Sei sulla pagina 1di 12

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

ARTIGO DE REVISÃO
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

Acta Med Port 2006; 19: 257-268

PAPEL DO CEREBELO NAS FUNÇÕES


COGNITIVAS E COMPORTAMENTAIS
Bases Científicas e Modelos de Estudo

PAULO BUGALHO, BERNARDO CORREA, MIGUEL VIANA-BAPTISTA


Serviço de Neurologia. H. Egas Moniz. Serviço de Psiquiatria, H. S. Francisco Xavier. Departamento de Psiquiatria e Saúde
Mental. Faculdade de Ciências Médicas. Lisboa

RESUMO
Classicamente considerado responsável pela coordenação motora, o cerebelo tem sido
ultimamente implicado também em funções cognitivas. Estudos anatómicos sugerem
que o cerebelo possa estar ligado a áreas associativas dos hemisférios cerebrais (regiões
pré-frontal, occipito-parietal, temporal e límbica), através de um circuito em ansa fechada.
Trabalhos com métodos funcionais mostraram activação do cerebelo (vérmis e região
posterior dos hemisférios cerebelosos) na realização de tarefas cognitivas, não
relacionadas com actos motores. Estudos de neuropatologia e estudos de imagiologia
morfológica e funcional, revelaram alterações do cerebelo em doenças cognitivas e
comportamentais do neurodesenvolvimento, como a Perturbação de Hiperactividade e
Déficite de Atenção, o Autismo e a Esquizofrenia. A avaliação neuropsicológica de
doentes com patologia degenerativa do cerebelo mostrou também defeitos cognitivos,
particularmente em funções executivas. Investigação realizada em crianças e adultos
com lesões focais do cerebelo, revelou uma constelação característica de déficites,
afectando funções executivas, visuo-espaciais, de linguagem e comportamentais,
permitindo discriminar com maior precisão a função cognitiva de áreas determinadas do
cerebelo. No entanto, muito permanece ainda por explicar no que se refere ao contributo
específico do cerebelo para as funções mentais superiores, para o que concorre a
dificuldade em encontrar um modelo de estudo adequado. Os estudos com modelos
animais fornecem informação sobre as ligações anatómicas entre o cerebelo e regiões
do córtex cerebral responsáveis pelas funções cognitivas, mas é incerta a transposição
destes dados para o modelo humano. As técnicas de imagiologia funcional, embora
permitam investigar em tempo real e directamente no cérebro humano, estão ainda em
fase de aperfeiçoamento e não são suficientemente discriminativas para resolver por
completo as dúvidas dos investigadores. As doenças degenerativas e do
neurodesenvolvimento afectam outras regiões cerebrais além do cerebelo, pelo que
não são o melhor modelo para o estudo das funções cognitivas do cerebelo. Os doentes
jovens com lesões vasculares isoladas do cerebelo constituem um modelo clínico útil
para investigar o papel do cerebelo na cognição, por permitirem isolar no tempo e no
espaço o contributo específico deste órgão para os défices cognitivos encontrados.

Palavras-chave: cerebelo, funções cognitivas, comportamento, acidente vascular cerebral

Recebido para publicação: 15 de Fevereiro de 2006 257


PAULO BUGALHO et al

SUMMARY
ROLE OF THE CEREBELLUM IN COGNITIVE AND BEHAVIOURAL
CONTROL: SCIENTIFIC BASIS AND INVESTIGATION MODELS
Although classically considered to be involved only in motor coordination, the
cerebellum has more recently been implicated also in cognitive control. Anatomical
studies have shown the cerebellum to be linked to pre-frontal, occipito-parietal and
temporal cortical associative areas, as well as to the limbic system, in a closed loop
circuit. Functional studies revealed activation of the cerebellum during performance
on cognitive tasks not related to movement. Pathological, morphological and functional
imaging studies have shown the cerebellum to be one of the cerebral structures affected
in some of the cognitive and behavioural developmental disorders, like Attention
Deficit with Hyperactivity Disorder, Autism and Schizophrenia. Neuropsychological
studies in patients with degenerative cerebellar ataxia also showed cognitive
dysfunction, mainly of the executive type. Investigation performed with child and
adult patients with focal lesions of the cerebellum has helped to better discriminate the
cognitive role of specific areas on the cerebellum, revealing a characteristic constellation
of cognitive deficits, affecting executive, visual-spatial, linguistic and behavioural
functions. However, much remains to be explained on the precise nature of cerebellar
contributions to cognition, in part because of the difficulty in finding adequate
investigation models. Studies performed on primates have contributed to better
delineate the connections between the cerebellum and cortical cognitive domains, but
is always uncertain to transfer this kind of data to the human brain. Functional imaging
studies although useful to investigate directly in the human model and in real time, are
not yet able to completely isolate cerebellar cognitive and behavioural functions.
Degenerative and developmental disorders are not the most adequate model for studying
cerebellar influence on higher mental functions, as they affect other regions besides
the cerebellum. Young patients with isolated cerebellar stroke provide a useful clinical
model for investigating cerebellar cognitive functions, because they permit to isolate
in space and time the specific contribution of the cerebellum to the cognitive deficits.

Key-words: cerebellum, cognitive functions, behaviour, stroke

A caracterização dos mecanismos que regem as fun- mas funções cognitivas, contribuindo com elementos
ções mentais superiores (linguagem, memória, cálcu- específicos para um resultado comportamental que é
lo, orientação visuo-espacial, funções executivas) per- feito da combinação de várias operações.
manece como um dos maiores desafios das As ligações do cerebelo com diversas regiões do
neurociências. O aprofundamento da investigação sistema nervoso central são conhecidas desde há mui-
nesta área tem vindo a alargar sucessivamente o cam- to e explicam a participação deste órgão em múltiplas
po de estudo. Embora classicamente o controlo das funções cerebrais. Sabe-se, desde há várias décadas,
funções cognitivas tenha sido atribuído exclusivamen- que o cerebelo tem um papel essencial na coordena-
te a determinadas áreas do córtex cerebral (áreas de ção motora, na articulação verbal e no controlo dos
associação), trabalho recente tem atribuído papel a movimentos oculares, participando ainda no controlo
circuitos envolvendo também estruturas subcorticais. do equilíbrio e das funções autonómicas. As altera-
O conceito de rede neuronal propõe que áreas distan- ções relacionadas com as lesões do cerebelo encon-
tes do cérebro possam participar de forma diversa, atra- tram-se há muito reunidas sob a designação de sín-
vés de vias e circuitos próprios, no controlo das mes- droma cerebeloso, o qual é constituído essencialmen-

