciência Ofendi-o gravemente,
não me argúi. confesso; porém foi culpa,
das que merecem desculpa.
HARPAGÃO
Mui bem fingido. HARPAGÃO
Ladravaz e comediante. Desculpa, biltre, insolente,
a um assassino, a um traidor!
DUARTE
Por Deus, por si lho requeiro. DUARTE
Que fiz eu? diga-o primeiro! Torne em si! pense que o mal
Convenca-me, e então... não foi tamanho, nem tal
como o finge o seu rancor.
HARPAGÃO
Bargante! HARPAGÃO
Faze papel d’inocente, Diz-me o infame que exagero!
se te parece; mas sabe, Roubando-me ele o meu sangue,
para que essa farsa acabe, acha injusto que me eu zangue
que eu de tudo estou ciente. e não perdoe.
Não tem vergonha! abusar
da boa fé, do bom trato, DUARTE
de tanto carinho, e ingrato O que espero
ousar lograr-me... é que abra os olhos, e veja,
que o seu sangue não caía
DUARTE em mãos indignas; um dia
O negar, conhecerá quem eu seja.
uma vez que deu na coisa, Demais, eu não lhe fiz dano
de nada me serviria, que eu não possa reparar.
senhor Harpagão de Sousa.
HARPAGÃO
SEBASTIÃO (à parte) E olé, se o há-de.
Pois eu adivinharia?
DUARTE
DUARTE E de plano;
Tencionava-lho dizer, já já, se quer. Vou-lhe dar
e aguardava a ocasião. à sua honra agravada
Assim cumpria um dever, completa satisfação.
contando já co perdão.
Visto que fui descoberto, HARPAGÃO
e sabe tudo, o que peço, A que vem aqui chamada
imploro, e tenho por certo, a honra? Mas que razão
é me indulte o enorme excesso. (tomara que mo dissesses)
te fez perpetrar tal crime?
HARPAGÃO
Indultar-te! E em que razões DUARTE
te fundas, ladrão cadimo, Um sentimento sublime.
para contar com perdões?
HARPAGÃO DUARTE
Se não és doido, pareces. E insiste
Que sublime sentimento? em chamar a isto um roubo!

DUARTE HARPAGÃO
Qué-lo saber? E que roubo! em todo o globo,
tesouro igual onde o viste?
HARPAGÃO
Quero. DUARTE
Em parte nenhuma. Achei-o
DUARTE tão lindo, tão sedutor,
O amor. de ricas prendas tão cheio,
tão digno do meu amor...
HARPAGÃO
O amor! HARPAGÃO
Que mo empalmaste.
DUARTE
O amor mais violento. DUARTE
Sossegue!
HARPAGÃO Não lho empalmei. Só lhe imploro
À minha burra? que à boa mente me entregue
objeto que tanto adoro.
Ajoelhado lho suplico.
DUARTE Nada perde em mo ceder.
Senhor! Sem a si se empobrecer,
Que me faz indigna afronta! torna-me o homem mais rico.
Do seu, nada mais cobiço
que o que já tenho.
HARPAGÃO
Endoideceu.
HARPAGÃO
Só isso!
A pouco a ambição lhe monta. DUARTE
Há-de com língua de palmo É é verdade:
largar o que chamou seu, da paixão mais invencível.
ou lá verá se o não calmo Só por morte é que é possível
nos quintos infernos. separar-mo-nos.

DUARTE HARPAGÃO
Eu! Se se há-de
eu defraudar-me do gozo humilhar arrependido,
de um bem que tenho seguro! requinta na impenitência.

HARFAGÃO DUARTE
Mas que é meu. Já não posso, em consciência,
votos que fiz pôr no olvido.
Toda a insistência é já vã.
DUARTE
Meu.
HARPAGÃO
E não querem ver ao cabo
HARPAGÃO que me rouba este diabo
Teu! por caridade cristã?
Vai, vai lá para a justiça,
DUARTE meu salteador, galrar dessas,
Se juro que eu quero perder três peças
que é meu, e me faz ditoso! se escapares vivo. Atiça
cada vez mais a fogueira.
HARPAGÃO Torce melhor o baraço!
No roubo insistes?!
DUARTE HARPAGÃO
Puna-me embora! Agora, inda a escuridão
é mais profunda. Vá! fala!
HARPAGÃO Explica-te abertamente!
Ralaço!
DUARTE
DUARTE Claudina sabe-o mui bem.
Diga e faça quanto queira. Eu jurei-lhe (ela igualmente)
Recordo-lhe unicamente não pertencer a ninguém
que, se há réu, só eu sou réu. senão eu a ela, e ela
Luísa está inocente; a mim só.
juro-lho à face do céu.
HARPAGÃO
HARPAGÃO Já compreendo:
Pudera! Na parentela foram três os da esparrela...
nunca as houve dessa casta. Esparrela e crime horrendo!
Mas de empalhações já basta.
Revela-me já, revela DUARTE
para onde é que foi levada Co ente mais adorável
a minha preciosidade? aspirar a unir-se, é logro?
Desejar tê-lo por sogro
DUARTE será crime imperdoável?
Tem-na em casa.
HARPAGÃO
HARPAGÃO (à parte) Que é lá? pois de mais a mais
Oh burra amada! este infame farroupilha,
(alto) Isso é verdade? além dos meus cabedais
queria levar-me a filha?
DUARTE
É verdade. SEBASTIÃO (a Felisberto)
Pode-a ver quando quiser. Escreva, escreva, senhor,
Nunca em roubar-lha pensei. tudo mui bem declarado!

HARPAGÃO HARPAGÃO
Nem lhe tocaste? Escreva por atacado:
ladrão, sedutor, raptor.
DUARTE
Honra é lei SEBASTIÃO (baixo para Felisberto com medo de
ao homem como à mulher. ser ouvido por Duarte)
A Claudina que lhe diga Raptor, sedutor, ladrão.
se houve jamais amor puro
como este amor que nos liga. FELISBERTO (escrevendo)
O testemunho é seguro. Assento e porto por fé...
Bem sabe: é mulher honrada,
vigilante, rigorista; DUARTE
andou sempre desvelada; Quem sou depois saberão.
jamais nos perdeu de vista.
FELISBERTO
HARPAGÃO Depois se porá quem é.
Quê! Pois até a Claudina
na tratada teve parte! CENA IV
O demônio és tu, Duarte.
Os mesmos, D. MARIANA, D. LUÍSA,
DUARTE GUIOMAR (as quais vêm da segunda porta da
Sim; foi a própria menina esquerda)
quem lhe impôs a obrigação
de vigiar-me e guardá-la.
HARPAGÃO SEBASTIÃO (à parte)
Filha indigna! foi essa a criação que houveste? A mim deve ele um par de murros bem puxados.
Não merecias ter o pai que em mim tiveste.
Amar um salteador, tramar um casamento, GUIOMAR (à parte)
desonra de ambos nós, sem meu consentimento! Isto dá em tormenta; os céus estão nublados.
Deixem lá! (para Luísa) Tu daqui já já para um
mosteiro! CENA V
(a Duarte) Ele para uma forca, infame aventureiro!
Os mesmos e ANSELMO (vindo da primeira
DUARTE porta da direita)
Antes de condenado, espero ser ouvido.
ANSELMO
D. LUÍSA Vivam! Senhor Harpagão,
Se meu pai bem soubera o sangue esclarecido, que tem? Acho-o... transtornado...
e as virtudes daquele a quem jurei lealdade, não sei como...
não abusava assim da sua autoridade.
HARPAGÃO
HARPAGÃO A arder; danado;
É um Preste João, e ainda por cima um santo. com peste no coração.
Vai-te ao diabo, tu, mais ele!
ANSELMO
D. LUÍSA Mas desabafe!
Ignora quanto
meu pai lhe é devedor.
HARPAGÃO
O que eu passo,
HARPAGÃO nunca ninguém o passou.
Agora até lhe devo! Tudo que há mau, desabou
em cima deste espinhaço.
D. LUÍSA Vinha assinar a escritura
Deve-lhe o estar eu viva. do casamento; não vinha?
Pois diga adeus à futura!
HARPAGÃO Já não é sua nem minha.
Oh, que grande relevo A título de criado
nos méritos do herói! Vens a dizer na tua meto em casa um salteador;
que morrias sem ele, e vives porque és sua. namora-ma, é dela amado;
rouba-me...
D. LUÍSA
Não lhe lembra que um dia em que eu coas mais ANSELMO
andava É crível! que horror!
junto à beira do mar na penedia brava
a brincar e a correr, falta-me um pé, resvalo, HARPAGÃO
despenho-me no abismo... e quem ousa afrontá-lo, Não sei se é crível, se não;
roubar-me aos escarcéus, reconduzir-me à vida? sei que é isto: assassinou-me
Foi ele; foi Duarte. no meu haver, no meu nome:
— Desonrador e ladrão! —
HARPAGÃO (indicando Duarte)
Estavas submergida, Aí o tem!
era por culpa tua, e porque Deus queria.
Escusava-se agora esta patifaria. DUARTE
Se não fora
D. LUÍSA ver-lhe, senhor, essas brancas,
Pelo amor paternal lhe rogo... e o ser pai desta senhora...
(indicando D. Luisa)
HARPAGÃO
Não me enguiça. SEBASTIÃO (à parte)
Quem deve, paga. O caso agora é coa justiça. ’Stou pensando em dar às trancas.
DUARTE (para Harpagão) HARPAGÃO
Com indignação rejeito Perdi
a imputação vergonhosa; um velho amigo, já vejo.
mas a da culpa amorosa,
com que orgulho a não aceito! ANSELMO
Não perdeu: seja em que for
HARPAGÃO (a Anselmo) tem em mim auxílio certo.
Vê? Não só confessa; até
faz do sambenito gala. HARPAGÃO (indicando o escrivão)
E a chança com que nos fala! Bem! O... senhor... (hesitando)
Tem, Dom Anselmo, um bom pé.
FELISBERTO
ANSELMO Felisberto!
Para me ir andando?
HARPAGÃO
HARPAGÃO Escrivão do Regedor...
Nada: pessoa de todo o porte...
para tomar um desforço
de quem lhe roubou a amada. FELISBERTO
Cuido que sim.
ANSELMO
Moços têm carta de corso; HARPAGÃO (para Felisberto)
deixemo-nos disso. Com certeza.
(continuando, para Anselmo)
HARPAGÃO E da maior esperteza
Amigo! contra ladrões...
A afronta que ele lhe fez
não requererá talvez FELISBERTO
a um fidalgo um bom castigo? O meu forte
foi sempre esse.
ANSELMO
Já não brigo. HARPAGÃO
Está colhendo
HARPAGÃO informações por escrito
O que eu lhe peço sobre este atentado horrendo,
é que o persiga em juízo. único, atroz, inaudito.
Gaste, do seu, no processo, (para Felisberto)
sem dó, quanto for preciso. Carregue-mo bem... senhor...