258
PAPEL DO CEREBELO NAS FUNÇÕES COGNITIVAS E COMPORTAMENTAIS

te por sintomas e sinais motores: desequilíbrio na mar- dorso-lateral 4 . O mesmo foi encontrado em relação a
cha, descoordenação no movimento dos membros, al- áreas específicas do córtex parietal postero-inferior5.
teração dos movimentos oculares, disartria. Recente- Estes dados permitem estabelecer, à semelhança do
mente, o cerebelo tem sido implicado também no con- que está descrito para o sistema motor, um circuito
trolo de diferentes funções cognitivas. Investigação cerebelo-cerebral, constituído por vias cruzadas: uma
em indivíduos saudáveis e em doentes com patologia ansa aferente cortico-ponto-cerebelosa e uma ansa
do cerebelo, veio lançar as bases anatomo-fisiológi- eferente cerebelo-talámo-cortical, através das quais o
cas e clínicas para o conhecimento das funções cog- cerebelo poderá receber informação bem como exercer
nitivas do cerebelo. a sua influência sobre áreas hemisféricas corticais res-
Os autores começam por rever os dados anátomo- ponsáveis por diversas áreas da cognição (figura 1).
-fisiológicos e os estudos funcionais realizados neste
área, analisando de seguida as alterações documenta-
das em diferentes patologias. Finalmente, são revis-
tos os principais modelos de estudo utilizados, dando
especial relevo aos modelos clínicos, nomeadamente
às alterações cognitivas relacionadas com as lesões
vasculares isoladas do cerebelo.

FUNDAMENTOS ANÁTOMO-FISIOLÓGICOS
A descoberta de que o cerebelo se encontra liga-
do, por vias neuronais próprias, não só a áreas
corticais motoras como a áreas de associação, envol-
vidas em funções mentais superiores, constitui um dos
principais argumentos anatómicos das teorias cogni- Fig. 1 - Representação esquemática simplificada (não
tivas do cerebelo. Experiências em primatas têm utili- anatómica) dos circuitos cérebro-cerebelo-cérebro

zado técnicas que permitem estudar o transporte trans-


-neuronal de substâncias marcadas desde regiões ESTUDOS IMAGIOLÓGICOS FUNCIONAIS
corticais até ao seu ponto de destino no tronco cere- Os estudos imagiológicos funcionais permitem
bral (protuberância), bem como do cerebelo para as quantificar alterações metabólicas ou do fluxo sanguí-
mesmas regiões do córtex. Foram encontradas ligações neo cerebral em regiões discretas do encéfalo (que se
com diversas regiões do córtex pré-frontal, responsá- pensa serem proporcionais ao grau de actividade des-
veis por funções executivas (memória de trabalho, sas zonas), e relacioná-las, em tempo real, com a reali-
atenção, inibição de comportamentos e processos de zação de tarefas escolhidas para simularem determina-
decisão baseados em estratégias cognitivas), memó- das funções cerebrais (paradigmas). Deste modo, é
ria verbal e linguagem 1. Partilhando este mesmo cir- possível estudar indirectamente a actividade do cere-
cuito, foram ainda descritas aferências provenientes belo durante a realização de paradigmas cognitivos.
do córtex parietal posterior, temporal superior e mesial Estudos realizados com técnicas de SPECT, PET e
e região occipito-temporal 2 e de regiões límbicas 3 . RM funcional têm demonstrado activação de diversas
Tratam-se de áreas multimodais, de associação, áreas do cerebelo em tarefas cognitivas. Alle, et al
implicadas na integração de informação sensitiva e demonstraram activação de zonas do cerebelo poste-
sensorial, organização visuo-espacial, memória visual rior em tarefas que exigiam atenção visual não relacio-
e controlo do comportamento e da motivação, respec- nada com aprendizagem de actos motores 6. Trabalhos
tivamente. Vários trabalhos têm demonstrado também recentes evidenciaram um padrão lobular de activação
a existência de conexões cruzadas no sentido cerebelo- do cerebelo em tarefas de memória de trabalho verbal,
-tálamo-córtex, entre o núcleo dentado (principal nú- interessando áreas do córtex cerebeloso inferior7. Tem
cleo efector do cerebelo) e regiões do córtex préfrontal sido ainda evidenciada activação do cerebelo em tare-

259
PAULO BUGALHO et al

fas de linguagem8. Estes e outros trabalhos permitiram perda marcada de células de Purkinje, sem alteração
que Schmamann et al propusessem, num trabalho de significativa do lobo anterior do cerebelo 11 . Métodos
metanálise de estudos funcionais, um mapeamento to- de neuroimagem viriam também a demonstrar altera-
pográfico-funcional do cerebelo, segundo o qual acti- ção estrutural do cerebelo em doentes com autismo,
vidades sensitivo-motoras estariam relacionadas mai- nomeadamente dos lóbulos VI a VII do vérmis 12 e dos
oritariamente com o lobo anterior enquanto o lobo pos- hemisférios cerebelosos 13 . Estudos funcionais mos-
terior seria activado predominantemente por tarefas traram alteração dos padrões de activação do cerebe-
cognitivas (linguagem, memória verbal, atenção, apren- lo em doentes com autismo, nomeadamente
dizagem) 9. Daqui a ideia, avançada por estes autores, hipoactivação em tarefas de atenção não motora, no
de um cerebelo tripartido : motor (cerebelo anterior), lobo VI14.
cognitivo (porção posterior dos hemisférios Por fim, é notável a semelhança entre a síndrome
cerebelosos) e límbico (porção posterior do vérmis). autista e a síndrome comportamental desenvolvido por
crianças operadas a tumores da fossa posterior, carac-
CEREBELO E NEURO-DESENVOLVIMENTO: terizado por intolerância à proximidade de outros,
AUTISMO, ESQUIZOFRENIA E PERTURBAÇÃO DE evitação de todo o contacto físico e visual, movimen-
HIPERACTIVIDADE E DÉFICIT DE ATENÇÃO tos rítmicos e repetitivos, linguagem limitada a algu-
(PHDA) mas expressões estereotipadas e ausência de
empatia15.
Autismo
O autismo é uma doença neuropsiquiátrica da in- Perturbação de Hiperactividade e Défice de Aten-
fância, geralmente com início antes dos três anos e ção (PHDA)
que se caracteriza por um atraso ou uma total ausência A PHDA é uma síndrome neuro-psiquiátrico com
do desenvolvimento da comunicação verbal (atraso início na infância, afectando cerca de 5% da popula-
ou ausência de linguagem, linguagem estereotipada ção em idade escolar e prolongando-se, em 30 a 50%
ou idiossincrática, incapacidade de iniciar ou susten- dos casos, até à idade adulta 16,17. Do ponto de vista
tar uma conversa), dificuldades graves e mantidas na clínico a PHDA manifesta-se fundamentalmente por
interacção social (ausência de reciprocidade afectiva três sintomas comportamentais nucleares: atenção
e pobreza de comportamentos e formas de comunica- deficitária (distractibilidade e dificuldade em apreen-
ção não verbais como linguagem gestual, contacto der detalhes), impulsividade (impaciência, dificuldade
visual, expressão facial, etc), padrões de comporta- em adiar respostas/recompensas, desleixo, impetuosi-
mento e interesses restritos (maneirismos, movimen- dade) e hiperactividade (excesso de locomoção,
tos repetitivos ou estereotipados, preocupação exces- irrequietude, agitação motora inadequada) 16,17 . Estes
siva com partes ou características não funcionais de sintomas podem estar presentes na sua totalidade ou
objectos ou rotinas, preocupação excessiva e exclusi- com predomínio de um ou de outro, definindo-se as-
va por um tema restrito, etc) e ainda pobreza do pen- sim três subtipos: Défice de Atenção, Hiperactivo/Im-
samento abstracto de tipo simbólico e imaginativo. Qua- pulsivo e Misto. Na idade adulta a PHDA está associ-
se sempre existem importantes dificuldades de apren- ada a importante comorbilidade psiquiátrica (pertur-
dizagem sendo frequente mas de modo nenhum invariá- bações afectivas e de ansiedade, abuso de substânci-
vel um baixo QI. as) 16.
Actualmente, extensa investigação realizada nes- Quanto à sua etiologia, tem-se vindo na última dé-
ta área tem posto a descoberto diversas regiões cere- cada a impor o conceito da PHDA como uma perturba-
brais como potencialmente envolvidas na génese do ção funcional neuro-ontogénica das vias fronto-
autismo, incluindo o sistema límbico, amígdala, áreas -subcorticais 17 . Estudos imagiológicos estruturais e
pré-frontais e cerebelo 10 . Esta foi uma das primeiras funcionais têm demonstrado alterações nas regiões
regiões a ser implicada na doença. Estudos de autóp- pré-frontais, cingulum, gânglios da basem corpo
sia revelaram atrofia do córtex do neo-cerebelo, com caloso e volume cerebral total 17-19 .