ANSELMO FELISBERTO
Casamentos obrigados Felisberto!
nunca foram do meu gosto,
e não me sinto disposto HARPAGÃO
a afrontar-lhe os resultados. Nunca acerto
Quando o senhor me dizia o nome de Felisberto.
(indicando D. Luísa) Vá lá! Com todo o rigor!
que a menina, a quem Deus guarde, Faça-lhe a cama bem feita!
era livre, e não fazia Pinte a coisa bem medonha,
má cara à fruta do tarde; por modo que o sem-vergonha
que era enfim tão inocente trepe aos ares desta feita.
que estava co pai de acordo,
que onde havia dote gordo
todo o esposo era excelente, DUARTE
anuí ao seu desejo; Por amar a sua filha?!
fui leviano; caí; Em sabendo quem eu sou...
hoje é diverso...
HARPAGÃO
Com essas não me codilha!
Sem terem nem meio avô
sei de dez em cada rua de que meteu a defesa
que não passando de uns pilhos por um beco sem saída.
até se apregoam filhos
do sol, e netos da lua. DUARTE
Posso provar o que digo.
DUARTE
Muitos fazem disso; eu não: ANSELMO
somos ouro doutro cunho. Que é filho de Dom Tomás?
Invoco por testemunho Desafio-o, se é capaz,
quanto há nobre em Aragão. e tome conta consigo.
Haverá dezesseis anos
ANSELMO (para ver como eu sei disto)
Cautela, moço, cautela, que o marquês de Guvilhanos
que vai de mal a pior! passou a cear com Cristo.
Advirta que eu sei de cor Foi Dom Tomás que em duelo
todo o Aragão e Castela. lhe fez com três estocadas
pagar palavras soltadas
DUARTE contra ele em seu castelo.
Dou parabéns ao meu fado. Houve de esquivar-se às iras
Conhecia um general dos parentes do defunto,
D. Tomás Reus Carvajal que em numeroso conjunto,
Osuna Valdez del Prado? e coas mais torpes mentiras,
foram impetrar del-rei
ANSELMO a pena do matador.
Se o conheci! Conheci-o Ei-lo em campo, ei-lo em furor
como ninguém. todo o exército da lei.
(Nem Hércules contra dois,
quanto mais contra quarenta)
HARPAGÃO A ocultas se embarca pois
Que descoco! sob outro nome que inventa,
Que tem todo esse gentio levando a prole, a consorte,
co meu roubo? e bom ouro.