260
PAPEL DO CEREBELO NAS FUNÇÕES COGNITIVAS E COMPORTAMENTAIS

A associação da PHDA com alterações estruturais vida de cerca de 1% e habitualmente com início no
ou funcionais do cerebelo permanece pouco explora- final da segunda década de vida (5 a 10 anos mais
da. Alguns estudos imagiológicos na PHDA têm de- tarde no sexo feminino) 23 . As manifestações clínicas
monstrado de forma consistente cerebelos de menor são muito variáveis e pautam-se sobretudo por altera-
volume quando comparados com os de indivíduos sau- ções da percepção (alucinações, sobretudo auditivas
dáveis, sobretudo no que respeita aos segmentos complexas), da forma e conteúdo do pensamento (pen-
posterio-inferiores dos hemisférios e do vérmis 18,20 . samento descarrilado ou com afrouxamento das asso-
Em pelo menos um estudo foi encontrada uma correla- ciações, ideias delirantes multitemáticas), da lingua-
ção negativa significativa entre o volume cerebeloso gem, da motricidade (catatonia, bradicinésia,
e o desempenho em provas de atenção 18 . Os poucos estereotipias), das funções conativas (avolição, ambi-
estudos funcionais têm também apontado para uma tendência), da afectividade e das competências inter-
menor actividade metabólica nestas regiões19,21. É ain- pessoais (embotamento afectivo, isolamento social)23.
da notável como os relatos de alterações cognitivo- Do ponto de vista cognitivo não será exagerado afir-
-comportamentais em indivíduos adultos com lesões mar que quase todas as funções se encontram altera-
do cerebelo posterior se assemelham muitas vezes a das com particular destaque para as alterações execu-
uma caricatura do quadro cognitivo-comportamental tivas (planeamento da acção, inibição, flexibilidade
que caracteriza a PHDA no adulto-impulsividade, os- cognitiva, monitorização, raciocínio abstracto), da me-
cilações do humor, dificuldades na gestão do tempo e mória (dificuldades na organização semântica do con-
no controlo da atenção sustentada e dividida, dificul- teúdo da memória e sobretudo em provas de memória
dades em lidar com conceitos abstractos e na produ- de trabalho verbal e visuo-espacial), da atenção (difi-
ção e organização assim como na apreensão e repro- culdades no controlo de intrusões, na atenção dividi-
dução do conteúdo ideativo de textos escritos, difi- da e sustentada, na mudança de set, entre muitas ou-
culdades em provas de inibição, de flexibilidade cog- tras) e da linguagem (dificuldades sobretudo em pro-
nitiva, memória de trabalho ou controlo motor comple- vas de fluência mas sem alterações nas provas de ri-
xo, para referir apenas as semelhanças mais eviden- queza de vocabulário) 24,25 . Em termos anatomo-
tes22. Este paralelismo entre o síndrome comportamen- -patológicos e imagiológicos estão descritas altera-
tal orgânico secundário a lesões do cerebelo posterior ções do volume ventricular, do volume cerebral total e
no adulto e a forma adulta da PHDA parece ele próprio ainda do volume e actividade metabólica dos lobos
reproduzir o paralelismo ainda mais claro entre a sín- temporal e frontal, estruturas límbicas, tálamo e dos
drome cognitivo-comportamental secundário a lesões gânglios da base26. O cerebelo tem sido mais raramen-
cerebelosas posteriores em crianças e o autismo, o que te explorado no contexto da esquizofrenia. Os estu-
levanta a interessante hipótese de estas duas patolo- dos publicados têm com alguma consistência revela-
gias corresponderem a diferentes graus de gravidade do menor volume cerebeloso total, assim como menor
de disontogenia do cerebelo (mais precoce e grave no volume do vermis, atrofia cerebelosa e atenuação da
autismo, mais tardia e portanto menos disseminada na normal assimetria hemisférica27 . Vários estudos ima-
PHDA). Por seu lado, os indivíduos com PHDA ten- giológicos funcionais, utilizando paradigmas cogniti-
dem a apresentar alterações da coordenação motora vos vários, demonstraram hipoactividade fronto-
de natureza cerebelosa tais como dificuldades no equi- -tálamo-cerebelosa em doentes com esquizofrenia 27 .
líbrio, na execução de movimentos rápidos alternados, Por outro lado os sinais neurológicos discretos fre-
na caligrafia ou no controlo métrico e temporal dos quentemente presentes nestes doentes – ligeira ataxia
movimentos21. da marcha, dificuldades na coordenação fina dos mem-
bros, disdiadococinésia, tremor intencional ligeiro,
Esquizofrenia dismetria dos movimentos oculares sacádicos – são
A esquizofrenia é uma perturbação psiquiátrica gra- também eles altamente sugestivos de patologia ou
ve, poligénica multifactorial e fenotipicamente com- disfunção cerebelosa. Por fim não só é frequente o
plexa e heterogénea, com uma prevalência ao longo da aparecimento de sintomas psicóticos (sobretudo

261
PAULO BUGALHO et al

ideação delirante) em indivíduos com lesões cerebelo- SCA2 e a SCA3.


sas medianas 28,29, como existe uma grande semelhan- Burk et al encontraram defeitos de função executi-
ça entre muitas das alterações cognitivo-comportamen- va e de memória verbal em 14 doentes com SCA1 quan-
tais de doentes cerebelosos e a sintomatologia nega- do comparados com controlos saudáveis 31 . Storey et
tiva da esquizofrenia: embotamento afectivo, pensa- al encontraram defeitos cognitivos do tipo executivo
mento concreto, pobreza de discurso e fluência, pas- em doentes com SCA2 32 . Também em doentes com
sividade, avolição e isolamento, dificuldades na sín- Doença de Machado Joseph (SCA3) têm sido encon-
tese e sequenciação lógica de informação, dificulda- trados alterações cognitivas e comportamentais.
des visuo-espaciais 22 . Zawacki viria a encontrar alteração em provas de aten-
ção, fluência verbal, função executiva, alteração com-
FUNÇÃO COGNITIVA NAS DOENÇAS DEGENE- portamental de tipo frontal (apatia ou desinibição) bem
RATIVAS DO CEREBELO como depressão. Nenhum dos doentes apresentava
As doenças degenerativas cerebelosas constitu- critérios para demência 33 . Neste trabalho, os autores
em um conjunto heterogéno de patologias, nas quais discutiram a origem topográfica dos défices, concluin-
o cerebelo é em geral apenas uma das estruturas afec- do ser difícil destrinçar entre as alterações eventual-
tadas. Clinicamente, manifestam-se por um quadro len- mente provocadas por degenerescência do núcleo
tamente progressivo de descoordenação motora, a que dentado do cerebelo daquelas provenientes de lesão
se acrescentam, de forma variável consoante o tipo, dos gânglios da base, também presente nesta doença.
sinais e sintomas de outros sistemas neurológicos (pi- Nem todos os trabalhos têm sido unânimes em en-
ramidais, extra-piramidais, autonómicos, oculares). Ini- contrar alterações cognitivas nos doentes com dege-
cialmente agrupadas sob a designação abrangente de nerescência cerebelosa, como aconteceu com Dimitrov
atrofia-olivo-ponto-cerebelosa (OPCA) as ataxias ce- et al34. É no entanto de referir, que estes autores não
rebelosas degenerativas passaram em muitos casos a estudaram funções que frequentemente se encontram
serem classificadas segundo o defeito genético espe- alteradas nestes doentes, como a fluência verbal e fle-
cífico, a que entretanto o advento dos estudos xibilidade mental. Contudo, de um modo geral, o con-
moleculares deu acesso. A ataxia de Friedreich, de junto de investigações feito neste domínio, aponta
transmissão recessiva, e as ataxias-espinocerebelosas para a existência de defeitos cognitivos específicos
autossómicas dominantes, designadas no seu conjun- nos doentes com doença degenerativa do cerebelo,
to por SCAs (spino-cerebellar ataxia) são exemplos nomeadamente perda de função executiva.
de algumas das doenças para as quais dispomos já de
diagnóstico genético. EFEITO DAS LESÕES FOCAIS DO CEREBELO
A existência de disfunção cognitiva nos doentes NA COGNIÇÃO
com ataxia cerebelosa degenerativa é um conceito re- O cerebelo encontra-se sujeito também a patologia
cente. Em 1990, Berent et al avaliaram 39 doentes com de natureza vascular e tumoral. As lesões isquémicas
o diagnóstico genérico de OPCA, não tendo encon- do território vértebro-basilar afectam com frequência
trado diferenças significativas em provas de QI e me- o cerebelo, em geral com atingimento também de ou-
mória em relação ao controlo, quando corrigidas para tras estruturas cerebrais, como sejam o tronco cere-
o nível educacional. Valores significativamente mais bral, os gânglios da base e a porção posterior dos he-
baixos de fluência verbal foram atribuídos a dificulda- misférios cerebrais. Por vezes, porém, o cerebelo pode
des na articulação verbal 30 . O advento do estudo ser afectado isoladamente, como acontece nas lesões
molecular permitiu uma sistematização mais precisa das de etiologia embólica ou em casos de dissecção das
ataxias cerebelosas, facilitando também o estudo das artérias vertebrais, causas comuns de acidente
funções cognitivas. Vários trabalhos têm revelado vascular cerebral no jovem. O cerebelo é também fre-
défices cognitivos nas principais ataxias quentemente atingido por lesões hemorrágicas, mui-
espinocerebelosas (SCA) de transmissão dominante, tas vezes associadas a hipertensão arterial. Os aci-
nomeadamente nas mais comuns, como a SCA1, a dentes vasculares do cerebelo caracterizam-se pelo