ANSELMO DUARTE
Espere um pouco Exatamente.
e veremos. Ouça o resto a quem não mente.
(Harpagão, vendo duas velas de cebo acesas em O resto foi desta sorte:
cima da mesa do escrivão Felisberto, assopra uma) Davam-se já por seguros
em costas de Portugal,
FELISBERTO (ironicamente) quando dos céus roxo-escuros
Obrigado! cai medonho temporal.
Baldada é toda a manobra.
ANSELMO Luta o vaso, e vai-se a pique;
Não o interrompa! (Para Duarte) Dizia... mas quando tudo soçobra
a Deus praz que ileso fique,
DUARTE em braços de um servo seu,
Que D. Tomás el Del Prado um menino. Rompe a alva;
foi meu pai. vê-se perto um lenho, e os salva.
Esse menino sou eu.
O capitão generoso
ANSELMO (rindo)
julgou ser a providência
Seu pai?!
quem punha a minha inocência
no seu regaço piedoso.
DUARTE Educou-me como a filho.
Não ria! Depois, mal cheguei à idade,
Foi meu pai; tenha a certeza! como das armas ao brilho
eu sonhava heroicidade,
ANSELMO permitiu-me esse exercício,
E eu dou-lha, por minha vida, em que assaz me avantajei.
Por um acaso enfim sei salvo o pai e o filho; a mãe
quanto o fado me é propício: salva coa filha também.
Meu pai vive: o que eu chorara
sepulto no mar profundo DUARTE
ainda pertence ao mundo. Mas como? quem à violência
Outro navio o salvara. vos roubou do mar sanhudo?
Mas onde estava ao presente?
Ninguém no sabia. Voto D. MARIANA
buscá-lo incessantemente O pobre de um pescador
té ao pólo mais remoto. em terra nos veio pôr.
Chego aqui; vejo a beleza No seu nada achámos tudo.
que desluz a quantas vi;
roubo-a do mar à braveza:
salvo-a, salvo-a! Então daqui DUARTE
não pude mais arrancar-me: Depois?
fiquei-a sempre velando.
Por mim outro eu próprio mando D. MARIANA
que busque a meu pai; que o arme Já que mo perguntas,
de valor contra a ventura vivemos de costurar,
que lhe vai anunciar: sozinhas, sempre a chorar...
que seu filho, escapo ao mar, mas a chorar sempre juntas.
vive, e aguarda-o com ternura.
ANSELMO
ANSELMO Filha, filho, filhos meus!
Mas a prova? onde está ela? Vinde, correi, abraçai
a prova de que isto tudo o vosso ditoso pai.
nos sai de um homem sisudo, Tornou a ajuntar-nos Deus.
e não é simples novela? Mas vossa mãe onde está?
Quero-a ver; levai-me a ela!
DUARTE Filha, filha! como és bela!
A primeira que lhe eu dou Duarte, és um homem já!
é o próprio capitão
que das vagas me salvou. HARPAGÃO (para Anselmo)
A segunda, o servo ancião E o senhor (em santa paz
que igualmente existe ainda. lho pergunto), o que é por fim?
Terceira, este bracelete D. Anselmo ou D. Tomás?
coa materna imagem linda; D. Pedro ou D. Serafim?
e neste anel de sinete
as nossas armas, e à volta ANSELMO
de meu pai as iniciais. Fui D. Tomás. Quando o fado
me obrigou a expatriar-me,
D. MARIANA para melhor ocultar-me
Vive Deus! que espero eu mais? fiz-me Anselmo; ando crismado.
O irmão, que aos meus braços volta! Com este nome fingido,
sem deslustrar jerarquias,
DUARTE tenho empregado os meus dias
Minha irmã! no comércio e enriquecido.
Perdi muito em Aragão,
mas o que salvei do mar
D. MARIANA permitiu-me aqui dobrar
Sim, sim. Apenas o meu haver; e hoje então
te ouvi a voz, arraiou-se quisera-o quadruplicado,
co sentimento mais doce pois achei os meus herdeiros,
esta alma há já tanto em penas. o meu sangue tão chorado,
Vamos, vamos já levar os meus gostos derradeiros.
vida, alegria e conforto Deus bem viu como eu vivia
à mãe que te cria morto no meio desta cidade
e a quem vens ressuscitar! em profunda soledade
quanto é grande a Providência! e absorto em melancolia.
Por isso, amigo Harpagão,
é que eu lhe ouvi sem horror SEBASTIÃO
propostas de uma união, Eu ’stava bêbado e triste
que me punha em casa amor. e não tinha a idéia clara.
Talvez cuidasse que via,
HARPAGÃO e fosse engano dos olhos,
Visto isso, aquele sujeito (à parte) Pilho pauladas aos molhos.
é seu filho? (alto) Nem eu sei o que dizia.