262
PAPEL DO CEREBELO NAS FUNÇÕES COGNITIVAS E COMPORTAMENTAIS

aparecimento súbito de sinais cerebelosos e por ve- défices executivos, défices de memória visual, pertur-
zes de alteração do estado de consciência, provocada bação afectiva, relacionados principalmente com le-
por hidrocefalia hipertensiva secundária ao efeito de sões vérmianas 36. Riva et al 15 encontraram alterações
massa produzido pela lesão. Os tumores do cerebelo, semelhantes, chamando ainda a atenção para dois as-
podendo ocorrer também no adulto, são mais comuns pectos importantes: a dissociação entre casos de mu-
nas crianças, onde constituem uma das neoplasias tismo em que o componente motor parecia ter sido pre-
cerebrais mais frequentes. Nestes casos, a instalação ponderante e outros em que após ter sido recuperado
e evolução dos défices é mais lenta e o diagnóstico em o controlo da musculatura fonatória se mantinham al-
geral mais tardio. O síndroma da fossa posterior e o terações importantes da linguagem (agramatismo, per-
síndroma cognitivo afectivo do cerebelo foram alguns da de fluência verbal), sugerindo aqui uma contribui-
dos termos propostos para enquadrar o conjunto mais ção cognitiva para o mutismo; a importância da
ou menos regular de alterações cognitivas e compor- lateralidade das lesões, estando as lesões do hemisfé-
tamentais encontradas em doentes com lesões focais rio cerebeloso direito predominantemente relaciona-
do cerebelo. das com perturbação de funções linguísticas e de me-
mória verbal e as lesões do hemisfério cerebeloso es-
Síndroma da Fossa Posterior querdo relacionadas com dificuldade na realização de
O estudo das alterações cognitivas provocadas tarefas não verbais e de memória visual, achados es-
pela remoção de lesões neoplásicas em crianças tem tes que estão de acordo com a natureza cruzada das
também contribuído para um melhor conhecimento da vias descritas acima.
influência do cerebelo na cognição e comportamento.
O Síndroma de Mutismo Cerebeloso e Disartria Sub- O Síndroma Cognitivo-Afectivo do Cerebelo
sequente, ou síndroma da fossa posterior, é uma com- Também no adulto têm sido repetidamente encon-
plicação iatrogénica da cirurgia dos tumores da fossa trados defeitos cognitivos após lesões de áreas deter-
posterior, relacionada com neoplasias que invadem a minadas do cerebelo, quer de etiologia vascular quer
linha média ou em que é necessário praticar uma inci- de etiologia tumoral. Atig et al, estudaram três doen-
são no vérmis inferior. Afecta predominantemente cri- tes com lesões vasculares, tendo encontrado
anças com idade inferior a 10 anos e caracteriza-se disfunção visuo-construtiva, de memória e de apren-
pelo aparecimento tardio de mutismo, após 1 a 2 dias dizagem. Estas alterações eram acompanhadas por
de discurso normal, o qual é transitório e dá em geral hipoperfusão no hemisfério cerebral contralateral, de-
lugar a disartria grave. Esta regride por completo al- tectada por SPECT 37, a qual foi atribuída a hipometa-
guns meses após a cirurgia. Esta síndrome é habitual- bolismo, provocado por interrupção das conexões cru-
mente acompanhada, na fase aguda, de outros sinais zadas cerebelo-cerebrais (fenómeno denominado de
neurológicos, como sinais de vias longas ou síndroma diaschisis). Botez-Marquard et al descreveram um caso
pseudo-bulbar 35 . de perturbação cognitiva num doente com acidente
Os primeiros trabalhos concentraram a sua aten- vascular isquémico do território da artéria cerebelosa
ção no componente motor do síndroma, atribuindo as superior esquerda, acompanhado também de
alterações à lesão, directa ou por efeito do edema, de hipoperfusão em áreas fronto-parietais do hemisfério
vias integradas no controlo da fala e da musculatura cerebral contralateral. Neste caso foram encontrados
bulbar, embora fizessem já referência à existência de défices classicamente associados ao hemisfério direi-
défices de linguagem e alterações comportamentais. to, nomeadamente redução do QI não verbal, e valores
Estudos mais recentes centraram-se nas sequelas cog- abaixo do esperado em testes de organização visuo-
nitivas das lesões provocadas pela remoção de tumo- -espacial e capacidade visuo-constructiva38. Num tra-
res do cerebelo em crianças, vindo a encontrar uma balho recente, Fabro et al estudaram as funções men-
constelação bem definida de défices cognitivos e com- tais superiores de dois gémeos, que tinham sofrido
portamentais. Levisohn et al encontraram défices na lesões isquémicas do cerebelo, tendo encontrado
fluência verbal, défices de função visuo-espacial, disfunção cognitiva cerca de oito anos após o ictus,

263
PAULO BUGALHO et al

afectando predominantemente a linguagem 39 . Num dentes das sequelas motoras 41.


outro trabalho, foi avaliado um doente com enfarte no O estudo das sequelas cognitivas provocadas por
território da artéria cerebelosa postero-inferior à es- lesões vasculares isoladas da fossa posterior tem trazi-
querda, tendo sido encontradas alterações comporta- do informação importante para o estudo das funções
mentais (impulsividade, desinibição, verborreia e irri- do cerebelo, e tem vantagens sobre estudos feitos com
tabilidade) acompanhadas de defeito cognitivo de tipo populações mais heterogéneas, que envolvem também
visuo-espacial, que impediam o regresso do doente à doentes com doença degenerativa ou doentes opera-
sua ocupação profissional 40 . dos a neoplasias do cerebelo, nos quais é necessário
Estes e outros trabalhos têm produzido uma visão levar em conta as alterações eventualmente provoca-
heterogénea e fragmentada do espectro de alterações das pelo procedimento cirúrgico. Quase em simultâneo
cognitivas possivelmente relacionadas com lesões iso- com o trabalho de Schamann, Malm et al publicaram um
ladas do cerebelo. Estudos do tipo caso-controlo for- trabalho de investigação clínica42 no qual avaliaram
necem informação mais abrangente e permitem englo- vinte e quatro doentes jovens com acidentes vascula-
bar estes achados num todo coerente. Em 1998, res isquémicos da fossa posterior (cerebelo e/ou tron-
Schmamman e Sherman descreveram um conjunto de co cerebral), analisando a capacidade funcional, per-
alterações cognitivas em doentes com lesões focais do turbação cognitiva em várias áreas e a capacidade para
cerebelo (tumorais e vasculares), que denominaram de retomar a actividade profissional. Concluíram que em-
Síndroma Cognitivo Afectivo do Cerebelo. Avaliaram bora o estado funcional fosse bastante bom (a grande
prospectivamente um grupo de 20 doentes, 13 deles maioria dos doentes encontrava-se entre os estádios 0
com lesões isquémicas isoladas do cerebelo, a quem e 2 da escala de Rankin) cerca de metade não tinha reto-
aplicaram diversos testes neuropsicológicos padroni- mado a actividade profissional ao fim de um ano. A
zados. Encontraram um padrão homogéneo de disfunção avaliação das funções cognitivas mostrou valores abai-
cognitiva, afectando três áreas distintas: função execu- xo do esperado em provas de função executiva (parti-
tiva (perseveração, memória de trabalho, dificuldade em cularmente em provas de memória de trabalho) e de me-
mudar de estratégia cognitiva) capacidade de organiza- mória visuo-espacial. Neau et al encontraram resulta-
ção visuo-espacial (dificuldade visuo-constructivas, dos semelhantes, tendo encontrado também, por técni-
redução da memória visual) linguagem (agramatismo, cas de PET, fenómenos de diaschisis cerebelo-cerebral
disprosódia, diminuição da fluência verbal). Foram no- cruzada 43. Refira-se, por fim, que estes achados não
tadas alterações comportamentais proeminentes: têm sido confirmados por todos os estudos. Helmuth et
embotamento dos afectos, desinibição, impulsividade, al não encontraram diferenças entre o grupo de doente
jocosidade desapropriada. Os autores puderam ainda e o grupo controlo em provas de aprendizagem verbal e
encontrar relação entre as áreas anatómicas afectadas, atenção. Tratava-se, no entanto, de um grupo hetero-
a extensão da lesão e o padrão de alteração cognitiva e géneo de doentes, com patologias diversas (tumor, le-
comportamental, nomeadamente: maior intensidade e são vascular, atrofia), em que a bateria de testes neu-
frequência de alterações cognitivas nas lesões dos lo- ropsicológicos estava limitada apenas a algumas pro-
bos posteriores do cerebelo; alteração comportamental vas, testando apenas algumas das funções que se de-
mais marcada em lesões bilaterais ou extensas e na fase monstraram estar afectadas nestes doentes44.
aguda da doença; predominância de lesões vérmianas
nos doentes que apresentavam distúrbios afectivos 22. MODELOS PARA O ESTUDO DAS FUNÇÕES
Trabalhos posteriores viriam a confirmar estes acha- COGNITIVAS DO CEREBELO
dos, como um estudo realizado recentemente por A grande quantidade de trabalhos recentemente
Gottwald et al. Estes autores encontraram perda de flu- surgida, dos quais aqui se apontam apenas aqueles que
ência verbal e de capacidade visuo-construtiva, défice se julgaram mais representativos, reflete o interesse da
de atenção e de memória exigindo esforço, em doentes comunidade científica nesta matéria, bem como a difi-
submetidos a cirurgia do cerebelo por lesões culdade em encontrar um método eficaz para estudar o
hemorrágicas ou tumores. Estes défices eram indepen- cerebelo. Os modelos animais, em primatas, têm permi-

264
PAPEL DO CEREBELO NAS FUNÇÕES COGNITIVAS E COMPORTAMENTAIS

tido delinear as vias que unem o cerebelo às outras ocorrem em território definidos. O prognóstico cogniti-
estruturas encefálicas, ajudando a compreender a posi- vo destas lesões permanece um tema pouco explorado.
ção do cerebelo nas complexas redes neuronais regula-
doras das funções cognitivas. No entanto, é sempre LESÕES VASCULARES ISOLADAS DO CERE-
incerta a transposição destes conhecimentos para o BELO EM DOENTES JOVENS:
modelo humano. Em indívíduos saudáveis, as funções Modelo Clínico para o Estudo das Funções Cogni-
do cerebelo só podem ser avaliadas mediante métodos tivas do Cerebelo
indirectos, nomeadamente por estudos funcionais, que Uma revisão de alguns dos trabalhos já citados, no
embora forneçam uma noção visual das áreas afectadas que se refere à evolução dos defeitos cognitivos en-
carecem por enquanto de poder descriminativo na defi- contrados, revela um conjunto heterogéneo. No do-
nição das regiões activadas, sendo ainda difícil criar ente estudado por Botez-Marquard 38 , verificou-se re-
paradigmas que possibilitem estudar em separado a fun- gressão quase completa das alterações cognitivas oito
ção cognitiva do cerebelo. Os modelos clínicos podem a 11 meses após a lesão, apesar do estudo por SPECT
permitir alguma especificidade, assim seja escolhida a demonstrar ainda fenómenos de diaschisis cruzada no
patologia adequada para isolar as funções que preten- hemisfério cerebral contralateral. No caso clínico de
demos estudar. Em muitas das doenças em que o cere- dois irmãos gémeos com lesão vascular do cerebelo39,
belo se encontra afectado é impossível separar a con- a avaliação neuropsicológica foi realizada sete anos
tribuição relativa das estruturas cerebelosas para o sín- após o último evento vascular e mostrou défices resi-
droma. Nas doenças do neurodesenvolvimento, como duais de linguagem significativos. Os doentes tinham
o autismo, a esquizofrenia e a PDHA, são várias as áre- no entanto conseguido adaptar a sua actividade pro-
as apontadas como possivelmente responsáveis pelo fissional a estas alterações, levando uma vida social e
síndroma: as alterações encontradas nos estudos mor- familiar normal. Num dos casos descritos por Atig et
fológicos e funcionais parecem afectar redes neuronais al, a avaliação neuropsicológica foi feita 17 anos após
mais vastas do que o cerebelo. As doenças degenerati- o ictus, tendo sido encontrados múltiplos defeitos cog-
vas do cerebelo não constituem um modelo indicado nitivos37 .
para o estudo das funções cognitivas do cerebelo, por Vários autores têm sugerido que as alterações neu-
um lado pela existência de alterações motoras marcadas, ropsicológicas e comportamentais provocadas por es-
que perturbam o desempenho nos testes neuropsicoló- tas lesões se mantém após terem regredido as sequelas
gicos, e por outro pela natureza multi-sistémica da motoras, tendo importante influência no prognóstico
doença, que afecta, em grau variado, outras zonas do da doença. Schmahmann et al puderam fazer avaliações
sistema nervoso central responsáveis por funções cog- repetidas (um e quatro meses) em quatro dos 20 doen-
nitivas, como sendo o próprio córtex cerebral e, mais tes observados, verificando atenuação significativa das
frequentemente, os gânglios da base. Por outro lado, o alterações cognitivas, sendo as funções executivas as
facto de muitas destas patologias começarem em idade que menos tinham recuperado22. Malm42 reavaliou 15
tardia, dificulta a separação entre as alterações cogniti- doentes, a quatro meses e um ano após o ictus, tendo
vas eventualmente atribuíveis aos cerebelo e aquelas verificado que mais de metade (57%) não tinham ainda
provocadas pelo envelhecimento. As lesões tumorais regressado ao trabalho. Os autores encontraram ainda
não respeitam territórios definidos, são dificeis de lo- uma correlação inversa, estatisticamente significativa,
calizar no tempo e produzem complicações cirúrgicas entre a capacidade de retomar o trabalho aos 12 meses
que podem contribuir para os defeitos cognitivos. O e as provas de função cognitiva, nomeadamente a pro-
doente jovem com lesão vascular isolada do cerebelo va de cubos da WAIS (capacidade visuo-construtiva).
poderá constituir um bom modelo para o estudo das Segundo os autores, os défices demonstrados seriam
funções cognitivas do cerebelo, pela baixa probabilida- responsáveis por dificuldade na adaptação dos doen-
de de patologia prévia do SNC, por ser possível deter- tes ao meio exterior e consequentemente à actividade
minar com precisão o momento em que ocorreu a lesão profissional, por perturbarem a capacidade em resolver
e sobretudo por se tratarem de alterações focais, que problemas e gerar estratégias cognitivas eficazes. Neau