ANSELMO HARPAGÃO
E minha glória. O depoimento ali ’stá
por mão do nosso escrivão.
HARPAGÃO
Então, quem me paga a história DUARTE
há-de ser o pai. E capaz me julgará
de tão vergonhosa ação?
FELISBERTO (sempre à mesa)
Direito! HARPAGÃO
Ou capaz ou incapaz,
ANSELMO para ali o meu dinheiro!
Que história?
FELISBERTO
HARPAGÃO Em que ficamos?
O roubo.
HARPAGÃO
ANSELMO Primeiro
Que roubo? responda-me D. Tomás!

HARPAGÃO CENA VI
Quatro contos bem contados.
Foi fartadela de lobo. Os mesmos, JÚLIO, TOMÁS (que vêm da
segunda porta da direita com o cofre embrulhado
ANSELMO num capote)
Mas esses dez mil cruzados
quem lhos roubou? não entendo. (Tomás vai para o fundo da cena, onde fica meio
encoberto pelo biombo)
HARPAGÃO (indicando Duarte)
Duarte. JÚLIO
Sossegue, e parabéns! o cofre, o seu tesouro
existe, achou-se.
DUARTE
Mentiu.
HARPAGÃO
Dá-mo. Onde o tens?
ANSELMO
Duarte,
quem ousou tal assacar-te? JÚLIO
O seu ouro
nunca lhe foi roubado; é seu, mal que disser
SEBASTIÃO (à parte) que Mariana é minha.
Ao meu santo me encomendo.
São Sebastião, meu santinho,
pelas vossas bentas frechas HARPAGÃO (à parte)
livrai-me de algumas brechas O cofre sem mulher,
nos lombos e no focinho. ou a mulher sem cofre. Eu, que não sou banana,
(vai para se esgueirar pela segunda porta da direita) resolvi: (alto para Júlio) — Dá-me a burra, e leva a
Mariana.
Mas tocar-lhe-ia alguém?
HARPAGÃO (chamando)
Vem cá, Sebastião; declara
segunda vez o que viste. JÚLIO
No cofre? esteja certo
de que nunca jamais foi nem sequer aberto.
(Para D. Mariana) Nada falta, Mariana! A tua mãe ANSELMO
consente. E mais que certo.
De lá venho: implorei-a; amor torna eloqüente;
convenci-a, e sem custo, a permitir-te a escolha HARPAGÃO
entre mim e meu pai. Nada há que enfim nos tolha. Bom.
(à parte) Sempre este D. Tomás merece bem o Dom.
D. MARIANA
Não sei. De um pai também depende o meu destino. ANSELMO
Corro a ver minha esposa. Acompanhem-me! É dia
JÚLIO para se me espelhar em todos a alegria.
Como! Pois tens... (Põem-se todos em ato de partir, pela primeira porta
da direita)
ANSELMO
Sou eu. FELISBERTO (levantando-se da mesa)
Alto lá! quem me paga?
D. MARIANA
Presente repentino, HARPAGÃO
que recebi de Deus, assim como em Duarte O quê?
recobrei um irmão.
FELISBERTO
JÚLIO (cumprimentando Anselmo) Toda esta escrita.
Senhor! (Para D. Mariana) Porém de que arte
se operou tal prodígio? HARPAGÃO
E ela de que nos serve?
D. MARIANA
Eu to direi. FELISBERTO
Essa agora é bonita!
ANSELMO Por que a mandou fazer? e em letra tão distinta?
Consente, com pena de peru, e graxa em vez de tinta?
meu amigo Harpagão, na dita desta gente?
O meu sangue co seu já vê que se harmoniza. HARPAGÃO
Dê-se Mariana a Júlio, e Duarte a Luísa. Bem. Não quero lesá-lo, e pago o seu trabalho.
Dou-lhe para enforcar este grande bandalho.
HARPAGÃO (indicando Sebastião)
Primeiro, venha o cofre; antes não dou resposta.
SEBASTIÃO
JÚLIO Falo verdade, e apanho! Encaixo a minha peta,
O cofre, intato e são, vem já correndo a posta. e enforcam-me! Que mundo! O diabo és tu, forreta!