265
PAULO BUGALHO et al

et al concluíram que os defeitos cognitivos encontra- ção e hiperactividade. A avaliação neuropsicológica terá
dos em doentes com lesões isquémicas da fossa poste- de abranger as diversas funções executivas (incluindo
rior eram transitórios, embora na verdade não tivessem provas de atenção, flexibilidade mental, memória de tra-
encontrado diferenças estatisticamente significativas balho e fluência verbal, com especial incidência nestas
entre a avaliação na fase aguda e a avaliação após um últimas, visto serem as mais consistentemente afecta-
ano43. Num trabalho mais antigo, Wallesch estudou os das nos estudos já realizados) e funções visuo-
efeitos a longo prazo (de oito até 61 meses após o ictus) -espaciais. Um projecto deste género contemplará ain-
das lesões do cerebelo numa grupo de 11 doentes (10 da instrumentos que permitam avaliar o grau de incapa-
com tumores do cerebelo, um com lesão vascular) e en- cidade provocado pela lesão cerebelosa bem como a
contraram alterações significativas em provas de fun- qualidade de vida do doente.
ção visuo-espacial. No entanto, os resultados poderão
ter sido significativamente ampliados pela existência de CONCLUSÃO
hipertensão intracraniana prolongada antes da remo- Os estudos anatómicos, ao revelarem as conexões
ção do tumor45. entre regiões específicas do cerebelo e áreas associati-
Da análise dos estudos já citados sobressai, além vas dos hemisfério cerebrais, e os estudos funcionais
da discrepância de resultados (e bem assim de metodo- do cerebelo, mostrando a activação daquele em tarefas
logia) a inexistência de trabalhos que avaliem as altera- não motoras, permitem pensar que este não esteja rela-
ções cognitivas a longo termo das lesões vasculares cionado apenas com o controlo do movimento, mas tam-
do cerebelo em adultos. O estudo do prognóstico a lon- bém com o controlo de funções cognitivas específicas,
go prazo das alterações cognitivas provocadas pelas como sejam funções executivas, de linguagem, visuo-
lesões vasculares isoladas do cerebelo em doentes jo- -espaciais e comportamento. A demonstração de defei-
vens poderá preencher uma lacuna no conhecimento to cognitivo e comportamental em doenças do
das repercussões funcionais do AVC no jovem. Um es- neurodesenvolvimento em que o cerebelo está afecta-
tudo clínico deste género põe, por sua vez, algumas do, nas doenças degenerativas e nas lesões focais do
dificuldades. A detecção de defeitos cognitivos ligei- cerebelo, apoia esta concepção. O estudo dos efeitos
ros só terá relevância clínica se for acompanhado de cognitivos da lesões focais, em particular, tem permiti-
algum grau de incapacidade. Na determinação da inca- do, até certo ponto, um mapeamento clínico das áreas
pacidade, porém, influem não só os eventuais defeitos do cerebelo possivelmente relacionadas com a cognição,
cognitivos como a disfunção motora provocada pelas que está de acordo com os dados funcionais e anatómi-
lesões e bem assim as alterações psiquiátricas reactivas cos. Em relação a outras patologias, o estudo dos aci-
à própria doença e o grau de motivação na realização dentes vasculares isolados do cerebelo em doentes jo-
das provas. Estes factores devem ser levados em conta vens reúne vantagens importantes, por permitir isolar
quando se tenta medir as consequências reais da no tempo e no espaço as consequências cognitivas das
disfunção cognitiva. É ainda importante, mais ainda em lesões, constituindo um modelo clínico interessante
Portugal, onde nem todas as provas cognitivas utiliza- para um melhor conhecimento do contributo específico
das estão aferidas para a nossa população, a utilização do cerebelo para as funções mentais superiores.
de grupos de controlo adequados. A selecção de doen-
tes deve também ser criteriosa, pois a inclusão de doen- BIBLIOGRAFIA
1. SCHMAHMANN JD, PANDYA DN: Prefrontal cortex projec-
tes mais velhos ou com patologias crónicas, nos quais tions to the basilar pons: implications for the cerebellar contribu-
poderão existir défices provocados por outras causas, tion to higher function. Neuroscience Lett 1995;199(3):175-8
2. SCHMAHMANN JD, PANDYA DN: Course of fibers pathways
constitui um factor de enviezamento do estudo. O estu- to pons from parasensory association areas in the rhesus monkey.
do comportamental deverá incluir escalas de psicopa- J Comp Neurol 1992;326(2):159-79
3. VILENSKY JA, VAN HOESEN GW: Corticopontine projec-
tologia geral, para avaliação das principais patologias tions from the cingulated cortex in the rhesus monkey. Brain Res
psiquiátricas, cuja sintomatologia poderá influir nos re- 1981;205:391-395.
4. MIDDLETON FA, STRICK PL: Anatomical evidence for cer-
sultados, e mais especificamente questionários dirigi- ebellar and basal ganglia involvement in higher cognitive func-
dos ao espectro comportamental dos distúrbios de aten- tion. Science 1994;266:458-451.

266
PAPEL DO CEREBELO NAS FUNÇÕES COGNITIVAS E COMPORTAMENTAIS: BASES CIENTÍFICAS ...

5. CLOWER DM, WEST RA, LYNCH JC, STRICK PL: The infe- – dos Consensos às Incertezas Linda-a-Velha 2003, Vale & Vale
rior parietal lobule is the target of output from the superior Editores
colliculus, hippocampus, and cerebellum. J Neurosci; 2001; 26. MARTINOT J: Imagiologia Cerebral das Psicoses Esquizofré-
21(16):6283-91. nicas. In: D’Amato T, Rochet Th.et al A Esquizofrenia – Investi-
6. ALLEN G, BUXTON RB, WONG EC, COURCHESNE E: gações Actuais e Perspectivas, trad. José Nunes de Almeida, Lis-
Attentional activation of the cerebellum independent of motor boa 2001
involvement. Science 1997;275: 1940-3. 27. ANDREASEN N, PARADISO N, O’LEARY D: Cognitive Dys-
7. DESMOND JE, GABRIELI JD, WAGNER AD, GINIER BL, metria as an Integrative Theory of Schizophrenia: A Dysfunction
GLOVER GH: Lobular patterns of cerebellar activation in verbal in Cortical-Subcortical-Cerebellar Circuitry? Schizophrenia Bulle-
working-memory and finger-tapping tasks as revealed by func- tin 1998; 24(2): 203–218
tional MRI. J. Neurosci 1997;17: 9675-9685 28. LEROY I, O’HEARN E, MARGOLIS R: Psychiatric Syndromes
8. ACKERMANN H, WILDGRUBER D, DAUM I, GRODD: Does in Cerebellar Degeneration. Int Rev Psychiatry 2001; 13: 323-
the cerebellum contribute to cognitive aspects of speech produc- -329
tion? A functional magnetic resonance imaging (fMRI) study in 29. POLLAK L, KLEIN C, RABEY J, SCHIFFER J: Posterior
humans. Neurosci Lett 1998;247:187-90 Fossa Lesions Associated With Neuropsychiatric Symptomatol-
9. SCHMAHMANN JD, LOEBER RT, MARJANI J, HURWITZ ogy. Int J Neurosci 1996; 87: 119-126
AS: Topographic organization of cognitive function in the human 30. BERENT S, GIORDANI B, GILMAN S et al: Neuropsycho-
cerebellum. A meta-analysis of functional imaging studies. logical changes in olivopontocerebellar atrophy. Arch Neurol;
NeuroImage 1998b;7: S721 1990; 47: 997-1001.
10. RAPIN I: Autism in search of a home in the brain. Neurology 31. BURK K, BOSCH S, GLOBAS C, ZUHLKE C: Executive dys-
1999;52:902-904. function in spinocerebellar ataxia type 1. Eur Neurol 2001; 46(1):
11. BAUMAN M, KEMPER TL: Histoanatomic observations of 43-8
the brain in early infantile autism. Neurol. 1985;35:866-874. 32. STOREY E, FORREST SM, SHAW JH, MITCHELL P,
12. COURCHESNE E, YEUNG-COURCHESNE R, PRESS GA, GARDNER RJ: Spinocerebellar ataxia type 2: clinical features of a
HESSELINK JR, JERNIGAN TL: Hypoplasia of cerebellar vermal pedigree displaying prominent frontal-executive dysfunction. Arch
lobules VI and VII in autism. N Engl J Med 1988;318:1349-1354 Neurol 1999;56:43-50
13. MURAKAMI JW, COURCHESNE R, PRESS GA, HESSELINK 33. ZAWACKI TM, GRACE J, FRIEDMAN JH, SUDARSKY L:
JR, JERNIGAN TL: Reduced cerebellar hemisphere size and its Executive and emotional dysfunction in Machado-Joseph disease.
relationship to vermal hypoplasia in autism. Arch Neurol 1989; Mov Disord 2002;17:1004-10
46: 689-694. 34. DIMITROV M, GRAFMAN J, KOSSEFF P et al: Preserved
14. ALLEN G, COURCHESNE E. Differential effects of develop- cognitive processes in cerebellar degeneration. Behav Brain Res
mental cerebellar abnormality on cognitive and motor functions 1996;79:131-135
in the cerebellum: an fMRI study of autism. Am J Psychiatry 35. VAN DONGEN HR, CATSMAN-BERREVOETS CE, VAN
2003; 160(2):262-73 MOURIK M: The syndrome of cerebellar mutism and subsequent
15. RIVA, D; GIORGI, C: The cerebellum contributes to higher dysarthria. Neurol. 1994; 44(11):2040-6
function during development: evidence from a series of children 36. LEVISOHN L, CRONIN-GOLOMB A, SCHMAHMANN JD:
surgically treated for posterior fossa tumors. Brain 2000; 123: Neuropsychological consequences of cerebellar tumor resection in
1051-1061 children: Cerebellar cognitive affective syndrome in a pediatric
16. BROWN TE, ED: Attention-Deficit Disorders and population. Brain 2000;123:1041-1050
Comorbidities in Children, Adolescents, and Adults. American 37. ATTIG E, BOTEZ MI, HUBLET C, VERVONCK C, JACQUY
Psychiatric Press 2000 J, CAPON A: Cerebral crossed diaschisis caused by cerebellar le-
17. SLAATS-WILLEMSE D. ADHD, Genetics and Neuropsychol- sion: role of the cerebellum in mental functions. Rev Neurol
ogy: Introduction. In: Slaats-Willemse D. Cognitive Endopheno- 1991;147: 200-207
types of ADHD. Utrecht 2003. Ponsem & Looijen BV 38. BOTEZ-MARQUARD T, LEVEILLE J, BOTEZ MI: Neu-
18. SEIDMAN LJ, VALERA EM, MAKRIS N. Structural Brain ropsychological functioning in unilateral cerebellar damage. Can J
Imaging of Attention-Deficit/Hyperactivity Disorder. Biol Psy- Neurol Sci 1994;21:353-357
chiatry 2005; 57: 1263-1272 39.FABBRO F, TAVANO A, CORTI S, BRESOLIN N, DE
19. BUSH G, VALERA EM, SEIDMAN LJ: Functional Neuroima- FABRITIIS P, BORGATTI R: long-term neuropsychological defi-
ging of Attention-Deficit/Hyperactivity Disorder: a Review and cits after cerebellar infarctions in two young adult twins.
Suggested Future Directions. Biol Psychiatry 2005; 57: 1273-1284. Neuropsychol. 2004;42(4):536-45
20. BERQUIN P, GIEDD J, JACOBSEN L, HAMBURGER S, 40. BUGALHO P, CARMO I, VIANA-BAPTISTA M: Acidente
KRAIN A, RAPOPORT J, CASTELLANOS F. Cerebelum in At- Vascular do Cerebelo: o compromisso das funções mentais superiores
tention-Deficit Hyperactivity Disorder: A Morphometric MRI pode ser determinante de mau prognóstico. Sinapse (abst.)
Study. Neurol. 1998; 50, 1087–1093 2004;4(1):88
21. GUSTAFSSON P, THERNLUND G, RYDING E, ROSEN I, 41. GOTTWALD B, WILDE B, MIHAJLOVIC Z, MEHDORN
CEDERBLAD M. Associations Between Cerebral Blood-flow Meas- HM: Evidence for distinct cognitive deficits after focal cerebellar
ured by Single Photon Emission Computed Tomography (SPECT), lesions. J Neurol Neurosurg Psychiatry 2004;75:1524-1531
Electro-encephalogram (EEG), Behaviour Symptoms, Cognition 42. MALM J, KRISTENSEN B, KARLSSON T, CARLBERG B,
and Neurological Soft Signs in Children with Attention-Deficit Hy- FAGERLUND M, OLSSON T: Cognitive impairment in young
peractivity Disorder (ADHD). Acta Paediatr 2000; 89(7):830-5 adults with infratentorial infarcts. Neurol. 1998;51: 433-440
22. SCHMAHMANN JD, SHERMAN JC: The cerebellar cognitive 43. NEAU JP, ARROYO-ANLLO E, BONNAUD V, INGRAND P,
affective syndrome. Brain 1998;121: 561-579. GIL R: Neuropsychological disturbances in cerebellar infarcts. Acta
23. FRANGOU S, MURAY R. Schizophrenia (2a Edição) Londres Neurol Scand 2000;102:363-70.
2000 Martin Dunitz 44. HELMUTH LL, IVRY RB, SHIMIZU N.: Preserved perform-
24. GEORGIEFF N: Investigações Cognitivas e Esquizofrenia. In: ance by cerebellar patients on tests of word generation, discrimi-
D’Amato T, Rochet Th. et al: A Esquizofrenia – Investigações nation learning, and attention. Learn Mem 1997 Mar-
Actuais e Perspectivas, trad. José Nunes de Almeida, Lisboa 2001 -Apr;3(6):456-74.
Climepsi Editores 45. WALLESCH CW, HORN A: Long-term effects of cerebellar
25-MARQUES-TEIXEIRA J: Défice Cognitivo na Esquizofrenia pathology on cognitive functions. Brain Cogn 1990;14:19-25.

267
268

Potrebbero piacerti anche