HARPAGÃO ANSELMO (para Harpagão)


Eu dinheiro não dou; não tenho. Se faz conta Há de perdoar-lhe, amigo. Aquilo é um parvo.
casar sem dote, bem.
SEBASTIÃO
ANSELMO Um tonto.
Sem lhe fazer afronta,
doto eu os dois casais. DUARTE
Até eu lhe perdôo.
HARPAGÃO
E obriga-se por todas HARPAGÃO (para Anselmo)
quantas despesas traz o casamento e as bodas? O amiguinho está pronto
a pagar ao escrivão?
ANSELMO
Com mil vontades. ANSELMO
E a tudo quanto queira.
HARPAGÃO (Dá dinheiro a Felisberto, que sai pela primeira
Certo? porta da direita, fazendo grandes cortesias)
JÚLIO que lá por ter falhado aquele casamento,
Vem, Tomás! eu não desmereci. Eu fiz-lhe quanto pude.

TOMÁS HARPAGÃO
Ei-la aqui. Cento e dois, cento e três...
(Tomás vem em passo grave e com ar solene;
descobre a caixa e a apresenta a Harpagão) GUIOMAR
Que diz?
HARPAGÃO (arremessando-se à caixa)
A minha feiticeira! HARPAGÃO
(Tira alvoroçado uma chavinha do bolso; abre de Que haja saúde.
repente a caixa, e encara o ouro com a maior
complacência) GUIOMAR
(abanando) E traz o peso, traz! é isto mesmo. Agora Para se consolar, se quer a viscondessa,
toca a ver se está certo, e adeus. pague e trago-lha já.

ANSELMO HARPAGÃO
Vamos embora. Forte quebra-cabeça!
Já me perdi na conta. A viscondessa, tu
HARPAGÃO e quanta mulher há, vão-se com Belzebu.
Olhe cá, Dom Tomás, eu é que falto à festa. (batendo na caixa)
A minha esposa é esta. A esta é que eu me obrigo
ANSELMO a ser sempre leal.
Por quê?
GUIOMAR (fazendo-lhe figas e correndo para a
HARPAGÃO primeira porta da direita)
Tenho um chapéu que para nada presta, Vai! some-te, inimigo!
e casaca não tenho. Fica-te como um cão, sozinho ao desamparo,
suicida vil! demente! infame! avaro! avaro!
ANSELMO
Arranje-se de tudo,
e remeta-me o rol que eu pago.
***
HARPAGÃO (à parte)
Ih, que lanzudo
tão bom de tosquiar!
(Sai Anselmo; atrás dele, D. Mariana pelo braço de
Júlio; D. Luísa pelo de Duarte; Sebastião e Tomás
de braço dado, atrás de todos, e saltitando. Nota Editorial
Harpagão senta-se no chão a contar o dinheiro)
Por fidelidade à fonte digitalizada, foi, na medida
GUIOMAR do possível, mantida a diagramação e o crédito,
Senhor Dom Harpagão! como tradutor, a António Feliciano de Castilho.

HARPAGÃO (sem olhar para ela) A bem da verdade, e para não induzir o leitor a
Nove, dez... Que lhe quer? erro, é necessário deixar claro que não se trata, aqui,
de uma mera tradução, mas de uma auténtica
recriação da obra de Molière, pelo gênio de Castilho.
GUIOMAR
Sou a Guiomar.
O trama é toda de Molière, e quem leu ou ler o
original não estranhará a história. Mas encontrará um
HARPAGÃO
gosto novo, uma, diríamos, adaptação, ou se
E então?
preferirem, uma releitura da obra de Molière.
Vinte e dois, vinte e três... Que é que pretende?
Para os puristas, recomenda-se a leitura do
GUIOMAR
original, em francês, que pode ser facilmente
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